Elisete Bairros Rey
Aluna de Psicologia da Faculdade Dom Bosco
[email protected]
Fábio Thá
Psicólogo, Doutor em Estudos Linguísticos, Professor do curso de Psicologia
da Faculdade Dom Bosco
DIVISÃO DO EU NO IDOSO
Resumo
O trabalho destina-se a entender e situar como se manifesta a divisão do Eu em idosos, a partir
de seus discursos obtidos pelo método de entrevista aberta, transcritos e analisados
qualitativamente por meio da análise semântica na abordagem psicanalítica. No percurso do
envelhecimento o idoso passa a perceber no seu Eu, construído na relação com o outro,
mudanças no pensar e no agir. Sua manifestação linguística expõe seu mundo subjetivo. Utiliza
metáforas que explicitam como sua mudança corporal, que é consequência do tempo, causa
estranhamento no Eu gerado por essa nova condição de vida. A escuta se faz importante para
possibilitar que o idoso reelabore a noção do Eu, que vai dar o reconhecimento de sua
identidade como sujeito neste novo momento da vida. Nas histórias de vida fica evidenciado
que o self essencial, aquele no qual reconhecemos nossa identidade, se desestabiliza com a
idade cronológica. Isto sugere que a qualidade de vida do idoso dependerá da elaboração
deste abalo que instala a condição de ser velho.
Palavras-chave: sujeito idoso, divisão do Eu, envelhecimento.
The work destines-itself it understand and situate as itself manifesto the division of the I
in elders, from his talks obtained by the approach of transcribed, open interview and analyzed
qualitatively by means of the semantic analysis in the psychoanalytical approach. In the journey
of the ageing the elder passes it perceive in his I built in the relation with the another, changes
in him think and in him act. His manifestation linguística exposes its subjective world. It utilizes
metaphors that set out as his corporal change, that is consequence of the time, cause surprise
in the I generated by that new condition of life. The listening is done important for enable that
the elder reworks the notion of the I, that is going to give the recognition of his identity as
subject in this new moment of the life. In the histories of life stays shown up that the self
essential, that in which we recognize our identity, if destabilizes with the chronologic age. This
suggests that the quality of life of the elder will depend on the elaboration of this I shake that
installs the condition of be old.
Keywords:
Ao nos colocarmos como ouvintes da fala das pessoas idosas, notamos
uma proeminência no emprego do termo Eu que, estando inscrito em sua
história de vida, permanece atual nas questões do tempo presente, bem como
do tempo passado. Mudando de posição com razoável frequência, o uso do
termo EU desperta a necessidade de entender como se manifesta, no idoso, a
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divisão deste EU. Este trabalho se propõe, então, a analisar como o idoso
percebe o seu Eu e sua subjetividade em relação às mudanças corporais e
como se situa com o momento e os motivos pelos quais estas mudanças se
refletem em seu Eu.
A partir do discurso do idoso surge a nova condição do EU e ele passa a
perceber mudanças entre o como eu era e o como eu estou. Assumindo que o
EU é construído, e não inato, busca-se um melhor entendimento da
subjetividade e das transformações corporais, dando ênfase à sua história de
vida e ao momento em que essa passagem ocorre.
Para que ocorra uma mudança na noção do EU, aquela referente à
essência do sujeito que tende a ser estável no curso da vida, se faz necessária
uma desestabilização advinda da percepção do corpo através do olhar ou da
relação com o outro.
Na realização desse trabalho foram ouvidos dois idosos, ambos
aposentados, sendo um homem de 72 anos, o qual vive com seu cônjuge, e
uma mulher de 67 anos, que reside com marido, filhos e netos.
Desta maneira, foram combinadas sessões de uma hora por semana,
em entrevista aberta, com a anuência dos dois participantes, no período de
seis meses, com relatos escritos em diário de campo, abarcando suas
experiências pessoais e histórias de vida.
A escuta priorizou o EU do sujeito, em seus processos mentais, a partir
do discurso. A análise semântica, que visa detectar a significação e as
variações desta, produzidas pela linguagem, revela as posições subjetivas que
o sujeito assume perante a vida, evidenciadas nas entrevistas através da
associação livre.
Para a identificação da fala de ambos, no presente trabalho, o homem
será o Sr. M., e a mulher, Sra. G..
Em todo o processo de desenvolvimento, o sujeito vai construindo a
noção do Eu a partir da experiência centrada no que ocorre ao seu redor, na
percepção de si mesmo e no reconhecimento de sua identidade pelo grupo
social em que está inserido.
Podemos observar que o Eu constitui-se de duas vertentes: a imagem
do Eu, que é descritiva, emanada da experiência de corpo físico, e a
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avaliatória, originada na vivência das relações, que produz no sujeito a
consciência de si e gera um Eu apto a interagir com o seu meio.
A esse respeito, Lakoff (apud THÁ, 2007) sugere o Eu dividido em duas
partes distintas; o subject e o self. O subject (sujeito) é a parte que se refere à
consciência, à racionalidade, à parte que pensa, enquanto o self é o corpo mais
os atributos designados a ele, a parte que se ocupa da ação. Ambas são partes
do sistema metafórico usado para conceituar a subjetividade, representá-la
mentalmente e situar-se em relação às experiências objetivas e subjetivas do
dia a dia.
No self, a imagem descritiva tem o Eu que vai revelar aspectos do físico
e características pessoais, o Eu imagem do sujeito. Já no subject temos o Eu
que envolve estimativas de valor pessoal, chamado de autoavaliação, que
remete a questões pessoais de escolha, de identificação, atitudes e juízos de
valor.
Desta forma, no uso da linguagem temos sentenças que evidenciam
essa divisão de várias e diferentes maneiras. Isso revela a dinâmica deste Eu,
que ora é conceituado dentro, ora fora de nós, ora no outro, ora em objetos.
A linguagem é o instrumento da comunicação. É o elo entre o Eu e o
mundo e o instrumento que viabiliza a expressão do que ocorre dentro de nós;
através dela nomeamos as coisas, os sentimentos, os desejos etc.. E neste
movimento do Eu na linguagem usamos metáforas de maneira rotineira e
imperceptível.
É através da ação de fatores que atribuímos ao Eu, porém, que temos
um efeito, por exemplo, na reação de outro sobre Eu mesmo (reflexo de uma
avaliação pessoal significativa); na comparação com outros (depende de como
me comparo perante o outro); nos diferentes papéis que desempenho
(adjetivos empregados ao Eu); no como me identifico com os outros (atitudes
características de qualidade) e no como a imagem corporal está integrada no
Eu (atribuições ao corpo físico). Desta forma é permissível, então, que o Eu
habite de várias formas o pensar e o agir do sujeito.
Esta noção do EU articula-se com a Teoria popular das essências, que
propõe que tudo tem sua essência, que é o que faz as coisas serem o que
realmente são. Aplicada ao homem, esta teoria afirma que, juntamente com a
racionalidade, existe a essência do ser que o faz único, que identifica o seu Eu,
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de acordo com o que é e o que faz. A essência da pessoa está no subject, que
é a consciência subjetiva; é como identifico o meu Eu e que me faz singular.
Determinam nossos julgamentos de valores, nossas escolhas, nossos
comportamentos. A essência é inerente ao subject, um determinante natural do
ser único (LAKOFF & JOHNSON, 1999).
Além disso, as metáforas revelam algo próprio da experiência interna de
cada um, mostrando ao mundo externo, através da linguagem, aquilo que
representa a subjetividade. Neste sentido, a linguagem expõe questões do self
e do subject, através dessas metáforas partindo de ideias, valores próprios e
comportamentos que se configuram na história de vida do sujeito.
Desde o nascimento vamos construindo a capacidade de nos tornarmos
sujeitos para mundo, ou seja, para sociedade e para a nossa identificação de
Eu. Este processo exige uma mudança na condição de vida. Primeiro se é
criança, depois adolescente, em seguida nos deparamos com a vida adulta.
Concluindo etapas combinadas com o tempo, chegamos a uma fase designada
de finitude. Seja velho, idoso, ou a melhor idade, por fim, a envelhescência,
processo este definido por Berlink (apud SOARES, 2005, p.93) “(...) como um
desencontro entre o corpo que envelhece e o psiquismo que se mantêm
atual...’’. Desta forma, acentua-se a divisão entre self e subject como partes e
elementos distintos. Embora ambos componham o Eu singular de cada sujeito,
a acentuação dessa divisão gera a necessidade de se pensar sobre ela.
O envelhecer não é apenas uma fase da vida, é um processo que requer
atenção. Por ser intrínseco no sujeito, movimenta aspectos subjetivos de
significação adquiridos durante o percurso de vida, da relação com os outros e
com o mundo. É ainda, o lugar que o sujeito ocupa perante o contexto, suas
limitações, anseios e valores. Perante essa nova condição de ser, que se
apresenta reportado ao externo, o velho é o outro. Talvez pela dificuldade de
delimitar parâmetros, o idoso não se reconhece como velho. No discurso abre
seu baú de lembranças, beneficiando-se de metáforas para explicitar sua
relação com os outros, com seu self e seu subject, demonstrando sua essência
em sua história de vida.
Desta forma a pessoa idosa, quando se refere ao seu trajeto de vida,
evidencia este percurso por uma divisão do tempo, passado e presente; já o
futuro revela a necessidade de novas elaborações, compreensões e
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simbolizações que se efetuam somente na presença de um outro que lhe
dedique atenção e escuta. Isso permite que aflorem conteúdos que não
residem somente no consciente, mas também em sua subjetividade. Este
tempo que o acompanha retrata a realidade na qual ele se encontra.
Segundo Bianchi (1993, p.20), “a relação do eu com o tempo é, portanto,
objeto de compromissos constantes”. Além da estrutura psíquica, o tempo tem
uma forte relação com a imagem corporal, sendo delator principal de se estar
velho. Sr. M., ao se referir a sua idade, relata; “(...) quando eu era jovem, eu
era um gato, agora sou um gato velho”. Pode-se dizer que o tempo lhe impõe
essa condição. Ele permanece como um gato, na sua subjetividade, mas
reconhece a sua condição atual, de não ser mais jovem. A esse respeito
Olievenstein (2001, p.24) justifica. ”A velhice não é um naufrágio, mas sim uma
nova forma de navegar”.
No entanto, o biológico e o social encontram-se e este corpo assume as
modificações que efetivam as relações intimas com o tempo, vai dar os limites
e colocá-lo no lugar que o social já reserva ao velho. Além disso, ele não mais
tem o status de jovem, mas é aquele que está no fim da vida. Seus antigos
valores não têm mais relevância por não ser mais um sujeito produtivo e por
não obedecer a padrões de juventude. Ele, idoso, se depara com a realidade
de sua posição, seu estado presente, que não lhe autoriza futuro.
Entretanto, o idoso é portador de um corpo que, mesmo em declínio, é
onde residem as pulsões que tem potência e que fazem as exigências à mente.
O corpo é a fonte das pulsões que o psiquismo representa com a finalidade de
satisfação.
Porém, cada sujeito tem a sua maneira de lidar com o seu corpo. Para o
idoso, sua identidade é igual à sua história, na qual o corpo é participante. O
corpo é o intermediário entre o Eu e o mundo. A imagem corporal é relacional,
é da ordem do desejo; o idoso é um sujeito desejante.
No entanto, o idoso não se reconhece como velho. Ele sabe que aquela
imagem lhe pertence, mas causa-lhe estranheza. Sra. G. relata: ”– (...) não são
as minhas mãos, elas eram sedosas, ...as manchinhas, são mãos de velha.” Ao
se deparar com a falta de reconhecimento, ela atribui a velhice a outro. Ela
manifesta seu desagrado pelo declínio físico. A esse respeito Sr. M. diz: “– Eu
não sou velho, velho é o Antonio que é um velho chato, e já ta caindo aos
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pedaços”. Goldfarb (1998, p.54) afirma: “(...) remeteriam à ilusão de
completude do Eu Ideal, de sê-lo todo. Quando o ideal fracassa, revela-se
desde o mais simples descontentamento com a própria imagem até os piores
horrores, (...)”. Quando há uma discrepância entre a imagem e aquilo que
reside na sua subjetividade, pode ocasionar adoecimento, como a Sra. G.
relata: “– Comecei a entrar em depressão quando fiz 60 anos, nunca tinha me
sentido assim, me olhava no espelho, não enxergava tudo isso. Achava um
absurdo, eu sempre fui tão bonita, sempre fui o orgulho de meus filhos, do
marido, por sempre estar tão bela. Mas agora eu estou ficando velha, aquela
velha do espelho não parecia eu”.
“– Entrei em desespero, fiquei doente e ninguém sabia o que eu tinha.
Eu sabia; não queria envelhecer, ficar velha é horrível. Confesso que não me
sentia assim, era só quando eu me via, olhava para as minhas mãos... E assim
com o resto do meu corpo...”
Diante disso, por serem externos ao subject essencial, o espelho e o
olhar do outro fazem com que não se admita de imediato ser idoso. É o que
vem de fora do subject, que representa o self corporal separado do subject,
que perturba, podendo produzir um retraimento do mundo externo e uma
economia de investimento, influenciada pela sua imagem de sujeito velho. A
maneira como o idoso conseguir trabalhar psiquicamente com seu self (seu
corpo) e com seu subject (seu Eu essencial) é que vai determinar como lidará
com essa nova condição. Para Soares, (2005, p.93) “a envelhescência é um
trabalho psíquico necessário para recriar uma experiência, a de viver a
velhice”. A Sra. G. estava vivenciando a fase do encontro com o self corporal
que não lhe permitia ainda uma elaboração subjetiva de sua condição.
O desespero de ficar velho é a crise no subject essencial que expõe a
divisão entre o self e o subject. A crise do Eu essencial, ou seja, da identidade
que acompanha o sujeito pela vida, e que em função da idade tem que ser
revista, demonstra que o envelhecer requer uma elaboração. Podemos
observar que todo o estranhamento vivido pela Sra. G. foi um trabalho de luto,
termo introduzido por Freud para nomear o processamento psíquico da perda
do objeto de afeição que acontece progressivamente, favorecendo o desapego
deste objeto perdido. Para a Sra. G. seu luto estava evidenciado na perda da
juventude, da beleza, do tempo que não volta mais.
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Isto demonstra que, se o trabalho psíquico, ou seja, uma elaboração
dessa divisão, não for efetuada de forma salutar, pode desencadear uma
recusa do trabalho de luto, um sofrimento neste Eu essencial, favorecendo o
adoecimento, que acentuará os efeitos das doenças ditas de velho, como
demência, arteriosclerose etc..
No decorrer das entrevistas, percebe-se que a Sra. G. resgatou um
sentido de continuidade do Eu em seu luto, como relata:
“– Pensei: eu não quero ser uma velha doente. E comecei a olhar em
minha volta, tudo que eu tinha construído, ao lado do meu marido com meus
filhos, e meus netos que precisavam de uma avó. Voltei a fazer academia,
parei com os remédios e aos poucos retomei os meus pequenos prazeres.
Tudo isso foi uma etapa que superei com bastante apoio da família. Não foi
fácil, mas consegui e já estou me preparando para chegar aos setenta anos
sem “piti”, mesmo sabendo que ficar velha não é sopa”.
Já o Sr. M. demonstrou uma reação mais amena perante a perda de sua
juventude, como relata: “– eu sei que não sou mais garotão, mas lá em casa
sou o gatão das meninas (filhas/netas). Só resmungo quando o corpo não
obedece, mas não ligo. Não sou aquele velho que fica olhando pro nada,
inerte. Eu sou um velho capaz de fazer coisas que até Deus duvida”.
A qualidade de vida do idoso dependerá de como ele elabora esse luto,
que em algum momento se manifesta, pelo encontro real com a imagem do
corpo ou pelo distanciamento da juventude e aproximação da morte.
O idoso, no seu discurso, permite a identificação de seu Eu dividido, que
se manifesta através da linguagem, conceituando seu corpo e sua
subjetividade. Quando dispõe de um espaço para a escuta de sua fala, um
outro que lhe dispense atenção, pode emergir uma nova expectativa em sua
vida. Falar da história de sua vida ajuda-o a resgatar o seu Eu construído no
trajeto vivido, dividido quando se depara com o real do tempo cronológico.
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REFERÊNCIAS
BIANCHI, H. O eu e o tempo: psicanálise do tempo do envelhecimento. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1993.
GOLDFARB, D.C. Corpo, tempo e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Philosophy in the flesh: the embobied mind and its challenge to
western thought. New York: Basic Books, 1999.
OLIEVENSTEIN, C. O nascimento da velhice. Bauru: Edusc, 2001.
THÁ, F. Categorias conceituais da subjetividade. São Paulo: Annablume, 2007.
SOARES DE PAULA, M. F. O Conceito de Velhice: da gerontologia à psicologia fundamental.
Revista latino-americana de psicologia fundamental, ano Vlll, n°1.,São Paulo, pág. 86 a 95,
março, 2005.
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