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Está na hora da onça beber água.
A antiga questão do sujeito preposicionado. Sujeito preposicionado !?
Cuidado com as bancas examinadoras!
Em recente questão proposta pela banca examinadora de língua portuguesa da
instituição CETRO CONCURSOS, a antiga qu estão do “sujeito preposicionado” para
formas verbais em infinitivo reaparece muito mais que viva.
Dizemos que está bem mais que viva, pois temos conhecimento de que ao
menos uma candidata recorreu da questão, alegando o óbvio: não se trata de
sujeito preposicionado, mas, antes, de fato que tem por base a morfologia e a
fonologia. É questão alheia aos fatos de regência – sintáticos, por óbvio -, mas
contida em estudos de morfofonologia.
Não foi o que considerou a douta banca, pois o gabarito da questão restou
mantido, consagrando equívoco que não tem como ser justificado. Como fechar os
olhos às lições de notáveis gramáticos e filólogos que, de forma clara, já abordaram
a impropriedade de se identificar preposição a reger o sujeito de orações em
infinitivo? Por que insistir em adotar posição que contraria o espírito da língua?
Estas não são perguntas retóricas. Revelam, sim, nossa estupefação diante de fato
cristalinamente válido e já demonstrado de modo cabal por grandes estudiosos de
nossa língua, a quem muito devem todos os que se dedicam a também estudá -la,
ainda que sem o brilho que provém de Souza da Silveira, Sílvio Elia e Evanildo
Bechara, por exemplo.
A frase “Está na hora da onça beber água” serve de mote para quatro artigos
definitivos sobre a questão ora abordada, da lavra de Evanildo Bechara, contidos no
volume 2 da série “Na ponta da língua”, publicação da Editora Lucerna, Rio de
Janeiro. Representam o tiro de misericórdia na controversa questão. Nas quatro
aulas, datadas de outubro/novembro de 1993, o eminente Evanildo Bechara
desenvolve, com o conhecimento que lhe é notório, amplo estudo acerca da
validade de ambas as construções “Está na hora de a onça beber água” e “Está na
hora da onça beber água”. Nelas o autor dá -nos soberba lição acer ca da matéria,
como e quando surgiu, com fartos exemplos. Mostra -nos, também, como autores
clássicos, sem nenhum pejo, usaram esta forma erroneamente considerada
indevida. Segundo Mestre Bechara. “A escolha consciente de uma ou de outra
forma dependerá muitas vezes, do ritmo, da eufonia e harmonia auditiva do boleio
da frase, da necessidade ou não de se enfatizar o significado da preposição, no de sejo e no direito do falante ou do escritor de extrair todas as virtualidades que a
língua portuguesa põe à sua disposição para exteriorizar ideias, pensamentos,
sentimentos e emoções.”
Anteriormente, Sílvio Elia – outro notável nos estudos de nossa língua –, em
artigo de 1990 –, publicado pela mesma Editora Lucerna, na série já citada, mas
em seu volume I, após citar o notável Souza da Silveira, que já se manifestara
acerca deste assunto em sua magistral Fonética Sintática, mostra-nos como
Alexandre Herculano, já dentro do Romantismo, tratou a questão: “ ... sabeis que a
abóbada do capítulo desabou ontem à noite? - Sabia-o, Senhor, antes do caso
suceder”.” Termina o seu artigo o grande Mestre Sílvio Elia, permitindo -se uma
ironia: “Mas, caro e paciente leitor, já é tempo do autor destas maltraçadas
linhas ir-se despedindo. Pinguemos, pois, o ponto final e muitos b ons dias.”
À guisa de ajudar os candidatos, estamos publicando neste site algumas
passagens dos artigos citados, bem como de trechos da MODERNA GRAMÁTICA
PORTUGUESA, de Evanildo Bechara. Recomendamos, vivamente, a leitura da
íntegra de tais artigo, em ‘Na Ponta da Língua”, trabalho já citado, além da
gramática a que aludimos, trabalhos que devem merecer a atenção de todos os que
se dedicam a estudar língua portuguesa.
Mas vejamos a questão que motiva esta dica. Surgiu no recente concurso para
preenchimento de vagas no cargo de Analista Judiciário, Área Judiciária, do Tribunal
Regional do Trabalho da 12ª Região, Santa Catarina:
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3. Levando em consideração as afirmações do texto e as orientações da gramática
normativa tradicional, é correto afirmar que
(A) no trecho “somente no Afeganistão, sete ONGs nacionais e diversas entidades
internacionais (...) atuam na desminagem”, do terceiro parágrafo, o termo destacado,
por ser advérbio, pode ser deslocado para antes ou depois da vírgula, sem que ocorra
prejuízo semântico.
(B) o trecho “apenas dois anos depois de os mujahedins expulsarem os últimos soldados
soviéticos”, do terceiro parágrafo, pode, sem que ocorra erro gramatical ou prejuízo
semântico, ser reescrito da seguinte maneira: “apenas dois anos dep ois dos mujahedins
expulsarem os últimos soldados soviéticos”.
(C) nos trechos “já foram doados mais de US$ 500 milhões para atividades antiminas no
país” e “Já o Camboja recebeu metade desses recursos”, ambos do terceiro parágrafo, as
duas ocorrências da palavra sublinhada têm o mesmo valor semântico.
(D) no trecho “já foram doados mais de US$ 500 milhões para atividades antiminas no país,
que possui uma das mais antigas missões da ONU com esse objetivo”, do terceiro
parágrafo, a supressão da vírgula não comprometeria o sentido do texto
(E) no trecho “sendo que uma mina não é plantada no país desde meados dos anos 70”, do
último período do terceiro parágrafo, a expressão sublinhada não tem nenhum valor
circunstancial e pode comprometer a compreensão do fragmento do texto.
O gabarito proposto pela banca examinadora para a presente questão é a
alternativa (E). Não está aqui em discussão a validade dessa indicação, que, para
ser observada, demandaria transcrição de fragmento de texto maior do que o
pinçado para os candidatos, já que fundada no texto motivador para a questão.
O que releva, neste momento, é a apreciação do item (B). Nele, parte -se do
fragmento originalmente contido no texto da prova, que transcrevemos: “apenas
dois anos depois de os muja hedins expulsarem os últimos soldados soviéticos”.
Propõe-se, a seguir, a forma “apenas dois anos depois dos mujahedins expulsarem
os últimos soldados soviéticos”, que, como podemos constatar, difere do original
apenas no que diz respeito ao uso da contraç ão “dos” diante do sujeito da forma
verbal de infinitivo “os mujahedins”. Relembremos que em seu enunciado a questão
solicita que o candidato, levando em conta “as orientações da gramática normativa
tradicional”, aponte o item correto. Ora, o que ocorreu com o candidato estudioso e
bem informado? Apontou o item (B) da questão, por ser inequivocamente correto e,
também, por ser o que primeiramente lhe surgiu – todos os que vivem na área de
concursos públicos, professores e candidatos, sabem o quanto o tempo é
importante na resolução de provas longas, com questões não só difíceis, mas
também muito extensas. Foi o caso, então, do conhecimento ser prejudicial.
E não se venha argumentar que a menção “gramática normativa tradicional”
implicasse descarte da alte rnativa (B). Na verdade, que mais normativo e que mais
tradicional existe, em nossos dias, que a MODERNA GRAMÁTICA PORTUGUESA, de
Evanildo Bechara, publicada pela primeira vez em 1961, pela Companhia Editora
Nacional? Tal obra, que vem orientando gerações de professores e alunos, está,
atualmente, editada pela Editora Lucerna. Não é objetivo desse artigo elogiá -la.
Nem há necessidade disso. Trata -se de livro que prescinde de apresentações. Pois
bem, nela já se podia ler, em suas edições mais antigas:
3) Está na hora da onça beber água. - A possibilidade de se por o sujeito de
infinitivo antes ou depois desta forma verbal nos permite dizer:
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Está na hora de beber a onça água (posição rara).
Está na hora de a onça beber água (posição mais frequente).
Este último meio de expressão aproxima dois vocábulos (a preposição de e o
artigo a) que a tradição do idioma contrai em da, surgindo assim um terceiro modo
de dizer:
Está na hora da onça beber água,
construção normal que não tem repugnado os ouvido s dos que melhor conhecem e
escrevem a língua portuguesa. Alguns gramáticos viram aí, entretanto, um
solecismo, pelo fato de se reger de preposição um sujeito. Na realidade não se
trata de regência preposicional do sujeito, mas do contato de dois vocábulos que,
por hábito e por eufonia, costumaram vir incorporados na pronúncia. A lição dos
bons autores nos manda aceitar ambas as construções, de a onça beber água e da
onça beber água. Que a contração é possível mostram -nos os seguintes exemplos:
“..., só voltou depois do infante estar proclamado regedor” (A. HERCULANO,
Fragmentos, 44); “Sabia-o, senhor, antes do caso suceder” (Id., Lendas e
Narrativas, I. 267): “se, por exemplo, me concederem um monopólio do
plantar couves apud PEDRO A. PINTO ); “Pelo fato do verbo restituir, numa das
suas acepções, e entregar, em certos casos, terem,” (E, CARNEIRO RIBEIRO,
Redação do Projeto do Código Civil, 579); “no caso do infinitivo trazer compl.
direto” (EPIFÂNIO DIAS, Sint. Histór., § 289-b).
Que não se trata de um erro tipográfico, mas de um fato da língua, prova -o o
seguinte fato: a contração constitui a norma na História de Portugal, de Rebelo da
Silva; na pág. 87 do vol IV, entretanto, escreveu:
“Nem o rei, nem o ministro apreciaram o perigo, senão depois de ele declarado e
irremediável”.
Na página de erratas, contudo, declara textualmente: “Onde se lê: de ele
leia-se depois dele (d’elle no original)”.
Menos felizes são as pretensões que Rebelo Gonçalves (1) propõe para:
“devido ao avião se ter atrasado ”, “pro menino ver”, que se devem
substituir, segundo ele, por: “devido a o avião”, “pra o menino”.
(1) Tratado de Ortografia Portuguesa, 286 -287.
(Colhido em Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa,
Companhia Editora Nacional, 33ª edição, 1989, p. 311 -312)
Mas sejamos justos. Não é exclusividade da banca examinadora do CETRO
CONCURSOS ignorar tão sábias lições. Diversas outras bancas adotam a mesma
posição diante desta questão. O exemplo veio -nos à memória por ser recente. Já
tivemos, entretanto, a o portunidade de ver igual fato ser adotado por uma série de
outras bancas.
Assim, como é propósito da seção Dicas orientar os candidatos acerca de como
deverão proceder em suas provas, só nos resta aconselhar muita cautela. Surgindo
alternativa que aborde a presente questão, apreciemos cuidadosamente os demais
itens da questão. Embora sabedores de que, rigorosamente, nada há que desabone
a construção “Está na hora da onça beber água”, tomaremos a decisão de dá -la
como correta ou não após uma cuidadosa obser vação das demais alternativas:
havendo um item incorreto entre eles, a posição da banca examinadora estará
[email protected]
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vindo ao encontro do que dispõem os notáveis estudiosos citados. Não existindo
qualquer item incorreto entre os quatro restantes, consideraremos, ain da que
contrariados, tal elaboração como incorreta.
O que importa ao candidato é, sem dúvida, ganhar o ponto da questão. Até
porque os recursos administrativamente não acatados devem ter sua continuidade,
caso o impetrante deseje insistir em seu pleito, na área judicial, que, sabidamente,
não é muito célere, o que acarretará algum longo tempo até que a decisão final
seja obtida. Melhor, sem dúvida, ceder ao pragmatismo.
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