Sou dirigente de uma associação de defesa do ambiente, de âmbito local com cerca de 20 anos de existência. A COREMA, mercê de uma actividade regular que conseguiu manter ao longo de duas décadas, encerra um historial que, além de se entrelaçar com o de muitas outras associações é, em si mesmo, um contributo para uma reflexão sobre o movimento ambientalista português e a análise da evolução ou retrocesso das políticas dos vários governos nesta área. Embora confinando grande parte do caudal da sua intervenção a uma parcela específica do território nacional – a região transfronteiriça do rio Minho –, a COREMA tentou sempre expurgá-la de quaisquer manifestações de natureza localista ou bairrista, rejeitando uma visão compartimentada do Ambiente, no nosso entender, desprovida de sentido quando assumida numa perspectiva coerente e integrada. Daí termos feito um esforço, ao longo de todos estes anos, de não nos afastarmos do lema “agir localmente e pensar globalmente”. Sempre consideramos que uma associação, mesmo de cariz local, deve assumir a sua intervenção como um contributo capaz de influenciar as políticas nacionais, sob pena de se deixar guetizar na defesa de um qualquer curso de água, mancha florestal ou sistema dunar. Nos primeiros anos (finais da década de 80), capitalizámos alguns êxitos, suscitando as nossas propostas e as nossas denúncias receptividade por parte de diversos organismos da administração pública, o que, devo confessar, nos encheu de optimismo. Demos um contributo decisivo para acabar com a extracção de inertes no rio Minho; evitámos a artificalização das suas margens e suscitámos a intervenção das entidades oficiais em projectos de conservação. Na Secretaria de Estado do Ambiente e, mais tarde, no Ministério do Ambiente, encontrávamos, nessa altura, interlocutores para as nossas preocupações, responsáveis e técnicos dos vários serviços (Serviço Nacional de Parques, Reservas e da Conservação da Natureza, Instituto Nacional do Ambiente, entre outros) com quem conseguíamos falar a mesma linguagem. E a comunicação com alguns deles não necessitava de filtros, alimentando-se, em certa medida, também de utopias e de ilusões em torno da possibilidade de colocar o Ambiente no primeiro plano das opções dos centros decisórios do país. No ano de 1989, em conjunto com o Instituto Nacional do Ambiente (mais tarde, Instituto de Promoção Ambiental e Instituto do Ambiente) organizámos 1 em Caminha um encontro de associações do distrito de Viana do Castelo. O Instituto Nacional do Ambiente fez-se representar nesta iniciativa e participou activamente na sua realização. Um ano depois, em 1990, na sequência de um Encontro das ADA (associações de defesa do ambiente) da Zona Norte com os responsáveis máximos do Ministério do Ambiente, acompanhámos o Ministro do Ambiente de então, a convite do próprio, numa visita ao Alto Minho, para reconhecimento “in situ” de algumas situações que, na nossa opinião, requeriam a intervenção do seu ministério. Estes dois casos, que se reportam ao início da actividade da COREMA, retratam uma época em que as associações de defesa do ambiente não eram tidas pelo ministério do Ambiente como inimigos, sendo por ele ouvidas e respeitadas. Essa interface eclipsou-se! A nossa experiência diz-nos que os vários serviços do Ambiente, salvo raras e honrosas excepções, foram-se esvaziando, aos poucos, dos técnicos mais competentes, os que ainda “respiravam” Ambiente, sendo substituídos por tecnocratas “sem alma”, comissários políticos, gente estranha a esta problemática. E mais do que isso, dispostas a abrir mão da defesa dos valores ambientais em nome de uma pastosidade e uma viscosidade a que chamam ponderação de interesses. A exoneração do Eng.º Tito Costa de director do Parque Nacional da Peneda-Gerês, contra a qual nos manifestámos, através de variados meios – incluindo uma audiência com o Governador Civil de Braga de então – é um dos casos que ilustra este ”assalto” aos serviços tutelados pelo Ministério do Ambiente, verificado desde há uns anos a esta parte. O Eng.º Tito Costa foi, na nossa opinião, tão-só o melhor director que o Parque Nacional teve até agora. “Era muito conflituoso” alegaram os altos responsáveis pelas áreas protegidas, os mesmos que metem na gaveta estudos de avaliação de impacte ambiental relativos à instalação de parques eólicos em território espanhol mas no limite de áreas classificadas nacionais (como foi o caso de Montesinho), para não os contestar e assim abrirem o caminho à sua instalação no lado português. Vem a talho de foice referir o seguinte: Parece-nos que as associações ambientalistas têm evidenciado alguns pruridos em criticar aquilo que se está a passar com a instalação dos parques eólicos em Portugal. A COREMA teve já a oportunidade de abordar 2 este tema numa sessão pública para a qual convidámos um dirigente da Federación Ecoloxista Galega e o presidente da Organización Galega de Comunidades de Montes Viciñais en Man Comum. Torna-se imperioso ter em atenção as incidências negativas do aproveitamento da energia do vento, relacionadas com a localização, a quantidade de aerogeradores e também o tipo de equipamento utilizado. Caso contrário estar-se-á a desvirtuar o princípio de energia limpa que se atribui à energia eólica, transformando-a numa energia suja para o Ambiente. Não poderemos estar de acordo com a instalação de parques eólicos a esmo, nomeadamente em Áreas Protegidas e Sítios da Rede Natura. Ainda a propósito do afastamento do Eng.º Tito Costa, curiosamente ou não, a COREMA lidou de perto com dois casos de exoneração de funções (um outro ainda além deste, ocorrido num outro ministério) em que a defesa coerente dos valores ambientais esteve na sua génese. Passando em revista as nossas vivências ao longo de quase duas décadas de actividade – semelhante a um “serviço de urgência” que vai socorrendo os casos que lhe batem à porta – concluímos que se tornou cada vez mais adverso o terreno que quotidianamente pisamos. A nossa intervenção – análoga, por certo, à de outras associações ambientalistas – tem vindo a esbarrar com um rosário de dificuldades, de efeitos quase paralisantes, cujas causas importa desfiá-las. A visibilidade que a intervenção da COREMA conseguiu atingir nos seus quase 20 anos de existência não se traduziu numa maior capacidade de mobilização dos cidadãos para a defesa militante e activa do património ambiental. As dificuldades são, na nossa opinião, ainda maiores quando se trata de implicar os mais jovens nesta causa. Em relação a estes últimos, diz-nos a experiência que é possível entusiasmá-los pontualmente em torno de uma ou outra iniciativa. Torna-se já uma missão com elevado grau de dificuldade motivá-los para um trabalho organizado e continuado. Sabe-se que a fraca mobilização da população em geral em torno da problemática ambiental se relaciona com o baixo nível cultural e o ainda elevado nível de insatisfação das chamadas 3 necessidades básicas, factores que contribuem para manter os cidadãos arredados das questões ambientais. Estas teimam em continuar a apresentarse, no conjunto das suas principais preocupações, demasiado lateralizadas – uma realidade cruamente retratada em estudos e sondagens recentes. Será, no entanto, justo reconhecer que se regista aqui uma evolução positiva que, mesmo assim, está longe de poder concorrer com o ritmo de delapidação e destruição a que meio natural está sujeito. A falta de hábitos de cidadania, a fraca tradição de associativismo e o baixo nível de voluntariado que se registam no nosso país nas mais diversas áreas contribuem também para a baixa participação dos portugueses nas associações de defesa do ambiente. Portugal é um dos países da Europa em que menos se exerce o voluntariado: uma realidade que atravessa transversalmente todas associações e organizações não governamentais independentemente da sua natureza e dos fins que perseguem. Dizia-se antigamente que “o calado é o melhor”. Os nossos governantes, eleitos democraticamente, continuam com os mesmos tiques de antanho, potenciando este divórcio. Veja-se o resultado de muitas das consultas públicas realizadas no âmbito dos Estudos de Avaliação de Impacte Ambiental. Ou são encaradas como mero cumprimento de um formalismo legal, em que a decisão já está tomada antes do próprio inquérito público; ou são tidas somente em consideração se os seus resultados servirem para legitimar opções orientadas num determinado sentido, muito raramente em benefício do Ambiente. A actuação do actual Governo em relação ao processo de avaliação de impacte ambiental da chamada “Ligação a Caminha da A28” – que a COREMA contesta desde há cinco anos – encerra, além de uma actuação ilegal porque deu luz verde a um projecto que foi declarado pela respectiva Comissão de Avaliação “em desconformidade ambiental”, um desrespeito pela participação dos cidadãos, que foi considerada pelo próprio Instituto do Ambiente como uma das maiores de sempre. Receando que o Relatório de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução fosse “chumbado” pela terceira vez, o governo mandou avançar a obra, sem sujeitar o projecto – cujas alterações foram ocultadas –, a uma nova consulta pública. Práticas como esta levam os cidadãos a concluir da inutilidade da sua participação. O poder apenas a 4 aplaude quando ela serve para respaldar as suas escolhas. Caso contrário, é vista como uma espécie de estorvo, que pode ser usada para dificultar o exercício da governação. O aumento do grau de consciencialização dos cidadãos em torno das questões de natureza ambiental é assim olhado com desconfiança, levando os órgãos da administração central, regional e local a envolverem, muitas vezes, os seus actos com um manto de opacidade, sonegando informação e mantendo os seus principais destinatários (os cidadãos) afastados dos problemas do país. Esta prática, infelizmente habitual na administração pública portuguesa, contribui para desresponsabilizar e desmotivar os cidadãos do exercício da cidadania, colocando-os longe da órbita da aplicação das políticas, como se elas não se destinassem a esses mesmos cidadãos. A própria participação das ONGA (organizações não governamentais de ambiente) nos diversos órgãos consultivos de Ambiente não passa, na nossa opinião – isto tendo em conta, uma vez mais, a experiência da COREMA – de um simulacro do reconhecimento do seu estatuto de parceiro social. A forma como são conduzidos os trabalhos – pelo menos em alguns desses organismos – e as circunstâncias que rodeiam a participação dos dirigentes associativos transformam-na numa caricatura. Quanto à maneira como são conduzidas as reuniões, cito o processo de elaboração do Plano de Bacia do Minho, em que a COREMA (ou outra qualquer associação ambientalista) nunca foi alvo de um único contacto por parte da empresa que o elaborou. Após ter demorado seis anos para apresentar o grosso do Plano, o Instituto da Água, que preside ao Conselho de Bacia do Minho, reservou cerca de hora e meia aos cerca de 50 conselheiros para a discussão dos respectivos documentos. No que concerne às circunstâncias que rodeiam a participação dos dirigentes associativos nos organismos públicos, as associações de defesa do ambiente deveriam dispor de um crédito de determinado número de horas por ano destinado aos dirigentes que representam as ONGA nesses vários organismos – um estatuto análogo aos delegados sindicais. No meu caso – funcionário público – sou obrigado a apresentar no serviço um requerimento sempre que sou convocado para reuniões, tendo-me sido já negada essa participação. De 5 sublinhar que, para além desse incómodo, todas as despesas daí decorrentes (deslocações e refeições) são assumidas integralmente por mim. Esta é uma realidade incontornável para muitas associações, que prestam um serviço público – que o Estado, em alguns aspectos, deveria assegurar – em condições muito desiguais em relação às demais entidades, sem quaisquer contrapartidas e, pelo contrário, com prejuízos, de vária ordem, para os seus dirigentes. O único subsídio que a COREMA recebeu no corrente ano foi de 100,00 euros, atribuído acintosamente pela Câmara Municipal de Caminha, destinado a apoiar as suas actividades em 2007. Somos de opinião que o Estado, ao reconhecer o papel crucial das associações no capítulo da educação ambiental, tem o dever de as apoiar, também financeiramente, evitando que elas se extingam ou se tornem dependentes de apoios provenientes de entidades privadas, com todos os riscos que isso comporta para a preservação da sua independência face a determinados grupos económicos. A independência é para nós um valor intocável, que tem inerente (sabemo-lo por experiência própria!) um custo muitíssimo elevado. Estamos convencidos que o sucesso e a credibilidade que a COREMA conseguiu angariar ao longo da sua existência deve-se, sobretudo, à sua independência e equidistância em relação aos governos, aos partidos políticos e aos diferentes poderes existentes na sociedade (económico, entre outros). Essa característica permitelhe actuar sem mordaças, sem calculismos ou “tacticismos”, pressionada apenas pela urgência de intervir. Estamos convencidos que a voz independente das associações quadra, assim, uma liberdade que é, em si, mobilizadora e inspiradora, convertendo-se num referencial que dificilmente poderá ser apagado. No regulamento interno da COREMA está vedada a possibilidade dos associados que desempenhem cargos político-partidários poderem integrar a Direcção da associação. Assim tem sido ao longo da sua existência. Sabemos que esta matéria é polémica e está longe de reunir consensos. Não pretendemos com isto demonizar os partidos políticos, os quais têm o seu espaço próprio de intervenção, que não concorre com o das associações. Apenas pretendemos salvaguardar este património que constitui o carácter independente das associações de defesa do ambiente e conservá-lo 6 como um valor inalienável, numa lógica de contra-poder. Ainda a propósito deste tema, a COREMA tem consciência que influenciou (tal como outras associações o terão feito) a dinâmica das nossas congéneres galegas. Nos primeiros anos da nossa actividade, quando participávamos em encontros ou reuniões na Galiza, assistíamos a algo semelhante às RGA(s) portuguesas do pós-25 de Abril, verificando-se um enfeudamento muito grande das associações ambientalistas galegas em relação às correntes políticas e às organizações partidárias. Também por causa das suas idiossincrasias, das vivências ao longo da sua História recente. O movimento ambientalista português terá constituído, nesta matéria, um referencial para os nossos vizinhos, no sentido de uma maior autonomização e independência das associações. Longe dos corredores do poder, dos principais centros de decisão do país, as associações locais como a COREMA permitem-se respirar um ar seguramente menos contaminado, trilhar o seu próprio caminho, não mudando de rumo a cada passo. A nossa experiência diz-nos que só se ganham batalhas quando se desenham estratégias claras de actuação, por vezes, com horizontes temporais de vários anos. As populações, que vivem significativamente divorciadas das questões ambientais – na nossa opinião, não mais do que os políticos e governantes em geral – reagem, normalmente, com cepticismo em relação aos resultados práticos das campanhas de defesa dos espaços naturais ou de contestação a certos projectos. Tal implica que os dirigentes associativos se tornem autênticos “corredores de fundo”, rejeitando que sejam os “média” a fornecer a ordem do dia, realizando antes um “trabalho de formiga” previamente detalhado. Na campanha que realizámos, a partir de 1992, contra a construção de uma grande barragem no troço internacional do rio Minho – a Barragem de Sela –, estivemos no seu arranque completamente sozinhos. Ninguém se acreditava no seu êxito. O empreendimento hidroeléctrico em causa, acordado pelos governos de Salazar e de Franco, era tido como um facto consumado, e a contestação uma luta entre David e Golias. Começamos por distribuir um comunicado porta-a-porta, nas freguesias ribeirinhas de Monção e de Melgaço. Este contacto com a população local realizado aos fins-de-semana durou vários meses. Passámos, depois, a exibir 7 um diaporama sobre a importância história, arquitectónica, patrimonial e económica das construções centenárias em pedra existentes na margem portuguesa e galega – as “Pesqueiras” – que ficariam submersas pelas águas da albufeira. As sessões, que aconteciam, normalmente, no fim da missa dominical de cada freguesia, eram anunciadas pelo padre no decurso da mesma. Conseguimos criar, seguramente, uma das mais amplas frentes de contestação ao projecto de uma barragem luso-espanhola, apenas possível com a mobilização das populações afectadas, através da participação activa das Câmaras Municipais das duas margens do Minho, das Juntas de Freguesia, dos vitivinicultores, dos pescadores, das associações ambientalistas, de montes, de desportos radicais ligados ao meio aquático, das associações culturais e de escritores galegos, entre outras. Esta luta durou 8 anos, de 1992 até 2000, mantendo-se a COREMA atenta aos projectos ditos alternativos apresentados, entretanto, pela EDP e pela Unión Fenosa. Mesmo as lutas que não se conseguem ganhar encerram, quando devidamente fundamentadas e justificadas, um balanço positivo. Os efeitos da sua componente pedagógica, que lhes deve estar necessariamente associada, perdurarão para além da decisão política que, no imediato, as converteu em revezes. A nossa intervenção – refiro-me à das associações ambientalistas em geral –, assumida coerentemente, e sempre que é possível juntando a proposta ao protesto, deixa rastos que ficam gravados na memória dos cidadãos. Há algumas semanas atrás, fui abordado, num estabelecimento comercial, por uma pessoa que me disse: vocês tinham razão quando denunciaram as consequências daquele projecto. E recordou um debate televisivo em que participámos, no ano de 1991. Há 16 anos, portanto! É com esta experiência acumulada que realizamos hoje a nossa intervenção, em condições que consideramos as mais adversas de sempre. Estamos, na realidade, perante um governo que desenvolve uma autêntica política de “terra queimada” em termos ambientais. Sabemo-lo pelos jornais, pelas rádios, pelas televisões e, sobretudo, pelo dia-a-dia da nossa intervenção. Este é o pior governo de sempre na área do Ambiente. O ministério da tutela parece mais uma comissão liquidatária do que o garante da sua defesa. O seu responsável 8 máximo - o mesmo que se orgulha de participar em cerimónias de entrega de alvarás de empreendimentos turísticos em zonas da Rede Natura (como foi o caso de um mega empreendimento para Grândola) e produz afirmações como “prefiro as pessoas ao lince”, esquece-se, recorrentemente, que o seu ministério se chama do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional. Confunde a sua pasta com a do Turismo e da Economia. Num país decente, com um governo decente, o Eng.º Nunes Correia já teria sido, há muito, demitido de funções. O que nós sentimos é que o Estado vai, aos poucos, sacudindo responsabilidades na esfera do Ambiente e da qualidade de vida dos cidadãos. Começa a ganhar terreno a “empresarealização” e a privatização da política de Ambiente. Agora, são as empresas que têm o monopólio de discutir o uso da energia e a sua produção através fontes alternativas (ainda não percebemos como é que o são na prática quando se mantêm todas as outras!). Realizam-se simpósios, seminários e conferências sobre a energia eólica e, curiosamente, as associações ambientalistas são colocadas à margem desses eventos. Por outro lado, notamos que os espaços naturais e os valores ecológicos estão cada vez mais votados ao abandono e entregues aos prevaricadores, à espera que inconfessáveis interesses imobiliários e outros tomam conta deles, munidos de projectos ditos ecológicos e de desenvolvimento sustentável. Sentimos que nunca como agora se desrespeitou tanto a legislação em vigor. A título de exemplo refiro o Domínio Público Hídrico que, em alguns casos com que lidámos, é uma espécie de “terra de ninguém”. Num deles (igualmente Reserva Ecológica Nacional, Rede Natura e Zona de Protecção especial), foi, entre outros desmandos, até instalado um heliporto. Enviada uma queixa (acompanhada de várias fotografias e outros documentos), em Maio de 2006, ao Senhor Secretário de Estado do Ambiente, obtivemos uma resposta, em Agosto de 2007, 15 meses depois, comunicando que, efectuadas visitas ao local pelos serviços do ministério da tutela, nada constataram. Ou seja, as fotografias que remetemos à Secretaria de Estado do Ambiente não passavam de fotomontagens. Deveremos congratular-nos com o facto do nosso ofício ter tido resposta, mesmo 15 meses depois. Outros há, dirigidos a diversas entidades oficiais, remetidos em carta registada com aviso de recepção, que 9 não têm tido essa sorte. Para além da total ineficácia do acto, a COREMA despende uma verba substantiva do seu magro orçamento em despesas de correio. O Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da Guarda Nacional Republicana (SEPNA) – refiro-me ao Grupo Territorial de Viana do Castelo –, que numa primeira fase da sua existência actuava com denodo, tem pautado as suas acções de fiscalização por uma enorme falta de rigor, que acaba por branquear intervenções que configuram, na nossa opinião, atropelos à legislação em vigor. Daí termos dirigido, há dois meses, uma queixa ao Comando-Geral da GNR. Também uma reclamação que enviámos, meses atrás, à Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional - Norte a propósito do funcionamento da Zona Industrial da Gelfa - Vila Praia de Âncora sem dispor de qualquer ETAR (isto passa-se em Portugal no ano de 2007!) mereceu a resposta que passo a reproduzir – “Em Junho de 2007, foi recebida a informação da Divisão de Abastecimento Público, Ambiente e Serviços Urbanos daquela autarquia [refere-se à Câmara Municipal de Caminha], na qual consta que o destino dos efluentes domésticos e industriais a instalar na Zona Industrial da Gelfa são conduzidos para a ETAR da Gelfa [a estação de tratamento de águas residuais domésticas do vale do Âncora]”. E terminava com os melhores cumprimentos. Para a CCDR, este assunto morreu aqui. Espantoso! Também a Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território demonstra grande originalidade na forma como trata as nossas queixas. Uma reclamação (acompanhada de fotos e outros documentos) contra a empresa concessionária da SCUT do Norte Litoral, relacionada com uma ocupação do leito e margens do rio Coura (afluente do rio Minho) foi-nos respondida com uma cópia do ofício endereçado pela referida empresa à Inspecção-Geral. Tarefa fácil esta de realizar acções de inspecção sem sair do gabinete e com base nas respostas dos visados pelas reclamações. As nossas queixas são, desta forma, dirigidas ao vento que passa…, o que acaba por ser mais poético, diga-se de passagem. Tudo isto não teria grande importância, para além do desgaste que a nossa intervenção vai sofrendo, e consequentemente o desgaste dos elementos que integram a direcção da COREMA, se não se traduzisse na destruição da paisagem, dos espaços 10 naturais, do património biogenético, do Ambiente em geral. As marcas de tudo isto estão no território, cada vez mais caótico, desordenado e agredido. Com o epicentro no Algarve (agora Allgarve), o cataclismo urbanístico teve, nas últimas décadas, réplicas em todo o país. E, curiosamente, ao mesmo tempo que era apontado como um exemplo a não repetir, os poderes públicos continuaram a transformar o “ordenamento do território”, apenas e tão-só, numa figura de estilo. De Norte a Sul, na verdade, a paisagem não nos engana! Escaparam, apesar das mazelas que exibem, as Áreas Protegidas, os Sítios de Interesse Comunitário e as Zonas de Protecção Especial da Rede Natura. Escapar: verbo que teremos de nos habituar a conjugar no pretérito. O actual Governo, presidido por um ex-Ministro do Ambiente, tem vindo a produzir legislação que visa simple(x)mente facultar aos promotores imobiliários os meios para poderem construir “com qualidade” nas últimas “reservas” do território nacional, que foram durante anos preservadas, mercê, também, de um investimento público: económico, científico, social e de cidadania. Está agora em marcha um autêntico saque às áreas que restam para a conservação e para a manutenção da biodiversidade em Portugal, cujo equilíbrio ecológico e paisagístico garantem a tal qualidade dos projectos. Ao longo de vários anos, a comunidade científica, as associações ambientalistas e os cidadãos em geral pugnaram pela preservação da costa alentejana, da Lagoa de Óbidos, do litoral de Sintra-Cascais, entre outros espaços considerados fulcrais para o Ambiente e para a Identidade do Território, parte fundamental da nossa Identidade Cultural. Tudo isso para quê? Para o actual Governo os entregar, agora, aos consórcios, promotores imobiliários e grupos económicos, animado de uma estratégia de desenvolvimento que visa transformar o território numa espécie de couto mineiro, que depois de explorado até ao tutano será abandonado, sem condições para o recuperar e o renaturalizar. “Inventou” para isso os projectos de Potencial Interesse Nacional (PIN) e, não satisfeito ainda com a legislação que os suporta, o Governo criou já os Super PIN ou os PIN Mais. Mais resorts para o Algarve, mas também para o Alentejo, o Ribatejo, as Beiras, a Estremadura, o Douro e o Alto Minho. Portugal será assim um país “sui generis”… atascado de resorts! E turistas de 11 todas as partes do mundo virão, dispostos a gastar fortunas, conhecer essa realidade portuguesa, classificada até de interesse nacional. Só no Algarve, a juntar aos 34 campos de golfe em exploração, encontram-se cinco em construção e o Governo analisa propostas de investimento para mais 39, blindado aos cenários de escassez de água, de seca extrema ou severa. É mais fácil a um promotor construir um empreendimento turístico ocupando várias centenas de hectares de uma “Área Protegida” do que um particular obter uma licença para fazer obras de remodelação da habitação que aí possui. Mais uma originalidade dos nossos governantes, que descredibiliza e retira a base social de apoio a qualquer política ambiental. E as medidas governamentais em termos de “desenvolvimento (in)sustentável” não ficam por aqui. Os Planos Directores Municipais – onde, na maioria dos casos, as preocupações conservacionistas são residuais – têm sido suspensos para permitir a edificação em zonas classificadas como Reserva Ecológica Nacional. Violam-se, assim, os PDM, de forma legal! Perguntamos: Afinal para que é que servem as condicionantes neles fixadas? Será que valerá a pena ao país gastar dinheiro e tempo na elaboração e revisão deste suposto “instrumento de ordenamento do território”? Mas o Governo criou já na legislação novos mecanismos com vista a agilizar o seu processo de aprovação, reduzindo o tempo de participação dos cidadãos na sua discussão pública (só estorva!) e aumentando nele o peso da administração local. A intenção do poder central transferir para as Câmaras Municipais competências em matérias relacionadas com o Ambiente e o Ordenamento do Território, lida à luz das recomendações feitas, há cerca de um ano, pelo presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses – que instigou ao apedrejamento dos fiscais do Ministério do Ambiente no cumprimento das suas funções –, só nos poderá merecer este comentário irónico: O Ambiente e o Ordenamento do Território ficarão, na realidade, em boas mãos…! E, de pedrada em pedrada, não restará pedra sobre pedra, como àquelas aldeias do interior do país, que estão a ser desmontadas e vendidas em paletes aos espanhóis. Preparemo-nos para o pior com as revisões dos PDM! 12 O que é que fizeram, nos últimos dez anos, os ministérios do Ambiente dos sucessivos governos, no mesmo período em que a biodiversidade em Portugal conheceu uma inegável regressão, com 42% de espécies selvagens de vertebrados ameaçadas? Como classificar a atitude de um Ministério do Ambiente que permite a actividade cinegética numa zona classificada como Zona de Protecção Especial e uma Important Bird Area (IBA)? Reporto-me ao caso da ZPE – Estuários dos Rios Minho e Coura, onde as várias espécies da avifauna provenientes, na sua maioria, de países do Norte da Europa, encontram aqui, não o refúgio, a tranquilidade e o alimento que procuram, mas a perturbação e a morte, numa zona considerada de “Protecção Especial” para as aves…! Que intervenção têm tido os nossos governantes perante essa calamidade ambiental que constituem os incêndios, responsáveis pela devastação, nas últimas duas décadas e meia, do equivalente a um terço do território nacional? Falta o Ministério do Ambiente (e da Agricultura), sobra o Ministério da Administração Interna. Estamos perante um claríssimo retrocesso na política ambiental do país, se não mesmo, um “golpe de estado” na conservação dos últimos redutos da sua vida selvagem. A preservação do nosso património natural e biogenético não representa, para o actual Governo, um desígnio nacional. De “interesse nacional” são os resorts e os projectos como o do grupo Pescanova, aprovado para o Sítio da Rede Natura das Dunas de Mira e chumbado na Galiza por se situar numa zona precisamente como mesmo estatuto comunitário de protecção. A diferença está aqui! Enquanto os outros Estados da União Europeia protegem os seus valores naturais, o Estado português delapida-os, apesar de ter sido ele a propor a sua classificação como Sítios de Interesse Comunitário. Mas, um resort instalado numa área com tão elevado estatuto de protecção tem um valor muito superior ao daquele que teria se estivesse numa zona não classificada. Chama-se a isto “visão de futuro”…! A COREMA não é pessimista. O estado do Ambiente em Portugal é que está péssimo! Tal constatação não nos deve, no entanto, paralisar. Vem reforçar, pelo contrário, a necessidade das associações continuarem activas e conscientes de que a sua paralisia tornará ainda mais negra essa realidade. Os 13 principais problemas ambientais do país não são muito diferentes no norte, no centro e no sul. Não podemos desperdiçar energias e recursos, alimentando atitudes divisionistas e comportamentos “tribalistas”. Consideramos que, mais do que nunca, as associações no seu conjunto devem integrar e reforçar a Confederação Portuguesa de Associações de Defesa do Ambiente, com a actual orgânica interna ou com outra diferente. A nossa bandeira não é a da COREMA ou de outra qualquer associação. A única bandeira que transportamos é a da defesa do Ambiente. E termino com este poema de Bertold Brecht: “Há homens que lutam um dia, e são bons. Há outros que lutam um ano, e são melhores. Há quem lute muitos anos, e é muito bom. Mas há os que lutam toda a vida. Esses são os imprescindíveis” José Gualdino Correia 18º ENCONTRO NACIONAL DAS ADA/ONGA Lisboa, 15 de Dezembro de 2007 14