Um obstáculo às relações humanas harmoniosas: defesa contra a bondade Roy Schafer*, Nova Iorque, ESTADOS UNIDOS Resumo A experiência e a expressão da própria bondade apresentam-se como sendo, para muitas pessoas, um perigo contra o qual devem erguer defesas. Estas defesas desempenham um papel significativo na obstrução de relacionamentos harmoniosos com os outros. Sob este ponto de vista, estas defesas promovem desarmonia cultural e podem ser inseridas no contexto da destrutividade e da culpa que Freud enfatizou quando tratou de problemas culturais em "0 Mal-Estar na Cultura" (1930). Os analistas clínicos encontram estas defesas na transferência. Foram incluídos exemplos; um deles retratando a falsa bondade como uma forma especial de defesa. Em geral, então, esta foi uma tentativa de mostrar que, quando vista pelo ângulo certo, a psicanálise clínica não é apenas um método de tratamento, mas também uma forma de estudo cultural. Membro da Associação Psicanalítica Americana. Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 ■ 33 Roy Schafer A Psicanálise como uma forma de estudo cultural A psicanálise clínica tem todo o direito de ser considerada uma forma de estudo cultural. O fato de diferir de outras formas de estudo cultural não deveria excluí-la deste grupo fazendo com que fosse vista, como freqüentemente o é, simplesmente como uma disciplina alheia sendo aplicada à análise cultural. Cada um dos tópicos específicos que são retratados no trabalho clínico, tais como transferência e contratransferência, repetição e regressão, tem um papel importante nos modos de vida que classificamos sob o título de cultura. O que distingue a psicanálise é o fato de que ela chega até a cultura pelo lado de dentro, isto é, a partir da interpretação de fantasias inconscientes altamente individualizadas, relativas às dores e aos prazeres de relações objetais. Em diferentes graus, estas fantasias tanto refletem seu cenário cultural quanto têm um papel naquilo que pode ser percebido em qualquer cenário cultural. Outras formas de estudar a cultura, tais como as científico-sociais e históricas diversas, são diferentes da psicanálise no fato de não trabalharem a partir do lado de dentro; são abordadas a partir do lado de fora como forma dada em registros públicos ou privados, observações formais e informais, entrevistas e questionários. Sob este aspecto das coisas, não hesito em dedicar meu ensaio a um aspecto da análise clínica. Ele diz respeito a uma importante fonte de perturbação e limitação nas relações harmoniosas entre os seres humanos. É um fator que pode ser localizado no território já demarcado por Freud, especialmente no seu ensaio "O Mal-Estar na Cultura" (1930). O fator a que me refiro é a defesa contra a bondade. Em breve apresentarei alguns exemplos clínicos resumidos da análise dessa defesa. Antes disso, contudo, quero fornecer um background geral para justificar mais a minha abordagem clínica individualizada em relação ao nosso tópico comum e, então, passar a algumas considerações que enfocam este fenômeno obstrutivo em si. Background Em "O Mal-Estar na Cultura", Freud incluiu este insight sombrio: "nunca estamos tão indefesos contra o sofrimento quanto quando amamos, nunca tão impotentemente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor" (S.E. 21, p.88, 1930). Sabemos, a partir do que Freud já havia escrito em 1926, em "Inibição, Sintoma e Angústia", que implicitamente ele estava levando em conta o importante papel desempenhado pela defesa ao lidar com este potencial para o sofrimento. Ele verificou que o próprio fato de amar estabelece um conjunto de situações de perigo: perda de amor e perda do objeto amado. Os 34 ■ Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 Um obstáculo às relações humanas harmoniosas: defesa contra a bondade analistas de hoje gastam grande parte do seu tempo de trabalho clínico diário nestes perigos e nas defesas as quais dão origem. Eles aprenderam que a individualidade da necessidade de cada paciente em relação a estas defesas, sua seleção de defesas, e o sutil e complexo desdobramento destas, apresentam alguns dos maiores obstáculos ao tratamento, assim como a relacionamentos satisfatórios em geral, e, ao mesmo tempo, fornecem alguns dos materiais mais ricos para a análise e, consequentemente, para a compreensão de problemas que caracterizam as relações sociais em geral. A partir deste aspecto do trabalho do analista, pode-se extrair algumas hipóteses gerais sobre desarmonia cultural. Em "O Mal-Estar na Cultura", Freud centrou suas hipóteses na destrutividade própria e do outro e na culpa. Acho que todos nós o acompanhamos até aqui. Porém, é possível ir além, e foi, acredito eu, Melanie Klein e aqueles que seguiram sua orientação que expandiram o raciocínio de maneira significativa. Tenho em mente, em particular, a definição de Klein em relação às duas posições psíquicas básicas - a posição esquizo-paranóide (1946) e a depressiva (1940) - e o seu reconhecimento do tormento associado à passagem do modo de existência esquizo-paranóide, que é relativamente primitivo, ao depressivo, pois é na posição depressiva que se vai decisivamente em direção ao amor maduro, interessado, com objetos-totais percebidos de forma realista, não mais onipotentemente controlados e, portanto, vulneráveis. Estes objetos amados e amantes podem ser destruídos ou senão perdidos, e agora devem ser restaurados ou reconquistados, seja na realidade ou na fantasia. Nos últimos anos, John Steiner desenvolveu o tema da progressão dolorosa e da perda de um modo particularmente útil (1993). Defesas contra a bondade Os psicanalistas estão em excelente posição para observar todos aqueles exemplos nos quais as pessoas temem sua própria bondade, erguem suas defesas contra ela e, desta forma, obstruem trocas e intercâmbios salutares. Muitos pacientes representam esta estratégia defensiva através de transgressões auto-prejudiciais, incompreensão e todas aquelas supostas reações terapêuticas negativas que são o lado oculto ou as conseqüências imediatas de sinais evidentes de "mudança para melhor". Ao mesmo tempo, elas tentam evocar expressões de contratransferências negativas, esperando, desta forma, bloquear tanto a percepção do seu analista em relação a sua bondade quanto sua própria percepção da bondade do analista. Neste contexto, a bondade não é um estandarte erguido pelo analista, nem é simplesmente um termo carregado de superego. Antes, a palavra captura um Revista Latino-Americana de Psicanálise- FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 "35 Roy Schafer dos primeiros pontos de referência do analisado no que se refere à construção da experiência subjetiva e ao planejamento da ação no mundo. Por exemplo, sabe-se muito bem que a bondade e suas variantes são retratadas nas discussões kleinianas sobre a inveja. O discurso kleiniano também retrata a bondade em descrições sobre a difícil transição da posição imatura, narcisista, esquizo-paranóide para a posição depressiva relacionada ao objeto total, relativamente mais madura (Klein, 1940,1946; ver também Steiner, 1993). Dentro da posição depressiva, a bondade é intrínseca a um grande número de experiências e manifestações subjetivas. Estes incluem preocupação, gratidão, generosidade, paciência, assunção de responsabilidade, atuação sobre desejos reparativos, empatia e continência. A dificuldade de fazer esta transição em direção à posição depressiva é entendida como sendo uma função das relações maciças do analisado contra sentir, confiar, e abertamente evitar a bondade pessoal e a bondade dos seus objetos primários, uma vez que eles começam a ser entendidos como figuras completas, separadas. Inconscientemente, essa mudança acarreta perda de vínculo com objetos internos primitivamente concebidos, os quais foram cindidos em "bom" e "mau", renúncia do controle onipotente fantasioso, exposição a uma dolorosa culpa por sua destrutividade real e imaginária com relação as suas figuras completas recentemente estabelecidas, e uma grande quantidade de fardos semelhantes. Nesta base, a bondade torna-se uma questão importante na transferência, especificamente nas várias maneiras nas quais os pacientes bloqueiam qualquer experiência da bondade do seu analista - seu respeito, cuidado, dedicação e assim por diante. Indo mais além, elas minam e atacam a bondade do analista através de negação, cinismo e desconfiança, ou através de idealizações defensivas que obstruem o relacionamento de objetos totais realistas. Tudo isso para evitar, experimentar e expressar sua própria bondade. Desta forma, existem obstáculos que, repetidamente, são colocados no caminho de relações harmoniosas com o analista. As vinhetas clínicas e comentários que seguem irão ilustrar e esclarecer essas operações destrutivas. Exemplos clínicos Srta. B - Essa jovem mulher está contando como ficou impaciente e irritada com sua mãe com relação a esta agir de forma insegura, como no caso de, sem necessidade, pedir orientação e permissão para fazer várias coisas. Então, ela dissipa sua crítica com relação à mãe dizendo que tem se sentido intolerante para com todo mundo. Essa manobra defensiva não funciona, pois ela logo retorna para sua mãe, dizendo irritada: "Ela obriga-me a responder, perguntando se o que ela está fazendo está certo." Quando mostro interesse em ouvir mais sobre a 36 ■ Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 Um obstáculo às relações humanas harmoniosas: defesa contra a bondade sua irritação, ela relata que, com respeito a isso, ela própria é como o seu intolerante pai. Então, ela admite espontaneamente que ela e sua mãe também obtêm prazer nas suas brigas. Neste momento, lembro a ela alguns aspectos relevantes do nosso prolongado trabalho anterior sobre a transferência. Aquele trabalho que nos ajudou a ver como ela havia pego muito do padrão sadomasoquista de interação que ocorre na sua família. Na sua tentativa bem-sucedida de chegar perto do seu pai, ela identificou-se com ele de várias maneiras, inclusive nas suas tendências sadomasoquistas. B começa a chorar e repreende a si mesma por ser "malvada" com sua mãe da mesma maneira que seu pai o é. Ela segue adiante dizendo: "Ele não deixa ninguém se aproximar dele; ou melhor, ele trata os outros como animais de estimação". Então, pesarosamente, ela acrescenta: "Na verdade, dos dois, é da minha mãe que posso aproximar-me". Saliento que ela teria medo da reação do seu pai se mostrasse, abertamente, bons sentimentos em relação a sua mãe; ela usa as brigas como uma forma disfarçada de chegar perto dela e com ela ter prazer. Não era hora de acrescentar que, com toda a certeza, elas brigavam com um excitamento homoerótico inconsciente, parcial. A repetição destes padrões dentro da transferência, e as interpretações deste efeito, já havia sido parte proeminente do contexto geral no qual esta sessão estava ocorrendo. Por exemplo, não muito tempo antes desta sessão, após o meu retorno de uma breve ausência por motivo de doença, havia surgido que ela tinha sufocado um impulso espontâneo de dizer que esperava que eu estivesse me sentido melhor. Ela havia ido adiante até reconhecer que tinha se preocupado comigo. Manifestamente, contudo, ela primeiro tentou manter total silêncio sobre minha doença. Mais tarde ela pode explicar que não queria ter sido "presunçosa" agindo de forma "íntima". Com base na identificação projetiva, ela havia suposto que "suas regras" proíbem e condenam qualquer espontaneidade descontraída que pudesse significar uma intimidade "presunçosa". Observei que ela teve até mesmo que impessoalizar essa projeção dizendo "suas regras" ao invés de usar o "você" mais direto. Embora fosse ela que se sentisse compelida a manter uma distância hostil, culpava a mim por agir desta maneira. Uma análise mais extensa da sua projeção de rigor levou-a a reconhecer o desejo de ser rancorosamente contida. Qualquer informalidade na sua conduta pode fazer com que eu me sinta satisfeito. Uma análise posterior desta defesa rancorosa contra a bondade também revelou sua postura defensiva de impedir qualquer comportamento que pudesse sugerir que estava sendo sexualmente sedutora em relação amim. Ela imaginava que qualquer tipo de sedução apenas estimularia interações traumáticas entre nós, do tipo masoquista, as quais ela costumava submeterse com os homens. Este material clínico liga a luta contra a bondade com os dilemas do triânRevista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 ■ 37 Roy Schafer guio edipiano. Como mencionei, a bondade faz parte de uma mudança relativamente estável para a posição depressiva. Esta posição é caracterizada por um grau razoavelmente alto de diferenciação do self e dos objetos da pessoa, e dos objetos da pessoa entre si, e pelo desenvolvimento de uma capacidade de intimidade individualizada com cada um deles. Por sua vez, esse avanço leva diretamente à triangularidade da situação edipiana madura e aos medos das suas conseqüência bissexuais, hostis e punitivas. Neste contexto, uma ambivalência dolorosamente intensificada é inevitável. Portanto, as provações e adversidades de B. com sua mãe, como foi exemplificado acima, também mostram um aspecto importante da dolorosa ambivalência da menina edipiana com relação a sua mãe e do seu medo associado de tornar-se "muito íntima" de seu pai, mesmo quando tenta tornar-se sua preferida. Era este conjunto de problemas que necessitava das defesas de B. contra a bondade, tanto na sua transferência materna quanto paterna. Sr. D - E um analisado obsessivo que passa muito tempo duvidando dos seus sentimentos conjugais. Ele fica pensando que talvez pudesse ter encontrado alguém melhor, uma mulher ideal. Ele reprova a si mesmo por ser um marido medíocre. Neste ponto de sua análise, porém, ele consegue quase que prontamente, voltar à idéia de quanto prazer ele tem em estar com sua esposa, e faz isso agora. Ele prossegue dizendo: "Ela é boa para mim". Um pouco ambivalente, ele reconhece espontaneamente que dizer isso subentende uma expressão de necessidade em relação a ela, mas ainda mais importante que isso, ele percebe, subentende que tem necessidades próprias. Olhando esta sessão do ponto de vista da defesa contra a bondade, eu enfatizaria o seu ataque aos seus próprios bons sentimentos para com sua esposa, e implicitamente para comigo, através de dúvidas provocantemente sem fim. Com base em trabalho anterior, também é digno de nota o fato de como ele é defensivo com relação a sua culpa por emancipar-se do controle que seus pais têm sobre ele e, na sua percepção, do meu controle sobre ele também. Ele está a beira de reconhecer os problemas criados ou intensificados por ele ter se casado e pelo reconhecimento da bondade de sua esposa. Não muito tempo depois, D começa a sessão reclamando de estar sentido-se mais deprimido. Ele diz que, no caminho para a sua sessão, havia tido uma breve imagem de sua mãe sorrindo docemente; sempre que ela havia feito isso, mostrava algo de menina do qual ele gostava. Logo, menciono que parece-me que, imaginandoa desta maneira, quando ele vinha para a sua sessão comigo, estava desviando um sentimento daquele tipo tanto de mim quanto de sua esposa. Ignorando a ligação comigo, de modo que ele pudesse aumentar seu deslocamento, ele relata que sua esposa costumava reclamar sobre ele estar muito envolvido com o trabalho, de com ele gastar muito tempo. Quando ele se defende 38 ■ Revista Latino-Americana de Psicanálise- FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 Um obstáculo às relações humanas harmoniosas: defesa contra a bondade apontando os exageros dela, ela volta atrás dizendo que ele significa muito para ela para continuar a fazer disso um problema crucial. Surpreendentemente, quando estava contando-me isso, torna-se visivelmente choroso. O choro é extremamente raro em seu caso. Ele reconhece que ficou muito tocado pelo fato de ela dar sinais de que precisa dele, e contrasta tudo isso com o seu sentimento de nunca ter sido necessário. Ele pensa particularmente na inexpressividade do seu pai e no seu próprio medo de ser desapontado; também pensa no fato de sua mãe ter tomado conta dele de um modo distraído e imprevisível, embora superficialmente ela tentasse ser conscienciosa. Gradativamente, relacionamos este conjunto de pensamentos e sentimentos ao seu sério problema em reconhecer que tem necessidades próprias. Ele luta tanto contra essas necessidades porque teme ser desapontado. Neste momento, ele mostra um pálido reconhecimento de que, por si só, um desapontamento não mina a continuidade de um relacionamento interessado ou amor. Continuamos trabalhando neste ponto por algum tempo, durante o qual enfatizo a dupla natureza da idéia implícita no modo como estava tocado pelo fato de sua esposa ter expressado que necessita dele: tem também o lado de reconhecer a sua necessidade de ser necessário. Sua disposição melhora visivelmente com o desenrolar da sessão. A esta altura do nosso trabalho, acredito que a bondade do objeto está começando a aparecer abertamente, assim como estão seus próprios bons sentimentos, ao mostrar sinais de prazer e de profunda receptividade; havia apenas a distância intelectualizada, oprimida pela dúvida. Mas neste ponto, perdi de vista os bons sentimentos implícitos de transferência, e realmente, mais problemas aparecem em breve. Chego quinze minutos atrasado para a próxima sessão; sua consulta é a primeira do meu dia, e eu estava inevitavelmente atrasado. Encontro-o sentado na sala de espera. D explica que encontrou a porta do conjunto aberta e simplesmente entrou. Observo para mim mesmo que essa foi uma liberdade que ele não costuma tomar, que sugere um intensificado sentimento de liberdade. Ele não diz nada sobre o meu atraso diretamente. Ao invés disso, começa a falar novamente sobre suas dificuldades com a esposa; que ela tem se sentido muito sobrecarregada no trabalho ultimamente e que, em uma expressão de consideração, ele havia se oferecido para passar todo o fim-desemana em casa com ela, ao invés de passar algum tempo no seu escritório trabalhando, como era seu costume. Então ele relata que, no exato momento que fez sua oferta a ela, começou a pensar de forma arrependida sobre o que estaria perdendo no trabalho. Reprova a si mesmo por esta mudança de atitude, achando que isto mostra como ele é completamente insensível na sua relação matrimonial. Mais uma vez, tem o sentimento de ser um marido medíocre. Logo começa a sentir-se bloqueado, e só então menciona o fato de eu ter me atrasado. Pergunta a si mesmo se tem algo Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 "39 Roy Schafer em sua mente com relação a isso. Sua capacidade de levantar questões deste tipo sozinho se desenvolveu apenas após anos de incompreensão baseada nas defesas de isolamento de afeto e na negação de necessidades de dependência. Comento que também estava me questionando sobre isso. Então, D reconhece algumas coisas nas quais ele havia pensado enquanto estava esperando: havia algo de errado comigo? Ele havia se enganado com relação ao horário? Logo ele confessa que estava hesitando em mencionar que, por um breve segundo, havia se preocupado comigo. Em um tom de desconsideração, ele rapidamente acrescenta que, provavelmente, isto estava relacionado ao seu medo de ser dependente de alguém. Comento sobre o fato de ele ter achado difícil contar-me sobre aquela preocupação. Em resposta, desenvolve a idéia de que isso significaria mais envolvimento comigo como pessoa. Isto iria sugerir que ele estava gostando do nosso relacionamento, que estava "personalizando-o" e não limitando-o apenas ao nosso trabalho direcionado para as metas do tratamento. Como disse-me repetidas vezes, qualquer sentimento deste tipo iria deixá-lo extremamente inquieto. Reconheço que se sentiria incomodado por sentir consideração por mim em caráter pessoal, uma vez que isso pareceria nos envolver em um contato muito direto e bom. Ele rapidamente tenta escapar deste tema intelectualizando a natureza narcisista, tanto da sua necessidade de ser dependente como da sua defesa contra ela; ele também denegri os seus sentimentos de consideração, enfatizando que levou metade da consulta para até mesmo mencionar o meu atraso. Provavelmente, teria sido melhor apontar a ansiedade que mostrou por tentar outra vez escapar dos temas de proximidade em relação a mim e de consideração por mim. Neste ponto, porém, rendo-me a um desejo de contratransferência um tanto maníaco de renovar sua confiança, reconhecendo a sua abertura: digo que ele permitiu a si mesmo, sozinho, dar um jeito de mencionar sua preocupação e começar o assunto, e que, para mim, o fato de ter feito isso sugere que, com toda a sua ambivalência, ele não está totalmente isolado em relação a isso. Minha renovação de confiança irrefletida pode bem explicar porque, momentos após, ele muda do enfoque ele e eu para ele e sua mãe. Ele observa como tem voltado a trabalhar sua percepção da sua mãe, vendo-a agora como alguém que pensava nele em termos de cuidá-lo a fim de fazer a coisa certa, mas que, então, rapidamente voltava a sua atenção para coisas que interessavam mais a ela. Nesta mudança havia uma referência indireta ao meu deslize na contratransferência, bem como ao meu atraso. Contudo, ele está profundamente tocado enquanto fala sobre sua mãe, embora esta não seja a primeira vez que explicitamente faz esse comentário sobre ela. Expressa um sentimento intenso de privação em relação a ela. Observo para mi mesmo que esta é a primeira vez que demonstrou todo esse sentimento 40 ■ Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 Um obstáculo às relações humanas harmoniosas: defesa contra a bondade em todos os anos de sua análise. Durante essa parte da sessão, enxuga os olhos com freqüência e, ao final, enfatiza que uma criança aprende a ser a partir do modo como seus pais são, ao que acrescento - não incorretamente, penso eu, mas ainda com ênfase indevida - que deve ter sido intolerável viver constantemente com os sentimentos de privação e raiva exatamente das pessoas das quais tinha que depender, sendo os seus pais os seus únicos recursos no momento; ele teria que ter desenvolvido algumas defesas fortes para poder fazer com que a vida fosse suportável. Na tentativa de recuperar, acrescentei, então, uma referência tardia sobre ele e eu; digo que temos trabalhado sobre estes mesmos problemas no nosso relacionamento. Nestas sessões, junto com a evidência de que ele abaixou suas defesas maciças contra sentir-se triste, necessitado e brabo, e contra enxergar a bondade do objeto, existem evidências de que está começando a abaixar suas defesas, igualmente maciças, contra sua própria bondade. Ele também mostrou um pouco do que temia que pudesse acontecer com esse abaixar de defesa: intimidade intolerável, tristeza, sentimentos de privação, e fúria. Com base neste temor, e também porque, encontrando-se em fase de transição, estava em fluxo constante e eu estava perdendo algumas deixas na transferência; foi apenas uma semana mais tarde que descobri que ele havia reprimido completamente o clímax emocional desta série de sessões: ele nem mesmo lembrava de termos tido estas discussões. De minha parte, decidi que sua repressão havia sido facilitada pelo fato de eu não ter efetivamente compreendido a relação deste material com o seu sentimento de que eu, como sua mãe, estava sendo atencioso com ele de uma forma superficial e na qual não se pode confiar e que, por atrasar-me, havia deixado que ele esperasse, se preocupasse e duvidasse de si mesmo. Sua raiva em relação a mim, e seu medo de demonstrá-la, deve ter intensificado seu sentimento de estar sob grande pressão. Acredito que tenha ficado tão absorvido pela reconstrução e pela renovação da sua confiança que, momentaneamente, ignorei a maior parte da transferência. O meu esquecimento, além do meu atraso, seria equivalente a esquecer-me dele pela segunda vez. Finalmente, ele atuou sua raiva esquecendo de tudo. Este tipo de apagamento é freqüentemente evidente quando a contratransferência leva à negligência da ansiedade e da defesa na transferência. Falsa bondade Uma forma especial de defesa contra a bondade é a adoção de uma falsa bondade. Refiro-me a quando o analista sente o paciente como se este estivesse fazendo shows transferenciais de bondade, os quais dão a impressão de serem Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 "41 Roy Schafer pesados, intrusos e não convincentes. Estas demonstrações são produtos narcisistas, invejosos e onipotentes da posição esquizo-paranóide, ao invés de o serem daquela benevolência relativamente menos conflitante da posição depressiva. Além disso, a natureza invasiva e controladora da falsa bondade fica evidente na hipervigilância do analisado em relação aos sinais de desconforto ou aflição do analista, tais como uma tosse ocasional, um espirro, um bocejo ou um suspiro, inquietação motora ou traços de transtorno no consultório. Inconscientemente, é temido o fato de que abordagens onipotentes, invejosas, controladoras estejam superestressando, esgotando, castrando e, em última análise, destruindo o analista. Conscientemente, estes pacientes apresentam-se como preocupados com o fato de que não deveriam estar se alongando nas suas próprias considerações, porque agora tudo "não está bem" com os seus analistas. Neste contexto, contudo, não é a culpa ou o senso de responsabilidade da posição depressiva que estão sendo expressados; é o medo de que a investida implicitamente agressiva leve ao dano, à retaliação, ao abandono. O analisado não mostra nenhum desejo de entender o objeto de uma maneira redonda e não demonstra nenhum dos sentimentos que tipicamente envolvem uma consideração madura em relação aos outros. O fato de que os analisados falsamente bons são defensivamente ávidos por executarem uma missão particular, de certa forma hostil, torna-se evidente quando eles começam a ser reprovadores, inquietos e autocríticos se seus "oferecimentos" não são recebidos com gratidão. Para eles, a função defensiva da falsidade está provando ser ineficaz. Defensivamente, a falsa bondade envolve identificação projetiva de necessidade, fraqueza, sentimentos crônicos de receber cuidados insuficientes, e raiva. O paciente usa essa identificação projetiva para manter a fantasia da onipotência; a projeção garante que é sempre o outro que necessita de ajuda e é desenvolvida enquanto o self possui a atitude e os recursos mágicos, infalíveis para remediar todas as doenças, danos e incapacidades. Os medos de retaliação também envolvem projeção; neste caso, eles são baseados em projeções do ressentimento e da inveja do paciente em relação ao bem-estar e estabilidade do analista. Consequentemente, o paciente sente que o objeto deve ser cuidadosamente controlado de modo que esta complexa dramatização possa avançar com a menor aflição subjetiva possível. Nem sempre é fácil diferenciar a bondade genuína da falsa. Freqüentemente, observa-se uma mistura das duas naqueles pacientes que rapidamente trocam os níveis de função; isto é encontrado, particularmente, quando os pacientes estão em uma fase transicional de suas análises. O próximo exemplo clínico traz alguns deste problemas. Sra. E - É uma profissional jovem com filhos. A sessão ocorre durante a 42 ■ Revista Latino-Americana de Psicanálise- FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 Um obstáculo às relações humanas harmoniosas: defesa contra a bondade semana anterior ao meu começo de férias. Imediatamente, ela avisa que faltara à última consulta da semana. Diz que está se sentindo culpada com relação a minha saúde, pensando que não estou bem porque, para ela, pareço um tanto confuso. Então, ela critica a si mesma por colocar-me na posição de um empregado, alguém usado, sem consideração, por todos os meus pacientes. Ela faz a comparação de ser um bebê que usa a mãe sempre que precisa dela. Continua criticando a si própria por outras formas de desatenção e auto-indulgência. Comento que sente-se mal em relação a deixar-me sozinho, negligenciando-me, aumentando a ausência das férias. Ela acha que é assim mesmo e então diz que talvez eu pudesse morrer neste intervalo. Fica apavorada com isso porque se dá conta que estaria pensando, em primeiro lugar, no fato de isso ser uma perda para ela. Neste momento, reconheço que está justamente questionando minha suposição de que está sentindo-se culpada em relação a mim; é mais provável que a verdade seja que está apenas buscando, defensivamente, as minhas boas graças, sendo, dessa forma, mais narcisistamente orientada do que eu imaginava. Ela prossegue criticando a si mesma por não me dar atenção suficiente: "Você deve ficar cheio disso, todos os seus pacientes lhe usando". Então, começa a pensar como eles usam-me projetando em mim todo o tipo de coisas; contudo, comete um lapso dizendo "produção" quando queria dizer "projeção". Suas associações com a palavra "produção" passam para criação e, então, para dar a luz a uma criança ou criar um trabalho de arte como uma pintura, mais especificamente, ter um filho. "Um bebê é algo que origina-se do seu corpo. Se eu produzo você, você vem de mim, e eu sou responsável pela sua existência ou pela falta dela se eu não for atenciosa o bastante". Como se estivesse retrocedendo na idéia de assassinar-me por negligência, de repente começa a sentir-se sonolenta e cansada, e desejosa que eu a fosse cobrir. Finalmente, consegue dar um jeito de dizer como está saturada de tomar conta das pessoas. Quando comento sobre o fato de ela ter problemas em aceitar o seu próprio desejo de ser cuidada, ela concorda, acrescentando que este desejo é completamente "desprezível". Nos meus próprios pensamentos, percebo-a indicando novamente que rivalidades onipotentes e auto-estima abalada são mais importantes agora do que sentimentos de responsabilidade. Ser nobre é sua grande aspiração narcisista. Encerro esta seqüência toda como tendo sido precipitada pelas minhas férias iminentes. A Sra. E luta para estar no papel de quem cuida, mesmo quando faz retaliação tirando o seu próprio dia de folga antes da minha partida. Assim, a atitude de interesse não pode ser sustentada, exatamente como ela mostra no seu lapso produzir ao invés de projetar - e nas mudanças sentindo-se forte e fraca durante a análise deste lapso. No final, ela falhou em ser "nobre". Este exemplo pode ser considerado, primeiramente, como uma manifestação de falsa bondade. O show da Sra. E de preocupação com o meu bem-estar Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000 ■ 43 Roy Schafer parece estar funcionando, em grande parte, como uma expressão das suas fantasias onipotentes (criando-me) e uma defesa contra seus próprios sentimentos homicidas e seus sentimentos em relação a ter necessidades. Os sentimentos de ter necessidades parecem incorporados à fantasia não muito afastada a respeito dela como um bebê, meu bebê. Assim, não é uma bondade madura; ao contrário, é principalmente um show de bondade que ela faz para defender-se de partes dela mesma, as quais não consegue aceitar e integrar, e que teme que eu também não possa. Caracteristicamente, a Sra. £ tenta erguer a principal defesa de preocupar-se com os outros como um muro contra sentir-se necessitada. Quando sua defesa cede, ela é compelida a se desligar e a reclamar por ser sobrecarregada pelos outros, apesar de saber, racionalmente, que é ela quem impõe os fardos a si mesma. Tradução de Gisele Braga © Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL 44 ■ Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 4, n. 1, setembro 2000