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ACERCA DO TURISMO ÉTNICO INDÍGENA E O USO DA
HISTÓRIA
Autora: Me. Flávia Lac – Pesquisadora Autônoma
Tendo em vista as dificuldades pertinentes ao turismo étnico indígena, pretendemos
apresentar algumas questões presentes no pensamento pré-concebido de muitos não índios.
Estudamos como os estereótipos presentes no senso comum podem interferir na visão do
turista, bem como na do turismólogo. Defendemos que estas distorções ocorrem pela falta
de conhecimento histórico seja por falta de espaços públicos onde estas comunidades
tenham direito a voz ativa, o que torna o espaço turístico uma arena privilegiada. O
objetivo deste trabalho é mostrar como a história, na sua acepção ocidental, pode servir na
concepção de um produto de turismo étnico e no seu usufruto pelos turistas. Baseando-se
no trabalho de campo e pesquisa teórica para a dissertação de Mestrado em Antropologia
sobre o “Turismo na Terra Indígena de Iraí” junto a outras experiências de turismo étnico
indígena, entendemos que estas distorções têm um profundo impacto no resultado final
para o turista. Desta forma, defendemos que a contextualização histórica pode minimizar
estes problemas, o que, defendemos ser importante neste tipo de produto. Utilizamos a
bibliografia para explicar a história neste contexto tanto como recurso patrimonial, como
para compor uma autenticidade a ser experimentada de forma mais plena. Encontramos
que a questão da autenticidade se relaciona de forma especial com a história recente de
povos indígenas. Embora esta possa ser uma questão controversa, apresenta-se aqui uma
linha de pensamento para o planejamento de produtos turísticos étnicos indígenas, que
acompanha as tendências do turismo pós-moderno no sentido que promove o
conhecimento da formação do produto pelo turista.
PALAVRAS CHAVE:
Turismo étnico indígena, história indígena, patrimônio, autenticidade
ABOUT INDIGENOUS ETHNIC TOURISM AND THE USE OF HISTORY
Seeing the difficulties concerned to the indigenous ethnic tourism, some questions will be
exposed that are still into the pre concept thought of many non Indians. Studying how the
stereotypes presented in the common sense can interfere as much as in the view of the
tourist as in the tourism planner, in fact in anyone that has little knowledge in this subject.
We understand that these misunderstanding concepts happen by the lack of historical
knowledge that can be happening by the omission of the state government or because there
are a few public spaces where these communities can speak for themselves. Then the
touristic arena can became just the perfect spot for it. The goal of this paper is to show how
history, as the occidental view of it, can be useful in the construction of a ethnic tourism
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
em Turismo Rural pela Leader Ulixes (2001). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná
(2005). Possui experiência nas áreas de turismo e antropologia. Tem atuado no meio acadêmico nos seguintes temas:
etnia kaingang, turismo rural, turismo étnico, fronteira cultural e invisibilidade. [email protected]
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product and its use. Based in the field work and theoric research of the work of a
Anthropology Master titled “Tourism in Iraí Indigenous Land” and with some experiences
of ethnic tourism as a consumer, we understood that these dissonant concepts have a deep
impact in the final result for the tourist. Going from the point that minimizing the lack of
historical knowledge can minimize these problems with we stand its important for these
kind of products. We used the bibliography in order to explain the place of history in this
kind of context as a heritage resource as a base to compose an authenticity to be
experienced in a fulfillment way. Even this might be controversial, what we show here is a
thought to plan ethnic touristic products that is with the tendencies of post modern tourism
in the sense that promotes total knowledge of the product for the turist.
KEY WORDS
Indigenous ethic tourism, Indian history, heritage, authenticity
INTRODUÇÃO
O crescimento do turismo cultural tem sido apresentado há algum tempo como
realidade e tendência (Santana Talavera, 2003 e 1998; Craik, 1997; Graburn, 1995). O que
Valene Smith (apud Santana Talavera, 2003) tratava como um tipo de turismo, hoje
influencia o turismo de forma geral. Muitos dos turistas que procuram atividades culturais
as buscam por diferentes níveis de interesse. Segundo Silberberg (apud Craik, 1997)
alguns acabam em atividades culturais por interesses adjuntos e outros, acidentalmente.
Um exemplo disso foi encontrado no estudo do turismo na Terra Indígena de Iraí,
situada ao norte do Estado do Rio Grande do Sul (Lac, 2005) vários tipos de turismo se
inter-relacionavam em grande parte de seus visitantes. Por exemplo: o turista de saúde,
relacionado às águas termais, acabava também, desenvolvendo interesse pelo contato
índios que vendiam seu artesanato nos arredores, ou mesmo entrando em contato com o
material de divulgação da prefeitura e, visitando a Terra Indígena assim conhecendo um
pouco da cultura Kaingang.
Tendo como base o estudo acima citado e um contato menor com outras
experiências teóricas e práticas de turismo indígena queremos neste artigo discutir o papel
da história no desenvolvimento de produtos de turismo indígena. Para este fim,
exemplificaremos um pouco da história que afetou alguns povos indígenas e, estudaremos
alguns conceitos presentes no senso comum para esclarecer certos tópicos específicos deste
tema. Dessa forma, dialogar sobre o papel da história recente na construção do patrimônio
e a autenticidade de produtos do turismo indígena.
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
em Turismo Rural pela Leader Ulixes (2001). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná
(2005). Possui experiência nas áreas de turismo e antropologia. Tem atuado no meio acadêmico nos seguintes temas:
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ACERCA DO TURISMO ÉTNICO INDÍGENA
Relembrando a tipologia de Valene Smith, revisada por Santana Talavera (2003)
seriam quatro os tipos de turismo: recreativo, ambiental, cultural e étnico. O turismo
cultural é enquadrado como um turismo quase histórico, enquanto o turismo étnico seria
cercado de atividades típicas e exóticas, onde a autenticidade e ancestralidade operariam
um papel de destaque. O que Santana Talavera (2003) defende é que o turismo étnico tem
um toque a mais de pitoresco, com certa excentricidade. Há fatores importantes, como se
pretende defender aqui, que podem também classificar o turismo étnico sendo um turismo
cultural se além do exótico, contextualizado historicamente.
De outro modo, como defende Grünewald (2003) todo turismo é cultural desde que
sempre existem duas culturas em jogo. O que se defendia anteriormente como “cultural”
parece ter bastante a ver com a alta cultura (obras de arte, museus, etc). Hoje se inclui
também a cultura popular. Mas para os antropólogos cultura é diferente destas
repercussões externas, cultura são as regras pelas quais de um determinado povo vive,
pensa, classifica e modifica o mundo. Assim, cultura é o que motiva o comportamento, não
é consciente, portanto, não é passível de perda.
Além do conceito de cultura, uma das molas propulsoras do turismo cultural é o
que encontramos na literatura norte-americana é o conceito de “Nostalgia”, alvo de
diversas interpretações. De acordo com Graburn (1995) nostalgia é uma saudade por coisas
do passado, sendo a confecção de patrimônio uma de suas respostas. Nostalgia seria um
sentimento de deslocamento temporal, a perda de algo passado. Este conceito pode se
referir a objetos diversos, inclusive contemporâneos. Este conceito é um dos fatores que
leva pessoas a se interessar, por exemplo, por visitar comunidades indígenas. O conceito de
nostalgia remete ao romantismo exacerbado (Oliveira, 1999), forma que muitos viam e
vêem as sociedades indígenas.
É importante lembrar que os espaços em que aprendemos sobre os índios são
deficitários como, por exemplo, em escolas e museus. Não se torna de toda forma
espantoso que nossos elos conceituais com estas populações possam ser débeis ou mesmo
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
em Turismo Rural pela Leader Ulixes (2001). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná
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distorcidos. São poucos os pesquisadores da etnologia indígena (que é um ramo da
antropologia voltado ao estudo das culturas indígenas) que divulgam amplamente seus
trabalhos de forma a atingir a população em geral, não pela falta de esforço de muitos, mas
pela falta de condições em função da ausência de interesse econômico. Também são
poucos os espaços em que estas populações podem expor seu ponto de vista. Neste sentido,
o turismo se torna uma arena fértil onde de um lado temos turistas que querem
experimentar o diferente e de outro, temos os índios criando espaços políticos.
Quando falamos de índios devemos ter em mente que este é um termo genérico
que, segundo a Fundação Nacional de Assistência ao Índio (Funai, 2009), envolve pelo
menos 225 sociedades distintas. São pelo menos 180 línguas diferentes, de três troncos
lingüísticos e outras famílias. Seu contingente populacional geral se refere hoje, segundo a
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a mais de 500 mil indivíduos, população que está
em constante crescimento.
Estas culturas constituem uma grande fonte de recursos para o turismo. Não apenas
na sua visitação nos seus locais de moradia, mas também na confecção de espaços que
possam divulgá-las como museus e espaços culturais. É uma riqueza que tem sido muito
pouco explorada, mais pelas dificuldades que o turismólogo se coloca em função da
FUNAI (órgão competente), que pela própria vontade indígena. Não estamos falando aqui
de desbravar caminhos a populações ainda não contactadas (que representam uma minoria
dos povos indígenas) mas abrir espaços e dar voz àqueles índios que por vezes até não são
entendidos como legítimos pelos seus vizinhos.
A HISTÓRIA E O TURISMO ÉTNICO INDÍGENA
Embora o contato interétnico seja parte da rotina de muitos povos indígenas, muito
pouco é realmente esclarecido a população em geral a este respeito. Segundo Oliveira
(1999) o entrelaçamento dos povos indígenas com a sociedade nacional resolve este lapso
histórico desde a ocupação das Américas por outros povos e a formação da unidade
nacional os dias atuais com uma fábula de um crescente embranquecimento. De acordo
com esta ideologia, os povos indígenas têm um papel de destaque apenas na formação do
Estado ou em um remoto passado. Os acontecimentos desde então são geralmente citados
de forma genérica ou mesmo partidária.
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
em Turismo Rural pela Leader Ulixes (2001). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná
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Na verdade, a história, do ponto de vista indígena ou mesmo daqueles que tiveram
experiências próximas a eles, é dificilmente conhecida pelas pessoas que não têm um
particular interesse no assunto. É claro que a história oficial relata o ponto de vista
daqueles que a contam, e até mesmo por isso muitos fatos da história do contato interétnico
sejam dificilmente discutidos. Existem, na história deste contato, acontecimentos
documentados que revelam muitas explicações ou contextualizações para a realidade que
encontramos atualmente.
É impressionante como a história do contato é pouco divulgada. De certa forma o
Turismo pode ser um dos poucos espaços em que isto possa ser alvo de diálogo,
excetuando o campo da etnologia indígena. Muitas vezes é citado, como presenciei em Iraí,
os quinhentos anos de exploração, entretanto sem detalhar esta parte da história. Embora a
história mude de povo para povo coloco abaixo algumas considerações que podem ser
comuns a muitos povos indígenas.
Desde as primeiras ocupações são inúmeros relatos de guerras e constantes assaltos
entre territórios. Se por um lado os não índios ocupavam territórios indígenas, estes os
atacavam e consideravam seus espólios como parte de seu patrimônio. Estradas, e todo o
tipo de ocupação dificilmente aconteciam sem guerras. Existem, portanto muitas notícias
deste tipo em jornais do século XXII. Intervenções religiosas, algumas muito conhecidas e
outras nem tanto, e mesmo alguns decretos que consideravam índios não-humanos de
forma a justificar suas mortes ou escravismo. Foram diversas as tentativas de retirar as
populações dos territórios que interessavam à colonização. Do uso de “bugreiros” (tanto
índios como não índios) até a demarcação de territórios que foram sistematicamente
reduzidos levando-se em conta a ignorância indígena sobre medidas e documentação.
Estes conflitos acabaram culminando na criação do Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) em 1911 pelo Marechal Rondon. Embora este projeto tenha afetado muitas etnias ele
é muito pouco conhecido por pessoas que não pesquisam o assunto. Pouco antes, para os
Kaingang, por exemplo, existem documentados inúmeros casos de grandes líderes e seus
bandos, verdadeiras sagas de sua história.
O SPI, desde sua formação, baseava-se no pensamento do Marechal Rondon que os
índios seriam mais primitivos que os povos europeus, mas seriam atualizados se expostos
aos mesmos recursos e produtos. Na época este pensamento representava um avanço, onde
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o indígena passa a ser considerado ser humano. Esta idéia de primitivismo, de que estes
povos se assemelhariam a um passado remoto da humanidade de certa forma ainda
perpassa o senso comum moderno. Neste caso estes povos deixam de ser co-agentes da
atualidade para serem arquétipos, fósseis do nosso passado.
Os contatos eram feitos justamente através da oferta de produtos com o fim de se
estabelecer um clima pacífico e então passava a se ofertar aos índios uma sistemática carga
destes bens e territórios mediante colaboração. Com o SPI e sua política de estipular
contato, por um lado algumas guerras deixaram de acontecer, mas muitas necessidades
foram criadas de produtos manufaturados e se intensificam os saques ambientais aos
territórios antes reservados às populações aborígenes.
Após intensiva colonização, tornou-se inviável o sustento de tantas promessas e, o
SPI adotou uma linha mais desenvolvimentista. A escravidão passou a se tornar realidade a
todos aqueles povos antes convidados ao contato. As lavouras coletivas ou comunitárias
passam a ser exploradas com a mão-de-obra indígena para comércio externo em benefício
dos chefes de posto indígenas. Chefes de posto, antes responsáveis em cuidar para que as
demandas das comunidades fossem sanadas, chegaram a tornar de alguns índios, seus
escravos pessoais.
Nesta época, havia estruturas hierárquicas do exército ao que eram sujeitados
povos, cujas nomenclaturas subsistem em algumas comunidades até os dias de hoje. Este
tempo é tradicionalmente lembrado pelos Kaingang como o período do “panelão”, devido
às refeições feitas em forma de ração nas panelas do exército e distribuída entre os
indígenas que não veriam outro resultado do seu trabalho. Além disso, o alcoolismo passa
a ser incentivado com a distribuição de bebidas de forma abundante com a finalidade de
evitar revolta.
Em 1968, o SPI se transforma em Funai, mas muito das mudanças ocorridas em
territórios e comportamento já havia se tornado irreversíveis. A partir de então, os
indígenas têm cada vez lutado mais por seus direitos, como o direito a terra e a educação
diferenciada. Um processo sem dúvida bastante lento e árduo para os índios. A dívida
histórica é hoje uma das bases do processo de demarcação pela Fundação Nacional de
Assistência ao Índio (Funai).
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Este é apenas um breve histórico, resultado da pesquisa relativa aos Kaingang (Lac,
2005). Muitos destes acontecimentos afetaram a outros povos indígenas. Não temos a
pretensão de fazer aqui um estudo minucioso que possa englobar a história de todos os
povos indígenas brasileiros, mas antes exemplificar a complexidade do conteúdo de
algumas relações interétnicas. É claro que existem povos com histórias completamente
diferentes, mas o ponto principal deste exemplo foi mostrar que antes de tentar
compreende-los é necessário considerar sua história. Em se tratando de um país que tem
sido colonizado há pelo menos 500 anos, muitos povos possuem sim uma história de
contato interétnico.
Atualmente são aproximadamente 500 terras indígenas espalhadas pelo país que
refletem 12,41% do território nacional. Embora a maior parte deste território se situe na
Amazônia, esta não é a realidade de muitos povos que são praticamente desconsiderados
ou subestimados pela opinião geral ou senso comum. Hoje também existem muitos índios
que habitam nas cidades, mantendo suas línguas, relações com os parentes e
especificidades culturais.
Sendo utilizados para se referir a eles: “aborígine” qualificando primitivo,
“silvícola” referindo à floresta e “bugre” ao mundo animal. A cultura indígena é assim
destacada por sua extrema simplicidade (próxima à natureza e pouco civilizada) ou por seu
exotismo (crítica aos costumes tidos como extravagantes).
A ignorância histórica demonstra que existem problemas inerentes ao turismo
quando se tratam de povos indígenas. Embora Grünewald (2001; 2003) demonstre que o
tema do desenvolvimento de “etnicidades voltadas para o turismo” seja um fator presente
no turismo étnico indígena e, este fato decepciona o turista na busca desse estereótipo da
“comunidade intacta”, vemos que existem fatores anteriores ao turismo que incidem de
forma decisiva na experiência final.
Atualmente o alvo do turismo étnico parece ser basicamente o indígena e sua
capacidade de ser exótico. Neste aspecto parece que alguns antropólogos estariam corretos
em sua visão do turismo indígena como uma forma de zoológico. E que defendemos é que
esta não é a única forma de fazer turismo étnico indígena. Esta é uma forma de fazer esta
atividade, provavelmente a menos sustentável.
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
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Notamos que, a própria busca pelo nativo muitas vezes exerce uma influência que
determina a própria impossibilidade daquilo que se está buscando. Embora os turistas não
queiram ver tourees (Van den Bergue; Keyes 1984. Atores que modificam seu
comportamento de acordo com sua percepção do que é atrativo para o turista) talvez os
turistas estejam preparados para entrar em contato com a realidade destas comunidades. A
contextualização histórica destas comunidades, que vise mostrá-las como culturas
contemporâneas, quiçá possa permitir que, ao invés cobrarmos dos indígenas, possamos
melhor compreende-los.
Apesar das dificuldades, muitos indígenas têm se mostrado dispostos a participar
no turismo. No sul do Brasil, em um breve levantamento que fizemos (Lac, 2005), pelo
menos seis terras indígenas já trabalhavam com a atividade turística. Sim, alguns costumes
diferentes, língua, música, danças, gastronomia fazem e constituem parte do produto étnico
indígena. Não defendemos que estas “atrações” sejam retiradas do produto, porém há algo
mais que dificilmente os turistas têm condições de captar, um olhar culturalmente
diferenciado para o mundo. Para este fim, não se trata de quanto mais diferente melhor. Por
vezes coisas cotidianamente parecidas ou mesmo iguais, podem ter significados e valores
muito distintos dependendo desta ou daquela cultura. Mas para compreender as
semelhanças e diferenças, a história do contato é crucial.
O problema de isolar a história e fazer destes produtos turísticos algo atemporal, é
que o produto se torna frágil no confronto das expectativas com a realidade. Quando um
povo indígena chega a fazer parte do turismo ou oferecer algum produto turístico,
geralmente o faz em conseqüência do contato e das demandas provenientes deste contato.
Demandas que podem ser ambientais ou mesmo de consumo. A questão é que este contato
é histórico e, sem esta história, os povos se tornam alvos destes estereótipos, como
podemos perceber em Iraí (Lac, 2005).
Se, por um lado, os vizinhos rurais das terras indígenas vejam os índios como algo
passado, o que serve para justificar terras serem deixadas fora do seu poder de cultivo, os
citadinos idealizam os índios. Sem o amparo histórico restam para construir “o olhar do
turista” (Urry, 1996) os romances que refletem o “bom selvagem” e a esperança de
encontrar nas sociedades indígenas, maior coesão e menos conflitos. Este olhar
romantizado também é encontrado do citadino com relação ao rural, mas o para o morador
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
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rural muitas vezes se torna mais vantajoso explorar o bucolismo que contextualizar sua
cultura. Trata-se de um turismo diferente, onde a questão étnica aparece mais como uma
vantagem a mais que a pauta política.
Quando estes estereótipos colidem com a realidade de sociedades contemporâneas,
outro e não menos importante conceito que vigora entre os não índios sobre os Povos
Indígenas é o de “aculturação”. Este é um conceito que foi criado por Darcy Ribeiro no seu
livro “O Povo Brasileiro”. O que era o pensamento antropológico daquela época consistia
em um fatalismo de que os povos indígenas estariam fadados a se miscigenar
gradativamente à sociedade nacional. Ribeiro inclusive fez uma previsão de quando isto
ocorreria e um levantamento de culturas que estariam se perdendo. O que tem sido
percebido atualmente na antropologia é um quadro completamente contrário, onde povos
antes dado como extintos reaparecem requerendo sua identidade indígena.
Atualmente se entende que o conceito de “aculturação” remete à situação histórica
de uma época, muitos indígenas se viram obrigados a camuflar sua cultura de forma a não
serem perseguidos. Embora cada vez mais comunidades se declarem indígenas e
comprovem tanto sua ancestralidade como suas especificidades étnicas, o que devido à
história seja até mesmo heróico, o senso comum desacredita os índios contemporâneos.
O que está sendo reforçado do ponto de vista da “aculturação” é que as culturas
seriam estanques e as mudanças nestas culturas, afastariam de sua originalidade. A partir
deste ponto, se requer das culturas indígenas um conceito de pureza que não é
inversamente proporcional às outras culturas com as quais entram em contato. Embora
muitos costumes tenham sido aprendidos pelos não índios com os índios, como o simples
ato de fumar, outras culturas não são vistas mais ou menos puras em relação a isso. Ser
indígena é colocado, como uma questão de grau, do que parece estar mais próximo ou mais
distante do conceito primitivo ou pré-contato (Oliveira, 2006).
Atualmente se considera que as culturas são dinâmicas, vigora o conceito de autoafirmação, onde é considerado índio “aquele que se considera e assim é considerado por
aqueles da sua etnia”. Ser índio atualmente pode parecer vantajoso pelos moradores rurais,
devido o direito a terra, mas com certeza é desafiador. Mas pode ser extenuante ser
constantemente questionado quanto a sua ancestralidade, cultura e história, mesmo quando
seus direitos são legitimamente adquiridos.
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A realidade de muitas Terras Indígenas é o conflito, algumas chegam a ser
demarcadas em territórios ocupados atualmente por não índios que deixam com suas
benfeitorias. As sociedades indígenas contemporâneas estão envoltas em um jogo de
dependências e reciprocidades atravessadas por fluxos culturais e problemas de definição
identitária (Oliveira 2006).
Não se trata unicamente de enfocar as sociedades indígenas como coletividades
inseridas em uma escala regional mais ampla senão de explorar o direito de uma
definição de um território com uma chave analítica privilegiada para a
compreensão dos modos de sociabilidade que apresentam. A abordagem em
termos de um processo de territorialização permite descrever e interrelacionar as
reordenações nos múltiplos níveis (Oliveira, p.132, 2006, tradução livre).
De certa forma, o turista busca o impossível na sua concepção teórica, já que o
selvagem e intacto não será nem tão selvagem nem tão intacto e pronto para uma visita
turística. Este fato antes visto como algo relativo ao condicionamento exercido na arena
turística, aqui colocamos como algo intrínseco e anterior e que apesar de ser inevitável,
pode ser trabalhado com a contextualização histórica. Desta forma, se torna viável explorar
o contexto turístico como parte de uma cultura contemporânea e não mais como um “elo
perdido”. O que estamos propondo aqui é que ao incluir a história no turismo indígena o
eixo principal, o nativo deixe de ser o produto, mas sua história e cultura. O turismo se
torne menos desgastante para o nativo, tornando assim o produto mais real e menos sujeito
a interpretação equivocada, o que de fato acontece.
O turista pós-moderno de acordo com Graburn (1995) sabe que os circuitos
turísticos são repletos de reproduções e autenticidades performatizadas. Mesmo assim
sabem aproveitar esta hiper-realidade, gostam ao entendê-la. Apreciam este palco turístico
e a autenticidade encenada. Embora Craik (1997) tenha apontado que o turista geralmente
viaja cheio de estereótipos na sua bagagem cultural e, muitas vezes, está mais disposto a
confirmar seus pré-conceitos que realmente remodelar sua visão, ela também nota a
tendência onde o conhecimento e a formação pessoal, fazem parte do objetivo do processo
no qual o turista se sujeita. Se pode ainda dizer que a tendência do ecologicamente e
politicamente correto vem se ampliando cada dia mais.
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
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O que notamos é que, recuperar a história, além de mitos e outras questões
culturais, vem de encontro às tendências atuais do turismo. Permite ao turista conhecer
como se deu a elaboração do produto, ao que o turista atual parece já estar preparado. E,
ainda, politicamente reafirmar estas culturas, dando a elas um lugar de onde se fala o que
segundo Grünewald (2003) é um dos objetivos deste tipo de turismo. Contribui também
para a formação social e cultural do visitante, reforçando a forma inserida em um contexto
mais amplo destas culturas.
A história do contato interétnico é parte do patrimônio cultural destas comunidades.
Mas é claro que o patrimônio cultural só se legitima como construção social que deriva de
um discurso prévio inventado, portanto sempre deve estar sujeito ao uso que estas
comunidades querem fazer da sua história. A política cultural com respeito ao patrimônio,
de acordo com Canclini (1999) tem por tarefa mais do que sua fidelidade ao passado, mas
sua capacidade de permanecer culturalmente representativos.
Para algumas comunidades, como os Pataxó estudados por Grünewald (2001), pode
ser que a história seja menos atrativa que a idéia construída de “Índios do Descobrimento”.
Mesmo assim os turistas podem estar sendo subestimados, e a contextualização histórica
pode fazer do seu chamariz algo ao mesmo tempo mais crédulo e mais divertido.
Para outros povos que não possuem alternativas de construção tão infame ou
mesmo as condições para estar mais próximos do idealismo turístico, a história pode ser o
que falta para mostrar suas culturas como o que realmente consideram: autênticas e
diferenciadas. No caso do sul, como temos diversas Terras Indígenas de uma só etnia
participando no turismo, esta pode ser uma alternativa para diferenciar seus produtos.
A história funciona com um dos recursos do patrimônio. Os repertórios
patrimoniais, segundo Pratz (1998), apenas são ativados por versões ideológicas da
identidade. São lógicas ora de complementaridade, ora de oposição. O autor fala do
turismo como um dos interesses comerciais do patrimônio, mas, ressalta o papel político
como destacado. A autenticação do patrimônio se refere, “mais que ao objeto do
patrimônio, seu conteúdo, sua expressão e seu contexto”.
Há de se ter em conta que a participação da população envolvida é fundamental já
que existe o risco, segundo Canclini (1999), de converter estas realidades locais em
símbolos a serviço da identidade cultural hegemônica e assim diluí-las. De acordo com
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
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Ashworth (1996) os recursos históricos passam por um processo de transformação, onde
são interpretados, a fim de constituir o produto patrimônio. O patrimônio existe sempre em
resposta a necessidades específicas e pode ser alvo de controvérsias desde sua criação.
Mesmo no final existem dissonâncias entre o que se quer comunicar e o que é interpretado
pelos atores externos.
A comoditização cultural pode transformar as culturas, o que nem sempre é
negativo. Com a contextualização histórica objetiva-se fazer destas adaptações ao turismo
parte inserida de sua valorização. De acordo com Craik (1997) duas estratégias têm sido
adotadas: moldar a cultura para o turismo e para os turistas ou moldar o turismo e os
turistas para a cultura. No turismo étnico, muitas vezes se adota a primeira alternativa, o
que parece devido ao que foi apresentado um movimento impossível já que as expectativas
dos turistas são extremamente dissonantes da realidade. O que propomos é exatamente o
segundo movimento, que parece dar conteúdo à voz política indígena, ser responsável e
mais sustentável.
Autenticidade parece ser um tópico sempre relevante quando se fala de turismo
cultural ou étnico. A autenticidade para o turista se trata tanto de experimentar um mundo
real como sendo realmente eles mesmos. A autenticidade pode também ser construída
socialmente inclusive em arenas turísticas. Wang (1998) usa a divisão entre autenticidade
objetiva, construída e existencial para a atividade turística. A autenticidade objetiva se é
relativa sua relação com o original ou real. Do ponto de vista construtivista, é o simbólico e
a experiência que valida, neste sentido toda experiência tem algo de autêntico. A
existencial se refere à forma que se incorpora o que se experimenta.
Dessa forma, a autenticidade se baseia mais nas bases das motivações dos turistas
que na experiência real. Mas se a história das relações interétnicas de uma determinada
população pode embasar a autenticidade objetiva, pode também dar uma base maior de
referenciais para a construção e incorporação da experiência. Fornece ao turista mais
informações para compreender o que vê e o prepara para uma experiência realmente única.
De acordo com McCannell (2001) acreditamos que o turismo deve envolver a
celebração de estratégias de sobrevivência e adaptações criativas de povos em um primeiro
momento deslocados do movimento de capital global. Neste sentido, descobrir que o
“outro” pode estar muitas vezes mais próximo do que se imagina. Isto se refere de fato a
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
em Turismo Rural pela Leader Ulixes (2001). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná
(2005). Possui experiência nas áreas de turismo e antropologia. Tem atuado no meio acadêmico nos seguintes temas:
etnia kaingang, turismo rural, turismo étnico, fronteira cultural e invisibilidade. [email protected]
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conhecer o “outro” e não apenas sujeitá-lo a confirmar estereótipos pré-concebidos.
Compreender mais que exotismos, as sutilidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos ter defendido que o turismo étnico indígena pode ser muito mais do
que uma coleção de excentricidades, pode ser parte de um turismo cultural de povos
contemporâneos. Diferentes sim, mas mais que justapostos a outros, interagindo com eles.
Um produto mais complexo, com história e memória.
Uma história que faz parte dos recursos patrimoniais destes povos e deve ser
sujeitada ao uso de acordo com a vontade deles, mas que com certeza fazem do turismo
mais que um campo de espetacularidades. Permitem que o turismo se torne um local de
discussão e um dos poucos lugares onde estes povos podem ter uma voz que divulgue sua
questão política.
A história pode se tornar a cola que junta os pedacinhos das similaridades e
diferenças, dando um amplo espectro de informações capazes de tornar este tipo de
produto mais diferenciado, mais real, mais completo e mais humano. Um produto coerente
com a realidade, ainda que frustrando as expectativas preconcebidas, possa agregar e tenha
uma importância real na vida daqueles que entram em contato com ele.
É importante que nós, profissionais do turismo, tenhamos em mente que não
estamos imunes a estes estereótipos distorcidos da realidade. O que queremos aqui é
elucidar algumas barreiras que tragicamente nos distancia do potencial cultural indígena,
bem como pode distanciar os turistas de uma experiência mais plena.
No turismo étnico indígena, podemos transformar nostalgia em conhecimento que
se reflete em vida melhor para os outros. Menos preconceitos e mais compreensão.
Transformar idéias românticas ou obsoletas em convivência real e experiência
diferenciada.
Oferecer
um
pouco
da
experiência
antropológica,
democratizando
este
conhecimento. Para isso temos que levar em consideração que os antropólogos também
têm seus pré-conceitos. Ainda assim, é importante notar que a história pode ser um recurso
e talvez o elo entre a antropologia e o turismo.
Flávia Lac. Graduada em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001), especialista
em Turismo Rural pela Leader Ulixes (2001). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná
(2005). Possui experiência nas áreas de turismo e antropologia. Tem atuado no meio acadêmico nos seguintes temas:
etnia kaingang, turismo rural, turismo étnico, fronteira cultural e invisibilidade. [email protected]
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Neste sentido, as modificações que a comoditização ou transformação da cultura
em produto pode deixar de ser algo a ser escondido por detrás dos bastidores e que não se
deseje ser revelado, para ser parte integrante e até atrativo na confecção do produto final.
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http://www.funai.org.br acessado em: 3 de agosto de 2009.
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(2005). Possui experiência nas áreas de turismo e antropologia. Tem atuado no meio acadêmico nos seguintes temas:
etnia kaingang, turismo rural, turismo étnico, fronteira cultural e invisibilidade. [email protected]
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