UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE GRADUAÇÃO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DIEGO FERNANDES DIAS SEVERO EDUCAÇÃO INDÍGENA EM SÃO LEOPOLDO: PROCESSOS EDUCATIVOS FORMAIS E NÃO-FORMAIS ENTRE OS ÍNDIOS KAINGANG SÃO LEOPOLDO 2011 1 Diego Fernandes Dias Severo EDUCAÇÃO INDÍGENA EM SÃO LEOPOLDO: Processos educativos formais e não formais entre os índios Kaingang Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Ciências Sociais, pelo Curso de Ciências Sociais, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Orientador: Prof. Dr. Walmir da Silva Pereira SÃO LEOPOLDO 2011 2 Dedico esse trabalho aos indígenas da comunidade Kaingang Voga de São Leopoldo que me acolheram e se dispuseram a me auxiliar nessa difícil aventura, a pesquisa sobre educação indígena. 3 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente aos meus pais pela compreensão, atenção, dedicação no momento que decidi trocar de curso universitário. Esse momento foi essencial para que hoje possamos celebrar este momento especial. Aos moradores da rua conhecida como Estrada do Quilombo número 1015 em São Leopoldo, os índios Kaingang, que em todos os momentos em que procurei foram dispostos em colaborar para esta pesquisa, muitas vezes os via em momentos de trabalho sempre que me aproximava paravam seu trabalho e me acolhiam em bancos de madeira para podermos conversar, algumas vezes deixaram de almoçar nos horários de costume devido a minha presença que buscava uma entrevista. Em especial agradeço este trabalho aos professores Joesmi e Dorvalino que me abrigaram diversos dias em suas aulas sempre com paciência e comprometimento. Ao cacique da aldeia Alécio que junto dos professores depositaram em mim a confiança por permitir a realização da pesquisa e confidenciar situações de desrespeito. Aquele que foi o verdadeiro responsável em me encaminhar para o fantástico mundo cosmológico indígena, meu orientador, professor Walmir da Silva Pereira lhe agradeço a confiança, disponibilidade, paciência com as minhas dúvidas nem sempre muito difíceis de resolver, mas que sempre se disponibilizou em prontamente atende-las. Aos meus colegas e amigos das Ciências Sociais, em especial: Karoline, Patrick, Admilsom, Diego, Thiago, Irís, Jean, Clarananda, Ana Claudia, Soraia e muitos outros. E aos colegas da História: Ismael (Vacão), Emanuel, Thiago Arcanjo, Belisa e etc. Agradeço a todos pelos debates e conversas que tivemos sobre diversos assuntos que com certeza contribuíram para o aprimoramento de minha formação humana e profissional. Especificamente no desenvolvimento deste trabalho tive o auxilio de duas pessoas especiais, primeiramente agradeço as colaborações do Jonas que pela formação em Pedagogia me esclareceu alguns pontos que para mim passavam em branco, e em segundo lugar, a minha namorada Carine que por diversas vezes me acompanhou na aldeia e que sem sua presença a aproximação com as mulheres e alunas indígenas não seriam a mesma e também pela paciência, compreensão e auxilio nos momentos difíceis de elaboração deste trabalho. Por último agradeço o entendimento da equipe diretiva da Escola Edwiges Fogaça, de Esteio, que compreendeu os motivos das minhas faltas excessivas nestes últimos dias e mesmo assim não dispensaram meu trabalho. 4 RESUMO Neste trabalho, tratamos de um tema recorrente à educação indígena: pegamos um grupo especifico os Kaingang na cidade de São Leopoldo. No início, fazemos um retrospectivo histórico do que já foi trabalhado em meados dos anos 1980 e 1990. No segundo momento, apresentamos a aldeia Kaingang Voga em São Leopoldo, seus aspectos gerais, como população, economia, história em São Leopoldo e etc., apresentamos a escola na aldeia e sua organização interna referente ao seu aspecto jurídico. No último capitulo, com base nos depoimentos recolhidos dos professores e a liderança da aldeia que significado tem a educação, e especificamente a escola, tem para os indígenas kaingang de São Leopoldo. Para obter os depoimentos e as diversas informações sobre a organização e os processos educativos foram realizadas observações na comunidade Voga. Concluímos, ao fim do trabalho, que a escola na aldeia Kaingang em São Leopoldo está sendo tendo significado para os indígenas e eles colaboram para o funcionamento desta pensando e a modificando usando seus processos educativos não-formais dentro da escola. Palavras chave: Educação indígena. Escola. Kaingang. Escola na aldeia. 5 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................6 2 OS KAINGANG? E O PROCESSO DE EDUCAÇÃO INDÍGENA..............................09 2.1 QUEM SÃO OS ÍNDIOS KAINGANG?...........................................................................10 2.2 O PROCESSO DE EDUCAÇÃO INDÍGENA: O “FORMAL” E O “INFORMAL”.......14 3 OS KAINGANG EM SÃO LEOPOLDO E A ESCOLA NA ALDEIA..........................29 3.1 ESCOLA NA ALDEIA KAINGANG................................................................................37 4 A ESCOLA PARA OS KAINGANG EM SÃO LEOPOLDO.........................................52 4.1 A VISÃO DAS CRIANÇAS INDÍGENAS SOBRE A ESCOLA.....................................64 4 CONCLUSÃO......................................................................................................................70 REFERÊNCIAS......................................................................................................................73 ANEXO A................................................................................................................................76 ANEXO B.................................................................................................................................85 ANEXO C................................................................................................................................90 ANEXO D................................................................................................................................96 ANEXO E.................................................................................................................................99 ANEXO F...............................................................................................................................101 ANEXO G..............................................................................................................................106 6 1 INTRODUÇÃO Neste trabalho, será apresentado um tema que já vem sendo bastante discutido nos últimos 30 anos, senão mais, a educação indígena. Quando falamos em educação logo nos vem à cabeça a escola, que na visão ocidental é a responsável por transmitir, pensando em 20 anos atrás, ou construir, o que se menciona na atualidade, responsável pelas percepções dos alunos de como se constituir um cidadão critico e ativo na sociedade da qual faz parte, pensando sempre que vivemos em um mundo globalizado e que tudo o que necessitamos está inserido em um universo muito maior do que as nossas relações sociais imediatas. Quando falamos em educação para os povos indígenas, a primeira coisa que a modernidade os coloca é a escola, mas essa instituição que para nós ocidentais é antiga a eles foi imposta a não muito tempo. Podemos afirmar que o inicio da escolarização dos indígenas é através do contato com os primeiros navegadores europeus por volta de 1500. Nesse contato, e até não muito tempo atrás, o objetivo da escolarização foi transformar e porque não doutrinar os povos que vivem nesta terra a mais de 15000 anos a “comprarem” o nosso estilo de vida. Um dos objetivos mais fortes que a escolarização teve por muito tempo foi à catequização, ou seja, convencer os índios a se tornarem católicos, menosprezando a crença que estes povos tinham e ainda preservam a muito custo na atualidade. Antes da promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988 os índios eram considerados “naturalmente incapazes” pelas legislações existentes. Os indígenas eram tutelados pelo Estado brasileiro e só se emancipavam caso se sentissem preparados, caso se emancipasse não seriam vistos mais como índios e sim como cidadãos “normais” o objetivo dessa política era bem claro criar mecanismos para que os índios se aculturassem totalmente e deixassem de reivindicar seus direitos, o estado dessa maneira praticava um genocídio por meio da lei. Com a elaboração da carta constituinte em 1988, os indígenas foram reconhecidos em sua organização social, ganhando por meio de muita luta um capítulo com suas conquistas. Por esse reconhecimento, todo o trabalho já desenvolvido através de pesquisadores junto aos povos indígenas que reconheciam suas diferentes formas educativas teve maior visibilidade e obteve através de leis e decretos, autonomia para se elaborar políticas que fizessem uso das 7 duas formas educativas, aquelas ocidentais, a escola, e as ancestrais indígenas, o que chamo aqui de processos educativos não – formais ou informais. No primeiro capitulo deste trabalho apresentaremos as principais características do grupo pesquisado, os Kaingang, tais como: a organização social, mito de origem, história entre outros. Em seguida abordaremos um pouco do que foi mencionado acima, buscando e analisando na história da escolarização dos povos indígenas qual ideologia foi imposta a estes povos, de que maneira a escolarização destruiu ou tentou acabar com os elementos constitutivos tradicionais indígenas. Também ressaltaremos como os povos ancestrais organizam seus processos educativos informais, o que podemos identificar na vivencia dos povos como elementos essenciais para a formação de um adulto com as características desejadas pelo meio em que vive. É importante destacar a escolha deste grupo para realizar esse trabalho. Foram escolhidos os Kaingang primeiramente pela questão geográfica, é mais próxima a universidade, o grupo se encontra em São Leopoldo tendo uma história com a cidade já há muito tempo estudada, mas na atualidade não se encontra trabalhos sobre a situação dos mesmos na região. Pela aproximação do pesquisador com o grupo a mais de três anos se escolheu dar visibilidade a situação da atual aldeia no Bairro Feitoria, Estrada do Quilombo 1015. Com isso, no segundo capítulo apresentaremos primeiramente a recente história do grupo Kaingang em São Leopoldo, buscando nos relatos dos indígenas e notícias como foi o processo de chegada na cidade, desde quando estão em definitivo, porque São Leopoldo. Apresentaremos a aldeia, levantando alguns aspectos, como: população/famílias, organização social e política, religiosa, econômica, educacional, ambiental, a saúde, origem dos habitantes e etc. No segundo momento, neste mesmo capítulo, abordaremos o cenário educacional dos indígenas, apresentando a escola na aldeia, elementos como: sua estrutura, gestão, professores, número de alunos, funcionários, situação jurídica, entre outros. Além disso, ressaltaremos a relação existente entre os moradores da comunidade com a escola e com a responsabilidade pela criança, que sem dúvidas difere da relação dos “ocidentais” com essa instituição e suas responsabilidades. 8 A partir do exposto tentaremos identificar o significado da escola para os indígenas, Kaingang, de São Leopoldo através de observações e entrevistas realizadas na aldeia mostraremos como o grupo se apropria dessa instituição ocidental, a escola, para aprimorar seus conhecimentos e reivindicar direitos não atendidos e acima de tudo conquistar a autonomia tão vendida por diversas vozes na atualidade e até agora pouco identificada na observação da realidade indígena em nosso país. No terceiro e último capítulo, analisaremos os discursos dos professores e da liderança da comunidade, junto das observações realizadas in loco, como os Kaingang enxergam a escola. Será abordado como essa instituição, ou melhor, como os professores indígenas e a comunidade em geral trabalham com os dois processos educativos, o primeiro sendo o ancestral de aprendizado com a família e a comunidade, e o segundo o da escolarização institucionalizada. Ou será que entre os Kaingang não existe uma dualidade clara? E através de desenhos das crianças da escola buscaremos a percepção dos alunos sobre a escola na aldeia analisando a partir destes que significado, a escola ou a educação de maneira geral, está sendo relevante para elas. 9 2 OS KAINGANG? E O PROCESSO DE EDUCAÇÃO INDÍGENA A partir da temática “Educação Indígena entre o povo Kaingang no Município de São Leopoldo” abordaremos dois modelos de educação distintos, o primeiro descreverá os processos de educação tradicionais do povo Kaingang seus modelos de interação comunal, tais como: as regras de parentesco, o trabalho com o artesanato, a reprodução da linguagem entre outros; o segundo modelo de educação será o da escolarização buscando na história os processos que aconteceram para que houvesse a obrigatoriedade desta. As questões abordadas são: sob quais paradigmas a escolarização formal foi imposta as populações indígenas e qual a visão que especificamente o povo Kaingang do Rio Grande do Sul teve e têm desta imposição do estado brasileiro. Sobre esta diferença, de educação indígena e educação escolar indígena, Belz (2008) contribui com a visão de educação indígena contida no documento Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Indígena: [...] educação indígena como „o processo pelo qual cada sociedade internaliza em seus membros um modo próprio e particular de ser, garantindo sua sobrevivência e sua reprodução‟. Ou seja, trata-se do „aprendizado de processos e valores de cada grupo, bem como aos padrões de relacionamento social que são entronizados na vivência cotidiana dos índios com suas comunidades‟ (BRASIL, 1999 apud BELZ, 2008, p.78) A autora aborda o conceito de educação escolar indígena com um significado diferente: [...] a educação escolar indígena foi resultado da soma dos processos educativos de cada etnia, que se caracterizou de diversas maneiras desde o contato entre os povos indígenas com os não-índios do nosso país. A necessidade pela instituição escola só aconteceu após este contato, e na atualidade se caracteriza por ser reivindicada pelos índios com as características de ser diferenciada, bilíngue e intercultural. (BELZ, 2008, p.79) Essas diferenças serão aprofundadas no decorrer do capítulo onde abordaremos diversos processos educativos realizados a partir do contato, “brancos” e povos indígenas, alguns com a intenção de “civilizar” os índios ou simplesmente a visão etnocêntrica que não considera culturas tradicionais como formas de vida digna e usa o conhecimento para cooptar as sociedades tradicionais ao modelo ocidental capitalista de vida, tido como “moderno”. 10 Para podermos refletir e explicitar os processos educativos “não-formais” dos Kaingang é necessário conhecermos um pouco desta etnia. Assim, no primeiro momento faremos uma breve apresentação deste povo levantando alguns aspectos primordiais para seu entendimento, tais como: origem do povo, organização social, linguagem, ritos de passagem, relações de parentesco e etc. Esses aspectos serão levantados brevemente, e o relacionaremos com o significado da educação em comunidade com as características do grupo. 2.1 QUEM SÃO OS ÍNDIOS KAINGANG? Os grupos humanos denominados indígenas, ou comumente chamados da forma de índios são nada mais, nada menos do que os verdadeiros colonizadores do que hoje é chamado de América. O termo índio foi um engano de Cristovão Colombo que ao chegar a uma ilha, da região que hoje é conhecida como Caribe, pensou estar chegando às Índias e dessa forma chamou os habitantes dessa terra de “índios”. Esse engano gerou a homogeneização dos diversos grupos indígenas e os denominou como únicos. No entanto, atualmente são encontrados no Brasil mais de 250 povos indígenas. Esses povos têm características e falam idiomas diferentes. Como exemplo, podemos citar o tronco lingüístico Tupi-Guarani que têm como falantes os povos: Guarani Kaiowá, Tupinambá, Guarani Mbyá e muitos outros. Outro tronco lingüístico é o Jê que têm como falantes os seguintes povos: Kayapó, Xavante, Xokleng, Timbira, Canela, Apinayé, Kaingang e etc. Poderíamos citar outros exemplos, de famílias lingüísticas indígenas, mas esse não é o foco do trabalho. Este exemplo nos mostra que nunca existiu somente uma denominação para os povos ancestrais da América, em especial no Brasil. Porém, os povos denominados indígenas, a partir dos anos 70, sentiram a necessidade de se organizarem em conselhos e associações, para buscar seus direitos nas esferas governamentais. Assim os diversos povos decidiram manter e promover essa denominação genérica índios, como identidade que articula os povos originários desta terra, e estabeleceram as fronteiras necessárias para diferenciá-los dos habitantes de outra procedência, como os europeus (LUCIANO, 2006). O grupo Kaingang pertence à matriz linguística Macro Jê, família Jê, sendo o ramo mais diferenciado dentro desta família (RODRIGUES, 1986 apud BELZ, 2008). Este grupo 11 está “concentrado na Região Meridional do Brasil e em áreas continuas parecidas no planalto de São Paulo e parte de Misiones Argentinas” (BECKER, 1995, p.33). Essas regiões são povoadas por populações ameríndias por longo tempo segundo pesquisas arqueológicas recentes indicam que há 2.000 anos nessa região grupos ligados ao tronco lingüístico MacroJê, a família Jê meridional (FRANSCISCO, 2006). Na região do Rio Grande do Sul os representantes do grupo Jê, chamados Jê meridionais, são os povos Kaingang e Xokleng. No entanto, a estrutura desses povos é muito diferente, alguns aspectos fundamentais são explicitados por Veiga: Diferença importante entre os dois grupos é o botoque labial, usado somente pelos homens da tribo dos Xokléng e não pelos Kaingáng. A esse adereço devem aqueles a denominação de Botocudos, enquanto os Kaingáng se tornaram conhecidos como Coroados por cortarem o cabelo em forma de tonsura, costume em que, aliás, não se distingue dos Xokléng. (SHADEN, 1977 apud VEIGA, 1994, p.25) Esse processo do ritual de iniciação, que é constitutivo do povo Xokleng, não é encontrado no povo Kaingang. Não é mencionado na literatura, sobre esse povo, essa espécie de ritual de iniciação, e quando perguntamos para os indígenas contemporâneos se existe ou se já ouviram histórias sobre algum ritual de iniciação como este, entre seu grupo, respondem negativamente. Assim, temos outros aspectos constitutivos do grupo Kanigang que são importantes na sua organização social e podemos entender estes como fatos significativos de iniciação principalmente o ato de nominação da criança. Antes precisamos esclarecer como é a organização entre os Kaingang. Alguns aspectos fundamentais da tradição Kaingang são de se organizarem em metades exógamas, patrilinearidade e de uxorilocalidade. Portanto o povo Kaingang detém uma organização dualista, que é definida por Lévi-Strauss da seguinte maneira: Este termo define um sistema no qual os membros da comunidade – tribo ou aldeiasão distribuídos em duas divisões, que mantém relações complexas, as quais vão da hostilidade declarada à intimidade mais estreita, e a que se acham habitualmente associadas diversas formas de rivalidade e de cooperação. Frequentemente, estas metades são exogâmicas, isto é, os homens de uma só podem escolher esposas entre as mulheres da outra, e reciprocamente. (LÉVI-STRAUSS, 2009, p.108) Como essas características, os Kaingang se organizam em duas metades: Kamé e Kairu. Estas se opõem e se complementam (VEIGA, 1994). Os Kairu são relacionados à marca redonda (rârôr) a um homem empreendedor e a posição Leste. Os Kamé são relacionados à marca comprida (râtéi), ligados à resistência e à posição Oeste (VEIGA, 1994). 12 O surgimento dessa denominação segundo a mitologia Kaingang relatado por Nimuendaju é a origem do grupo: “[...] a tradição dos Kaingang conta que os primeiros desta nação saíram do chão (...). Saíram em dois grupos, chefiados por dois irmãos por nome Kañerú e Kamé, sendo que aquele saiu primeiro. Cada um já trouxe em número de gente de ambos os sexos. Dizem que Kañerú e sua gente toda eram de corpo fino, peludo, pés pequenos, ligeiros tanto nos seus movimentos como nas suas resoluções, cheios de iniciativa, mas de pouca persistência. Kamé e os seus companheiros, ao contrário eram de corpo grosso, pés grandes, e vagarosos nos seus movimentos e resoluções” (NIMUENDAJU, 1913 apud VEIGA, 1994, p.59-60) As metades são o alicerce da organização dos Kaingang, em um casamento, a mulher Kaingang da metade Kairu deve se casar com um homem da metade oposta, ou seja, Kamé. O mesmo acontece se invertermos esta ordem. O uso da patrilinearidade é relacionado da seguinte forma, os filhos, de ambos os sexos pertencem à metade de seu pai (VEIGA, 1994). A explicação deste fato foi dada na Terra Indígena de Nonoai, para Salzano da seguinte forma “porque é o homem que faz o filho” (SALZANO, 1960 apud VEIGA, 1994, p.87). Também, outro fato que evidencia a patrilinearidade é a nominação, nas áreas Kaingang que preservam essa tradição tais como a de Xapecó pesquisada por Juracilda Veiga (1994), o pai procura um dos velhos conhecedores dos nomes e pede para que ele nomine seu filho. Este conhecendo a metade do pai dará o nome à criança. No entanto, isso não acontece no mesmo dia, pois, o conhecedor dos nomes terá que procurar os nomes disponíveis da metade do pai da criança (VEIGA, 1994). A uxorilocalidade apesar da grande interferência da sociedade envolvente, quando um rapaz se casa, ele vai morar junto do sogro ou em casa próxima. Ele só se tornará líder do grupo familiar quando seu sogro falecer e ele se tornar sogro (VEIGA, 1994). As mulheres são colocadas de acordo com a literatura como as detentoras das informações da aldeia, elas funcionam como “amplificadoras” dos anseios da comunidade. Elas, as mães (Ian) segundo Veiga (1994), têm uma grande importância para a preservação e transmissão dos valores e padrões culturais dos Kaingang. A relação entre as metades e o mito de origem é quase evidente. Se unirmos o relato do mito de origem, acima transcrito de NIMUENDAJU, que fala dos Kaingang da metade Kairu como ligeiros e cheios de iniciativa e os da metade Kamé como mais resistentes, e a tradição da união preferencial de um Kaingang Kamé com um Kaingang Kairu, fica evidente 13 que se unirmos a mitologia com a regra do casamento, a família idealizada pela tradição Kaingang, deve ser, cheia de iniciativas, como o Kairu e resistente como o Kamé. Outro aspecto fundamental para a reprodução sócio cultural de qualquer sociedade seja ela indígena ou não, é a territorialidade. Todo grupo de seres humanos tem uma tradição cultural com significados próprios altamente relevantes, mas para sua sobrevivência necessita de espaço geográfico com significado para sua cultura. No caso das sociedades indígenas que foram expulsas de suas terras ancestrais pela colonização portuguesa / espanhola que com interesses expansionistas, dizimaram milhares de indígenas e fizeram que sociedades com culturas altamente complexas e fascinantes “sumissem” do mapa. Uma das maneiras de retirar os nativos da região visada pela expansão foi à colaboração das missões. Assim os indígenas foram aldeados nas missões Jesuítas que buscavam sua assimilação à sociedade envolvente. Nestas, os indígenas sofreram pressões para que deixassem de falar à língua nativa. Tanto os colonizadores europeus, como os missionários jesuítas se “entenderam” melhor com os Guarani, pois eles possuem uma língua muito próxima da língua conhecida pelos missionários no litoral (língua Tupi) e pela característica do povo ser sedentário, ou seja, os Guarani são um povo fundamentalmente agricultor (RAMOS, 2006). Diferente os Kaingang eram essencialmente caçadores e coletores de alimentos, mas foram aldeados junto dos Guarani. Pelas diferentes características de organização, os Kaingang, fugiam muito das missões, principalmente após 1640. Hoje as comunidades indígenas, em sua maioria estão em terras demarcadas pelo Estado brasileiro, sendo responsabilidade da FUNAI esta tarefa. No entanto, estas terras são pouquíssimas para o seu desenvolvimento. A terra, segundo Tommasino, é uma questão crucial para a sobrevivência física e cultural (2000). No caso, dos Kaingang não é diferente. As áreas indígenas foram pensadas como provisórias, no entanto, as demarcações não levaram em conta o crescimento vegetativo da população que triplicou demograficamente nos últimos 40 anos. As poucas terras disponíveis para a agricultura estão depauperadas pelo uso e re-uso. As florestas são praticamente inexistentes desaparecendo a fauna e a flora que pela tradição Kaingang é a responsável pela subsistência baseada na caça e coleta (TOMMASINO, 2000). Assim o autor resume a unidade territorial para uma sociedade Kaingang: 14 [...] constitui-se de um espaço físico – composto por serras (krin), campos (rê) e florestas (nén) – onde os grupos possam exercer suas atividades de caça, pesca, coleta e plantio de milho, abóbora, feijão e batata-doce. Esse vasto território constituía um espaço de contínuos deslocamentos dos grupos para desenvolverem suas atividade de subsistência material e reprodução social” (TOMMASINO, 2000, p.192) Da maneira exposta por Tommasino que foram e são tratados os povos indígenas no Brasil em especial no Rio Grande do Sul. As áreas habitadas pelos Kaingang, como exposto acima, estão em situações precárias financeiramente e territorialmente, são localizadas a maioria das reservas na região norte do estado divisa com Santa Catarina. Fazendo fronteira com mega produtores de soja, milho e outros. Também fazem uso de seu território para plantar esses alimentos. No entanto, nem sempre foi assim, as tarefas designadas para a sobrevivência seguiam um calendário que implicava um conhecimento da natureza, entre elas, o conhecimento da dinâmica dos reinos vegetal e animal, da astronomia e as estações do ano. As atividades eram desenvolvidas junto a outros rituais. Entre os procedimentos dos alimentos de subsistência destacamos à agricultura, praticada nos terrenos altos de mato ralo, sendo de coivaras, plantavam variedades de milho e feijão, abóbora e amendoim, essas roças serviam para a produção e para o chamamento dos bichos. Eventualmente quando as plantações ficavam longe das casas, construíam os wãre para se abrigarem (TOMMASINO, 2000). 2.2 O PROCESSO DE EDUCAÇÃO INDÍGENA: O “FORMAL” E O “INFORMAL” Entendemos, como explicitado no início deste capítulo, que o processo de educação entre as sociedades indígenas não se restringe ao modelo imposto desde a colonização do Brasil, que se resume em impor costumes ocidentais para os povos de cultura tradicional sendo um dos últimos instrumentos usado para a tentativa de assimilação foi à escolarização. E com a obrigação da escolarização damos inicio a discussão sobre os diferentes processos educativos. A discussão sobre a obrigatoriedade da escolarização não é nova, muitos cientistas sociais, lingüistas, pedagogos e historiadores entre outros pesquisaram e participaram ativamente da elaboração de políticas públicas para a viabilização desta e muito questionam as intenções do governo brasileiro. 15 Quando pensamos as propostas de educação para os povos indígenas não podemos nos deter aos processos de escolarização que relativamente são novos. Ao voltarmos até 1910, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) posteriormente em 1918 o órgão é dividido ficando somente com a sigla SPI, fundado em um contexto de expansão da sociedade nacional que: [...] formalmente separado das ordens eclesiásticas, que se teria a criação do chamado Serviço de Proteção aos Índios (SPI), primeiro aparelho de poder governamentalizado instituído para gerir a relação entre os povos indígenas, distintos grupos sociais e demais aparelhos de poder. Conquanto se reconheça a preexistência de muitas das tecnologias de poder utilizadas no governo dos povos indígenas pelo SPI, parte-se do principio de que a gestão, unificada em um centro, de um largo número de povos indígenas diferenciados, dispersos em um amplo espaço geográfico ainda não totalmente territorializado por aparelhos de âmbito nacional, cria a necessidade de homogeneização de concepções quanto ao modo de exercício dessas mesmas tecnologias, exercício esse em sua concretude, heterogêneo. (LIMA, 1992, p. 155) A proposta do SPI encabeçada por Cândido Mariano da Silva Rondon, popularmente conhecido como Marechal Rondon sob um ponto de vista positivista, tinha como objetivo a pacificação dos indígenas. A sociedade brasileira da época, segundo Darcy Ribeiro (1986) possuía duas visões distintas sobre os povos indígenas. A população da cidade distanciada dos povos originários os via como o “bom selvagem” inspirados pelos escritos de Rousseau. Em contrapartida a população sertaneja que vivia ao lado dos índios os via de maneira totalmente diferente os tinha como animais, ignorantes, atrasados que mereciam a morte e não deveriam ser protegidos pelo Estado por estarem travando o desenvolvimento da nação. Para evitar o genocídio e tentar a preservação dos povos indígenas as ações do SPI foram relativamente excelentes e consequentemente eficazes, mas a forma como foram impostos valores ocidentais da sociedade envolvente pelos agentes do SPI levaram os indígenas a morte, senão pelo genocídio proposto por sertanejos vizinhos, mas sim por imposição de modos de vida muito diferentes do seu que acabaram com a estrutura de vida de muitos povos tradicionais. O SPI tinha como visão e defesa de que os indígenas não eram agressivos por natureza, mas sim em função das muitas tentativas dos colonizadores de dizimar essas populações. Na visão do SPI era necessário dar condições para que estes pudessem se “desenvolver” até atingir o grau de “civilização” da sociedade nacional. Desta forma, entendemos as ações do SPI como processos educativos “civilizatórios” que buscava a integração das populações indígenas ao modelo de desenvolvimento em voga 16 na época. Essas ações diferem essencialmente dos processos educacionais tradicionalmente indígenas. Ao tentarmos identificar os processos educativos tradicionais das sociedades indígenas devemos mudar a percepção de educação que temos, o olhar sobre os processos educativos deve ser totalmente modificado quando falamos de grupos sociais que estão mais afastados da maneira de viver dos ditos cidadãos das sociedades complexas, ou seja, da cidade. Nas sociedades indígenas não existe uma instituição especializada para a educação, podemos dizer que o indivíduo não é educado, ele se educa através do convívio na comunidade (MÉLIA, 1979). Com a imposição da escola nas comunidades indígenas são colocados saberes de fora da realidade da aldeia e da comunidade indígena. Sobre esse processo Capacla (1995, p. 52), em resenha sobre livro de Bartolomeu Melià, afirma: O autor aponta como tópicos importantes para o estudo sobre a educação indígena: o nascimento; os jogos (com os quais a criança aprende a trabalhar por imitação, brincando); as formas de correção (persuasiva, sem violência e coletiva); o amplo conhecimento da natureza; a nomeação (a atribuição de um nome está ligado à personalidade); os rituais de iniciação. Ele insiste, entretanto, que estes aspectos são gerais e que, como a educação está totalmente inserida em cada cultura, ela varia conforme cada comunidade tribal. Assim, ele faz um relato dos processos específicos de algumas comunidades como os Xavante, os Nambikwara, os Kayová, os Munku-Iranxe e os Bororo. Cada uma tem seus focos de elaboração educativa, que seriam os interesses centrais em torno dos quais se dá o processo educativo – como por exemplo o rito de iniciação, a casa dos homens, etc. Os processos reproduzidos pelos atores envolvidos no cotidiano escolar indígena buscam seguir a metodologia de Paulo Freire, pois este é um marco importante das diretrizes e bases dos planos nacionais da educação. Esse processo é esquecido pela escola, quando estamos falando de escolas fora da aldeia ou dentro delas com um caráter integracionista que exclui os acontecimentos comuns da comunidade e deslegitima os costumes como processos educativos, como o exemplo citado por Brandão (2007, p. 23-24): Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formação do adulto, o processo de aquisição pessoal de saber-crença-e-hábito de uma cultura, que funciona sobre educandos como uma situação pedagógica total, pode ser chamado (com algum susto) de endoculturação. Dentro de sua cultura, em sociedade, aprender de maneira mais ou menos intencional (alguns dirão: „mais ou menos consciente‟), a través do envolvimento direto do corpo, da mente e da afetividade, entre as incontáveis situações de relação com a natureza e de trocas entre os homens, é parte do processo pessoal de endoculturação, e é também parte da aventura humana do „tornar-se pessoa‟. Vista em seu vôo mais livre, a educação é uma fração da experiência endoculturativa. Ela aparece sempre que há relações entre pessoas e intenções de ensinar-e-aprender. Intenções, por exemplo, de aos poucos „modelar‟ a criança, para conduzi-la a ser o „modelo‟ social de adolescente e, ao adolescente, para torná-lo 17 mais adiante um jovem e, depois, um adulto. Todos os povos sempre traduzem de alguma maneira esta lenta transformação que a aquisição do saber deve operar. Ajudar a crescer, orientar a maturação, transformar em, tornar capaz, trabalhar sobre, domar, polir, criar, como um sujeito social, a obra, de que o homem natural é a matéria-prima. Todos os tipos de sociedade têm como fim último educativo a formação de um adulto com determinadas características visando à continuidade e a reprodução de seu modo de vida, ou seja, da cultura, da língua, dos ritos, dos gestos e etc. Com o advento da escola, nas comunidades indígenas, o modelo de formação do adulto muda, não totalmente, mas já não é o mesmo que formou os adultos, que hoje são mais velhos. O que deve ser destacado é que as escolas indígenas devem servir para o desenvolvimento da comunidade referida, sem sobrepor os costumes do grupo com os modos de vida hegemônicos da sociedade envolvente. Um aspecto importante quanto aos processos de educação não-formais especificamente do povo Kaingang é o significado dos traços e características deste povo. Por exemplo, quanto aos desenhos colocados nos cestos e nos demais artesanatos podemos perceber como é complexa a organização social indígena, sem dúvida é um processo educativo que acontece com os jovens kaingang e que deve ser reproduzido na escola indígena. Essa complexidade dos trançados é destacada por Sergio Baptista da Silva (2008, p. 37): [...] os grafismos kaingang ocorrem em uma grande variedade de suportes: trançados, tecidos, armas, utensílios confeccionados em cabaças, troncos de pinheiros, etc., e nos corpos dos kaingang. Os trançados expostos nas cidades, nas feiras de domingo, na beira de estradas ou em qualquer lugar em que esteja um kaingang, não são apenas wõgfy (trançados em geral, que podem ser kre (cestos) ou tugfy (trançados aplicados a objetos os mais variados, como garrafas, flechas, arcos): são marcas visíveis da diferença, uma vez que são parte de um sistema de representações visuais (as formas tradicionais dos kre, os grafismos tradicionais presentes), originados por um tradicional e especifico sistema cultural kaingang. Além disso, seus trançados revelam formas e grafismos vinculados à percepção dual kaingang do cosmos, enfatizando e sintetizando sua organização cultural baseada em duas metades exogâmicas, patrilineares, assimétricas e complementares, designadas Kamé e Kainru-kré. Esses significados altamente complexos para nós “sociedade nacional” têm enorme importância na organização social da sociedade Kaingang. É importante a investigação sobre a educação formal e não formal para verificar se a chegada da escola na aldeia não está destruindo culturas complexas e altamente significativas. Se voltarmos na história e verificarmos o porquê da escolarização dos povos tradicionais Capacla (1995, p.14) coloca que “a necessidade da escolarização surge a partir da realidade do contato das sociedades indígenas com os colonizadores, ou com o que hoje representa a sociedade nacional”. A sociedade envolvente ou “nacional” vê as sociedades indígenas muitas vezes como inferiores 18 e com o mesmo propósito que orientou Rondon no SPI aposta na escola como instrumento “civilizador”. A expansão da economia capitalista depende da assimilação das populações coloniais, e com os indígenas não é diferente a previsão era de total assimilação ou desaparecimento (CAPACLA, 1995). Muitos projetos de expansão econômica para os povos indígenas foram implantados através da escola, pois como já apontamos antes a educação indígena acontece muito antes de se pensar a instituição escolar. Podemos afirmar que quanto os membros de sociedades tradicionais ficam dependentes da escolarização inspirada pela sociedade nacional, esse processo sempre visa atender os interesses e objetivos da sociedade dominante (SANTOS, 1975). Com a escolarização atendendo inicialmente os interesses da sociedade nacional reproduz aquilo que foi realizado pelos jesuítas na época das suas reduções, ou seja, com um ensino desconectado da realidade indígena e um ensino monolíngüe, os forçando a aderirem ao português (CAPACLA, 1995). Sobre a língua a ser trabalhada em sala de aula nas escolas indígenas existe um esforço para que o ensino seja bilíngue, esse é um direito das populações indígenas assegurado pelo artigo 265 1 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. A formação dos professores e a implementação do ensino bilíngüe conforme parágrafo único do artigo 265 deve ser implementado nas escolas a partir de formação de professores indígenas subordinadas a solicitação das comunidades aos órgãos estaduais de educação. Esse movimento surge como expõem D‟Angelis (2000), de um receio das comunidades indígenas quanto ao cada vez mais os membros da comunidade falavam o português: Quando uma comunidade indígena vê que a língua portuguesa começa a ser falada cada vez mais pelos seus membros, que se tornam bilíngües, ela tem razão de se preocupar e pensar numa política lingüística para defender e manter sua própria língua. De fato, na situação de pressão que vivem os povos indígenas no Brasil, as comunidades indígenas são obrigadas a aprender e a usar o Português e, além disso, acabam deixando a língua portuguesa entrar mais e mais em suas áreas ou em suas casas através de funcionários do governo (de todos os níveis), através de documentos, jornais e revistas, através da escola e através do rádio e da televisão. (D‟ ANGELIS, 2000, p.1) A partir desta nova concepção de educação, os indígenas vêm se tornando protagonistas no processo de desenvolvimento cultural interno. Com o advento da escola, e 1 Art. 265 - O Estado proporcionará às comunidades indígenas o ensino regular, ministrado de forma intercultural e bilíngüe, na língua indígena da comunidade e em português, respeitando, valorizando e resgatando seus métodos próprios de aprendizagem, sua língua e tradição cultural. 19 uma formação bilíngüe, estes não estão mais perdidos sobre a condição das escolas na aldeia e, assim fortalecem sua identidade junto à sociedade envolvente negociam com o poder público suas reivindicações, tais como: o direito a terra e à identidade. Não só negociam, mas com a apropriação da produção de conhecimento ocidental os indígenas utilizam destes para pressionar a sociedade nacional para que os reconheça como atores sociais importantes e como verdadeiros descobridores do que hoje se chama América e, especificamente Brasil. Sobre a educação bilíngüe é importante destacar, que as experiências desenvolvidas pelo SIL (Sociedade Internacional de Linguistica) que chegou ao Brasil em 1956, segundo Silva e Azevedo eram caracterizadas “pelo emprego de metodologias e técnicas distintas das que se desenvolviam até então, o „novo‟ projeto não escondia, como todos os seus predecessores, os mesmos objetivos civilizatórios finais.” (SILVA; AZEVEDO, 2000, p.151). O trabalho das escolas mantidas pela FUNAI, em parceria com o SIL, seguia o método exposto por Caplaca (1995, p.47-48) em resenha da dissertação desenvolvida por Nancy Antunes Tsupal, intitulada “Educação indígena bilíngüe, particularmente entre os Karajá e Xavante: alguns aspectos pedagógicos, considerações e sugestões”: Existem alguns modelos de etapas a serem seguidas num processo de educação bilíngüe, como demonstra a autora no quarto capitulo. O modelo brasileiro vinha sendo o de alfabetização em língua materna que em seguida transita para a língua nacional. Tsupal descreve este modelo adotado pelo SIL/FUNAI, iniciado em 1970 com a criação da Escola Normal Indígena no Posto Guarita, a qual se tornou depois o Centro de Treinamento Clara Camarão, que preparava monitores indígenas bilíngües. Os primeiros grupos atingidos foram os Kaingang, Guajajara, Karajá e Xavante. Tsupal cita também a implantação do projeto bilíngüe em outros grupos, e comenta a realização de vários cursos de atualização, encontros de monitores e seminários desde então. Neste modelo, indicado por Kindell & Jones, partia-se de um levantamento da situação lingüística do grupo e da elaboração de uma ortografia, além de materiais didáticos provisórios – uma cartilha de alfabetização e textos transcritos de histórias e lendas do grupo. A partir deste primeiro material, iniciava-se um programa piloto que alfabetizava pessoas da própria comunidade, as quais eram preparadas como monitores bilíngües, participavam da elaboração de novos textos de literatura indígena e do material didático definitivo. O programa previa também a elaboração de um material de transição para a língua portuguesa. As aulas eram ministradas sempre por monitores não-índios junto com monitores indígenas bilíngües, e o fato do uso da língua materna, aliado a esta presença se um monitor da própria comunidade. Na elaboração das cartilhas bilíngües, cujas primeiras experiências datam da década de 50, eram utilizados dois métodos possíveis pelo SIL: um baseado na lingüística tagmêmica – construindo-as de acordo com “núcleos” e “periferias” das palavras e frases -, e outro psico-fonêmico, que vai introduzindo substantivos e verbos gradualmente, de acordo com as dificuldades das letras. O programa previa 4 semestres, em que a alfabetização no Português só era introduzida após 3 semestres de Português oral e de alfabetização na língua indígena. 20 A forma exposta por Capacla revela algumas das meditas tomadas pelo poder público quando o SIL chegou ao Brasil, o motivo do entusiasmo por parte da platéia universitária e o poder público á proposta do SIL é revelado por Silva e Azevedo, “a questão não era mais abolir grosseiramente a diferença, mas sim domesticá-la” (SILVA; AZEVEDO, 2000, p.151). Uma problemática que surge a partir da imposição do SIL com seu método de alfabetização bilíngue é as diversas disputas dentro das comunidades indígenas criando um status social diferenciado para alguns indivíduos que entram em contato com os agentes do SIL, como da FUNAI e outros órgãos, uma dessas figuras é o monitor bilíngüe, que Silva e Azevedo que não se coloca de outra maneira do que um professor indígena domesticado e subalterno, essa figura surgiu da necessidade dos missionários e professores alfabetizarem em língua indígena (treinados conforme o método citado acima), mas por vezes informava e ajudava os missionários na tarefa de tradução da Bíblia, objetivo principal da S.I.L (SILVA; AZEVEDO, 2000). Assim o “monitor” servia de interceptor dos interesses da S.I.L com a comunidade, desta forma, conheciam a língua da comunidade, introduziam a religião e alfabetizavam na língua nacional, o português. Os processos de escolarização tinham intenção de introduzir aos povos indígenas a língua portuguesa, porém, agora são sujeitos ativos na construção de seu aprendizado, com muitas conquistas que aos poucos vão colocando em prática, mas, a batalha não termina. É necessário maior empenho das autoridades responsáveis pelas políticas indígenas, no que tange a sobrevivência destes grupos. Um destaque importante é levantado por Cunha (2000), que a previsão dos anos 80 sobre o possível desaparecimento já é coisa do passado esta “[...] cedeu lugar à constatação de uma retomada demográfica geral. Ou seja, os índios estão no Brasil para ficar” (CUNHA, 2000, p.131). No entanto, existem ainda obstáculos que não são vencidos somente por conquistas nas legislações, especificamente no caso dos Kaingang no sul do Brasil, um dos entraves para a manutenção da língua indígena é o próprio ensino bilíngue: [...] o próprio processo educacional bilíngüe, instaurado há duas décadas, que, como já apontamos, direciona a criança para a valorização e emprego da língua portuguesa em substituição à língua indígena, conformando na criança a convicção de que a língua portuguesa é uma „língua de cultura‟, que cria oportunidades e é o caminho de acesso ao poder ou a ganhos materiais, por menores que sejam, enquanto a língua indígena não seria capaz de expressar conteúdos relevantes, ficando restrita às séries iniciais da escolarização (para as crianças que chegam à escola falando apenas o 21 Kaingang), sendo, aos poucos, colocada em um „gueto‟ (a aula de língua indígena), até desaparecer completamente do currículo. Como fruto das outras compulsões já mencionadas, em grande parte das áreas indígenas já é apenas minoria o número de crianças que chega à primeira série como monolíngües Kaingang. É comum que muitos já demonstrem, nessa idade, um „bilingüismo incipiente‟ (freqüentemente já tendo o português como língua de sua expressão, e o Kaingang como língua que não falam, mas compreendem), e boa parte chega à escola tendo como língua materna o Português. Com isso, os problemas criados pelo ensino bilíngüe do SIL ficam agravados por reforçarem a tendência já manifesta na maioria das crianças por razões extra-escolares. O chamado „ensino bilíngüe‟ vai se tornando, pouco a pouco, mera afirmação „publicitária‟, e o resultado mais comum é o abandono da escola pelas crianças que a ela chegam como monolíngües Kaingang, e a chegada às séries mais elevadas (8ª série, em muitas áreas) apenas por crianças que nunca falaram a língua indígena. (VEIGA; D‟ANGELIS, 2000, p.323-324) Esses fatores, trazidos por Veiga e D‟Angelis, são consequências das longas experiências de contato entre as populações indígenas e a sociedade nacional, também a cooptação de índios pelos órgãos do governo e das entidades religiosas cria um clima de sobreposição cultural onde os que falam o português são mais “cultos” do que aqueles indígenas que não o falam. Essas complicações acontecem em todos os tipos de sociedades e culturas existentes, o fato de podermos enxergar problemas na implementação de determinadas políticas nas comunidades é relevante, pois nos vemos nelas, quantos problemas e contradições acontecem na sociedade nacional que está toda hora se ocidentalizando e vivendo a sombra das grandes nações do primeiro mundo. Com os indígenas é a mesma coisa, mas para eles os “evoluídos” não são os países de primeiro mundo, ou podem até ser, mas por proximidade alguns vêem a sociedade envolvente como “superior”. Com essas contribuições trazidas pelos autores podemos ver que as formas de escolarização devem partir de iniciativas indígenas, não podemos forçar que as comunidades se escolarizem e aprendam o português e que façam o exercício da escrita em sua língua, conforme Silva e Azevedo: Não queremos dizer com isso que os povos indígenas não possam ler e escrever em suas línguas nativas e que possam aprender a fazer isso em suas escolas. [...] Mas o que as escolas indígenas devem ou não ensinar é matéria cuja decisão depende exclusivamente dos povos indígenas para os quais elas existem. Os objetivos dessas escolas devem ser discutidos e definidos pelas próprias comunidades onde estas estão localizadas. A experiência acumulada de mais de quatro séculos demonstra como programas de educação escolar indígena podem fazer estragos, quando estão sob controle de agências não-indígenas. São povos indígenas, através de seus mecanismos políticos tradicionais, de suas organizações, de seus professores, etc. os únicos detentores do legitimo direito de decidir sobre o que deve acontecer ou não em suas escolas. (SILVA; AZEVEDO, 2000, p.153-154) 22 Como colocado acima, com a existência da instituição da escola nas comunidades somente quem deve fazer as escolhas sobre conteúdos e a forma do trabalho docente são os indígenas envolvidos no processo. Neste sentido cabe destacar que do ponto de vista legislativo, as comunidades têm uma série de ganhos, claro essas leis são baseadas nos pressupostos de que os indígenas querem se alfabetizar em sua língua e em português, caso o contrário aconteça, ou seja, a comunidade decide não ter escola em seu território e não legitima a escola como instituição de conhecimento indígena, realizando a escolha de ensinar suas crianças, nos processos educativos tradicionais à relação fica espinhosa entre o poder público e as comunidades. As autoridades “competentes” certamente acionaram todos seus esforços para o aceite dos indígenas da escola diferenciada, podendo ocorrer à perda da guarda da criança aos pais que não matricularem seus filhos em escolas reconhecidas pelo Estado. Esses acontecimentos e a série de imposições que as comunidades sofrem levam a conclusão que a instituição estatal não reconhece os processos educativos ancestrais e impõem aos indígenas legislações homogêneas. No que se refere às diretrizes especificas para as escolas indígenas, os estes saíram vencedores, porém a aplicabilidade destas ainda segue comprometida e o motivo desta dificuldade merece empenho dos envolvidos no processo, ou seja, os indígenas. Pois desde a criação do SPI até a aprovação da Constituição Federal de 1988, as escolas mantidas nas áreas indígenas eram de responsabilidade da FUNAI, somente a partir do texto da constituinte em que se mudou o olhar sobre as populações tradicionais que se viabilizou meios, e a educação escolar indígena passou a ser tema relevante no ponto de vista das legislações. No entanto, exige a fiscalização e monitoramente da sociedade civil interessada pelas questões: atores sociais indígenas e democracia participativa. Quanto à responsabilidade, de fornecer meios para que a escolarização dos indígenas aconteça com o fim de proporcionar que estes tenham seus processos culturais respeitados são questionáveis, como afirma o Plano Nacional de Educação (2001): Em que pese a boa vontade de setores de órgãos governamentais, o quadro geral da educação escolar indígena no Brasil, permeado por experiências fragmentadas e descontínuas, é regionalmente desigual e desarticulado. Há, ainda, muito a ser feito e construído no sentido da universalização da oferta de uma educação escolar de qualidade para os povos indígenas, que venha ao encontro de seus projetos de futuro, de autonomia e que garanta a sua inclusão no universo dos programas governamentais que buscam a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, nos termos da Declaração Mundial sobre Educação para Todos. 23 A transferência da responsabilidade pela educação indígena da Fundação Nacional do Índio para o Ministério da Educação não representou apenas uma mudança do órgão federal gerenciador do processo. Representou também uma mudança em termos de execução: se antes as escolas indígenas eram mantidas pela FUNAI (ou por secretarias estaduais e municipais de educação, através de convênios firmados com o órgão indigenista oficial), agora cabe aos Estados assumirem tal tarefa. A estadualização das escolas indígenas e, em alguns casos, sua municipalização ocorreram sem a criação de mecanismos que assegurassem uma certa uniformidade de ações que garantissem a especificidade destas escolas. A estadualização assim conduzida não representou um processo de instituição de parcerias entre órgãos governamentais e entidades ou organizações da sociedade civil, compartilhando uma mesma concepção sobre o processo educativo a ser oferecido para as comunidades indígenas, mas sim uma simples transferência de atribuições e responsabilidades. Com a transferência de responsabilidades da FUNAI para o MEC, e deste para as secretarias estaduais de educação, criou-se uma situação de acefalia no processo de gerenciamento global da assistência educacional aos povos indígenas. Não há, hoje, uma clara distribuição de responsabilidades entre a União, os Estados e os Municípios, o que dificulta a implementação de uma política nacional que assegure a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngüe às comunidades indígenas. Há também a necessidade de regularizar juridicamente as escolas indígenas, contemplando as experiências bem sucedidas em curso e reorientando outras para que elaborem regimentos, calendários, currículos, materiais didático-pedagógicos e conteúdos programáticos adaptados às particularidades étno-culturais e lingüísticas próprias a cada povo indígena. O Plano Nacional de Educação (2001) assume os propósitos que os órgãos federais anteriormente tiveram com as escolas indígenas e explicita a dificuldade de regularização das escolas nas mais diferentes regiões do Brasil. Um aspecto importante da citação exposta é que não existe uma clara distribuição de responsabilidades entre a União e os Estados e Municípios no que se refere às escolas em aldeias. E assume que são necessários esforços para que se produzam materiais didáticos próprios para o uso dos indígenas. Caso isso não ocorra, o aspecto modernizante da escola revela-se como anteriormente, as escolas serão utilizadas para doutrinar as crianças indígenas a pensarem e agirem conforme o “branco”, menosprezando os seus costumes tradicionais e esquecendo a história de dominação que seus ancestrais sofreram. A educação nos processos de mudança de qualquer sociedade é um do instrumento utilizado para fundamentar o doutrinamento dos sujeitos envolvidos na transformação. Com seus mecanismos de “forma+ação” tem um poder imenso na subjetividade do individuo, que a partir de um conhecimento especifico conquista uma hegemonia. Este conhecimento que se torna hegemonia no campo do saber é revestido de uma ideologia que esconde processos significativos do viver. A ideologia, para Freire, tem a capacidade de amaciar a população de uma maneira fantástica fazendo-nos crer que a globalização econômica é um fato que termina em si mesmo, que não poderia ser evitado, que ela é um ser superior que não podemos evitar, 24 desta maneira esconde que é resultado de escolhas políticas que aliam nossa produção econômica a determinados interesses (FREIRE, 1996). Esta concepção está internalizada no pensamento de boa parte da sociedade brasileira, estamos lutando contra uma estrutura ideológica que todas as correntes políticas existentes nos dias de hoje concordam. Por mais que existam subsídios para a participação de indígenas na vida política por meio do sistema eleitoral de representatividade. Estes não são nem citados nas propagandas eleitorais, assim como falar de presídios, falar de índios não dá votos. Por mais que existam alguns partidos políticos na atualidade que digam que construirão o país seguindo os desejos da população brasileira, estão enganados, pois governam somente para as elites. Seus pensamentos são carregados de distorções históricas construídas em nossa memória, a maneira como as “verdades” foram sendo vendidas neste solo faz-nos esquecer que muito antes dos espanhóis e portugueses chegarem nesta região existiam e ainda existem grupos que não “compram” facilmente as “novas idéias”. Com isso QUIJANO (2005) esclarece: [...] a perspectiva eurocêntrica distorce, quando não bloqueia, a percepção de nossa experiência histórico-social, enquanto leva, ao mesmo tempo, a admitilá como verdadeira. Opera, pois, no mundo de hoje, e em particular na América Latina, do mesmo modo como a „cavalaria‟ atuava na visão de Dom Quixote. Conseqüentemente, nossos problemas também não podem ser percebidos senão desse modo distorcido, nem confrontados e resolvidos salvo também parcial e distorcidamente. Dessa maneira, a colonialidade do poder faz da América Latina um cenário de dês/encontros entre nossas experiências, nosso conhecimento e nossa memória histórica. (QUIJANO, 2005, p.15) A distorção que ocorre na América Latina foi e é usada para menosprezar os que vivem diferentemente dos ditos cidadãos “modernos”, é o caso dos povos indígenas que muitas vezes optam por viver sempre junto com seus parentes, reproduzindo seus costumes em comunidade. No caso da aldeia Kaingang em São Leopoldo, muitos vieram de outras regiões como a de Nonoai. Fizeram a opção a fim de ter uma vida diferente, continuando sim com seus costumes, mas, perto da cidade para poderem comercializar seus artesanatos. Um aspecto importante a destacar, é que assim como toda a sociedade, as comunidades indígenas mudam no decorrer do tempo. Elas se adaptam, com as diferentes situações e criam uma determinada cultura de contato, ou seja, o contato existente entre os indígenas e os não indígenas estabelece uma cultura que se compõem das duas tradições 25 culturais. Assim como os não indígenas não mudam totalmente sua forma de viver em função do contato, com os indígenas ocorre o mesmo. Mas na subjetividade de cada um deles algo fica internalizado. Contanto que índios e não índios se desafeiçoem de alguns preconceitos e modos de viver específicos. A partir disso, é importante lembrar que o indígena da atualidade não é aquele do imaginário pré-colombiano, que vivia nu, com penachos na cabeça, com o arco e flecha, caçando no meio da mata. Hoje os indígenas são estudantes de universidade federais e particulares, usam calças jeans, escutam o sertanejo, fumam cigarro, andam de carro, preparam os alimentos nas panelas, dormem em casas de material, freqüentam a igreja, ganham Bolsa Família2. Sobre o termo “índio” Oliveira fala de duas concepções deste termo, o primeiro indica um estado cultural manifestado de diferentes formas e contextos podendo ser substituído pelo termo – silvícola, íncola aborígene, selvagem e outros. Claramente os objetivando como moradores da mata, direta vinculação com a natureza e ausência dos benefícios da “civilização”. O segundo indica um segmento da população do Brasil que tem problemas de se adaptar as formas de vida da sociedade nacional, por estar ligada a tradições pré-colombianas (OLIVEIRA, 2000). Assim esta concepção leva a muitos suporem que nos dias de hoje, não existe uma cultura propriamente ou legitimamente indígena. Assim DaMatta contribui com a idéia de cultura nos diversos tipos de sociedade: [...] sociedades sem cultura apenas acontecem no caso das <<animais sociais>> (uma expressão, sem dúvida contraditória). No caso do homem, a cada sociedade corresponde uma tradição cultural que se assenta no tempo e se projeta no espaço. Daí o seguinte postulado básico: dado o fato de que a cultura pode ser reificada no tempo e no espaço (através de sua projeção e materialização em objetos), ela pode sobreviver à sociedade que a atualiza num conjunto de práticas concretas e visíveis. Assim, pode haver cultura sem sociedade, embora não possa existir uma sociedade sem cultura. (DAMATTA, 1987, p.50) Portanto, a partir do momento em que o mundo e o homem se movimentam a cultura se modifica. Uma comunidade indígena se adapta ao meio em que vive, pois está cercada por todos os lados da cultura ocidental moderna, e seus comportamentos etnocêntricos. Os povos indígenas, com muitas diferenças se adaptam, mas não mudam totalmente o seu jeito de viver 2 Programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. 26 para glorificar o mundo do “branco”. Sobre as mudanças ocorridas nas culturas, Tassinari (2000), nos esclarece: [...] a cultura não se define mais enquanto um conjunto fixo de costumes, artefatos e crenças que podem ser armazenadas ou resguardadas em museus ou livros independentemente das pessoas. Cada pessoa, já que ninguém é igual ao outro, tem maneiras próprias de interpretar sua tradição, tem traços pessoais que imprime ás formas de agir e aos objetos que produz. Cada inovação pessoal, no entanto, tem que fazer sentido para aqueles que compartilham da mesma cultura, de modo que a pessoa seja aceita socialmente e não seja considerada „louca‟, ou melhor, fora dos padrões sociais de conduta „normal‟. (TASSINARI, 2000, p.449) A partir do contato com a sociedade envolvente os indígenas dão significados para práticas que entraram no seu cotidiano e ressignificam as tradições ancestrais. Mas como ainda assim são índios, e por quê? Quais as diferenças que os fazem continuarem sendo indígenas? Respondo com duas características fundamentais: o viver em e para a comunidade com manifestações de ritos ancestrais e a língua materna falada continuamente pelos moradores da aldeia. Especificamente sobre a cultura Kaingang na modernidade podemos dizer que está se configura de elementos de “fora” de sua realidade com aspectos ancestrais, mas não podemos afirmar que é uma “mistura”, ao lado do desconhecimento de alguns aspectos ancestrias os Kaingang tratam do elemento do “mundo do branco” do qual se apropriam e resignificam, assim esse sincretismo marca como eles estão construindo algo novo sobre a cultura (EG JAMEN KY UM, 1997). Com essas definições, podemos compreender que a implementação das instituições escolares nas comunidades indígenas deve ser diferenciada e, como exposto acima, no artigo 261 da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul, temos legislações especificas que prevêem consultas aos povos tradicionais sobre como essa instituição funcionará, entre outros aspectos. O funcionamento das escolas indígenas é mencionado em diversas leis que exploram o artigo mencionado da constituição, esses compõem também a constituição e demais os documentos da educação do Brasil. Existe um esforço para que os professores dessas escolas sejam moradores da aldeia e pertencentes à mesma etnia dos alunos que freqüentarão as aulas. Neste sentido a escola indígena que é objeto de reflexão deste trabalho está avançada, pois os dois professores que trabalham na escola são Kaingang, sendo um estudante de Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e o outro apenas com a formação escolar básica, ambos moradores da comunidade da Estrada do Quilombo, no 27 bairro Feitoria, na cidade de São Leopoldo. Com esse ponto primordial para que a escolarização seja realmente lecionada por “parentes”, que entendem da cultura e língua do povo Kaingang, pode-se lançar a hipótese de que essa escola será uma “escola indígena” e não uma “escola para o indígena”. A primeira denominação refere-se aos processos educativos culturais que devem ser utilizados para o aprendizado da criança indígena para assim de tornar um índio cidadão, ou seja, que reivindique seus direitos assegurados pela constituição e leis complementares, e mais lute para novas conquistas para seus parentes e coirmãos indígenas. Quando me refiro a “escola para o indígena” falo dos modelos de educação que tivemos em anos recentes e ainda temos em alguns lugares do país, ou seja, o modelo positivista materializado pelo SPI até 1968, e a atuação realizada por missionários anos atrás entre outros. Quanto à maneira como a escola indígena deve desenvolver suas atividades, de maneira intercultural, sobre este conceito Paula (1999, p.76)) nos esclarece: Quando se fala em interculturalidade, a idéia que nos vem à mente é a de que duas ou mais culturas estão se relacionando de alguma forma. A escola, quando se instala numa comunidade indígena – quer a pedido desta, quer à custa de ações marcadas por imposições colonialistas, ainda presentes em nossos dias -, traz no seu cerne essa problemática, visto ser ela uma instituição tão caracteristicamente criada pelas sociedades ocidentais. Essa união da cultura propriamente indígena, neste caso a Kaingang, seus valores e sua visão de mundo ser construída na escola, instituição como afirma Paula (1999) “uma instituição tão caracteristicamente criada pelas sociedades ocidentais”, essa união é a interculturalidade. O conhecimento indígena abordado em sala de aula junto com conhecimentos ocidentais lecionados por professores da comunidade capacitados para tal e com a perspectiva da inovação da escola indígena, não mais como aparelho reprodutor da sociedade capitalista ocidental, mas como afirmadora de valores kaingang em união com conhecimentos ocidentais para em conjunto lutar pela garantia de direitos ao seu povo. No entanto, a interculturalidade na escola indígena não significa a coexistência de representações dos “dois mundos”, o indígena e o ocidental, visto que os valores são indígenas e a estrutura de pensamento também o elemento ocidental é a escola. Sobre isto Paula (1999) destaca: 28 A interculturalidade, quando pensada no cotidiano de uma escola indígena, está intrinsecamente ligada à questão dos conhecimentos. Não se propõem, por exemplo, que para garantir o caráter intercultural deva haver necessariamente professores nãoíndios e indígenas trabalhando lado a lado na sala de aula. Ou que o prédio da escola deva conter características arquitetônicas indígenas e ocidentais, ao mesmo tempo. (PAULA, 1999, p.78) As palavras de Paula são em tom de esclarecimento, para termos uma escola intercultural não necessita a presença de professores indígenas ao lado de não-índios, essa é uma mudança importante no pensamento sobre a educação dos povos indígenas. Como mencionado acima se na escola indígena houver como professor um não-índio a construção do conhecimento, junto aos alunos que falam frequentemente a língua ancestral e vivem na comunidade, prejudica sua pratica a não ser que o objetivo desta seja o da “civilização” para os valores ocidentais ou a “catequização”. 29 3 OS KAINGANG EM SÃO LEOPOLDO E A ESCOLA NA ALDEIA Os índios Kaingang não habitam a cidade de São Leopoldo por acaso. A mesma foi território indígena antes do inicio da colonização alemã. A partir da colonização os Kaingang foram sendo espremidos nos territórios ao norte do Rio Grande do Sul. O grupo de indígenas que mora no Bairro Feitoria habita contemporaneamente na cidade por volta de 8 anos, passaram por outros lugares até então serem alocados na aldeia Voga. Anteriormente ao alocamento dos Kaingang no bairro Feitoria, eles estavam morando em baixo de um viaduto na BR-116, próximo a rodoviária de São Leopoldo. Moraram por volta de quatro anos neste local, onde tinham condições mínimas de vida digna, pois a violência sempre rondava os indígenas, com barulho para os habitantes, mínimas condições de higiene e moradias precárias. Quando chovia no local os moradores ficavam com suas casas alagadas e seus pertences se danificavam tornando assim a vida insustentável. De acordo com os moradores da comunidade, no ano de 2005 a prefeitura, por pressão das lideranças indígenas e por se ver na obrigação de assistir minimamente o grupo localizado em baixo do viaduto de sua cidade, decidiu se reunir com as lideranças e propôs que um grupo de indígenas fosse à busca de alguns terrenos, previamente estipulados pelo município, para futura moradia do grupo. Esse grupo formado pelos indígenas que participavam da liderança visitados algumas áreas e terrenos no município. Entre as localidades visitadas o primeiro terreno escolhido pelo grupo não foi viabilizado por conta de entraves jurídicos. A opção que ficou em segundo lugar foi aquela que acabou materializando a aldeia Kaingang Voga. A aldeia está localizada na Estrada do Quilombo número 1015, no bairro Feitoria/Seller na cidade de São Leopoldo. A área é de aproximadamente 2,5 hectares de terra, onde moram 30 famílias totalizando por volta de 150 pessoas. A maioria são os mesmos que estavam em baixo do viaduto na rodovia federal, alguns deles foram novamente para as suas localidades de origem, como as áreas indígenas de Nonoaí, Votouro, Serrinha e etc., e outros vieram para São Leopoldo depois da conquista do terreno em que foi construída a aldeia. O terreno onde fica a aldeia ainda está sob propriedade da prefeitura municipal, embora a Fundação Nacional do Índio – FUNAI já tenha conhecimento da existência da 30 comunidade. Em vista disso muitos recursos, tais como serviços como os de saúde não são viabilizados, pois o território tem que ser obrigatoriamente área federal. Fotografia 01 – Entrada da aldeia Kaingang Voga em São Leopoldo Fonte: Registrada por Diego Severo Fotografia 02 – Imagem via satélite do local Fonte: Google Maps 31 Na imagem apresentada acima onde está localizado um balão azul é à entrada da comunidade Kaingang. O nome da rua popularmente é chamado de “Estrada do Quilombo”, embora o nome da avenida seja Maria Emília de Paula. A confusão ocorre pelo fato de que próximo a avenida existe uma travessa chamada Travessa do Quilombo. O exposto na imagem disponível no Google Maps não reflete a disposição das casas hoje existentes na aldeia, pois muitas novas moradias foram construídas neste ano em função de uma parceria da comunidade indígena com a Caixa Econômica Federal e apoio da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. A partir disto é importante ressaltar que apesar da Prefeitura Municipal de São Leopoldo ter conseguido o terreno onde hoje está a aldeia nada fez para que os moradores da comunidade indígena tivessem as mínimas condições de vida. O grupo kaingang foi levado para a área no bairro Feitoria e as estruturas básicas, tais como: construção de casas, banheiros adequados, viabilização de escola e outros equipamentos não foram viabilizados pelos órgãos legalmente responsáveis 3 pela assistência indígena e tão pouco pelos órgãos públicos ligados à prefeitura. Quanto a este fato deve ser destacado o desprezo com que os agentes da prefeitura agem/agiam com os indígenas da cidade de São Leopoldo. Em uma das visitas aos indígenas, enquanto esperávamos pelo começo das aulas na frente da escola, chegou um carro com identificação do município, desceu um homem verificando a estrutura de um banheiro, que na época ainda estava sendo construído, ao lado da escola. Fomos ao seu encontro e perguntamos que tipo de trabalho estava desenvolvendo na aldeia. Apresentou-se como engenheiro responsável pela inspeção da construção dos banheiros. Perguntamos, então, quanto tempo demoraria para finalizar a obra. O mesmo disse que não sabia, e para completar afirmou que os indígenas eram muito abusados em suas vontades, pois primeiramente não queriam banheiros e depois queriam os mesmos em todas as casas, comentou, também, que a prefeitura não deveria oferecer essas coisas para os indígenas. Na visão do agente municipal os indígenas deveriam se adequar ao mundo do branco trazendo representantes da sociedade envolvente para o interior da aldeia a fim de comercializar seus artesanatos. Ademais, conforme expressou, os indígenas deveriam ser punidos por “abusar” das crianças utilizando-as para o comercio de seus produtos. Ressaltou 3 Especificamente, Fundação Nacional do Índio – FUNAI e da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA 32 ainda que eles não poderiam reivindicar que a área em que estão localizados se mantenha preservada, sem desmatamento ao redor, pois não estão mais em seu território original e, também, não podem querer que em todo o lugar por onde andam se preserve um ambiente “ideal”. Não queremos fazer aqui nenhuma critica no plano individual aos trabalhadores da prefeitura, e sim a esta instancia pública municipal que no momento que se propõe cumprir uma legislação que a obriga assistir aos povos indígenas deve, minimamente, preparar o seu quadro de funcionários com capacitação que os esclareça sobre os diferentes tipos de culturas existentes, que recebam um pouco de conhecimento da história deste povo que não “caiu” de pára-quedas na cidade de São Leopoldo, mas sim têm uma ligação ancestral com a terra, pois aqui foi território kaingang que foram sendo expropriados pela força da colonização (principalmente alemã) e obrigados a migrarem para o norte do estado. Economicamente a comunidade se sustenta através do trabalho com o artesanato, que não é produzido de maneira coletiva, e sim individualizado nas famílias. Cada qual é responsável pelo seu material. Não levanto aqui a hipótese: o caso de alguma família estar passando por necessidades financeiras, não haver uma solidariedade grupal... Esse tipo de interação não foi o foco da pesquisa, mas, sem dúvida, a forma como gira a economia da comunidade é um aspecto importante de ser pesquisado. Como no começo do trabalho foram levantadas algumas características ancestrais dos Kaingang, sabemos que esse grupo se adaptou à agricultura com a chegada dos jesuítas e outros fatores, na aldeia pesquisada não existe espaço para a agricultura. O que existe são “pequenas hortinhas” perto das casas de alguns moradores. Além do trabalho com o artesanato que é à base do sustento, ou o complemento da renda da maioria da população indígena que mora em São Leopoldo, existe outros postos de trabalho que os moradores ocupam, alguns na própria aldeia, quadro moradores trabalham na escola dois como professores e duas como funcionárias, todos contratados do Estado do Rio Grande do Sul. Outros indígenas trabalham com construção civil, nos postos de saúde, entre outros. Devido à insegurança financeira e a não “estabilidade” da venda dos artesanatos aquelas famílias que não tem renda fixa são beneficiadas pelo programa Bolsa Família do governo federal como já destacado anteriormente. 33 Fotografia 2 – Artesanatos Kaingang expostos na Unisinos Fonte: Registrado por Diego Severo Fotografia 3 – Artesanatos Kaingang expostos na Unisinos Fonte: Registrado por Diego Severo A produção do artesanato é familiar e esse é um processo educativo passado diretamente pelos pais aos seus filhos. 34 Da mesma forma, a língua é transmitida diretamente pelos pais para seus filhos geração após geração Um dos diferenciais importantes dos indígenas do sul do país é o fato de falarem a língua nativa continuamente, apesar de os dialetos terem se modificado ao longo do tempo e pelo próprio contato interetnico com os não-indígenas. A respeito da questão estrutural ressaltamos que existe uma parceria da aldeia com órgãos federais para a construção de 21 casas que atualmente estão em fase de finalização. O leitor atento verificou que existe uma incoerência entre o numero de famílias e o numero de casas da comunidade, isso acontece em função do reduzido espaço territorial da comunidade. Algumas famílias dividem a casa com parentes, além das moradias, existe a pequena estrutura da escola, um banheiro coletivo, um centro cultural4. Os indígenas estão buscando formas para ampliar a área da aldeia, pois os mesmos têm projetos de aumentar a escola já existente, viabilizar um posto de saúde para os moradores da comunidade entre outros. A situação atual da comunidade de São Leopoldo sem dúvida é muito melhor do que há cinco, seis anos, mas isso não é fator ponderável de analise, pois mesmo com a viabilização da área pela gestão atual o município deixa os indígenas sem muitas condições de sobrevivência, pois os serviços de assistência raramente são encontrados. A única face clara destes “serviços” é o Bolsa Família. Cabe observar que na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul encontramos alguns ganhos do ponto de vista da legislação como o artigo 264 5 4 Esse foi construído pelos próprios moradores da comunidade, durante a construção das casas esse serviu de moradia para muitas familias. 5 Dos Índios Art. 264 - O Estado promoverá e incentivará a autopreservação das comunidades indígenas, assegurando-lhes o direito a sua cultura e organização social. § 1º - O Poder Público estabelecerá projetos especiais com vista a integrar a cultura indígena ao patrimônio cultural do Estado. § 2º - Cabe ao Poder Público auxiliar as comunidades indígenas na organização, para suas populações nativas e ocorrentes, de programas de estudos e pesquisas de seu idioma, arte e cultura, a fim de transmitir seu conhecimento às gerações futuras. § 3º - É vedada qualquer forma de deturpação externa da cultura indígena, violência às comunidades ou a seus membros, bem como a utilização para fins de exploração. § 4º - São asseguradas às comunidades indígenas proteção e assistência social e de saúde prestadas pelo Poder Público estadual e municipal. Art. 265 - O Estado proporcionará às comunidades indígenas o ensino regular, ministrado de forma intercultural e bilíngüe, na língua indígena da comunidade e em português, respeitando, valorizando e resgatando seus métodos próprios de aprendizagem, sua língua e tradição cultural. Parágrafo único - O ensino indígena será implementado através da formação qualificada de professores indígenas bilíngües para o atendimento dessas comunidades, subordinando sua implantação à solicitação, por parte de cada comunidade interessada, ao órgão estadual da educação. 35 que atribui aos municípios em conjunto com os estados e à União a responsabilidade de garantir aos índios seus direitos fundamentais. O grupo Kaingang pesquisado por nós sofreu angustias durante os primeiros meses no atual local em que foi consolidada a nova aldeia, pois alguns vizinhos exteriorizaram o estereótipo tradicional de que o índio é bêbado, baderneiro, festeiro e sem educação. Sem dúvida, tal postura constitui-se numa forma preconceituosa de conceber os povos e coletividades indígenas. Esta visão é construída pelos discursos de grupos dominantes e pelo senso comum a fim de conceber como o ideal o desaparecimento dos índios. O conjunto desses discursos modelaram políticas que foram fortemente aplicadas durante o período de funcionamento do SPI que tinha como ideal a assimilação dos grupos indígenas a sociedade nacional. Por sua vez, a Funai durante os seus primeiros anos de funcionamento fortaleceu essa política integracionista e assimilacionista. A Constituição Federal Brasileira promulgada em 1988 retira o índio de sua “incapacidade natural” que era abonada pelo fato dele ser considerado um cidadão tutelado pelo Estado até a alteração desta. Na constituinte temos o capítulo VIII, intitulado “Dos Índios” em que seu primeiro artigo 231, fala o seguinte: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficandolhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, 36 ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé. Analisando do artigo número 231, colocado acima. Podemos tomar algumas posições sobre a realidade prática desta legislação. A legislação exposta acima tomando como exemplo inciso 5º, o qual afirma que os povos indígenas podem ser retirados de suas terras, entre outros a caso de interesse do país. A passagem do inciso 5º deixa claro que o tal interesse do país, ou melhor, dos representantes políticos, é diferente dos interesses indígenas. Presentemente temos como exemplo claro o projeto de construção da Hidrelétrica de Belo Monte, na cidade de Altamira no Pará. Os indígenas que vivem ao redor do rio Xingu, que sofrerá o barramento, serão retirados compulsoriamente de suas terras, haja vista que o projeto é considerado de interesse da soberania do país. Assim podemos associar a questão dos Kaingang em São Leopoldo que ainda não tem seu território reconhecido pela União, e sim apenas o reconhecimento de sua existência enquanto grupo étnico diferenciado. Enquanto a posse da terra estiver titulada em nome do município de São Leopoldo, teoricamente a legislação existente não protege os Kaingang de uma possível desapropriação. Não estamos falando que existem rumores sobre esse assunto, pois aparentemente não existem, mas devemos pensar sobre o que está vigente especificamente em relação ao grupo indígena de São Leopoldo quanto à sua proteção territorial. A comunidade já está consolidada em muitos aspectos. Existem dentro da aldeia Voga duas igrejas evangélicas, a pequena estrutura da escola, o centro cultural, e as em torno de 23 casas6. Já em termo de organização política da comunidade, está possui: o cacique, o vicecacique, o conselheiro. Os membros de tais posições são escolhidos pela comunidade em reunião. Não tivemos infelizmente a oportunidade de participar de alguma delas. Assim o cacique é escolhido, o vice-cacique geralmente é o cacique que por algum motivo deixou o cargo7, e o conselheiro é uma pessoa com experiência de vida e reconhecido pela população da aldeia como capaz de exercer tal função. 6 7 Não contando as que até o termino das observações não estavam terminadas pelas empreiteiras. Conforme informações dadas pelos sujeitos pesquisados, geralmente a troca de liderança ocorre quando: o atual resolve deixar o posto por cansaço; a comunidade não está satisfeita com as posições tomadas pela liderança; briga entre grupos de interesse. Durante o tempo que pesquisamos o grupo houve a troca de cacique na 37 Permanece na aldeia a figura da liderança espiritual, o Kuijã, embora essa nos últimos anos venha perdendo espaço na religiosidade do povo Kaingang, não só no grupo pesquisado, mas no conjunto dos grupos e coletivos Kaingang no sul do Brasil. Por sua vez as igrejas, principalmente as evangélicas, chegam com propostas alternativas aos modelos impostos pelos católicos e exercem em nosso entendimento um papel muito mais de levantar o “ego” individual dos indígenas do que simplesmente o louvar a um senhor. Claro que desta maneira os costumes sempre são colocados como inferiores ao do “branco”, assim a procura pelo Kuijã vem diminuindo e o interesse em se tornar um (a) líder espiritual vem diminuindo nos kaingang. Embora as igrejas evangélicas preguem discursos muitas vezes enaltecedores dos costumes “brancos civilizados” o grupo da aldeia Voga segue uma determinada unidade em comum, pois todos moradores falam continuamente a língua de seu povo, e isto os faz se diferenciar de nós não indígenas. Ademais existe um forte interesse dos moradores desta aldeia pesquisa em manter esse costume em suas crianças e para isso apostam em modelos de educação escolar e não escolarizadas para manter essa característica viva. Em algumas visões de integrantes da aldeia, identificamos divergências sobre qual a forma de preservar a língua, mas essas diferenças se complementam quanto à finalidade das propostas que é manter as gerações falantes da língua kaingang e significar qualitativamente os valores tradicionais Kaingang com as nuances encontradas atualmente no (des)encontro com os representantes da sociedade envolvente como um todo. 3.1 ESCOLA NA ALDEIA KAINGANG Como já referido neste trabalho, a instituição escolar sem dúvidas é um advento de fora da realidade dos povos indígenas e, se os formos pensar a 500 anos atrás, o que existia era somente os processos educativos que os integrantes de determinada etnia recebiam dos mais velhos para desta forma se tornar adultos responsáveis e integrados no seu meio social. Integrar a pessoa ao meio social em que vive é o papel que a escola desenvolve em todas as sociedades, essa integração se pressupõe certa criticidade por parte dos professores, planejamento de ensino adequado e comprometimento dos responsáveis pela criação da criança no meio escolar. comunidade e desta maneira conseguimos tais informações, no entanto o verdadeiro fato que desencadeou a saída da liderança não nos foi revelada e sim esses três aspectos acima citados por diferentes grupos da aldeia. 38 No entanto, o cenário que é mais comum na sociedade moderna é o da escola do bairro da casa do estudante. Nela o estudante estuda toda a sua escolarização, seus responsáveis só aparecem na escola quando são chamados pela diretoria ou quando tem que pegar o boletim de seu filho. Neste contexto não conhecem as pessoas que “educam” seus filhos, não os acompanham nos estudos e quando perguntados pelos filhos alguma coisa de sua história, generalizando, fazem pouco caso ou não respondem. A escola localizada na aldeia Kaingang em São Leopoldo nos apresenta um cenário um pouco diferente do que relatamos no parágrafo acima, pois devido ao pouco espaço territorial da comunidade e a união em torno da identidade kaingang que os faz “iguais” a relação dos moradores com a escola é outra. O que faz essa relação ser diferente é o que vamos ver no decorrer do trabalho. Fotografia 4 – Escola na aldeia Kaingang Voga em São Leopoldo Fonte: Registrada por Diego Severo A escola da aldeia não tem uma estrutura adequada de ensino, ela se constitui de uma pequena sala com aproximadamente 36m², onde 2m² destes são a cozinha da escola. Compõem-se de vinte classes em boas condições de uso, vinte e uma cadeiras em condições de uso, um quadro negro de dois metros de comprimento por um metro e dez centímetros de 39 largura, não existe mesa diferenciada para os professores, tem três estantes com muitos livros didáticos de 1º ao 5º ano. A escola segue a estrutura de uma casa e não possui forro, sem proteção para a fiação da energia elétrica, a porta não possui fechadura existindo para tranca lá dois buracos, um na porta e outro na parede - onde passa uma corrente e nesta é colocado um cadeado, a chave deste se encontra com o cacique, os professores e funcionários. As janelas da escola estão com muitos vidros quebrados, as paredes estão com a madeira desnivelada e, desta maneira, no inverno as condições de estudos das crianças fica prejudicada pelo frio que faz nesta região do país. A cozinha possui uma geladeira, um fogão, uma pia com armário e outro aéreo logo acima desta. Fotografia 5 – Estrutura interna da escola na aldeia Kaingang Voga em São Leopoldo Fonte: Registrada por Diego Severo As aulas funcionam em dois turnos, manha e tarde, onde são ofertadas os cinco primeiros anos do ensino fundamental. No período da manha funciona os dois primeiros anos, a turma é multisseriada, cabe ao professor administrar quais conteúdos abordará com cada aluno, pela manha matriculados existem 11 crianças, sendo 3 no 1º ano e 8 no 2º ano. No período da tarde funciona a turma que abriga o 3º, 4º e 5º ano tendo matriculados no total 20 crianças, sendo 12 no 3º ano, 5 no 4º ano e 3 no 5º ano. Após o 5º ano as crianças vão estudar na escola mais próxima da aldeia que lhe possibilite continuar nos estudos. 40 A escola fica localizada na posição central da aldeia, logo na frente desta está o centro cultural construído há pouco tempo que atualmente serve para abrigar algumas famílias. Então pela posição esta acaba virando referencia para a comunidade e é onde são tomadas as decisões políticas da comunidade. Durante as observações, principalmente no período da manhã, enquanto estava tendo aula na escola, um grupo de mulheres se sentava em roda na frente da escola para tomar chimarrão e conversar, sempre alguma criança via sua mãe e lhe pedia alguma coisa, então, logo alguém aparecia e o pedido era realizado. Esse grupo de mulheres estava em plena harmonia com o chimarrão, sem a presença de homens, conversavam no sol quando a merendeira da escola se uniu a este grupo e a relação “mulheres no chimarrão” e “ambiente escolar” ficou mais entrelaçada, pois a água acabou algumas vezes e a cozinha da escola estava em pleno funcionamento para abastecê-las. Quando o professor anunciou o horário do intervalo por volta das 10 horas algumas crianças foram para o lado de suas mães, enquanto outras pegavam o lanche oferecido pela escola e logo se dedicavam para as brincadeiras. Durante o período de observação muitas outras formas de interação direta entre comunidade e escola foram constatadas, estas serão abordadas conforme a necessidade dentro do presente trabalho. Os diários de campo elaborados durante as visitas são parte integrante, constando nos anexos. A escola da aldeia está vinculada legalmente a uma escola estadual localizada no Bairro Feitoria, portanto, a estrutura escolar da aldeia é uma extensão desta escola. Os professores e funcionários da escola que funciona na aldeia são contratados do Estado do Rio Grande do Sul, via contrato temporário, pela 2ª Coordenadoria Regional de Educação de São Leopoldo8 e lotados nessa escola9. Assim, toda a estrutura da escola na aldeia fica dependente das nuances da gestão da escola a qual “pertencem” e, segundo a gestão da escola, toda a verba destinada para a estrutura da aldeia vem “separado” do montante da escola. As compras que os indígenas necessitam são solicitadas para a direção da escola, o caderno ponto dos professores e funcionários é assinado na estrutura “oficial” da escola, a matricula das crianças indígenas também é realizada na sede da escola. Segundo a gestão da escola a qual a escola da 8 9 2ª CRE Essas informações foram concedidas por meio de entrevistas, tanto com os professores indígenas, como com a direção da escola. 41 aldeia é vinculada, a decisão sobre a vinculação foi imposta pela 2ª CRE, quando os indígenas foram alocados no Bairro Feitoria existiu uma articulação da prefeitura municipal com o estado e a escola simplesmente abraçou a situação. Assim, com a gestão da escola que “coordena” a escola da aldeia, com os professores e lideranças indígenas foi relatado que se criou a Escola Indígena para funcionamento na comunidade e agora se faz necessário passar por um processo de autorização de e para isso os indígenas precisam de uma série de requisitos a ser cumpridos, tais como a apresentação de estrutura adequada para o funcionamento das turmas, quadro de funcionários incluindo diretor, funcionários e professores, proposta pedagógica e etc. Os indígenas estão interessados no processo de desvinculação, pois segundo estes se torna incomodo ter de responder legalmente a outra escola e desta maneira não exercem a autonomia que a legislação os beneficia. Logicamente estes exercem uma educação diferenciada, tomando como princípios os seus próprios processos educativos, falam a língua Kaingang, mas a autonomia ainda não está completa. Até o nome da futura escola indígena já foi dado, será “Voga”, o mesmo nome da aldeia, que segundo um dos professores é um bichinho que aparece de oito em oito anos dentro da taquara e tem um significado especial para os moradores da comunidade. Da parte da direção a qual pertence à escola da aldeia, estes querem os indígenas autônomos o mais rápido possível, pois assim deixam de ter essa responsabilidade. Contudo é notório no contato que tivemos com a equipe diretiva o aspecto com que falavam dos indígenas como “inferiores”, inferindo a eles certa limitação intelectual não encontrada no “branco”, não acreditando que estes teriam capacidade de administrar uma escola, fazendo sempre referência de que os índios sabem “direitinho” os seus direitos assegurados na constituição e leis complementares, mas quanto ao ato de cumprir horário e trabalhar corretamente são um pouco lentos. Em conversa com a equipe diretiva nos foi relatado que os indígenas estavam em fase de criação da escola indígena, mas para isso ainda faltava à autorização do Conselho Estadual de Educação que só poderia autorizar a criação da escola depois de comprovação que existe uma estrutura (salas, secretaria, refeitório e outros aspectos que constituem uma escola) para tal. Foi mencionado que essa estrutura não existia, que quando convidavam os professores da aldeia para participar das reuniões para apresentação das diretrizes na maioria das vezes os índios não apareciam. Algumas vezes o professor do turno da manhã aparecia nas reuniões, este sendo para a diretora o mais compreensivo contato 42 da escola com a aldeia. Relatou que quanto à organização dos índios com os processos administrativos da escola eram bem desorganizados, se atrapalhavam com o número de documentos. O mais desorganizado na opinião da equipe diretiva é o professor do turno da tarde, segundo a mesma, recebem reclamações de alguns pais de estudantes da escola quanto ao descompromisso do professor com os horários das aulas e com algumas faltas. No entanto, sempre ouviu que o professor da turma da manhã cumpria seu horário devidamente, conforme estipulado pela escola. Perguntamos como acontecia a matrícula dos alunos indígenas para estudar na escola da aldeia, foi dito que o processo era o mesmo dos demais alunos, os pais vinham até a escola para matricular seus filhos e quando estes não traziam algum xerox dos documentos, a escola tirava uma cópia com preço menor. A secretária da escola mencionou que às vezes, faltando algum documento ou a assinatura para a matrícula, os próprios professores assinavam a matrícula dos alunos. Perguntamos se após o término da 4ª série os alunos iriam estudar na escola, confirmaram que tinham alguns alunos indígenas e relataram que seu comportamento é de bastante calma, timidez e respeito, que eles não sofriam qualquer tipo de discriminação na escola, nem por colegas ou professores. Mencionaram que os professores de 6º ano ou 5ª série comentam bastante que os alunos índios têm mais dificuldades no aprendizado que os demais, que neste aspecto os alunos indígenas eram mais limitados10. Quanto às percepções de limitação que a equipe diretiva da escola reconhece estão diretamente ligadas ao seu olhar ocidental de aprendizado que concebe os conhecimentos criados empiricamente com uma aproximação com a natureza e respeito à tradição como não dignos de serem reconhecidos como importantes para a atualidade. Toda a parte burocrática de viabilização de recursos para determinados reparos que eventualmente tem de ser realizado na atual estrutura da escola deve ser solicitado para a direção da escola estadual que é a responsável legalmente pelas aulas na aldeia, sobre as diferenças das escolas, a escola da aldeia e a escola a qual ela pertence é evidenciada em entrevista com a equipe diretiva: [...] nós temos toda uma infra-estrutura maior já, porque já tem toda uma escola em andamento eles não. Eles tem aquele material básico, e até porque eles não tem nenhuma, não tem nem verba própria. Eles não tem. Então eles vem aqui, eles 10 Essas constatações foram retiradas dos contados com a equipe diretiva da escola a quem pertence a escola da aldeia. Nenhum dos termos citados foram reproduzidos igualmente a fala dos informantes e a visão exposta foi interpretação do autor deste trabalho. Quando falam de “lentos” no trabalho estão comparando a visão do branco e a reinterpretando para julgar um indígena (vivente de outra cultura) que não pode ser comparado de maneira equitativa, pois seus valores e costumes são outros. 43 pedem o material a gente fornece o giz, a folha de oficio, a merenda, a classe essas coisas a gente vai dando conforme a necessidade deles. E eles é só um pavilhãozinho, é só uma escolinha. Até o ano passado, no inverno eles vieram pedir, mata junta que a escola tinha frestas, e tava frio e daí a gente comprou, não sei quantos metros de mata junta, os pregos. Eles arrumaram, fogão a gente deu. Quando eles não tem as coisas a gente providencia, sempre com um certo controle, porque a gente também não tem tanta verba disponível. Porque a partir do momento que a escola fosse deles, sozinhos a verba deles é muito maior. Como eles índios. Mas como aqui nós, a gente tem, eles tem a verba que a gente ganha por aluno é muito pouco. Essa dependência administrativa da escola da aldeia acaba fortalecendo a centralidade de poder da instituição legal “branca” posta sempre à frente dos interesses dos indígenas, e quando os reparos são necessários os indígenas participam deste processo: Eles arrumam, eles fazem. Até porque eu acho entre eles existe uma parceria, entre a própria aldeia né. Porque lá na verdade, quem manda lá é o cacique. Até na escola, o cacique manda. Daí eles. E eles fazem e eles são bem parceiros, porque eles pegaram, a gente mandou a mata junta, os pregos que eles queriam e depois foi lá eles arrumaram tudo direitinho. 11 Na fala acima podemos identificar que mesmo por parte da equipe diretiva da escola a qual é vinculada a estrutura escolar da aldeia, se percebe que os indígenas tomam a instituição como sua e vêem que ela deve estar apta para abrigar as crianças durante todas as estações do ano, se disponibilizando para eventuais reformas necessárias na estrutura sem ônus financeiro. No entanto, percebe-se que a equipe diretiva não se aproxima da realidade da escola da aldeia conforme identificamos a seguir quando perguntamos sobre a visita da equipe à aldeia: Muito pouco. Esporadicamente. É uma coisa que não nos dá prazer, foi uma coisa que colocaram para gente, e nós fazemos a nossa parte e deu. A gente não faz nada além disso. Se nó poderíamos fazer, não sei. Ninguém quer a gente não tem disponibilidade para isso, tanto é que tu pode vê, hoje da direção eu estou sozinha aqui. Então como é que tu ainda vai disponibilizar tempo para ir atender eles. Não tem como, eles até gostariam que agente fosse mais lá, mais ao mesmo tempo quando a gente vai. Eles se sentem meio constrangido, a gente já foi lá em algumas situações e parece assim que daí eles ficam meio que, não sei te explicar eles não recebem a gente com tanta naturalidade, que eles entram aqui na nossa escola, porque quando eles vem para assinar o ponto, eles assinam o ponto aqui. Então eles vem, eles entram assinam o ponto, eles conversam, se eles precisam pedir alguma coisa eles pedem. Quando eles precisam de alguma coisa da secretaria também eles chegam, eles entram, não é que eles são atendidos assim do lado de fora, não, como a comunidade, eles entram eles tem acesso aqui dentro bem tranqüilo, mas eles não nos dão esse acesso. Eu acho que assim, é próprio uma situação constrangedora, porque aqui eles tem tipo uma casa bonita, e a deles não é, eu tenho a impressão que eles se sentem assim, um pouco. Não sei te dizer isso é opinião minha, né. 12 11 12 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 15 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS. Ibid. 44 O relato mostra que existe um grande déficit no preparo e não existe formação para as escolas que eventualmente tem administrativamente vinculada escolas em aldeias, a equipe diretiva não visita uma estrutura que juridicamente é de sua responsabilidade, exemplificando que infelizmente as decisões são tomadas por uma minoria no poder que simplesmente quer impor a legislação às escolas e com isso esquece que pode estar criando percepções ambíguas nos atores que estão de ambos os lados desta relação, neste caso equipe diretiva e indígenas, o Estado quer cumprir a legislação, mas não prepara seu quadro de funcionários para esse fato, demonstrado desta maneira pela direção da escola: Foi à prefeitura que colocou, eles estavam lá, e era uma zona de risco né, uma beira de estrada. Daí a prefeitura colocou eles ali, e via CRE automaticamente eles vieram para nós, porque antes eles estudavam no Mario Quintana, eles não tinham a escola independente, eles estudavam todos lá na escola Mario Quintana, e a partir do momento em que eles vieram aqui acho que um ano, ou dois eles estudavam aqui também, aí depois que eles tiveram a escolinha deles lá. Isso foi via CRE né à gente não.13 Identificamos no relato que a direção da escola se afasta de qualquer obrigatoriedade com a escola da aldeia, somente estão cumprindo determinações vindas da 2ª CRE e não demonstraram nos encontros durante a pesquisa nenhum movimento realizado pela escola de tentar viabilizar aos indígenas condições para se estruturarem e conseguirem sua total autonomia conforme abrange a legislação. Isso demonstra a total falta compromisso com uma educação diferenciada para os indígenas, somente os colocam como vítimas das imposições do Estado e nada fazem para “auxiliarem” os índios no processo de criação de escola própria ou reivindicar formação especifica para o exercício da alteridade e uma forma diferenciada de trabalho que necessitam os povos indígenas. O funcionamento da escola na aldeia, no entanto, é diferenciada a organização é basicamente indígena e os conteúdos é pensado pelos próprios professores da comunidade como explicitaremos a seguir. Os trabalhadores da escola da aldeia são todos indígenas da etnia, sendo dois professores, uma merendeira e uma funcionária. Quanto ao fato dos professores serem indígenas revela que a legislação está sendo cumprida neste ponto, mais revelador é o fato das 13 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 15 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS. 45 funcionárias serem também Kaingang, todos contratados do Estado do Rio Grande do Sul. A estrutura do quadro de profissionais da escola afasta desta uma postura autoritária de fora da realidade Kaingang, os trabalhadores da escola têm seus filhos estudando ali, seus sobrinhos, parentes em geral o que os torna muito mais responsáveis pelo desenvolvimento daquele indivíduo do que nas escolas não indígenas. A responsabilidade pelo estudante é muito maior na escola da aldeia, pois o professor, como parente do aluno e necessariamente de seus pais, também tem o dever de alertar e junto com os responsáveis pensar ações para uma mudança de comportamento do estudante. Todo o contexto da escola entre a comunidade é diferente de qualquer outro tipo de realidade, pois junto, nos finais de semana, o professor serve assessoria nas decisões da liderança da comunidade, os alunos procuram o professor para perguntar qual o dia da avaliação. O mesmo acontecendo com o restante dos funcionários da escola. Os professores por serem moradores da comunidade e indígenas, Kaingang, falam a língua ancestral. O professor responsável pelo turno da tarde, onde funciona o 1º, 2º e 3º anos, tem formação em nível médio na modalidade de Magistério Indígena Kaingang e atualmente estuda Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. O professor responsável pelo turno da manha, onde funciona o 1º e 2º anos, tem somente formação de nível médio modalidade normal, nas visitas realizadas este demonstrou bastante interesse em continuar os estudos embora as atuais condições não possibilitassem este aprimoramento. Quanto a este ponto podemos realizar uma associação um tanto curiosa, que sem dúvidas é relevante para entendermos o significado da escola para os indígenas de São Leopoldo, o professor do turno da tarde da escola da aldeia pertence à metade Kaingang Kamé, da marca comprida. O professor do turno da manha pertence à metade oposta, portanto Kairu da marca redonda. Como já mencionamos anteriormente as principais características destas metades, tem por definições diferenças, tais como: a diferença nas marcas, o Kamé é associado à posição oeste o Kairu a leste, no mito de origem Kaingang, o Kairu é ligeiro/criativo o Kamé é pesado. Assim como fizemos a associação com o casamento na escola é a mesma forma, pois para esta poder ter harmonia nas decisões políticas e os estudantes poderem ter uma rotatividade quanto ao modo de lecionar dos dois professores, assim durante a formação do estudante na escola da aldeia ele estudará com professores, um de sua mesma marca e outro da marca oposta, o que sem dúvida acrescentará grandes conhecimentos para sua vida. 46 Durante as visitas à comunidade e à escola, percebemos que esta está cada vez mais próxima dos moradores da aldeia do que de qualquer outra coisa que a instituição escolar também possa representar. Os estudantes da escola da aldeia, em sua maioria, têm o estereótipo esperado do indígena, olhos levemente puxados, cabelos lisos e negros, e de cor que poderíamos associar com a da cuia do chimarrão. Os alunos freqüentam as aulas para nenhuma surpresa com roupas “ocidentais”, o fato que chama a atenção é o calçado, em maioria não o usam, usam chinelos e sempre se esquecem deste quando algo mais interessante os chama atenção, portanto o caminhar de pés de calços das crianças na escola e na aldeia é algo normal do grupo. E os profissionais da escola em nada reprimem esta atitude. Os materiais escolares utilizados pelas crianças são simples, a maioria, não usa mochila chegam à escola somente com um estojo e com o caderno de aula14. A respeito dos materiais necessários para os alunos na escola, o cacique da comunidade em conversa ressaltou a importância das crianças não precisarem estudar em escolas fora da aldeia, pois se isso acontecesse os moradores teriam dificuldades para manter os gastos necessários, tais como, mochila, caderno, tênis, calças e camisetas da “moda” ocidental, artefatos que são implicitamente “obrigatórios” nas escolas não indígenas, pois ali os alunos indígenas estarão expostos como diferentes e além da dificuldade de falarem o português não querem sofrer o preconceito que o índio sofre quanto as suas vestimentas, sua língua e seu modo de viver, eles tentaram se aproximar o máximo possível, ou seja, se fantasiarão de “brancos” para serem aceitos pelos colegas e/ou até professores ou simplesmente passarem despercebidos diante dos demais alunos não índios. Este fato revelado pela liderança da comunidade dá legitimidade para a existência da escola e mostra uma das facetas que a educação diferenciada para os indígenas é necessária e importante para a manutenção da cultura destes povos. Durante o período de observações foram realizadas importantes ponderações sobre o comportamento dos alunos em sala de aula e a relação com os professores. Em ambos os turnos, os estudantes ficam organizados conforme a posição habitual das classes do modelo ocidental, enfileiradas uma atrás da outra com suas respectivas cadeiras, sobravam sempre algumas classes que estavam empilhadas no canto da escola, os professores chegavam sempre sem material em mãos, durante a exposição da matéria no quadro os alunos levantavam de suas cadeiras e se aproximavam do quadro a todo o momento para sanar alguma dúvida em relação à escrita do conteúdo ou para perguntar o que significava alguma palavra. Ambos os 14 Este fato se explica pela localização da escola próxima a casa dos alunos. 47 professores não demonstravam insatisfação com a inquietação dos alunos nas cadeiras, essa inquietação não incomodava o andamento da aula, pois somente se levantavam em função de dúvidas e não causava alvoroço nos demais alunos, não gerando desta maneira a famosa bagunça. Além de se levantarem para sanar dúvidas, por vezes eles saiam da sala de aula, na maioria das vezes era para logo voltar à aula, quando isso não acontecia o professor que estava atento ao aluno que saiu dava uma espiada pela porta da escola para ver o que havia acontecido tentando saber onde o aluno estava. Quando este voltava e era sabido que tinha se afastado da aula para brincar com amigos o professor lhe repreendia com palavras fortes sempre ditas em kaingang15. Nas duas turmas são encontrados contextos um pouco diferentes, na turma da manha, onde estudam os alunos do 1º e 2º anos estes têm idade em torno de seis a nove anos estes vão para a escola praticamente falando somente a língua Kaingang, o professor durante as aulas fala somente o Kaingang raramente fala em português, pois os alunos têm bastante dificuldade no entendimento. Na turma da tarde encontramos outro cenário, os alunos já são o que poderíamos chamar de bilíngües, falam a língua kaingang e o português, nos anos que são ofertados eles têm as disciplinas especificas do currículo, entre estas está incluída a língua Kaingang, tivemos a oportunidade de observar uma aula de kaingang e notamos que os alunos são falantes da língua, na escola eles são apresentados ao mundo da escrita. Muitos não identificavam o som que falavam com o significado dos símbolos escritos do alfabeto, são falantes, mas a escrita e a leitura são introduzidas na escola a partir do 3º ano do ensino fundamental na escola da aldeia. Para fixar à escrita e a leitura em Kaingang, na escola estão colados cartazes com palavras em kaingang e o alfabeto da língua fica pendurado em uma das paredes da escola. A aula de Kaingang foi expositiva e dialogada, no primeiro momento o professor mencionou as vogais, depois as consoantes, após o alfabeto por completo. Fez com que os alunos participassem da aula os pedindo para que um a um falassem uma letra do alfabeto, os corrigindo quando necessário, após varias rodadas pelo alfabeto mencionou alguns exemplos diretamente ligados à realidade do grupo para significar o aprendizado letrado da língua com a fala. Exemplificou com as palavras: casa, cunhado, árvore, milho, branco, chapéu, flecha, pedra, sol, cabo, cachorro e etc. Como exercício avaliativo no final da 15 Quando falo de repressão aos alunos que “aprontavam” em palavras em Kaingang pode se dar pela minha presença em sala de aula, ou também pelo costume de se comunicar na língua ancestral. 48 aula o professor passou uma série de palavras em kaingang no quadro pedindo para os alunos colocarem o significado destas em português. Sobre o fato dos alunos indígenas serem falantes da língua kaingang e terem certa dificuldade com a língua portuguesa nos primeiros anos do ensino escolar pode-se constatar que é um processo educativo não formalizado da comunidade, o aprendizado da língua kaingang acontece no contato com os pais, seus parentes, vizinhos, toda a comunicação da comunidade acontece em kaingang é um elemento identitário relevante que constitui a criança indígena desde sua concepção. Portanto quando estes alunos que somente falam a língua materna chegam à escola é necessário que os profissionais sejam falantes da língua, é o que acontece na escola da aldeia. O professor do turno da manhã, que tem formação somente no ensino médio, fala a língua perfeitamente e nas observações realizadas neste turno constatamos que o desgaste do profissional é muito maior do que nas escolas não indígenas, o professor tem que atender as duas séries em somente uma turma, explicar coisas diferentes e acompanhar os processos dos alunos. Pode-se dizer que a formalização destes processos pela instituição “escola” faz com que parte do que se chama de educação diferenciada esteja sendo colocada em prática na comunidade em que se realizou a pesquisa. Muitos aspectos podem ser levantados sobre observações realizadas na escola da aldeia mostrando que essa instituição introduzida pelo mundo ocidental aos costumes tradicionais indígenas que por muito tempo foi, e em determinados lugares ainda é, usada para introduzir e posteriormente fazer com que os povos indígenas se integrassem totalmente ao modo ocidental moderno de vida do “branco”, está sendo utilizada pelos Kaingang de São Leopoldo da maneira que a enxergam como mais útil, desta maneira a utilizando para a reprodução de seus costumes entre os mais jovens e buscando novos significados para a modernidade. Um aspecto importante que mostra a apropriação do espaço escolar pela comunidade em seu entorno é a forma como os professores da escola relacionam os processos de aprendizagem dos alunos. Aos professores perguntei se a organização curricular das séries/anos16 era trazida pela escola a qual pertence à escola da aldeia, me relataram que 16 Coloquei séries/anos, pois somente neste ano a escola da aldeia está começando a se adaptar a nova nomenclatura. 49 participam esporadicamente de algumas reuniões, as que são chamados, para elaborar algumas coisas, mas nem sempre participam, pois a proposta pedagógica que querem introduzir a eles é o modelo do “branco” e esse modelo não serve aos interesses dos índios. Mencionou que segue um plano curricular genérico para os povos indígenas e faz uma mistura com a proposta pedagógica do “branco”, ficando 50% de proposta ocidental “branca” e 50% de proposta indígena, na atualidade a escola da aldeia por ser juridicamente vinculada à outra escola17 não tem autonomia para criar oficialmente um Plano Político Pedagógico (PPP)e, enquanto não ser oficialmente criada a Escola Indígena, a organização dos conteúdos será organizada da maneira exposta sem alterar a rotina da comunidade. É importante o destaque para determinadas situações acontecidas durante a pesquisa para o real entendimento da relação da comunidade Kaingang com alguns elementos introduzidos pelo mundo ocidental à tradição indígena. Um elemento forte de fácil identificação entre os Kaingang é o respeito pelos mais velhos, como geralmente é costume entre os povos indígenas, esse respeito é alimentado na rotina escolar, um exemplo é o fato dos professores da escola serem chamados de “tio” pelos alunos. Esse ato em qualquer escola não indígena é reprimido nas crianças desde os primeiros anos da escolarização, na aldeia não percebi incomodo com isso, em entrevista com o professor do turno da tarde me relatou que os indígenas têm outra visão a este fato: É que na verdade pra nós não existe professor, na nossa linguagem não existe, mas esse ser inteligente é o respeitado desde parentes assim, ou desde mais velhos por isso que nós interpretamos o mais velho então o „tio‟ ele tem um vivencia e um conhecimento para ensinar eu mais novo, vamos dizer né, então vai ser o tio. E é questão de organização né, a pessoa mais velha é o tio, o avô é o livro de história da comunidade então é por aí que a gente vai acolhendo as pessoas pela questão do respeito. Então ser tio é ser o segundo pai, que o segundo pai na escola é o professor, e o tio vem a ser o segundo pai. Então isso pra nós é aceito, porque também pelas marcas tribais né, muitas vezes os alunos chama a gente de irmão que tem a mesma marca minha, e muitas vezes de cunhado né que a menina que é da minha marca contrária ela é minha cunhada.18 Como ressaltado pelo professor entrevistado a educação para os indígenas, especificamente os Kaingang, o adulto é visto como o detentor de uma sabedoria, conhecimento acumulado, que pode ensinar para os mais jovens estes conhecimentos. Nesse contexto aparece a figura da escola que por si mesma não altera essa estrutura de 17 Quanto à escola à qual “pertence” a escola na aldeia, o Projeto Político Pedagógico da escola não foi alterado após o surgimento da demanda pela educação indígena. A equipe diretiva justifica que não foi dado suporte para a mesma no “trato” com a diferença cultural que ali se colocava como desafio. 18 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 50 responsabilidades, o adulto que ensina na escola é sim o tio, primeiro por ser um adulto Kaingang e por poder de fato ser tio da criança devido ao sistema de metades kaingang. Então para o kaingang o tio é a pessoa que tem sabedoria para transmitir. O professor do turno da manha segue no mesmo caminho colocado no trecho acima, mas destaca o fator costume: Eu vejo normal assim né. Porque que a nossa aldeia é pequena né e tem aquele costume né os pais dizer que as pessoas mais velhas as crianças tem que chamar de tio, os mais velhinhos tu tem que chamar de vô. Ali nem que tu não é parente chegado, mas eles chamam você de tio ou é costume né. Já desde pequenos né, aí eu acho normal as crianças me chamarem de tio, aí tem uns que me chama de professor, mas eu acho normal né. Eu não acho tão diferente assim. O costume evidenciado na fala do professor também pode ser ressaltado a incorporação do costume ocidental do respeito, mas é contraditório com a visão do ocidente quando esse fato se estende até a escola na aldeia. Porque a escola sempre foi colocada como uma instituição de neutralidade responsável pela formação do cidadão. Outro fato que mostra a apropriação da comunidade a alguns artefatos materiais ocidentais é o não reconhecimento do “branco” como superior. Durante o período da pesquisa, como já mencionado acima, estavam sendo construídas na aldeia algumas casas para os indígenas devido a um acordo com a Caixa, os objetos deixados pelos construtores das casas, tais como: carrinho de mão, caminhão no meio da comunidade, pá de pedreiro; todos esses materiais eram carregados pelas crianças caso esquecidos por longo tempo. O caso do caminhão foi clássico, este estava parado na frente da escola durante uma aula do turno da manha, os alunos saíram para o intervalo e após o lanche se colocaram para brincar, a primeira coisa diferente que encontraram foi o caminhão, logo subiram na caçamba deste, levaram cadeiras para cima, pulavam, dançavam e o professor e a merendeira da escola somente observavam para garantir que nenhuma criança se machucasse. Além dos elementos de fora da aldeia que as crianças se apropriam como espaço de brincadeiras e aprendizado com o diferente é visível na comunidade a colaboração das crianças no trabalho com o artesanato, junto com seus pais e irmãos as crianças participam da produção de cestos, casas de passarinhos, bolinhas de bambu. O trabalho das crianças não segue a lógica de mercado ocidental capitalista, elas não são cobradas pelos seus pais, elas junto deles fabricam algumas peças, destroem as mesmas após a fabricarem. Desde cedo ao contrário do que é relevante nas famílias tradicionais ocidentais, as crianças indígenas, 51 enquanto fabricam os cestos, estão com facas nas mãos isso significa que o trato com objetos vistos como “perigosos” por nós “brancos” para eles é visto como aprendizado e coloca na criança uma responsabilidade com o instrumento. Nas observações foi constatada a liberdade das crianças para suas brincadeiras, elas brincam em toda parte da comunidade, e por vezes na frente desta, este elemento constitui um elemento que parece central para os Kaingang a responsabilidade da comunidade com a criança, pois uma vez que por proximidade ou não todos os moradores da aldeia são parentes e logo o dever de zelar pela integridade física e moral da criança é de responsabilidade da comunidade e não somente dos pais ou parentes ligados diretamente. Isso ressalta aquilo que foi colocado pelo professor da escola da aldeia, que não somente por ele estar na posição que atualmente ocupa a de “professor”, que é responsável pela criança, antes deles ser professor ele é Kaingang morador da aldeia Voga em São Leopoldo, e por isso é responsável pelos menores de sua comunidade. Entre as crianças, assim como o grupo de moradores em geral da aldeia, falam a língua Kaingang. Esse fato é evidente, os kaingang se afirmam diante de nós “brancos”, não kaingang, através da linguagem. Quando os professores e a liderança da comunidade querem que nós não saibamos de algum assunto, ou mesmo quando querem fazer alguma brincadeira conosco e não querem que saibamos a fazem na língua ancestral, pois não a conhecemos. Na pesquisa aconteceram diversas situações que entre os falantes da mesma língua poderiam ser consideradas constrangedoras, mas principalmente após já realizados muitos contatos com os moradores da aldeia eles nos vêem como “amigos” e se permitem realizar algumas brincadeiras. Obviamente que após muitos contatos com a língua Kaingang sabemos identificar o significado de algumas palavras, mas jamais no curto período da pesquisa sairíamos com o domínio deste idioma. 52 4 A ESCOLA PARA OS KAINGANG EM SÃO LEOPOLDO Durante todo o período de pesquisa com os Kaingang podemos tirar algumas interpretações destes sobre o espaço escolar, e propriamente em sua visão seria educação que sem dúvidas foge do nosso olhar interpretativo ocidental moderno. A responsabilidade pela constituição do adulto Kaingang passa por uma totalidade que no enxergar do “branco” é uma tarefa desnecessária. Como ressaltado no inicio deste trabalho os povos indígenas sempre tiveram processos educativos na sua organização social. Tais se constituem do aprendizado da língua materna, do reconhecimento da organização tribal, do aprendizado para o trabalho com o artesanato, e outros processos já referenciados em mais detalhes. A escola como instituição ocidental, por muito tempo serviu para desconectar os povos ancestrais de seus costumes tradicionais, começando pela catequização como forma de domínio que fortaleceu o extermínio da língua original desses povos. No entanto nos últimos anos, a partir da promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, os povos indígenas, ao contrário do que anteriormente, são reconhecidos em sua organização social, sua língua é respeitada, seus costumes e sua maneira de viver são protegidos em artigos da constituição. Os povos indígenas têm o direito de serem ouvidos nos processos que envolvam a regulamentação, alteração, extração ou mesmo remoção de parte ou totalidade de seu território. No que diz a respeito da educação, a legislação está avançada se compararmos com períodos anteriores. Especificamente no caso da comunidade localizada em São Leopoldo, constatamos como evidenciado no capítulo anterior que existe uma escola na aldeia, com professores e funcionários indígenas, no entanto a autonomia desta é inexistente, pois é vinculada a uma escola estadual próxima da aldeia. A autonomia identificada é o descaso da equipe diretiva e do governo do Estado do Rio Grande do Sul quanto a estrutura da sala de aula, ao corpo de profissionais que foram incumbidos de subsidiar a instituição escolar na aldeia. Os professores e funcionários da aldeia são dedicados em seu trabalho, e notamos que o restante da comunidade se envolve na escola. Quando precisam de reparos, conforme 53 informações da equipe diretiva da escola, os indígenas pedem o material necessário para a escola à qual são vinculados e os mesmos realizam a reforma. A elaboração do calendário escolar é feito pelos professores índios, sem imposição direta da escola à qual “pertencem”, segundo os professores indígenas são convidados para a participação de reuniões pedagógicas que se propõem a discutir o currículo e o calendário escolar, mas não comparecem, pois a postura da gestão da escola é sempre de não entendimento quanto a suas diferenças e visões sobre a educação. É importante destacar que na aldeia foram identificados três discursos diferentes, os entrevistados foram os dois professores e a liderança da comunidade. Os professores tiveram respostas diferentes e o cacique foi totalmente ao oposto do caminho direcionado por ambos educadores. Analisaremos trechos de cada um dos discursos para tentar identificar, desta maneira, a origem e qual a perspectiva do interlocutor a partir da escola. As entrevistas foram realizadas em dias e horários diferentes, para os professores foi aplicada a mesma série de questões de caráter semi-estruturado, deixando assim, o entrevistador com liberdade para realizar alguma questão que não estava prevista. Ou mesmo eliminar alguma pergunta que por ventura já tenha a resposta contemplada pelo entrevistado. Para a liderança da comunidade Kaingang as perguntas foram diferentes dos professores. Realizaremos então um apanhado de respostas sobre algumas perguntas. A primeira delas foi “o que tu acha da escola dentro da aldeia?”. Essa pergunta foi aplicada aos professores indígenas, o professor do turno da tarde respondeu o seguinte: [...] agora ela tá servindo a comunidade. Porque no inicio né, quando a escola veio pra dentro da aldeia ela prejudicou né a cultura, a língua, a proposta pedagógica, diferente né. Vindo pra uma outra proposta pedagógica diferente e organização diferente, então nesses lado ele prejudicou um pouco, mas com o passar do tempo a gente foi concertando, acertando, entendendo a política dessa instituição e que hoje a gente adéqua essa realidade para a nossa realidade, então agora a gente tá aproveitando ela. As propostas boas né! Trabalhando essas propostas, passando essas oralidades pras escritas, registro e enfim tudo que é bom, que é ligado a uma educação escolar estamos fazendo essa transição, mas muita coisa ainda permanece na oralidade né, que não atingimos ainda a escrever, a registrar, muitas oralidades. Por que assim muitas coisas de oralidade a gente não consegue traduzir e escrever ela, porque a língua né, a língua a gente muitas vezes não consegue a tradução dele, a linguagem desse povo que tá vinculado a instituição escolar eu acredito que nem todos vão conseguir registrar. Mas muita coisa dá para você aproveitar sim dessa instituição, inclusive.19 19 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 54 O professor ressalta a importância de pensar a escola diferente dentro da aldeia, ressalta o aspecto histórico que essa instituição tem com os povos indígenas, que por muito tempo destruiu culturas e serviu para interesses escusos aos indígenas. Ressalta o ensinamento da escrita da língua indígena, pois anteriormente, com a proposta da escola de assimilar os indígenas a língua era menosprezada, hoje, existe um esforço para a reprodução desta na escola indígena, e, sobretudo, o ensino da escrita em língua indígena, o que sem dúvidas revela o aprimoramento da escola as demandas dos povos indígenas. O professor responsável pelo turno da manha, da escola da aldeia, para a mesma pergunta “o que tu acha da escola dentro da aldeia?”, responde sobre um aspecto mais local: O que eu acho? Eu acho, eu acho que sim, bom né, a gente trabalha com as mesmas crianças né que são daqui, a gente já é acostumado a trabalhar com eles né, a gente se entende um ao outro né, eu acho bom. Trabalhar com as crianças daqui. Esses anos que eu to trabalhando com eles, eu, cada vez mais to gostando né.20 A localidade e proximidade é o foco de entendimento para a fala do professor, acima citado, ele enfatiza a proximidade e o conhecimento das crianças. Isso revela que tendo uma estrutura preparada para a demanda da aldeia o ensino escolarizado pode ter resultados surpreendentes, pois os professores já conhecem os alunos e vice-versa o que sem dúvidas facilita o aprendizado. Outra pergunta que sem dúvidas é importante de analisarmos com cuidado, e para os povos indígenas é essencial para a reprodução cultural, perguntamos, “Porque ensinar Kaingang na escola?” aos dois professores indígenas e tivemos as seguintes respostas, primeiramente a resposta do professor do turno da tarde: A gente tem que fazer o currículo pra essa escola, a gente tem que fazer uma proposta pra essa escola, trabalhar inclusive a língua né, porque a língua ela é uma garantia de um povo, de uma etnia. A língua, a crença, a cultura então ela é importante para essas coisas. 21 Do professor do turno da manha tivemos a seguinte resposta: Ensinar pra gente, pra eles não perder a cultura né. E é também porque hoje em dia os rapaz novo, esses guri que estão estudando assim para conseguir um emprego aqui dentro da aldeia, tem que saber a escrita, sabe escrever em kaingang, saber ler 20 21 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 55 em kaingang, para poder conseguir senão o estado não contrata para trabalhar aqui dentro da aldeia. Só se consegue fora né, mas lá fora você tem que estar concursado, tem que está formado com a faculdade para poder contratar né. E aqui dentro da aldeia sabendo falar, escrever em Kaingang já contrata né. 22 Ambos os professores caminham pelo mesmo caminho, o de preservar a cultura Kaingang, o professor do turno da tarde continua pensando concomitantemente com a sua resposta a primeira resposta a de elaborar para essa escola na aldeia uma proposta de ensino diferenciado que ensine a língua do povo com conteúdos regulares. O professor do turno da manha pensa no mercado de trabalho junto da preservação cultural, evidenciando que para o indígena trabalhar dentro da aldeia deve necessariamente falar e escrever em Kaingang e trabalho para o índio fora da aldeia coloca como mais complicado. O mesmo caminho de reprodução cultural segue a liderança da comunidade, o cacique, em entrevista, que infelizmente não pode ser transcrita23, relatou que além do ambiente familiar vê como positivo na escola professores e alunos falarem e estudarem o Kaingang, pois desta maneira, o povo indígena ganha mais legitimidade diante das autoridades para reivindicar seus direitos. Os professores e a liderança indígena da comunidade Kaingang Voga de São Leopoldo foram perguntados sobre o seu processo de escolarização, de que área indígena são naturais, se estudaram em escolas em aldeias e como foi essa experiência. O depoimento escolhido para constar neste trabalho foi o do professor do turno da tarde que sem dúvidas mostra como realmente houve um esforço do governo federal em deslegitimar os processos educativos indígenas e impor métodos desconexos com sua realidade: Eu estudei em uma escola dentro da aldeia né, que aquele tempo ele pertencia, era as escolas eram federal né. Então quem comandava as escolas, a educação nessa época era a FUNAI, mas eu não estudava direito né, porque naquela época que eu iniciei os meus estudos na escola era na época do SPI, então tinha aquele dito trabalhos coletivos, então esse grupo de índios eles comiam no panelão foi naquela época, daquele projeto do desenvolvimento da agricultura então meus pais não queriam trabalhar coletivo assim, come mal no panelão, que era comida mal feita né. Então nessa época as crianças que tinham idade de ir para a roça ia para a roça me parece que eles não estavam dando valor para a educação escolar. 24 22 23 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS A entrevista não pode ser transcrita, pois no momento da entrevista estávamos ao lado de uma betoneira que dificultou a obtenção do áudio da gravação. 24 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 56 Os dois indígenas Kaingang entrevistados, o cacique e o professor responsável pelo turno da manha, responderam que são naturais da terra indígena de Nonoai. O professor do turno da tarde tem a origem na terra indígena de Votoro. No relato acima, podemos perceber que as escolas nas aldeias eram de responsabilidade da União, como já explicitado no inicio deste trabalho, que aplicava métodos de ensino com vistas a sua integração nacional. O relato evidencia que as escolas não eram relevantes para os indígenas, pois não enxergavam nela um referencial de mudança e desenvolvimento de seu povo. As escolas nas aldeias da época não se atrelavam aos interesses dos indígenas, como explicitado, muitos pais preferiam trabalhar na roça individualmente a se submeter às ordens dos funcionários federais. Na fala do professor indígena podemos tirar algumas conclusões, a má administração federal das áreas indígenas na década de 60, 70 e 80 fez com que os indígenas criassem certa repugnância aos trabalhos coletivos, que anteriormente eram à base de sua sustentação. É identificado pelo professor que a comida coletiva administrada pela União era de má qualidade e o trabalho coletivo era extremamente explorador e sem resultados. De alguma maneira isso pode justificar, hoje, a ausência de elementos de produção coletiva em abundância entre os indígenas. A cultura se modifica de acordo com o significado que a damos aos elementos da vida social, como relatado acima, a administração federal nas décadas de 1960, 1970 e 1980 fez os indígenas criarem ojeriza aos trabalhos coletivos. Esse fato revela, por exemplo, o porquê das igrejas católicas perderem espaço nos últimos 30 anos nas comunidades indígenas para as igrejas pentecostais. A relação é interessante e se evidencia na diferente doutrina das igrejas a católica se solidariza com a questão do todo, da comunidade. A pentecostal reflete também a questão da comunidade, mas sua ênfase recai, sobretudo, ao indivíduo. Neste contexto a escola passa a ter um papel decisivo para a manutenção e reprodução da cultura kaingang na contemporaneidade. Com isso perguntamos aos professores indígenas como é organizado o currículo da escola, qual a distribuição das matérias, responderam da seguinte maneira: 57 A escola ela ainda não tem uma definição de currículo e nem de proposta pedagógica, mas nós temos um currículo com um proposta pedagógica feito para todas as escolas indígenas e foi feito em 1998 parece, então a gente, a gente trabalha em cima dessa proposta, daí a gente introduz né a proposta normal, casa as duas e desenvolve. [...] É matemática normal, matemática Kaingang, geografia normal, geografia Kaingang, línguas (português e Kaingang), ciências assim dos livros didáticos brancos e ciências Kaingang. E é assim que a gente trabalha, a história, a história contada pelos brancos, a história contada pelos índios. Daí a gente vai casando as duas propostas. E vai trabalhando. 25 Segundo o professor entrevistado o currículo da escola na aldeia, é dividido entre os conhecimentos ocidentais e os conhecimentos tradicionais indígenas. A fim de compreender melhor, como são a matemática e a geografia Kaingang, pedimos mais informações sobre a diferença dos conhecimentos, e nos respondeu da seguinte maneira: Ela diferencia, não tanto ela fica meio próximo assim né, só que a nossa matemática ela não é escrita, ela fica muito na prática, muito na oralidade e muito assim no próximo né. Antigamente eles contavam assim, através de objetos, para mostrar uma quantia tipo, tipo vinte era vinte palito né, era mais ou menos isso e nós não temos nossos números né, nossos números só vão até cinco, e por extenso. Não temos um código que diz numero um, numero dois, e a quantia é mais ou menos próximo assim né, por exemplo em uma turma de crianças de vinte alunos, quando veio todos, então veio tudo, todos estão presentes. E se veio 15, a gente interpreta que veio quase toda a turma. E quando veio pouco mais da metade, 12-13, a gente diz que tinha bastante e quando veio 10 daí diz que veio a metade que é xxxx, e quando veio menos da metade a gente diz xxxx que significa um, mas esse um quer dizer que veio menos da metade, não por que veio um veio menos da metade era poucos.26 A diferença que o professor quer ressaltar no exemplo acima é a passagem tradicional do aprendizado, que se modificou, passando da oralidade para a escrita. A matemática, assim como os ensinamentos tradicionais Kaingang, sempre foi passada pela oralidade, como evidenciam Salvaro e Nötzold: [...] o ensinamento da tradição Kaingáng baseava-se na oralidade, onde se passava de geração para geração a cultura e tradição do povo, como a língua materna, o artesanato, os mitos e lendas, o aprendizado de ervas medicinais dentre outros que eram aprendidos na prática através da observação e da comunicação oral. (SALVARO; NÖTZOLD, 2007, p. 2) Os resultados encontrados por Salvaro & Nötzold não se distanciam daquilo que foi observado entre os Kaingang em São Leopoldo. Os indígenas kaingang, e por certo também acontece com as demais etnias, estão se apropriando do conhecimento ocidental como já 25 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 26 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 58 destacado nesse trabalho para repassarem seus conhecimentos tradicionais, principalmente a escrita: A escrita agora é utilizada para que a oralidade seja registrada, sendo assim, através de material didático e outros materiais podem repassar para as gerações futuras aquilo que eles não tiveram conhecimento e convívio. Portanto percebemos tanto na escola como no dia-dia que a oralidade ainda está presente, pois a centralidade da oralidade também se dá devido ao respeito pelos mais velhos, que são considerados os mais sábios e com maior conhecimento, além do que a oralidade tem sua função social [...]. (SALVARO; NÖTZOLD, 2007, p. 3) A passagem se aproxima bastante com o que observamos na comunidade Kaingang Voga, em São Leopoldo. Na continuidade buscamos com os professores maiores informações sobre o calendário escolar, quais datas eram “comemoradas” ou não pelos indígenas, o professor indígena, responsável pelo turno da tarde, respondeu: [...] como a gente tá vinculado numa instituição que já tem uma proposta pedagógica pronta né, cronograma e calendário, aí eles querem que a gente segue aqui, mas é assim o que é bom pra eles não é bom pra nós, muitas coisas claro que é bom né. Mas não casa com a nossa realidade, a gente convenceu essa outra escola, essa outra diretoria para que nos fizesse do nosso, da nossa organização né, que o nosso calendário é diferente, então muitas datas que eles comemoram pra nós não tem nenhum significado, muitas vezes ela é contrária a nossa realidade né. Por exemplo a data do descobrimento do Brasil, 21 de abril, Tiradentes essas coisas ali né. Então pra nós não tem nenhum sentido então, por exemplo sete de setembro pra nós não existe isso, Então quem são eles para obrigar nós né! [...]O hino nacional também né....canta o hino nacional nós temos eu tenho muita critica né. [...]então são coisas diferentes né, então no lugar dessa proposta a gente introduz outras coisas interessantes né, da proposta pedagógica branca é aquilo que eu disse o que é bom a gente trabalha, o que não é bom a gente não trabalha substitui. Por que no nosso mundo tem muitas coisas interessantes pro nosso povo que se nós der atenção para outras proposta já não consegue trabalhar todos esses outros valores, das coisas interessantes do povo. Então é isso que a gente tem que trabalhar para as crianças índias entender e dentro dos valores trabalhar muito forte o que quer dizer índio, por que ser índio, qual é a importância, qual é o interessante ser índio, é interessante ser índio não essas coisas aí né. Então no momento que a criança descobriu seus valores ela se dá valor enquanto isso ela não se dá valor, ela acha bonito as outras etnias as outras crenças as outras culturas, tradições, cultura essa cultura é muito perigosa né para qualquer etnia no momento que saí assim um calçado famoso e aí essas outras cultura entram tudo pro nosso lado da cultura né. Eles acham uma roupa bonita, aí acabam gostando, acabam botando e não é que é proibido né, mas eu tenho que já saber tudo sobre a vida dele ele tem que saber o valor dele. Por que se eu colocar uma roupa de marca um calçado de marca, nem que eu tenha aquela roupa eu não to naquela cultura, mas eu não deixo de ser uma etnia, não deixo de ser índio né, a identidade é uma coisa que tu não consegue mudar, muitos diz, não eu vou mudar minha identidade, mas tu é sempre a mesma pessoa é assim quando falo de identidade não falo desse documento mas identidade étnica e corporal também né, porque hoje o Brasil é assim né a identidade das pessoas ela tá muito solta não tem um, uma lei que exige tu é daquela identidade e tu tem que se identificar daquele jeito, como tu é tu se identifica. Hoje tu identifica do jeito que tu quiser, por exemplo, eu sou índio e eu tenho o direito de dizer não eu sou mais da parte branca né, sou gaucho, sou isso sou aquilo, me identifico do jeito que eu quero e a lei me permite. Mas só no Brasil isso né, nos outros países já é diferente, Tu é o que tu é. 27 27 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 59 A resposta do professor deixa claro, o que já explicitamos no capítulo anterior, apesar da escola não ser juridicamente autônoma, os professores indígenas elaboram o currículo e seguem um calendário independentes das formulações da escola a qual estão vinculados. Algumas datas, por obviedade, não teriam nenhuma relação com a realidade e a história dos povos indígenas, tal como o “descobrimento do Brasil”. Nesse contexto, fica evidenciada a necessidade da conquista efetiva da autonomia dos indígenas Kaingang sobre a escola localizada na aldeia em São Leopoldo. Os professores indígenas têm determinada liberdade na elaboração de seu calendário escolar, devido ao pouco caso que a equipe diretiva da escola, à qual a escola da aldeia é vinculada, faz dos indígenas. Na escolha dos conteúdos e das datas que devem ser ou não “comemoradas”, o professor deixa claro em sua fala que sua intenção na escolha de determinado conteúdo é ensinar as crianças kaingang os valores e sabedorias de sua cultura. Dessa forma, valorizando e ressignificando sua prática. Enfatizando o ser Kaingang na atualidade que “não está em sua aparência do vestir, da assimilação da língua portuguesa e sim na concepção de mundo, na valorização de sua identidade cultural, [...]” (NÖTZOLD, 2004, p.42). Sobre o aspecto da autodenominação da identidade, o professor critica esse fato, pode estar relacionado ao encantamento que alguns indígenas têm pelo mundo do ocidental e queiram se identificar como “brancos” ou “negros” escondendo sua origem indígena. Esse fato pode acontecer pelo preconceito que muitos índios sofrem devido aos já explicitados conceitos criados para inferiorizarem, tais como: vagabundos, baderneiros, animais e etc. Esses preconceitos devem ser superados com a apropriação dos conhecimentos ocidentais em consonância com os tradicionais Kaingang para serem enfrentados e desconstruídos. A apropriação não se dá em outro lugar do que na escola da aldeia, que em uma proposta diferenciada trabalha ambas culturas. Nesse sentido um fato que merece destaque é a avaliação dos alunos, os professores indígenas kaingang respondem da seguinte maneira: [...] eu sempre gostei de trabalhos né, dá um trabalho de coisas assim que a gente trabalho dentro de um tema geradora, dentro de um tema geradora e aí pega aquilo e 60 dizer pra criança fazer uma dissertação descritiva de tudo o que a gente trabalhou o que ele memoriza, ou através do caderno o que que ele, qual é a importância do que ele fez devolver o que ele aprendeu, aí o que ele não apreendeu já ajuda o professor a retomar, eu penso assim, eu sempre gostei de fazer isso. Ó faz um texto sobre tal coisas, umas coisa que a gente já desenvolveu né pra ver se ele entendeu ou não entendeu essa é a questão descobrir se o aluno entendeu se aquela atividade que a gente desenvolveu durante as aulas né, fazer tipo um texto juntando tudo essas coisas tu sabe o que ele apreendeu e o que ele não conseguiu, porque se ele não devolve o que apreendeu é sinal que ele não apreendeu. Então através desse trabalho a gente descobre o que tem que retomar, o que tem que aprofundar. Eu penso assim. Porque responder questões assim...Também é uma forma, mas em vez que o aluno na hora mesmo se esquece já a palavra prova assusta e quando se assustou não faz mais nada. 28 A resposta acima foi concedida pelo professor Kaingang responsável pelo turno da tarde, que compreende o 3º, 4º e 5º ano. Vemos que a avaliação do professor presa pelo significado dos conteúdos para os alunos, ou seja, daquilo que realmente aprenderam. Deixando espaço para os assuntos que tiveram pouca relevância para o estudante de serem retomados e aprofundados. Com o professor responsável pelo turno da manha, que abrange o 1º e 2º ano fizemos a mesma pergunta, resultando a seguinte resposta: Eu observo eles né, pelas leituras essas coisas né pelas coisas os trabalhinhos que eles fazem a gente já vai avaliando, a gente sabe quem é que se comporta melhor, qual é que respeita os coleguinhas e etc. É assim que eu faço as avaliações né. É que eu to alfabetizando né ali o aluno que já está pronto pra ser promovido, tem que saber ler, fazer uma frasezinha e sabendo decora aquele ele já está sabendo né. Aí ele sabendo separar a silaba, ele já está pronto né. Já está alfabetizado. E é assim que eu faço.29 A turma que tem aula no período da manha é de menor idade. E as crianças passam pelo primeiro processo de educação formalizada. O objetivo do professor é que em dois anos as crianças estejam alfabetizadas em português. Elas vêm de casa falando praticamente somente a língua Kaingang. Nas observações foi constatado o esforço que o professor faz para poder atender todos os alunos neste turno. Pois apesar deles somente falarem kaingang vêem no professor, no “tio”, uma referência de conhecimento, para aquilo que para eles é um universo completamente novo. 28 Entrevista concedida a Diego Severo em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 29 Entrevista concedida a Diego Severo em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 61 Na continuação quanto ao funcionamento que os professores indígenas dão à escola na aldeia Voga, em São Leopoldo. Perguntamos se na escola havia repetência entre os alunos. O professor do turno da tarde respondeu: Sim tem repetência, mas tem repetência pro aluno que não deu atenção para o que fez, na verdade não é tanto a freqüência porque as vezes o aluno falta por necessidade, pois ele tem boa vontade então esse aluno não pode ser prejudicado por que no futuro ele vai te um rendimento bom. A repetência é aquele aluno que só levou na brincadeira e não deu atenção para o que fez, não participou então esse merece a repetência né para mostrar para ele que as coisas não é brincadeira. 30 Entendendo a fala do professor sobre a repetência fica evidente que o contexto social do aluno é identificado e analisado pelo professor no momento da decisão de repetência ou não. Ele analisa se o aluno é esforçado em aula e seus pais necessitam de seu auxilio na venda de artesanatos ou qualquer outra base de sustento, o aluno é aprovado. Existe a reprovação nos casos de alunos que levam a aula na “brincadeira”, sem compromisso com sua formação. O professor indígena responsável pelo turno da manha respondeu: Sim, tem uns que repetem. Tem uns aí, eu acho uns dois três alunos que eu acho que já repetiram umas três vezes já. E o problema das crianças não sei se não é os pais orientarem também né, porque tem aluno, mesmo nesses anos que eu to trabalhando acho que é normal né as crianças, a gente vê pelo jeito da criança que quer apreender né e aquele que não quer apreender nem, que nem agora ainda falei pra ela quando eu escrevo no quadro tem uns que ainda querem prestar atenção e tem uns não né, uns nem tão. Aí o problema é vê os pais também né, que nem eu digo pra eles não adianta eu ficar o dia inteiro gritando pro quadro aqui e vocês não prestar atenção, vocês tem que prestar atenção. Em meia hora, duas horas, meia hora de atenção aqui a pessoa pega, só que ali eu acho que o que falta é um pouco dos pais, acho que os pais tem que falar pras crianças dizer ó você tem que prestar atenção na sala, tem que respeitar o professor ali. Eu acho que é assim né. 31 Como já ressaltado pelo professor responsável pelo turno da tarde. O professor do turno da manha, reafirma, existe repetência em sua turma. Evidencia também a postura dos alunos em levar as atividades na brincadeira. Com isso levanta a hipótese de que faltaria uma postura dos pais de alguns alunos estes, na visão do professor indígena da aldeia Voga, devem incentivar seus filhos a prestarem atenção e respeitar o professor. O entendimento dos professores indígenas sobre a reprovação varia de um para o outro. O primeiro, professor responsável pelo turno da tarde, busca aspectos que vão além dos conteúdos escolares ressaltando a questão do auxilio aos pais e etc. O segundo enfatiza a responsabilidade dos pais quanto à postura dos alunos em sala de aula. 30 31 Ibid. Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 62 A visão de ambos os professores é passível de considerações, as duas posturas são relevantes e importantes para a efetividade de uma educação realmente diferenciada para os povos indígenas. O papel do professor indígena, na escola da aldeia, deve ser de mediador entre esses dois universos. Ele fará o meio de campo entre os conhecimentos escolares ocidentais, os conhecimentos tradicionais indígenas com os desejos da comunidade indígena, podendo auxiliar e esclarecer determinadas políticas ocidentais junto às lideranças de sua comunidade. Aos professores perguntamos qual, na atualidade, importância tem a educação para os povos indígenas de maneira geral. O professor indígena, responsável pelo turno da tarde, disse: É pra chegar nesse ponto tem que ser muito trabalhoso e com muito cuidado, porque uma escola diferente, proposta diferente, funcionário, até o próprio prédio em que ser diferente com a cara do povo e em que ser muito diferente né a proposta pedagógica o calendário, funcionário e introduzir essa proposta branca para dentro dessa proposta Kaingang hoje é diferente, hoje a maioria das escolas que funciona que eu conheço no Rio Grande do Sul a proposta pedagógica Kaingang ela está sendo introduzida, ela não esta sendo tão valorizada os horários de aula Kaingang são muito curto então isso não é recomendável, então a nossa proposta aqui da comunidade é trabalhar o cinqüenta por cento da proposta Kaingang e cinqüenta por cento da proposta branca, vamos dizer né, casar as duas coisas no mesmo horário vamos dizer prevalece, os horários tem que ser igualitário assim mas é aquilo que eu falei lá no inicio né agora a escola está sendo interessante de uns anos para cá que eu observo né. Os pais estão dando mais valor para a educação escolar por causa para ter vantagem na sociedade tem que ser letrado né, senão está sujeito de ficar para traz, porque aquela coisa da boa vida já se acabou né por que antes nós tinha tudo né, se quisesse fazer uma produção de grãos ela produzia muito bem, valia a pena você produzir grãos, e hoje não dá prejuízo por causa dos insumos né para essa produção, então os pais vendo isso estão dando valor para a educação escolar, estão empurrando os filhos para os estudos e antes não era assim. Antes eles não gostavam muito que os filhos estudassem, queriam que eles fossem pra roça ou fazer atividade de casa né hoje parece que está revertendo, mas ainda não reverteu por completo porque por enquanto os alunos estão assim um pouco a vontade né...frequentam se quiser, se não quiser não é cobrado, muitas vezes o pai diz não precisa ir para a escola por que tu tem que me ajudar a fazer isso e aquilo, então ainda tem que esforçar mais para que todos os pais entendam que a educação escolar tem o seu valor né. 32 O professor traz um aspecto histórico e atual da situação das escolas indígenas que conhece no Rio Grande do Sul. Levanta questões já referenciadas neste trabalho, como, a situação do trabalho com a proposta Kaingang em sala de aula. Destaca a relevância que, atualmente, os indígenas estão dando ao conhecimento escolar diferente do que aconteceu no 32 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 63 passado, anteriormente comentado pelo professor, quando as escola era mantidas pelo SPI/ Funai que os indígenas não viam muito futuro. Sobre a mesma pergunta o professor indígena, responsável pelo turno da manha, traz elementos um pouco diferentes: Eu não acho diferenciada, eu acho o mais diferenciado é que só pela língua e é só isso que é diferenciado e talvez eu penso também, talvez a gente fomos demais sobre a nossa cultura, nossa língua, nossa letra e a escrita, só que ali na hora eu penso né o que eu me preocupo é isso né que eu quero que o aluno vai lá em outra escola lá que não é indígena vai muito mal né. Que nem meu pia que estudou aqui até a quinta série, mas foi lá e rodou três vezes, foi mal em português em matemática, é porque eu acho que atrapalha um pouco, a gente trabalha demais com as nossas culturas também. Eu acho, eu acho bom também a nossa cultura, mas acho que deve ter um pouco de limite né porque ali que nem vai na faculdade lá, lá não vai sair as questões sobre né para responder em Kaingang, ali eu acho mais difícil, eu penso nisso né. Ali porque que eu vou alfabetizar mais em português e matemática mais assim, porque já se sai daqui vai lá para outra escola já, já sai sabendo né. Eu penso pelo meu guri que estuda aqui, esses dias eu tava olhando os trabalhos dele e as provas lá, não achei muito bom né, matemática, português, ciências é porque talvez é nós aqui que não trabalhamos mais em cima dele, trabalhamos mais a nossa cultura, mas eu acho que um pouco atrapalha também né. Por isso que eu trabalho mais aqui. Eu alfabetizo mais aqui em português e matemática porque eu penso nisso, por isso eu deixei o Kaingang só para sexta-feira ali aprendendo as nossas letras e as consoantes kaingang, o alfabeto kaingang, sabendo falar umas palavrinhas já está pronto né, sabendo escrever uma palavra já está bem. Eu acho que muito atrapalha um pouco, ai eu acho que os professore indígenas deveriam trabalhar bastante em português, tem que ser uma média, não muito português nem muito kaingang. Tem que ser junto né. Eu acho isso, eu penso nisso assim. 33 O professor ressalta em sua fala a preocupação com o porvir das crianças indígenas quanto à continuidade de seus estudos e ainda destaca que o futuro para os povos indígenas no contexto atual não está sendo tarefa fácil, o acesso a universidade não está universalizado, os conhecimentos exigidos para o ingresso no ensino superior não são os Kaingang e coloca como aspecto fundamental para os estudantes o aprendizado da língua portuguesa e da matemática. Estabelece uma relação um pouco distante entre os conhecimentos tradicionais indígenas e a escola. Em sua aula, conforme relatado ensina a escrita em Kaingang, mas este conteúdo é pouco trabalhado e pouco avaliado. Em relação direta com o “mundo” Kaingang e o “mundo” ocidental, o professor indígena atribui o fracasso de alguns alunos indígenas, da comunidade, na escola não indígena à valorização demasiada da cultura indígena na sala de 33 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 64 aula. Assim quando os alunos se deparam com conteúdos diferentes na escola não indígena estão despreparados. Ambos os professores destacam a importância da escola na comunidade indígena, mas possuem divergências sobre qual o papel que está deve desempenhar. No outro ponto da corda está o cacique da aldeia Kaingang de São Leopoldo. Quando perguntamos como via a escola na aldeia, como avaliava o esforço dos indígenas em se apropriar dos conhecimentos ocidentais para reivindicar seus direitos, respondeu que preferiria que não precisassem de todo esse estudo. Mencionou que devido à escolarização, hoje, muitas crianças estão deixando os conhecimentos do povo Kaingang de lado. As crianças, segundo o cacique, não se interessam mais em aprender a fazer artesanato, estudar a história de seu povo e etc. Relatou que preferia que os Kaingang tivessem um pensamento como o dos Guarani, que falam “mal” o português e negociam com as autoridades seus direitos. Disse que, na verdade, os índios não precisariam estudar para reivindicar seus direitos, pois aquele que “roubou” as terras indígenas sabe dos direitos que os índios têm e deveriam cumprir sem a necessidade de reivindicação. No entanto, em questão já referida neste trabalho, o cacique, vê como importante o ensino da língua e da história Kaingang na escola para a manutenção da cultura indígena. A visão da liderança da comunidade é aquela do indígena convencido das desapropriações que seu povo sofreu nos últimos séculos e que enxerga na atualidade um cerceamento cada vez maior do conhecimento ocidental, que sem limites adentra as aldeias indígenas ora para tentar a sua assimilação, com vistas à extinção, ora vem com propostas de autonomia das comunidades, mas que são difíceis de serem efetivamente implementadas. 4.1 A VISÃO DAS CRIANÇAS INDÍGENAS SOBRE A ESCOLA Neste capitulo apresentaremos uma abordagem realizada com as crianças na escola da aldeia. Com as duas turmas, manha e tarde, pedimos para desenharem o que a escola na comunidade representava para eles. Os dias em que foi aplicada essa proposta foram 65 diferentes, os professores estavam presentes em sala de aula, auxiliando as possíveis dúvidas dos alunos. No período da tarde, pedimos autorização para o professor e esse se disponibilizou para auxiliar. Então após o retorno do intervalo da aula em uma sexta-feira, pedimos para os alunos fazerem os desenhos, distribuímos as folhas e deixamos em aberto caso as crianças tivessem desejo de desenhar mais alguma coisa, que ficassem a vontade de pegarem mais folhas e demorassem o tempo que achassem necessário. Sobre a apropriação quanto ao modo de realizar o pedido do desenho, inicialmente os alunos ficaram na dúvida sobre o que desenhar, tiraram algumas questões com o professor outros com nós. Deixamos bem aberto para as crianças desenharem aquilo que viesse em sua cabeça a partir do tema inicial que é o que representa a escola da aldeia para eles. Como as crianças da aldeia geralmente têm idade superior ao esperado para a série/ano em que estão não houve dificuldades no manejo do ato de desenhar, diferente do ocorrido com os alunos do turno da manhã que falaremos após essa primeira abordagem dos desenhos. Na turma da tarde foram produzidos pelas crianças 22 desenhos, alguns alunos fizeram mais de um desenho. Nos desenhos foi reproduzida basicamente a localização da escola na aldeia, demonstraram a escola ao lado do banheiro, da casa de uma vizinha, ao lado da lixeira e etc. Em geral a escola quando colocada enquanto elemento da totalidade da aldeia foi identificada como sendo representativamente maior do que as demais casas, em seu redor. Algumas crianças colocaram o nome da escola, apareceram algumas pessoas nos desenhos, em dois dos desenhos apareceu bonecos, que representam pessoas, com as marcas indígenas, Kamé e Kairu, em um dos desenhos é possível identificar o casal formado a partir da regra de parentesco Kaingang. Dois desenhos merecem destaque especial, eles apresentaram diferentes imaginários das crianças, um deles mostra a estrutura da escola no aspecto ocidental, tal como ela é construída, mas as casas que a cercam são no formato de ocas e mostra alguns animais que não podemos pensar neles como sendo cachorros ou gatos, podem ser jaguatiricas, e as arvores que aparecem no desenho dão um fruto vermelho, que provavelmente é a maça. No outro desenho, o menino coloca a escola com uma chaminé ao lado de uma casa, elas parecem estar dentro da água podendo ser rio ou mar, aparecem dois peixes um pequeno e outro maior. 66 Na folha do desenho na parte superior existe uma espécie de praia com coqueiros. Esse caso é especial, pois diretamente não existe relação com a realidade da comunidade, outro desenho que se destacou foi um que mostrará um helicóptero. Quando realizamos o pedido para as crianças desenharem o que era a escola para eles na aldeia os deixamos com total liberdade para desenvolver o trabalho, alguns comentavam “é para desenhar qualquer coisa então”, logo o professor do turno respondia “qualquer coisa não, porque qualquer coisa é qualquer coisa, tem que desenhar o que é a escola para ti na aldeia”. O fato da maioria dos desenhos realizados no turno da tarde terem tido a imagem da escola como “maior” do que as outras casas da comunidade pode ser entendido por ser o local onde muitos freqüentam, na casa das famílias geralmente é só ela que a freqüenta, e também por ter um papel central na comunidade, é o espaço onde se resolve as decisões da aldeia, é o espaço de ensino e aprendizagem, tendo aula nos dois turnos, muitas pessoas da comunidade e fora dela aparecem na escola para saber determinadas informações. O espaço da escola também é usado para fazer reuniões entre os índios e com os “brancos” 34. Então a escola no imaginário do aluno é uma referencia tanto quanto, ao conhecimento trabalhado com as crianças, quanto ao recebimento e a tomada de decisões importantes para a comunidade. Algumas crianças não se sentiram a vontade para realizar um desenho com a folha aberta. Uma aluna preferiu escrever os seus pensamentos sobre “A importância da escola” e preferiu dissertar o seguinte: A escola e um meio de conhecimento da vida. Por exemplo sem a escola não é possível aprender a ler e escrever nem saber o que é certo e erado. E nem falar e nem saberíamos ce comunicar. Sem a escola não poderíamos construir makinas ao noço favor e não saberíamos construir casas e nem carros nem resumimos não saberíamos de nada. 35 No texto apresentado acima podemos identificar a visão que a aluna tem da importância da escola, essa abordagem pode-se ver a maneira ocidental que a estudante enxerga na escolarização a única maneira de aprendizado relevante para a vida. Nesse sentido a escola é importante ser diferenciada com professores indígenas, dentro da comunidade, com funcionários índios e alimentação conforme os costumes tradicionais Kaingang. 34 Anos atrás quando propomos para os índios fazerem uma exposição de artesanato na Unisinos, combinamos como seria este evento com as lideranças da comunidade e o professor responsável pelo turno da tarde no espaço da escola. 35 Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS 67 Um dos desenhos além de retratar a estrutura da escola diante da totalidade da comunidade fez comentários sobre esta, tais como: que é a escola mais esperta; é uma escola muito boa, mas muito pobre. Vemos nos comentários do aluno que o mesmo reconhece o trabalho desenvolvido pelos professores, mas esta atento as condições estruturais da escola como o difícil acesso ao material, vidros quebrados, classes danificadas, cadeiras sem encosto e etc. Uma das meninas da escola ao invés de desenhar com a folha colocada de forma reta preferiu realizar uma dobradura, onde na frente e atrás da dobradura ficou exposto a estrutura da escola sem a porta. Em geral o restante dos desenhos apresenta como já destacado a localidade da escola dentro da aldeia, muitos ressaltam as arvores da comunidade, pássaros em tamanhos desproporcionais, algumas crianças preferiram desenhar apenas a escola no espaço disponível retratando dessa forma um destaque para a porta e a janela. Outras crianças resolveram desenhar aquilo que para elas era relevante ou que teve maior significado nos últimos tempos como o desenho da arvore de natal e alguns outros. Alguns desenhos foram realizados a mais do que o pedido, um destes teve um destaque especial, o aluno desenhou gato deitado no chão com as patas dianteiras no chão e o rabo dele estava no bico de um papagaio atrás do gato, o papagaio foi expresso com uns suores em volta da sua cabeça. Ao lado dessa representação havia um pássaro preso em uma gaiola com uma expressão de bravura. Esse foi um desenho que não representou aquilo que pedimos, pois os alunos o fizeram após a entrega do primeiro. A mesma proposta desenvolvida com os alunos do turno da tarde foi lançada aos alunos do turno da manha, no entanto, como ressaltado acima os alunos do turno por serem mais velhos apresentam facilidades no desenvolvimento do desenho. O mesmo não acontece com os alunos mais novos que freqüentam o turno da manha, essa dificuldade não foi lembrada quando pensamos a atividade, por desatenção dos pesquisadores o resultado esperado ficou comprometido, mas um pouco do imaginário das crianças pode ser identificado em alguns desenhos. Foi elaborado pelos estudantes do turno da manha, do 1º e 2º ano, um total de 16 desenhos. Alguns desenharam nos dois lados da folha e outros fizeram mais de um desenho em folhas separadas. 68 Devido à idade das crianças que freqüentam os anos ofertados no turno da manha, não houve compreensão suficiente do que foi pedido na atividade, no entanto, em nenhum momento foi excluída a sua participação no desenvolvimento dos desenhos esses inclusive constam em anexo neste trabalho. Cinco dos desenhos produzidos pelas crianças não são passiveis de analise, pois apresentam rabiscos, com projetos de árvores, ou o que poderíamos identificar como caminhos, ou simplesmente algumas letras do alfabeto com o respectivo nome do autor do desenho e sua idade. Dos demais desenhos, houve, conforme já ocorrido com os alunos da tarde, a representação da estrutura da escola. Expressando essa através de uma casa, alguns desenharam a vizinhança da escola, a maioria a desenhou com uma chaminé, revelando que estão cientes que a estrutura da escola não difere em muitos aspectos de sua moradia, mesmo que na escola não exista chaminé. Um desses desenhos mostrou um aspecto significativo para as crianças, ele desenhou a escola no meio de um parque de diversões, ao lado da escola têm uma roda gigante, o barco Vinque, o carrinho choque, o aviãozinho, entre outros, segundo o professor alguns dias antes os alunos tinham ido ao parque de diversões, por isso a associação no desenho. Dois desenhos tiveram um destaque, o primeiro além de mostrar, a escola da aldeia ao lado de árvores, e algumas pessoas próximas, no desenho as árvores estão sorridentes mostrando um sorriso com suas maças, no alto da representação estão ás nuvens com rostos e junto com o sol e a lua, a lua assim como as nuvens abrigam algumas pessoas, e o menino, autor do desenho está representado em um balão, olhando para baixo. O destaque é dado pelas imagens do sol e da lua, que revela a dualidade Kaingang e as pessoas nas nuvens revela a crença na existência de um lugar após a morte, ou a possibilidade das pessoas alcançarem o céu mesmo em vida. O segundo desenho, que merece um destaque especial, além de mostrar a escola, coloca esta ao lado de uma caixa de presentes em cima de um pequeno morro, a esquerda do desenho, um pouco abaixo da escola têm a bandeira que parece do Brasil, mas com o nome do autor do desenho. A esquerda da bandeira e um pouco acima aparece à representação de um diabo, com seus chifres e seu cajado. Logo acima, é desenhada uma nuvem ao lado de uma árvore e um avião, acima deste está mais nuvens e diversas estrelas um pouco abaixo do sol, em uma das nuvens têm um boneco representando deus, munido de sua coroa, que mirando 69 para baixo em direção ao diabo lança raios, o avião também lança um míssil na direção do diabo. Quando esse desenho foi entregue, o autor foi perguntado sobre o que representava cada um dos desenhos e o mesmo forneceu as informações reveladas. O desenho descrito acima, que também está em anexo neste trabalho, revela a influência religiosa na comunidade. Não é nova a presença nas comunidades indígenas de igrejas, nos últimos anos as igrejas pentecostais estão tendo maior influencia entre os indígenas. Especificamente no caso dos Kaingang esse fato é expresso em muitas áreas indígenas, em São Leopoldo existem duas igrejas, que de um modo ou outro “disputam o mercado” nas palavras de um professor da aldeia. Elas exercem um papel fundamental na concepção de mundo dos indígenas, o desenho da criança revela isso, entre os Kaingang nos últimos anos as lideranças espirituais estão perdendo espaço para as igrejas, segundo um professor da aldeia, muito Kuijã, liderança espiritual Kaingang, não está conseguindo pessoas para passar seus conhecimentos, pois grande parte dos indígenas não procura mais esta responsabilidade ou já não crêem mais nela. De maneira geral, sobre a visão das crianças sobre a escola na aldeia, podemos afirmar que essas a enxergam como uma estrutura parecida com sua moradia, com a diferença de abrigar mais pessoas e ser um ponto de recepção e negociação com os “brancos” e demais autoridades ocidentais. Alguns desenhos mostram a dualidade Kaingang expressa através das marcas, redonda e cumprida, que formam a sistema de casamento desta sociedade este fato revela que quando pedidos para desenharem “o que é a escola na aldeia” significam esta com as regras de seu povo. A escola da comunidade trabalha a língua Kaingang em seu currículo, esse é um elemento que podemos chamar de não-formal, pois a língua é a preservação da cultura na atualidade. Através da reprodução, aprimoramento, escrita e desenvolvimento da língua dos Kaingang, assim como já se afirmam como diferentes entre os ocidentais, ganham legitimidade diante daqueles que querem afirmar que no Brasil não existe mais índios, fato esse já comprovadamente descartado. 70 4 CONCLUSÃO Tendo em vista a reflexão feita durante o trabalho, esta demonstrou que essa instituição, a escola, imposta às comunidades indígenas a mais de 500 anos aos poucos está se adequando as reais necessidades dos povos ancestrais. A partir dos objetivos que vislumbramos com esse trabalho e os resultados alcançados podemos afirmar que, os processos educativos informais entre os índios Kaingang da aldeia Voga, em São Leopoldo, estão se reproduzindo continuamente na localidade, claro, que com a adaptação cultural necessária para a sobrevivência na contemporaneidade. Agora com a presença da escola na aldeia, os conteúdos regulares escolares estão sendo ofertados para os alunos indígenas da comunidade. A escola dentro da aldeia tem como proposta ser diferenciada com conteúdos, horários e calendário próprio. Essa foi uma conquista dos povos indígenas e apoiadores na elaboração da carta constituinte brasileira de 1988. A legislação prevê a capacitação de professores indígenas das áreas que reivindicam escola na comunidade, desta maneira possibilitando um aprendizado mais próximo dos indígenas. No entanto, encontramos um ponto cego na legislação: as escolas nas comunidades indígenas somente se materializarão caso as próprias as solicitem. Se as comunidades não solicitarem a estrutura da escola na aldeia e entendem que os conhecimentos ocidentais não servem para seu porvir certamente as autoridades competentes irão se movimentar para culpabilizar os indígenas e coagir-los a aderirem às escolas indígenas diferenciadas ou ás escolas “normais”. Desta maneira a legislação brasileira mostra que não reconhece os conhecimentos tradicionais ancestrais dos povos indígenas, reconhecendo a escola como legitima instituição capaz de nutrir possíveis alunos de conhecimento autêntico. Esse fato merece maior reflexão das autoridades e entidades de pesquisa. Evidenciamos neste trabalho que a escola localizada na aldeia é uma extensão de uma escola estadual próxima da comunidade, portanto não se trata juridicamente de uma Escola Indígena na aldeia. É uma escola com professores, funcionários e alunos, todos indígenas, mas a administração dos recursos não. Dessa maneira a proposta pedagógica não se faz diferente. 71 Os professores indígenas em seu dia-a-dia em sala de aula se esforçam para unir os dois universos do conhecimento, o tradicional Kaingang com o ocidental. No entanto sabemos que não somente de professores diferentes se faz uma escola diferenciada, é necessário estrutura adequada, materiais didáticos, recursos próprios e a autogestão indígena. A comunidade indígena Kaingang Voga em São Leopoldo está reivindicando junto a Secretária Estadual de Educação do Rio Grande do Sul a criação da Escola Indígena, segundo informações dos professores e da liderança indígena a escola já foi criada, faltando somente a autorização para o funcionamento. Para a escola poder funcionar de fato na aldeia é necessário construir um novo prédio com mais salas de aula e o preenchimento do quadro de funcionários. A estrutura e o preenchimento do quadro de funcionários são condições para a aprovação no Conselho Municipal de Educação de São Leopoldo. No preenchimento do quadro de funcionários é necessário para o funcionamento da escola um diretor e como a escola será subsidiada pelo Estado do Rio Grande do Sul uma das exigências para o cargo de diretor é ser funcionário público, no cargo de professor, e como nos últimos quatro anos não tivemos concurso para o magistério estadual, os indígenas Kaingang de São Leopoldo para atender essa exigência terão de “convidar” alguém que preencha os requisitos exigidos e se disponha ao cargo. Esse fato evidencia a necessidade de se criar novos mecanismos para exercer realmente uma educação diferenciada aos povos indígenas, essa exigência deve ser pensada a partir da realidade local e não homogeneizada. No desenvolver do trabalho de pesquisa sentimos nos indígenas a importância da escola na comunidade. Ela serve aos interesses dos índios e eles contribuem para a manutenção desta sem ônus, exigem das crianças comportamento e respeito com os professores, utilizam a escola para suas reuniões, a usam em datas comemorativas entre outros. Os professores trabalham de diferentes maneiras para a autonomia do povo Kaingang, já que vivemos em uma sociedade globalizada, os indígenas se apropriam do conhecimento ocidental para aprimorar seus conhecimentos tradicionais e assim continuar lutando por seus direitos. Concluímos então que para os indígenas Kaingang da aldeia Voga em São Leopoldo a escola é importante para a manutenção e reprodução de seus conhecimentos tradicionais em conjunto com os ocidentais. Os valores e a tradição Kaingang são passados em sala de aula na 72 comunidade e os alunos aprendem a ler e escrever em kaingang. A escola desta maneira está contribuindo para assistir aos indígenas e os apropriar do conhecimento “científico”. Falta apenas o cumprimento da legislação existente que não está sendo cumprida em São Leopoldo. 73 REFERÊNCIAS BECKER, Ítala Irene Basile. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1995. BELZ, Karina Cristiane. Educação Escolar Kaingang: do discurso oficial às práticas efetivas. 2008. 189f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação – CED da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2008. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2007. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Texto consolidado até a Emenda Constitucional nº 66 de 13 de julho de 2010. Brasília, 2010. BRASIL, Presidência da República. Lei nº 10.172, de 9 de Janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação. Brasília, 9 de Janeiro de 2001. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm>. Acesso em 28 nov. 2010. 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Porque no inicio né, quando a escola veio pra dentro da aldeia ela prejudicou né a cultura, a língua, a proposta pedagógica, diferente né. Vindo pra uma outra proposta pedagógica diferente e organização diferente, então nesses lado ele prejudicou um pouco, mas com o passar do tempo a gente foi 77 concertando, acertando, entendendo a política dessa instituição e que hoje a gente adéqua essa realidade para a nossa realidade, então agora a gente tá aproveitando ela. As propostas boas né! Trabalhando essas propostas, passando essas oralidades pras escritas, registro e enfim tudo que é bom, que é ligado a uma educação escolar estamos fazendo essa transição, mas muita coisa ainda permanece na oralidade né, que não atingimos ainda a escrever, a registrar, muitas oralidades. Por que assim muitas coisas de oralidade a gente não consegue traduzir e escrever ela, porque a língua né, a língua a gente muitas vezes não consegue a tradução dele, a linguagem desse povo que tá vinculado a instituição escolar eu acredito que nem todos vão conseguir registrar. Mas muita coisa dá para você aproveitar sim dessa instituição, inclusive. Diego: Tu acha importante ensinar Kaingang na escola? Dorvalino: A gente tem que, fazer o currículo pra essa escola, a gente tem que fazer uma propostas pra essa escola, trabalhar inclusive a língua né, porque a língua ela é uma garantia de um povo, de uma etnia. A língua, a crença, a cultura então ela é importante para essas coisas. Diego: De que área indígena tu é natural? Dorvalino: Eu nasci, eu nasci na colônia né, meus pais trabalhavam muito de agregado, daí eu nasci, antes eu não tenho muita certeza essa colônia pertencia ao município de Barão de Cotegipe, eu não tenho certeza, esses município porque antigamente também essa colônia pertencia ao município de Erechim, aí depois veio para o município de São Valentim. Então eu não tenho certeza, essa colônia que eu nasci não sei a que município ele pertencia em 1964. Diego: Mas era área indígena? Dorvalino: Não, ela fica próxima a uma área indígena, Votouro né, Votouro que agora essa aldeia pertence ao município de Benjamim Constante, que foi desmenbrado do município de São Valentim, isso eu me lembro bem. Que é monte alegre ali. Pela quantidade de municípios é que eu não tenho uma certeza né que aquele tempo que eu nasci, eu não sei dizer se pertencia para São Valentim, Barão de Cotegipe ou Erechim. Mas esse municípios pequenos eles foram desmembrados de Erechim, então nós circulava muito por ali. Diego: Quando criança assim tu chegou a estudar em alguma escola dentro de alguma aldeia? Dorvalino: Eu estudei em uma escola dentro da aldeia né, que aquele tempo ele pertencia, era as escolas eram federal né. Então quem comandava as escolas, a educação nessa época era a 78 FUNAI, mas eu não estudava direito né, porque naquela época que eu iniciei os meus estudos na escola era na época do SPI, então tinha aquele dito trabalhos coletivos, então esse grupo de índios eles comiam no panelão foi naquela época, daquele projeto do desenvolvimento da agricultura então meus pais não queriam trabalhar coletivo assim, come mal no panelão, que era comida mal feita né. Então nessa época as crianças que tinham idade de ir para a roça ia para a roça me parece que eles não estavam dando valor para a educação escolar. Diego: Sim, até porque o jeito que estava sendo desenvolvido o trabalho, que tu comentou, da comida coletiva e etc, mal ou bem o pessoal tinha que se vira de outro jeito e não era bom essa escola. Dorvalino: E isso foi um atraso para todas as crianças na época que estudaram, e também os pais não davam tanto valor para freqüência de escola, que era coisa nova né. Diego: Aqui na aldeia tu te lembras quando começou a funcionar a escola? Dorvalino: Na verdade, a escola né, a escola mas é uma casa assim de como é que eu vou dizer provisória né. E aí a gente começou a trabalhar nessa casa provisória vamo dizer, ela nem tem estrutura de escola né. Mas como a lei garante que a educação escolar tem que estar funcionando na comunidade, então isso foi a segurança da gente trabalhar, a educação escolar nem que seja de baixo de uma arvore, mas tem que funcionar, na lei ela tá garantida, que a criança ela tem que estudar né! Então de qualquer forma a gente tem que trabalhar essa educação escolar, então até hoje nós temos trabalhando nessa escola provisória, funcionando a educação escolar e estamos em processo de autorização de funcionamento né, ela está criada, estamos estruturando. Estamos com um projeto de estruturação, de prédios né mas a educação escolar ela já funciona. Diego: Então a educação escolar aqui na aldeia, mesmo com essa pouca estrutura com ela não ser tão adequada desde quando? Dorvalino: Desde 2005. Diego: Ah então ela já funcionava no outro local. Dorvalino: Sim. Porque a comunidade tinha uma moradia também provisória né, mas a educação escolar sempre funcionou, nem que não tenha um prédio ne, mas tinha uma casa assim, um galpão a gente se virava né. 79 Diego: Aqui na escola da aldeia, o currículo como ele é organizado? Dorvalino: A escola ela ainda não tem uma definição de currículo e nem de proposta pedagógica, mas nós temos um currículo com um proposta pedagógica feito para todas as escolas indígenas e foi feito em 1998 parece, então a gente, a gente trabalha em cima dessa proposta, daí a gente introduz né a proposta normal, casa as duas e desenvolve. Diego: Então assim como é que é: matemática.....? Dorvalino: É matemática normal, matemática Kaingang, geografia normal, geografia Kaingang, línguas (português e Kaingang), ciências assim dos livros didáticos brancos e ciências Kaingang. E é assim que a gente trabalha, a história, a história contada pelos brancos, a história contada pelos índios. Daí a gente vai casando as duas propostas. E vai trabalhando. Diego: A questão da matemática e da geografia diferencia muito a matemática do branco e a matemática do kaingang? Dorvalino: Ela diferencia, não tanto ela fica meio próximo assim né, só que a nossa matemática ela não é escrita, ela fica muito na prática, muito na oralidade e muito assim no próximo né. Antigamente eles contavam assim, através de objetos, para mostrar uma quantia tipo, tipo vinte era vinte palito né, era mais ou menos isso e nós não temos nossos números né, nossos números só vão até cinco, e por extenso. Não temoa um código que diz numero um, numero dois, e a quantia é mais ou menos próximo assim né, por exemplo em uma turma de crianças de vinte alunos, quando veio todos, então veio tudo, todos estão presentes. E se veio 15, a gente interpreta que veio quase toda a turma. E quando veio pouco mais da metade, 12-13, a gente diz que tinha bastante e quando veio 10 daí diz que veio a metade que é xxxx, e quando veio menos da metade a gente diz xxxx que significa um, mas esse um quer dizer que veio menos da metade, não por que veio um, veio menos da metade era poucos. Diego: O tempo que eu observei as tuas aulas e um fato que me chamou muita atenção, também acontece pela manha mas não tanto, é que os alunos não te chamam de professor e não te chamam de Dorvalino eles te chamam de “tio” o que tu acha disso? Dorvalino: É que na verdade pra nós não existe professor, na nossa linguagem não existe, mas esse ser inteligente é o respeitado desde parentes assim, ou desde mais velhos por isso que nós interpretamos o mais velho então o “tio” ele tem um vivencia e um conhecimento para ensinar eu mais novo, vamos dizer né, então vai ser o tio. E é questão de organização né, a 80 pessoa mais velha é o tio, o avô é o livro de história da comunidade então é por aí que a gente vai acolhendo as pessoas pela questão do respeito. Então ser tio é ser o segundo pai, que o segundo pai na escola é o professor, e o tio vem a ser o segundo pai. Então isso pra nós é aceito, porque também pelas marcas tribais né, muitas vezes os alunos chama a gente de irmão que tem a mesma marca minha, e muitas vezes de cunhado né que a menina que é da minha marca contrária ela é minha cunhada. Diego: É agora sim deu pra ver o significado, porque no branco assim nem pensar na escola o professor ser chamado de tio, e esse fato me deixou interessado pela naturalidade de ocorrências. E no começo foi muito estranho, mas refletindo tive uma compreensão próxima a esta que me disseste. Dorvalino: E eu tenho visto que nas escolas a professora não aceita ser tia dos alunos né, pra ela é uma ofensa né um aluno qualquer aí chamar ela de tia, ou tio ainda mais quando o aluno é rebelde né, aí elas não aceita mesmo. Aí elas diz, não você é isso, você é aquilo ultrapassa dos limites então não aceito, não pode ser meu sobrinho. Mas nós aceitamos né, porque se a criança ultrapassar a gente tem autonomia de disciplinar, eu sou tio, eu sou pai, eu posso disciplinar. Diego: O calendário das aulas assim como é que tu faz, por exemplo, aqui por enquanto está vinculada ao Haydee, e tipo eles colocam alguma coisa, mando procedimentos para vocês olha tem que funcionar assim? Dorvalino: É eles, como a gente tá vinculado numa instituição que já tem uma proposta pedagógica pronta né, cronograma e calendário, aí eles querem que a gente segue aqui, mas é assim o que é bom pra eles não é bom pra nós, muitas coisas claro que é bom né. Mas não casa com a nossa realidade, a gente convenceu essa outra escola, essa outra diretoria para que nos fizesse do nosso, da nossa organização né, que o nosso calendário é diferente, então muitas datas que eles comemoram pra nós não tem nenhum significado, muitas vezes ela é contrária a nossa realidade né. Por exemplo a data do descobrimento do Brasil, 21 de abril, Tiradentes essas coisas ali né. Então pra nós não tem nenhum sentido então, por exemplo sete de setembro pra nós não existe isso, Então quem são eles para obrigar nós né! Diego: Daí a escola não segue esses... Dorvalino: O hino nacional também né....canta o hino nacional nós temos eu tenho muita critica né. 81 Diego: Vocês não asteiam a bandeira aí no sete de setembro? Dorvalino: Não, então são coisas diferentes né, então no lugar dessa proposta a gente introduz outras coisas interessantes né, da proposta pedagógica branca é a quilo que eu disse o que é bom a gente trabalha, o que não é bom a gente não trabalha substitui. Por que no nosso mundo tem muitas coisas interessantes pro nosso povo que se nós der atenção para outras proposta já não consegue trabalhar todos esses outros valores, das coisas interessantes do povo. Então é isso que a gente tem que trabalhar para as crianças índias entender e dentro dos valores trabalhar muito forte o que quer dizer índio, por que ser índio, qual é a importância, qual é o interessante ser índio, é interessante ser índio não essas coisas aí né. Então no momento que a criança descobriu seus valores ela se dá valor enquanto isso ela não se dá valor, ela acha bonito as outras etnias as outras crenças as outras culturas, tradições, cultura essa cultura é muito perigosa né para qualquer etnia no momento que saí assim um calçado famoso e aí essas outras cultura entram tudo pro nosso lado da cultura né. Eles acham uma roupa bonita, aí acabam gostando, acabam botando e não é que é proibido né, mas eu tenho que já saber tudo sobre a vida dele ele tem que saber o valor dele. Por que se eu colocar uma roupa de marca um calçado de marca, nem que eu tenha aquela roupa eu não to naquela cultura, mas eu não deixo de ser uma etnia, não deixo de ser índio né, a identidade é uma coisa que tu não consegue mudar, muitos diz, não eu vou mudar minha identidade, mas tu é sempre a mesma pessoa é assim quando falo de identidade não falo desse documento mas identidade étnica e corporal também né, porque hoje o Brasil é assim né a identidade das pessoas ela tá muito solta não tem um, uma lei que exige tu é daquela identidade e tu tem que se identificar daquele jeito, como tu é tu se identifica. Hoje tu identifica do jeito que tu quiser, por exemplo, eu sou índio e eu tenho o direito de dizer não eu sou mais da parte branca né, sou gaucho, sou isso sou aquilo, me identifico do jeito que eu quero e a lei me permite. Mas só no Brasil isso né, nos outros países já é diferente, Tu é o que tu é. Diego: Sim até a questão da auto identificação do censo que teve agora em 2010, se alguém daqui quisesse se identificar como de qualquer outra etnia, poderia tranquilamente. Dorvalino: Então, eu faço muita critica na questão de identidade. A cultura ainda até que, eu concordo, você dançar do jeito que você quiser, dança lá a musica que tu quiser pode dançar, tu pode vestir qualquer roupa, calçado, assim tu vai atravessando a cultura né, mas conquanto que a tua fica garantido né. Ou a história também né, tu tem que saber a história do teu povo, da tua etnia, a tua história pra depois estudar as outras histórias porque hoje as pessoas são 82 muito curiosas né, e muitas vezes as curiosidades das pessoas ela te bota contra a parede, então tu tem que o teu mundo a resposta tem que estar na ponta da língua, senão tu não é, tu não tá assumindo tua identidade. Que nem papel voar no ar, a vida da gente, eu penso assim né. Diego: A avaliação dos alunos como vocês fazem? Dorvalino: A avaliação dos alunos, é eu sempre gostei de trabalhos né dá um trabalho de coisas assim que a gente trabalho dentro de um tema geradora, dentro de um tema geradora e aí pega aquilo e dizer pra criança fazer uma dissertação descritiva de tudo o que a gente trabalhou o que ele memoriza, ou através do caderno o que que ele, qual é a importância do que ele fez devolver o que ele aprendeu, aí o que ele não apreendeu já ajuda o professor a retomar, eu penso assim, eu sempre gostei de fazer isso. Ó faz um texto sobre tal coisas, umas coisa que a gente já desenvolveu né pra ver se ele entendeu ou não entendeu essa é a questão descobrir se o aluno entendeu se aquela atividade que a gente desenvolveu durante as aulas né, fazer tipo um texto juntando tudo essas coisas tu sabe o que ele apreendeu e o que ele não conseguiu, porque se ele não devolve o que apreendeu é sinal que ele não apreendeu. Então através desse trabalho a gente descobre o que tem que retomar, o que tem que aprofundar. Eu penso assim. Porque responder questões assim...também é uma forma, mas em vez que o aluno na hora mesmo se esquece já a palavra prova assusta e quando se assustou não faz mais nada. Diego: Na escola tem repetência? Dorvalino: Sim tem repetência, mas tem repetência pro aluno que não deu atenção para o que fez, na verdade não é tanto a freqüência porque as vezes o aluno falta por necessidade, pois ele tem boa vontade então esse aluno não pode ser prejudicado por que no futuro ele vai te um rendimento bom. A repetência é aquele aluno que só levou na brincadeira e não deu atenção para o que fez, não participou então esse merece a repetência né para mostrar para ele que as coisas não é brincadeira. Diego: Sobre tua formação Dorvalino eu sei que tu faz Pedagogia na UFRGS e o que mais? Dorvalino: Fiz o magistério indígena na UNIJUI-Oeste, é eu fui fazer esse magistério né, magistério voltado mais para a educação indígena, magistério especifico né. Para trabalhar mesmo com esse povo Kaingang professores que já tinham uma convivência com indígena e deu muito bem para desenvolver esse trabalho, esse curso teve um bom rendimento, saiu 83 bastante material em Kaingang e que hoje todos esses professores estão fazendo um bom trabalho em suas salas de aula e essa formação foi para quebrar um tabu que, os professores brancos dominavam muito as escolas indígenas né, a Funai teve também uma formação de monitores indígenas que funcionou para monitorar os branco né, ajuda a ensinar na língua portuguesa leva essas mensagens num pensamento branco, então era assim que tava funcionando antes dessa formação né, e nossa foi contraditória a essa realidade e que nas escolas só se trabalhava as propostas pedagógicas branca né, e a gente já mudou essa proposta, essa idéia, essa prática assim foi uma luta né, a gente enfrentou uma luta após essa formação e que foi resistene essa luta né, tivemos muita resistência em todas as instituições né, dentro da escola, na nossa escola onde nós trabalhava, da direotira, do município, do estado. E que nós vimos que a alfabeização estava muito forte na língua portuguesa né, então tu não pode alfabetizar uma criança que tem uma língua materna e alfabetizar ela em uma outra língua que não é a própria dela, então quando falo de tabu eu to querendo chegar nesse ponto né e aí a gente começou a trabalhar desenvolver os trabalhos, lutando né e daí eu consegui nesse meio tempo, nessas lutas ingressar na faculdade e a luta continua né, as instituições não estão preparados para atender uma língua, eu vejo muito forte ainda que a educação escolar ela não ta preparada para atender línguas diferentes e nem culturas diferentes. É uma proposta e aquela proposta prevalece nacionalmente e que essa proposta joga todo mundo no mesmo saco e o barco anda assim mesmo. Diego: Quantos trabalhadores tem lotados na escola da aldeia? Dorvalino: Professores e funcionários são quatro. Dois professores, a merendeira e a faxineira. Mas temo aí né vamo preencher o quadro agora de professores e funcionários, pra ser autorizado emos que preencher o quadro, vai precisar mais gente. A diretoria né, todos os professores, para todas as séries. A proposa vai ser até o 9° Ano, mas a escola vai atender só até o quinto por enquanto, futuramente quando tiver clientela vai se alastrando né, conforme a clientela ele vai indo... Diego: No teu entendimento o que significa a escola para os povos indígenas? Dorvalino: É pra chegar nesse ponto tem que ser muito trabalhoso e com muito cuidado, porque uma escola diferente, proposta diferente, funcionário, até o próprio prédio em que ser diferente com a cara do povo e em que ser muito diferente né a proposta pedagógica o calendário, funcionário e introduzir essa proposta branca para dentro dessa proposta Kaingang hoje é diferente, hoje a maioria das escolas que funciona que eu conheço no Rio Grande do 84 Sul a proposta pedagógica Kaingang ela está sendo introduzida, ela não esta sendo tão valorizada os horários de aula Kaingang são muito curto então isso não é recomendável, então a nossa proposta aqui da comunidade é trabalhar o cinqüenta por cento da proposta Kaingang e cinqüenta por cento da proposta branca, vamos dizer né, casar as duas coisas no mesmo horário vamos dizer prevalece, os horários tem que ser igualitário assim mas é aquilo que eu falei lá no inicio né agora a escola está sendo interessante de uns anos para cá que eu observo né. Os pais estão dando mais valor para a educação escolar por causa para ter vantagem na sociedade tem que ser letrado né, senão está sujeito de ficar para traz, porque aquela coisa da boa vida já se acabou né por que antes nós tinha tudo né, se quisesse fazer uma produção de grãos ela produzia muito bem, valia a pena você produzir grãos, e hoje não dá prejuízo por causa dos insumos né para essa produção, então os pais vendo isso estão dando valor para a educação escolar, estão empurrando os filhos para os estudos e antes não era assim. Antes eles não gostavam muito que os filhos estudassem, queriam que eles fossem pra roça ou fazer atividade de casa né hoje parece que está revertendo, mas ainda não reverteu por completo porque por enquanto os alunos estão assim um pouco a vontade né...frequentam se quiser, se não quiser não é cobrado, muitas vezes o pai diz não precisa ir para a escola por que tu tem que me ajudar a fazer isso e aquilo, então ainda tem que esforçar mais para que todos os pais entendam que a educação escolar tem o seu valor NE. 85 ANEXO B - ENTREVISTA COM JOESMI, PROFESSOR INDÍGENA DA ESCOLA NA ALDEIA KAINGANG VOGA EM SÃO LEOPOLDO Fotografia 7 – Professor Kaingang Joesmi Fonte: Registrado por Diego Severo Diego: O que tu acha da escola na aldeia? Joesmi: O que eu acho? Eu acho, eu acho que sim, bom né, a gente trabalha com as mesmas crianças né que são daqui, a gente já é acostumado a trabalhar com eles né, a gente se entende 86 um ao outro né, eu acho bom. Trabalhar com as crianças daqui. Esses anos que eu to trabalhando com eles, eu, cada vez mais to gostando né. Diego: Quanto tempo tu já está trabalhando? Joesmi: Já faz pra três anos que já trabalho aqui. Diego: Eu não sei com os pequenos como que é, mas é o Dorvalino eu sei que, não sei se pela manha tu chega a trabalhar o Kaingang de forma escrita? Joesmi: Sim, ali o kaingang eu trabalho uma vez por semana com eles. Eu trabalho na sextafeira com eles então vou trabalhar amanha né. Ai eu alfabetizo né, que nem de segunda à quarta, quinta-feira eu trabalho né em português, alfabetizar eles né, numerais que também é matemática né. Eu trabalho só com isso com eles até quinta, sexta-feira eu já trabalho em kaingang com eles. Aprender escrever palavras né. Diego: E porque tu acha, porque ensinar Kaingang na escola? Joesmi: Ensinar pra gente, pra eles não perder a cultura né. E é também porque hoje em dia os rapaz novo, esses guri que estão estudando assim para conseguir um emprego aqui dentro da aldeia, tem que saber a escrita, sabe escrever em kaingang, saber ler em kaingang, para poder conseguir senão o estado não contrata para trabalhar aqui dentro da aldeia. Só se consegue fora né, mas lá fora você tem que estar concursado, tem que está formado com a faculdade para poder contratar né. E aqui dentro da aldeia sabendo falar, escrever em Kaingang já contrata né. Diego: Tu estudou em uma escola indígena? Uma escola na aldeia. Joesmi: Já desde a primeira série estudei em escolas indígenas já. Eu estudei em Nonoai. Diego: Daí tinha uma escola dentro da aldeia... Joesmi: Sim tinha uma escolinha de aldeia lá e ali estudei da primeira até a quarta, quinta série. Aquele tempo que eu estudava na aldeia em Nonoai, os alunos estudavam da primeira até a quarta série, aí depois da quarta série eles iam para outras escolas que não eram indígenas né. Aí desde a quinta série eu estudei fora assim né, e agora não, agora nas aldeias grande as escolas tem até o ensino médio né. E sai de lá para fazer a faculdade né. E agora, antigamente não tinha, mas eu estudei até a quinta série assim, assim na aldeia né. Depois da quinta, a sexta série já estudei fora né. 87 Diego: Então quando tu estudou fora, chegou a completar o ensino médio? Joesmi: Sim cheguei a completar o ensino médio já. Na escola pública né. Normal assim. Diego: As disciplinas como é que tu organiza? Joesmi: Aqui na sala, o meu trabalho com a primeira e o segundo ano só, aí os mais adiantados já separo, como estava separando os dois aqui né. É que tem uns que são mais, eles sabem mais por isso eu estava separando eles né. E é aí que eu faço isso né. Eu avalio eles né, os mais avançadinhos que estão mais sabidos eu já separo eles e assim que faço, faço trabalhos diferentes. Diego: O que tu acha das crianças lhe chamarem de “tio”? Joesmi: Eu vejo normal assim né. Porque que a nossa aldeia é pequena né e tem aquele costume né os pais dizer que as pessoas mais velhas as crianças tem que chamar de tio, os mais velhinhos tu tem que chamar de vô. Ali nem que tu não é parente chegado, mas eles chamam você de tio ou é costume né. Já desde pequenos né, aí eu acho normal as crianças me chamarem de tio, aí tem uns que me chama de professor, mas eu acho normal né. Eu não acho tão diferente assim. Diego: É que no contexto do branco, e isso até é mais ou menos cortado das crianças quando pequenos. E aqui o contexto é totalmente diferente pela extensão territorial e etc. E a avaliação dos alunos, como é que tu faz com eles? Joesmi: Eu observo eles né, pelas leituras essas coisas né pelas coisas os trabalhinhos que eles fazem a gente já vai avaliando, a gente sabe quem é que se comporta melhor, qual é que respeita os coleguinhas e etc. É assim que eu faço as avaliações né. É que eu to alfabetizando né ali o aluno que já está pronto pra ser promovido, tem que saber ler, fazer uma frasezinha e sabendo decora aquele ele já está sabendo né. Aí ele sabendo separar a silaba, ele já está pronto né. Já está alfabetizado. E é assim que eu faço. Diego: Tem repetência na escola? Joesmi: Sim, tem uns que repetem. Tem uns aí, eu acho uns dois três alunos que eu acho que já repetiram umas três vezes já. E o problema das crianças não sei se não é os pais orientarem também né, porque tem aluno, mesmo nesses anos que eu to trabalhando acho que é normal né as crianças, a gente vê pelo jeito da criança que quer apreender né e aquele que não quer 88 apreender nem, que nem agora ainda falei pra ela quando eu escrevo no quadro tem uns que ainda querem prestar atenção e tem uns não né, uns nem tão. Aí o problema é vê os pais também né, que nem eu digo pra eles não adianta eu ficar o dia inteiro gritando pro quadro aqui e vocês não prestar atenção, vocês tem que prestar atenção. Em meia hora, duas horas, meia hora de atenção aqui a pessoa pega, só que ali eu acho que o que falta é um pouco dos pais, acho que os pais tem que falar pras crianças dizer ó você tem que prestar atenção na sala, tem que respeitar o professor ali. Eu acho que é assim né. Diego: Quando os pais vão matricular as crianças, onde é que eles matriculam? Joesmi: Eles dão os documentos pra nós né das crianças para a gente matricular. Aqui na escola, no Haidee mesmo. É que aqui não tem diretor ainda né pra fazer matricula ainda.. Diego: É o Alécio e o Dorvalino me comentaram que estava em processo e tal... Joesmi: Sim, sim ta andando ainda né, ele é muito demorado. Diego: Para você o que significa a escola, diferenciada com professor indígena e etc, para os povos indígenas? Joesmi: Eu não acho diferenciada, eu acho o mais diferenciado é que só pela língua e é só isso que é diferenciado e talvez eu penso também, talvez a gente fomos demais sobre a nossa cultura, nossa língua, nossa letra e a escrita, só que ali na hora eu penso né o que eu me preocupo é isso né que eu quero que o aluno vai lá em outra escola lá que não é indígena vai muito mal né. Que nem meu pia que estudou aqui até a quinta série, mas foi lá e rodou três vezes, foi mal em português em matemática, é porque eu acho que atrapalha um pouco, a gente trabalha demais com as nossas culturas também. Eu acho, eu acho bom também a nossa cultura, mas acho que deve ter um pouco de limite né porque ali que nem vai na faculdade lá, lá não vai sair as questões sobre né para responder em Kaingang, ali eu acho mais difícil, eu penso nisso né. Ali porque que eu vou alfabetizar mais em português e matemática mais assim, porque já se sai daqui vai lá para outra escola já, já sai sabendo né. Eu penso pelo meu guri que estuda aqui, esses dias eu tava olhando os trabalhos dele e as provas lá, não achei muito bom né, matemática, português, ciências é porque talvez é nós aqui que não trabalhamos mais em cima dele, trabalhamos mais a nossa cultura, mas eu acho que um pouco atrapalha também né. Por isso que eu trabalho mais aqui. Eu alfabetizo mais aqui em português e matemática porque eu penso nisso, por isso eu deixei o Kaingang só para sextafeira ali aprendendo as nossas letras e as consoantes kaingang, o alfabeto kaingang, sabendo 89 falar umas palavrinhas já está pronto né, sabendo escrever uma palavra já está bem. Eu acho que muito atrapalha um pouco, ai eu acho que os professore indígenas deveriam trabalhar bastante em português, tem que ser uma média, não muito português nem muito kaingang. Tem que ser junto né. Eu acho isso, eu penso nisso assim. Diego: Até porque o kaingang se fala bastante na comunidade? Joesmi: Aqui na comunidade a grande maioria fala kaingang né. Então a gente ensinando umas palavras, formando algumas palavras já está bom né. 90 ANEXO C – ENTREVISTA COM IVANI, VICE-DIRETORA DA ESCOLA ESTADUAL DE ENSINO MÉDIO PROFESSORA HAYDÉE MELLO ROCHA. REALIZADA DIA 15 DE ABRIL DE 2011 Diego: A escola na aldeia como ela está estruturada legalmente? Ivani: Ela é como se fosse uma extensão da nossa. Eles são matriculados aqui, os professores são lotados aqui, eles assinam ponto aqui. A verba que vem para eles vem junto com a nossa. Então só vem separado né, vem o valor separadinho, as compras para eles é a gente que faz, mas é uma escola independente, ela funciona independente porque é deles, mas é tudo por aqui. Tudo vinculado para aqui. Diego: A organização curricular da escola lá da aldeia, como é? Ivani: Ela é assim, as reuniões eles participam, deveriam participar conosco né. É tudo igual, se muda a nossa avaliação é igual pra eles. Então a parte pedagógica tudo eles participam conosco. D: Só para ver se eu entendi, a avaliação do professor ou a avaliação dos alunos? I: A avaliação dos alunos. Ela é feita da mesma forma como os nossos são avaliados, eles participam das nossas reuniões das orientações, são dadas pela nossa escola. Até o preenchimento de fichas e etc., tudo é feito conforme a nossa escola. Porque eles estão lotados na nossa escola. Jonas: Então o caderno de chamada, provas essas coisas vocês chegam, o caderno de chamada o professor tem que passar as notas a mesma coisa como os demais? Ivani: sim, a mesma coisa só que nós não temos como, como é que vou te dizer nós não olhamos as provas que eles aplicam para os alunos deles, isso não. Mas a gente tem todos os dados aqui, eles preenchem o material assim como a gente preenche. Até porque as vezes as gurias da secretaria orientam eles tudo, ajudam eles né. A preencher. O sistema de avaliação é igual, tudo. Claro que os professores deles são da língua, são Kaingang, que nem eles né, mas ah o sistema de ensino é igual. Uma vez eles tentaram vir aqui, mas não deu certo mesmo quando eles foram direto nossos alunos, eles tinham que ter um professor da língua deles. E 91 daí de vez em quando, o dia que eles tinham essa aula a gente tirava os alunos da sala e esse professor vinha dar aula, antes de eles terem a escola deles. D: Então ficava só os alunos Kaingang com esse professor os outros saiam da sala de aula. I: é. E agora que eles tem a escolhinha deles, daí funciona lá. Daí depois do 5º ano eles vêm aqui. Daí eles são, tanto é que assim ó, não tem distinção, tu viu o que ela disse, eles não estão separados por etnia. É tranqüilo é normal. J: E assim, eu não sei como funciona na escola é por trimestre? I: Trimestre. J: E daí no trimestre, têm assim um número de provas que tem que fazer? I: É assim ó, o professor tem a liberdade de fazer as avaliações, então tem assim ó, aham no primeiro trimestre a nota é vinte. O segundo trimestre é trinta, e o terceiro trimestre é cinqüenta. Então no primeiro trimestre a nota vai até 18 que é a nota que o aluno tira por provas e trabalhos, e do 18 ao 20 que é dois isso é o ser e conviver. E dentro desses 18 é estipulado né, o que é prova, o que é trabalho. É estipulado assim, a nota. J: Sim e aí o professor tem..... I: sim aí a professor tem autonomia, o professor administra. E daí ele nesse ser e conviver, sobra esses dois pontos né, que é dai onde tu avalia o aluno que faz trabalho, o aluno assíduo. E eles eu acho que funciona assim também, a gente não sabe se eles cobram exatamente assim, mas é para funcionar assim. J: E nessas turmas assim multisseriadas então a partir desta avaliação vai passando para a próxima etapa, até chegar o quinto ano? I: É, não o quinto ano agora é lá né? Tu sabe que mudou. Até então a gente tinha primeira, segunda, terceira etc. E agora não, nós estamos no quinto ano, por que começou primeiro ano, segundo ano, e já estamos no quinto, vai chegar daqui a três anos que vai ser eliminada a oitava série, que dizer vai ser à nona série. E pra eles também é assim funciona igual. I: Nós tínhamos até o ano passado a nota era conceito, e daí a pedido assim da maioria dos professores e até dos alunos voltou para nota. Tu sabe que tudo se constrói né, não existe, a gente vai fazendo experiências, não deu então tem que mudar isso, muda aquilo, e chegou-se 92 a um consenso que tinha que voltar a nota. Até quando a gente não sabe né, porque daqui a pouco é conceito de novo, é uma construção né. O que a gente vai fazer. J: E aí os conteúdos que eles trabalham lá, então, é para ser os mesmos conteúdos que vocês trabalham aqui? I: Sim, eles trabalham os mesmos, só o que eles tem de diferente é a língua deles, que eles dão importância né, o trabalho deles próprio com a língua deles, a cultura deles isso eles fazem. D: A matricula das crianças, tu comentou que eles vem se matricular aqui né? I: Sim, normalmente quem faz a matricula, quem traz a documentação aqui são os professores. Porque muitos país não querem vir, até por assim meio constrangimento, mas agora dos que são nossos alunos, aqui quando dá alguma situação, a gente chama eles vem. Eles são bem interessantes, são bem cultos assim. Eles são bem como é que eu vou dizer eles tem bastante a noção da educação deles é bem, é bem importante, eles são educados, eles cobram das crianças, é uma educação bem bonita assim. Eu não sei se ela funciona na pratica assim como aqui a gente vê, mas eles tem uma coisa assim, eles tem um prioridade é muito importante, pra eles a educação é bem interessante. A forma do respeito, que eles tem mais do que os nossos alunos aqui. Entre pai e filho tu percebe, que ainda existe muito respeito, eu to falando meu filho dá licença, então assim eles tem um respeito muito bonito. Que muito dos nossos a gente já não vê mais aí. Não é todos né, mas tem uns aqui que a gente vê que não é muito fácil não. Normalmente aquele aluno que não respeita muito os professores ele já tem uma certa tendência a não respeitar os país. Esse é uma coisa que é bem claro, que a educação vem bem de casa. D: Então quando os país, ou os professores lá da aldeia vem matricular as crianças e trazem os documentos elas já são automaticamente direcionadas lá para escola da aldeia? I: Sim, sim, sim. Até o quinto ano é direto lá. Depois em diante é que eles estão aqui. D: Sim, mas daí vamos supor uma situação vem uma família, mas daí com o endereço da aldeia eles vão direto pra lá? I: è aldeia fica lá. D: A escola na aldeia quanto tempo funciona? Assim desde que tá vinculada aqui. 93 I: Olha, não é muito tempo, porque ela tava lá no Charrua, acho que vai faze o que uns quatro anos, é mais ou menos em torno de uns quatro anos. Tu quer que eu comfirme? D: É se houver possibilidade. I: há três anos (desde 2008 conforme informação da secretaria da escola) D: Isso tu também já chegaste a comentar, mas a estrutura na organização da escola na aldeia quanto aos professores, funcionários e etc? I: Eles têm: dois professores, tem uma funcionária uma merendeira, e uma da limpeza. Eles tem, a escola deles é uma dependência só, é uma escola, uma sala de aula com uma cozinha pequena. E ali tem duas turmas em um turno e três no outro. E daí eles tem a merendeira e a funcionária da limpeza. D: Então tu conseguiu né o numero de alunos matriculados na aldeia? I: Lá não, opa desculpa, lá sim. Três, oito dá onze, vinte e três, vinte e oito, trinta, trinta e um. D: Suponho que os dois primeiros anos pela manha, e os demais pela tarde? I: Sim, de manha é o professor Joesmi, D: Assim, mal ou bem nós já abordamos essa ultima questão, mas existe diferença no funcionamento da escola aqui na estrutura oficial da escola e da escola que também é o Haydee só que está localizada lá na aldeia? I: Existe né, porque nós temos toda uma infra-estrutura maior já, poque já tem toda uma escola em andamento eles não. Eles tem aquele material básico, e até porque eles não tem nenhuma, não tem nem verba própria. Eles não tem. Então eles vem aqui, eles pedem o material a gente fornece o giz, a folha de oficio, a merenda, a classe essas coisas a gente vai dando conforme a necessidade deles. E eles é só um pavilhãozinho, é só uma escolinha. Até o ano passado, no inverno eles vieram pedir, mata junta que a escola tinha frestas, e tava frio e daí a gente comprou, não sei quantos metros de mata junta, os pregos. Eles arrumaram, fogão a gente deu. Quando eles não tem as coisas a gente providencia, sempre com um certo controle, porque a gente também não tem tanta verba disponivel. Porque a partir do momento que a escola fosse deles, sozinhos a verba deles é muito maior. Como eles índios. Mas como aqui nós, a gente tem, eles tem a verba que a gente ganha por aluno é muito pouco. 94 J: E assim nessa no caso de arrumação normalmente eles procuram também, fazer as coisas por eles? No caso que nem tu falou, eles vem pediram a questão do mata junta tal. I: Eles arrumaram. J: O que eles poder arrumar eles... I: Eles arrumam, eles fazem. Até porque eu acho entre eles existe uma parceria, entre a própria aldeia né. Porque lé na verdade, quem manda lá é o cacique. Até na escola, o cacique manda. Daí eles. E eles fazem e eles são bem parceiros, porque eles pegaram, a gente mandou a mata junta, os pregos que eles queriam e depois foi lá eles arrumaram tudo direitinho. D: E assim é sempre eles que trazem as demandas? I: Sim. Até por exemplo, os vidros estavam todos quebrados, daí o que a gente fez a gente chamou o vidraceiro, ele foi lá fez as medidas e depois arrumou. A gente só depois paga aqui, né porque. D: Acontece de algumas vezes alguém da escola ir até aldeia? I: Muito pouco. Esporadicamente. É uma coisa que não nos dá prazer, foi uma coisa que colocaram para gente, e nós fazemos a nossa parte e deu. A gente não faz nada além disso. Se nó poderíamos fazer, não sei. Ninguém quer a gente não tem disponibilidade para isso, tanto é que tu pode vê, hoje da direção eu estou sozinha aqui. Então como é que tu ainda vai disponibilizar tempo para ir atender eles. Não tem como, eles até gostariam que agente fosse mais lá, mais ao mesmo tempo quando a gente vai. Eles se sentem meio constrangido, a gente já foi lá em algumas situações e parece assim que daí eles ficam meio que, não sei te explicar eles não recebem a gente com tanta naturalidade, que eles entram aqui na nossa escola, porque quando eles vem para assinar o ponto, eles assinam o ponto aqui. Então eles vem, eles entram assinam o ponto, eles conversam, se eles precisam pedir alguma coisa eles pedem. Quando eles precisam de alguma coisa da secretaria também eles chegam, eles entram, não é que eles são atendidos assim do lado de fora, não, como a comunidade, eles entram eles tem acesso aqui dentro bem tranqüilo, mas eles não nos dão esse acesso. Eu acho que assim, é próprio uma situação constrangedora, porque aqui eles tem tipo uma casa bonita, e a deles não é, eu tenho a impressão que eles se sentem assim, um pouco. Não sei te dizer isso é opinião minha né. 95 D: Sobre o pouco acesso na escola da aldeia, eles não dão acesso a ela ou tu percebe que eles ficam.... I: Não eu acho que é um pouco de constrangimento, não é que eles não nos dão acesso. Eles ficam constrangidos. Eu acho que é constrangimento. Porque eles assim, são bem legal, eles não, eles dão bem assim para conversar eles são bem receptíveis assim, até porque eles são formados. Eles tem formação tudo. J: E esse processo assim que se deu de instalar a escola lá na aldeia e se vinculada aqui, foi eles que vieram atrás disso, como é que foi? I: Foi a prefeitura que colocou, eles estavam lá, e era uma zona de risco né, uma beira de estrada. Daí a prefeitura colocou eles ali, e via CRE automaticamente eles vieram para nós, porque antes eles estudavam no Mario Quintana, eles não tinham a escola independente, eles estudavam todos lá na escola Mario Quintana, e a partir do momento em que eles vieram aqui acho que um ano, ou dois eles estudavam aqui também, aí depois que eles tiveram a escolinha deles lá. Isso foi via CRE né a gente não. D: Como tu enxerga a relação dos professores e funcionários lá da escola com o pessoal daqui? I: É, como é que eu vou te dizer como a gente não tem aquela convivência dia-dia, eles não tem não existe uma aproximação como se agente fosse colega de trabalho, é assim aquela pessoa que chega de vez em quando como visita e eles não tem, eles não participam como, eles não tem uma presença ativa como nós, eles vem, eles vem de vez em quando nem sempre quando são chamados para as reuniões eles vem. E se agente diz, não mas tem que vir, não tem que não. A gente põem falta, mas eles não se importam eles querem é assinar o ponto, sem vim por que eles acham que eles não precisam cumprir que nem nós. 96 ANEXO D – RELATO DA ENTREVISTA COM O CACIQUE ALÉCIO DA COMUNIDADE KAINGANG VOGA DE SÃO LEOPOLDO Fotografia 8 – Cacique da aldeia Kaingang Voga, Alécio Fonte: Registrado por Diego Severo 97 A comunidade indígena está no Bairro Feitoria desde 2007n anteriormente a este deslocamento haviam vários acampamentos dos Kaingang no viaduto da Br-116 desde o ano de 1992. A partir de 2002 um grupo ficou acampado na região permanentemente. O cacique chegou em São Leopoldo por volta de 2005, anteriormente a sua chegada a prefeitura tinha lançado várias propostas para a troca de localidade, mas alguns moradores tinham certa resistência. Então foi tomada a decisão na comunidade que iria se reivindicar território, para isso fecharam parte da rodovia federal, assim a prefeitura voltou a procurar o grupo a fim de mostrar algumas áreas no município. Formaram um grupo de indígenas que com um carro da prefeitura visitaram algumas áreas, se agradaram de um terreno próximo ao Rio dos Sinos, mas foram alertados por moradores do local que quando o rio enchia a área ficava alagada. Com essas ressalvas e um entrave familiar que tinha com a área desejada fez com que os indígenas optassem pelo terreno onde atualmente estão alocados. Na atual localidade da aldeia, moram aproximadamente 30 famílias, totalizando cerca de 150 pessoas (entre crianças e adultos), a área do local é de 2,5 hectares de terra pertencendo ao município. A Funaí reconhece que no local existe uma comunidade indígena, mas a área ainda não pertence à União. Sobre a pretensão da comunidade em aumentar a extensão territorial da aldeia, disse que a comunidade tem intenção, mas acha difícil devido ao desconhecimento da situação dos terrenos que existem em volta da aldeia. Os moradores da aldeia são de origens diversas, grande parte da área de Nonoai e arredores. O cacique é natural da terra indígena de Votorro, juntamente com seus pais. Sobre sua escolarização o cacique mencionou que estudou em uma escola indígena em Charrua, que era mantida pela Funaí. Quanto ao falar Kaingang, destaca que falam continuamente em casa e prefere que falem somente em Kaingang deixando o português somente para o estritamente necessário. Segundo o cacique a língua é o que o indígena tem de mais importante, pois é a partir dela que o índio conquista seus direitos. Que a luta deve ser para não deixar morrer a língua entre os Kaingang. Sobre a escola, relembra que é uma instituição que foi trazida pelo branco, o índio não precisava de estudo e outras coisas que hoje necessita. E a escola diferenciada é um direito do indígena, pois muitas coisas são diferentes como o horário. Quanto a produção de artesanato diz que o estudo está tirando o interesse dos mais jovens, vê que uma aula sobre a produção 98 de artesanato é essencial para a sobrevivência cultural, o artesanato para o indígena é uma questão de sobrevivência. Pois quando o índio sabe fazer artesanato ele pode se sustentar em qualquer lugar. Nunca vai passar fome. Quanto à importância da escola para os povos indígenas disse que preferia não precisar de tanto estudo para discutir e reivindicar seus direitos, pois aqueles que lhe tirou seus direitos deveria saber que ele tem direito a estes e lhe devolvesse o que pertence ao índio. Citou como exemplo os Guarani que disse ser uma etnia que preserva bastante sua cultura, mais do que os Kaingang, e falam muito pouco o português. 99 ANEXO E – DESENHOS DOS ALUNOS INDÍGENAS DO TURNO DA MANHÃ REPRESENTANDO A ESCOLA 100 101 ANEXO F – DESENHOS DOS ALUNOS INDÍGENAS DO TURNO DA TARDE REPRESENTANDO A ESCOLA 102 103 104 105 106 ANEXO G – AUTORIZAÇÕES PARA USO DE IMAGEM E ENTREVISTA 107