RELIGIÃO INTRODUÇÃO Nos primórdios religião e vida se confundiam. A lei era simplesmente a vontade dos deuses.Os princípios morais eram determinados por tabus religiosos. A arte se manifestou, a princípio, pintando e talhando deuses e adornos de seus santuários. Na inumação dos cadáveres, na pré-história, vislumbra-se vestígios de sacralidade, de crença religiosa. Nos rituais fúnebres e noutros a dança, a música e a linguagem reforçavam a esperada “relação” do homem com os deuses (senhores da caça etc.). O despertar do “sentimento” religioso é sem dúvida o divisor de águas entre o humano e o pré-humano, é aí que o antroponídeo se distancia e se afasta de seus ancestrais primatas. E quando o ser humano se vê diante da morte e de outras angústias, do medo, do incompreensível começa a ter idéias sobre uma divindade responsável por estas “coisas” que lhe acontecem. Uma potência que ao mesmo tempo o atemoriza e fascina e que desperta submissão e obediência, maravilhamento e alegria. Ambos, temor e fascínio resultarão na reverência ante o ser poderoso, invisível mas “ativo”.1 É a religião esse poder mágico que dá à criatura humana a possibilidade de se relacionar com o Ser Supremo – Criador. O ser humano procura um sentido para tudo que o cerca, do mundo físico ao mundo das emoções e sentimentos, de tal forma que todas estas coisas passem a fazer parte natural de sua existência. Este ser criado está sempre procurando um mundo que possa ser amado. Há situações em que o homem consegue criar, ter o que deseja e outras em que o objeto de desejo só lhe é possível através da magia da imaginação ou do milagre da palavra. Juntam-se assim o amor, o desejo, a palavra, a imaginação, as mãos, os símbolos para criar um mundo que faça sentido. A cultura não surge onde o ser humano domina a natureza. Ela surge onde o homem fracassa e quando a cultura fracassa em determinado ponto, quando não consegue satisfazer uma angustiante expectativa, surge o símbolo – presença do que não está presente, representação da ausência. Quando o “mundo do homem” fica cheio de 1 . A palavra grega TEOS que dizer também “invisível”.Ou seja um deus é então algo não imediatamente evidente,e sim sutil,algo necessário para explicar o porquê da ocorrência de certos eventos . “ausências injustificadas”, quando o ser humano se encontra no meio de inexplicações, aqui surge a religião “a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza”2. É necessário, ao estudar religião reconhecê-la como presença invisível, sutil, camuflada no cotidiano da vida de cada um. A religião está mais próxima do ser humano do que ele deseja admitir. A religião é inerente ao homem. A ciência da religião é a ciência do próprio humano. Não há registro em qualquer estudo por parte da História, Antropologia, Sociologia ou outra “ciência” social, de um grupo ou grupamento humano, da pré – historia até a contemporaneidade que não tenha professado algum tipo de crença religiosa. A religião é um fenômeno presente em toda cultura. Quase todos os movimentos humanos significativos tiveram a religião como mola propulsora, as guerras mais terríveis, geralmente,foram feitas em nome dela, estruturas sociais foram definidas com base em religiões e grande parte do conhecimento científico “filosófico” e artístico tiveram como vetores os grupos religiosos, que por muito tempo estiveram vinculados ao poder político e social. E hoje, apesar do avanço das ciências, o fenômeno religioso sobrevive, permanece, cresce, desafiando as previsões do seu fim. A humanidade, em sua grande maioria, professa alguma crença religiosa direta ou indiretamente. É interessante notar a harmoniosa presença da religiosidade na cultura de todos os povos. H. Bérgson registra que “se encontram no passado, e se encontram até hoje sociedades humanas que não possuem ciência, nem artes,nem filosofia. Mas nunca existiu sociedade sem religião”3. Como toda ciência a religião trabalha com pressupostos e a questão chave da religião é a presença dos três pressupostos : 1- Deus; 2-Seres humanos; 3-Interação. 1º-Existe um Ser Supremo (Deus ou deuses), numa esfera divina ; 2º-Existem seres humanos, numa esfera inferior ; 3º-Existe a possibilidade de contato entre Deus (ou deuses) e seres humanos. 2 3 . ALVES , Rubem..O que é Religião – São Paulo: Loyola .2003, p .26. . H. BERGSON.As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 1978,p. 85. O fato marcante e real é que não existe sociedade sem religião. A religião é o fenômeno mais antigo, mais permanente e de longa duração que existe. Não é um detalhe ao longo das civilizações, não é um acidente, não é o acessório é o “principal”. O TERMO “RELIGIÃO” O conceito religião remonta ao vocábulo latino religio , palavra que desde a Antigüidade tardia já tinha um significado cheio de controvérsia . Os vocabulários latinos atribuem ao termo religio, em geral, significados correntes entre os autores clássicos: “escrúpulo”, “consciência”, “exatidão”, “lealdade” e outros afins. Observe-se que em nossa cultura o termo “religião” não está veiculado a nenhum destes significados : religio , no mundo latino pré-cristão, indicava um estilo de comportamento marcado pela rigidez e pela precisão, no máximo, evocava as formas de se executar um rito que, pelo caráter da religião romana era regido por normas muito escrupulosas. Entre os escritores latinos que examinaram o termo religio, Macróbio (séc. V d.C.) atribui a Sérvio Sulpício a afirmação de que ele é derivado de relinquere (deixar, abandonar) esta afirmação não teve repercussão; mais aceito foi o termo proposto por Cícero (45 a.C.) escritor romano que derivou a palavra de relegere reputada como “cuidadosa veneração dos deuses”. Para Cícero é a prática religiosa através de seus rituais, sacrifícios e orações – a veneração – como âmago da religião. Sublinha-se o caráter da religião romana neste entender. Lactâncio (o Cícero cristão, séc.III-IV d.C), contradizendo o escritor romano Cícero considera como primitiva a palavra religare, da qual deriva o termo religião e que interpreta como “re-ligação do ser humano com Deus”. Na conceituação de Lactâncio há um pressuposto: uma anterior ligação do homem com o divino, ligação esta que em determinado momento sofreu uma ruptura e após uma “re-ligação”. Para Lactâncio é a religião que se encarregará de restaurar esta ligação com deus. Uma questão ao mesmo tempo filológica e ideológico: o objetivo de Lactâncio era redirecionar o termo religio. Religio a religando significava purificar o termo latino da escória dos rituais pagãos. A questão etimológica será retomada por Agostinho (séc. IV d.C.) em várias ocasiões. No De civitate Dei, procura não se opor a Cícero, de relegere passa a religere (“reeleger”, como retorno a Deus). No De Vera religione, Agostinho retoma a leitura de Lactâncio, retoma o étimo religio a religando. A idéia permaneceu religio que significava uma relação baseada na submissão e no amor entre o homem e Deus : “religio proprie importat ordinem ad Deum”4 PROBLEMAS DA CONCEITUAÇÃO A amplitude do fenômeno da existência das religiões leva a dificuldades grandes ao se tentar definir o seu próprio objeto de pesquisa: a religião. Qualquer que seja a definição, ela não poderá deixar de corresponder aos caracteres de “hipoteticidade”, arbitrariedade, verificabilidade e, conseqüentemente, de falsificabilidade, marcantes do método científico . F. Schleiermacher ao recomendar, em seus conhecidos discursos Sobre a Religião, aos “intelectuais que a desprezam” que não abordassem apenas uma religião mas todas as demais religiões da humanidade para evitar conclusões apressadas e distorcidas. Com o progresso das explorações e de navegadores, descobrem-se e são relatados “feitos” e civilizações antigas. Nesse clima de eufóricas descobertas culturais aumenta a consciência de que o cristianismo é uma dentre tantas religiões presentes no planeta, não é a única. Compreende-se, então, o apelo de Schleimacher para uma abordagem que respeitasse a riqueza e a multiplicidade das religiões. Já se indispunha com o termo “religião”, identificado com o cristianismo e que levava a um “desprezo” pelas demais crenças religiosas. Quando se fala dos termos “relegere” e “religare”, interpretados de modo diverso como “cuidadosa veneração aos deuses” e “re-ligação” com deus por Cícero e Lactâncio, respectivamente, percebe-se que ambas pressupõem a existência da diferenciação entre as duas esferas existentes: a divina e a humana. Partindo daí compreende-se porque a crença em deus é considerada, muitas vezes, como a essência da religião em si, como por exemplo a obra de W. Schmidt sobre a origem da idéia de deus. Também G. Widengren em sua fenomenologia da religião parte da persuasão íntima de que “a crença em Deus constitui a essência mais intima da religião”. Neste contexto Schmidt e Widengren discutem sobre o budismo original (dharma, fa em chinês; chos em tibetano) que não se preocupa com a 4 . KÜNG, Hans. Introdução:O debate sobre o conceito de Religião.In: Revista Concilium 203 (1986/1).p.8. questão de deus e apesar disto é considerado religião, com grande naturalidade, pelo cristianismo. Por outro lado a nenhuma crença religiosa dever-se-ia dar a denominação de superstição. Os dicionários definem supertição como uma crença irracional ou destituída de bases racionais. Mas nenhuma crença se afigura desarrazoada para quem a nutre; ninguém admite acreditar numa superstição. Superstição é termo depreciativo, empregado por quem se julga seguidor de crenças superiores, e portanto preconceituoso. “Definir religião de maneira inequívoca vem a ser tão difícil quanto definir arte”.5 Esta alegação de H. Küng é corroborada ao se falar nos requisitos essencialistas de uma definição, é necessário identificar traços que se encontram em todas as religiões, mas que não se aplicam a outras ideologias ou culturas. Portanto ao se definir religião, uma compreensão essencialista não pode ser usada sob pena de se excluir algum sistema religioso. O termo não é neutro, como aparenta ser . Nas várias culturas religiosas encontramos traços importantes, conceitos que são centrais para elas e que não são relevantes para outras e nem se confundem com os do pesquisador. Assim os cristãos questionam-se sobre o conceito de salvação em outras crenças e entendem com facilidade relativa a preocupação dos budistas pela libertação e o interesse dos hindus pela moksa. Outras culturas, porém, não entendem como prisão o corpo e nem têm o mito da queda do ser humano, e conseqüentemente os conceitos de libertação e de salvação não têm, logicamente, o mesmo significado para elas. O conceito de religião, se bem que não seja totalmente ambíguo, é um conceito analógico que congrega fatores distintos e semelhantes. A distinção se mostra, principalmente, no fato de que este conceito tem de cobrir praticamente todas as variantes desde a crença em muitos deuses passando pela fé num só deus até a não aceitação da fé em deus. E mesmo assim há semelhanças que não podem ser ignoradas. Embora nas religiões se encontrem mais semelhanças que dessemelhanças aquelas hão de merecer especial cuidado pois naquelas encontram-se diferenças. Ao se definir religião deve-se estar atento às seguintes considerações : 1-De que ponto de vista se parte ao fazer esta tentativa? 2-Como olhar sem ingenuidade? 5 . KÜNG, Hans. Introdução:O debate sobre o conceito de Religião.In: Revista Concilium 203 (1986/1).p. 9. Isto porque a estrutura religiosa não é neutra, mesmo que tenha uma aparente neutralidade ela tem interesses políticos, econômicos e outros espúreos. O QUE É RELIGIÃO ? Muitos cientistas da religião deram e continuam dando sua contribuição procurando uma resposta à questão. Partiram de pontos de vista diversos: sociológicos, filosóficos, jurídicos, de fé etc. Neste sentido nenhum deles pode ser deslegitimado, pode-se concordar ou discordar, mas não considerá-los ilegítimos. Todos, de uma forma ou de outra contribuíram para promover uma compreensão maior das várias crenças religiosas dos diversos povos. Vejamos alguns deles: W. Schmidt A escola histórico-cultural de Viena, foi fundada e durante quase meio século, dirigida pelo Padre Wilhelm Schmidt (1862-1954). A sua idéia era estudar não só uma religião ou não só as religiões de determinados povos mas estender o estudo comparativo a todas as religiões para em primeiro lugar compreender melhor as particularidades individuais de cada religião e depois se chegar a uma sistematização claramente distinguível das religiões e de seus fenômenos. Ele próprio diz que seu método de estudo das religiões é histórico-comparativo. A sua ousada tese de pré-compreensão teológica foi duramente criticada, principalmente por Pettazzoni. W. Schmidt chega a uma solução claramente teológica para o problema da primeira forma de religião, questão esta que afligia a todas as escolas da época. A compreensão da idéia de deus como a essência da religião em si embasa a obra de Schmidt que colocava no centro da religião a veneração dirigida aos Seres Supremos. Aplicava, à sua maneira pessoal, a interpretação que Lactâncio deu ao termo religio à uma descoberta por ele considerada decisiva e que sem hesitar unia diretamente à revelação contida na bíblia: toda e qualquer religião posterior nada mais seria que uma forma mais ou menos degenerada deste o início. Acontece, porém, que ao definir religião substituiu a expressão “crença em Deus” por “reconhecimento de um ou mais seres pessoais que sobressaem além das condições terrenas divindade. e temporais” compreendendo assim a Max Weber e Émile Durkheim Estes “os fundadores” da sociologia moderna, atribuíram importância teórica ao estudo da religião, colocando-a no centro de sua teoria da sociedade. Weber inclinou-se a focalizar a mudança social e estudou a religião como fator de mudança social. Durkheim, por sua vez, se perguntava como a sociedade se mantinha unida e assim se dedicou aos elementos responsáveis pela coesão e solidariedade. Considerou até a religião como fator essencial de identidade e integração. Max Weber, impressionado com a variedade enorme de fenômenos religiosos não quis dar uma definição e optou pelo uso comum. Para ele religião era o cristianismo e as religiões mundiais como também as religiões primitivas. Para Weber a religião proporciona a matriz de sentido, mas esta função social não esgota o seu sentido. Weber estava mais interessado no impacto da religião na sociedade e na vida humana do que na sua essência. Ao mesmo tempo ele não quis fazer da religião um elemento constitutivo da sociedade. Émile Durkheim considerou a religião de forma bem diferente. Para ele a religião era essencialmente social. As crenças e as práticas relacionadas ao sagrado uniam as pessoas numa só comunidade com um só coração e uma só alma.Quando mais jovem, influenciado por pensadores sociais franceses anteriores, afirmou que a religião não tinha lugar na sociedade moderna mais esclarecida e científica como outrora tivera nas comunidades tradicionais. Mais tarde mudou o discurso. Baseado em sua pesquisa sobre a sociedade primitiva e a moderna concluiu que os símbolos da interpretação do mundo conservam permanente importância mesmo na era da ciência e da tecnologia ,e estes símbolos são ao mesmo tempo a força que mantém unida a sociedade e a força que a chama a uma fidelidade maior a seus ideais. “Há na religião algo de eterno destinado a sobreviver a todos os símbolos particulares nos quais o pensamento religioso se envolveu sucessivamente”.6 Durkheim tinha tanta certeza de que a religião era o centro da sociedade que não podia imaginar uma sociedade totalmente profana e secularizada. Para ele Religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, interditas;crenças e práticas que unem em uma mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem.O segundo elemento que ocupa lugar em nossa definição e que não é menos essencial que o primeiro é o fato de que a idéia de 6 . Durkheim, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo. Paulus, 1989, p. 504 religião é inseparável da idéia de igreja, isto quer dizer que a religião deve ser uma forma eminentemente coletiva . Gerardus Wan der Leevw Teólogo e pastor, para ele o ser humano nasce insatisfeito, com uma sensação de incompletude e mais ainda pela característica da cultura, a rapidez das mudanças. O homem aceita a vida mas não a encontra completa. Ele precisa mudar esta vida entendida como algo que lhe é dado.Considera a noção de power (força e poder) está na base do fenômeno religioso. A religião existe porque existe a idéia de que há alguma coisa errada no mundo. Este mundo esta numa queda, a religião irá neutralizá-la. A definição de Wan der Leevw tem base filosófica. A noção de poder é a essência da religião e é ela que vai identificar a natureza sagrada que vai autenticar pessoas e coisas sagradas. Uma posição diferente da posição do sociólogo Emile Durkheim, que era ateu. A religião nasce com a crise existencial, para “melhorar” o mundo. É ela que dá o sentido último da vida e a partir daí tudo se encaixa, tudo passa a ter sentido. Deus é silêncio, a religião é como saída ( exit êxito ). Para Wan der Leeuw a religião é a fé e há entre a fé e a evidência uma estreita relação de parentesco, apesar da impossibilidade de que a fé como base metódica da teologia se remonte à evidência, no fato de que a evidência em sua essência, “é uma disponibilidade à revelação”.7 Rudolf Otto A sua conhecidíssima obra “O sagrado” influenciou o surgimento da Escola de Marburgo e ainda continua sua tradição. Baseando-se principalmente no ideal da compreensão e participação. Sugere que a religião deve ser estudada a partir da “experiência religiosa” que é o seu verdadeiro centro e o ponto de partida para seu estudo. Otto prefere à definição falar de “compreensão”, “intuição”, “participação” no mundo religioso. Para se chegar a uma definição/compreensão de religião é necessário traçar diretrizes. Primeiro, existe a convicção de que se entende a religião a partir da “experiência religiosa” e ela é significativa para o homem que a vive; um segundo motivo consiste em acentuar a tese segundo a qual, se a religião constitui “experiência religiosa” o estudioso de religião 7 . Wan der Leeuw, Gerardus- “Fenomenologia de la religio”.México. Fondo de Cultura Econômica, 1964, p.654. deve identificar-se com o homem religioso. Por fim, existe a tese de que o sentido do sagrado tem sua intencionalidade real. Rudolf Otto descobre o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium tremendum, dessa majestade que exala uma superioridade esmagadora de poder; encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans, em que se expande a perfeita plenitude do ser8. Cria o conceito de sagrado, que vai influenciar a compreensão de religião. Na base da religião está a experiência do sagrado, do numinoso, do estranho; esta experiência que ao mesmo tempo causa fascínio e temor, aproximação e afastamento. É a experiência do sagrado/divino. Otto designa todas as experiências como numinosas (numen, “deus”) porque são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino. Uma definição intuitiva, essencial, ostensiva e também hermenêutica-teológica que se encarrega de aproximar a história das religiões à teologia das religiões, tendo como certo que compreender a essência da religião é participar na verdade da própria religião. 9 Mircea Eliade Sem dúvida, é hoje o incontestável mestre da escola de Chicago. Difícil procurar na obra de Eliade uma definição de religião. A compreensão fundamental continua sendo o sagrado como experiência, autêntica e irredutível. Surge aí a necessidade de elaborar uma teoria compreensiva do homo religiosus. No prefácio de seu Tratado Eliade escrevia: ...um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. 10 Eliade quer não só colocar-se contra o reducionismo mas também indicar o valor da religião e da pesquisa sobre as religiões. Para ele toda manifestação do sagrado é conseqüente : todo rito, todo mito, toda crença ou figura divina reflete a experiência do sagrado e por conseguinte, implica as noções de ser, significação e verdade.11 Trabalhou a religião centrando sua compreensão do fenômeno religioso na experiência religiosa, na manifestação do sagrado no profano. O elemento central da religião é a hierofania, esta manifestação do sagrado no profano. A história das religiões é a história 8 . Mircea ELIADE. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.16 . Aldo Natale TERRI. Sobre a definição de Religião na História das Religiões. In Revista Concilium -1980/6 p.99. 10. Mircea ELIADE. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.1. 11 . Mircea ELIADE. História das Crenças e das Idéias Religiosas. Chicago: Payot, 1989. 9 das hierofanias. O sagrado se manifesta sempre através de qualquer objeto do meio natural, numa dialética do que é sagrado e do que não o é. Desenvolveu em sua vasta obra a tese da irredutibilidade do fenômeno religioso em todas as manifestações da cultura. Eliade acredita que o homem total nunca está completamente fora da esfera sagrada. Para ele ao se estudar o fenômeno religioso deve-se buscar compreendê-lo enquanto fenômeno religioso, pois se corre o risco de negligenciar a total intencionalidade própria do fenômeno religioso. Estabelece, na sua compreensão de religião, uma interface entre a esfera do profano e a esfera do sagrado: o ponto de encontro. Ao definir este ponto de encontro como hierofania, deixa a suposição de que a iniciativa parte do sagrado, que se deixa ver . Geo Widengren Estudioso que junto com Pettazzoni, sucedeu a Van der Leeuw na presidência da “Internacional Association of the History of Religions” caracteriza-se pelo esforço de superar a dicotomia entre estudo teológico e estudo humanista da religião em nome de um estudo puramente científico. A religião não deve ser separada de seu contexto históricosocial, a sua história não é uma epifania contínua de um suposto sagrado. Seus trabalhos estão, de um modo geral, ligados a um estilo neopositivista. Widengren também parte da tese central: a fé no Deus que constitui o núcleo vital das diversas religiões, parte da “convicção” de que a crença em Deus constitui a essência mais íntima da religião. Em sua definição de religião circunscreve o conceito de Deus pela expressão “determinador do destino”. Tanto Widengren como Schmidt discutem o problema do budismo, se pode ou não ser considerado uma religião, neste contexto de existência na crença de um deus ou mais deuses, uma vez que não há no budismo original a figura de divindade. Fredrich Heiler Fredrich Heiler o representante talvez mais insigne e significativo da escola alemã de Marburgo (1892-1967), aluno e amigo de Otto, homem especialmente envolvido no diálogo religioso. Define a religião como sendo uma relação com o sagrado baseada na revelação e na graça: essência da religião, portanto, é a comunhão do homem com a realidade transcendente que flui da experiência da graça divina , uma comunhão que se realiza na adoração e no sacrifício e que leva à beatitude do homem da humanidade. Baseado na compreensão fenomenológica de R. Otto e M. Eliade . ele define a religião como a “lida com sagrado”. A religião para Heiler é, antes e acima de tudo, Handlung, ação, experiência vivida. A . Lang Lang historiador das religiões, escocês (1844-1912) fez uma descoberta que impressionou o Padre Schmidt, relativa à presença, em muitas populações iletradas, da crença num ser supremo (além de outros elementos menos elevados) não ativo, mas com funções de indicador ético, além de criador primordial que se retirou da “vida ativa” depois de certo período da criação (em geral por causa da maldade do homem). Pelo método histórico-comparativo adotado na escola histórico-cultural de Viena a qual pertencia concluiu: a religião surge quando o homem assume diante do Sagrado e do Divino uma postura subjetiva, totalmente particular. Isto acontece quando o ser humano é emotivamente atingido e atraído pelo objeto e entra em contato pessoal com ele . Para ele a religião não tem a ver com a instituição mas com o sujeito. É atitude pessoal de cada um . Peter L. Berger Retoma em adesão a Otto e Eliade a categoria do sagrado para distinguir determinada espécie de autotranscendência humana de outras, vai além dos cientistas da religião citados quando entende a religião não só como a manifestação do sagrado no profano mas também como possibilidade humana de construir um cosmo a partir do sagrado. Baseando nisto entende a religião como o empreendimento de ser humano no sentido de construir um cosmo sagrado. Religião é esta construção social a partir do sagrado.¹² A religião é a obra humana através da qual é construído um cosmo sagrado. Religião é a temerária tentativa de conceber o universo como humanamente significativo. Em sua obra maior, P.L. Berger alinhado a Durkheim de um lado e a Otto e Eliade de outro entende o sagrado como separação e a religião como “cosmização” do sagrado e como relação reverencial com uma entidade sobre-humana, identificada “em certos objetos da experiência”. Na visão de Berger o sagrado opõe-se não tanto ao profano quanto ao caos; é um organizador global, um criador e mantenedor da ordem, uma retícula coerente de significados últimos; nele está, para o homem religioso, o sentido do cosmo e a sua legitimação. Daí a tendência inerente à religião de dar sentido às instituições sociais, figuras do cosmo; e não só, mas também dar sentido a essa marginalidade temida que é a morte. O tema da teodicéia parece central no pensamento de Berger e em todo o caso é uma resposta ao estado de sofrimento e angústia do ser humano. Peter Berger não perfilha a definição funcional da religião. Para ele a religião relaciona-se com a realidade sagrada para além do tempo. Com Heidegger, Berger vê na angústia da humanidade frente à morte e à mortalidade a característica que define a vida humana. A única força capaz de apaziguar esta angústia é a religião: só a religião lida com deuses imortais, o mundo superior, o domínio transcendente. Thomas Luckmann Docente na Universidade de Constanza, conhecido no campo de Sociologia da Religião. Sem seguir as orientações de pesquisa em voga nos anos 60, predominantemente sociográficas, Luckmann se remete para uma “macrossociologia” da experiência religiosa. O desenvolvimento da era industrial tende a enfraquecer o “poder atribuído” de uma religião, eclesiasticamente orientada. Mas, isso não implica a destruição da dimensão religiosa. A dimensão religiosa é definível no interior dos sistemas simbólicos enquanto “sistemas e significados socialmente objetivados”. Estes, por estrutura própria “ligam as experiências da vida cotidiana a uma esfera de realidade ‘transcendente’ ”. 12 No pensamento de Luckmann, a religião surge dessa “condição antropologicamente universal” que se realiza na transcendência simbólica da realidade objetiva. Assim a religião não é uma exigência psicológica ou no dizer das escolas fenomenológicas, uma experiência inefável que se pode, no máximo, descrever tipologicamente mas não definir. A religião, segundo Luckmann,é um dado ontológico enraizado no ato de transcendência que a personalidade opera em relação à própria base biológica, através dos processos de socialização. É uma definição do ponto de vista funcional. Segue de um certo modo a linha de Berger no que tange a religião entendida como construção de um cosmo mas não liga, necessariamente, esta construção ao sagrado. É a religião definida como “aquilo que permite ao homem que se torne homem”. É através da construção social “religião” que o 12 . Citado no verbete “Religião” no Léxico das Religiões.Vozes .Petrópolis 1998 homem encontra uma via de realização. Esta visão de Luckmann abre outro viés no debate sobre a religião: seria a religião inerente ao ser humano ou um condicionamento cultural? A definição de Luckmann supõe que não existe ser humano sem religião, nem sociedade sem religião. E.K. Nottingham Em Religion and Society (Nova Iorque,1954): “A religião é o fundamento dos laços sociais”. (definição funcional). Marcel Mauss Distingue entre fenômenos religiosos strictu senso e fenômenos religiosos lato senso. Não contrapõe uns aos outros, mas entende poder lê-los como se se tratasse de um continuum: A religião strictu senso caracteriza-se pela presença da noção do sagrado propriamente dito e de obrigações determinadas, como no caso dos fenômenos jurídicos (...).Como um grande halo em torno desses núcleos, que são a magia e a religião,temos o folclore, as crenças populares. Os fenômenos religiosos lato senso “compreendem principalmente a magia, a adivinhação e as supertições populares”. J. Milton Yinger Acha que a clássica derivação religio a religando é totalmente insuficiente seja porque não consegue desfazer a angústia pessoal e coletiva que permeia a experiência religiosa seja porque é incapaz de compreender o papel de legitimação que a religião historicamente exerceu. Define a religião pode ser pensada de um modo último de resposta e de adaptação; é uma tentativa de explicar aquilo que de outra maneira não seria explicável ; de recuperar o vigor quando todas as outras forças terminam; de instaurar o equilíbrio e a serenidade diante do mal e do sofrimento, que outros esforços não foram capazes d eliminar. Paul Tillich Importante teólogo propõe uma definição de religião lato senso “Religião,no sentido mais amplo e essencial da palavra é a preocupação última (ultimate concern)”. Raimond Firth Estudioso inglês considera que a religião intervem, como instrumento de proteção extrema e valores indicados na definição, quando estes aparecem ameaçados por situações que os homens não podem controlar. Formula uma definição eclética de caráter antropológico , no âmbito europeu “religião é uma relação que liga o homem, dentro da sociedade, aos seus fundamentais fins e módulos de valor, através de algumas entidades e forças não humanas”. Niklas Luhmann A religião no entendimento de Luhmann é “um meio de comunicação”, ela permite a passagem, segundo uma modalidade implícita (latente), “da complexidade indeterminada para a complexidade determinada”. René Girard Antropólogo francês, conhecido por seus estudos sobre a relação entre o sagrado e violência. Para Girard, o centro de qualquer religião é o sacrifício, entendido como ritualização preventiva das tendências agressivas existentes, ativas, vivenciadas em todas as sociedades: “é a harmonia da coletividade que o sacrifico restaura, é a unidade social que ele reforça...Graças a ele, as populações permanecem serenas e não se rebelam. Ele reforça a unidade da nação”. O religioso , para ele nada mais é que esse imenso esforço de manter a paz. O sagrado é a violência e é querida pelo religioso na medida em que ela for usada para trazer a paz; “o religioso é todo orientado para a paz, mas os meios dessa paz nunca dispensam a violência sacrificial”. Fez do sacrifício- e portanto, da religião- o fundamento da história humana. CONCLUSÃO Com o iluminismo a religião passou a ser vista sob um olhar crítico, foi colocada em bloco. Analisou-se, criticamente, o seu papel e a sua participação na sociedade. Seria neutra e sem interesses ou não. Mas neutra ou não o fato é que não há sociedade sem religião. E a visão de vários estudiosos sobre o que é religião, não lhe tira o brilho nem diminui seu valor e importância nas culturas. Não se pode convencer alguém a não ter idéias religiosas. Se elas têm idéias algo as forçou. Marx anteviu o fim da religião, pra ele a religião era “o ópio do povo” mas se a religião, realmente, nublasse a visão do povo, impedindo-o de ver a realidade política tal qual ela é, certamente, o Estado e o poder econômico estariam ao seu lado, protegendo-a como a uma aliada. Mas isto não acontece, ao contrário, vários líderes religiosos são perseguidos, intimados, ameaçados, presos e até mortos por serem tão somente o que são. Todas as definições revelam um certo pré-conceito sobre o fenômeno religioso e mais outras que fossem listadas e ter-se-ia a mesma observação a fazer. Todavia, estas definições em muito contribuem para o estudo da religião, todas são vistas a partir de um ponto de vista do crente ou do filósofo da religião. As várias explicações sobre “o que é a religião” são “tentativas” de conceituação, dada a complexidade do fenômeno. Foi por considerar esta complexidade e a dificuldade em encontrar uma definição que respondesse à pergunta “O que é religião” que W.C. Smith sugeriu que se substituísse o conceito de religião por estes dois outros conceitos - tradição cumulativa e fé. BIBLIOGRAFIA FILORAMO, Giovanni. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999. ELIADE, Mircea.Tratado de História das Religiões. São Paulo:Martins Fontes, 2002. KÖNIG, Franz. Léxico das religiões: Petrópolis : Editora Vozes, 1998. DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo: Paulus, 1989. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ALVES, Rubem. O que é religião ? São Paulo: Edições Loyola, 1999. ROHDEN, Cleide Scartelli. A camuflagem do sagrado e o mundo moderno à luz do pensamento de Mircea Eliade. Rio Grande do Sul:Edipucrs, 1998 . BAUM, Gregory, Definições de Religião na Sociologia. In Revista Concilium, v. 156, 1980/6 TERRIN, Aldo Natale. Sobre Definição de Religião na História das Religiões. In Revista Concilium , 156, 1980 /6 KUNG, Hans, Introdução: O Debate sobre Conceito de Religião. In Revista Concilium 302, 2003/4 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.