UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” AVM FACULDADE INTEGRADA O INSTITUTO DO FAIR USE E A PROPRIEDADE INTELECTUAL NO BRASIL Por: Isabella Rodrigues Bonisolo Orientador Prof. Francis Rajzman Rio de Janeiro 2012 2 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” AVM FACULDADE INTEGRADA O INSTITUTO DO FAIR USE E A PROPRIEDADE INTELECTUAL NO BRASIL Apresentação de monografia à AVM Faculdade Integrada como requisito parcial para obtenção do grau de especialista em Direito da Concorrência e Propriedade Intelectual. Por: Isabella Rodrigues Bonisolo 3 AGRADECIMENTOS Ao meu namorado Paulo, que recuperou o único arquivo que eu salvei da monografia pronta, que o computador corrompeu uma semana antes do prazo. 4 DEDICATÓRIA Dedica-se à minha família, que sempre olha com admiração e orgulho todas as vitórias da minha vida. 5 RESUMO O presente trabalho debruça-se sobre o instituto do Fair Use, do sistema Copyright do Direito Americano, e sua aplicação (ou não) na legislação brasileira. A pesquisa busca justamente traçar algumas nuances das diferenças e/ou semelhanças entre o “uso justo” do Copyright e do regime jurídico brasileiro para Direitos Autorais. Com as mudanças na Sociedade da Informação, cada vez mais sedenta pelo acesso à informação e cultura, percebe-se que o Direito Autoral possui função essencial diante do interesse coletivo de uso. Assim, a limitação ao uso exclusivo dessa propriedade intelectual é problemática a ser insistentemente estudada, a fim de garantir o diagnóstico do posicionamento jurídico atualmente adotado pelas legislações vigentes. Diante dessa necessidade, este trabalho pretende dar um panorama sobre como essas limitações são encaradas no Direito Americano, com o instituto do Fair Use, e como a legislação brasileira se posicionou sobre o tema. Como o Fair Use foi instituto transportado também para o Direito Marcário, esta pesquisa também analisa como se dá essa apropriação no Direito Americano e as limitações implementadas na Lei da Propriedade Industrial Brasileira. 6 METODOLOGIA Esta pesquisa priorizou a revisão bibliográfica como arcabouço construtivo acerca do posicionamento jurídico adotado nos sistemas de Direitos Autorais analisados, o Americano e o Brasileiro, para o Fair Use. Priorizaramse artigos de revistas especializadas e da Internet, por este material ser o mais atualizado sobre o cerne deste trabalho. Ademais, como a Internet é uma das grandes motivações das discussões sobre Direitos Autorais, também é ela um dos importantes palcos da exposição de pensamentos sobre as limitações do Direito do Autor. A fase um da pesquisa foi baseada apenas no levantamento desses artigos, livros e sites que poderiam contribuir com o trabalho. Em um segundo momento, fez-se a leitura exaustiva da bibliografia citada para começar a pensar a divisão estrutural da monografia, pois só assim, com o pensamento organizado didaticamente, é que se poderia aprofundar nos assuntos dos sub tópicos dos capítulos. Por fim, a pesquisa focou-se na leitura de jurisprudências dos Tribunais Brasileiros. Embora este trabalho tenha preferido adotar uma postura mais teórica, as jurisprudências possuem muito conteúdo doutrinário jurídico, por ser a aplicação nos casos concretos. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 08 CAPÍTULO I - Considerações sobre o Fair Use 10 CAPÍTULO II - O Direito do Autor e o Fair Use na Legislação Brasileira 16 CAPÍTULO III – O Fair Use e as Marcas Registradas 39 CONCLUSÃO 44 BIBLIOGRAFIA 51 FOLHA DE AVALIAÇÃO 57 8 INTRODUÇÃO Não há dúvidas que se vive na Sociedade da Informação. As ferramentas comunicativas e de criação se multiplicam a cada dia. Os meios eletrônicos, sejam online ou off-line, têm garantido o acesso aos usuários comuns, que aparentemente não se consideram artistas, a uma gama de instrumentos de criação cultural e informativa. É diante desse quadro contemporâneo que se vê a necessidade das questões de Direitos Autorais estarem na pauta do dia. Assim, este trabalho busca discutir um pouco sobre os limites do Direito do Autor sobre a sua obra. Para isso, optou-se pela abordagem de um famoso instituto do Direito Americano, o Fair Use. O Fair Use, em sua tradução literal, significa “uso justo”. Ou seja, diz-se daquela apropriação da obra, que mesmo sem a autorização do seu titular, é considerada lícita em determinadas circunstâncias. Objetiva-se, portanto, dar um panorama sobre tal instituto. Apenas com noções preliminares sobre o tema é possível observar, comparativamente, como a legislação brasileira se comporta sobre o tema. É exatamente isto que o primeiro capítulo desta pesquisa buscou. Em um primeiro momento, é fundamental delimitar o sistema jurídico de Direito Autoral Americano, o Copyright. Em seguida, busca-se reviver as origens do instituto do Fair Use, para entender como a construção doutrinária se deu. É certo que a criação do Fair Use é no mínimo curiosa: não nasceu da vontade do legislador, mas sim da necessidade da sociedade, em vista de um caso concreto (Folsom vs. Marsh). Após revisitar a história e requisitos para a Aplicação do Fair Use, como a consideração do impacto mercadológico do uso e questões de boa fé, por exemplo, passa-se para o segundo capítulo, onde se abordará a temática na legislação brasileira. Busca-se abranger o maior número de facetas do Direito do Autor na legislação brasileira possível. Para isso, se discutirá a constitucionalização do Direito Autoral e a consequente problemática do confronto com outros direitos fundamentais. Questiona-se sempre o que deve prevalecer no caso concreto e este trabalho pretende tentar dar algumas soluções. 9 Ainda na legislação brasileira sobre Direitos Autorais, fala-se da adesão à Convenção de Berna, no âmbito internacional. Uma das maiores contribuições deste tratado é a Teoria dos Três Passos. Em suma, são os três requisitos que seriam essenciais para que uma limitação ao direito exclusivo do titular da obra. Deve-se então estar diante de casos especiais, que não prejudiquem a exploração da obra e que não causem prejuízos ao autor. Ainda no capítulo segundo discute-se caso a caso as hipóteses de limitação do Direito do Autor na Lei 9.610/98, como caso de citação, cópia, etc. Em princípio os doutrinadores entendem que o rol das limitações, dos artigos 46, 47 e 48 seriam taxativos. No entanto, se verá que a jurisprudência já vem aceitando entendimento diverso. Por fim, preferiu-se visualizar o instituto do Fair Use no Direito Marcário. É certo que o Fair Use é fruto da doutrina de Direito Autoral. No entanto, foi transportado para a área da propriedade industrial. No Direito Americano, a principal validação de uso de uma marca sem autorização é quando esta representa um sentido descritivo ou informativo. No Brasil, a questão está regulada no artigo 132 da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.2779/96). São os casos em que um comerciante do produtor teria a liberdade de uso da marca para anunciar a venda; a liberdade de comércio do produto autorizado a ser vendido no Brasil (livre circulação) e também a liberdade de uso para fabricante de acessórios para a marca. Em resumo, esta monografia tem o intuito de observar como anda a limitação do Direito da Propriedade Intelectual no Brasil, a partir da experiência americana. 10 CAPÍTULO I CONSIDERAÇÕES SOBRE O FAIR USE A questão dos Direitos Autorais pode estar inserida em diferentes sistemas legislativos. Didaticamente podem-se dividir tais sistemas em três, de acordo com as influências culturais e políticas que a definiram. De acordo com Carlos Alberto Bittar (2005), tem-se o sistema individual (europeu), coletivo (russo) e o comercial (norte-americano). Neste momento, este trabalho se voltará para o sistema comercial, desenvolvido prioritariamente nos Estados Unidos, mais conhecido como Copyright. Ao entender esse sistema, será possível começar a delinear as bases desse trabalho, através da construção histórica, jurisprudencial e ideológica do instituto do Fair Use, inserido na legislação sobre Copyright americana. 1.1 – O Copyright e seu sistema Com a invenção da imprensa por Gutemberg, a preocupação com os Direitos Autorais começaram a ter espaço. As questões começaram a ficar mais evidentes no mundo a partir da independência norte-americana e da Revolução francesa. A partir desses dois cruciais momentos históricos, foram moldando-se as vertentes mais conhecidas do Direito Autoral. Na Europa francesa, inundada dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, o regime jurídico para os Direitos Autorais que surgia tinha um viés subjetivo. A tutela jurídica recaía sobre o autor da obra, com uma faceta mais individualista. Nos Estados Unidos pós-independente, ao revés, o regime jurídico moldou-se de forma mais objetiva. Os Direitos Autorais e sua tutela focavam a obra em si e definitivamente prezavam por uma faceta mais comercial. Neste sistema, haveria cláusulas mais genéricas e abertas em relação aos limites do Direito Autoral, o que permitiu o aparecimento do Fair Use. 11 1.2 – As origens e desdobramentos do instituto do Fair Use Durante algum tempo pensou-se que o Copyright como direito positivado não permitia exceções. No entanto, tal assertiva jamais poderia ser encarada como verdadeira, já que a impossibilidade de flexibilizações de uso condenaria a própria produção intelectual. Assim, apesar de os autores (“detentores de Copyright”) terem o direito de reproduzirem suas obras e de autorizarem terceiros as reproduzirem, é importante ter em mente que este direito não é absoluto, visto que possui limitações. No Direito Americano, objeto da análise no momento, estas limitações encontram-se nas seções 107 a 118 da Lei de Copyright e um dos expoentes mais importantes em sua doutrina é o instituto do Fair Use. A justificativa dos legisladores americanos para a criação do Fair Use foi a de que os Direitos Autorais foram criados com o intuito de desenvolver o país, nos campos do progresso, ciências e artes. Dessa forma, tal ambição só seria alcançada caso o próprio direito autoral tivesse exceções. O Fair Use pode ser definido como a permissão de utilização livre de certa obra protegida pelo Copyright, independente de prévia autorização de uso pelo proprietário do direito. Latman (1958) assim definiu: “um privilégio para outros que não o proprietário do Copyright, para usar, de uma forma razoável, o material protegido pelo Copyright, sem o seu consentimento, não obstante o monopólio concedido ao proprietário do Copyright.” (LATMAN, 1958. p.5) 1 Segundo Latman (1958), o Fair Use pode ser entendido de duas formas. A primeira seria considerar o Fair Use como uma infração técnica ao Copyright, 1 Tradução livre de “Fair Use may be defined as a privilege in others than the owner of the Copyright, to use the Copyrighted material in a reasonable manner without his consent; notwithstanding the monopoly granted to the owner by the Copyright.” 12 mas que é escusável. Ou seja, o uso já nasceria como uma infração, mas há a previsão de uma excludente de ilicitude. A outra vertente seria entender o Fair Use como uma situação que não nasce em sua origem como uma infração, pois é caso que sairia da órbita da proteção do autor. O instituto do Fair Use surgiu no Direito Norte Americano, mais precisamente nas Cortes dos Estados Unidos, de forma incidental, a partir da análise de um caso concreto. Pode-se inferir, então, que o Fair Use não é fruto de uma invenção abstrata do legislador, que a dispôs em lei um conceito previamente construído. Pelo contrário. O Fair Use e seu posterior desenvolvimento doutrinário e aplicação foi resultado de uma lide levada ao judiciário estadunidense. Em 1841, o referido conflito, na qual figuravam como partes Folsom e Marsh, teceu as bases posteriores da doutrina do Fair Use, inovando os limites do conceito de Copyright da época. O objeto da lide era a reprodução pela parte ré, sem a devida autorização, de cartas de George Washington, com o intuito de compor um novo livro biográfico sobre o ex-presidente. Segundo Bracha (2008), esse momento em especial do século XIX marcou os estudos e posicionamentos doutrinários sobre os Direitos Autorais de duas formas cruciais. Até então, os Direitos Autorais eram vistos de uma maneira limitada, sendo compreendidos apenas como a possibilidade de imprimir e vender um texto. Com a discussão na Corte, abriu-se a mentalidade sobre a questão da propriedade intelectual, que passou a ser questão com valor de mercado agregado. Por outro lado, pela primeira vez foram discutidos os limites do uso de um conteúdo protegido pelos Direitos Autorais, estando em uma ponta do cabo de guerra os interesses patrimoniais (lucro) do mercado comercial cada vez mais latente nos EUA e do outro o argumento de uma sociedade e seu direito à informação, marcada pelos ideais republicanos da época. No entanto, o legado de Folsom e Marsh foi mais evidente nos anos 1980, quando começaram a pipocar casos em que era preciso determinar o uso justo ou uma infração sem os excludentes do Fair Use. Até hoje o caso é encarado como a semente do combate contra a proteção exacerbada dos Direitos Autorais, numa tentativa de equilíbrio entre 13 os direitos de propriedade imaterial exclusivos e o acesso ao público de informação e conhecimento. Foi em 1976 que a doutrina do Fair Use foi incorporada a Lei Federal Americana de Direitos Autorais (U.S. Copyright Act). Foi posta como uma cláusula geral, de modo a permitir que os tribunais americanos pudessem ter entendimentos diversos sobre a licitude ou ilicitude do uso a partir do caso concreto. Na lei americana, portanto, não há a definição taxativa do uso justo, mas a fixação de critérios, de modo não exaustivo, que ajudam na aferição do qual uso é possível ou não, casuisticamente. Carlos Carvalho (2005), em seu texto “A doutrina do Fair Use nos EUA”, aponta que muito embora a lei não tenha definido expressamente um conceito fechado para o instituto do Fair Use, há a colocação de quatro parâmetros, que devem ser analisados em conjunto, para a aplicação dessa exceção de infração dos Direitos Autorais. São eles: (a) propósito e caráter do uso não autorizado (b) natureza da obra intelectual protegida (c) quantidade reproduzida (d) efeito do uso na autorizado no mercado potencial Sobre o propósito do uso, diz-se da distinção da finalidade em que a obra autoral está sendo usada. A reprodução de uma obra não pode representar para o usuário uma fonte de renda. Assim, um dos indicadores do Fair Use seria o uso sem fins lucrativos. Em relação à natureza da propriedade intelectual em questão, os tribunais americanos vêm caracterizando como Fair Use quando a obra possui um caráter mais científico, histórico, etc. Assim, consegue-se atingir a finalidade da produção intelectual, que é justamente a disseminação de informação. Dessa forma, os usuários que reproduzam obras de puro entretenimento dificilmente têm conseguido a caracterização do Fair Use. Ademais, uma obra de cunho educacional que esteja esgotada poderia ser reproduzida para fins privados. A partir desse quesito, entende-se por que seria lícito copiar integralmente um trabalho científico esgotado, enquanto que fazer download de uma música de uma cantora pop, mesmo que para uso apenas privado, não seria considerado Fair Use. 14 Sobre a quantidade reproduzida, não há uma fórmula certa, com percentuais exatos. Quando julgado o caso, deve-se questionar se o que foi reproduzido foi razoável para atingir o intuito do Fair Use. Carvalho (2005) atenta para o caso das copias integrais das obras, que não vem sendo entendidas nos tribunais como Fair Use, mesmo quando para uso privado, por esbarrar no quarto quesito. O quarto quesito é considerado o mais importante pelas Cortes americanas. Se a reprodução da obra afeta o mercado econômico autoral, não deve ser considerado Fair Use. Isso porque a partir do momento que há uma afetação econômica, cria-se um ambiente de desestímulo ao desenvolvimento de novas obras autorais. Mesmo com parâmetros aparentemente claros, aplicar o instituto do Fair Use não é tarefa fácil, pois não existe uma medida quantificada de quantas frases, parágrafos, trechos ou páginas podem ser reproduzidos de forma justa. Será na análise concreta, nos casos de reprodução para fins de crítica, comentário, informação, investigação e ensino, em que será definido o uso justo ou não. Até porque é um instituto suscitado apenas quando o detentor dos Direitos Autorais se sentiu lesado. Ou seja, quando a infração já ocorreu é que se discutirá a aplicação do Fair Use no caso. “Com efeito, os quatro factores devem ser ponderados na determinação do Fair Use, não se excluindo a consideração de outros factores “extra” com relevo em função das circunstâncias do caso concreto. De resto, os quatro factores são objeto de críticas, considerando-se enganosos o primeiro e o terceiro, vazio o segundo, e claudicante o quarto. Não obstante, para a jurisprudência norte-americana, este último, relativo ao efeito econômico da utilização, é considerado o factor mais importante para determinar o Fair Use.” (PEREIRA, 2008. p.5) Ascensão (2002) acrescenta que o Fair Use não é apenas clausulas gerais, mas possui especificações positivas e diretrizes. As especificações positivas estariam na seção 108 do diploma americano. Isso torna o sistema 15 americano misto, pois contém abstrações gerais e casos específicos, como a possibilidade de uso de obras por bibliotecas e arquivos. Por ter essas linhas limitadoras tão fluidas, muito se discute sobre as desvantagens do instituto do Fair Use. Principalmente quando se fala em segurança jurídica. Alguns autores defendem que a figura do Fair Use é no mínimo estranha, pois foi colocada dentro de um sistema em que a lógica das excludentes de ilicitude está longe de ser subjetivas, mas sim taxativas. De qualquer forma, não há de se negar que a possibilidade de abertura sobre a exploração exclusiva do Direito do Autor é positiva, quando o que está em jogo é o interesse coletivo. 16 CAPÍTULO II O DIREITO DO AUTOR E O “FAIR USE” NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA “O direito de autor é um direito como qualquer outro. Por isso, como todo o direito, tem limites. Isto é particularmente sensível no Brasil, em que a Constituição Federal tão insistentemente sublinha, nomeadamente quando refere os direitos intelectuais, o princípio da função social” (ASCENSÃO, 2002.p.94) 2.1 – O regime jurídico brasileiro para Direitos Autorais Tendo em vista o sistema adotado, fica evidente que em nossa legislação sobre Direitos Autorais, toda inspirada no “droit d’auter”, não há espaço para a exata aplicação do instituto do Fair Use do direito americano. Justamente por não adotarmos o sistema de Copyright (regime jurídico comercial), não há do que se falar em utilização direta do instituto do Fair Use no Direito Brasileiro. No entanto, do ponto de vista lógico, não se pode negar a necessidade de uma limitação dos Direitos do Autor. Não importa a forma ou a nomenclatura que esta limitação adotará no sistema brasileiro, pois o importante é que seja preservada uma série de outros direitos fundamentais e o interesse coletivo. Do ponto de vista das novas tecnologias, também não se pode dar as costas a alguma forma de limitação dos Direitos do Autor. O compartilhamento de informação faz parte do cotidiano mundial, o que, conseqüentemente, leva a reflexão sobre as novas formas de utilização e sua regulação no mundo jurídico. Assim, embora não possamos falar em Fair Use no direito brasileiro, há de se pensar na essência do que se entende por Fair Use, pois a flexibilização 17 do direito de propriedade do autor deve ser considerada em face de situações de outros direitos de caráter mais coletivo em jogo. 2.2 - O Direito Autoral e a Constituição de 1988 No Brasil, o primeiro ato sobre propriedade intelectual foi um alvará de D. João VI, datado de 1809. No texto, o nobre dizia: “(...) e continua sendo muito conveniente que os inventores de alguma nova máquina e de invenção de artes gozem do privilégio, além do direito que possam ter ao favor pecuniário que seu serviço estabelece em favor da indústria e das artes. Ordeno que todas as pessoas que estiverem neste caso apresentem o plano do seu novo invento à real Junta de Comercio e que, reconhecendo a verdade do fundamento dele, lhes conceda o privilégio exclusivo de 14 anos, ficando obrigados a publicá-lo para que no fim deste prazo toda a Nação goze do fruto desta invenção (...)” 2 Posteriormente, todas as constituições brasileiras, excetuando a de 1937, dispunham expressamente sobre os direitos da propriedade intelectual. Com o advento da Constituição de 1988, os direitos de propriedade intelectual ganharam status de direitos e garantias fundamentais, justamente por constarem explicitamente no artigo 5º da Carta Magna. A propriedade industrial foi regulada no inciso XXIX, enquanto que os direitos do autor aparecem nos incisos XXVII e XXVIII.3 2 Trecho retirado do texto “Copyright e Copyleft: direitos reservados ou reversos?”, de Oscar Valente Cardoso. 3 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) 18 É evidente que nem todo sistema jurídico mundo afora prevê em sua Constituição tais direitos com tamanha literalidade. Muitos doutrinadores questionam se tal previsão sobre os direitos da propriedade intelectual deveria estar na Constituição. Afinal, os direitos de propriedade não são um reconhecimento do estatuto fundamental do homem, não sendo, portanto, um direito natural, mas sim uma criação da lei mediante a vontade e conveniência da sociedade. Sobre o tema, José Afonso da Silva defende que: “O dispositivo que a define e assegura está entre os dos direitos individuais, sem razão plausível para isso, pois evidentemente não tem natureza de direito fundamental do homem. Caberia entre as normas da ordem econômica” 4 Assim, os direitos morais do autor reconhecidos constitucionalmente decorrem de mera decisão política e, portanto, não poderiam figurar como direitos fundamentais. Carboni (2006), no entanto, faz uma ressalva para o direito de paternidade do autor. Este sim sempre poderia ter o caráter de fundamental, pois tal status decorreria da própria natureza dos fatos: não se poder renunciar a tal qualidade de criador. XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; 4 SILVA, José Afonso da, citado por BARBOSA, D.B., - citação observada em CARBONI, Guilherme em “Conflitos entre Direito de Autor e Liberdade de Expressão, Direito de Livre Acesso à Informação e à Cultura e Direito ao Desenvolvimento Tecnológico”. 19 Sobre os direitos patrimoniais do autor, há dois posicionamentos, segundo Guilherme Carboni (2006). O primeiro apenas reafirma a posição já exposta de que seria impossível vincular o Direito do Autor a questões de direitos fundamentais, pois ele seria mera decorrência de escolhas econômicas. No entanto, há corrente menos radical, que vê a vinculação dos Direitos do Autor ao artigo 5º corretamente, visto a questão da função social da propriedade. Ao nos debruçarmos sobre a Constituição Brasileira de 1988, podemos perceber que os Direitos Autorais foram protegidos apenas no seu âmbito patrimonial. Ao falar em “direito exclusivo de utilização”, “transmissível aos herdeiros” e posicionar tal inciso próximo a outros direitos de propriedade, o legislador brasileiro demonstra que a proteção constitucionalmente prevista pra os Direitos do Autor é na sua esfera econômica. Os aspectos morais, relativos à paternidade, não são tutelados constitucionalmente. O que para muitos doutrinadores é uma contradição, pois são os direitos morais que decorrem da natureza do homem, enquanto os patrimoniais são uma escolha política da sociedade. “Portanto, o legislador constituinte falhou ao não fazer referência expressa ao direito de paternidade (...) no rol dos direitos e garantias fundamentais no artigo 5º da Carta Magna, pois é ele que merecia a classificação de direito fundamental e não os direitos de propriedade industrial ou de direito patrimonial de autor que, a nosso ver, são reflexos de movimentos de política econômica e cultural.” (CARBONI, 2006. p.41) Outro ponto importante a ser observado é omissão da Constituição de 1988 no que diz respeito à dimensão social e solidária do Direito do Autor. Na nossa Constituição prevalece uma concepção individualista do Direito do Autor, o que definitivamente não está ajustado com a atual interpretação e evolução dos direitos fundamentais. Vive-se uma fase de prioridade aos direitos de desenvolvimento, solidariedade, igualdade e paz. Uma vez que a positivação dos Direitos 20 Autorais dispõe uma individualização, perde-se a função social do direito de autor, em sua perspectiva de interesse público. A promoção do desenvolvimento cultural, econômico, tecnológico, mediante a concessão de um direito privado, que a gente chama de um direito exclusivo, fica, portanto, prejudicada. 2.3 - Direitos Constitucionais contrapostos e o Direito Autoral Sabe-se que é indubitável que o Direito Autoral é considerado um direito fundamental na legislação brasileira. No entanto, a própria Constituição de 88 possui um rol extenso de outros direitos fundamentais. Por vezes, em determinadas situações, o Direito do Autor como garantia constitucional e estes outros direitos com o mesmo status de fundamentais se tornam incompatíveis. “Comumente verifica-se, tanto no âmbito internacional como no interno, diversos conflitos gerados pelo choque de interesses opostos envolvendo os direitos exclusivos dos titulares dos Direitos Autorais, gerando uma constante discussão em torno da proteção destes, ainda que os diferentes institutos legais que tratem do tema tragam regras que relativizam essa hipóteses de livre utilização proteção, elencando de obras intelectuais protegidas que são tratadas, na legislação interna como limitações” (LEONARDOS, 2010) A doutrina muito se empenha em tentar criar mecanismos de solução para os conflitos entre direitos constitucionais. O que se deve ter em mente é que em face de colisão entre dois princípios, deve-se buscar sempre a realização de ambos, sem desprezar nenhum deles. A tarefa não é fácil. Deve-se entender a Constituição Federal como um sistema. Os inúmeros princípios e regras constitucionais não são pontos desconexos, mas sim devem ser entendidos de maneira conjunta e sistemática. Dessa forma, valoriza-se o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. 21 Carboni (2006) menciona Schier e Canotilho como os doutrinadores a serem seguidos para dirimir conflitos entre regras constitucionais. Primeiramente é importante ressaltar que se aconselha a não optar pela prevalência do interesse publico sobre o privado. Deve-se inicialmente buscar a função Constitucional em sua unidade. Se não for possível a solução pela observância da própria regra constitucional, aí sim se tem que adotar uma leitura funcional da Carta Magna para uma interpretação sistêmica. Um segundo ponto levantado por Carboni (2006) diz respeito à prevalência dos princípios constitucionais sobre as regras constitucionais. No entanto, todos os caminhos dados pela doutrina são por demais teóricos e apenas acabam sendo guias para os casos concretos. Por fim, o que deve prevalecer é a razoabilidade. No caso dos Direitos Autorais, por muitas vezes encontramos conflitos com a questão da liberdade de expressão, acesso à informação e cultura e o direito ao desenvolvimento. Como ficariam os Direitos Autorais diante de uma criação de um, DJ, por exemplo? Ao proibir a mixagem de uma música se estaria violando a liberdade de expressão do suposto artista DJ? A liberdade de expressão está positivada como direito fundamental no artigo 5º inciso IX da Constituição 5. No entanto, o próprio direito do autor é uma restrição ao pleno exercício dessa liberdade. Não se pode usar do seu direito de liberdade de expressão livremente no direito brasileiro em relação a uma obra artística, a menos que haja expressado concordância do criador da obra. Há de se ressaltar, no entanto, que a tutela sobre um conteúdo é em relação a sua forma e jamais sobre a idéia. No caso do DJ, os produtos de sua criação na verdade são obras derivadas e dependerão da expressa anuência do autor da obra original. 5 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; 22 “Apesar do conflito filosófico existente, não há, do ponto de vista jurídico, uma real colisão entre o direito de autor e a liberdade de expressão (...), pois a própria concepção do direito de autor já remete à idéia de uma limitação à liberdade de expressão” (CARBONI, 2006. p.45) Muito também discutida é a questão dos conflitos entre os Direitos Autorais e o acesso à informação e à cultura, direitos constitucionais positivados nos artigos 5º, inciso XIV e 215 da Constituição de 1988 6. Estamos diante de um duelo entre direitos sociais e direitos privados. Sem dúvidas a questão mais complicada na atualidade diz respeito ao acesso a informação e à cultura na Sociedade da Informação: a sociedade da Internet. Criada na década de 60 pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa (DARPA) dos EUA, no intuito de proteger o sistema de comunicação norte-americano de um possível ataque soviético com um suposto sistema invulnerável, a Internet – inicialmente a ARPANET – transformou-se em uma rede apropriada por indivíduos do mundo todo com intuitos bem distintos do projeto inicial. No entanto, um caminho não tão longo foi gradualmente sendo percorrido até essas atuais apropriações do mundo virtual, que definitivamente transformaram as relações sociais, a produção de informação, o comércio, a política, etc. Será mais precisamente na década de 70, com o aparecimento dos microcomputadores, que a revolução da tecnologia da informação se inicia. Pierry Levy (1999) defende que o uso do computador como recurso tecnológico pessoal começa na Califórnia, em um momento de “contracultura”. O mono utilitarismo dessa tecnologia, como processador de dados para empresas, 6 XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. 23 passa-se a uma utilização instrumental de criação, diversão, organização, simulação, etc. Nos anos 80 e 90, a web vai delineando-se espontaneamente pela iniciativa de utilização interconectada dos computadores de jovens americanos das grandes metrópoles e nas universidades. Muitos chamam essa fase inicial de web 1.0, pois é o momento da fase embrionária em que os servidores desenvolvem programações para colocar conteúdo no ciberespaço. Por ciberespaço entende-se: “Novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo.” (LEVY, 1999. p.7) Percebe-se um deslocamento da visão do computador como uma tecnologia maquinária para um instrumento de modificação cultural e social. A partir dessas intensas transformações, instaura-se a Era da Informação e, como defende Castells (1999), essa incorporação das tecnologias da informação na vida social vai determinando a sua capacidade de transformação do mundo. “O surgimento de um novo sistema eletrônico de comunicação caracterizado pelo seu alcance global, integração de todos os meios de comunicação e interatividade potencial está mudando e mudará para sempre a nossa cultura.” (CASTELLS, 1999. p.414) Da passividade à possibilidade de um público mais ativo. Da aceitação de conteúdos à construção dos próprios sentidos. A Internet trouxe nítidas mudanças em várias esferas sociais, seja para as empresas produtoras de informação e entretenimento, seja para o público. 24 Assim, não se pode negligenciar que essas mudanças estão na pauta do dia e merecem atenção do aplicador do direito. Os diversos usos que as obras autorais podem ter no ciberespaço trazem à tona a discussão os limites dos direitos do autor, visto que este é um novo espaço de produção e replicação de material. Ademais, conflita-se ainda a questão do acesso à informação e cultura diante das limitações da exclusividade do direito do autor. Carboni (2006) coloca como caso concreto entre direito do autor e o acesso à informação e à cultura os projetos de digitalização de livros e músicas de acervos especiais. Ora, não há na legislação brasileira instrumento jurídico que permita tal digitalização. No entanto, há finalisticamente a presença do interesse público em tal projeto, o que deveria poder levar a flexibilização do direito do autor. Não existem, porém, subsídios jurídicos expressos para esse tipo de limitação. “A Constituição Federal brasileira e a nossa atual legislação de direito do autor não contem dispositivos adequados para solucionar os possíveis conflitos entre os direitos do autor e os da coletividade nas situações descritas nesse artigo. Na ausência de regulamentação adequada, deverão ser aplicadas ao caso concreto as normas relativas à função social da propriedade e de abuso de direito, apesar das suas limitações no que diz respeito ao direito do autor.” (CARBONI, 2006. p.53) 2.4 – Tratados Internacionais e as relativizações dos Direitos do Autor O mais importante dos Tratados Internacionais na área de Direito Autoral é a Convenção de Berna. Neste Tratado, há a disposição da proteção mínima do Direito do Autor, que jamais podem ser burladas pelas legislações internas dos signatários membros. Sobre a questão das limitações do Direito do Autor, temos o expresso o artigo 10 e 10 bis. No art. 10.1, fala-se sobre a licitude da citação. Já no art. 25 10.2 trata-se da utilização sem autorização de obras autorais para fins educativos. É importante destacar que tal artigo, embora tenha deixado a cargos dos países membros a faculdade de regulação interna, prevê que a medida da legislação deve ser regulada de acordo com a finalidade da obra. A Convenção, portanto, deixa clara que o sentido finalístico da obra deve ser observado.7 No entanto, a principal contribuição da Convenção de Berna sobre o tema da limitação do Direito do Autor diz respeito à Teoria dos Três Passos (three step test), encontrada no artigo 9.2.8 7 Convenção de Berna Artigo 10 1) São lícitas as citações tiradas de uma obra já licitamente tornada acessível ao público, com a condição de que sejam conformes aos bons usos e na medida justificada pela finalidade a ser atingida, inclusive as citações de artigos de jornais e coleções periódicas sob forma de resumos de imprensa.” 2) Os países da União reservam-se a faculdade de regular, nas suas leis nacionais e nos acordos particulares já celebrados ou a celebrar entre si as condições em que podem ser utilizadas licitamente, na medida justificada pelo fim a atingir, obras literárias ou artísticas a título de ilustração do ensino em publicações, emissões radiofônicas ou gravações sonoras ou visuais, sob a condição de que tal utilização seja conforme aos bons usos. Artigo 10 bis 1) Os países da União reservam-se a faculdade de regular nas suas leis internas as condições em que se pode proceder à reprodução na imprensa, ou a radiodifusão ou a transmissão por fio ao público, dos artigos de atualidade de discussão econômica, política, religiosa, publicados em jornais ou revistas periódicas, ou das obras radiofônicas do mesmo caráter, nos casos em que a reprodução, a radiodifusão ou a referida transmissão não sejam expressamente reservadas. Entretanto, a fonte deve sempre ser claramente indicada; a sanção desta obrigação é determinada pela legislação do país em que a proteção é reclamada. 2) Os países da União reservam-se igualmente a faculdade de regular nas suas legislações as condições nas quais, por ocasião de relatos de acontecimentos da atualidade por meio de fotografia, cinematografia ou transmissão por fio ao público, as obras literárias ou artísticas, vistas ou ouvidas no decurso do acontecimento podem, na medida justificada pela finalidade de informação a atingir, ser reproduzidas e tornadas acessíveis ao público. 8 Convenção de Berna: Artigo 9 26 Segundo a referida Teoria, pode-se flexibilizar o Direito do Autor, se forem cumpridos os seguintes requisitos (denominados passos): (a) 1º passo – quando for em certos casos especiais (b) 2º passo - quando essa reprodução não prejudicar a exploração normal da obra (c) 3º passo – quando não causar um prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor Alguns autores acreditam que o texto dos tratados internacionais relativos aos Direitos Autorais – não só a Convenção de Berna, mas os posteriores TRIPS e WCT – sempre privilegiaram demais os autores, o que tornava difícil a aplicação da Teoria dos Três Passos, que por sinal é uma teoria com clausulas por demais genéricas. Critica-se que as disposições sobre os direitos exclusivo dos autores na Convenção de Berna são positivos e injuntivos. Ou seja, os países signatários, em suas legislações internas, deveriam dispor claramente e obrigatoriamente sobre isso. No entanto, quanto às limitações ao direito exclusivo do autor, a Convenção as coloca como uma faculdade dos Estados membros em dispor sobre elas em sua legislação interna. Em vista de tal dificuldade de aplicação da teoria, o Instituto Max Planck de Munique, um renomado centro de estudos de propriedade intelectual na Alemanha, publicou uma espécie de guia doutrinário-principiológico que indicava o animus jurídico da Teoria dos Três Passos. “O Teste dos Três Passos já se firmou como um meio efetivo de prevenção da aplicação excessiva de limitações e exceções. No entanto, não existe qualquer mecanismo complementar que proíba que sua aplicação se faça de modo indevidamente limitado ou restritivo. Por esta razão, o Teste dos Três Passos deve ser interpretado com vistas 2) Os membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos exclusivos a determinados casos especiais, que não conflitem com a exploração normal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular do direito”. 27 a assegurar uma aplicação adequada e equilibrada das limitações e exceções. Isto é essencial para se alcançar um efetivo equilíbrio de interesses.” 9 Inicialmente, a declaração deixa clara a importância do privilégio do interesse público como instrumento assecuratório da não negligência da sociedade. Assim, quando surgir um conflito entre os direitos privados do autor e o interesse coletivo, deve-se dar mais atenção e empenho na apropriada solução. E seria justamente do Poder Judiciário o dever de tratar da omissão dos tratados internacionais. Tendo em vista que os tratados pouco dispõe sobre os direitos de terceiros sobre as obras, ao ser omisso em relação a obrigatoriedade de regulação das limitações ao direito do autor, cabe ao Estado juiz atuar diante dos conflitos decorrentes desse silêncio. É enfatizado que, muito embora não haja referências explícitas ao interesse de terceiras partes, a Teoria dos Três Passos não pode diminuir a necessidade de consideração desses direitos. Em suma, a tutela dos direitos humanos e liberdades fundamentais deve ser preservada. “O direito de autor tem como fim beneficiar o interesse público, porquanto estabelece incentivos importantes para a criação e disseminação de novas obras ao público em geral. Estas servem para a satisfação de necessidades comuns, que são satisfeitas tanto por meio da obra em si como por intermédio de sua utilização como base para a criação de novas obras. No entanto, o interesse público apenas estará verdadeiramente resguardado, se o direito 9 A presente versão da Declaração é uma tradução do inglês, realizada por Edson Beas Rodrigues Jr., e revisada por Denis Barbosa e Fabíola Zibetti encontrada em: http://www.ip.mpg.de/files/pdf2/declaration_three_step_test_final_portuguese1.pdf. Acesso em 10 de julho de 2012. 28 de autor oferecer incentivos adequados para todas as partes envolvidas.” 10 Outra orientação da Declaração seria a avaliação conjunta de todos os passos da teoria, pois nenhum requisito deve ser considerado isoladamente. Ou seja, a Teoria dos Três Passos é um todo indivisível (Princípio da Indivisibilidade). Ademais, a Teoria dos Três Passos seria importante mecanismo anticoncorrencial. Ela deve ser considerada de moda a proteger a harmonia de mercados, principalmente os secundários. Isso pode ser observado inclusive na precificação das obras. Preços muito elevados serão aceitos apenas se forem reflexo da concorrência natural do mercado. No entanto, se a exorbitação dos preços for ato anticoncorrencial, a Teoria dos Três passos pode e deve mitigar tal atitude. Como comentário final sobre tal teoria, está o posicionamento do professor Jorge Machado da USP. Em seu grupo de pesquisa, Machado sugere uma nova regra dos três passos, diante das novas tecnologias presentes na contemporaneidade. São elas: (a) 1ºpasso - Os meios digitais constituem um caso especial, por sua peculiaridade; (b) 2ºpasso - não prejudica, por permitir cópias infinitas sem prejuízo à original; (c) 3ºpasso - desde que sem fins comerciais e sem ofensa aos direitos morais de atribuição, não causa prejuízos. É claro que os passos reescritos do professor são apenas uma sugestão. Mas são mudanças a serem refletidas diante da forte presença das mídias digitais. 2.5 – As limitações na legislação infraconstitucional brasileira 5 A presente versão da Declaração é uma tradução do inglês, realizada por Edson Beas Rodrigues Jr., e revisada por Denis Barbosa e Fabíola Zibetti encontrada em: http://www.ip.mpg.de/files/pdf2/declaration_three_step_test_final_portuguese1.pdf. Acesso em 10 de julho de 2012. 29 Primordialmente cabe ressaltar que os termos “limitação” e “exceção” não são sinônimos. As limitações estão relacionadas a certo grau de redução do direito do autor e as exceções diz respeito a supressão desse direito exclusivo11. No entanto, a maioria das legislações sobre Direitos Autorais em nada diferenciam tais termos. A nossa legislação, Lei 9.610 de 1998, também não é diferente. Em seu texto “Os Limites e Exceções dos Direitos Autorais na Sociedade da Informação”, Avancini (2002) diz que essas limitações do direito do autor podem ser divididas em duas categorias. A primeira seria as de livre utilização e a segunda seria a categoria sujeita à remuneração (licença compulsória). Quando se tem limitações do direito do autor na qual a utilização é livre e gratuita, pode-se fazer uso da obra sem a necessidade de autorização prévia e de pagamento ao titular dos Direitos Autorais. Esse é o modelo adotado pela legislação brasileira (Lei 9.610 de 1998), tendo como hipóteses os casos de: (a) cópia privada (artigo 46, II e VIII); (b) direito de citação (artigo 43, III); (c) finalidade de pesquisa e ensino (artigo 46, IV); (d) para uso da informação (artigo 46, I, “a”, “b” e “c”); (e) uso em processos judiciais e administrativos (artigo 46, VII); (f) fins humanitários (artigo 46, d); (g) obras artísticas situadas em locais públicos (artigo 48); (h) execução de músicas gravadas e recepção de transmissões de radiodifusão nos comércios para fins de demonstração (artigo 46, V); (i) paródias e paráfrases (artigo 47); (j) representações privadas e gratuitas (artigo 46, VI). A segunda categoria diz respeito às limitações sujeitas à remuneração, denominadas licenças não voluntárias ou compulsórias. Nela podem-se utilizar obras sem a autorização do autor, mas é obrigatório uma remuneração para ele. Na legislação brasileira não há previsão para tal categoria. 11 AVANCINI, Henara Braga. Os Limites e Exceções dos Direitos Autorais na Sociedade da Informação. p.40 30 Feito esse esclarecimento, passemos aos artigos 46, 47 e 48 da Lei 9.610 de 1998, que dispõem justamente sobre essas limitações do Direito do Autor no Brasil.12 12 Art. 46. Não constitui ofensa aos Direitos Autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza; c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários; II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa; VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. 31 Nos incisos I e II do artigo 46 da Lei de Direitos Autorais há a primeira exceção, que podemos dizer que seria considerada um uso justo em prol da sociedade e seu direito à informação, garantido constitucionalmente. Fala-se na possibilidade da livre reprodução de determinadas obras em veiculação de informações em periódicos ou diários. Assim, um periódico não precisaria solicitar uma prévia autorização do autor de uma notícia já publicada se desejar reproduzi-la. No entanto, só será configurada uma não violação aos Direitos Autorais caso seja citada a fonte e o nome do autor. O mesmo aconteceria com os discursos públicos. A reprodução na íntegra em um jornal independe da autorização de quem proferiu o discurso. Nota-se que a exigência aqui seria de que os discursos fossem públicos, o que também englobaria um discurso feito em um estúdio de TV, sem pessoas assistindo, mas que transmitido por qualquer meio de comunicação para uma audiência. Tal dispositivo legal está em harmonia com a o artigo 10º bis da Convenção de Berna, que dispõe que os países membros teriam a faculdade de regular as suas leis internas no que concerne à reprodução na imprensa, sempre exigindo a indicação clara da fonte. Fala-se da alínea c, inciso I da do artigo 46 da Lei. Aqui se facultaria ao artista criador de uma obra encomendada o direito de utilizar a imagem posta na obra encomendada em uma exposição pública de suas obras sem a necessidade de prévia autorização. No entanto, uma vez que haja oposição manifestada do proprietário da obra encomendada, o uso deixa de ser livre. Um dos itens que demonstram que a função social de uma obra cultural deve prevalecer sobre o direito do autor é a alínea d do inciso I do artigo 46. O texto da lei dispõe que obras literárias, artísticas ou científicas podem ser reproduzidas em Braille sem que haja a prévia autorização do autor. No entanto, só quem poderia realizar essa transposição do texto escrito para o Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais. 32 suporte em Braille seriam as instituições sem fins lucrativos. Ou seja, editoras que queiram produzir livros para comercializá-los não estão incluídas nesse livre uso. Sobre a licitude da reprodução de pequenos trechos (artigo 46, II), na legislação anterior a de 1998, permitia-se uma única reprodução do total de uma obra protegida pelos Direitos Autorais, caso quem a confeccionasse a utilizasse apenas no âmbito privado. Está se falando do artigo que regula a hipótese legal para a cópia privada no Brasil. Ou seja, na anterior lei dos Direitos Autorais era legal, por exemplo, fotocopiar um livro inteiro, desde que fosse para uso privado. No entanto, a disposição da nova lei de Direitos Autorais brasileira restringiu esse tipo de reprodução, o que definitivamente vai ao caminho contrário dos anseios e necessidades da sociedade. Agora só é possível a cópia de pequenos trechos, seja de um livro inteiro, seja de uma peça audiovisual, etc. Ou seja, há a proibição da cópia integral privada. Atualmente, a legislação impõe 05 (cinco) requisitos cumulativos para que a cópia de uma obra autoral seja considerada lícita. São elas: (a) Limitação de um só exemplar; (b) Ser feita pelo próprio usuário da cópia; (c) Ser apenas de pequenos trechos, sendo vedada a cópia integral da obra; (d) Ser destinada ao uso privado do copista; (e) Não haver intuito lucrativo. Obviamente o artigo 46, inciso II da Lei 9.610 de 1998 recebe por parte da doutrina uma chuva de críticas negativas. Inicialmente a crítica diz respeito ao requisito de a cópia ser limitada a apenas um exemplar. Marta Leonardos (2010, p.47) narra excelente exemplo de caso em que a cópia de mais de um exemplar não representaria qualquer dano ao autor da obra. Senão imaginemos que um indivíduo tenha comprado um CD original e este mesmo adquirente resolva fazer duas cópias deste CD, sendo uma para deixar no seu carro e a outra para deixar na sua casa de praia. Não há qualquer prejuízo para o autor em relação ao seu direito exclusivo, pois na verdade o adquirente só quer evitar transportar a mídia e mais nada. 33 Outra crítica comum diz respeito ao termo “pequenos trechos”, que leva a conclusão de proibição da cópia integral da obra. Ora, falta ao texto da lei objetividade na sua definição, pois o que representa pequeno trecho para uns pode não ser para outros. Não há, portanto, um guia de porcentagem a ser seguido. Uma das críticas apontadas nesse dispositivo seria a impossibilidade de reprodução de conteúdos autorais que estão fora de circulação, que não foram reeditados e que são de difícil acesso. Estar-se-ia proibindo e restringindo a circulação de um arcabouço histórico, cultural e científico e, por conseguinte, afetando o direito à informação, constitucionalmente garantido. Diante da falta de definição do que seriam os “pequenos trechos”, multiplicaram-se as interpretações nas instituições Brasil afora. Na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, em 2005, foi determinada uma Resolução com entendimento próprio. Na Resolução, “pequenos trechos” foi entendido como “capítulos de livros e artigos de periódicos ou revistas científicas”. No mercado de copiadoras, alguns estabelecimentos determinaram que pequenos trechos seria10% do número de páginas de um livro. De certo que muito embora a atitude seja interessante, não se pode deixar a cargo das instituições privadas regulação normativa que deveria ser clara na lei. Outra controvérsia diz respeito do “uso privado do copista”. Diante da Internet, tal assertiva fica comprometida diante das inúmeras formas de compartilhamento de arquivos online. Conforme a lei, este compartilhamento seria ilegal, pois extrapolaria o sentido de uso pessoal a que se destina a cópia. O fato é que de nada adianta uma lei que está em descompasso com o desenvolvimento da sociedade. Se o senso comum leva ao não cumprimento da letra da lei, a lei se torna morta. E parece que é exatamente o caso do artigo 46, inciso II. Ainda em consonância ao direito à informação, tem-se o direito à citação, considerado uma norma de ordem pública, disposta no artigo 46, inciso III da Lei 9.610. Este direito permite que se possam utilizar trechos de livros, jornais, revistas ou qualquer meio de comunicação com o intuito de difusão do conhecimento, estudos, ressalvado o direito de indicação do nome do autor e origem da obra. 34 A autora Elaine Abrão (2002), em seu livro Direitos do Autor e Direitos Conexos, enumera alguns requisitos para que a citação seja considerada válida e uma não violação. São eles: (a) A obra citada deve ter sido devidamente publicada e anteriormente à obra elaborada. Ou seja, obra que não veio ao conhecimento do público, sem publicação em modo regular, não pode ser citada; (b) A única finalidade da citação deve ser a de crítica ou estudo; (c) A citação deve ser feita para usos honrados, conforme dispõe a Convenção de Berna, e na medida suficiente para o fim que se pretende. Ou seja, não se pode sair reproduzindo trechos gigantes e alegar citação. O direito à citação não pode ser uma camuflagem para a reprodução não autorizada. Abrão (2002) ainda deixa claro que o artigo 46, inciso III, deve ser combinado com o artigo 33 da Lei de Direitos Autorais. Para elucidar a questão, basta que se imaginem as obras que criticam outras obras. Não se pode reproduzir integralmente determinada obra com a alegação de que se vai comentá-la, anotá-la ou melhorá-la. Abrão diz que: “A norma restringe a possibilidade de fraude, em casos em que, por exemplo, encontrar-se-á dez por cento de obra crítica, e noventa por cento de obra criticada na íntegra.” (ABRÃO, 2002. p. 149) Abrão (2002) diz que o inciso IV do artigo 46 veio para regular a relação entre os proferidos de conhecimento e sua audiência (seus alunos). Este artigo veda a possibilidade de alunos transcreverem ou gravarem os áudios de aulas sem a prévia autorização do professor. Por fim, a análise do artigo 46, inciso VIII deve ser feita em conjunto com o artigo 9.2 da Convenção de Berna. Ou seja, é uma norma que confirma a Teoria dos Três Passos, acima já explicada. Muito se discutiu sobre a possibilidade desse rol ser numeros clausus ou numerus apertus. Para os mais conservadores, o legislador brasileiro teria criado um rol taxativo de situações em que foi flexibilizada a exigência da autorização do criador para o uso da obra. Assim, ficariam enumerados 35 taxativamente os casos em que o uso de uma obra autoral que não foi previamente autorizado é considerado como lícito. Tal entendimento cria obstáculos aos direitos da sociedade ao acesso a informação, educação e cultura, contrariando, assim, a função social do direito do autor. Ou seja, com situações fechadas e não apenas exemplificativas as possibilidades de uso de uma obra ficam mais limitadas e o Estado juiz em uma situação concreta fica rendido ao texto da lei. “A grande dificuldade está em se identificar o conteúdo exato do princípio da livre utilização, isto porque seu limite, que permite o uso legal, é muito próximo do uso ilegal. Uma vez atingido tal limite, tem-se o equilíbrio entre o interesse privado do autor e o interesse público.” (LEONARDOS, 2010, p.46) Doutrinadores do tema apontam ainda outros problemas no texto da legislação brasileira. O artigo 46 da Lei 9.610 de 1998, por exemplo, não faz qualquer menção às execuções públicas. Dessa forma, alguns autores se posicionam pela aproximação com o sistema americano de Copyright e seu instituto Fair Use. A partir do momento em que se tem clausulas mais genéricas e princípios gerais em oposição a uma lista taxativa de possibilidades, o juiz, em determinado caso concreto, pode moldar soluções conforme as necessidades sociais e mudanças tecnológicas. No entanto, o STJ já se posicionou a respeito, determinando que o rol dos artigos 46, 47 e 48 da referida lei são apenas exemplificativos, como pode ser observado no trecho do Resp. 964404/ES: “Ora, se as limitações de que tratam os art. 46, 47 e 48 da Lei 9.610/98 representam a valorização, pelo legislador ordinário, de direitos e garantias fundamentais frente ao direito à propriedade autoral, também um direito fundamental (art. 5º, XXVII, da CF), constituindo elas - as limitações dos art. 46, 47 e 48 - o resultado da 36 ponderação destes valores em determinadas situações, não se pode considerá-las a totalidade das limitações existentes. Neste exato sentido, também considerando as limitações da Lei 9.610/98 meramente exemplificativas, Leonardo Macedo Poli, já citado, e Allan Rocha de Souza (A Função Social dos Direitos Autorais: uma interpretação civil-constitucional dos limites da proteção jurídica : Brasil: 1988-2005. Campos dos Goytacazes: Ed. Faculdade de Direito de Campos, 2006). Saliento que a adoção de entendimento em sentido contrário conduziria, verificada a omissão do legislador infraconstitucional, à violação de direito ou garantia fundamental que, em determinada hipótese concreta, devesse preponderar sobre o direito de autor. Conduziria ainda ao desrespeito do dever de otimização dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, §1º, da CF), que vinculam não só o Poder Legislativo, mas também o Poder Judiciário.” (Resp. 964404/ES Relator: Paulo de Tarso Sanseverino – Publicado no D.O. de 20.05.2011) Percebe-se, portanto, que mesmo que os artigos 46, 47 e 48 Lei 9.610 de 1998 já sejam um reflexo direto de diversos preceitos constitucionais, aliados ao cumprimento da Convenção de Berna, o STJ adotou uma posição clara de flexibilização do direito da propriedade intelectual do autor, conforme o caso concreto, a fim de preservar direitos fundamentais contrapostos, tais como a cultura, a ciência, a intimidade, a privacidade, a família, o desenvolvimento nacional, a liberdade de imprensa, de religião e de culto. Como muito bem colocado no voto do relator Paulo Sanseverino no Resp. 964404/ES, essa flexibilização não se trata de uma anulação do artigo 68 da Lei 9.610 de 1998, mas sim considerar o nascimento da sua tutela a partir do reconhecimento das restrições e limitações opostas pela própria lei especial. Como visto acima, a melhor forma de solucionar tantos direitos difusos contrapostos seria justamente a ponderação no caso concreto. No entanto, a 37 legislação de Direitos Autorais brasileira é muito rígida e não permite uma flexibilização diante de situações em que a ponderação entre direitos privados do autor e o interesse público deveria ser analisada. Assim, o conceito de uso justo na legislação de Direitos Autorais brasileira é muito limitado, sendo aplicada apenas nas soluções jurisprudenciais. 2.6 – Limitar é preciso Diante do conteúdo exposto pode-se notar que a limitação do direito do autor é fundamental na Sociedade da Informação. E para isso, há duas formas claras de limitação em vigor nos sistemas jurídicos: (a) mediante uma clausula geral (b) mediante figuras restritivas específicas. As cláusulas gerais são justamente aquelas do Fair Use, em que há um caráter valorativo e as condutas assim classificadas, no caso concretamente avaliado, não são consideradas infrações aos Direitos Autorais. É um instituto tipicamente do direito americano, não encontrado no Direito Europeu ou Brasileiro. As figuras restritivas específicas, postas em lista das exceções admissíveis, são típicas dos sistemas romanísticos, da qual o Brasil certamente faz parte. Tal sistema pode congelar os Direitos Autorais, causando reflexos no desenvolvimento cultural do país e no acesso à informação. No Brasil, viu-se, no entanto, que o Superior Tribunal de Justiça, STJ, já começa a adotar posição mais flexível em relação a essa lista, a partir da utilização da Teoria dos Três Passos e da consideração de outros direitos contrapostos. No entanto, a legislação brasileira ainda não possui clausulas gerais que permitiriam uma flexibilização mais adequada para a sociedade contemporânea. “O sistema norte-americano é maleável, enquanto o sistema europeu é preciso. Mas, visto pela negativa, o sistema norte-americano é impreciso, enquanto o europeu é rígido. O Sistema norte-americano não dá segurança 38 prévia sobre o que pode ou não ser considerado Fair Use. O sistema europeu, pelo contrário, mostra certa falta de capacidade de adaptação” (OLIVEIRA, 2002.p.97) Certamente podem-se encontrar vantagens e desvantagens em ambos os sistemas. No entanto, o sistema americano do Fair Use parece ser mais apropriado para as velozes mudanças da sociedade e da ânsia pelo acesso à informação e cultura. 39 CAPÍTULO III O FAIR USE E AS MARCAS REGISTRADAS Muito embora o cerne desde trabalho não seja o Direito Marcário, é de extrema importância traçar algumas nuances sobre a questão do Fair Use sobre marcas registradas. O instituto do Fair Use foi criado para atender demandas do Direito Autoral. No entanto, foi “emprestado” para este outro ramo da propriedade intelectual. Dessa forma, pretende-se neste capítulo dar um panorama sobre o instituto fruto do Direito Autoral aplicado a legislação marcária. 3.1 – Fair Use e marcas “The concept of Fair Use is clearly important in balancing the rights given to trademark owners against the needs of others to use those marks to compete. It is a somewhat flexible concept but this is a strength rather than a weakness as this enables trademark law to be adapted to meet the changing needs and expectations of consumers and traders” (ROWLAND, 2006) Nos Estados Unidos, as regras de Direito Marcário, que regulam o registro de uma marca no US Patent and Trademark Office, estão dispostas no Lanham Act. Uma vez obtido o registro, o titular poderá impedir o uso não autorizado de sua marca por terceiros. No entanto, o instituto do Fair Use tem sido usado como defesa em casos envolvendo o uso não autorizado de marcas registradas. Atente-se para o fato de que esta defesa só pode ser usada quando a marca registrada foi usada em um sentido informativo, descritivo ou nominativo. Para entender o sentido de “descritivo” permitido pelo Fair Use, Kelly & Gelchinsky (1999) dão ótimo exemplo de caso concreto, agora aqui 40 reproduzido. Um réu foi acusado de utilizar indevidamente a marca registrada SWEE-TART, para doces, pois colocou em sua embalagem de suco de Cranberry a expressão “sweet and tart”. Ora, “sweet” quer dizer doce e “tart” quer dizer azedo ou ácido. A Corte Americana entendeu que o uso do réu era um uso descritivo justo, pois marcas registradas não poderiam se apropriar de termos de uso comum ou genérico em determinado mercado, no caso, o de alimentos. O sentido nominativo ou informativo, também permitido pelo Fair Use, pode ser usado na defesa de um réu que tenha usado a marca registrada para se referir diretamente a um produto ou serviço do próprio titular da marca. Há uma avaliação razoável para ver até que ponto o uso da marca registrada do terceiro é necessária para a identificação do produto ou serviço do réu. Desde que é claro que o réu não tenha se aproveitado, confundindo o consumidor a achar que aquela marca e titular tem alguma relação com ele, como de patrocínio, por exemplo, o uso é justo. O Lanham Act fala no uso “fairly and in good faith”, o que em português teria a noção do instituto da boa-fé. Basicamente se quem está sendo acusado de violação marcaria pode alegar que estava de boa fé e que não tinha qualquer intenção de causar confusão nos consumidores. Porém, uma vez demonstrado para a Corte Americana a confusão sobre a origem de produtos pelos consumidores, não há que se falar em Fair Use. A Suprema Corte Americana entende, assim, que a “justeza” deve ser objetiva. Na legislação européia, há previsão expressa sobre as limitações dos direitos do titular do registro marcário. É o artigo 6.1 do Trademarks Directive (TM Directive), que diz expressamente que o proprietário de um registro de marca não pode proibir o uso da sua marca por terceiros desde que: (a) seja necessário indicar a intenção ou propósito de um produto ou serviço que seja um acessório do produto ou serviço da marca registrada, sendo que este uso deve estar de acordo com as práticas de concorrência leal da indústria e do comércio; (b) sejam indicações como tipo, qualidade, quantidade, valor, origem geográfica, quando foi produzida, ou outra característica dos produtos ou serviços; (c) seja o seu próprio nome ou endereço. 41 Rowlands (2006) narra caso curioso que ilustra bem a aplicação desde artigo da legislação européia. Uma famosa marca de carros ajuizou ação de violação marcária frente a um mecânico especializado na venda de carros usados e reparos justamente dessa marca de carros. A empresa clamava pelo fim do uso em panfletos de divulgação, visto que o mecânico não era um licenciado ou autorizado. A Justiça Europeia entendeu que era caso de Fair Use, conforme o referido artigo 6.1. 3.2 - Os limites do Direito Marcário no Brasil No Brasil, a propriedade industrial é regulada pela Lei 9.279/96, que em seu artigo 131 diz que a propriedade da marca se adquire pelo registro, demonstrando que se adota o sistema atributivo. Este uso exclusivo será válido em todo o território nacional, sendo o princípio da territorialidade. O titular de um registro de marca, tendo este uso exclusivo, tem o direito de licenciar seu uso e zelar pela sua integridade. Assim como no Direito Autoral, a legislação marcaria brasileira impõe alguns limites aos direitos de uso exclusivo do detentor de uma marca registrada. Esses limites estão expressos no artigo 132 da Lei 9.279/9613. No artigo 132, inciso I, diz respeito à liberalidade que comerciantes ou distribuidores tem para utilizarem as marcas registradas. Assim, um supermercado, ao produzir um encarte com as promoções dos produtos a serem vendidos, por exemplo, pode utilizar as marcas registradas livremente, de forma a permitir a permitir o anúncio. 13 Art. 132. O titular da marca não poderá: I - impedir que comerciantes ou distribuidores utilizem sinais distintivos que lhes são próprios, juntamente com a marca do produto, na sua promoção e comercialização; II - impedir que fabricantes de acessórios utilizem a marca para indicar a destinação do produto, desde que obedecidas as práticas leais de concorrência; III - impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 68; e IV - impedir a citação da marca em discurso, obra científica ou literária ou qualquer outra publicação, desde que sem conotação comercial e sem prejuízo para seu caráter distintivo. 42 No inciso II do mesmo artigo, diz-se daqueles fabricantes de acessórios para produtos de outras marcas registradas. Assim, se há um produtor de capinhas para celulares, ele pode citar a marca do celular que cabe como acessório de determinada capa e não será considerada violação. O inciso coloca ainda uma ressalva que tal aplicação só será valida se forem obedecidas as práticas leais de concorrência. Este é o caso da jurisprudência encontrada no Anexo 1. Trata-se de Agravo de Instrumento interposto contra decisão que deferiu tutela antecipada em Ação de abstenção de uso indevido de marca e de indenização pela prática de atos de concorrência desleal. A agravante, ré do processo principal, era empresa atuante no ramo de fabricação e comercialização de peças de reposição para instalações hidráulicas. Alegava que todos os seus produtos tinham embalagens com marcas próprias e que as marcas de terceiros que também figuravam na embalagem estavam ali apenas para indicar ao consumidor a destinação do próprio produto. Tal uso, então, seria permitido pelo artigo 132, inciso II da LPI, pois há no texto legal limitação à exclusividade do uso da marca registrada. Diante do caso, o relator citou a seguinte passagem do livro de José Tinoco Soares “Não poderá o titular da marca impedir que os fabricantes de acessórios utilizem a marca para indicar a destinação do produto, desde que obedecidas as práticas leais de concorrência. Ora, essa permissão não deixa de ser também uma faculdade que terá o fabricante do acessório, porém não poderá fazer sobrepujar a marca principal do produto para comercializar o seu acessório. Poderá, isto sim e quando muito fazer projeção de sua marca de fabricante do acessório, dizendo de forma singela que tal produto poderá ser empregado naquele outro principal com a marca tal ou, ainda, se for o caso, como acessório do produto, com tais e tais marcas” 14 14 Ver Anexo 1 43 A decisão do Tribunal foi pela procedência do pedido da Agravante, pois se entendeu que não havia violação do sinal distintivo, principalmente pela embalagem não causar qualquer confusão ao consumidor. O produto impugnado era vendido com marca própria e apenas fazia referência lícita a marca da Agravada (autora), conforme artigo 132, inciso II da LPI. No inciso III do artigo 132, diz acerca da impossibilidade do titular da marca registrada impedir a livre circulação de produtos colocado no mercado interno. Assim, uma vez que a detentora da marca autoriza a importação de um produto, não pode ela voltar atrás e tentar impedir a circulação do produto e a respectiva marca no país. Como observado, assim como a limitação do Direito Autoral, a legislação brasileira de Direito das Marcas também adotou uma limitação taxativa, inclusa apenas nesses três incisos do artigo 132. Mais uma vez tem-se o distanciamento com a noção das clausulas gerais do Fair Use americano. 44 CONCLUSÃO A limitação do Direito do Autor no Direito Americano é definido pelo Fair Use, na qual cláusulas abertas definem o que seria o uso justo. Só incidirá o Fair Use quando a suposta violação já houver acontecido. É necessário, portanto, que haja um uso não autorizado e o titular da obra, ao se sentir lesado, recorrer à Justiça. A partir daí, serão analisado basicamente quatro requisitos, de forma sistemática, como o propósito do uso, a natureza da obra, a quantidade reproduzida e os efeitos desse uso no mercado em que circula a obra. Viu-se que a maior vantagem de se adotar esse sistema do Copyright é a possibilidade de entender o uso sem autorização de maneira flexibilizada. Há de se observar que em nenhum momento este trabalho defendeu o uso livre e indiscriminado das obras autorais. O que foi ressaltado do sistema americano do Fair Use é que ele está muito mais bem preparado para as mudanças constantes da sociedade e sua produção intelectual, por ser um procedimento que olha com uma lupa caso a caso de suposta violação ou não. No Brasil, ao revés, observou-se que as limitações do Direito do Autor são taxativas, segundo maior parte da doutrina. O regime jurídico brasileiro, assim como o europeu, possui uma listagem fechada de possibilidades para determinar um uso justo de uma obra autoral sem autorização de seu titular. Em nenhum momento se fala em Fair Use no Brasil, sendo este instituto de uso exclusivo do Direito Americano. A pesquisa apontou, no entanto, interessante solução adotada pelo STJ, que utilizou a Teoria dos Três Passos da Convenção de Berna em um caso concreto. Tal decisão afirmou exatamente o contrário da maioria doutrinária: de que o artigo 46 da Lei de Direitos Autorais, que dispõe sobre as limitações do direito do autor, não seria taxativo, mas meramente exemplificativo. Por fim, foi dado um panorama do instituto do Fair Use no Direito Marcário. Nos Estados Unidos, o sentido do Fair Use do Direito Autoral foi transportado para as marcas registradas e seu uso sem autorização. No Brasil, há rol taxativo no artigo 132 da Lei de Propriedade Industrial. 45 No entanto, acredita-se que para que a função social de obra protegida por Direitos Autorais, no seu escopo informativo e de acesso à cultura na sociedade, possa ser efetiva, é fundamental discutir e repensar as limitações do Direito do Autor. A mesma força não parece verdadeira quando se fala da função social da marca registrada, que seria justamente proporcionar ao consumidor uma clareza da origem dos produtos, para que haja a liberdade de escolha na compra. O direito de exclusividade da marca registrada não pode deve ser muito mais efetiva, para que o consumidor não seja confundido ou ludibriado. 46 ANEXOS Índice de anexos Anexo 1 >> Decisão de Tribunais (jurisprudência) 47 ANEXO 1 Agravo de instrumento n. 2008.063322-9, de Blumenau Relator: Jânio Machado AGRAVO DE ABSTENÇÃO DE INSTRUMENTO. USO INDEVIDO AÇÃO DE DE MARCA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO PELA PRÁTICA DE ATOS DE CONCORRÊNCIA DESLEAL. DEFERIMENTO DO PLEITO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. ARTIGO 273 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. EXISTÊNCIA DE LIMITAÇÃO LEGAL AO DIREITO DE EXCLUSIVIDADE DO USO DA MARCA PELO TITULAR. ARTIGO 132, INCISO II, DA LEI N. 9.279, DE 14.5.1996. AUSÊNCIA DE PROVA INEQUÍVOCA DA VEROSSIMILHANÇA IMPÕE A DO REFORMA DIREITO DA ALEGADO DECISÃO QUE AGRAVADA. RECURSO PROVIDO. A antecipação dos efeitos da tutela pressupõe, além da presença do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, a prova inequívoca da verossimilhança do direito invocado. Vistos, relatados e discutidos estes autos de agravo de instrumento n. 2008.063322-9, da comarca de Blumenau (4ª Vara Cível), em que é agravante Censi Indústria e Comércio de Reparos Ltda. e agravada Docol Metais Sanitários Ltda.: ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Comercial, por unanimidade, dar provimento ao recurso. Custas legais. RELATÓRIO Censi Indústria e Comércio de Reparos Ltda. interpôs agravo de instrumento contra a decisão que, nos autos n. 008.08.022156-1, relativos à "ação de abstenção de uso indevido de marca c/c indenização pela prática de atos de concorrência desleal" promovida por Docol Metais Sanitários Ltda., antecipou os efeitos da tutela, determinando a abstenção da utilização indevida 48 das marcas de titularidade da agravada, a saber, Docol e Pressmatic, em produtos de sua fabricação, bem ainda o recolhimento daqueles já postos em circulação no mercado, no prazo de 15 (quinze) dias, tudo sob pena de multa no valor de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) (fls. 13/14). Argumentou com a sua atuação "no ramo da fabricação, comercialização, importação e exportação de peças de reposição para instalações hidráulicas", sustentando, ademais, que "toda a sua linha de produtos é disponibilizada no mercado com embalagens e marca" próprias, esta última devidamente registrada no INPI. Alegou, ainda, "que as marcas de titularidade de terceiros, inclusive da agravada", são mencionadas na embalagem dos seus produtos para indicar ao consumidor a sua destinação, defendendo, também, a existência de limitação legal à exclusividade de uso de marca, o que inviabiliza o respectivo titular de impedir o seu uso por fabricantes de acessórios, reparos e peças de reposição para indicar a destinação do produto. Disse, ao final, que a decisão combatida favorece o monopólio da agravada, pugnando, em consequência, pela atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso, ou antecipação da tutela recursal, com a posterior revogação da decisão agravada (fls. 2/11). Em sede de juízo de admissibilidade, o digno magistrado Paulo Roberto Sartorato admitiu o processamento do agravo na forma de instrumento, concedendo, ainda, o efeito suspensivo postulado, para sobrestar os efeitos da decisão agravada (fls. 85/93). Após a agravada apresentar resposta (fls. 98/106), os autos vieram para julgamento. VOTO O recurso interposto merece acolhimento, o que se faz pelas mesmas razões invocadas pelo digno magistrado Paulo Roberto Sartorato, com fulcro no artigo 150 do Regimento Interno desta Casa: "In casu, a manutenção do teor da decisão agravada pode trazer danos à recorrente, pois ficou impossibilitada de comercializar os produtos com sua marca. Dispõe o artigo 132, II da Lei 9.279/96: 'Art. 132. O titular da marca não poderá: (...). II – impedir que fabricantes de acessórios utilizem a marca para indicar a destinação do produto, desde que obedecidas as práticas 49 leais de concorrência; (...)'. Nesse sentido, leciona José Carlos Tinoco Soares: 'Não poderá o titular da marca impedir que os fabricantes de acessórios utilizem a marca para indicar a destinação do produto, desde que obedecidas as práticas leais de concorrência. Ora, essa permissão não deixa de ser também uma faculdade que terá o fabricante do acessório, porém não poderá fazer sobrepujar a marca principal do produto para comercializar o seu acessório. Poderá, isto sim e quando muito fazer projeção de sua marca de fabricante do acessório, dizendo de forma singela que tal produto poderá ser empregado naqueloutro principal com a marca tal ou, ainda, se for o caso, como acessório do produto, com tais e tais marcas'. (Comentários à lei de patentes, marcas e direitos conexos: lei 9.27914.05.1996, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1997, pág. 217/218). Em análise aos autos, ainda que haja semelhança entre os produtos comercializados pela recorrente e agravada, tal constatação, por si só, não permite o reconhecimento da violação de sinal distintivo da marca de exclusividade, até porque a agravante possui marca própria, estando bem clara em suas embalagens expostas no mercado, não causando dúvida ao consumidor, conforme se verifica através das cópias das fotos inseridas às fls. 20/76, do presente recurso. Ademais, os produtos são colocados no mercado com sinais de identificação diferentes e, ainda, a marca é o elemento que identifica determinado produto ou serviço, cuja exclusividade de uso é obtida mediante registro concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), certificando os consumidores acerca da procedência e da qualidade do bem comercializado. Nesse sentido, é a jurisprudência desta Corte: 'AGRAVO DE INSTRUMENTO – MARCAS SEMELHANTES – EVENTOS COM A MESMA FINALIDADE – AUSÊNCIA DA POSSIBILIDADE DE CONFUSÃO – AUTORIZAÇÃO PARA USO DA MARCA NOVA – RECURSO PROVIDO. Não constitui afronta ao art. 50 124 da Lei de Propriedade Industrial a utilização de marca semelhante a outra, se esta semelhança não for suficiente para induzir o consumidor ao engano ou confusão'. (AI nº 2000.0238821, Rel. Des. Ruy Pedro Schneider, j. em 24.04.2001). 'AGRAVO DE INSTRUMENTO – MEDIDA CAUTELAR – PEDIDO LIMINAR PARA OBSTRUÇÃO DE USO DE MARCA, NOME COMERCIAL, EXPRESSÃO OU DOMÍNIO DEFERIDO – NECESSIDADE DE PRODUÇÃO PROBATÓRIA PARA IDENTIFICAR A ORIGEM DO USO – APRECIAÇÃO AFETA AO CASO CONCRETO – FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA – REQUISITOS NÃO ATENDIDOS – DECISÃO CASSADA – RECURSO PROVIDO'. (Agravo de Instrumento n. 2004.014401-6, Rel. Des. Substituto Túlio Pinheiro). No caso sub judice, diante da inexistência de provas conclusivas a respeito da indevida utilização da marca da agravada, forçoso reconhecer a ausência de prova inequívoca e da verossimilhança da alegação, requisitos necessários para a concessão da antecipação de tutela." (grifo no original) (fls. 90/91). Igualmente, não custa enfatizar: a antecipação dos efeitos da tutela pretendida é resultado da demonstração da presença dos requisitos bem especificados no artigo 273 do Código de Processo Civil, sem o que se deve aguardar o desfecho normal de todo e qualquer procedimento judicial. Trata-se de medida que se reveste de caráter excepcional e que exige prudência em sua análise, atendendo ao comando inserto no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que cuida do devido processo legal, imperativo da ordem jurídica legal e democrática. Ao lado da prova inequívoca da verossimilhança do direito invocado pela parte, para obter a antecipação dos efeitos da tutela pretendida é imprescindível a demonstração do "fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação" ou, quando menos, a caracterização do "abuso de direito de defesa" ou "manifesto propósito protelatório do réu", consoante o disposto nos incisos I e II do artigo 273 do Código de Processo Civil. Na hipótese, a existência de limitação legal ao direito de exclusividade do uso da marca pelo titular, invocada pela agravante e constante do artigo 132, inciso II, da Lei n. 9.279, de 14.5.1996, aliada à 51 demonstração da utilização da marca da agravada pela agravante, para o fim de indicar a destinação dos seus produtos (fls. 20/49), pois atua "no ramo da fabricação, comercialização, importação e exportação de peças de reposição para instalações hidráulicas", conduz, sim, à revogação da decisão que antecipou os efeitos da tutela. Afinal, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, "a violação marcária se dá quando a imitação reflete na formação cognitiva do consumidor que é induzido, por erronia, a perceber identidade nos dois produtos de fabricações diferentes" (recurso especial n. 510.885, de Goiás, Quarta Turma, relator o ministro Cesar Asfor Rocha, j. em 9.9.2003. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º.9.2010), o que não se viu no caso concreto, em sede de cognição sumária. Ultimando, registra-se, até mesmo para evitar a oposição de embargos de declaração: o artigo 132, inciso II, da Lei n. 9.279, de 14.5.1996, o artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal e o artigo 20 da Lei n. 8.884, de 11.6.1994, não foram violados no presente julgamento. Em verdade, cada um deles, ainda que implicitamente, mereceu a apreciação adequada. DECISÃO Ante o exposto, a Terceira Câmara de Direito Comercial, por unanimidade, dá provimento ao recurso. O julgamento, realizado no dia 16 de setembro de 2010, foi presidido pelo desembargador Marco Aurélio Gastaldi Buzzi, com voto, e dele participou o juiz Paulo Roberto Camargo Costa. 52 BIBLIOGRAFIA ABRÃO, Eliane Y.. Direitos de Autor e Direitos Conexos. São Paulo: Ed. do Brasil, 2002. ASCENSÃO, Alvaro Loureiro. O Fair Use no direito autoral. In: Revista ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – Anais ABPI 2002. Rio de Janeiro: ABPI, 2002. AVANCINI, Helenara Braga. Os limites e exceções dos Direitos Autorais na sociedade da informação. In: Revista ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual - nº 78. Rio de Janeiro: ABPI, 2005. BRACHA, O. Commentary on Folsom v. Marsh (1841), in Primary Sources on Copyright (1450-1900), eds www.Copyrighthistory.org, L. 2008. Bently & M. Disponível Kretschmer, em: http://copy.law.cam.ac.uk/cam/tools/request/showRecord.php?id=record_us_18 41. Acesso em: 23 de julho de 2012. CARBONI, Guilherme C. 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