GRUPO DE TRABALHO 5
TRABALHO: TRANSFORMAÇÕES, DESAFIOS E
POSSIBILIDADES
TRABALHO, JUVENTUDE E QUALIFICAÇÃO
PROFISSIONAL: A PEDAGOGIA DA HEGEMONIA
DAS POLÍTICAS DE INCLUSÃO DE JOVENS NO
BRASIL.
José dos Santos Souza
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TRABALHO, JUVENTUDE E QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL: A PEDAGOGIA DA
HEGEMONIA DAS POLÍTICAS DE INCLUSÃO DE JOVENS NO BRASIL.
José dos Santos Souza1
RESUMO:
A partir da crise estrutural do capital, percebe-se um amplo processo de reestruturação do
trabalho e da produção, combinado com esforços significativos para a reconfiguração dos
mecanismos de mediação do conflito de classe, o que implica mudanças no papel do
Estado. Neste contexto, a qualificação profissional assume relevância nas políticas para a
juventude. A partir desta problemática, toma-se como objeto de estudos o papel político e
ideológico que a educação profissional ocupa nos programas governamentais de inclusão de
jovens. O objetivo é identificar estratégias pedagógicas acionadas para a medicação do
conflito de classes no cotidiano dos programas sociais do Governo Federal de inclusão
social de jovens no mercado de trabalho por meio da integração entre a educação básica e
qualificação profissional. Trata-se de uma análise qualitativa de caráter explicativo que, em
termos de procedimentos metodológicos, se insere na categoria de levantamento sobre a
dinâmica dos programas investigados. Os dados foram coletados por meio de análise de
fontes primárias, entrevistas, questionários, e observação. A investigação aponta que a
educação profissional tem sido acionada não só como mecanismo de desenvolvimento de
capital humano, mas principalmente como estratégia de conformação de jovens oriundos
das camadas subalternas à precariedade do mercado de trabalho imposta pela reação
burguesa à crise estrutural do capital.
Palavras-Chave: Trabalho – Juventude – Qualificação Profissional
A juventude hoje é vista como um problema. Diante disto, tanto a sociedade como os
governos buscam implantar medidas de combate a esse risco social (IPEA, 2008, p. 07). Mas é
inegável que a dificuldade de se inserir no mercado de trabalho é o que mais tem prejudicado a
população jovem. As estatísticas apontam alto índice de jovens desempregados à procura do
primeiro emprego. Outro problema é o grande número de casais jovens que moram com os pais, em
virtude das dificuldades financeiras (IPEA, 2008, p. 09). Os principais problemas que a sociedade
enfrenta como saúde, educação, desemprego e violência atingem principalmente a população
jovem. A faixa etária de 15 a 29 anos é a que tem o maior risco de mortalidade, quando deveria ser
a que menos sofre com esse problema. Em torno de 30% das pessoas que tem AIDS, tem entre 15 e
29 anos. A população de 18 a 24 anos é a que apresenta o maior número de viciados em álcool
(IPEA, 2008, p. 12). Ao tratar da questão educacional constata-se que há um alto índice de jovens
que estão atrasados no ano escolar, quanto ao índice de evasão escolar também pode ser
1
Doutor em Sociologia pela UNICAMP e professor de Economia Política da Educação do Instituto Multidisciplinar da
UFRRJ. E-mail: [email protected]
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considerado alto, há baixa freqüência dos alunos na escola (IPEA, 2008, p. 14). Pesquisas mostram
que os principais fatores que levam o jovem a sair da escola é, entre os homens, a oportunidade de
emprego (42,2%), enquanto que, para as mulheres, é a gravidez (21%), o que implica o aumento da
responsabilidade dessas pessoas.
Outro aspecto que merece destaque é o alto índice de jovens infratores, na fixa etária de 18 a
24 anos. Pesquisas constatam que o maior número de homicídios doloso; lesões corporais;
tentativas de homicídios; extorsão mediante seqüestro; roubo de veículo; estupros; uso e porte de
drogas está nesta faixa etária (IPEA, 2008, p. 20). Hoje o que se percebe é que os jovens se
apresentam com seu maior envolvimento e/ou vitimização pela violência, de modo que a condição
da juventude torna-se cada vez mais vulnerável. Diversos estudiosos têm se esforçado para apontar
alguns aspectos que fazem com que os jovens se envolvam na criminalidade.
Há várias dimensões socioeconômicas que podem ser evidenciadas a partir da análise dos
indicadores sociais dos jovens brasileiros. Em relação à renda, estudos apontam que 31,3% dos
jovens podem ser considerados pobres, pois vivem em famílias com renda domiciliar per capita de
até ½ salário mínimo. Um aspecto relevante que merece atenção é o fato que há desigualdade entre
jovens brancos e negros, e que se refletem na vida social deles, configurando menores
oportunidades sociais para a juventude negra (IPEA, 2008, p. 23). No que tange à questão da
violência, os jovens negros são as maiores vítimas (IPEA, 2008, p. 24).
De modo geral os jovens entre 18 a 24 anos já assumem as responsabilidades ligadas à
provisão do seu próprio domicílio e enfrenta dificuldades de se inserir no mercado de trabalho, de
modo a garanta-lhes rendimento suficiente para suas necessidades financeiras. Por outro lado,
observamos que 84,4% dos jovens de 15 a 17 anos permanecem na condição de filho (IPEA, 2008,
p.25).
A partir de uma investigação sobre as políticas públicas destinadas aos jovens no Brasil,
Spósito & Carrano (2003, p. 01) apontam que, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à
presidência da República em 2002, além das expectativas de mudanças propostas para seu governo,
é preciso considerar o conjunto de iniciativas pré-existentes a ele. Além disto, percebem-se
claramente significativos avanços na sociedade no que concerne a percepções em torno dos direitos
de juventude, com base em uma concepção democrática de realização da política e de uma clara
defesa dos jovens como sujeitos de direito.
Spósito & Carrano (2003, p. 17) ressaltam também que, no Brasil, os jovens são assistidos
pelas políticas sociais destinadas a todas as demais faixas etárias, não objetivando a idéia de uma
perspectiva de formação de valores ou atitudes na nova geração. Entretanto, estes autores observam
que nas ações para a juventude é preciso observar que qualquer ação exprime parte das
representações normativas correntes sobre a idade e os atores jovens que uma determinada
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sociedade constrói, ou seja, práticas sociais que exprimem uma imagem do ciclo de vida e seus
sujeitos (SPÓSITO & CARRANO, 2003, p. 18). A evolução da historia das políticas para juventude foi
determinada pela exclusão dos jovens da sociedade e os desafios de como facilitar-lhes processos de
transição e integração ao mundo adulto. Ao sintetizar a periodicidade dessa discussão com a ajuda
de diversos autores, Spósito & Carrano (2003, p. 18) apontam distintos modelos de políticas de
juventude nos últimos tempos: a) a ampliação da educação e o uso do tempo livre (1950-1980); b) o
controle social de setores juvenis mobilizados (1970-1985); c) o enfrentamento da pobreza e a
prevenção do delito (1985-2000); e d) a inserção laboral de jovens excluídos (a partir de 2000).
A literatura sobre juventude e trabalho aponta a articulação de diferentes questões
condicionantes da empregabilidade e desemprego na juventude. Dentre elas podemos destacar o
prolongamento da juventude e seus novos padrões comportamentais que têm contribuído para a
extensão da moratória social para ingresso no mercado de trabalho, o que configura um novo
cenário social. Verificamos que as discussões sobre o ingresso do jovem no mundo de trabalho
apontam a população de 18 a 24 anos como aquela mais penalizada pelo desemprego, pela
precarização do trabalho e pela violência passiva e ativa. Por esta razão, a preocupação com a
empregabilidade deste segmento da população se tornou o principal foco das políticas públicas
voltadas para a juventude no Brasil. Tais políticas têm apontado a educação profissional como fator
de empregabilidade e de geração de emprego e renda. Em função disto, surgem novas estratégias do
governo para reformulação da educação profissional, com vista na adequação do jovem excluído ao
novo mercado de trabalho. Decorre daí diversos programas nacionais de integração e qualificação
do jovem como alternativa de inclusão deles no ensino profissional.
A atual recomposição do capitalismo tem desencadeado profundas mudanças no trabalho, na
produção e nas relações de poder. Estas transformações situam-se nos limites do receituário
neoliberal. No bojo destas transformações, situa-se a reforma da política de educação profissional
básica e de nível técnico e tecnológico. Tais reformas têm o propósito de formar um novo tipo de
trabalhador para atender novas demandas de produtividade e qualidade das empresas, permitindolhes melhores condições de competitividade no mercado nacional. Entretanto, o desemprego é uma
realidade inerente a este processo, o que lhe confere o status de uma característica estrutural do
estágio atual do desenvolvimento do capital.
A população jovem, em especial aquela na faixa etária de 18 a 24 anos, se tornou o
segmento da população mais penalizado pelos efeitos perversos do desemprego estrutural, do
trabalho precário e da desregulamentação dos direitos trabalhistas. Neste contexto, as políticas
públicas de qualificação profissional para a população jovem se inserem no conjunto de políticas de
conformação das camadas subalternas com a finalidade de mediar os conflitos de classe e manter a
hegemonia do projeto neoliberal. Para ser mais exato, tais políticas carregam em si uma pedagogia
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que inculca nos sujeitos por ela atendidos uma espécie de conformação ética e moral que os tornam
sujeitos ativos na construção do consenso em torno do projeto dominante de sociedade. A este
fenômeno chamamos de pedagogia da hegemonia. Esta seria, em princípio, a explicação do
surgimento de programas federais de inclusão de jovens, apesar das contradições que tal prática
social possa comportar.
Belluzzo & Victorino (2004) ressaltam a importância da trajetória da constituição dos
direitos civis e os limites decorrentes de práticas sociais de segregação da pobreza no
encaminhamento das demandas da juventude. Para eles, as políticas públicas caracterizam-se por
processos decisórios voltados para a formulação, implementação e avaliação de ações ou programas
destinados ao atendimento das demandas sociais (BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 08).
Poderíamos considerar que os problemas se reconfiguram perversamente influenciados por questões
sociais profundas e complexas, mas, sobretudo amargam a ausência do reconhecimento de crianças
e adolescentes como sujeitos de direito.
A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) materializou a expectativa
de segmentos sociais organizados de que se garantissem aos jovens, além dos direitos básicos à
cidadania, direitos específicos associados ao reconhecimento de necessidades de seu ciclo vital
(BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 12).
As conquistas formais representam a possibilidade de novo tratamento às demandas de
crianças e adolescentes, de sua valorização como sujeito social, rompendo com a tradição histórica
de tutela sobre esse segmento. A despeito de tais conquistas, Beluzzo & Victorino ponderam que, se
por um lado o Brasil possui um arcabouço legal de garantias de diretos à população jovem, por
outro, apresenta permanência de situações e comportamentos sociais que negligenciam ou ferem os
direitos da infância e adolescência (BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 12).
Estes autores ratificam a compreensão de que o desafio é reorientar as políticas de juventude
na direção de um modelo de jovens cidadãos e sujeitos de direito, que deixe paulatinamente para
trás enfoques como o do jovem como problema que ameaça a segurança pública (BELLUZZO &
VICTORINO, 2004, p. 13). Defendem, portanto, que uma ação pública com viés social deve ter
como premissa o conhecimento prévio do público alvo da política implantada. Tomando a realidade
de São Paulo como referência empírica, também apontam a dificuldade de ingresso no mercado de
trabalho como um agravante ao expressivo conjunto de carências sociais vividas pelos jovens.
As respostas governamentais a esta realidade tem se dado, de um lado, por meio da
ampliação de oportunidades de escolarização básica e, por outro, por meio de programas sociais
destinados à iniciação da formação profissional que se dá pela vivência de experiências no mundo
do trabalho (BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 14).
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Apesar da universalização do acesso ao sistema educacional, a escola não parece estar
preparada para lidar com a diversidade dos alunos, por isso os resultados não se mostram positivos,
o que aumenta a desigualdade social e de aprendizado (IPEA, 2008, p.15). Ao tratar da ampliação
do acesso a escola para o jovem trabalhador, percebe-se da parte deles o interesse de enriquecer
seus conhecimentos, para se inserir ou assegurar-se no mercado de trabalho. Por isso sonham com
uma formação básica mais sólida que lhes permita melhores oportunidades (IPEA, 2008, p.16).
O número de analfabetos da população jovem é alto e isto se agrava na medida em que a
faixa etária é mais elevada (IPEA, 2008, p.107). Por outro lado vários fatores têm contribuído para
os altos índices de analfabetismo, entre eles podemos destacar que há poucas “oportunidades de
acesso a cursos de alfabetização, as deficiências de qualidade e os problemas que dificultam tanto a
permanência nos cursos quanto a continuidade de estudos por parte de jovens e adultos”. Isto serviu
de justificativa para o Programa Brasil Alfabetizado e Educação de Jovens e Adultos (IPEA, 2008,
p.108). Hoje o programa tem prioridade em atender jovens de 15 a 29 anos. A educação de jovens e
adultos apresenta insuficiência na oferta de vagas, de modo que não consegue suprir as demandas.
“Um forte indicativo da oferta insuficiente de EJA pode ser encontrado nos dados do Censo Escolar
de 2006, que revelou mais de 1 milhão de jovens de 18 a 29 anos matriculados no ensino
fundamental regular, sendo 60,0% residentes na região Nordeste” (IPEA, 2008, p.109).
Um aspecto relevante na atual situação educacional dos jovens brasileiros ocorre em virtude
do acesso restrito à educação infantil e da baixa efetividade no ensino fundamental, o que mais
tarde faz com que parte dessas crianças, quando se torna jovem, apresente dificuldades. As
condições socioeconômicas também é um fator que contribui para o baixo o rendimento dos
estudantes e aumento da evasão escolar. Não se pode negar também a falta de qualificação docente
para educação de jovens e adultos, bem como a permanência de uma visão assistencialista de
caráter compensatório destas políticas. Não obstante, observamos que a “análise das ações voltadas
à população jovem que integram a política educacional encampada pelo MEC nos últimos anos
permite identificar que esse segmento populacional vem assumindo a condição de prioridade no
atual governo” (IPEA, 2008, p.118).
Mas a dinâmica do conjunto de transformações vividas no trabalho e na produção tem
limitado substancialmente estes esforços. Esses limites, inclusive, nos levam a refletir sobre se o
real papel dessas políticas numa sociedade de classes seria de fato garantir à população jovem
condições de ingresso e permanência no mercado de trabalho ou se seria uma estratégia de
conformação dessa população às novas condições do capitalismo no mundo contemporâneo,
marcado pelo desemprego, pela precarização do trabalho e pela vulnerabilidade daqueles que não
são absorvidos pelo mercado de trabalho: crianças, jovens, idosos, deficientes físicos etc.
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Ao refletirem sobre o desemprego juvenil e as formas como o Estado tem reagido a ele por
meio de políticas de trabalho e renda, Cardoso & González investigam a experiência dos
Consórcios Sociais da Juventude e a partir daí descrevem os jovens que compõem um dos grupos
mais atingidos pelo problema do desemprego no Brasil:
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), para o
grupo de 15 a 19 anos, a taxa de desemprego passou de 13% para 23% entre 1995 e
2004, enquanto, para os jovens entre 20 e 24 anos saltou de 10% para perto de 16%
(CARDOSO & GONZÁLEZ, 2007, p. 30).
Deve-se ressaltar que esta taxa de desemprego só não está ainda maior, porque,
entre outras razões, os jovens têm progressivamente adiado a sua entrada no
mercado de trabalho, em particular aqueles com 15 a 19 anos. Isto é expresso pelo
fato de a taxa de participação dos jovens estar caindo, e caindo mais do que a de
outras faixas etárias: para a faixa entre 15 e 19 anos, a queda foi de 57% para 49%
entre 1995 e 2004 e, para o grupo entre 20 e 24 anos, permaneceu praticamente
estável (em torno de 76%). [...] Em alguma medida, isso é conseqüência de o
mercado ter ficado mais exigente do ponto de vista da qualificação, o que faz com
que os jovens busquem se qualificar mais, mesmo quando já estão trabalhando
(CARDOSO & GONZÁLEZ, 2007, p. 31).
Estes autores também constatam aumento na escolarização entre jovens, independentemente
de estarem ocupados, desempregados ou inativos. De forma semelhante à Spósito & Carrano, esses
autores apontam os anos 1980, como o momento em que começa a tomar corpo uma preocupação
com a “juventude marginalizada”; o início dos anos 1990, como o momento em que “essas ações
passam a ganhar feições menos emergenciais, eventualmente incorporando uma visão mais positiva
do jovem”; e a segunda metade da década de 1990 como o momento em que começam a surgir
políticas que enfocam problemas considerados próprios da juventude. Mas ressaltam que, até 2003,
ainda não havia uma referência normativa clara para políticas dirigidas a jovens com mais de 18
anos e apontam o Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego para Juventude (PNPE)
como pioneiro nesse sentido (CARDOSO & GONZÁLEZ, 2007, p. 33). Mas de lá para cá, as políticas
públicas para a juventude não só se proliferaram, como se sofisticaram em sua engenharia
institucional, especialmente no que concerne à parceria entre instituições públicas e privadas.
Praticamente todos os programas desenvolvidos a partir desta data procuram articular a
compensação da carência ou precariedade da formação geral com a preparação para o trabalho.
Esses programas emergem como uma ação pública sobre o problema do desemprego na
juventude. Uma dúvida que tem nos mobilizado a investigar sobre estes programas é a seguinte:
será que o foco deles é a população jovem e seus problemas ou será que o foco é a construção de
condições favoráveis a construção do consenso em torno do modelo de desenvolvimento proposto
sob a hegemonia do capital para superação da crise de acumulação na atualidade? Afinal, quem está
sendo socorrido, será o jovem ou será a ordem social capitalista? No sentido de nortear a busca de
respostas a esta questão, temos a considerar algumas referências teóricas sobre como a formação e a
qualificação profissional, no atual estágio de desenvolvimento do capital tem se constituído um
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campo privilegiado de disputa da hegemonia na sociedade capitalista. A esse respeito teceremos
algumas reflexões a seguir.
A formação e a qualificação profissional como campo de disputa de hegemonia
O atual patamar de desenvolvimento da ordem capitalista nos oferece elementos suficientes
para afirmar que o ritmo e a direção do desenvolvimento dos sistemas educacionais no mundo
contemporâneo são determinados pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas e das
relações de produção, assim como do nível de alargamento dos mecanismos de controle social sobre
as decisões estatais. Estes fatores têm se consubstanciado, na atualidade, no impacto econômico e
político-social da aplicação da ciência e da tecnologia nos processos produtivos.
A partir dessa premissa, entendemos que a formação/qualificação profissional da classe
trabalhadora deve ser concebida como uma ação humana de caráter técnico-político inerente ao
processo de ampliação da maquinaria e do controle social sobre as decisões estatais. Ou, como
afirma Neves (1994), a formação da classe trabalhadora é, como política social do capitalismo no
mundo contemporâneo, uma prática social determinada pelo binômio industrialismo/democracia.
Trata-se da unidade emanada da relação entre o avanço científico e tecnológico do trabalho e da
produção, de um lado, e o processo de socialização da política, de outro, verificados na história do
capitalismo como uma tendência a ele inerente.
Ao concebermos a educação da classe trabalhadora como conseqüência da incorporação da
ciência e da tecnologia ao processo produtivo e das mudanças no padrão de sociabilidade humana,
torna-se evidente o crescente estreitamento entre ciência e trabalho, entre ciência e vida, entre teoria
e prática, entre trabalho e educação no processo de industrialização, embora ainda nos limites da
valorização do capital. Tal fato vem evidenciando-se através do notório crescimento da demanda
social por formação e qualificação da força de trabalho por parte de diferentes segmentos da
sociedade civil. Esta demanda crescente por educação funda-se no ideal de formação de um novo
tipo de homem, um novo tipo de sociabilidade humana e um novo tipo de escola, em busca de
adequação ao avanço do patamar científico e tecnológico das forças produtivas e das relações de
produção, expressas em um novo tipo de relação capital/trabalho na disputa pela hegemonia da
sociedade.
Entretanto, o estágio atual de desenvolvimento científico e tecnológico das forças produtivas
nos remete à consideração de que a educação da classe trabalhadora no mundo contemporâneo deve
ser concebida a partir de dois aspectos fundamentais: a preparação para o trabalho, em seu sentido
lato, e a preparação para o trabalho, em seu sentido estrito. No primeiro aspecto, a formação para o
trabalho refere-se às ações educativas da sociedade capitalista contemporânea que têm em vista a
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conformação técnica, política e cultural da força de trabalho às necessidades da civilização urbanoindustrial presididas pela lógica científica da organização do trabalho e das relações de produção.
Nesta perspectiva, a formação para o trabalho identifica-se com escolarização (NEVES, 1997a p. 23).
Assim, entendemos que o termo “educação básica” faz referência ao sentido lato da
formação para o trabalho, ou seja, faz referência à socialização da capacidade de produção do
conhecimento científico e tecnológico minimamente necessário ao nível de racionalização do
trabalho na indústria e à complexidade da vida contemporânea por intermédio da escola.
Já no sentido estrito, a formação para o trabalho no mundo contemporâneo refere-se a um
ramo do sistema educacional destinado à permanente qualificação e atualização técnico-política e
cultural da força de trabalho escolarizada, após o seu engajamento potencial ou efetivo no mundo da
produção. Seu principal objetivo é criar aptidões para o trabalho na sociedade urbano-industrial, por
meio da permanente atualização técnico-produtiva da força de trabalho escolarizada. Nesta
perspectiva, formação para o trabalho identifica-se com ensino técnico-profissionalizante ou,
conforme o discurso oficial, educação profissional.
Assim, o termo educação profissional faz referência ao sentido estrito da formação para o
trabalho, ou seja, faz referência à qualificação e atualização permanente da força de trabalho
escolarizada para o domínio de aptidões técnico-produtivas adequadas ao nível de racionalização do
trabalho nas empresas contemporâneas.
Embora, aparentemente, quando concebemos a educação da classe trabalhadora como
“formação para o trabalho” estejamos restringindo sua potencialidade, na realidade estamos
ampliando o seu sentido para além do paradigma humanista. Note-se que tal concepção afina-se
com o ideal de formação humana para o domínio do conhecimento técnico-científico e filosófico
socialmente acumulado para sua aplicação diretamente produtiva, através do processo de trabalho.
Como se percebe, ao ampliar-se a concepção de formação para o trabalho, ao contrário do senso
comum, considera-se a formação para o trabalho uma prática corrente do mundo contemporâneo
que engloba desde a escolarização básica até ações educativas voltadas para o desenvolvimento de
aptidões para a vida produtiva. A formação para o trabalho, portanto, é concebida como uma prática
educativa que se dá tanto no âmbito da escola regular quanto no âmbito das instituições de ensino
profissionalizante. Esta perspectiva rompe de uma vez por todas com a visão dicotômica entre
formação para o trabalho e escolarização, entre trabalho e educação, que tem predominado em
nossa sociedade.
Porém, é preciso assinalar que, no processo de desenvolvimento do capital, o conflito de
classe se evidencia na concepção e na política de educação básica e de educação profissional, de
modo que a análise da intervenção sindical na política de formação profissional nos obriga a
considerar sempre dois projetos distintos: um da ótica do capital e outro da ótica do trabalho. Não
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obstante, ambos têm como pressuposto a aplicação da ciência e da tecnologia no processo de
produção.
Marx (1994), no século XIX, ao refletir sobre a relação entre o desenvolvimento da
maquinaria e a indústria moderna, já afirmava que a base técnica da indústria era revolucionária,
enquanto todos os modos anteriores de produção eram essencialmente conservadores. Com base
nisto, prenunciava que a conquista do poder político pela classe trabalhadora traria a adoção do
ensino tecnológico, teórico e prático, nas escolas dos trabalhadores. Além de Marx, Gramsci (1989),
ao refletir sobre a natureza da escola no mundo contemporâneo, também constatou que a educação
técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve
constituir a base do novo tipo de intelectual. De acordo com a ótica do trabalho, as exigências de
atualização profissional e requalificação da força de trabalho previamente escolarizada, decorrentes
do avanço do patamar científico e tecnológico da organização das forças produtivas e das relações
de produção no mundo capitalista, traduzem-se em um tipo de escolarização que engloba desde as
habilidades técnicas necessárias ao domínio dos novos conteúdos do trabalho até os conhecimentos
teóricos que favoreçam a compreensão do processo de trabalho em seu conjunto (NEVES, 1997, p.
25).
Na ótica do trabalho, portanto, a formação para o trabalho, em sentido estrito, seria um ramo
da educação escolar, de natureza técnico-científica; espaço privilegiado para o aumento da
capacidade produtora de ciência e de tecnologia, uma vez que o conhecimento científico e suas
aplicações diretamente produtivas no mundo contemporâneo têm se tornado a principal força
produtiva no estágio atual de desenvolvimento do capital, além de se constituírem em uma reserva
estratégica na conquista de espaços privilegiados nas relações de poder.
Assim, o projeto da ótica do trabalho, na atualidade, impõe como objetivos da formação para
o trabalho no mundo contemporâneo, seja no âmbito da escola básica ou no âmbito da educação
profissional, o seguinte: a) identificar os princípios que presidem a relação ativa entre homem e
natureza e a relação orgânica entre o indivíduo e os outros indivíduos ao longo da história da
humanidade; b) apreender os fundamentos e os conteúdos do trabalho em determinado padrão de
desenvolvimento científico e tecnológico da produção em nível internacional, de modo a intervir
autonomamente nesse processo; c) solidificar uma consciência moral que atenda aos objetivos da
luta pela superação da ordem social burguesa de produção e reprodução social da vida material –
em lugar da luta pela “cidadania plena”.
De acordo com essa concepção, está implícito um modelo de desenvolvimento em que as
reivindicações para a universalização da educação básica e das oportunidades de educação
profissional visam, não apenas ao aumento da produtividade industrial para a garantia de maior
qualidade de vida da população em geral, mas sim o rompimento com o monopólio do
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conhecimento exercido pela burguesia. A propósito, a luta da classe trabalhadora pela apropriação
da ciência e da tecnologia aplicada trabalho, na produção e na vida social é parte da luta histórica
dos trabalhadores pela superação da ordem social burguesa de produção e reprodução social da vida
material. Na perspectiva da ótica do capital, o aumento do nível educacional de base científica e
tecnológica de uma reduzida parcela da classe trabalhadora, em detrimento da desqualificação de
outra parcela cada vez mais imensa, tem como propósito o aumento de produtividade do trabalho.
Mas, para a perspectiva da ótica do trabalho, o aumento da produtividade decorrente da ciência e
tecnologia aplicada na produção só faz sentido como fator de diminuição da jornada de trabalho e
conseqüente aumento do tempo livre do trabalhador como fator de construção da consciência de
classe. Por esta razão, a luta estratégica de aumento do tempo livre do trabalhador deve estar
articulada à luta pela garantia de acesso a bens materiais e imateriais indispensáveis à dignidade da
vida humana.
Na ótica do capital, a formação para o trabalho não assume caráter unitário, conforme
estabelece a ótica do trabalho. Embora seja impossível para as relações sociais de produção
capitalista a radicalização da dicotomia entre teoria e prática no processo produtivo e de ciência e
vida nas relações de produção, devido ao atual patamar de desenvolvimento das forças produtivas e
do alargamento dos limites de socialização da política, a ótica do capital procura impor limites à
classe trabalhadora através da socialização desigual do conhecimento científico e tecnológico – o
que configura o monopólio do conhecimento. Para isso, impõe objetivos diferenciados à formação
para o trabalho, seja no âmbito da educação básica ou da educação profissional. Para uma ampla
parcela da força de trabalho prevê a conformação técnica e ético-política, capacitando-a para
adaptar ou operar produtivamente as tecnologias produzidas; para outra parcela mínima da força de
trabalho, prevalecem os objetivos voltados para o domínio dos fundamentos e dos conteúdos do
trabalho em determinado padrão de desenvolvimento científico e tecnológico da produção.
Desse modo, de acordo com a ótica do capital, a formação para o trabalho baseia-se na
distinção entre formação para o trabalho manual para a grande massa de trabalhadores e formação
para o trabalho intelectual para uma elite privilegiada. No entanto, para ambas as parcelas da força
de trabalho, a educação tem como objetivo a constituição de um novo tipo de trabalhador voltado
para o mercado, quer como sujeito empreendedor, quer simplesmente como sujeito de consumo.
Nessa perspectiva, a formação para o trabalho vem atender aos mecanismos sociais e políticos de
reprodução das relações sociais fundadas na estrutura de dominação de classe.
Nessa última concepção está implícito um modelo de desenvolvimento em que as
reivindicações para a universalização da educação básica e para o desenvolvimento da educação
profissional visam ao aumento da produtividade industrial para maior valorização do capital – por
meio do aumento da mais-valia relativa.
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Não obstante, na disputa capital/trabalho em torno da concepção e da política de educação
básica e educação profissional, tanto os sujeitos coletivos que partilham da ótica do capital, quanto
aqueles que partilham da ótica do trabalho partem do interesse de aplicar de forma produtiva a
ciência e a tecnologia no mundo do trabalho e na sociabilidade do mundo contemporâneo. No
entanto,
A explicitação dos dois projetos de sociedade, em disputa pela hegemonia na
atualidade brasileira, põe em evidência as diferenças existentes entre a proposta de
educação pública e gratuita com qualidade para todos em todos os níveis e a
proposta de educação básica de qualidade para a competitividade industrial. A
primeira se caracteriza como uma proposta educacional na ótica do trabalho e, a
segunda, como uma reivindicação baseada nos interesses do empresariado (NEVES,
1995, p. 114).
É exatamente a partir do confronto entre estas duas concepções de aplicação diretamente
produtiva da ciência e da tecnologia que surge a proposição de um tipo de escola anticapitalista,
absolutamente comprometida com o rompimento da dicotomia existente entre educação e trabalho,
entre ciência e vida. Procuraremos, então, sistematizar os fundamentos filosóficos desta proposição
político-pedagógica nascida na dinâmica da militância socialista.
Considerando a educação, essencialmente, como um processo de aquisição de
conhecimentos necessários ao homem no seu intercâmbio com a natureza e com os outros
indivíduos, esse processo de aquisição do conhecimento se dá no próprio contexto do processo de
trabalho e dele é fruto. Se, por um lado, a aquisição de conhecimentos constitui-se em um
instrumento necessário e essencial ao processo de trabalho, por outro, o próprio conhecimento se
constitui no contexto desse processo.
Partindo dessa premissa, Gramsci (1991) analisa, aprofunda, critica os limites e resgata os
valores das tendências do debate educacional no contexto da disputa entre capital e trabalho para,
finalmente, propor uma nova e original alternativa para a educação da classe trabalhadora, evitando
qualquer tipo de conciliação oportunista. Gramsci se posicionara nessa polêmica defendendo uma
“escola desinteressada do trabalho” essencialmente humanista2, com atividades formativo-culturais
para o conjunto do proletariado, mas com a ressalva de que essa formação não poderia ser dentro de
uma cultura abstrata, enciclopédica, burguesa, que efetivamente confunde as mentes trabalhadoras e
dispersa sua ação, conforme Engels, em 1844, já havia denunciado em “A Situação da Classe
2
A referência ao humanismo renascentista é a marca registrada de Antônio Gramsci. Será uma das idéias chaves até o
final de sua vida. O homem renascentista, para ele, sintetiza o momento de elevada cultura com o momento de
transformação técnica e artística da matéria e da natureza; sintetiza também a criação das grandes idéias teóricopolíticas com a experiência da convivência popular. Gramsci sintetiza, no ideal da escola moderna para o proletariado,
as características da liberdade e livre iniciativa individual com as habilidades necessárias à forma produtiva mais
eficiente para a humanidade de hoje, concebendo um projeto educacional distinto tanto da concepção humanista do
renascimento quanto da concepção pragmática e racionalista da era capitalista. Para ele, esses dois pólos são
organicamente interdependentes (Cf.: NOSELLA, 1992, p. 20).
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Trabalhadora na Inglaterra”. A compreensão de Gramsci era de que uma “escola desinteressada”3
baseada em uma concepção de mundo idealista não conseguiria elaborar uma cultura popular ou dar
um conteúdo moral e científico aos próprios programas escolásticos que permaneciam como
esquemas abstratos e teóricos. Esse tipo de escola continuaria sendo promotor da cultura de uma
restrita aristocracia intelectual, enquanto que, por outro lado, uma “escola desinteressada do
trabalho”, baseada na filosofia da práxis, seria o coroamento de todo um movimento de reforma
intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura.
O embate político entre capital e trabalho no campo da formulação e gestão de políticas de
educação básica e de educação profissional ganha um sentido absolutamente renovado se tomarmos
como referência a relação entre trabalho e educação a partir da nitidez e originalidade da proposta
da “escola desinteressada do trabalho” de Gramsci. Esta se distingue da “escola desinteressada” e
da “escola do trabalho”. Tal sentido abre novas perspectivas para a organização e luta da classe
trabalhadora por educação, na medida em que pressupõe a incorporação dos fundamentos
científicos e tecnológicos do atual patamar de desenvolvimento das forças produtivas e a sua
universalização por meio de uma política de combate ao monopólio do conhecimento, de
democratização do acesso ao conhecimento, de universalização da escolarização básica e da
garantia de oportunidades de educação profissional em instituições públicas, gratuitas e de
qualidade.
O conceito de “escola desinteressada do trabalho” se distingue do de “escola desinteressada”
por não significar uma escola idealista, escolástica, fundada na metafísica. Ao contrário, a proposta
de Gramsci propõe uma escola fundada no equilíbrio entre ordem social e natural sobre o
fundamento do trabalho, da atividade teórico-prática do homem, de caráter científico e tecnológico,
com uma concepção histórico-dialética do mundo. Não obstante, a “escola desinteressada do
trabalho” coincide com a “escola desinteressada” apenas na sua essência humanista, mas se
distingue no conteúdo e no método.
A categoria “saber desinteressado” que se refere à “escola desinteressada” é muito bem explicitada por Gramsci, pois
ele a utiliza com freqüência. Para este autor, o saber desinteressado não significa um saber neutro ou interclassista. É
uma expressão difícil de traduzir para a língua portuguesa e, mesmo em língua italiana, esse termo, tomado fora do
contexto, não traduz o sentido que Gramsci lhe dá. Para ele, o saber desinteressado se contrapõe ao saber voltado para o
interesse imediato, ao saber que é útil a muitos, a toda a coletividade, histórica e objetivamente. Talvez possamos ser
ajudados a entender melhor esse conceito, recorrendo ao par lingüístico inglês “lowbrow/highbrow”, que originalmente
significam um tipo de olhar que passa pelos cílios inferiores e o olhar que passa pelos cílios superiores, designando
assim visão próxima (por baixo) e visão superior (por cima). Indicam maneiras existenciais de ser: há pessoas que só
enxergam o imediato (lowbrow-interessado) e pessoas capazes de ver o limite do horizonte possível (highbrowdesinteressado). O primeiro se envolve com sua pessoa, seus parentes, seus amigos, seus negócios, seus interesses; o
segundo é o que vê longe no espaço e no tempo, vê a humanidade, a história, o coletivo. Essa referência à expressão
inglesa “lowbrow/highbrow” sem dúvida ajuda a entender o conceito gramsciano de interessado/desinteressado, sem
porém a conotação de menosprezo que, na expressão inglesa, qualifica o homem „highbrow‟ como sendo o filósofo que
anda nas nuvens, que descuida de si mesmo. Também a expressão da língua portuguesa „interesseiro‟ poderia ajudar, se
não possuísse conotação moralista que torna toda atitude interesseira desprezível e condenável (Cf.: NOSELLA, 1992:
116-117).
3
14
Da mesma forma, o conceito de “escola desinteressada do trabalho” se distingue do de
“escola do trabalho” por não significar uma escola que está preocupada em satisfazer interesses
imediatos, em proporcionar a aquisição de habilidades operacionais para a produção industrial e por
não ser uma escola do emprego. A “escola desinteressada do trabalho” seria uma escola
preparatória (elementar e média) que conduziria o jovem até as mais amplas possibilidades de
escolha profissional e não apenas a um ofício, preocupando-se em formar homens e mulheres como
pessoas capazes de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige a sociedade. A “escola
desinteressada do trabalho” coincide com a “escola do trabalho” apenas por fundamentar seu
processo de ensino/aprendizagem na aplicação direta e objetiva da ciência e da tecnologia em
processos produtivos.
A “escola desinteressada do trabalho” é, portanto, a síntese entre o que há de positivo na
“escola desinteressada” e na “escola do trabalho” e, por conseguinte, a negação do idealismo
inerente à primeira e do pragmatismo inerente à segunda, constituindo-se em uma concepção
pedagógica que se distingue daquelas anteriores, uma concepção nova, revolucionária. Nesse
sentido, reafirma-se a preocupação central de Gramsci que é integrar a corrente humanista e a
profissional, que se chocam no campo do ensino popular, lembrando que, antes do operário, existe o
homem que não deve ser subjugado à máquina, impedido de percorrer os mais amplos horizontes do
espírito.
A “escola desinteressada do trabalho” não representa nem um saudosismo humanista
tradicional nem um profissionalismo tecnicista. Ela resgata o potencial educativo da escola
humanista tradicional, em confronto com a necessidade de um novo tipo de escola mais interessada,
para propor uma escola mais técnica – e não tecnicista. Esta proposta de escola é menos tradicional
e mais orgânica ao mundo industrial moderno, baseada em princípios científicos e tecnológicos,
capaz de se constituir em um espaço de síntese entre a prática e a teoria, entre o trabalho manual e o
intelectual4. Justamente por isso a “escola desinteressada do trabalho” é uma escola unitária.
A proposta de “escola desinteressada do trabalho” de Gramsci está centrada na idéia da
liberdade concreta, universal e historicamente obtida, isto é, na liberdade gestada pelo trabalho
industrial e universalizada pela luta política. A relação escola/trabalho dá sentido à idéia de
liberdade, onde o trabalho é o fundamento pedagógico que forja o homem na prática produtiva,
projetando, estendendo e concretizando vários outros tipos de conhecimentos culturais e políticos,
4
A partir da análise do processo de modernização industrial vivido pelo ocidente no início do século XX, Gramsci
sustenta a tese de que, no modelo de desenvolvimento fordista, a racionalização determinou a necessidade de elaborar
um novo tipo de homem, conforme o novo tipo de trabalho e de produção. Daí, utiliza-se da categoria “Americanismo e
Fordismo” para designar esse processo de organização econômica programática em substituição ao velho
individualismo econômico. Assim, levanta uma série de considerações para responder se é possível o avanço da ciência,
desenvolvido e aplicado a partir desse processo, ser utilizado na construção de uma sociedade socialista. A questão que
Gramsci levanta é se a exigência técnica pode ou não ser pensada de forma vinculada aos interesses históricos da classe
trabalhadora (Cf.: GRAMSCI, 1989b: pp. 375-413).
15
para melhor adaptar esse homem ao novo tipo de prática produtiva necessária a um determinado
momento histórico. Por isso, para Gramsci, as diversas formas produtivas e suas correlatas formas
escolares são expressão da busca da liberdade por parte do homem (NOSELLA, 1992, p. 127).
Partindo de uma investigação da realidade concreta, buscando soluções racionais para a
sociedade de sua época, Gramsci (1989, p. 406-407), embora com ressalvas, considera aspectos do
fordismo como essenciais para o desenvolvimento da humanidade5. De fato, o desenvolvimento das
forças produtivas e das relações de produção capitalista é por ele considerado capaz de apontar as
condições objetivas e subjetivas para uma transformação das relações sociais e políticas, a partir da
formação de uma nova sociedade urbano-industrial, de base técnico-científica (GRAMSCI, 1989, p.
393). Portanto, para Gramsci, o “americanismo” tem um significado histórico representativo do
desenvolvimento de condições reais para uma nova civilização, justamente por exigir do homem um
conhecimento de novo tipo, onde a teoria e prática se conformam em uma unidade, embora dentro
dos limites da valorização do capital, mas que faz emergir a possibilidade de um novo humanismo,
de um novo tipo de relação entre teoria e prática, entre conhecimento e trabalho, mesmo que essas
condições não tenham sido ainda exploradas. Porém, ele não quer dizer com isso que o
“americanismo” em si representa o limiar de uma nova sociedade, com novas relações sociais de
produção, mas que se trata apenas de uma fase superior de um processo que não é novo e se inicia
com a industrialização, abrindo novas possibilidades para a classe trabalhadora (NOSELLA, 1992, p.
127-128).
É evidente que o empresariado tem consciência dessa possibilidade de “liberação” do
cérebro do operário e da nova disponibilidade de energia humana, preocupando-se e interessando-se
política e economicamente com isso (GRAMSCI, 1989, p. 404). De acordo com a ótica do capital,
jamais esse espaço deve ser ocupado na produção integral da liberdade, mas em favor da produção
de “mais-valia”.
A proposta de “escola desinteressada do trabalho” de Gramsci surge exatamente dessa
problemática, ou seja, do fato dos industriais se preocuparem em ocupar os cérebros dos
trabalhadores livres da produção através de “escolas” fundamentadas na máquina ou na ciência,
metafisicamente (e não historicamente) concebidas. As escolas profissionalizantes, politécnicas,
tecnológicas, os círculos de cultura e de lazer etc., correspondem a esse interesse, enquanto que a
proposta de “escola desinteressada do trabalho” de Gramsci se contrapõe tanto à educação jesuítica
(desinteressada), como também à educação burguesa do trabalhador (interessada), materializada na
Note-se que, em Gramsci, a expressão “americanismo e fordismo” faz referência ao “bloco histórico” constituído pela
sociabilidade e pela organização produtiva fundadas no industrialismo contemporâneo. Ao passo que o termo
“americanismo” refere-se à cultura, à ética, à ideologia, à política e aos paradigmas próprios da sociedade urbanoindustrial do século XX, o termo “fordismo” refere-se à organização das forças produtivas e à regulação das relações de
produção próprias da acumulação capitalista do século XX.
5
16
formação unificada do técnico e do cientista da produção, negando o idealismo e afirmando a
posição marxista da prática produtiva como ponto de partida e o demiurgo da própria consciência
(GRAMSCI, 1991, p. 118).
De acordo com as análises das “Cartas do Cárcere” feitas por Nosella (1992), torna-se
evidente que Gramsci tinha grandes preocupações com as questões didático-pedagógicas, sempre
orientado pela sua concepção de vida, de cultura, de filosofia, de história, segundo a qual o ser
humano deve educar-se científica e culturalmente até os níveis mais complexos, sofisticados e
modernos, partindo de uma forte e vital ligação com sua base popular e com seu senso comum. Esta
concepção educacional seria o que, no presente trabalho, consideramos aquela da ótica do trabalho.
O interesse oposto de uma educação voltada para a formação de um técnico abstrato, um intelectual
desenraizado e não orgânico, considerada aqui como aquela da ótica do capital, significaria uma
ameaça para a aliança revolucionária (GRAMSCI, 1991, p. 117-118).
Gramsci sempre teve absoluta clareza do sentido histórico da sua proposta e fazia questão de
distingui-la das outras propostas que impregnavam o debate político-educacional de sua época,
ressaltando o seu caráter revolucionário. Por isso, sua proposta de “escola desinteressada do
trabalho” não se trata de uma proposta isolada, mas sim uma proposta gestada no sabor da
militância socialista e no compromisso com a classe operária. Sua proposta fazia parte de um
projeto muito maior: construir uma nova ordem de relações sociais de produção.
Conforme visto até aqui, a proposição de unificação entre a formação básica e a formação
técnico-profissional é uma estratégia política muito bem articulada com um projeto de sociedade
alternativo ao do capital. Entretanto, diversos governos têm levantado a bandeira da integração
entre formação geral e formação para o trabalho, especialmente em seus programas de governo de
caráter social voltados para a juventude.
A atual recomposição do capitalismo tem desencadeado profundas mudanças no trabalho, na
produção e nas relações de poder. Estas transformações situam-se nos limites do receituário
neoliberal. No bojo destas transformações, situa-se a reforma da política de educação profissional
básica e de nível técnico e tecnológico. Tais reformas têm o propósito de formar um novo tipo de
trabalhador para atender novas demandas de produção e qualidade das empresas, permitindo-lhes
melhores condições de competitividade no mercado nacional. Entretanto, o desemprego é uma
realidade inerente a este processo o que lhe confere o status de uma característica estrutural do
estágio atual do desenvolvimento do capital. Neste contexto, as políticas públicas de qualificação
profissional para a população jovem se inserem no conjunto de políticas de conformação das
camadas subalternas com a finalidade de mediar os conflitos de classes e manter a hegemonia do
projeto neoliberal. Esta seria, em princípio, a explicação do surgimento de programas federais de
inclusão de jovens, apesar das contradições que tal prática social possa comportar. Isto posto,
17
podemos considerar que esses programas implementados pelo governo para atender à população
jovem, ao proporem a integração entre formação geral e formação técnico-profissional,
indubitavelmente não estão preocupados com uma integração nos moldes da escola unitária de
Gramsci, mas de um outro modelo de integração que funciona muito mais como mecanismo de
contra-reforma da relação entre formação geral e formação para o trabalho na educação brasileira
do que uma reforma de fato.
18
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