PERCY HELIOGÁBALO SOUZA DE MELO A REPRESENTAÇÃO DA TEMÁTICA POLÍCIA VERSUS BANDIDO: UMA ANÁLISE FÍLMICA DE TROPA DE ELITE Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília como requisito parcial para obtenção do Título de bacharel em Jornalismo Orientadora: Prof. Dra. Karina Gomes Barbosa Brasília 2014 Aos meus pais, Rosa e Percy, pelo amor, carinho e dedicação e por sempre entenderem a importância que a educação tem na vida de uma pessoa. AGRADECIMENTOS Aos meus irmãos Raphael e Juliana, por acompanharem toda a minha trajetória durante esses quatro anos de curso e também compartilharem a paixão pelo audiovisual. À Agda Oliveira, pelo amor, carinho, dedicação e paciência, além da ajuda crucial com a bibliografia e os textos inglês. À Karina Gomes Barbosa, por minha orientar e entender tão precisamente o papel de uma orientadora, não apenas nesta monografia, mas também como grande professora nas disciplinas que nos encontramos. À Rafiza Varão, por me ensinar, sempre de forma tão doce, a ter atenção com o texto. Revisar, revisar e revisar... Ao Alex Vidigal, por despertar em mim o amor pelo cinema e mostrar o quanto mágico e surpreendente é essa tal de Sétima Arte. À Sofia Zanforlin, por guiar os meus primeiros passos na pesquisa científica e por saber mostrar o melhor caminho sem impor nada. Aos amigos-irmãos, Júnior Assis e Everton Lagares, pelo companheirismo na universidade e fora dela. “Se for possível, está feito; se for impossível, vamos fazê-lo” (Marechal Argolo, lema do 19º Batalhão de Caçadores). LISTA DE FIGURAS Figuras 1 a 3..............................................................................................................................52 Figuras 4 a 7..............................................................................................................................53 Figuras 8 a 11............................................................................................................................55 Figuras 12 a 14..........................................................................................................................55 Figuras 15 a 18..........................................................................................................................56 Figuras 19 a 21..........................................................................................................................57 Figuras 22 a 25..........................................................................................................................58 Figuras 26 a 28..........................................................................................................................59 Figuras 29 a 31..........................................................................................................................60 Figuras 32 a 36..........................................................................................................................61 Figuras 37 a 39..........................................................................................................................62 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..........................................................................................................................9 1. AS TEORIAS................................................................................................................13 1.1 Política dos autores................................................................................................13 1.2 Estudos culturais....................................................................................................15 1.2.1 Os Estudos Culturais e o “nascimento do espectador”...............................18 1.3 Cinema de terceiro mundo.....................................................................................20 1.3.1 Estética da fome..........................................................................................24 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O NARRADOR............................................................27 2.1 O conceito de narração/narrador............................................................................27 2.2 O narrador e a narração no cinema........................................................................28 3. O GÊNERO NO CINEMA...........................................................................................30 3.1 Considerações iniciais............................................................................................30 3.2 Noções gerais.........................................................................................................30 3.3 O gênero policial....................................................................................................33 3.4 O gênero policial no Brasil....................................................................................35 3.4.1 Breve histórico............................................................................................35 3.4.2 Cinema policial brasileiro e a crítica social................................................37 4. VIOLÊNCIA E PODER DO ESTADO........................................................................42 5. METODOLOGIA.........................................................................................................45 6. ANÁLISE......................................................................................................................49 6.1 Apresentação e resumo do filme............................................................................49 6.2 Análise da obra.......................................................................................................51 CONCLUSÃO..........................................................................................................................63 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................66 APÊNDICE...............................................................................................................................70 RESUMO MELO, Percy Heliogábalo Souza de. A representação da temática polícia versus bandido: uma análise fílmica de Tropa de Elite. 71 folhas. Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social como requisito parcial para obtenção do Título de bacharel em Jornalismo da Universidade Católica de Brasília. Brasília-DF, 2014. Esta monografia teve como objetivo a análise de um contexto de representação dentro do filme Tropa de Elite. Porém, esse trabalho de observação foi apenas o fim da caminhada. Para que pudéssemos realizar o trabalho de análise fílmica foi necessária a construção de todo um arcabouço teórico que passa pelas Teorias do Cinema, caminha para a conceituação de narrador e narração no cinema, passa pela discussão sobre a definição de gênero e abarca uma breve retrospectiva do gênero policial no Brasil e por fim tece um debate sobre violência e poder do Estado, caracterizando assim este trabalho com um viés marcado pelo culturalismo. Dessa forma, por meio desse estudo teórico e das técnicas de análise, descobrimos uma representação do policial honesto (agente do Bope) como um indivíduo representante e detentor da força estatal, enquanto que aos criminosos (policiais corruptos e traficantes) é destinada à morte, à humilhação e à tortura. Palavras-Chave: Cinema, análise fílmica, Tropa de Elite, representação, polícia, bandido. ABSTRACT This monograph had as objective the analysis of a representation context within the film Elite Squad. However, this observation work was just the end of the walk. So we could perform the film analysis was necessary to construct a whole theoretical framework that goes through Theories of Cinema, walks to the concept of narrator and narration in film, goes through the discussion on the definition of gender and embraces a brief review of the crime films in Brazil and finally weaves a debate on violence and state power, thus characterizing this work with a bias marked by culturalism. Thus, through this theoretical study and analysis techniques, we find a representation of the honest cop agent (BOPE) as an individual representative and state power holders, while the criminals (drug dealers and a corrupt police) are bound to death, to humiliation and torture. Keywords: Cinema, film analysis, Elite Squad, representation, police, bandit. 9 INTRODUÇÃO Neste trabalho farei uma análise do filme Tropa de Elite, do diretor José Padilha, buscando entender como ocorre a representação da temática polícia versus criminalidade. No início, falarei sobre as teorias do cinema que baseiam este trabalho: Estudos Culturais, Cinema de Terceiro Mundo e Política dos Autores. Serão abordadas também questões sobre o conceito de narração/narrador, a narração no cinema, além do posto de vista cinematográfico. Na discussão deste trabalho também se faz necessário falar sobre o gênero policial, assim como um resumo sobre os filmes policiais pelo mundo, para, em seguida, entrar no contexto brasileiro. Assim, partindo da ideia de que a análise de filmes consiste na decomposição de seus diversos elementos narrativos (planos, fotografia, roteiro), formais e de estilo, pretendo analisar a obra e descobrir como se esse processo de representação ocorre. Na primeira parte desta pesquisa apresentarei os aspectos das principais das teorias e correntes de pensamento presentes nos estudos sobre cinema que fundamentam este trabalho. Em seguida, discorrerei sobre a questão do narrador, outro aspecto fundamental para se entender Tropa, visto que boa parte do filme é narrada pelo seu personagem principal, o capitão do BOPE1 Roberto Nascimento (Wagner Moura). Em um segundo momento será abordada a questão da representação policial no cinema, em que será mostrado como surgiu o gênero policial e suas principais características. Como o objetivo deste trabalho consiste na análise de um filme brasileiro, a produção local será abordada de forma mais detalhada; isso não significa que os principais aspectos da produção de outros países fiquem de fora desse panorama. Algumas discussões sobre uso da violência por parte do Estado, assim como o poder estatal também estão presentes neste trabalho. Tropa traz um personagem que estuda Direito e lê Foucault, além disso, retrata histórias de policias, homens dotados do poder estatal. A escolha do filme Tropa de Elite se deu pelo grande sucesso de crítica e bilheteria. Tendo como base a temática “favela”, Tropa mostrou a relação comunidade/traficantes/polícia que permeia o mundo do crime na sociedade carioca. Dessa forma, me valendo da análise fílmica, pretendo observar esse produto da indústria cultural que levou mais de 2,5 milhões de pessoas às salas de cinemas do Brasil e colocou novamente o 1 Batalhão de Operações Policiais Especiais. 10 cinema brasileiro em evidência no cenário internacional. Com um orçamento estimado em R$ 11 milhões, o longa levou o Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim. Outro aspecto presente neste trabalho usará a análise fílmica como uma ferramenta de comparação entre algumas teorias do cinema, entre elas a “teoria do cinema de terceiro mundo2”. Esse movimento defende um tipo de produção no qual as mazelas da sociedade seriam expostas, onde o espectador produziria os próprios filmes e exibiria os seus dramas sociais, assumindo assim o papel de “espectador-autor” (STAM, 2011, p.116-117). As publicações desse movimento dos anos 60 e 70 defendem também que a militância político-social é mais importante que a expressão artística, em contraponto com a “teoria do autor3”, por exemplo. Tropa de Elite num primeiro momento não confirma a expressão cinematográfica do “terceiro-mundo”. Entretanto, os próprios teóricos terceiro-mundistas propunham questões “existenciais” dentro do movimento como imitar ou não o modo de produção hollywoodiano? Até que ponto o cinema deve incorporar formas narrativas populares? Qual a relação dos cineastas (em grande maioria representantes da classe média) do Terceiro Mundo com a classe pobre que eles pretendem representar? Essas indagações podem ao menos mostrar uma relação (ainda que de tensão) de Tropa com a estética do movimento. Além disso, julgo necessário levantar algumas questões que envolvem a teoria do “culto ao autor” como a representação da estética e do modo particular de filmar do cineasta em oposição à mera reprodução (no sentido de um processo mecânico, automático) do que está determinado no roteiro, o diretor de cinema como artista autoral e a utilização ou não dos modos de produção de Hollywood, que propiciam em grande parte uma maior qualidade ao filme, mas ao mesmo tempo “amarram” o trabalho de direção a questões hierárquicas e sistemas de produção. Além disso, no contexto deste trabalho, as considerações sobre as questões de “autoria” ganham mais peso devido à carreira do diretor de Tropa, José Padilha. O cineasta produziu e/ou dirigiu documentários em que a temática social comanda a narrativa. Assim ocorreu em: Os carvoeiros (2000), Estamira (2005), Ônibus 174 (2002) e Garapa (2009), que tratam, respectivamente, de assuntos como escravidão moderna, miséria, violência urbana e fome. 2 Robert Stam no livro “Introdução à teoria do cinema” utiliza diversos termos para se referir a produção cinematográfica e às correntes de pensamento presentes entre cineastas e teóricos dos países do chamado Terceiro Mundo. Alguns deles: Cinema e Teoria do Terceiro Mundo (p.122), terceiro-mundismo cinematográfico (p.113), Terceiro Cinema (p.119). 3 Nesse movimento do fim dos anos 50, o cinema era tido como expressão artística, assim como a pintura. Dessa forma, os cineastas (considerados verdadeiros artistas) usariam a grande tela como uma forma de expor a sua própria estética. [1] Comentário: : Será que podemos chamar assim ou chamamos de teorias pós-coloniais? Fiquei em dúvida. [2] Comentário: : O Stam chama assim mesmo. Será que está errado? 11 Ademais, ressalto que essa inter-relação presente entre as teorias do cinema encontram abrigo nos “estudos culturais”. Surgido na Inglaterra da década de 60, esse movimento defende que o cinema deve ser inserido em um “contexto histórico e cultural mais amplo”, no qual elementos relacionados ao meio social como pessoas, religião, política, gênero e instituições também ganharia espaço na análise do cinema (STAM, 2011, p. 248). Entretanto, vale ressaltar que essa teoria não menospreza o texto cinematográfico, como bem afirma Robert Stam: “é um erro supor que o estudos culturais nunca pratiquem a análise textual” (2011). Porém essa observação de texto e significados é feita dentro de um contexto cultural e sociológico, que no caso de Tropa de Elite, é bem claro: criminalidade, corrupção e favela. Este trabalho analisa o filme Tropa de Elite tendo como base as diversas teorias do cinema e a inter-relação entre várias ideias desses movimentos teóricos, resultando num leque diversificado de formas de entender e teorizar sobre o filme ou mesmo sua inserção ou não dentro da “estética da fome” do cinema de Terceiro-mundo. Pretendo também fazer uma análise tendo como base as questões sobre o “culto ao autor”, que defende o cinema como meio de expressão autoral. As teorias citadas nessa primeira parte do trabalho não impedem que outras sejam elencadas a esta monografia, dadas as diversas possibilidades e relações de interpretação presentes tanto nas teorias do cinema como no trabalho de análise fílmica. As escolhas, num primeiro momento, dos estudos e teorias citados consiste ela mesma em uma metodologia de pesquisa. Para tanto, no inicio será necessário discorrer sobre as teorias do cinema e explicar o que é análise fílmica para que o leitor entenda qual técnica será utilizada para observação da obra. Já em uma segunda fase será feita a análise, propriamente dita, do filme Tropa de Elite. O objetivo é decupar e agrupar, para em seguida reconstruir os elementos semelhantes do filme. A análise aparenta ser uma atividade subsidiária de outros interesses, dessa forma ela é o ponto de partida para a decomposição e é, também, o ponto de chegada à etapa de reconstrução do próprio filme. Esse segundo movimento em direção ao retorno da obra evita cair em interpretações/observações despropositadas ou pouco pertinentes, pois a análise (atividade que agrega tanto observações de conteúdo, como de discurso) é uma atividade que busca relatar um filme ao detalhe. Além disso, tem como função maior aproximar ou distanciar os filmes uns dos outros, e no caso em questão, “confrontar” a relação dessa obra com o seu público, assim como afirma Jacques Aumont na obra A estética do filme: “reagimos diante da imagem fílmica como diante da representação muito realista de um espaço imaginário que [3] Comentário: : O correto aqui é esse? 12 aparentemente estamos vendo” (AUMONT, 1995, p. 21). Nesse sentido, não se trata de construir uma outra obra, mais do que isso não deve cair na tentação de “superar o filme” e ultrapassar os objetos da análise, o que poderia levar à construção de um nova obra como alertam Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (2011, p.15). Outro ponto importante é voltar ao filme tendo em conta a ligação entre os elementos encontrados, mas sempre tendo em mente que os limites da “criatividade analítica” são os próprios objetos da análise. 13 1. AS TEORIAS Antes de começar a discorrer sobre as teorias e movimentos teóricos que fundamentam este trabalho, vale ressaltar que a apresentação teórica exposta é apenas uma seleção deste vasto campo de estudos chamado “teorias do cinema”. Assim, devido à diversidade que engloba o pensamento cinematográfico, além da forte inter-relação que permeia esses estudos, optou-se por fazer este trabalho ancorado nos três movimentos teóricos apresentados abaixo, o que não significa ingenuidade ou um desprezo a tantas outras teorias do cinema. A escolha do que será apresentado tem como objetivo um aprofundamento maior e consiste ela mesma, em uma metodologia de trabalho. 1.1 Política dos autores No início dos anos 60 surge no campo das teorias do cinema um movimento denominado “autorismo”. Inspirados no princípio do homem “na centralidade do sujeito filosófico”, defendiam que o cinema era um novo meio de expressão artística semelhante à pintura e à literatura (STAM, 2011, p. 102-103). Apesar de não ser considerada uma teoria propriamente dita (e essa nem era a intenção dos seus criadores), o “autorismo” trazia em si novos ensinamentos, muita polêmica e defendia uma intenção em relação ao cinema e ao modo de produzir e pensar a sétima arte (BUSCOMBE, 2005, p. 281). Mesmo antes do culto ao autor surgir como um grande movimento, o cineasta Alexander Astruc cunhou em 1948 o termo “câmera-caneta”, para ele o diretor de um filme não era mais um mero serviçal de textos preexistentes, ele seria um artista criativo, capaz de escrever a sua própria história. Nesse sentido, Robert Stam afirma: “a fórmula da camera stylo (“câmera-caneta”) valorizava o ato de filmar” (STAM, 2011, p.103). Além de Astruc, outro grande nome do “autorismo” foi François Truffaut. Em um manifesto publicado em 1954 na revista Cahiers Du Cinéma, o diretor atacou o método de produção que dominava o cinema francês, baseado em reproduções de clássicos da literatura, o que ele chamava de “tradição de qualidade”, pois esse tipo de produção transformava o filme em algo previsível, uma reprodução precisa e bem realizada, entretanto sem vida e que sempre seguia a mesma fórmula. 14 Truffaut ridicularizava a tradição de qualidade como um cinema enfadonho, acadêmico e de roteiristas, celebrando, ao mesmo tempo, o mais vital cinema popular independente norte-americano de Nicholas Ray, Robert Aldrich e Orson Welles. A tradição de qualidade, para ele, reduzia o cinema a uma mera tradução de um roteiro preexistente, quando deveria ser uma mise-enscène criativa. (STAM, 2011, idem) Segundo Truffaut, o cinema de autor se assemelharia ao realizador por meio do estilo presente no filme, o que representaria a personalidade do diretor. Os pensadores desse movimento adotavam os termos auteur (autor) e metteur-en-scène (encenador) para caracterizar, respectivamente, aquele que era capaz de fazer um filme verdadeiramente próprio, ou seja, original, daquele que era um mero reprodutor de roteiros. Outro teórico que propagou as ideias do “autorismo” foi o crítico francês André Bazin. Como bem explica Robert Stam (2011), Bazin apoiou o cinema como “uma criação artística, do fator pessoal como referência e a sua consequente postulação” (STAM, 2011, p. 104). Ainda nesse sentido, Stam explica: Todos esses argumentos eram esforços para reivindicar origens artísticas, e se pautavam pelo desejo de mostrar que o cinema era capaz de transcender sua forma artesanal, industrial de produção, incorporando uma visão singular, “assinada”. (STAM, 2011, p. 105) Cineastas clássicos como Welles e Eisenstein sempre foram considerados autores, devido ao controle artístico e à “estética pessoal” presentes em seus filmes. A inovação da teoria do autor estava no fato dela considerar também os cineastas de estúdio4 como autores. Mesmo em filmes padrão Hollywood, a estética do autor estaria de forma explícita na grande tela no trabalho de alguns diretores. Assim, o cinema norte-americano que sempre foi visto como o “modelo a não ser seguido”, emergia como um paradigma desse novo cinema francês (STAM, 2011, p.106). Nesse cenário de intensa polêmica surge a chamada “política dos autores” na França. Esse desdobramento do “autorismo” tinha como objetivo viabilizar um novo tipo de cinema. Como bem explica Andrew Tudor, a intenção do grupo dos Cahiers era mesmo fazer “política”, por meio de uma forte oposição ao modo tradicional de produção francês (TUDOR, 2009, p.121). Era a estratégia dos cineastas da Nouvelle Vague para conseguir espaço no cenário cinematográfico francês, tido como hierarquizado, controlador, onde 4 Aqueles diretores ligados ao modo de produção hollywoodiana dotado de sistemas rígidos estabelecidos e procedimentos narrativos tradicionais. 15 cineastas iniciantes tinham de esperar em uma fila para conseguir comandar as suas produções. Dessa forma, o “autorismo” como princípio elementar a defesa da personalidade do autor em meio às dificuldades para sua expressão (BUSCOMBE, 2005, p. 288). Nesse sentido, como afirma Robert Stam (2011), o culto ao autor serviu para revigorar a “aura” do cinema. A sétima arte encontrou nesse movimento uma paixão e uma idolatria exacerbada às práticas dos cineastas. O mesmo amor anteriormente devotado pelos fãs às estrelas ou pelos formalistas aos procedimentos artísticos, os adeptos do autorismo agora devotavam aos homens – que em sua grande maioria eram, de fato, homens – que encarnavam a ideia autoral de cinema. (STAM, 2011, p.107) Entretanto, Andrew Tudor é mais crítico do que Robert Stam ao falar do culto exacerbado à prática autoral. Para Tudor, ao aplicar a noção de “autor” como argumento para avaliação de um filme, havia sempre uma tendência a considerar um filme feito por um auteur como melhor do que aquele dirigido por um realizador, por mais que a segunda obra fosse indiscutivelmente melhor do que a primeira. Tudor completa: “Como foi um auteur que fez o filme, este tem de ser bom. A reduction ad absurdum desta posição é que não é necessário ver de facto os filmes, basta só saber quem os realizou” (TUDOR, 2009, p.126). 1.2 Estudos culturais Esse campo de estudos tem como fundamento situar o cinema em um contexto social e cultural mais amplo. Os chamados cultural studies originam-se na Inglaterra dos anos 60. Richard Hoggart, Raymond Williams e Stuart Hall são considerados os grandes pensadores desse campo de estudos. Preocupados com a opressão imposta pelo sistema de classes britânico, esses estudiosos pesquisavam aspectos de dominação ideológica e por novos agentes de mudança social. Fundamentado em diversas fontes intelectuais como a semiótica, o marxismo e, tempos depois, o feminismo e a crítica racial, o culturalismo espalhou-se pela Europa e chegou aos Estados Unidos e à América Latina (STAM, 2011, p.248-249). Esta última tem como expoentes o argentino Néstor Garcia Canclini, o espanhol residido na Colômbia Jesús Martín-Barbero e o brasileiro Carlos Eduardo Lins da Silva. Além disso, os estudos culturais agregam e modificam uma série de conceitos. Um exemplo é a definição de cultura de Williams: “todo um modo de vida”, como uma prática social que relaciona elementos como religião, arte, vida em família, entre outros (WILLIAMS, 1979, p.16-17). Já o italiano Antonio Gramsci serviu de influência para os 16 culturalistas ao considerar a interdependência entre ideias contraditórias e questões de base super-estretura no contexto do estancamento do processo revolucionário na Europa Ocidental. Segundo ele uma ideologia perpassa a luta de classe e, no sentido oposto, uma pessoa pode ser influenciada por inúmeras ideologias, ainda que antagônicas (STAM, 2011, p.249). Ou, nas palavras de Fernando Mascarello (2001): “uma tendência à ‘duplicidade ideológica’, uma capacidade do indivíduo de ‘crer e não crer’ no mesmo movimento, de acordo com as circunstâncias de cada momento ou vivência”. Devido a essa multiplicidade de influências, os estudos culturais são reconhecidamente, nas palavras de Robert Stam (2011), algo “difícil de definir, em virtude de sua metodologia deliberadamente eclética e aberta”. Para Stam a “cultura” nos estudos culturais é ao mesmo tempo antropológica e artística, dessa forma, definida em termos democratizadores, esse movimento considera que todos os fenômenos culturais, do mais popular e burlesco ao mais erudito, são dignos de estudo. Em relação ao seu objeto de estudo, os culturalistas dão atenção mais ao meio social no qual o produto está inserido do que ao produto em si. Assim sendo, os textos estariam inseridos em uma matriz social e produziriam consequências sobre o mundo. Na obra Crítica da imagem eurocêntrica, Ella Shohat e Robert Stam (2004, p.31), versando sobre as questões do multiculturalismo, nos explicam: “comunidades, sociedade, nações e mesmo continentes inteiros não existem de modo autônomo, mas em uma teia densa de relações”. Ainda nesse sentido, Stam (2011, p.250) nos diz: “Os estudos culturais representam uma mudança de interesse pelos textos em si para um interesse pelos processos de interação entre textos, espectadores, instituições e o ambiente cultural”. Entretanto, Stam alerta que é um equívoco supor que os estudos culturais não façam a análise textual, a diferença é que esse texto passa a ser analisado dentro de um contexto cultural mais amplo. Oferecendo-se como uma alternativa em relação a outras teorias, o culturalismo procura entender como a subjetividade é construída. Para os teóricos desse movimento, a subjetividade contemporânea está intimamente ligada às representações midiáticas de todas as espécies (STAM, 2011, p.250). O sujeito é construído não apenas pela diferença sexual, mas também por muitos outros tipos de diferenças, em uma negociação permanente e multivalente entre condições materiais, discursos ideológicos e eixos sociais de estratificação fundados na classe, na raça, no gênero, na idade, não origem geográfica e na orientação sexual. (STAM, idem) 17 No campo do audiovisual, os estudos culturais não focalizam apenas um meio particular como o cinema, mas sim, aspectos mais amplos inseridos nas práticas culturais. Porém, o movimento não considera em princípio as diferenças de exibição e assimilação presentes em meios como a TV, o próprio cinema, os videoclipes. Assim, os estudos do cinema mais recentes readequaram a teoria e passaram considerar não apenas as salas tradicionais de cinema, mas também aos diferentes tipos de exibição como em casa, restaurantes, aviões e assim por diante, pois segundo Stam (2011, p.251): “o tipo de atenção concentrada dedicada à imagem de alta definição em uma sala escura do cinema (...) distingue-se radicalmente do tipo de percepção dispersa em um avião em movimento”. Outro tópico controverso que envolve os estudos culturais e o cinema é a seguinte questão: “os estudos culturais complementam e enriquecem os estudos do cinema ou os ameaçam à diluição?” (STAM, idem). Alguns teóricos consideram as questões de “cultura” como uma extensão lógica, pois já seria realizado dentro dos estudos do cinema; para os mais tradicionais a teoria é uma afronta ao cinema, visto que ela desconsidera a especificidade do meio. Para alguns teóricos e pesquisadores de cinema, os estudos culturais devem ser desprezados, por não mais estudarem uma arte erudita (o cinema), mas artes populares, vulgares e menores como sitcoms televisivas – um argumento bastante irônico tendo em vista a longa luta empreendida pelos estudos do cinema para legitimar a dignidade de seu próprio desprezado objeto de estudo. (STAM, 2011, p.251) Umas das ideias que fundamentam os estudos culturais é a visão de cultura como o campo do conflito e negociação no meio social. Isso resulta no que Stam (2011, p.253) denomina como uma “interlocução de ideias e negociações no interior de informações sociais dominadas pelo poder e atravessadas por tensões relativas à classe, gênero, raça e sexualidade”. Nesse contexto de interações faz-se necessário entender que comunidades, sociedade e nações não existem de forma autônoma, mas sim marcada por uma rede de interações. E por considerar dentro do seu objeto de estudo as diversas relações e elementos presentes na sociedade, os estudos culturais acabam por incluir e dar espaço a “vozes marginalizadas e sub-representadas”, considerando “as minorias como participantes ativos e produtores localizados no próprio centro de uma história compartilhada e conflituosa” (STAM, 2011, p.298). Tal concepção é a base dos mais variados sobre estudos de mídia, cinema e cultura, incluindo a Teoria do cinema de terceiro mundo. 18 1.2.1 Os Estudos Culturais e o “nascimento do espectador” O espectador é tema dominante nas teorias modernas de comunicação; não aquele espectador que apenas “assiste” e “contempla” de forma passiva determinada obra artística, mas sim aquele que interage, questiona e analisa um produto da mídia. Nesse sentido, o cinema popular ocupa lugar de destaque. Os teóricos setentistas afirmam que o cinema é elemento de subjetivação do espectador à ideologia do capitalismo (MASCARELLO, 2001, p.4). Ainda nesse sentido, Mascarello (2005, p.2) sintetiza como se dava o pensamento dominante na década de 70: “Reduzido a uma mera ‘inscrição textual’, o espectador é compreendido como uma entidade abstrata e passiva (...)”. Já as teorias dos anos 80 e 90 criticam os ensaios de revistas tradicionais como Cinétique, Cahiers e Screen e fazem uma “heterogeneização do espaço configurado pelo cinema popular e seu espectador”. Esse fato ocorre de forma particular no cenário angloamericano, no qual os Estudos Culturais, representado, sobretudo por vertentes etnográficas, aparece como corrente teórica mais influente (MASCARELLO, 2005, idem). Dessa forma, como nos traz Mascarello (2001), ocorre a derrocada do ponto central das reflexões dos anos 70: “o determinismo absoluto pelo texto”. Assim, os teóricos modernos implantam um sistema conceitual onde o contexto de recepção da obra passa a ser privilegiado. Dessa forma, abandona-se a ideia de espectador passivo e de uma comunicação unilateral advinda apenas do texto e passa-se a considerar e a reconhecer a capacidade de negociação com as obras. Passa-se a examinar a relação entre texto fílmico e audiência em termos de suas manifestações pontuais, historicizadas, contemplando-se a diversidade encontrada, extratextualmente, nos momentos da produção e da recepção. Com isso, desenvolvem-se as formulações ‘audiência ativa’, e as interpretações, usos e prazeres do filme dominante começam a ser teoricamente respeitados e afirmados. (MASCARELLO, 2005, p.2) Na trajetória dessa mudança de contexto, surgem dois corpos teóricos. O primeiro é marcado pela homogeneização original e caracteriza-se por uma fusão de estruturalismo/pósestruturalismo, semiologia, psicanálise e marxismo. O segundo é responsável pelo impulso inicial da heterogeneização da teoria, abrange os “estudos contextualistas da espectorialidade cinematográfica” (Idem, Ibidem). Entretanto, Mascarello (2001) nos lembra também que esse processo de mudança de paradigma surge dentro da teoria setentista, pois segundo ele, dentro do próprio textualismo já havia discordâncias, para ilustrar, ele cita as diversas existentes para se referir à teoria da [4] Comentário: : Subjetivação mesmo, segundo o Mascarello. 19 década de 70: “teoria do dispositivo” (diversos autores), “desconstrução” (Ismail Xavier), Screen-theory (vários), “posicionamento subjetivo” (Bordwell). Além disso, a existência de “contra-estratégias textuais de vanguarda” e a “investigação dos mecanismos de subjetivação ideológica” marcam o momento em que o textualismo semiológico se lança a entender o processo de subjetivação capitalista do espectador (MASCARELLO, 2001, p.7). Já em relação ao contextualismo, temos o modelo do processo comunicativo proposto por Stuart Hall, em 1973, no ensaio Encondig/Decoding, e que serve para o desenvolvimento da chamada “teoria da audiência ativa” a partir do final da década. O pesquisador identifica três momentos relativamente autônomos no processo comunicativo: produção, texto e recepção. Nesse sentido, Mascarello (2001), traz a seguinte discussão: Ora, se a recepção é relativamente autônoma com respeito ao texto, a audiência assume um papel constitutivo na disputa. Por isso, várias são as possibilidades existentes na relação audiência com o texto midiático dominante. (MASCARELLO, 2001, p.8) Assim, já em meados da década de 80, e fundamentalmente no cenário angloamericano, sob a inspiração do chamado “horizonte teórico-metodológico culturalista”, isto é, as formulações propostas pelos “estudos culturalistas de audiência” implementados por pesquisadores Centre Contemporany Cultural Studies (CCCS), “desloca-se o foco do sujeito inscrito no texto ao espectador concreto”, ou seja, um sujeito inserido no contexto social e histórico (Idem, Ibidem). Nesse sentido, ele ainda afirma: “A condição ativa dos espectadores como produtores de sentido está associada à sua relação com o texto, ou mais especificamente, ao trânsito espectatorial por vários discursos presentes no contexto sócio-histórico” (MASCARELLO, idem). Entretanto, como explica Mascarello (2005), o campo dos estudos contextualistas do espectador cinematográfico é bastante controverso em teoria do cinema. Apesar de se reconhecer, de maneira geral, que o aspecto culturalista tenha contribuído de forma importante para os estudos do cinema, dois fatores, que seguem negligenciados, caracterizam a difícil relação entre os estudos culturais e os estudos de cinema: Em primeiro lugar, a despeito do reconhecimento da relevante contribuição dos estudos culturais à teoria do cinema, a abordagem contextualista à espectatorialidade cinematográfica segue decisivamente marginalizada entre os teóricos e pesquisadores da área. Em segundo, a marginalização dos estudos contextualistas envolve a inexistência de esforços mais compreensivos de mapeamento dos avanços já identificáveis na área. Não parece haver um consenso – ou seque um entendimento –, entre os autores, em torno à dinâmica e ao significado histórico-teóricos das repercussões, sobre os estudos de cinema que percebam a erosão de seu paradigma 20 textualista, da ruptura contextualista determinada pelos estudos culturais. (MASCARELLO, 2005, p. 3) Além disso, Mascarello (2001) afirma que apesar de haver uma heterogeneização das teorias contextualistas em oposição ao viés homogeneizador das teorias dos anos 70, os estudos culturalistas enfrentaram certas dificuldades na análise do processo de recepção: (...) o caráter da relação entre as audiências é de tal forma multidimensional que exige uma ainda maior complexificação teórica, para além do que tem sido capaz de promover a influência dos Estudos Culturais sobre a teoria do cinema. (MASCARELLO, 2001, p.15) Mascarello (2005) ainda nos explica que a etnografia dentro dos estudos das audiências do cinema funcionou “mais como um horizonte de pesquisa do que uma prática concreta”. Resultando, assim, em poucos estudos etnográficos que realmente aplicaram o horizonte contextualista dos estudos culturais. Dessa forma, ele cita as pesquisas de Dyer e Valerie Walkerdine, ambas de 1986, o trabalho de Jacqueline Bobo (1988 e 1995). Nesse sentido, Mascarello (2005) nos diz: Estes trabalhos constituem a instância mais bem-sucedida de assimilação do horizonte teórico-metodológico culturalista, ao operarem a aplicação do método etnográfico à investigação das audiências cinematográficas, afirmando, neste processo, os prazeres espectatoriais dominantes de espectadores agora considerados ativos frente ao texto fílmico. (MASCARELLO, 2005, p.11) 1.3 Cinema de terceiro mundo Cunhado originalmente pelo francês Alfred Sauvy na década de 50, o termo “Terceiro Mundo” faz referência à existência de três esferas geopolíticas: o Primeiro Mundo Capitalista (a nobreza); o Segundo Mundo (o clero) e o Terceiro Mundo (plebeus). Este último grupo é representado pelas nações colonizadas ou neocolonizadas, cujos processos políticos e econômicos foram formados no processo colonial (STAM, 2011, p.112). A definição fundamental de Terceiro Mundo estava focada mais em questões de dominação econômica do que em estereótipos como “os pobres”, “os não industrializados” ou “atrasados culturalmente”. Segundo Stam (2011) estas noções de Terceiro Mundo foram consideradas imprecisas, porque países como Brasil, México, Argentina e Singapura possuem uma economia robusta, são altamente industrializados e possuem um campo artístico e cultural riquíssimo. Shohat e Stam (2006) atribuem a essa forte industrialização dos países de 21 terceiro mundo a responsabilidade pelo surgimento de “gigantes audiovisuais na mídia5” em locais como o Brasil e o México e o consequente crescimento das produções audiovisuais nesses países. Assim, os fatores econômico-industriais aliados à popularidade do neorrealismo6 italiano na América Latina7, criaram um terreno fértil para o terceiro-mundismo no cinema. Como explica Robert Stam (2011), de fato, houve um intenso intercâmbio entre o neorrealismo italiano e a produção cinematográfica na América Latina. Cineastas como Cesare Zavattini visitaram Cuba e o México em 1953 para falar sobre as possibilidades de versões locais de neorrealismo, assim como diretores latinos (Fernando Batri, Julio Garcia Espinosa, Tomás Gutiérrez Alea) estudaram em Roma. Além disso, periódicos como Tiempo de Cine na Argentina e A Revista de Cinema no Brasil serviram para disseminar a influência italiana no modo de produção cinematográfica dos latino-americanos. Os filmes neorrealistas italianos provocaram burburinho entre os cineastas latino americanos. O pesquisador Alex Viany e o diretor Nelson Pereira dos Santos ficaram impressionados ao ver como os italianos haviam construído uma “estética da pobreza” por meio das técnicas de documentário, utilizando equipamentos simples e com pouco ou nenhum orçamento (STAM, 2011, p.113-114). Esses mesmos cineastas publicaram artigos na década de 50 no qual defendiam um cinema “nacional” e “popular”. Os cineastas e teóricos terceiro-mundistas não eram contra apenas a dominação hollywoodiana dos circuitos de distribuição, mas também das representações culturais de sua história e cultura. Em resposta a esses estereótipos, os latino-americanos apostaram em um cinema feito por e para os latinos; esse “novo cinema” teria o papel de ser o porta-voz do povo, fazendo o que Shohat e Stam (2006) chama de “contranarração cinematográfica”. Os manifestos de 1960 e 1970 valorizavam um cinema alternativo, independente e antiimperalista mais preocupado com provocação e militância do que com a expressão autoral ou com a satisfação do público-consumidor. Os manifestos contrastavam este novo cinema não apenas com Hollywood, mas também com as 5 No contexto brasileiro destaca-se a Embrafilmes, empresa estatal criada em 1969 com o objetivo de fomentar a produção e a distribuição de filmes. A estatal foi extinta em 1990 com a marca de 232 filmes produzidos e outros 329 distribuídos. A Rede Globo de Televisão, segunda maior emissora de TV do mundo, atrás apenas da norteamericana ABC, é outro exemplo. Criada em 1965, produziu 276 telenovelas e desde 1998, quando criou a Globo Filmes, lançou 133 longas-metragens. 6 Movimento cultural surgido na Itália pós Segunda Guerra Mundial, o neorrealismo apresentava em seus filmes fortes elementos da realidade, assemelhando-se, em certo ponto, ao documentário. Os filmes neorrealistas buscavam apresentar a realidade social e econômica vividas pela Itália naquele período. Os cineastas Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti estão entre os maiores expoentes do movimento. 7 Sobretudo pela presença de imigrantes italianos nos países latino-americanos e também pelas condições sociais relativamente semelhantes entre a Itália e a América Latina. 22 tradições comerciais de seus próprios países, que eram vistas como ‘burguesas’, ‘alienadas’ e ‘colonizadas’. (SHOHAT; STAM, 2006, p. 356) A ideologia terceiro-mundista cristalizou-se ao final dos anos 60 por meio de uma onda de ensaios-manifestos militantes como a “Estética da Fome” de Glauber Rocha (1965), “Towards a Third Cinema” de Solanas e Getino (1969) e “For animperfect cinema” de Garcia Espinosa (1969). Escritos em um momento de intensas lutas nacionalistas, esses manifestos eram marcados por contextos culturais e cinematográficos particulares, entretanto havia preocupações comuns como a recusa aos modos de produção do Primeiro Mundo e a necessidade de se fazer comunicar para um grande público. Glauber Rocha defendia que o fato de um país ser desenvolvido economicamente, não deveria significar que ele tinha de ser artisticamente subdesenvolvido (STAM, 2011, p.115). Em Crítica da imagem eurocêntrica Robert Stam discorre ainda sobre o cinema terceiro-mundista da seguinte forma: (...) os diretores do Terceiro Mundo e das minorias reescreveram suas próprias histórias, tomando o controle das próprias imagens e falando com suas próprias vozes. Não que tais filmes substituam as ‘mentiras’ europeias com uma verdade pura e inquestionável, mas propõem ‘contraverdades’(...) informadas por uma perspectiva anticolonialista, recuperando e reforçando os eventos do passado em um amplo projeto de remapeamento e renomeação. (SHOHAT; STAM, 2006, p. 358) Stam (2011) também nos explica que Glauber defendia um cinema onde predominasse a liberdade, que pudesse desconstruir o gosto pela estética comercial hollywoodiana. “O novo cinema, para Glauber, deveria ainda ser tecnicamente imperfeito, dramaticamente dissonante, poeticamente rebelde e sociologicamente impreciso” (STAM, 2011, p.116). Assim, o cinema assume um cunho militante e por meio dele seria possível contribuir para que o país se libertasse da dominação ideológica do Primeiro Mundo. Glauber também era defensor de uma abordagem que protegesse os jovens diretores contra os métodos de produção hierarquizados e padronizados da indústria cinematográfica, o que Glauber definiria como o “sistema”. Assim, em certo ponto, o cineasta brasileiro defendia a “política do autor” francesa. A diferença é que o movimento europeu tratava o cineasta como um sujeito individualmente soberano, enquanto Glauber acreditava em uma abordagem que “nacionalizava” o autor, porta-voz não de uma estética individual, mas sim de um povo, uma nação, com um papel social representante (STAM, 2011, idem). Por sua vez, os argentinos Octavio Getino e Fernando Solanas denunciaram no manifesto “Towards a Third Cinema” o colonialismo cultural que dominava as obras latinoamericanas que, segundo eles, operava até mesmo na linguagem cinematográfica, o que levava à adoção de formas ideológicas inerentes à estética dominante. Solanas e Getino 23 criaram um sistema que distinguia o “primeiro cinema” (Hollywood); o “segundo cinema” (os filmes de arte); e um “terceiro cinema”, (marcado pela presença de filmes militantes). Como explica Robert Stam (2011), Solanas e Getino defendiam a “dissolução da estética no interior da vida da sociedade”. Acreditavam também que o espectador deveria sair da sua área de conforto e tornar-se um construtor ativo e protagonista de sua própria história (STAM, 2011, p.116). O termo “Terceiro Mundo” foi eficaz ao chamar atenção para a produção cinematográfica da Ásia, África e América Latina e até mesmo de produções independentes e militantes do chamado Primeiro Mundo. Assim, nesse sentido, como esclarece Robert Stam (2011), alguns cineastas como Roy Armes definem o “cinema do Terceiro Mundo” de maneira ampla, como o conjunto de filmes produzidos nos países do Terceiro Mundo e até mesmo aqueles realizados antes da própria idéia do cinema de Terceiro Mundo ascender no círculo cinematográfico, mas que já apresentavam a ideologia e a estética terceiro-mundista. Outros, como Paul Willemen, preferem usar o termo “Terceiro Cinema”, o que compreenderia um conjunto de filmes que aderiram a um programa político e estético, fossem eles produzidos ou não nos países do Terceiro Mundo. Enquanto isso, Solanas e Getino definem como “um cinema que reconhece na luta anti-imperialista” uma forma de manifestação cultural e artística, em suma, uma forma de “descolonizar a cultura” (STAM, 2011, p. 120). Os cineastas terceiro-mundistas conscientes das questões que envolviam os preceitos por ele defendidos desenvolveram uma continuada problemática, uma série de indagações inter-relacionadas e recorrentes que recebiam respostas a mais diferentes. Dentre esses questionamentos, Robert Stam (2011) destaca: Como o cinema pode melhor expressar as preocupações nacionais? Que áreas da experiência social eram negligenciadas pelo cinema?(...) Qual o papel do produtor independente? Qual o papel do autor e da abordagem autoral no Cinema de Terceiro Mundo? (STAM, 2011, p.121) Stam segue e completa com questões que envolviam a “representação das mazelas do povo”: Qual a relação entre os cineastas do Terceiro Mundo (em sua maior parte intelectuais de classe média) e o “povo” que pretendiam representar? Deveriam ser uma vanguarda cultural falando pelo povo por procuração? Deveriam ser os porta-vozes celebratórios da cultura popular ou os críticos cruéis de suas alienações. (STAM, 2011, idem) Nesse mesmo sentido, a brasileira Ivana Bentes (2007) divide os questionamentos ao modo de produção terceiro-mundista em dois grupos: as questões de ordem ética e questões 24 de cunho estético. As primeiras dizem respeito a “como mostrar o sofrimento, como representar os territórios de pobreza (...), sem cair no folclore, no paternalismo, ou num humanismo conformista e piegas?”. Em relação às questões estéticas, a pesquisadora afirma: (...) como criar um novo modo de expressão, compreensão e representação dos fenômenos ligados aos territórios da pobreza, do sertão e da favela, dos seus personagens e dramas? Como levar esteticamente, o espectador “compreender” e experimentar a radicalidade da fome e dos efeitos da pobreza e da exclusão, dentro ou fora da América Latina? (BENTES, 2007, p. 244) Seguindo com a mesma linha de pensamento, Bentes (2007) acaba concluindo que o cineasta Glauber Rocha responde a essas questões propondo um pensamento que abarca, simultaneamente, fundamentos de ordem política, estética e ética: Glauber propõe uma “Estética da Violência”, capaz de criar um intolerável e um insuportável diante dessas imagens. Não se trata da violência estetizada ou explícita do cinema de ação. Mas uma carga de violência simbólica, que instaura o transe e a crise em todos os níveis. (BENTES, 2007, idem) 1.3.1 Estética da fome Em 1965, os diretores do cinema novo brasileiro defenderam o que Glauber Rocha, em seu famoso manifesto, chamou de “estética da fome”. Glauber rejeitava o luxo e a pompa presentes no cinema comercial e construiu, como dizem Shohat e Stam (2006), “alegorias de subdesenvolvimento” cinematográficas. A ideia foi transformar a debilidade estratégica – a falta de infraestrutura, de recursos e de equipamento – em uma força tática, convertendo a pobre em um símbolo de honra e escassez, como assinala Ismail Xavier, em um “significante”. A expectativa era poder dar expressão a temas nacionais em um estilo nacional. (STAM, 2011, p. 120) O cinema novo, ao buscar uma linguagem apropriada para as condições precárias de um país como o Brasil, capaz de transmitir uma visão construtiva e desalienante da experiência social, subverteu as hierarquias burocráticas da produção convencional. Além disso, as precárias condições de trabalho (baixos orçamentos, taxas de importação de equipamentos e elevados custos de produção), bem diferentes daquelas presentes no dito cinema de Primeiro Mundo e um mercado limitado e menos rico, criaram o cenário para um 25 novo modo de produção cinematográfica, independente e transgressor. (STAM; SHOHAT, 2006, p. 368) Assim, nas palavras do próprio Glauber Rocha: De Aruanda a Vidas secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que identificou o cinema novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais, pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. (...) Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. (ROCHA, 1965, p.3-4) Essas diferenças nos modos de produção, inevitavelmente, se refletiam tanto na ideologia como na estética dos filmes. A “fome” caracterizava não apenas o tema e a estética de filmes como Vidas secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, mas também seus métodos de produção. O filme de Nelson custou 25 mil dólares e a improvisação de equipamentos no set de filmagem era algo corriqueiro. A mais marcante delas foi uma luz “inventada” pelo diretor de fotografia, Luiz Carlos Barreto, para substituir um potente refletor de 20 mil watts que custava uma verdadeira fortuna (STAM; SHOHAT, 2006, p. 370-371). A pesquisadora Ivana Bentes, analisando filmes contemporâneos como Cidade de Deus e Central do Brasil, traz algumas considerações sobre a “Estética da Fome”. Para ela, agora o sertão brasileiro é representado pela favela e se torna um espetáculo por meio da glamourização das suas histórias e dos seus personagens, algo pronto a ser consumido por qualquer audiência. Passando, assim, da “Estética da Fome” à “Cosmética da Fome” (BENTES, 2007, p.244-245). Bentes segue afirmando que os personagens que habitam esse “novo sertão” são retratados de forma débil, pois são indivíduos inertes, incapazes de reagir ao contexto de violência no qual estão inseridos. Em grandes linhas poderíamos colocar de um lado o cinema da romantização da miséria e sua contrapartida, a “pedagogia da violência”, que marca alguns filmes do Cinema Novo, até chegarmos ao contexto contemporâneo, em que a violência e a miséria são pontos de partida para uma situação de impotência e perplexidade e a imagem das favelas é pensada no contexto da globalização e da cultura de massas. (BENTES, 2007, p. 247) 26 Ainda nesse sentido, Bentes (2007) afirma que os filmes brasileiros contemporâneos retratam, com um certo orgulho, fascínio e falta de contextualização, a miséria e a violência presentes na favela. Para ela, poucos são filmes que relacionam a violência presente nas periferias com a classe média, ocasionando o que ela chama de uma “violência randômica, destituída de sentido” que marca a produção audiovisual contemporânea. Nos anos 1990, o cinema de ficção apresenta raros cenários de reconciliação ou integração entre a favela e o restante da cidade, o contexto é o confronto ou a cumplicidade apenas no crime, cada vez mais explícito. Também está ausente qualquer discurso político explicativo da miséria e da violência, como nos filmes sobre a favela dos anos 1960. É através de imagens violentas que os novos marginalizados ferem e violentam o mundo que os rejeitou, é através das imagens que são demonizados pela mídia, mas também é pela imagem que se apropriam da mídia e de seus recursos, sedução, glamourização, performance, espetáculo, para existirem socialmente. (BENTES, 2007, p. 249) 27 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O NARRADOR 2.1 O conceito de narração/narrador Vanoye e Goliot-Lété (2011), partindo dos ensinamentos de Marc Vernet, definem a narração como o “ato narrativo produtor e, por extensão, ao conjunto da situação real ou fictícia na qual ocorre”. Os autores afirmam também que a narração diz respeito às relações que existem entre o enunciado (representado pelo “eu”) e a enunciação (distribuição da linguagem entre o “eu” e o “outro”). Assim, se valendo mais uma vez dos pensamentos de Vernet e agora também de Metz, Vanoye e Goliot-Lété (2011, p.39) afirmam: “é dentro do texto que se encontram os indícios da enunciação desse texto. Evitemos procurar fora do texto algum enunciador ou narrador, responsável pela produção do texto”. Para o brasileiro André Parente (2005, p.260), para que a narração ocorra “é preciso que o destinatário leia ou escute os enunciados e veja as imagens” da mesma forma que ele entende o mundo “representado”. Assim, Parente resume o seu pensamento: “(...) é precisamente porque o destinatário pode aceder, por meio dos enunciados e das imagens, ao acontecimento, ao movimento de pensamento da consciência do doador, que este último pode lhe comunicar algo que imaginou ou viveu” (PARENTE, 2005, idem). Nesse sentido, as ideias de Parente parecem encontrar abrigo nos pensamentos do célebre Walter Benjamim (1987). Para o pensador alemão a narração está relacionada com a “faculdade de intercambiar experiências”. Assim, completando o raciocínio: “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores” (1987, p.198). Dessa forma, a pessoa responsável por transmitir essa “experiência” é caracterizada por Benjamim (1987, p.197) como um “observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável”. Outro viés que envolve o “intercâmbio de experiências” proposto por Benjamim é o seu caráter utilitário, ou seja, a narração assume um papel prático na vida das pessoas. Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida (...). (BENJAMIM, 1987, p.199) Benjamim segue e nos explica que o narrador é alguém que dá conselhos e esse aconselhamento está relacionado ao processo de continuação de uma história que é narrada. E 28 esse processo de dar continuidades às tramas narradas é feito pelo narrador por meio de “sua própria experiência ou a relatada pelo outros (1987, p.200)”. Benjamim (1987) também faz uma diferenciação entre a informação e narração. A primeira está relacionada aos fatos que já nos chegam repletos de explicações e compreensões e quem aspiram “a uma verificação imediata”. Por outro lado, a narração está relacionada a “arte de evitar explicações”, além disso, o processo narrativo tem a capacidade de “conservar suas forças” e mesmo depois de muito tempo ele ainda é capaz de desenvolver uma história. Para explicar esse processo de preservação da narração, Benjamim (1987) nos diz: O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação. (BENJAMIM, 1987, p. 201) Sobre esse processo de relação psicológica entre o narrador e ouvinte, Benjamim também nos ensina que “quanto maior a naturalidade” com que narrador age, mais facilmente a “história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia” (BENJAMIM, 1987, p.202). Ainda nesse sentido, Benjamim (idem), nos traz a seguinte lição: “Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las”. 2.2 O narrador e a narração no cinema David Bordwell (2005b) nos explica que o filme clássico hollywoodiano traz em sua narrativa personagens bem definidos, esses indivíduos têm um função bem clara na trama: “resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos”. Ainda nesse sentido, ele nos diz: “Nessa busca, os personagens entram em conflito com outros personagens ou com [5] Comentário: : Onde terminam as aspas? circunstâncias externas” (BORDWELL, 2005b, p. 279). Bordwell segue e explica que o [6] Comentário: : Aqui mesmo, Karina. principal agente causal da trama é o personagem que, segundo ele, é “dotado de um conjunto evidente e consistente de traços, qualidades e comportamentos”. E é esse indivíduo mais “especificado” que se torna o principal objetivo de identificação do público e não apenas isso, o cinema pode ser concebido como um veículo de representações da própria sociedade, e essa 29 dimensão antropológica opera-se por meio das ações do personagem: “a tipologia de um personagem ou de uma série de personagens pode ser considerada representativa não apenas de um período do cinema como também de um período da sociedade” (VERNET, 1995, p.98). Esse tipo de personagem que serve como modelo na narrativa pode ser comparado ao que Aumont (2011, p.84) chama de esquema: “estrutura relativamente simples” que faz com que o espectador se familiarize com a imagem. Assim, enquanto instrumento de rememoração, o esquema deve possuir um esquema que facilite o entendimento, de forma até mesmo didática. E assim como um certo tipo de personagem reflete determinados períodos da sociedade, as formas esquemáticas são adaptadas na medida em que é usada e também “à medida que novos conhecimentos são produzidos e os tornam inadaptados” (AUMONT, idem). E esse efeito representativo que extrapola o campo cinematográfico pode ser explicado pela diegese que, segundo Vernet (1995,p.114), seria a ficção produtora de “algo mais amplo que a história, que ela acaba englobando: é também tudo o que a história evoca ou provoca para o espectador.” Nesse sentido, Vernet segue e nos traz aquilo que ele chama de universo diegético, que compreende a série de ações, o contexto, assim como os sentimentos e motivações existentes. Esse universo diegético tem um estatuto ambíguo: é, ao mesmo tempo, o que gera a história e aquilo sobre o ela se apóia, aquilo ao qual ela remete (é por isso que dizemos que a diegese é “mais ampla” do que a história). Qualquer história particular cria seu próprio universo diegético, mas, ao contrário, o universo diegético (delimitado e criado pelas histórias anteriores – como é o caso em um gênero) ajuda a constituição e a compreensão da história. (VERNET, 1995, p.115) Nesse contexto diegético, podemos trazer algumas considerações de Jacques Aumont (2011) sobre a imagem e o espectador. Aumont (2011, p.87) afirma que a percepção visual do espectador é marcada por um sistema de expectativas, no qual o indivíduo compara o que é visto com o que está presente na sua memória, o que exige um conhecimento prévio do mundo e das imagens. Dessa forma, o espectador supre o que não é representado, visto que “a imagem nunca pode representar tudo”. 30 3. O GÊNERO NO CINEMA 3.1 Considerações iniciais Como preceitua Nogueira (2010, p.8), o gênero como ferramenta de análise utilizada pelo acadêmico serve como ponto de partida para sua própria reflexão. Assim, de certa forma, as “convenções do gênero servem como quadro de referência”, permitindo que se verifique o grau de conformidade ou desvio em relação ao patrimônio que regula ou delimita determinado gênero. Desse modo: Estudar um filme poderá (ou deverá mesmo) passar pela identificação do gênero ou dos gêneros a que pertence, uma vez que dificilmente a compreensão, a interpretação ou a explicação de uma obra podem ignorar a sua genealogia e a sua família artística. (NOGUEIRA, idem) Nogueira (2010a, p.8) também que o crítico utiliza o gênero como uma espécie de pêndulo que regula o seu discurso e tem como função “confrontar, avaliar e julgar cada obra em relação às restantes”. No entanto, vale afirmar, que assim como o gênero serve como parâmetro de análise, é imprescindível que o crítico tenha sempre em mente a existência de um “imperialismo” nos ditames, até certo ponto impostos, pelo gênero, assim como preceitua Tudor (2009, p.135). 3.2 Noções gerais Andrew Tudor nos explica que a ideia de gênero é um conceito que o cinema pega emprestado da critica literária, por esse motivo “significado e as utilizações dos termos variam consideravelmente” (2009, p.134). Assim, a literatura está cheia de referências ao western, às fitas de gangster, “sendo todos eles considerados uma forma bastante vaga como genre”, assim, Tudor (2009) afirma que em determinados casos torna-se quase o objetivo final do processo crítico encaixar um filme numa categoria. Dessa forma, de um modo geral, podese dizer que ao classificar uma produção como Velho Oeste é inseri-lo numa classe de filmes gerais, sobre a qual já possuímos certo conhecimento. Dizer que um filme é um western é dizer de imediato que ele partilha um “X” indefinível qualquer com outros filmes a que chamamos de westerns. Além disso, fornece-nos um corpus de filmes ao qual se pode comparar utilmente o nosso filme; as vezes o único conjunto de filmes. (TUDOR, 2009, p.135) 31 Entretanto, o próprio Tudor (idem) faz uma crítica ao que ele chama de “imperialismo extremo do gênero”, que, segundo ele, só permitiria compararmos uma fita de terror a uma do mesmo tipo; não que tal comparação fosse inútil, porem, esse viés extremista da noção de gênero acaba por tornar o trabalho de análise arbitrário. A respeito dessa questão, Buscombe (2005, p.305), se valendo do estudo de literatura proposto por Aristóteles, explica que apesar do gênero literário ser algo restritivo, não há necessidade para isso, pois a intenção do filósofo estava no campo da descrição e não da prescrição. Não é preciso erguer um ideal platônico, ao qual todos os exemplos individuais tentem, em vão, aspirar. Também não é necessário afirmar que quanto mais um filme chegar a incorporar todos os diferentes elementos da definição, mais plenamente será um western, um filme de gangster ou um musical. (BUSCOMBE, idem) Nesse mesmo sentido, Nogueira (2010, p.3) ressalta que os limites e as características determinadas pelo gênero estão em constante mutação e hibridização, “o que torna difícil atingir um consenso definitivo sobre os critérios e as fronteiras que permitem identificar balizar cada genero”. Além do caráter restritivo, a questão do gênero enfrenta outro problema. Como definir se determinado filme é um western, por exemplo, baseando-se na análise de um conjunto de filmes que não podem de forma alguma ser considerados westerns antes da análise (TUDOR, 2009, p. 138). Debruçar-se sobre um gênero como o filme de Velho Oeste, observá-lo e anotar suas características é supor que temos que isolar o conjunto de obras que são westerns. Todavia, só podemos fazer esse isolamento baseado nas características principais que só podem ser descobertas a partir dos próprios filmes depois de terem sido isolados. Assim, acabamos envolvidos num círculo: primeiro a obra deve ser isolada, para isso é necessário um critério, mas também é preciso que o critério seja oriundo das características comuns dos filmes estabelecidos de modo empírico. Como solução para esse “dilema cíclico” da utilização do gênero, Tudor propõe duas possibilidades: Uma é classificar os filmes segundo critérios escolhidos a priori dependendo das finalidades criticas (...). A segunda é apoiar-se num consenso cultural comum sobre aquilo que constitui um western e depois analisá-lo detalhadamente. (2009, p.138) Na segunda opção, afirma Tudor, reside a raiz da maioria das utilizações do gênero. E é justamente nesse consenso que surgem as “convenções num gênero”. Desse modo, fala-se que um western tem determinados tipos de tiroteios, os caubóis usam determinado tipo de 32 chapéu, certos tipos de vilões estão presentes e as cores do vestuário delimitam quem é bom ou mau. Todas essas características imagéticas resultam em um processo em que “o filme ‘converte’ as imagens à sua linguagem convencional própria” (Tudor, 2009, p.139). A respeito disso, Buscombe (2005, p.312) diz que “as principais características de definição de um gênero serão visuais: armas, carros e vestimentas nos filmes de gângster; vestimentas e coreografias nos musicais; castelos, caixões e presos em filmes de terror”. Por sua vez, Neale (2000, p.14) diz que as representações simbólicas (iconografias) assumem um papel de significação dentro de um filme. Assim, “It should be noted that ‘iconography’ here tends to mean the objects, events and figures in films, as well as their identification and description8”. Nesse contexto da representação pela imagem9, Tudor (2009, p.139) resume a noção de gênero como algo que busca sentido em um conjunto de significados estabelecidos culturalmente. Pois ao vermos determinado filme, como um western, por exemplo, temos a capacidade de reconhecê-lo. Desse modo, quando o crítico diz que um filme pertence a tal gênero, ele está afirmando que a obra pertence a uma determinada classe, que tem em comum diversos fatores. Estará, dessa forma, sugerindo também que este mesmo filme seria universalmente reconhecido como tal na nossa cultura. Por outras palavras, os factores cruciais que distinguem um genre não são só características intrínsecas aos próprios filmes; dependem também da cultura particular no qual estamos a operar. E a não ser que haja um consenso mundial sobre o assunto (o que é uma questão empírica), não há bases para partir do principio de que um western será concebido da mesma maneira em todas as culturas. (TUDOR, 2009, p.140) Altman citado por Neal (ALTMAN apud NEAL 2000, p. 27) faz uma ressalva importante, a de que nem todos os filmes envolvem conhecimentos genéricos dos espectadores da mesma forma e da mesma medida, ou seja, “While some films simply borrow devices from established genres, others foreground their generic characteristics to the point where the genre concept itself plays a major role in the film10”. 8 Deve notar-se que 'iconografia' aqui tende a significar os objetos, eventos e figuras nos filmes, assim como a sua identificação e descrição. 9 Aumont (2011, p.84) explica que a imagem possui função psicológica de rememorar o espectador, para isso faz o uso de estruturas simples, que assumem o papel de ensinar, a exemplo de figuras iconográficas com motivos religiosos. Por estar altamente ligado à cognição, esse esquema é experimentável e marcado por sua capacidade de ser atualizado e alterado a medida que é disseminado em determinado contexto. 10 Enquanto alguns filmes simplesmente emprestam dispositivos de gêneros estabelecidos, outros inovam em suas características genéricas ao ponto em que o próprio conceito de gênero desempenha um papel importante no filme. 33 Com uma definição semelhante de Tudor, Nogueira (2010a, p.4) afirma que quando existe um esquema que permite reconhecer um padrão recorrente num grande numero de obras, o gênero ganha uma dimensão crítica, ou seja, um elevado número de qualidades é partilhado por uma quantidade considerável de filmes. “A partir daí o género torna-se uma instituição culturalmente relevante – mesmo se o futuro lhe augurara, com certeza, mutações e hibridações”. (NOGUEIRA, idem) 3.3 O gênero policial O cerne das discussões e definições sobre o que seria gênero policial também encontra abrigo nos estudos literários e não por menos as discussões sobre o tema, de um modo geral, têm como ponto de partida o campo das letras. Por outro lado, também é preciso considerar um contexto envolto em outras áreas, como defende Almeida (2002, p.81), para o qual as narrativas policiais envolvem “uma mutação das condições de produção, pelo surgimento da grande imprensa e de um público popular” (idem). Dessa forma, Almeida (2002, p.81) afirma que o gênero policial engloba “uma mutação cultural mais global”. Nesse contexto, o autor (2002, p.82) afirma que a narrativa policial não teve uma origem única e circunscrita. Sua configuração foi fruto de um “caldo de cultura” que se formou a partir de 1850. Elementos do raciocínio lógico, a criação de um aparelho policial com bases científicas, a cidade e toda a problemática que a envolve (pobreza, violência, corrupção), a questão do crime e da intriga, serviram para fomentar (e como pano de fundo) o desenvolvimento das histórias de “crime e polícia”. “As convenções inerentes a esse tipo de narrativa destinaram o gênero a desenvolver-se no interior do romance popular e de suas condições de produção” (ALMEIDA, idem). Pelo seu contexto intercultural, o gênero policial multiplica-se em variadas formas e sua matriz narrativa modifica-se incessantemente, perdendo cada vez mais sua homogeneidade, o que implica, segundo Almeida (2002, p. 88), em significativos problemas de classificação. Assim, entre as diversas tipologias, surge uma acepção que opõe duas definições clássicas: a do romance de enigma e o roman noir norte-americano. Dessa forma Todorov apud Almeida (2002, p. 88) mostra que o primeiro tem por base a dualidade, ou seja, a existência de duas histórias, a do crime e a do inquérito. E essas narrativas ocorrem paralelas e nem se misturam, visto que suas funções são distintas, pois no 34 “crime” vemos tratados os aspectos particulares de cada personagem e no “inquérito” o autor (narrador) sistematiza e explica como se desenvolve a história. Em contraponto, o roman noir “funde as histórias, a narrativa coincide com a ação” (Almeida, 2002, p. 89) destacando-se assim duas formas de prender o interesse sobre a obra: a curiosidade, que procura estabelecer o caminho que leva do efeito à causa, e o suspense, que percorre o sentido inverso, da causa ao efeito. Disso, também surge um deslocamento do foco narrativo e esse passa a ser mais pessoal, “em geral a história é relatada pelo próprio detetive, em contraposição à narrativa em terceira pessoa, mais distanciada, do romance de enigma”. Almeida (2002, p. 89-90) também nos explica que a coincidência entre narração e ação traz duas consequências importantes; a primeira diz: “o leitor compartilha com o narrador- protagonista uma mesma situação de dúvida e de possibilidade engano, já que não há nenhuma verdade posterior que possa servir de ponto de partida retrospectivo”, enquanto a segunda, ressalta uma outra diferença em relação ao romance de enigma: “não há garantia de imunidade física para o detetive no roman noir – ser surrado ou mesmo morrer, faz parte da profissão”. Segundo Freire (2011, p. 354), a historiografia do cinema noir afirma que esse gênero 11 surgiu em Hollywood da síntese entre literatura policial norte-americana de autores como Raymond Chandler e Dashiel Hammett com o expressionismo alemão, estando associado a determinadas características narrativas e visuais presentes e que englobam o período de1941 a 1958. Dentre os elementos principais do filme noir estariam o uso constante de flashbacks e narração em voz over em primeira pessoas, a presença de detetives particulares e femmes fatales em cenários essencialmente urbanos (hotéis,escritórios baratos, ruas escuras e molhadas pela chuva, lanchonetes e bares impessoais e com letreiros de neon nas fachadas), e o apelo à fotografia “expressionista” preto-e-branco de alto contraste, jogos de sombra e ângulos inusitados. (FREIRE, idem) Os motivos do florescimento do cinema noir, ou cinema negro12 como também é chamado nos EUA, de acordo com Freire (2011), seriam os mais variados. Dentre eles, 11 A classificação de noir como gênero é motivo de polêmica como salienta Freire (2011, p.354), uma vez que esse tipo de filme seria um “anti-filme de genero”, por suas características peculiares, ousadas e sofisticadas. Entretanto, pela importância da discussão em especial no tocante aa relação com a literatura policial e também da presença de temas como corrupção e criminalidade urbana nos filmes tidos como noir, optou-se por abarcar o tema nesta discussão. 12 Almeida (2007, p139) explica que o cinema negro se caracteriza basicamente pela presença de três elementos centrais, a despeito de muito outros periféricos: uma relação dialética com o presente da sociedade no qual ele 35 estariam as contingências econômicas no começo da década de 40, ocasionadas pela Segunda Guerra Mundial, o que causou a redução no número de negativos utilizados e até mesmo na menor quantidade de luzes nos cenários, resultando assim em filmes mal iluminados. Esse contexto de escassez de recursos também resultou em um maior apelo às fontes literárias, porém como menos obras impressas, devido à escassez do papel, o estúdios passaram a recorrer às revistas pulp13 editadas no período antes da Guerra, cujos autores estavam acostumados a escrever sob encomenda e com prazos curtos. Além disso, como diz Freire (2011, p. 355), o filme noir pode ser considerado como um reflexo do cenário político e social dos EUA dos pós-guerra, marcado por denúncias de corrupção de instituições públicas, aumento alarmante da criminalidade urbana e também pela paranóia anticomunista e pelo clima de perseguição do governo MacArthur. Afora as discussões do contexto social norte-americano, Freire (2011, p. 356) explica que o noir representa algo novo no cinema estadunidense e segundo Borde e Chaumeton apud Freire (idem) ele teria sido gerado durante a guerra, tendo sido síntese de três gêneros hollywoodianos, “o filme de gângster explorado pela Warner, o horror privilegiado pela Universal, e o filme de mistério compartilhado inicialmente pela Fox e pela Metro” (FREIRE,2011, p. 356). 3.4 O gênero policial no Brasil 3.4.1 Breve histórico Como bem explica Almeida (2007, p.138) a ideia de realizar um resumo da cinematografia policial brasileira esbarra, assim como a própria definição de gênero, na dificuldade de se definir quais filmes estariam dentro da conceituação de filme policial e quais ultrapassariam a “fronteira” e não poderiam ser enquadrados dentro da classificação. “Essas fronteiras são construídas e descontruídas ao longo do tempo, através da criação de um corpus em permanente mutação, baseado no jogo de repetição e diferença”. (idem) surge, uma raiz ligada ao expressionismo no que se refere à iluminação e às tonalidades presentes e a ambiguidade na produção de sentido desses filmes 13 Estas publicações surgiram por volta de 1900 e eram impressas em papel de baixa qualidade. Eram dedicadas a historias de ficção cientifica ou tidas como de baixa qualidade ou ate mesmo consideradas grotescas. As pulp magazines eram uma fonte de entretenimento barata e sem grandes pretensões artísticas. Autores como Asimov, Chandler e Hammett utilizaram esse tipo de revista para publicar suas historias. 36 Em relação à parte histórica, vale frisar a presença do filme policial desde os primórdios da cinematografia brasileira. Almeida (2007, p.140) destaca o filme Os estranguladores (1908), de Giuseppe Labanca e Antonio Leal. A película pode ser considerada o primeiro filme policial brasileiro e retrata o assassinato de dois meninos por uma quadrilha, no episódio que ficou conhecido como “Quadrilha da Morte”. O jornalismo (mais especificamente o fait diver jornalístico) serviu histórias ao incipiente cinema policial brasileiro. Assassinatos como o “crime da mala”, que no ano de 1908 renderia três filmes, assaltos e roubos (Um crime sensacional,1913), biografia de criminosos (Dioguinho, 1916) e crimes envolvendo a classe média (O crime de cravinhos, 1920) ganharam a grande tela (ALMEIDA, 2007, p.140). A respeito dessa relação cinema e imprensa (em especial a notícia de folhetim), Freire (2011, p.165), nos traz a seguinte consideração: (...) se sustentavam em elementos de matrizes culturais sensacionalistas como a fascinação pelo outro monstruoso – mais meramente fantástico ou exótico, mas o assassino que pode estar entre nós, escondido no anonimato da grande cidade –, assim como a ênfase na sensação em excesso, na necessidade de realmente ver ou sentir uma realidade desconhecida (ou acelerada em mudança) transformada em espetáculo. No fim da Segunda Guerra, a narrativa policial brasileira ganha novos tipos de personagens, lugares, tramas: a figura do bicheiro, a favela e o tráfico de drogas, a prostituição, histórias de chantagem, tudo isso envolvendo um novo tipo de protagonista, o jornalista. Assim, de acordo com Nogueira a narrativa policial brasileira coloca o jornalista como personagem importante: “Por seu intermédio, procurou compreender e representar as mudanças operadas nos grandes centros urbanos com o advento do mundo moderno”, (NOGUEIRA, 2009, p.1). Como principais títulos do período, Almeida (2007, p.141) destaca Amei um bicheiro (1952), A sendo do crime (1954) e Quem matou Anabela (1956). Após um período de jejum, as tramas policiais ressurgem na década de 60 com mais força. Mais uma vez, a relação com o jornalismo está presente e muitas histórias saem das manchetes e ganham um roteiro, como no caso de Assalto ao trem pagador (1962) e Cidade ameaçada (1960). Ainda na década de 60 vale destacar O bandido da luz vermelha (1968), vencedor de melhor filme e melhor diretor no 4º Festival Brasília do Cinema Brasileiro. O filme dirigido por Rogério Sganzerla narra a história de Jorge, um assaltante de residências que utiliza uma lanterna de luz vermelha para atordoar as suas vítimas. Segundo o jornalista Fred Di Giacomo (2008), o longa apresenta uma forma “contundente de retratar o povo” e define assim a produção: “a realidade é mais crua, a linguagem é popular, o cenário é o 37 urbano decadente, as estrelas são os bandidos, as prostitutas, os policiais e os políticos corruptos”. A exemplo de O bandido da luz vermelha, outras biografias de bandidos famosos ganharam a grande tela, criando assim um novo nicho de mercado. Sete homens vivos ou mortos (1969), Lúcio Flávio, o passageiro da Agonia (1976) e Eu matei Lúcio Flávio e República dos assassinos (ambos de 1979) são citados por Almeida (2007, p.141) como as principais películas da época. Ao mesmo tempo em que certas amenizações e eufemismos na tramas são evidentes devido à censura, a mistura de thriller policial com crítica social começa a marcar presença nas películas, com destaque para Assalto ao trem pagador e Lúcio Flávio, O passageiro da Agonia. A respeito de Assalto ao trem pagador, Almeida (2007,p.142) se vale das explicação de Fernão Ramos: A presença da imagem do povo é uma constante, assim como a análise mais abrangente, com colorido sociológico, de situações dramáticas como o crime cometido, sua partilha, as transformações que o assalto causou na vida dos favelados. A temática social aparece aqui como uma das motivações centrais da ação na história. Os favelados, aparecendo enquanto grupo explorado, obtêm a condição necessária para a identificação positiva do espectador da época. (RAMOS, 1998, p. 33 apud ALMEIDA, 2007,p.142) Em relação a Lúcio Flávio, história é contada sob o ponto de vista do bandido e a narrativa acaba “mitificando” o seu personagem principal, fazendo valer, como explica Almeida (2007, p.142) o refrão popular da época “seja herói, seja marginal”, ou nas palavras de Ortiz Ramos: Montava uma história estruturada com personagens que já conhecemos: o herói, a princesa, os antagonistas (policiais corruptos e transgressores da lei), o velho protetor do herói que inclusive dá a ele um objeto mágico, no caso, um colar de umbanda. As ambientações também eram ficcionalmente atrativas, os espaços bem selecionados. (ORTIZ RAMOS, 1995, p. 179-180 apud ALMEIDA, 2007, p. 142-143) 3.4.2 Cinema policial brasileiro e a crítica social A característica que mais salta aos olhos na cinematografia nacional a partir do fim da década de 60 é a predominância de cenários marcados pela vida urbana, gerando assim uma capacidade de agregar diversos elementos presentes no cotidiano das grandes cidades ou 38 como Almeida (2007, p. 145) diz, “incorporar signos culturais brasileiros” como o carnaval, a música popular, bem como os problemas sociais afligem os centro urbanos, em especial Rio de Janeiro e São Paulo. Vemos que esses filmes policiais retrabalham o gênero no interior do processo cultural brasileiro. Há todo um desejo da sua utilização para conseguir cativar o espectador, o que leva também a matrizes do cinema americano, como a elementos presentes na memória popular e de massa nacional. Mas também tem agido ativamente o peso da tradição crítica do intelectual-jornalista, revivida no contexto dos anos 70, quando o aspecto de “missão” da profissão e o mercado se articulam de uma forma particular “Mocinhos” e “bandidos” não conseguem se realizar plenamente, a ficção não deslancha com desenvoltura segundo os moldes dos estereótipos “clássicos”, e vemos projetadas nas telas personagens e filmes que carregam inevitáveis hibridismos e ambiguidades. (ORTIZ RAMOS, 1995, p. 189 apud ALMEIDA, 2007, p. 146) A respeito desse envolvimento do filme policial com elementos sociológicos, Soares (2005, p. 12) explica que ao expor os problemas do cotidiano, o cinema policial brasileiro trouxe ênfase ao “caráter excludente e desigual das relações humanas”, oferecendo assim a possibilidade de discussão e o “reconhecimento como intrínseco à vida social”, o que segundo a autora reforça ainda mais seu caráter multicultural. Ainda que tais filmes não proponham soluções para os problemas do país, as vidas dos personagens ali retratados (sejam fato ou fabulação) servem como passagens para o estabelecimento de outros laços sociais (outros discursos). (idem) O aumento da violência a partir dos anos 8014 e o surgimento do traficante15 de drogas como figura de comando dos morros e periferias, além do número cada vez maior das coberturas jornalísticas (em especial na TV) sobre crimes, faz surgir mais um filão para esse cinema atento aos problemas sociais: os filmes de favela16. Esse comércio ilegal de drogas é crucial na construção do contexto social nas comunidades carentes, pois ao mesmo tempo em que existe a presença de homens “fortemente armados” e capazes de realizar atos de 14 Para ilustrar esse quadro da violência urbana em especial nas duas grandes metrópoles brasileiras, Muniz Sodré (2002, p.13) cita o número de 5.736 homicídios ocorridos na região da Grande São Paulo (1989), concentrados na periferia. Em relação ao Rio de Janeiro, o estudioso afirma que 43.601 foram assassinadas durante toda a década de 80. 15 Aliadas aos traficantes do asfalto – por sua vez vinculados a redes internacionais – as pequenas organizações de comércio de drogas locais formam verdadeiros “Estados paralelos” no nível das massas pobres urbanas (SODRÉ, 2002, p. 65). 16 Filmes como A voz do carnaval (1932), Favela dos meus amores (1935) e Orfeu do carnaval (1959) já traziam a favela como cenário e retratavam o cotidiano daquela localidade. Entretanto, essas produções glamourizavam e estetizavam a pobreza e a criminalidade presentes na periferia (BENTES, 2007). Desse modo a representação da favela presentes nessas obras era a de berço da boêmia, local de surgimento do samba e do carnaval, lugar onde o criminoso é apenas um trabalhador com um emprego fora do comum. 39 crueldade, também é possível afirmar que o traficante17 exerce “uma espécie de proteção e exercendo uma função social” (ROCHA; MARQUES, 2010, p.94). Na opinião de Hamburguer (2007, p. 114), essa nova exposição da periferia brasileira (sobretudo a dos morros cariocas) serve para evidenciar a presença de cidadão negros, pobres e marginalizados no discurso do cinema nacional, pois segundo a pesquisadora: Ao trazer esse universo à atenção pública, esses filmes intensificaram e estimularam o chamo de disputa pelo controle da visualidade, pela definição de assuntos e personagens ganharão expressão audiovisual, como e onde, elemento estratégico da definição da ordem, e/ou da desordem, contemporânea. (grifo original) (idem) Ou nas palavras Nogueira (2009, p. 9): O “espetáculo” diante das câmeras torna-se a própria notícia: os gestos efusivos, a respiração ofegante e a narração em ritmo de suspense ganham relevância em detrimento do fato (...) O que sobressai é a exaltação da velocidade e do espetáculo proporcionado pelo telejornalismo. (grifo original) Filmes como Pixote, a lei do mais fraco (1980, Hector Babenco) abordaram o universo corrupto e discriminatório das instituições policiais. Na trama, situada em São Paulo, um adolescente é morto por guardas de um reformatório. Cansados dos castigos físicos sofridos na instituição, um grupo de internos inicia uma rebelião e consegue fugir do cárcere. Dentre os fugitivos, está o menino Pixote, que após a fuga passa a praticar crimes e chega ao Rio de Janeiro, onde vai negociar um carregamento de cocaína. (...) a pobreza aparece à clientela dessas instituições. A mídia que emergia na época como elemento recém-enraizado na sociedade brasileira, aparece como cúmplice das versões oficiais que acobertam a ação corrupta e discriminatória das instituições disciplinadoras como cadeias, delegacias, polícias. (HAMBURGUER, 2007, p.120) As produções do chamado “Cinema de Retomada” 18 auxiliam na consolidação da favela como cenário para as histórias que ganham a grande tela. Como um dos destaques desse período podemos citar Como nascem os anjos (1996), produção que narra a história de 17 A figura do traficante organizado, com habilidades em guerra urbana e capacidade de manusear fuzis e metralhadoras surge nos cárceres do período militar, quando esse tipo criminoso era trancafiado com guerrilheiros e demais opositores do governo (SANTOS, 1997 apud ROCHA;MARQUES, 2010, p.94). 18 Com o país ainda às sombras da ditadura, o presidente Collor extingue instituições de fomento ao cinema como a Embracine e a Concine, além dos projetos de financiamento público, o que reduz drasticamente o número de produções nacionais. Para se ter uma ideia, em 1992 apenas um filme brasileiro chegou às salas de cinema, A grande arte, de Walter Salles. Somente com saída de Collor, é que a situação tomou novos rumos. O novo presidente, Itamar Franco cria a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual, que passou a liberar recursos para produção de filmes. Já em 1995, com FHC, surgem dois importantes mecanismos que dão pontapé para retomada do cinema brasileiro: a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual. 40 Maguila, que mata por engano o chefe do tráfico no morro Dona Marta. Na fuga da favela, o personagem principal acaba por fazer refém uma família de norte-americanos, moradores do bairro do Botafogo, vizinho da comunidade. O longa ganhou o prêmio da crítica e especial do júri, além de melhor direção, fotografia e montagem no Festival de Gramado. Porém, a produção policial que causou mais polêmica nos anos 90 foi Notícias de uma guerra particular (1999), de João Moreira Salles. O documentário feito com base em imagens de um telejornal da Rede Manchete exibe cenas de tiroteios, intercaladas com depoimentos que contrastam “com sensibilidade perturbadora três perspectivas sobre a violência que tomou conta do cotidiano do morro: a dos policiais, a dos traficantes e a dos moradores” Hamburguer (2007, p. 121). O título da produção foi retirado da fala de um dos policiais militares, o capitão do Bope Rodrigo Pimentel19. Em 2002, é a vez da história real de um sequestrador ganhar representação nas telas de cinema. Ônibus 174, de José Padilha, “revela a performance para as câmeras” (HAMBURGUER, 2007, p. 121), de Sandro Nascimento, que naquele momento mantinha um grupo reféns sob a mira de um revólver. O sequestro teve um desfecho trágico: a professora Geisa Firmo foi morta ao vivo, com quatro tiros, em meio a uma plateia formada por uma multidão presente na rua e também por outros milhares que assistiam aos telejornais. Assim, temos um cenário de exploração midiática e espetacularização da violência, tema esse, que ganha força da imagens e do som proporcionada pelo audiovisual. A emoção é um elemento recorrentemente utilizado na constituição da informação-espetáculo, pois cria um laço afetivo entre o telespectador e a notícia. Imagens e discursos televisivos que remetam à afetividade, à violência, aos sentimentos e às sensações são mais atrativos e fáceis de serem assimilados do que argumentações profundas sobre determinado fato, propostas com o intuito de contextualizá-lo. (ROCHA, 2003) Hamburguer (2007, p. 121) define assim a narrativa do filme: Ao mesmo tempo em que se abre para depoimentos que constroem a trajetória da vítima exemplar, o filme revela o processo de construção do protagonista. Diante das câmeras, Sandro incorpora o estereótipo do menino pobre, negro e malvado que suas vítimas reféns, assim como os parentes e conhecidos que contribuíram com seus depoimentos para o filme, são unânimes em afirmar que ele não era. Sintomaticamente vai tirando a máscara até escancarar a cara na janela do ônibus e se dirigir ao Brasil através das câmeras. (idem) 19 Em 2006, Pimentel lançaria o livro Elite da Tropa, obra que serviu de base para o roteiro do filme Tropa de Elite. 41 É quase impossível falar sobre a cinematografia polícia-favela e não tratar de Cidade de Deus (2002). O longa-metragem inspirado no livro homônimo de Paulo Lins retrata a vida do jovem aspirante a fotógrafo Buscapé. Esse personagem principal por si só já valeria uma análise profunda, pois é por meio desse rapaz que somos apresentados a cada meandro da trama ou como explica Marcelo Coelho (2010), “o foco da obra está na primeira pessoa”, dessa forma “o narrador toma as palavras para explicar o fato ao espectador”. Além disso, o filme é bem mais que um relato sobre a história de um personagem com uma infância pobre. Cidade de Deus contou para os 3,2 milhões20 espectadores que foram às salas de cinema como surgiu o crime organizado na CDD21 dos anos 60 e como a localidade e seus moradores-personagens se transformaram decorrer de duas décadas. A definição de tempo e espaço ajuda a construir a verossimilhança do filme, que se apresenta como a história de um lugar ao longo do tempo, desde a sua fundação nos anos 60 aos dias de hoje. A verossimilhança do filme é reforçada pela ausência de atores conhecidos e pela presença física de corpos com cor, ginga e linguajar da perifa. (HAMBURGUER, 2007, p. 122) Outro ponto a ser destacado no filme de Fernando Meirelles é como os personagens são utilizados para expor determinados problemas sociais. A prática de crimes por menores de idade como é o caso de Dadinho (o futuro Zé Pequeno), é um exemplo, e retrata uma das cenas mais violentas do filme, quando o menino num ato que mescla insanidade e crueldade transforma um assalto a um motel e uma chacina. Ou até mesmo Buscapé, que consegue o tão sonhado emprego de fotógrafo apenas por ter acesso ao criminosos da CDD, o que renderia fotos exclusivas ao jornal da Zona Sul carioca. Mesmo com esta ascensão profissional, o jovem repórter fotográfico não consegue se desvencilhar da marginalização e do crime. “O filme problematiza as relações de poder e desigualdade presentes na sociedade brasileira, especialmente em relação aos mais carentes de seus cidadãos” (SOARES, 2005, p.11). Cidade de Deus problematiza, de forma radical, as relações entre centro e periferia, não mais em relação a um país mas em um microcosmo urbano – uma favela localizada em uma grande cidade – que tensiona e polariza tais posições, denunciando, de forma contundente, a impossibilidade de subverter certos lugares sociais. (SOARES, 2010-2011, p. 91) 20 21 Segundo o site oficial do filme. Como o bairro é chamado entre os cariocas. 42 4. VIOLÊNCIA E PODER DO ESTADO Em Sociedade, mídia e violência, Muniz Sodré (2002, p.13), ao listar as diversas formas de atos violentos, afirma existir a chamada violência sociopolítica, “exercida pelo aparelhos repressivos de Estado”. Esse tipo de violência seria operado tanto em períodos em que a voz da democracia é silenciada, tanto na “vida cotidiana regida pelo estado de direito22”. Ou na precisa explicação de Weber (2003, p. 9), o “Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um território determinado (grifo do autor)”. O autor (2003, p. 8) também nos traz uma definição bem clara sobre a relação entre o poder estatal e a utilização da força: “o uso da violência” é o responsável pela existência do conceito de Estado, pois sem o uso da força física, haveria uma verdadeira “ ‘anarquia’, no sentido específico da palavra”. Em complemento às definições de Weber (2003), Sodré (2002, p.64) nos explica que o cenário no qual essa violência sociopolítica opera é marcado pelas grandes diferenças socioeconômicas. Desse modo, em um país como o Brasil, marcado pela forte industrialização, exportador de matérias-primas para o todo o mundo, existiria uma “miséria social comparável à das nações que passaram a depender do narcotráfico”. Como causa dessa dicotomia que coloca o país como um “pobre menino rico”, o autor cita as “elites que se reproduzem no poder em face das causas da violência social”, assim o que vemos é um Estado patrimonialista, “com poder eminente sobre pessoas e bens” (SODRÉ, 2002, p. 68). E esse mesmo Estado é comandado por uma espécie de principado, ou seja, “o grupo verdadeiramente soberano dentro do país” ou nesta definição mais completa: “controla o aparelho de Estado, que por sua vez tutela os cidadãos como se fossem servos, corroendo as possibilidades de formação de uma sociedade civil no sentido moderno. (SODRÉ, idem)”. Weber (2003) também considera a existência desse “principado”, que ele explica como sendo uma relação de homens dominado homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada legítima). Para que o Estado exista, os domínios devem obedecer à autoridade alegada pelo detentores do poder. (WEBER, 2003, p.9) Essa dominação, segundo Foucault (2001, p. 25), seria tão ampla que englobaria até mesmo o poder sobre os corpos do cidadão, pois são esses que são corrigidos e subjugados. 22 O Estado é considerado como a única fonte no “direito” de usar a violência Weber (2003,p. 8). 43 (...) as relações de poder tem alcance imediato sobre ele [o corpo]; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. (FOUCAULT, idem) Os príncipes citados por Weber (2003) e Sodré (2002) – representantes do poder coercitivo do Estado – também aparecem nos escritos de Foucault (2001), porém o autor francês concentra os estudos sobre o exercício dessa violência dentro das instituições (territórios23 bem limitados da força política e da violência estatal). Como exemplo, o estudioso usa o acampamento militar, o qual seria “o ápice de um poder que deve ter ainda mais intensidade”, ou seja, um local onde o exercício da vigilância hierarquizada sobre o outro, consolida o “funcionamento global do poder (FOUCAULT, 2001, p.144)”. É baseado nesse modelo que, segundo o autor, funcionam as prisões, os asilos e até mesmo as escolas. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. (FOUCAULT, 2001, p.148) Nesse sentido, podemos fazer uma relação com o que Weber (2003, p. 8) chama de “domínio em virtude da ‘legalidade’”, embasada em regras escritas de modo racional, pois nesse caso exige-se obediência ao cumprimento das obrigações estatutárias. “É o domínio exercido pelo moderno ‘servidor do Estado’ e por todos os portadores do poder que, sob esse aspecto, a ele se assemelham” (WEBER, idem) . Além desse tipo de dominação baseada estritamente nos ditames legais, existe aquela em que predominam as características pessoais do dominador (WEBER,2003 p. 9). A essa pessoa damos o nome de “autoridade do dom da graça (carisma)”, nela encontramos a “dedicação”, o “heroísmo” e “outras qualidades de liderança individual”. Dessa forma, Weber (idem) exemplifica onde é possível encontrar esse tipo de líder nato: “É o domínio ‘carismático’, exercido pelo profeta ou, no campo da política, pelo senhor de guerra eleito (...)”. Esses dois tipos de domínio (aquele exercido com força da lei e o carismático) raramente são encontrados em total separação, pois segundo o autor, para que exista um “domínio organizado”, existe a necessidade de se unir “o controle do quadro de pessoal”, bem como exige o “controle dos bens da administração”, como exemplo dinheiro, material bélico, imóveis (WEBER, p. 10). Esse cenário é chamado por Sodré (2002,p.39) de tecnoburocracia, na qual saímos de um Estado liberal para um Estado empresarial e administrador, caminhando 23 Segundo Weber (2003,p.8), o “território” é uma das características do Estado. 44 assim para concepções que defendem “uma gestão racional e eficaz da vida social – mas também violenta, na medida em que é assumida por um Estado que persegue a mesma eficiência dinâmica de uma máquina de guerra (...)”. Para Foucault (1979, p.8), esse novo tipo de Estado não só criou instituições controladoras como exército, polícia, mas principalmente instaurou “uma nova economia do poder”, o que para o autor é tido como o conjunto de “procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e ‘individualizada’ em todo o corpo social”. Em outras das suas explicações, dessa vez sobre os meios de punição e controle dos crimes, Foucault (2001, p.66) diz que a evolução no modo de controlar a vida da sociedade evoluiu devido alterações no próprio meio social, como nas relações de propriedade, meios de comunicação, dessa forma “significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade (...) significa uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa”. 45 5. METODOLOGIA Analisar um filme é sinônimo de decompor esse mesmo filme. E embora não exista uma metodologia universalmente aceita para se proceder à análise de uma obra audiovisual é comum dizer que analisar implica duas fases importantes: em primeiro lugar decompor, ou seja, descrever cada elemento e, em seguida, estabelecer e compreender as relações entre esses elementos decompostos, ou seja, interpretar (AUMONT; MARIE, 1999). A decomposição recorre a conceitos relativos à imagem (fazer uma descrição dos planos no que diz respeito ao enquadramento, composição, ângulo) do som (por exemplo, off e in) e à estrutura do filme (planos, cenas, sequências). O objetivo da análise é, então, o de explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma interpretação. Entretanto é preciso saber que essa interpretação muitas vezes não é algo que parte do autor da obra, mas sim algo gerado “pela atividade interpretativa do leitor”, pois este tem a capacidade de projetar suas experiências, tensões e concepções sobre qualquer objeto de análise (VANOYE;GOLIOT-LÉTÉ, 2011, p. 50). A análise, trata-se, acima de tudo, como afirma Marie (1999), discorrendo sobre o trabalho de Jacques Aumont, de uma atividade que separa, desune elementos. E após a identificação desses elementos é necessário perceber a articulação entre eles. Trata-se de fazer uma reconstrução para perceber de que modo esses elementos foram associados num determinado filme. Essas informações pessoais podem ser isoladas do filme para “relacionálas com informações extratextuais (biográficas, sociológicas24 ou históricas, estéticas) a fim de construir minha história, minha descrição, minha tese” (VANOYE;GOLIOT-LÉTÉ, 2011, p. 49). A análise de filmes deverá ser realizada tendo em conta objetivos estabelecidos anteriormente e se trata de uma atividade que exige uma observação rigorosa, atenta e detalhada de, pelo menos, alguns planos de um determinado filme (AUMONT;MARIE, 1999). A análise é uma atividade que relata um filme ao detalhe e tem como função maior aproximar ou distanciar os filmes uns dos outros. Ela oferece a possibilidade de caracterizarmos uma obra na sua especificidade ou naquilo que o aproxima, por exemplo, de um determinado gênero. 24 Um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto sócio histórico. Embora o cinema usufrua de relativa autonomia como arte (com relação a outro produtos culturais como a televisão ou a imprensa), os filmes não poderiam ser isolados dos outros setores de atividade da sociedade que os produz (...) [7] Comentário: : Vem antes da análise 46 E essa oportunidade poderia ser melhor aproveitada. Segundo o cineasta russo Eisenstein, a análise deve ser feita por objetivos (por exemplo, determinar em que medida um determinado filme pertence a um determinado gênero), que a análise seja detalhada, (pelo menos, sobre alguns planos do filme selecionado tendo em conta os objetivos estabelecidos); seguindo Susan Sontag (1961), que a análise seja uma atividade fundamental e seguida por todos aqueles que escrevem sobre cinema. Como categorias analíticas elegemos: 1) os planos nos quais aparecem os policiais em contraponto aos planos dos bandidos. Falar de planificação é entrar em assunto que envolve diversas significações, porém, como explica Nogueira (2010b, p.13) é fator fundamental para se compreender uma obra audiovisual. “A forma como vemos e lemos as imagens cinematográficas é, em grande medida – e para além da cultura e rotinas visuais do espectador –, o resultado das opções do realizador no que respeita à escolha e organização dos planos” (idem). Mas afinal, qual a definição de plano? O próprio autor nos traz uma concisa (mesmo sabendo o risco de não ser exato ou abrangente suficientemente) definição sobre esse conceito: “designa a unidade mínima de linguagem cinematográfica, isto é, um segmento ininterrupto de tempo e espaço fílmico, ou seja, uma imagem contínua entre dois cortes ou duas transições” (NOGUEIRA ,2010b, p. 13). Entretanto, além da simples assertiva de Nogueira (2010b) sobre o plano, não podemos ignorar a importância que Aumont (1995) confere aos “tamanhos” de plano, o que, de acordo com o autor, resulta em vários enquadramentos possíveis de um personagem: plano geral25, plano de conjunto26, plano médio27, plano americano28, primeiro plano29, close up30 e plano detalhe31. Além disso, é preciso considerar também a importância do “plano fixo” (câmera imóvel durante todo um plano) e também os vários tipos de “movimentos de aparelho” que envolve a panorâmica, conceituada como o plano em que a câmera sem se deslocar, gira sobre seu próprio eixo, o que para Aumont (1995, p.43) seria “o equivalente do 25 Possui uma visualização bem ampla do cenário. A figura humana, quando presente, ocupa espaço muito reduzido na tela. É um plano de ambientação. 26 A câmera revela uma parte significativa do cenário. Nesse plano as pessoas ocupam um espaço maior na tela e é possível reconhecer os rostos daquelas próximas à câmera. 27 Os personagens são enquadrados de corpo inteiro e com um espaço relativo sobre a cabeça e abaixo dos pés. 28 Plano clássico dos filmes western. Foi criado para que fosse possível visualizar os revólveres nos coldres dos personagens. Dessa forma, o enquadramento ocorre dos joelhos para cima. 29 Enquadramento do peito do personagem até a cabeça. 30 Também chamado de primeiríssimo primeiro plano, neste enquadramento é possível ver o personagem dos ombros até a cabeça. 31 A câmera enquadra uma parte específica do corpo. Também é usado para enquadrar objetos 47 olho que gira na órbita”. O travelling cuja câmera montada sobre um carrinho se movimenta vertical e horizontalmente, afastando-se e aproximando-se do objeto enquadrado, conceituada pelo autor como sendo o “deslocamento de um olhar”. 2) Também se faz necessário considerarmos a questão da narração do filme, assim entendendo como sendo o narrativo algo extra-cinematográfico, pois engloba outras artes como o teatro e literatura, bem como a vida cotidiana, fora do cinema (VERNET apud AUMONT,1995, p.96). Porém, o próprio autor reconhece a existência “de temas de filmes, isto é, intrigas, tramas que, por motivos que dizem respeito ao espetáculo cinematográfico e a seus dispositivos, são tratados preferencialmente pelo cinema (idem).” Assim, como justificativa pela escolha da narração como objeto de análise, uso as explicações de Vernet (apud AUMONT, 1995, p. 96): “O estudo do cinema narrativo reside, em primeiro lugar, no fato de que ele, ainda hoje, é predominantemente e que por meio dele é possível captar o essencial da instituição cinematográfica, seu lugar, suas funções e seus efeitos (...).” Nesse sentido, surgem aspectos que o cinema narrativo é capaz de mostrar, dentre eles está a representação social, definida por Vernet (apud Aumont, 1995, p.98) como sendo “o veículo das representações que uma sociedade dá de si mesma”. De fato, é na medida em que o cinema tem capacidade para reproduzir sistemas de representação ou articulações sociais que foi possível dizer que ele substituía grandes narrativas míticas. A tipologia de um personagem ou de uma série de personagens pode ser considerada representativa não apenas de um período do cinema como também de um período da sociedade. (VERNET apud AUMONT, 1995, p.98) 3) Por fim, destaco importância de se analisar as falas dos personagens policiais (em especial as do Capitão Nascimento e as dos Aspirantes Neto e Matias) em contraponto com as falas dos bandidos. Pois como preceitua Pereira (1980, p. 98), “gera na organização interna da obra, uma nova trama de relações entre fala, ruídos, imagens, músicas”, passando assim por um processo de transformação o qual a difere da conversa do cotidiano. (...) a própria fala, se tomada em si mesma, já é uma substância de notável complexidade intrínseca. Da sílaba ao ritmo de emissão da frase, do significado transmitido à ênfase na expressividade da voz (...) de um extremo ao outro desta escala todo um conjunto de potencialidades estéticas se oferece à criatividade do cineasta. (PEREIRA, 1980, p. 94) Dessa forma, a fala se torna espaço no campo cinematográfico, assim o filme “leva-a a figurar-se, a explicitar sua propriedades de ordem física, seus relevos e espessuras mais insólitos” (PEREIRA, 1980, p. 98). Ao se apropriar do espaço fílmico, a fala entre em um estágio de correlação com as imagens, o que o autor chama de “exaltação recíproca”, sem 48 qualquer hierarquia32 ou subordinação do som em relação à imagem. Para Aumont (1995, p. 49), ocorre entre som e imagem um “vínculo biunívoco, ‘redundante’”, entretanto o autor faz um alerta, pois, se por um lado a imagem fílmica é capaz de “evocar um espaço semelhante ao real”, o mesmo não acontece com o som, sendo esse “quase totalmente despojado dessa dimensão espacial33.” Desse modo, inexiste um “primado ao elemento linguístico (PEREIRA, 1980,p.98)”. O que impera nessa relação é o trabalho do cineasta, da equipe de filmagem, pois é neles que deve estar presente a “habilidade para dar origem a uma tessitura na qual os fios isolados se perdem, ficam irreconhecíveis enquanto tais” (PEREIRA, 1980, p. 98). O autor também analisa a importância da linguagem em um contexto de cultura de massa, pois segundo ele na sociedade contemporânea, a língua falada assume um status de ícone. Em um cenário urbano e industrial com grandes letreiros luminosos e publicidade por todos os cantos, a cidade acabam por se assemelhar a um grande texto. Do mesmo modo ocorre nos gêneros artísticos, até mesmo aqueles mais tradicionais, “estão voltados para a crescente figuração da linguagem” (PEREIRA, 1980, p. 99). E justamente nesse contexto de sociedade, multicultural e altamente relacionado com o desenvolvimento tecnológico, é que devemos “compreender e interpretar a espacialização da linguagem no cinema” (idem). Pois, segundo o autor esse cenário implica em “uma profundíssima alteração nas próximas maneiras de transmitir e criar informações, tanto as de imediata função quanto as de propósitos estéticos bem definidos” (PEREIRA, 1980, p. 99). 32 Quando eventualmente ocorre algum tipo de hierarquia entre fala/som/ruídos e imagens, ela apresenta um viés provisório, logo dissolvido em benefício da própria dinâmica do filme. 33 A distinção entre som in e som off – que por muito tempo foi a única maneira de classificar as fontes sonoras com relação ao espaço do campo e que, plenamente calcada na oposição campo/fora de campo, é muito insuficiente – está sendo aos poucos substituída por análises mais sutis, mais desapegadas dos preconceitos do cinema clássico. Porém, pois que intenção seja abandonar essa dicotomia, qualquer que seja a tipologia proposta, esbarramos sempre com uma questão central: “a da fonte sonora e a da representação da emissão de um som (AUMONT, 1995, p. 50). 49 6. ANÁLISE 6.1 Apresentação e resumo do filme Tropa de Elite (2007) tem como pano de fundo o Rio de Janeiro de 1997 às vésperas de receber a visita do Papa João Paulo II. Personagem principal da trama, o capitão do Bope Roberto Nascimento (Wagner Moura) recebe a missão de “pacificar” o morro do Turano, favela vizinha ao local escolhido para acomodar o religioso, durante a estadia no Rio. Nascimento está prestes a se tornar pai e sua mulher, Rosane (Maria Ribeiro), o pressiona para abandonar a tropa de elite, devido ao alto risco de vida enfrentando pelo policial. Entretanto, o militar só poderá abandonar o Bope, após cumprir a missão e também encontrar alguém que o substitua no batalhão. Os aspirantes Neto (Caio Junqueira) e Mathias (André Ramiro) aparecem como os possíveis substitutos. Ambos são postos para trabalhar no 19º Batalhão, local marcado pela corrupção, começando pelo próprio Coronel Miranda, comandante da unidade, que recebe propina dos traficantes e dos bicheiros para fazer “vista grossa”. Neto fica responsável pela oficina do quartel, mas logo percebe que não conseguirá trabalhar devido à falta de peças e equipamentos de manutenção. Na tentativa de fazer as viaturas funcionarem e assim se livrar do trabalho na oficina, ele resolve usar o “próprio sistema” contra os corruptos. Com informações do desonesto capitão Fábio (Milhem Cortaz), Neto e Mathias roubam o suborno do jogo do bicho e utilizam para comprar peças novas e consertar as viaturas. Mathias por sua vez, fica incumbido de contabilizar o número de ocorrências na área de competência do batalhão, porém ao apresentar o relatório com um alto índice de crimes, é repreendido pelo comandante e obrigado a refazer o documento de forma a não prejudicar a reputação do superior. Ciente da trapaça do capitão Fábio, coronel Miranda ordena que o subordinado suba ao morro para recolher o pagamento do tráfico. Entretanto, a ideia é assassinar o militar, como forma de punição pelo roubo do dinheiro do bicho. Desconfiado, Fábio, avisa Neto e Mathias. A dupla segue o comboio que se dirige à favela. Do alto de um morro, os aspirantes observam toda a conversa dos traficantes e dos policias corruptos. Fábio está desarmado. Com receio de que o capitão seja baleado, Neto dispara contra um bandido. Começa o tiroteio. Na confusão, Fábio consegue uma pistola e troca tiros com os próprios “colegas de batalhão”. Morro acima, Neto e Mathias são descobertos e agora estão sendo perseguidos. O Bope é avisado da troca 50 de tiros no morro. Os policiais corruptos estão acuados. A situação de Fábio é idêntica. Mais acima, os aspirantes, sem munição, estão cercados. O Bope liderado por Nascimento chega, invade o morro e consegue por fim ao tiroteio, matando o “dono do morro”. Nascimento é avisado por celular que seu filho irá nascer e ordena que Neto e Mathias carreguem o corpo do chefe do tráfico. Deslumbrado com a atuação da tropa de elite, Neto pergunta a um dos homens de preto o que ele deve fazer para entrar na tropa. Mathias começa a namorar Maria (Fernanda Machado), sua colega no curso de Direito. A jovem trabalha em uma ONG no Morro dos Prazeres, localidade chefiada pelo traficante Baiano (Fábio Lago). Neto e Mathias se inscrevem no curso de operações especiais. Nascimento agora tem a oportunidade concreta de conseguir um substituto. Porém com o tempo, o capitão percebe que Neto, seu preferido, é extremamente impulsivo. Por outro lado, Mathias, ainda não se “vê” como policial e está dividido entre a carreira policial e a vida de advogado. Mathias decide entregar um par de óculos para um menino do Morro dos Prazeres, porém é avisado por Neto, que no mesmo dia e horário, há uma entrevista de estágio marcada e o futuro advogado não pode perder essa chance. Para ajudar o amigo, Neto resolver ir à favela encontrar a criança. Chegando à localidade, Neto é cercado pela quadrilha de Baiano. O militar é alvejado nas costas e cai. Ao se aproximar do PM, Baiano percebe que havia baleado um homem do Bope e que aquilo era o mesmo que assinar a própria sentença de morte. Neto é levado ao hospital pelos traficantes, porém não resiste aos ferimentos e morre. Baiano, furioso com o fato de os membros da ONG terem permitido que policiais convivessem com pessoas do morro, executa Rodrigues (André Di Mauro), presidente da entidade, e a namorada. O Bope inicia as incursões no Morro dos Prazeres à procura de Baiano. Após torturar possíveis informantes, os homens de preto encontram o chefe do tráfico escondido em um barraco. Ferido, o bandido agoniza sobre uma laje enquanto Nascimento e Mathias o subjugam. Com um tiro, Mathias põe fim à vida do traficante e consegue vingar a morte do amigo de infância. Nascimento, enfim, encontrou o substituto. 51 6.2 Análise da obra As primeiras imagens de Tropa de Elite servem para mostrar ao público como será a tônica do filme. Ao som do funk “Rap das armas34”, flashes de imagens entrecortadas de pessoas dançando, no meio delas aparecem traficantes armados. Também é possível visualizar o conhecido símbolo do Bope, uma caveira com uma faca encravada no topo, ladeada por duas pistolas. Com essa construção imagética, o filme propõe o seguinte contexto: mostrar que os traficantes festejam e caminham livremente pelas ruas, porém o Bope está ali, mais próximos do que eles imaginam. Com um plongée35 no baile funk somos colocados no filme e logo após uma panorâmica sobre a multidão que dança ao som do “Rap das armas”, somos apresentadas à narração36 em off do capitão Nascimento. Como explica Benjamim (1987), o narrador tem a função de nos contextualizar em uma história. Com o policial do Bope não é diferente, eles nos explica o cenário de violência do Rio de Janeiro do fim da década de 90, no qual traficantes fortemente armados comanda as atividades criminosas. Nosso narrador explica também que existem nesse cenário, traficantes e parte da polícia acabaram por desenvolver forma pacíficas de convivência. A narração introdutória de Nascimento cobre a chegada dos Neto e Mathias ao morro. A câmera que os acompanha foi utilizada no ombro do operador. Como resultado disso vemos uma imagem trêmula, sem foco, com ar simultaneidade, fazendo parecer que de fato presenciamos a subida dos aspirantes ao alto do morro, gerando também uma similaridade com os telejornais policialescos (NOGUEIRA, 2009) e até mesmo com os documentários37. 34 (...) Morro do Dendê é ruim de invadir Nois, com os Alemão, vamos se diverti 34 Porque no Dendê eu vo dizer como é que é 34 Aqui não tem mole nem pra DRE 34 Pra subir aqui no morro até o Bope treme (...) 34 (Cidinho e Doca, 1995) 35 Mergulho em francês, é o usado para definir um tipo de enquadramento em que a câmera filma um objeto de cima para baixo, situando o espectador em uma posição mais acima do objeto, vemos a imagem como se estivéssemos mais altos. 36 Aqui não podemos deixar de relacionar Tropa com a conceituação que Almeida (2002, p.89) faz sobre o roman noir, cujo foco narrativo é mais pessoal, pois a “narrativa é feita pelo próprio detetive”. 37 Penafria (2001, p. 3) nos diz que o ponto de vista pode ser controlado por elementos da composição formal dos planos (modo de organização na tela, tipo de plano escolhido), bem como por meio de elementos narrativos, como o ritmos em que os planos se sucedem e a montagem. 34 52 Na figura 1, o sangue de um traficante baleado suja lente passando: espetacularização da violência que se assemelha aos jornais policialescos. Figura 1. Neto e Mathias protagonizam a primeira troca de tiros entre policiais honestos e traficantes do filme. Percebemos uma proposta da fotografia em evidenciar os PMs, pois estes apesar de estarem no fim de um beco e isolados, recebem maior iluminação. Por outro lado, os criminosos aparecem desfocados e só podemos visualizar uma massa humana. Figuras 2 e 3: Na primeira, podemos ver Neto em plano conjunto (PC) mais bem iluminado, enquanto na segunda imagem os traficantes também em PC, aparecem com pouca luz e desfocados. Nosso narrador aparece na trama, porém ainda não ouvimos a sua fala, pois a narrativa em off é quem afirma que ele pertence a um batalhão diferente da PM, cuja farda é preta. Para explicar a função da tropa de elite, a montagem reitera o que é mostrado nos primeiros minutos do filme, porém dessa vez de forma clara com um plano detalhe de quatro segundos sobre o escudo do Bope e a narração de Nascimento: “Nosso símbolo mostra o que acontece quando a gente entra na favela”. 53 Figura 4: Plano detalhe no escudo do Bope: símbolo de morte e violência. Esse caráter de quase idolatria do Bope é reforçado quando Nascimento chega ao morro e grita para os policiais que não usam preto “que não vai subir [na favela] ninguém”. Em seguida, um plano de médio do capitão e com pouca profundidade campo, seguido pela auto apresentação do narrador, que se queixa de estar cansado da guerra contra o crime, mostra de vez para o público quem comanda a narrativa do filme e serve como ponto de partida para o desenvolvimento da trama. Figura 5: Capitão Nascimento em primeiro plano e com imagem congelada. Na cena seguinte, começamos a ter idéia de algumas das características que sobressaem em Nascimento: a rigidez de caráter e intolerância com os policiais corruptos. Esse desgosto com os colegas é tão grande, que o policial afirma ter “vontade de meter bala nesses filhas da puta da PM”, pois ele considera que “quem ajuda traficante a se armar também é inimigo”. Figuras 6 e 7: Nascimento, ao lado de um atirador, observa PMs desonestos e ordena a execução de um deles. 54 Mais à frente, surgem os aspirantes Neto e Mathias, personagens que, assim como Nascimento, representam a lei e a moral e por esse motivo que os apresenta ao público é o nosso narrador. Apesar de serem PMs convencionais e usarem a mesma farda que os policiais tidos como corruptos, podemos vê-los em um plano mais bem iluminado, com quantidade de luz superior até mesmo à dos comandantes do batalhão (policiais desonestos). Figuras 8 e 9: Mathias e Neto recebem melhor iluminação que os comandantes do batalhão. Quando um pouco da história de Mathias é contada, somos informados que ele é pobre e cresceu em um subúrbio, porém venceu na vida e estuda Direito em uma faculdade particular. O interessante nesse personagem, é o fato dele estudar o sociólogo Michel Foucault, ou seja, ele conhece sobre os métodos de punição utilizados pelo Estado e como se dá o processo de dominação da sociedade por meio do poder público. Além disso, Mathias faz uma defesa contundente da instituição policial (detentora do uso da força) e diz acreditar na repressão como uma forma de combate ao crime. Podemos ver Mathias lendo o clássico “Vigiar e punir” e em outro momento um plano detalhe sobre o quadro negro evidencia a presença do livro e do autor em Tropa. Figuras 10 e11: A presença de Foucault na obra. 55 . Figura 12: Mathias defende a PM perante os colegas da faculdade. Na cena mostrada acima, o policial afirma com veemência que a polícia deve de fato reprimir. Como um digno representante do Estado como possuidor dos corpos dos cidadãos e por consequência e detentor do direito de corrigir Foucault (2001) e Weber (2003). Aos 23 minutos de filme, o traficante Baiano entra na história, nosso narrador ao falar da origem pobre e marginalizada do bandido, em certo ponto o compara a Mathias. Porém o off deixa claro como pensa Nascimento: “deve ter tido uma infância fudida, mas eu não vou aliviar por causa disso”. Além disso, apesar de ser a primeira aparição, o criminoso não apresenta falas longas e restringe-se a pronunciar gírias e termos usados pelos traficantes. E como acontece no decorrer do filme, a pouca luz caracteriza os planos destinados aos bandidos. Baiano (de vermelho) com iluminação fraca e falas curtas marcadas por gírias. O mesmo se repete com outro bandido, luz quase inexistente e linguajar pobre (figuras 13 e 14). Figuras 13 e 14: Primeira cena de Baiano no filme (de vermelho).Plano médio exibe um dos comparsas de Baiano. Em outro momento, Baiano é mostrado em close, porém apesar do uso de um plano que gera mais aproximação com o público, a pouca luz no rosto do traficante somada à fala em tom ameaçador e marcada por gírias como “Tá ligado” e “É nóis”, acabam por afastar o olhar do espectador. Por sua vez, a personagem Maria aparece no mesmo quadro, também em close, entretanto a luz projetada sobre ela “chama” a atenção do olhar para a personagem. 56 Figuras 15 e 16: Com pouca luz o rosto de Baiano pouco sobressai em relação à Maria, melhor iluminada. Não são apenas os traficantes que são retratados com falas reduzidas. Os policiais desonestos, apesar de terem maior participação na trama, também apresentam falas resumidas à de gírias, frases curtas, além do uso de palavrões, como por exemplo, em uma sequência em que os capitães Fábio e Oliveira discutem sobre quem deve se beneficiar da propina cobrada de comerciantes. Figuras 17 e 18: Oliveira e Fábio discutem sobre o suborno que exigem dos comerciantes. O papel de Nascimento como um defensor da moral mais uma vez vem à tela. Quando um traficante que está rodeado por usuários de drogas é morto pelos agentes do Bope, o capitão questiona a um dos usuários detidos: “Quem matou esse cara aqui?”. O prisioneiro diz: “Foram vocês”, Nascimento fica irado, agride o rapaz e vocifera, “Quem matou foi você. E você quem financia essa merda aqui”. Nesse momento, também fica claro que Nascimento é um defensor da lei, porém faz uso da violência e do poder que o Estado que lhe conferiu. Dessa forma, presenciamos o capitão “pregar” (imagem19) uma lição para o público: é a sociedade quem financia o tráfico. Aqui a crítica social é feita contra a classe média e não é proferida pelo marginalizado ou oprimido, mas sim por um policial. Dessa forma, há uma conotação maciça de “voz do Estado”. 57 Figura 19: Nascimento confronta e humilha um usuário de drogas. Se de um lado temos a figura do Capitão Nascimento como um inequívoco representante do poder estatal, também temos os policias sem escrúpulos que fazem uso do cargo e da estrutura do poder público em benefício próprio. A questão da fala relegada aos criminosos e corruptos é destacada mais uma vez. Enquanto o humilde e honesto cabo desenvolve um texto longo, com construções frasais variadas, as falas do sargento vêm repleta de gírias, repetições de palavras e ironias. Figuras 20 e 21: Para conceder férias ao cabo Paulo (em pé), sargento Rocha exige propina. Plano detalhe na gaveta de Rocha exibe maços de dinheiro obtidos por meio da corrupção. Para localizar o corpo de um fogueteiro38 do tráfico, o policial comanda uma sessão de tortura contra um dos moradores da favela. O famoso saco, usado para asfixiar o interrogado, é usado. O close no torturado, somado com a luz projetada diretamente sobre o seu rosto, evidenciam ainda mais a crueldade dos homens de preto. 38 Membro da quadrilha que utiliza fogos de artíficio para avisar aos comparsas sobre a chegada da polícia ou de algum inimigo à favela. 58 Figuras 22 e 23: Em plano médio, Nascimento observa o interrogado sem fôlego quase desfalecido. Figura 24: Até uma mulher está na lista de pessoas torturadas por Nascimento e equipe. Não bastasse a sessão de espancamento, o capitão do Bope ordena ao subordinado que execute o suspeito. No momento em que ordena a morte do torturado, Nascimento é representado como “Senhor da Morte”, aquele capaz de decidir até mesmo o destino de uma pessoa. Podemos dizer também que o policial, investido de representante do Estado, é proprietário daquela pessoa Foucault (2001). Figura 25: Policial do Bope executa um suspeito. Esse viés de dominador de Nascimento e do Bope mostra-se não só contra os traficantes ou suspeitos de envolvimento com o tráfico, mas também contra os policiais corruptos. Ao lerem a lista dos inscritos no curso para ingresso na tropa de elite, os homens de preto listam os crimes cometidos pelos candidatos, bem como explicam o que farão com os criminosos. Frases como “Vai virar chiclete de caveira” e “Deixa ele comigo” são algumas das expressões usadas para se referir a quem não é honesto. Dessa forma, Nascimento sela o 59 destino dos PMs corruptos que ousaram se inscrever no curso de operações especiais. Vemos na imagem 27 uma configuração imagética com um plano detalhe mostrando a sentença que os homens de preto proferem aos que recebem “arrego” do tráfico, propina de Jogo do Bicho ou exercem qualquer atividade ilegal. Figuras 26 e 27: Nascimento e equipe conversam sobre os policiais que farão o curso para ingressar no Bope. Esse lado inquisidor e violento do Bope mostrado logo no início do filme estampado com o plano detalhe no escudo da tropa ou mesmo pelas cenas de tortura comandadas por Nascimento assume um papel institucional. Prova disso, é a canção entoada pelos alunos logo no começo do curso de operações especiais. Ao som de “Homens de preto, qual sua missão? É entrar pela favela e deixar corpos no chão. Homens de preto o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o Satanás”, os futuros homens de preto são adestrados a como agir. Figura 28: Neto e Mathias cantam o hino de morte do Bope: reforço da violência como forma de demonstração de poder. Nascimento, por meio da voz em off, também demonstra o ódio contra aqueles tidos como “fracos e corruptos”. E para deixar bem claro como é a forma de “trabalhar” do capitão, o desonesto Fábio é humilhado e xingado. O plano médio com um ângulo de câmera quase em contra-plongé coloca Nascimento em posição de superioridade (figura 29). Além, disso com as falas resumidas a choros e resmungos, Fábio, símbolo da corrupção, é mostrado como uma escória, algo a ser banido. Para completar o episódio de humilhação dos desonestos, Fábio é obrigado a enterrar o boné que contém seu número de identificação no curso (figura 30). 60 Figuras 29 e 30: Nascimento e Fábio durante o curso de operações especiais. Na figura 31, Mathias parece ter aprendido as lições de Nascimento e afirma “que não se mistura com viciado e nem com vagabundo”. O narrador por sua vez diz que o Bope ensina os seus homens a lidar com a guerra do tráfico, confronto esse que é sustentado pelo comércio de drogas. Figura 31: Mathias confronta um dos usuários de drogas da classe média carioca. Quase no final do filme, temos um único momento em que Baiano é mostrado como um personagem com um lado humano e sem o vocabulário acentuado pelas gírias e xingamentos que tanto o caracterizaram no decorrer da trama. O plano conjunto mal iluminado faz com que quase não vejamos os personagens. A atenção do nosso olhar é voltada quase totalmente para o abajur no canto direito do quadro. Figura 32: O traficante Baiano, ao saber que o Bope está a sua procura, se despede da família. 61 Nos últimos minutos do filme, as cenas de tortura ganham mais ênfase com direito a sessões de tapas na cara de um adolescente, além é claro, da presença do famoso saco de asfixia. Figuras 33 e 34: Com uma sequência com cerca de um minuto de duração, um jovem é torturado até revelar o paradeiro de Baiano. Na primeira imagem vemos Nascimento e os homens do Bope em contra-plongée, o que dá um aspecto de superioridade aos policiais e coloca o torturado em posição de inferioridades. Na segunda, a luz do sol ofusca a visão do torturado que mal consegue ver seu interrogador, mais uma vez o ângulo de câmera é usado para colocar o suspeito com um indivíduo inferior. Os últimos minutos de Tropa consolidam ainda mais a intenção de valorizar as ações dos homens de preto, representados pelo grande líder e detentor do poder, capitão Nascimento e agora também por seu substituto, o aspirante Matias. Figuras 35 e 36: Ferido e capturado, Baiano é humilhado por Nascimento e Mathias. Na segunda imagem, o capitão entrega a “12” para o aspirante e afirma “Passa que é teu”. 62 Figuras 37: Em plongée, Baiano implora para não morrer. Entretanto, Nascimento e seus homens estão decididos a “terminar” com a missão. A cena final coloca os dois pobres e marginalizados frente a frente, entretanto aquele que é subjugado escolheu a vida do crime, enquanto o algoz resolver ser um policial, um homem do Estado, estudante de Direito e leitor de Foucault. Figuras 38 e 39: Baiano faz as últimas súplicas a Mathias. A câmera subjetiva39 do bandido observa Mathias, mas curiosamente a luz do sol bloqueia quase que totalmente a visão do traficante (e a do espectador), fazendo metaforicamente que seja o nosso a olhar a observar o policial. A espingarda está em desfoque, porém vemos com clareza o olhar do policial, é possível também enxergar o símbolo do Batalhão no Bope. Mathias dispara, o plano que ora mostrava Baiano, ora exibia o rosto de Mathias, torna-se um grande clarão. 39 A imagem gera por essa configuração de câmera e colocação no plano, um ponto de vista pessoal, fazendo com que o espectador sinta-se dentro do filme. Essa participação ocorre de várias maneiras, pode ser ativamente – onde ocupa o lugar (ou onde se vê no lugar) daquele ator ou coisa que faz as ações – também pode-se colocar a audiência no lugar de alguém que observa os acontecimentos e ou fazer com que alguém na cena olhe diretamente para a câmera, criando uma relação olho no olho entre ator e público. 63 CONCLUSÃO Tropa de Elite é um filme que conta a história de um policial pelo próprio olhar desse personagem. Isso é um fato marcante na obra, afinal o roteiro do filme foi inspirado em um livro de um ex-agente do Bope, Rodrigo Pimentel, que inclusive colaborou nas filmagens. Entretanto, Tropa vai além. O policial do Bope aqui representado na obra pelo capitão Nascimento assume o papel de narrador40, como alguém que dita os rumos da trama, faz explicações, descreve personagens e, o mais importante participa da história como o personagem principal e conta com objetivos bem delimitados como explica Bordwell: “resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos” (2005b, p. 279). Nosso capitão é mostrado como o verdadeiro representante do policial honesto, sóbrio e duro de caráter. Para cumprir com total eficácia o lema do Bope, “missão dada é missão cumprida”, Nascimento utiliza a violência e coerção, vide as sessões de torturas e execuções comandadas pelo policial, aparatos que ele possui como um verdadeiro representante da força e do poder do Estado. Essa tentativa de conferir espaço ao policial aparece também no documentário Notícias de uma guerra particular (1999) no qual um agente do Bope e policiais civis contam para as câmeras como é combater o crime no Rio de Janeiro. Entretanto é com o trabalho de José Padilha que o estereótipo “todo policial é corrupto” é confrontado. Para isso, o diretor apresenta ao público o “policial-modelo”, representado pelo Bope ganha força e voz na grande tela. No documentário Ônibus 174 (2002), ao reconstituir o episódio protagonizado pelo assaltante Sandro Nascimento, Padilha elege como primeiro personagem a aparecer no quadro, justamente um homem da tropa de elite. Minutos depois, o já citado Rodrigo Pimentel, afirma que o policial do Bope tem “vocação” para o combate ao crime. Por estarem vulneráveis aos perigos da profissão – Neto é morto por um traficante – os homens do Bope se equiparam em certo ponto aos detetives do filme noir, pois como afirma Almeida (2002, p.89-90) “ser surrado ou morrer, faz parte da profissão”. Entretanto os “detetives” de Padilha fazem parte de uma máquina de guerra chamada Bope, são altamente treinados, armados com fuzis e usam uniforme preto, com essa representação, esses policiais se revestem de uma superioridade ímpar. 40 “A narrativa coincide com a ação” (ALMEIDA, 2002, p. 89). 64 Vale ressaltar também que o filme de Padilha não inova no tipo de personagem mostrado na tela, existem os heróis (Nascimento e os demais homens de preto), a princesa (a esposa de Nascimento e namorada de Mathias) e claro os antagonistas (traficantes e policiais corruptos), entretanto a mudança está em como esse modelo de personagem é mostrado e quem o representa. Se em Lúcio Flávio, passageiro da agonia41 o personagem principal é um bandido e usa um colar de umbanda como proteção, em Tropa o herói usa uma farda preta e uma boina com uma caveira estampada. Precisa lição de Ortiz Ramos citado por Almeida (ORTIZ RAMOS, 1995, p. 189 apud ALMEIDA, 2007, p. 146) ilustra bem essa construção dos personagens em Tropa, para o qual os filmes policiais (...) retrabalham o gênero no interior do processo cultural brasileiro. Há todo um desejo da sua utilização para conseguir cativar o espectador, o que leva também a matrizes do cinema americano, como a elementos presentes na memória popular e de massa nacional. As ações dos policiais, em especial do capitão Nascimento, encontram abrigo nas explicações de Weber (2003) e Foucault (2001). O primeiro aborda, entre outros pontos, a questão do líder como um indivíduo legalista cumpridor das leis e ordenamentos vindos das instituições públicas. Enquanto o segundo fala justamente da dominação que o Estado exerce sobre as pessoas por meio dos seus aparatos sejam imóveis, humanos ou bélicos, como por exemplo, a polícia. Curiosamente Foucault é um ator citado no filme e estudado por um dos aspirantes que se tornara membro do Batalhão de Operações Especiais, reforçando uma proposta do longa em retratar o Batalhão de Operações Especiais como um aparelho de repressão usado pelo Estado no combate ao crime. Falamos em Bope, pois essa tropa de elite é retratada de forma diferenciada no filme, pois como diz o próprio Nascimento “na prática nos somos uma outra polícia”, ou como Selingmann-Silva (2008, p. 101) coloca: “(...) o Bope é apresentado como um local externo ao ‘sistema’, sem nenhum tipo de corrupção (...)”. Aos policiais convencionais é relegada a representação como indivíduos corruptos e inescrupulosos, sustentados pelas propinas que recebem de bicheiros e do tão falado “arrego do trafico”. Para esses indivíduos, policiais corruptos e traficantes, não espaço para falas longas. Os discursos estão dominados por gírias e palavrões e somente aparecem no quadro estão combinando ou praticando alguma ação criminosa, sendo torturados ou humilhados por Nascimento e a tropa dos homens de preto. Além desse pouca aparição no plano, policiais e traficantes, que nesta conclusão já podemos colocar em uma única categoria, a dos 41 ORTIZ RAMOS, 1995, p. 179-180 apud ALMEIDA, 2007, p. 142-143. 65 criminosos, quando surgem na tela estão mal iluminados, o que implica em uma dificuldade de percebemos as suas expressões, além de certo ponto bloquear nossa percepção visual42 sobre aquele personagem. Além de ser um forte elemento repressor, Nascimento assume um papel de protetor e propagador43 de lições de moral, quando, por exemplo, deposita a culpa da existência do trafico exclusivamente nos usuários de drogas e que esse mesmo consumidor de classe média quer sair às ruas para fazer passeata contra a violência. A cena final do filme condensa toda a violência44 e senso de moral demonstrados pelos homens de preto. Temos cara a cara dois homens oriundos da mesma classe social, porém, neste momento vemos uma inversão da nossa situação social, quem está ferido e prestes a ser chacinado não é um negro marginalizado, mas sim um branco, que por sua vez é dominado por um homem negro, representante do poder estatal, leitor de Foucault e assim como seu líder, um baluarte da lei. Baiano então é morto duas vezes, a primeira de forma física, a segunda de forma social, pois ao ter seu rosto desfigurado por um tiro, tem a sua identidade apagada, ninguém poderá vê-lo no próprio enterro e assim Nascimento e Mathias, enfim, puderam expurgar todo o mal, em todas as suas formas, presente na história. 42 Aumont (2011, p. 17) explica que o nosso modo de visão mais habitual corresponde a uma gama de objetos que consideramos como normalmente iluminados por uma luz diurna. Assim, qualquer configuração de luz que fuja desse “normal” modificará nossa percepção sobre as coisas. 43 Benjamim (1987) afirma que o narrador assume uma função pratica na historia, dentre ela podemos destacar o papel de disseminador de ideias, ensinamentos e lições. 44 Padilha foi acusado de “estetizar a violência” e “superdimensionar” as sequências em que ocorrem torturas e assassinato. A esses questionamentos, o diretor sempre respondia “apenas mostrei a realidade”. Sem ignorar as discussões, devemos considerar que não basta uma “exposição” da violência na tela, seja como forma de estética, seja como instrumento de denúncia. É preciso pensar na representação dentro do contexto de uma sociedade globalizada e fortemente influenciada pelos meios de comunicação de massa. 66 REFERÊNCIAS Livros ANDREW, J.Dudley. As principais teorias do cinema: Uma introdução, Rio de Janeiro: Zahar, 2002. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A Análise do filme, Texto & Grafia, 1999. AUMONT, Jacques et al. 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Direção: Murilo Salles, 1996). Lúcio Flávio, o passageiro da Agonia (Brasil, cor, Filmes/Embrafilmes/Unifilmes. Direção: Hector Babenco, 1976). 120 min. H.B Notícias de uma guerra particular (Brasil, cor, 57 min. Videofilmes. Direção: Kátia Lund e João Moreira Salles, 1999). Ônibus 174 (Brasil, cor, 150 min. Zazen Produções. Direção: José Padilha, 2002). Pixote, a lei do mais fraco (Brasil, cor, 128 min. Direção: Hector Babenco, 1980). Tropa de Elite (Brasil, cor, 118 min. Zazen Produções/Posto 9/Feijão Filmes. Direção: José Padilha, 2007). 70 APÊNDICE Tabela de decupagem