PERCY HELIOGÁBALO SOUZA DE MELO
A REPRESENTAÇÃO DA TEMÁTICA POLÍCIA VERSUS
BANDIDO: UMA ANÁLISE FÍLMICA DE TROPA DE ELITE
Monografia apresentada ao curso
de Comunicação Social da
Universidade Católica de Brasília
como requisito parcial para
obtenção do Título de bacharel em
Jornalismo
Orientadora: Prof. Dra. Karina
Gomes Barbosa
Brasília
2014
Aos meus pais, Rosa e Percy, pelo amor,
carinho e dedicação e por sempre entenderem
a importância que a educação tem na vida de
uma pessoa.
AGRADECIMENTOS
Aos meus irmãos Raphael e Juliana, por acompanharem toda a minha trajetória
durante esses quatro anos de curso e também compartilharem a paixão pelo audiovisual.
À Agda Oliveira, pelo amor, carinho, dedicação e paciência, além da ajuda crucial
com a bibliografia e os textos inglês.
À Karina Gomes Barbosa, por minha orientar e entender tão precisamente o papel de
uma orientadora, não apenas nesta monografia, mas também como grande professora nas
disciplinas que nos encontramos.
À Rafiza Varão, por me ensinar, sempre de forma tão doce, a ter atenção com o texto.
Revisar, revisar e revisar...
Ao Alex Vidigal, por despertar em mim o amor pelo cinema e mostrar o quanto
mágico e surpreendente é essa tal de Sétima Arte.
À Sofia Zanforlin, por guiar os meus primeiros passos na pesquisa científica e por
saber mostrar o melhor caminho sem impor nada.
Aos amigos-irmãos, Júnior Assis e Everton Lagares, pelo companheirismo na
universidade e fora dela.
“Se for possível, está feito; se for impossível,
vamos fazê-lo” (Marechal Argolo, lema do 19º
Batalhão de Caçadores).
LISTA DE FIGURAS
Figuras 1 a 3..............................................................................................................................52
Figuras 4 a 7..............................................................................................................................53
Figuras 8 a 11............................................................................................................................55
Figuras 12 a 14..........................................................................................................................55
Figuras 15 a 18..........................................................................................................................56
Figuras 19 a 21..........................................................................................................................57
Figuras 22 a 25..........................................................................................................................58
Figuras 26 a 28..........................................................................................................................59
Figuras 29 a 31..........................................................................................................................60
Figuras 32 a 36..........................................................................................................................61
Figuras 37 a 39..........................................................................................................................62
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................9
1. AS TEORIAS................................................................................................................13
1.1 Política dos autores................................................................................................13
1.2 Estudos culturais....................................................................................................15
1.2.1
Os Estudos Culturais e o “nascimento do espectador”...............................18
1.3 Cinema de terceiro mundo.....................................................................................20
1.3.1
Estética da fome..........................................................................................24
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O NARRADOR............................................................27
2.1 O conceito de narração/narrador............................................................................27
2.2 O narrador e a narração no cinema........................................................................28
3. O GÊNERO NO CINEMA...........................................................................................30
3.1 Considerações iniciais............................................................................................30
3.2 Noções gerais.........................................................................................................30
3.3 O gênero policial....................................................................................................33
3.4 O gênero policial no Brasil....................................................................................35
3.4.1 Breve histórico............................................................................................35
3.4.2 Cinema policial brasileiro e a crítica social................................................37
4. VIOLÊNCIA E PODER DO ESTADO........................................................................42
5. METODOLOGIA.........................................................................................................45
6. ANÁLISE......................................................................................................................49
6.1 Apresentação e resumo do filme............................................................................49
6.2 Análise da obra.......................................................................................................51
CONCLUSÃO..........................................................................................................................63
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................66
APÊNDICE...............................................................................................................................70
RESUMO
MELO, Percy Heliogábalo Souza de. A representação da temática polícia versus bandido:
uma análise fílmica de Tropa de Elite. 71 folhas. Monografia apresentada ao curso de
Comunicação Social como requisito parcial para obtenção do Título de bacharel em
Jornalismo da Universidade Católica de Brasília. Brasília-DF, 2014.
Esta monografia teve como objetivo a análise de um contexto de representação dentro do
filme Tropa de Elite. Porém, esse trabalho de observação foi apenas o fim da caminhada. Para
que pudéssemos realizar o trabalho de análise fílmica foi necessária a construção de todo um
arcabouço teórico que passa pelas Teorias do Cinema, caminha para a conceituação de
narrador e narração no cinema, passa pela discussão sobre a definição de gênero e abarca uma
breve retrospectiva do gênero policial no Brasil e por fim tece um debate sobre violência e
poder do Estado, caracterizando assim este trabalho com um viés marcado pelo culturalismo.
Dessa forma, por meio desse estudo teórico e das técnicas de análise, descobrimos uma
representação do policial honesto (agente do Bope) como um indivíduo representante e
detentor da força estatal, enquanto que aos criminosos (policiais corruptos e traficantes) é
destinada à morte, à humilhação e à tortura.
Palavras-Chave: Cinema, análise fílmica, Tropa de Elite, representação, polícia, bandido.
ABSTRACT
This monograph had as objective the analysis of a representation context within the film Elite
Squad. However, this observation work was just the end of the walk. So we could perform the
film analysis was necessary to construct a whole theoretical framework that goes through
Theories of Cinema, walks to the concept of narrator and narration in film, goes through the
discussion on the definition of gender and embraces a brief review of the crime films in Brazil
and finally weaves a debate on violence and state power, thus characterizing this work with a
bias marked by culturalism. Thus, through this theoretical study and analysis techniques, we
find a representation of the honest cop agent (BOPE) as an individual representative and state
power holders, while the criminals (drug dealers and a corrupt police) are bound to death, to
humiliation and torture.
Keywords: Cinema, film analysis, Elite Squad, representation, police, bandit.
9
INTRODUÇÃO
Neste trabalho farei uma análise do filme Tropa de Elite, do diretor José Padilha,
buscando entender como ocorre a representação da temática polícia versus criminalidade. No
início, falarei sobre as teorias do cinema que baseiam este trabalho: Estudos Culturais,
Cinema de Terceiro Mundo e Política dos Autores. Serão abordadas também questões sobre o
conceito de narração/narrador, a narração no cinema, além do posto de vista cinematográfico.
Na discussão deste trabalho também se faz necessário falar sobre o gênero policial, assim
como um resumo sobre os filmes policiais pelo mundo, para, em seguida, entrar no contexto
brasileiro. Assim, partindo da ideia de que a análise de filmes consiste na decomposição de
seus diversos elementos narrativos (planos, fotografia, roteiro), formais e de estilo, pretendo
analisar a obra e descobrir como se esse processo de representação ocorre.
Na primeira parte desta pesquisa apresentarei os aspectos das principais das teorias e
correntes de pensamento presentes nos estudos sobre cinema que fundamentam este trabalho.
Em seguida, discorrerei sobre a questão do narrador, outro aspecto fundamental para se
entender Tropa, visto que boa parte do filme é narrada pelo seu personagem principal, o
capitão do BOPE1 Roberto Nascimento (Wagner Moura).
Em um segundo momento será abordada a questão da representação policial no
cinema, em que será mostrado como surgiu o gênero policial e suas principais características.
Como o objetivo deste trabalho consiste na análise de um filme brasileiro, a produção local
será abordada de forma mais detalhada; isso não significa que os principais aspectos da
produção de outros países fiquem de fora desse panorama.
Algumas discussões sobre uso da violência por parte do Estado, assim como o poder
estatal também estão presentes neste trabalho. Tropa traz um personagem que estuda Direito e
lê Foucault, além disso, retrata histórias de policias, homens dotados do poder estatal.
A escolha do filme Tropa de Elite se deu pelo grande sucesso de crítica e bilheteria.
Tendo
como
base
a
temática
“favela”,
Tropa
mostrou
a
relação
comunidade/traficantes/polícia que permeia o mundo do crime na sociedade carioca. Dessa
forma, me valendo da análise fílmica, pretendo observar esse produto da indústria cultural que
levou mais de 2,5 milhões de pessoas às salas de cinemas do Brasil e colocou novamente o
1
Batalhão de Operações Policiais Especiais.
10
cinema brasileiro em evidência no cenário internacional. Com um orçamento estimado em R$
11 milhões, o longa levou o Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim.
Outro aspecto presente neste trabalho usará a análise fílmica como uma ferramenta de
comparação entre algumas teorias do cinema, entre elas a “teoria do cinema de terceiro
mundo2”. Esse movimento defende um tipo de produção no qual as mazelas da sociedade
seriam expostas, onde o espectador produziria os próprios filmes e exibiria os seus dramas
sociais, assumindo assim o papel de “espectador-autor” (STAM, 2011, p.116-117).
As publicações desse movimento dos anos 60 e 70 defendem também que a militância
político-social é mais importante que a expressão artística, em contraponto com a “teoria do
autor3”, por exemplo. Tropa de Elite num primeiro momento não confirma a expressão
cinematográfica do “terceiro-mundo”. Entretanto, os próprios teóricos terceiro-mundistas
propunham questões “existenciais” dentro do movimento como imitar ou não o modo de
produção hollywoodiano? Até que ponto o cinema deve incorporar formas narrativas
populares? Qual a relação dos cineastas (em grande maioria representantes da classe média)
do Terceiro Mundo com a classe pobre que eles pretendem representar? Essas indagações
podem ao menos mostrar uma relação (ainda que de tensão) de Tropa com a estética do
movimento.
Além disso, julgo necessário levantar algumas questões que envolvem a teoria do
“culto ao autor” como a representação da estética e do modo particular de filmar do cineasta
em oposição à mera reprodução (no sentido de um processo mecânico, automático) do que
está determinado no roteiro, o diretor de cinema como artista autoral e a utilização ou não dos
modos de produção de Hollywood, que propiciam em grande parte uma maior qualidade ao
filme, mas ao mesmo tempo “amarram” o trabalho de direção a questões hierárquicas e
sistemas de produção. Além disso, no contexto deste trabalho, as considerações sobre as
questões de “autoria” ganham mais peso devido à carreira do diretor de Tropa, José Padilha.
O cineasta produziu e/ou dirigiu documentários em que a temática social comanda a narrativa.
Assim ocorreu em: Os carvoeiros (2000), Estamira (2005), Ônibus 174 (2002) e Garapa
(2009), que tratam, respectivamente, de assuntos como escravidão moderna, miséria,
violência urbana e fome.
2
Robert Stam no livro “Introdução à teoria do cinema” utiliza diversos termos para se referir a produção
cinematográfica e às correntes de pensamento presentes entre cineastas e teóricos dos países do chamado
Terceiro Mundo. Alguns deles: Cinema e Teoria do Terceiro Mundo (p.122), terceiro-mundismo
cinematográfico (p.113), Terceiro Cinema (p.119).
3
Nesse movimento do fim dos anos 50, o cinema era tido como expressão artística, assim como a pintura. Dessa
forma, os cineastas (considerados verdadeiros artistas) usariam a grande tela como uma forma de expor a sua
própria estética.
[1] Comentário: : Será que podemos
chamar assim ou chamamos de teorias
pós-coloniais? Fiquei em dúvida.
[2] Comentário: : O Stam chama
assim mesmo. Será que está errado?
11
Ademais, ressalto que essa inter-relação presente entre as teorias do cinema encontram
abrigo nos “estudos culturais”. Surgido na Inglaterra da década de 60, esse movimento
defende que o cinema deve ser inserido em um “contexto histórico e cultural mais amplo”, no
qual elementos relacionados ao meio social como pessoas, religião, política, gênero e
instituições também ganharia espaço na análise do cinema (STAM, 2011, p. 248). Entretanto,
vale ressaltar que essa teoria não menospreza o texto cinematográfico, como bem afirma
Robert Stam: “é um erro supor que o estudos culturais nunca pratiquem a análise textual”
(2011). Porém essa observação de texto e significados é feita dentro de um contexto cultural e
sociológico, que no caso de Tropa de Elite, é bem claro: criminalidade, corrupção e favela.
Este trabalho analisa o filme Tropa de Elite tendo como base as diversas teorias do
cinema e a inter-relação entre várias ideias desses movimentos teóricos, resultando num leque
diversificado de formas de entender e teorizar sobre o filme ou mesmo sua inserção ou não
dentro da “estética da fome” do cinema de Terceiro-mundo. Pretendo também fazer uma
análise tendo como base as questões sobre o “culto ao autor”, que defende o cinema como
meio de expressão autoral.
As teorias citadas nessa primeira parte do trabalho não impedem que outras sejam
elencadas a esta monografia, dadas as diversas possibilidades e relações de interpretação
presentes tanto nas teorias do cinema como no trabalho de análise fílmica. As escolhas, num
primeiro momento, dos estudos e teorias citados consiste ela mesma em uma metodologia de
pesquisa. Para tanto, no inicio será necessário discorrer sobre as teorias do cinema e explicar o
que é análise fílmica para que o leitor entenda qual técnica será utilizada para observação da
obra. Já em uma segunda fase será feita a análise, propriamente dita, do filme Tropa de Elite.
O objetivo é decupar e agrupar, para em seguida reconstruir os elementos semelhantes
do filme. A análise aparenta ser uma atividade subsidiária de outros interesses, dessa forma
ela é o ponto de partida para a decomposição e é, também, o ponto de chegada à etapa de
reconstrução do próprio filme.
Esse segundo movimento em direção ao retorno da obra evita cair em
interpretações/observações despropositadas ou pouco pertinentes, pois a análise (atividade
que agrega tanto observações de conteúdo, como de discurso) é uma atividade que busca
relatar um filme ao detalhe. Além disso, tem como função maior aproximar ou distanciar os
filmes uns dos outros, e no caso em questão, “confrontar” a relação dessa obra com o seu
público, assim como afirma Jacques Aumont na obra A estética do filme: “reagimos diante da
imagem fílmica como diante da representação muito realista de um espaço imaginário que
[3] Comentário: : O correto aqui é
esse?
12
aparentemente estamos vendo” (AUMONT, 1995, p. 21). Nesse sentido, não se trata de
construir uma outra obra, mais do que isso não deve cair na tentação de “superar o filme” e
ultrapassar os objetos da análise, o que poderia levar à construção de um nova obra como
alertam Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (2011, p.15). Outro ponto importante é voltar ao
filme tendo em conta a ligação entre os elementos encontrados, mas sempre tendo em mente
que os limites da “criatividade analítica” são os próprios objetos da análise.
13
1. AS TEORIAS
Antes de começar a discorrer sobre as teorias e movimentos teóricos que
fundamentam este trabalho, vale ressaltar que a apresentação teórica exposta é apenas uma
seleção deste vasto campo de estudos chamado “teorias do cinema”. Assim, devido à
diversidade que engloba o pensamento cinematográfico, além da forte inter-relação que
permeia esses estudos, optou-se por fazer este trabalho ancorado nos três movimentos teóricos
apresentados abaixo, o que não significa ingenuidade ou um desprezo a tantas outras teorias
do cinema. A escolha do que será apresentado tem como objetivo um aprofundamento maior e
consiste ela mesma, em uma metodologia de trabalho.
1.1 Política dos autores
No início dos anos 60 surge no campo das teorias do cinema um movimento
denominado “autorismo”. Inspirados no princípio do homem “na centralidade do sujeito
filosófico”, defendiam que o cinema era um novo meio de expressão artística semelhante à
pintura e à literatura (STAM, 2011, p. 102-103). Apesar de não ser considerada uma teoria
propriamente dita (e essa nem era a intenção dos seus criadores), o “autorismo” trazia em si
novos ensinamentos, muita polêmica e defendia uma intenção em relação ao cinema e ao
modo de produzir e pensar a sétima arte (BUSCOMBE, 2005, p. 281). Mesmo antes do culto
ao autor surgir como um grande movimento, o cineasta Alexander Astruc cunhou em 1948 o
termo “câmera-caneta”, para ele o diretor de um filme não era mais um mero serviçal de
textos preexistentes, ele seria um artista criativo, capaz de escrever a sua própria história.
Nesse sentido, Robert Stam afirma: “a fórmula da camera stylo (“câmera-caneta”) valorizava
o ato de filmar” (STAM, 2011, p.103).
Além de Astruc, outro grande nome do “autorismo” foi François Truffaut. Em um
manifesto publicado em 1954 na revista Cahiers Du Cinéma, o diretor atacou o método de
produção que dominava o cinema francês, baseado em reproduções de clássicos da literatura,
o que ele chamava de “tradição de qualidade”, pois esse tipo de produção transformava o
filme em algo previsível, uma reprodução precisa e bem realizada, entretanto sem vida e que
sempre seguia a mesma fórmula.
14
Truffaut ridicularizava a tradição de qualidade como um cinema enfadonho,
acadêmico e de roteiristas, celebrando, ao mesmo tempo, o mais vital cinema
popular independente norte-americano de Nicholas Ray, Robert Aldrich e
Orson Welles. A tradição de qualidade, para ele, reduzia o cinema a uma
mera tradução de um roteiro preexistente, quando deveria ser uma mise-enscène criativa. (STAM, 2011, idem)
Segundo Truffaut, o cinema de autor se assemelharia ao realizador por meio do estilo
presente no filme, o que representaria a personalidade do diretor. Os pensadores desse
movimento adotavam os termos auteur (autor) e metteur-en-scène (encenador) para
caracterizar, respectivamente, aquele que era capaz de fazer um filme verdadeiramente
próprio, ou seja, original, daquele que era um mero reprodutor de roteiros.
Outro teórico que propagou as ideias do “autorismo” foi o crítico francês André Bazin.
Como bem explica Robert Stam (2011), Bazin apoiou o cinema como “uma criação artística,
do fator pessoal como referência e a sua consequente postulação” (STAM, 2011, p. 104).
Ainda nesse sentido, Stam explica:
Todos esses argumentos eram esforços para reivindicar origens artísticas, e
se pautavam pelo desejo de mostrar que o cinema era capaz de transcender
sua forma artesanal, industrial de produção, incorporando uma visão
singular, “assinada”. (STAM, 2011, p. 105)
Cineastas clássicos como Welles e Eisenstein sempre foram considerados autores,
devido ao controle artístico e à “estética pessoal” presentes em seus filmes. A inovação da
teoria do autor estava no fato dela considerar também os cineastas de estúdio4 como autores.
Mesmo em filmes padrão Hollywood, a estética do autor estaria de forma explícita na grande
tela no trabalho de alguns diretores. Assim, o cinema norte-americano que sempre foi visto
como o “modelo a não ser seguido”, emergia como um paradigma desse novo cinema francês
(STAM, 2011, p.106).
Nesse cenário de intensa polêmica surge a chamada “política dos autores” na França.
Esse desdobramento do “autorismo” tinha como objetivo viabilizar um novo tipo de cinema.
Como bem explica Andrew Tudor, a intenção do grupo dos Cahiers era mesmo fazer
“política”, por meio de uma forte oposição ao modo tradicional de produção francês
(TUDOR, 2009, p.121). Era a estratégia dos cineastas da Nouvelle Vague para conseguir
espaço no cenário cinematográfico francês, tido como hierarquizado, controlador, onde
4
Aqueles diretores ligados ao modo de produção hollywoodiana dotado de sistemas rígidos estabelecidos e
procedimentos narrativos tradicionais.
15
cineastas iniciantes tinham de esperar em uma fila para conseguir comandar as suas
produções. Dessa forma, o “autorismo” como princípio elementar a defesa da personalidade
do autor em meio às dificuldades para sua expressão (BUSCOMBE, 2005, p. 288).
Nesse sentido, como afirma Robert Stam (2011), o culto ao autor serviu para revigorar a
“aura” do cinema. A sétima arte encontrou nesse movimento uma paixão e uma idolatria
exacerbada às práticas dos cineastas.
O mesmo amor anteriormente devotado pelos fãs às estrelas ou pelos
formalistas aos procedimentos artísticos, os adeptos do autorismo agora
devotavam aos homens – que em sua grande maioria eram, de fato, homens
– que encarnavam a ideia autoral de cinema. (STAM, 2011, p.107)
Entretanto, Andrew Tudor é mais crítico do que Robert Stam ao falar do culto
exacerbado à prática autoral. Para Tudor, ao aplicar a noção de “autor” como argumento para
avaliação de um filme, havia sempre uma tendência a considerar um filme feito por um auteur
como melhor do que aquele dirigido por um realizador, por mais que a segunda obra fosse
indiscutivelmente melhor do que a primeira. Tudor completa: “Como foi um auteur que fez o
filme, este tem de ser bom. A reduction ad absurdum desta posição é que não é necessário ver
de facto os filmes, basta só saber quem os realizou” (TUDOR, 2009, p.126).
1.2 Estudos culturais
Esse campo de estudos tem como fundamento situar o cinema em um contexto social e
cultural mais amplo. Os chamados cultural studies originam-se na Inglaterra dos anos 60.
Richard Hoggart, Raymond Williams e Stuart Hall são considerados os grandes pensadores
desse campo de estudos. Preocupados com a opressão imposta pelo sistema de classes
britânico, esses estudiosos pesquisavam aspectos de dominação ideológica e por novos
agentes de mudança social. Fundamentado em diversas fontes intelectuais como a semiótica,
o marxismo e, tempos depois, o feminismo e a crítica racial, o culturalismo espalhou-se pela
Europa e chegou aos Estados Unidos e à América Latina (STAM, 2011, p.248-249). Esta
última tem como expoentes o argentino Néstor Garcia Canclini, o espanhol residido na
Colômbia Jesús Martín-Barbero e o brasileiro Carlos Eduardo Lins da Silva.
Além disso, os estudos culturais agregam e modificam uma série de conceitos. Um
exemplo é a definição de cultura de Williams: “todo um modo de vida”, como uma prática
social que relaciona elementos como religião, arte, vida em família, entre outros
(WILLIAMS, 1979, p.16-17). Já o italiano Antonio Gramsci serviu de influência para os
16
culturalistas ao considerar a interdependência entre ideias contraditórias e questões de base
super-estretura no contexto do estancamento do processo revolucionário na Europa Ocidental.
Segundo ele uma ideologia perpassa a luta de classe e, no sentido oposto, uma pessoa pode
ser influenciada por inúmeras ideologias, ainda que antagônicas (STAM, 2011, p.249). Ou,
nas palavras de Fernando Mascarello (2001): “uma tendência à ‘duplicidade ideológica’, uma
capacidade do indivíduo de ‘crer e não crer’ no mesmo movimento, de acordo com as
circunstâncias de cada momento ou vivência”.
Devido
a
essa
multiplicidade
de
influências,
os
estudos
culturais
são
reconhecidamente, nas palavras de Robert Stam (2011), algo “difícil de definir, em virtude de
sua metodologia deliberadamente eclética e aberta”. Para Stam a “cultura” nos estudos
culturais é ao mesmo tempo antropológica e artística, dessa forma, definida em termos
democratizadores, esse movimento considera que todos os fenômenos culturais, do mais
popular e burlesco ao mais erudito, são dignos de estudo.
Em relação ao seu objeto de estudo, os culturalistas dão atenção mais ao meio social
no qual o produto está inserido do que ao produto em si. Assim sendo, os textos estariam
inseridos em uma matriz social e produziriam consequências sobre o mundo. Na obra Crítica
da imagem eurocêntrica, Ella Shohat e Robert Stam (2004, p.31), versando sobre as questões
do multiculturalismo, nos explicam: “comunidades, sociedade, nações e mesmo continentes
inteiros não existem de modo autônomo, mas em uma teia densa de relações”.
Ainda nesse sentido, Stam (2011, p.250) nos diz: “Os estudos culturais representam
uma mudança de interesse pelos textos em si para um interesse pelos processos de interação
entre textos, espectadores, instituições e o ambiente cultural”. Entretanto, Stam alerta que é
um equívoco supor que os estudos culturais não façam a análise textual, a diferença é que esse
texto passa a ser analisado dentro de um contexto cultural mais amplo.
Oferecendo-se como uma alternativa em relação a outras teorias, o culturalismo
procura entender como a subjetividade é construída. Para os teóricos desse movimento, a
subjetividade contemporânea está intimamente ligada às representações midiáticas de todas as
espécies (STAM, 2011, p.250).
O sujeito é construído não apenas pela diferença sexual, mas também por
muitos outros tipos de diferenças, em uma negociação permanente e
multivalente entre condições materiais, discursos ideológicos e eixos sociais
de estratificação fundados na classe, na raça, no gênero, na idade, não
origem geográfica e na orientação sexual. (STAM, idem)
17
No campo do audiovisual, os estudos culturais não focalizam apenas um meio
particular como o cinema, mas sim, aspectos mais amplos inseridos nas práticas culturais.
Porém, o movimento não considera em princípio as diferenças de exibição e assimilação
presentes em meios como a TV, o próprio cinema, os videoclipes. Assim, os estudos do
cinema mais recentes readequaram a teoria e passaram considerar não apenas as salas
tradicionais de cinema, mas também aos diferentes tipos de exibição como em casa,
restaurantes, aviões e assim por diante, pois segundo Stam (2011, p.251): “o tipo de atenção
concentrada dedicada à imagem de alta definição em uma sala escura do cinema (...)
distingue-se radicalmente do tipo de percepção dispersa em um avião em movimento”.
Outro tópico controverso que envolve os estudos culturais e o cinema é a seguinte
questão: “os estudos culturais complementam e enriquecem os estudos do cinema ou os
ameaçam à diluição?” (STAM, idem). Alguns teóricos consideram as questões de “cultura”
como uma extensão lógica, pois já seria realizado dentro dos estudos do cinema; para os mais
tradicionais a teoria é uma afronta ao cinema, visto que ela desconsidera a especificidade do
meio.
Para alguns teóricos e pesquisadores de cinema, os estudos culturais devem
ser desprezados, por não mais estudarem uma arte erudita (o cinema), mas
artes populares, vulgares e menores como sitcoms televisivas – um
argumento bastante irônico tendo em vista a longa luta empreendida pelos
estudos do cinema para legitimar a dignidade de seu próprio desprezado
objeto de estudo. (STAM, 2011, p.251)
Umas das ideias que fundamentam os estudos culturais é a visão de cultura como o
campo do conflito e negociação no meio social. Isso resulta no que Stam (2011, p.253)
denomina como uma “interlocução de ideias e negociações no interior de informações sociais
dominadas pelo poder e atravessadas por tensões relativas à classe, gênero, raça e
sexualidade”. Nesse contexto de interações faz-se necessário entender que comunidades,
sociedade e nações não existem de forma autônoma, mas sim marcada por uma rede de
interações.
E por considerar dentro do seu objeto de estudo as diversas relações e elementos
presentes na sociedade, os estudos culturais acabam por incluir e dar espaço a “vozes
marginalizadas e sub-representadas”, considerando “as minorias como participantes ativos e
produtores localizados no próprio centro de uma história compartilhada e conflituosa”
(STAM, 2011, p.298). Tal concepção é a base dos mais variados sobre estudos de mídia,
cinema e cultura, incluindo a Teoria do cinema de terceiro mundo.
18
1.2.1 Os Estudos Culturais e o “nascimento do espectador”
O espectador é tema dominante nas teorias modernas de comunicação; não aquele
espectador que apenas “assiste” e “contempla” de forma passiva determinada obra artística,
mas sim aquele que interage, questiona e analisa um produto da mídia. Nesse sentido, o
cinema popular ocupa lugar de destaque. Os teóricos setentistas afirmam que o cinema é
elemento de subjetivação do espectador à ideologia do capitalismo (MASCARELLO, 2001,
p.4). Ainda nesse sentido, Mascarello (2005, p.2) sintetiza como se dava o pensamento
dominante na década de 70: “Reduzido a uma mera ‘inscrição textual’, o espectador é
compreendido como uma entidade abstrata e passiva (...)”.
Já as teorias dos anos 80 e 90 criticam os ensaios de revistas tradicionais como
Cinétique, Cahiers e Screen e fazem uma “heterogeneização do espaço configurado pelo
cinema popular e seu espectador”. Esse fato ocorre de forma particular no cenário angloamericano, no qual os Estudos Culturais, representado, sobretudo por vertentes etnográficas,
aparece como corrente teórica mais influente (MASCARELLO, 2005, idem).
Dessa forma, como nos traz Mascarello (2001), ocorre a derrocada do ponto central
das reflexões dos anos 70: “o determinismo absoluto pelo texto”. Assim, os teóricos modernos
implantam um sistema conceitual onde o contexto de recepção da obra passa a ser
privilegiado. Dessa forma, abandona-se a ideia de espectador passivo e de uma comunicação
unilateral advinda apenas do texto e passa-se a considerar e a reconhecer a capacidade de
negociação com as obras.
Passa-se a examinar a relação entre texto fílmico e audiência em termos de
suas manifestações pontuais, historicizadas, contemplando-se a diversidade
encontrada, extratextualmente, nos momentos da produção e da recepção.
Com isso, desenvolvem-se as formulações ‘audiência ativa’, e as
interpretações, usos e prazeres do filme dominante começam a ser
teoricamente respeitados e afirmados. (MASCARELLO, 2005, p.2)
Na trajetória dessa mudança de contexto, surgem dois corpos teóricos. O primeiro é
marcado pela homogeneização original e caracteriza-se por uma fusão de estruturalismo/pósestruturalismo, semiologia, psicanálise e marxismo. O segundo é responsável pelo impulso
inicial da heterogeneização da teoria, abrange os “estudos contextualistas da espectorialidade
cinematográfica” (Idem, Ibidem).
Entretanto, Mascarello (2001) nos lembra também que esse processo de mudança de
paradigma surge dentro da teoria setentista, pois segundo ele, dentro do próprio textualismo já
havia discordâncias, para ilustrar, ele cita as diversas existentes para se referir à teoria da
[4] Comentário: : Subjetivação
mesmo, segundo o Mascarello.
19
década de 70: “teoria do dispositivo” (diversos autores), “desconstrução” (Ismail Xavier),
Screen-theory (vários), “posicionamento subjetivo” (Bordwell). Além disso, a existência de
“contra-estratégias textuais de vanguarda” e a “investigação dos mecanismos de subjetivação
ideológica” marcam o momento em que o textualismo semiológico se lança a entender o
processo de subjetivação capitalista do espectador (MASCARELLO, 2001, p.7).
Já em relação ao contextualismo, temos o modelo do processo comunicativo proposto
por Stuart Hall, em 1973, no ensaio Encondig/Decoding, e que serve para o desenvolvimento
da chamada “teoria da audiência ativa” a partir do final da década. O pesquisador identifica
três momentos relativamente autônomos no processo comunicativo: produção, texto e
recepção. Nesse sentido, Mascarello (2001), traz a seguinte discussão:
Ora, se a recepção é relativamente autônoma com respeito ao texto, a audiência
assume um papel constitutivo na disputa. Por isso, várias são as possibilidades
existentes na relação audiência com o texto midiático dominante. (MASCARELLO,
2001, p.8)
Assim, já em meados da década de 80, e fundamentalmente no cenário angloamericano, sob a inspiração do chamado “horizonte teórico-metodológico culturalista”, isto é,
as formulações propostas pelos “estudos culturalistas de audiência” implementados por
pesquisadores Centre Contemporany Cultural Studies (CCCS), “desloca-se o foco do sujeito
inscrito no texto ao espectador concreto”, ou seja, um sujeito inserido no contexto social e
histórico (Idem, Ibidem).
Nesse sentido, ele ainda afirma: “A condição ativa dos espectadores como produtores
de sentido está associada à sua relação com o texto, ou mais especificamente, ao trânsito
espectatorial por vários discursos presentes no contexto sócio-histórico” (MASCARELLO,
idem).
Entretanto, como explica Mascarello (2005), o campo dos estudos contextualistas do
espectador cinematográfico é bastante controverso em teoria do cinema. Apesar de se
reconhecer, de maneira geral, que o aspecto culturalista tenha contribuído de forma
importante para os estudos do cinema, dois fatores, que seguem negligenciados, caracterizam
a difícil relação entre os estudos culturais e os estudos de cinema:
Em primeiro lugar, a despeito do reconhecimento da relevante contribuição
dos estudos culturais à teoria do cinema, a abordagem contextualista à
espectatorialidade cinematográfica segue decisivamente marginalizada entre
os teóricos e pesquisadores da área. Em segundo, a marginalização dos
estudos contextualistas envolve a inexistência de esforços mais
compreensivos de mapeamento dos avanços já identificáveis na área. Não
parece haver um consenso – ou seque um entendimento –, entre os autores,
em torno à dinâmica e ao significado histórico-teóricos das repercussões,
sobre os estudos de cinema que percebam a erosão de seu paradigma
20
textualista, da ruptura contextualista determinada pelos estudos culturais.
(MASCARELLO, 2005, p. 3)
Além disso, Mascarello (2001) afirma que apesar de haver uma heterogeneização das
teorias contextualistas em oposição ao viés homogeneizador das teorias dos anos 70, os
estudos culturalistas enfrentaram certas dificuldades na análise do processo de recepção:
(...) o caráter da relação entre as audiências é de tal forma multidimensional que
exige uma ainda maior complexificação teórica, para além do que tem sido capaz de
promover a influência dos Estudos Culturais sobre a teoria do cinema.
(MASCARELLO, 2001, p.15)
Mascarello (2005) ainda nos explica que a etnografia dentro dos estudos das
audiências do cinema funcionou “mais como um horizonte de pesquisa do que uma prática
concreta”. Resultando, assim, em poucos estudos etnográficos que realmente aplicaram o
horizonte contextualista dos estudos culturais. Dessa forma, ele cita as pesquisas de Dyer e
Valerie Walkerdine, ambas de 1986, o trabalho de Jacqueline Bobo (1988 e 1995). Nesse
sentido, Mascarello (2005) nos diz:
Estes trabalhos constituem a instância mais bem-sucedida de assimilação do
horizonte teórico-metodológico culturalista, ao operarem a aplicação do
método etnográfico à investigação das audiências cinematográficas,
afirmando, neste processo, os prazeres espectatoriais dominantes de
espectadores agora considerados ativos frente ao texto fílmico.
(MASCARELLO, 2005, p.11)
1.3 Cinema de terceiro mundo
Cunhado originalmente pelo francês Alfred Sauvy na década de 50, o termo “Terceiro
Mundo” faz referência à existência de três esferas geopolíticas: o Primeiro Mundo Capitalista
(a nobreza); o Segundo Mundo (o clero) e o Terceiro Mundo (plebeus). Este último grupo é
representado pelas nações colonizadas ou neocolonizadas, cujos processos políticos e
econômicos foram formados no processo colonial (STAM, 2011, p.112).
A definição fundamental de Terceiro Mundo estava focada mais em questões de
dominação econômica do que em estereótipos como “os pobres”, “os não industrializados” ou
“atrasados culturalmente”. Segundo Stam (2011) estas noções de Terceiro Mundo foram
consideradas imprecisas, porque países como Brasil, México, Argentina e Singapura possuem
uma economia robusta, são altamente industrializados e possuem um campo artístico e
cultural riquíssimo. Shohat e Stam (2006) atribuem a essa forte industrialização dos países de
21
terceiro mundo a responsabilidade pelo surgimento de “gigantes audiovisuais na mídia5” em
locais como o Brasil e o México e o consequente crescimento das produções audiovisuais
nesses países.
Assim, os fatores econômico-industriais aliados à popularidade do neorrealismo6
italiano na América Latina7, criaram um terreno fértil para o terceiro-mundismo no cinema.
Como explica Robert Stam (2011), de fato, houve um intenso intercâmbio entre o
neorrealismo italiano e a produção cinematográfica na América Latina. Cineastas como
Cesare Zavattini visitaram Cuba e o México em 1953 para falar sobre as possibilidades de
versões locais de neorrealismo, assim como diretores latinos (Fernando Batri, Julio Garcia
Espinosa, Tomás Gutiérrez Alea) estudaram em Roma. Além disso, periódicos como Tiempo
de Cine na Argentina e A Revista de Cinema no Brasil serviram para disseminar a influência
italiana no modo de produção cinematográfica dos latino-americanos.
Os filmes neorrealistas italianos provocaram burburinho entre os cineastas latino
americanos. O pesquisador Alex Viany e o diretor Nelson Pereira dos Santos ficaram
impressionados ao ver como os italianos haviam construído uma “estética da pobreza” por
meio das técnicas de documentário, utilizando equipamentos simples e com pouco ou nenhum
orçamento (STAM, 2011, p.113-114). Esses mesmos cineastas publicaram artigos na década
de 50 no qual defendiam um cinema “nacional” e “popular”.
Os cineastas e teóricos terceiro-mundistas não eram contra apenas a dominação
hollywoodiana dos circuitos de distribuição, mas também das representações culturais de sua
história e cultura. Em resposta a esses estereótipos, os latino-americanos apostaram em um
cinema feito por e para os latinos; esse “novo cinema” teria o papel de ser o porta-voz do
povo, fazendo o que Shohat e Stam (2006) chama de “contranarração cinematográfica”.
Os manifestos de 1960 e 1970 valorizavam um cinema alternativo, independente e
antiimperalista mais preocupado com provocação e militância do que com a
expressão autoral ou com a satisfação do público-consumidor. Os manifestos
contrastavam este novo cinema não apenas com Hollywood, mas também com as
5
No contexto brasileiro destaca-se a Embrafilmes, empresa estatal criada em 1969 com o objetivo de fomentar a
produção e a distribuição de filmes. A estatal foi extinta em 1990 com a marca de 232 filmes produzidos e outros
329 distribuídos. A Rede Globo de Televisão, segunda maior emissora de TV do mundo, atrás apenas da norteamericana ABC, é outro exemplo. Criada em 1965, produziu 276 telenovelas e desde 1998, quando criou a
Globo Filmes, lançou 133 longas-metragens.
6
Movimento cultural surgido na Itália pós Segunda Guerra Mundial, o neorrealismo apresentava em seus filmes
fortes elementos da realidade, assemelhando-se, em certo ponto, ao documentário. Os filmes neorrealistas
buscavam apresentar a realidade social e econômica vividas pela Itália naquele período. Os cineastas Roberto
Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti estão entre os maiores expoentes do movimento.
7
Sobretudo pela presença de imigrantes italianos nos países latino-americanos e também pelas condições
sociais relativamente semelhantes entre a Itália e a América Latina.
22
tradições comerciais de seus próprios países, que eram vistas como ‘burguesas’,
‘alienadas’ e ‘colonizadas’. (SHOHAT; STAM, 2006, p. 356)
A ideologia terceiro-mundista cristalizou-se ao final dos anos 60 por meio de uma
onda de ensaios-manifestos militantes como a “Estética da Fome” de Glauber Rocha (1965),
“Towards a Third Cinema” de Solanas e Getino (1969) e “For animperfect cinema” de Garcia
Espinosa (1969). Escritos em um momento de intensas lutas nacionalistas, esses manifestos
eram marcados por contextos culturais e cinematográficos particulares, entretanto havia
preocupações comuns como a recusa aos modos de produção do Primeiro Mundo e a
necessidade de se fazer comunicar para um grande público. Glauber Rocha defendia que o
fato de um país ser desenvolvido economicamente, não deveria significar que ele tinha de ser
artisticamente subdesenvolvido (STAM, 2011, p.115). Em Crítica da imagem eurocêntrica
Robert Stam discorre ainda sobre o cinema terceiro-mundista da seguinte forma:
(...) os diretores do Terceiro Mundo e das minorias reescreveram suas
próprias histórias, tomando o controle das próprias imagens e falando com
suas próprias vozes. Não que tais filmes substituam as ‘mentiras’ europeias
com uma verdade pura e inquestionável, mas propõem ‘contraverdades’(...)
informadas por uma perspectiva anticolonialista, recuperando e reforçando
os eventos do passado em um amplo projeto de remapeamento e
renomeação. (SHOHAT; STAM, 2006, p. 358)
Stam (2011) também nos explica que Glauber defendia um cinema onde predominasse
a liberdade, que pudesse desconstruir o gosto pela estética comercial hollywoodiana. “O novo
cinema, para Glauber, deveria ainda ser tecnicamente imperfeito, dramaticamente dissonante,
poeticamente rebelde e sociologicamente impreciso” (STAM, 2011, p.116).
Assim, o cinema assume um cunho militante e por meio dele seria possível contribuir
para que o país se libertasse da dominação ideológica do Primeiro Mundo. Glauber também
era defensor de uma abordagem que protegesse os jovens diretores contra os métodos de
produção hierarquizados e padronizados da indústria cinematográfica, o que Glauber definiria
como o “sistema”. Assim, em certo ponto, o cineasta brasileiro defendia a “política do autor”
francesa. A diferença é que o movimento europeu tratava o cineasta como um sujeito
individualmente soberano, enquanto Glauber acreditava em uma abordagem que
“nacionalizava” o autor, porta-voz não de uma estética individual, mas sim de um povo, uma
nação, com um papel social representante (STAM, 2011, idem).
Por sua vez, os argentinos Octavio Getino e Fernando Solanas denunciaram no
manifesto “Towards a Third Cinema” o colonialismo cultural que dominava as obras latinoamericanas que, segundo eles, operava até mesmo na linguagem cinematográfica, o que
levava à adoção de formas ideológicas inerentes à estética dominante. Solanas e Getino
23
criaram um sistema que distinguia o “primeiro cinema” (Hollywood); o “segundo cinema” (os
filmes de arte); e um “terceiro cinema”, (marcado pela presença de filmes militantes). Como
explica Robert Stam (2011), Solanas e Getino defendiam a “dissolução da estética no interior
da vida da sociedade”. Acreditavam também que o espectador deveria sair da sua área de
conforto e tornar-se um construtor ativo e protagonista de sua própria história (STAM, 2011,
p.116).
O termo “Terceiro Mundo” foi eficaz ao chamar atenção para a produção
cinematográfica da Ásia, África e América Latina e até mesmo de produções independentes e
militantes do chamado Primeiro Mundo. Assim, nesse sentido, como esclarece Robert Stam
(2011), alguns cineastas como Roy Armes definem o “cinema do Terceiro Mundo” de
maneira ampla, como o conjunto de filmes produzidos nos países do Terceiro Mundo e até
mesmo aqueles realizados antes da própria idéia do cinema de Terceiro Mundo ascender no
círculo cinematográfico, mas que já apresentavam a ideologia e a estética terceiro-mundista.
Outros, como Paul Willemen, preferem usar o termo “Terceiro Cinema”, o que
compreenderia um conjunto de filmes que aderiram a um programa político e estético, fossem
eles produzidos ou não nos países do Terceiro Mundo. Enquanto isso, Solanas e Getino
definem como “um cinema que reconhece na luta anti-imperialista” uma forma de
manifestação cultural e artística, em suma, uma forma de “descolonizar a cultura” (STAM,
2011, p. 120).
Os cineastas terceiro-mundistas conscientes das questões que envolviam os preceitos
por ele defendidos desenvolveram uma continuada problemática, uma série de indagações
inter-relacionadas e recorrentes que recebiam respostas a mais diferentes. Dentre esses
questionamentos, Robert Stam (2011) destaca:
Como o cinema pode melhor expressar as preocupações nacionais? Que
áreas da experiência social eram negligenciadas pelo cinema?(...) Qual o
papel do produtor independente? Qual o papel do autor e da abordagem
autoral no Cinema de Terceiro Mundo? (STAM, 2011, p.121)
Stam segue e completa com questões que envolviam a “representação das mazelas do
povo”:
Qual a relação entre os cineastas do Terceiro Mundo (em sua maior parte
intelectuais de classe média) e o “povo” que pretendiam representar?
Deveriam ser uma vanguarda cultural falando pelo povo por procuração?
Deveriam ser os porta-vozes celebratórios da cultura popular ou os críticos
cruéis de suas alienações. (STAM, 2011, idem)
Nesse mesmo sentido, a brasileira Ivana Bentes (2007) divide os questionamentos ao
modo de produção terceiro-mundista em dois grupos: as questões de ordem ética e questões
24
de cunho estético. As primeiras dizem respeito a “como mostrar o sofrimento, como
representar os territórios de pobreza (...), sem cair no folclore, no paternalismo, ou num
humanismo conformista e piegas?”. Em relação às questões estéticas, a pesquisadora afirma:
(...) como criar um novo modo de expressão, compreensão e representação
dos fenômenos ligados aos territórios da pobreza, do sertão e da favela, dos
seus personagens e dramas? Como levar esteticamente, o espectador
“compreender” e experimentar a radicalidade da fome e dos efeitos da
pobreza e da exclusão, dentro ou fora da América Latina? (BENTES, 2007,
p. 244)
Seguindo com a mesma linha de pensamento, Bentes (2007) acaba concluindo que o
cineasta Glauber Rocha responde a essas questões propondo um pensamento que abarca,
simultaneamente, fundamentos de ordem política, estética e ética:
Glauber propõe uma “Estética da Violência”, capaz de criar um intolerável e
um insuportável diante dessas imagens. Não se trata da violência estetizada
ou explícita do cinema de ação. Mas uma carga de violência simbólica, que
instaura o transe e a crise em todos os níveis. (BENTES, 2007, idem)
1.3.1 Estética da fome
Em 1965, os diretores do cinema novo brasileiro defenderam o que Glauber Rocha,
em seu famoso manifesto, chamou de “estética da fome”. Glauber rejeitava o luxo e a pompa
presentes no cinema comercial e construiu, como dizem Shohat e Stam (2006), “alegorias de
subdesenvolvimento” cinematográficas.
A ideia foi transformar a debilidade estratégica – a falta de infraestrutura, de
recursos e de equipamento – em uma força tática, convertendo a pobre em
um símbolo de honra e escassez, como assinala Ismail Xavier, em um
“significante”. A expectativa era poder dar expressão a temas nacionais em
um estilo nacional. (STAM, 2011, p. 120)
O cinema novo, ao buscar uma linguagem apropriada para as condições precárias de
um país como o Brasil, capaz de transmitir uma visão construtiva e desalienante da
experiência social, subverteu as hierarquias burocráticas da produção convencional. Além
disso, as precárias condições de trabalho (baixos orçamentos, taxas de importação de
equipamentos e elevados custos de produção), bem diferentes daquelas presentes no dito
cinema de Primeiro Mundo e um mercado limitado e menos rico, criaram o cenário para um
25
novo modo de produção cinematográfica, independente e transgressor. (STAM; SHOHAT,
2006, p. 368)
Assim, nas palavras do próprio Glauber Rocha:
De Aruanda a Vidas secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou,
discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra,
personagens comendo raízes, personagens roubando para comer,
personagens matando para comer, personagens sujas, feias, descarnadas,
morando em casas sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que
identificou o cinema novo com o miserabilismo tão condenado pelo
Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais, pelos produtores
e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria.
(...) Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos
apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de
uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos
e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria
incivilização. (ROCHA, 1965, p.3-4)
Essas diferenças nos modos de produção, inevitavelmente, se refletiam tanto na
ideologia como na estética dos filmes. A “fome” caracterizava não apenas o tema e a estética
de filmes como Vidas secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, mas também seus
métodos de produção. O filme de Nelson custou 25 mil dólares e a improvisação de
equipamentos no set de filmagem era algo corriqueiro. A mais marcante delas foi uma luz
“inventada” pelo diretor de fotografia, Luiz Carlos Barreto, para substituir um potente refletor
de 20 mil watts que custava uma verdadeira fortuna (STAM; SHOHAT, 2006, p. 370-371).
A pesquisadora Ivana Bentes, analisando filmes contemporâneos como Cidade de
Deus e Central do Brasil, traz algumas considerações sobre a “Estética da Fome”. Para ela,
agora o sertão brasileiro é representado pela favela e se torna um espetáculo por meio da
glamourização das suas histórias e dos seus personagens, algo pronto a ser consumido por
qualquer audiência. Passando, assim, da “Estética da Fome” à “Cosmética da Fome”
(BENTES, 2007, p.244-245). Bentes segue afirmando que os personagens que habitam esse
“novo sertão” são retratados de forma débil, pois são indivíduos inertes, incapazes de reagir
ao contexto de violência no qual estão inseridos.
Em grandes linhas poderíamos colocar de um lado o cinema da
romantização da miséria e sua contrapartida, a “pedagogia da violência”, que
marca alguns filmes do Cinema Novo, até chegarmos ao contexto
contemporâneo, em que a violência e a miséria são pontos de partida para
uma situação de impotência e perplexidade e a imagem das favelas é
pensada no contexto da globalização e da cultura de massas. (BENTES,
2007, p. 247)
26
Ainda nesse sentido, Bentes (2007) afirma que os filmes brasileiros contemporâneos
retratam, com um certo orgulho, fascínio e falta de contextualização, a miséria e a violência
presentes na favela. Para ela, poucos são filmes que relacionam a violência presente nas
periferias com a classe média, ocasionando o que ela chama de uma “violência randômica,
destituída de sentido” que marca a produção audiovisual contemporânea.
Nos anos 1990, o cinema de ficção apresenta raros cenários de reconciliação
ou integração entre a favela e o restante da cidade, o contexto é o confronto
ou a cumplicidade apenas no crime, cada vez mais explícito. Também está
ausente qualquer discurso político explicativo da miséria e da violência,
como nos filmes sobre a favela dos anos 1960. É através de imagens
violentas que os novos marginalizados ferem e violentam o mundo que os
rejeitou, é através das imagens que são demonizados pela mídia, mas
também é pela imagem que se apropriam da mídia e de seus recursos,
sedução, glamourização, performance, espetáculo, para existirem
socialmente. (BENTES, 2007, p. 249)
27
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O NARRADOR
2.1 O conceito de narração/narrador
Vanoye e Goliot-Lété (2011), partindo dos ensinamentos de Marc Vernet, definem a
narração como o “ato narrativo produtor e, por extensão, ao conjunto da situação real ou
fictícia na qual ocorre”. Os autores afirmam também que a narração diz respeito às relações
que existem entre o enunciado (representado pelo “eu”) e a enunciação (distribuição da
linguagem entre o “eu” e o “outro”). Assim, se valendo mais uma vez dos pensamentos de
Vernet e agora também de Metz, Vanoye e Goliot-Lété (2011, p.39) afirmam: “é dentro do
texto que se encontram os indícios da enunciação desse texto. Evitemos procurar fora do texto
algum enunciador ou narrador, responsável pela produção do texto”.
Para o brasileiro André Parente (2005, p.260), para que a narração ocorra “é preciso
que o destinatário leia ou escute os enunciados e veja as imagens” da mesma forma que ele
entende o mundo “representado”. Assim, Parente resume o seu pensamento: “(...) é
precisamente porque o destinatário pode aceder, por meio dos enunciados e das imagens, ao
acontecimento, ao movimento de pensamento da consciência do doador, que este último pode
lhe comunicar algo que imaginou ou viveu” (PARENTE, 2005, idem).
Nesse sentido, as ideias de Parente parecem encontrar abrigo nos pensamentos do
célebre Walter Benjamim (1987). Para o pensador alemão a narração está relacionada com a
“faculdade de intercambiar experiências”. Assim, completando o raciocínio: “a experiência
que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores” (1987, p.198).
Dessa forma, a pessoa responsável por transmitir essa “experiência” é caracterizada por
Benjamim (1987, p.197) como um “observador localizado numa distância apropriada e num
ângulo favorável”.
Outro viés que envolve o “intercâmbio de experiências” proposto por Benjamim é o seu
caráter utilitário, ou seja, a narração assume um papel prático na vida das pessoas.
Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em
si, às vezes de forma latente uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode
consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num
provérbio ou numa norma de vida (...). (BENJAMIM, 1987, p.199)
Benjamim segue e nos explica que o narrador é alguém que dá conselhos e esse
aconselhamento está relacionado ao processo de continuação de uma história que é narrada. E
28
esse processo de dar continuidades às tramas narradas é feito pelo narrador por meio de “sua
própria experiência ou a relatada pelo outros (1987, p.200)”. Benjamim (1987) também faz
uma diferenciação entre a informação e narração. A primeira está relacionada aos fatos que já
nos chegam repletos de explicações e compreensões e quem aspiram “a uma verificação
imediata”. Por outro lado, a narração está relacionada a “arte de evitar explicações”, além
disso, o processo narrativo tem a capacidade de “conservar suas forças” e mesmo depois de
muito tempo ele ainda é capaz de desenvolver uma história. Para explicar esse processo de
preservação da narração, Benjamim (1987) nos diz:
O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o
contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para
interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma
amplitude que não existe na informação. (BENJAMIM, 1987, p. 201)
Sobre esse processo de relação psicológica entre o narrador e ouvinte, Benjamim
também nos ensina que “quanto maior a naturalidade” com que narrador age, mais facilmente
a “história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua
própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia”
(BENJAMIM, 1987, p.202). Ainda nesse sentido, Benjamim (idem), nos traz a seguinte lição:
“Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é
ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que
adquire espontaneamente o dom de narrá-las”.
2.2 O narrador e a narração no cinema
David Bordwell (2005b) nos explica que o filme clássico hollywoodiano traz em sua
narrativa personagens bem definidos, esses indivíduos têm um função bem clara na trama:
“resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos”. Ainda nesse sentido, ele
nos diz: “Nessa busca, os personagens entram em conflito com outros personagens ou com
[5] Comentário: : Onde terminam as
aspas?
circunstâncias externas” (BORDWELL, 2005b, p. 279). Bordwell segue e explica que o
[6] Comentário: : Aqui mesmo,
Karina.
principal agente causal da trama é o personagem que, segundo ele, é “dotado de um conjunto
evidente e consistente de traços, qualidades e comportamentos”. E é esse indivíduo mais
“especificado” que se torna o principal objetivo de identificação do público e não apenas isso,
o cinema pode ser concebido como um veículo de representações da própria sociedade, e essa
29
dimensão antropológica opera-se por meio das ações do personagem: “a tipologia de um
personagem ou de uma série de personagens pode ser considerada representativa não apenas
de um período do cinema como também de um período da sociedade” (VERNET, 1995,
p.98).
Esse tipo de personagem que serve como modelo na narrativa pode ser comparado ao
que Aumont (2011, p.84) chama de esquema: “estrutura relativamente simples” que faz com
que o espectador se familiarize com a imagem. Assim, enquanto instrumento de
rememoração, o esquema deve possuir um esquema que facilite o entendimento, de forma até
mesmo didática. E assim como um certo tipo de personagem reflete determinados períodos da
sociedade, as formas esquemáticas são adaptadas na medida em que é usada e também “à
medida que novos conhecimentos são produzidos e os tornam inadaptados” (AUMONT,
idem).
E esse efeito representativo que extrapola o campo cinematográfico pode ser explicado
pela diegese que, segundo Vernet (1995,p.114), seria a ficção produtora de “algo mais amplo
que a história, que ela acaba englobando: é também tudo o que a história evoca ou provoca
para o espectador.” Nesse sentido, Vernet segue e nos traz aquilo que ele chama de universo
diegético, que compreende a série de ações, o contexto, assim como os sentimentos e
motivações existentes.
Esse universo diegético tem um estatuto ambíguo: é, ao mesmo tempo, o que
gera a história e aquilo sobre o ela se apóia, aquilo ao qual ela remete (é por
isso que dizemos que a diegese é “mais ampla” do que a história). Qualquer
história particular cria seu próprio universo diegético, mas, ao contrário, o
universo diegético (delimitado e criado pelas histórias anteriores – como é o
caso em um gênero) ajuda a constituição e a compreensão da história.
(VERNET, 1995, p.115)
Nesse contexto diegético, podemos trazer algumas considerações de Jacques Aumont
(2011) sobre a imagem e o espectador. Aumont (2011, p.87) afirma que a percepção visual do
espectador é marcada por um sistema de expectativas, no qual o indivíduo compara o que é
visto com o que está presente na sua memória, o que exige um conhecimento prévio do
mundo e das imagens. Dessa forma, o espectador supre o que não é representado, visto que “a
imagem nunca pode representar tudo”.
30
3. O GÊNERO NO CINEMA
3.1 Considerações iniciais
Como preceitua Nogueira (2010, p.8), o gênero como ferramenta de análise utilizada
pelo acadêmico serve como ponto de partida para sua própria reflexão. Assim, de certa forma,
as “convenções do gênero servem como quadro de referência”, permitindo que se verifique o
grau de conformidade ou desvio em relação ao patrimônio que regula ou delimita determinado
gênero. Desse modo:
Estudar um filme poderá (ou deverá mesmo) passar pela identificação do
gênero ou dos gêneros a que pertence, uma vez que dificilmente a
compreensão, a interpretação ou a explicação de uma obra podem ignorar a
sua genealogia e a sua família artística. (NOGUEIRA, idem)
Nogueira (2010a, p.8) também que o crítico utiliza o gênero como uma espécie de
pêndulo que regula o seu discurso e tem como função “confrontar, avaliar e julgar cada obra
em relação às restantes”. No entanto, vale afirmar, que assim como o gênero serve como
parâmetro de análise, é imprescindível que o crítico tenha sempre em mente a existência de
um “imperialismo” nos ditames, até certo ponto impostos, pelo gênero, assim como preceitua
Tudor (2009, p.135).
3.2 Noções gerais
Andrew Tudor nos explica que a ideia de gênero é um conceito que o cinema pega
emprestado da critica literária, por esse motivo “significado e as utilizações dos termos
variam consideravelmente” (2009, p.134). Assim, a literatura está cheia de referências ao
western, às fitas de gangster, “sendo todos eles considerados uma forma bastante vaga como
genre”, assim, Tudor (2009) afirma que em determinados casos torna-se quase o objetivo final
do processo crítico encaixar um filme numa categoria. Dessa forma, de um modo geral, podese dizer que ao classificar uma produção como Velho Oeste é inseri-lo numa classe de filmes
gerais, sobre a qual já possuímos certo conhecimento.
Dizer que um filme é um western é dizer de imediato que ele partilha um
“X” indefinível qualquer com outros filmes a que chamamos de westerns.
Além disso, fornece-nos um corpus de filmes ao qual se pode comparar
utilmente o nosso filme; as vezes o único conjunto de filmes. (TUDOR,
2009, p.135)
31
Entretanto, o próprio Tudor (idem) faz uma crítica ao que ele chama de “imperialismo
extremo do gênero”, que, segundo ele, só permitiria compararmos uma fita de terror a uma do
mesmo tipo; não que tal comparação fosse inútil, porem, esse viés extremista da noção de
gênero acaba por tornar o trabalho de análise arbitrário.
A respeito dessa questão, Buscombe (2005, p.305), se valendo do estudo de literatura
proposto por Aristóteles, explica que apesar do gênero literário ser algo restritivo, não há
necessidade para isso, pois a intenção do filósofo estava no campo da descrição e não da
prescrição.
Não é preciso erguer um ideal platônico, ao qual todos os exemplos
individuais tentem, em vão, aspirar. Também não é necessário afirmar que
quanto mais um filme chegar a incorporar todos os diferentes elementos da
definição, mais plenamente será um western, um filme de gangster ou um
musical. (BUSCOMBE, idem)
Nesse mesmo sentido, Nogueira (2010, p.3) ressalta que os limites e as características
determinadas pelo gênero estão em constante mutação e hibridização, “o que torna difícil
atingir um consenso definitivo sobre os critérios e as fronteiras que permitem identificar
balizar cada genero”.
Além do caráter restritivo, a questão do gênero enfrenta outro problema. Como definir
se determinado filme é um western, por exemplo, baseando-se na análise de um conjunto de
filmes que não podem de forma alguma ser considerados westerns antes da análise (TUDOR,
2009, p. 138). Debruçar-se sobre um gênero como o filme de Velho Oeste, observá-lo e anotar
suas características é supor que temos que isolar o conjunto de obras que são westerns.
Todavia, só podemos fazer esse isolamento baseado nas características principais que só
podem ser descobertas a partir dos próprios filmes depois de terem sido isolados.
Assim, acabamos envolvidos num círculo: primeiro a obra deve ser isolada, para isso é
necessário um critério, mas também é preciso que o critério seja oriundo das características
comuns dos filmes estabelecidos de modo empírico. Como solução para esse “dilema cíclico”
da utilização do gênero, Tudor propõe duas possibilidades:
Uma é classificar os filmes segundo critérios escolhidos a priori dependendo
das finalidades criticas (...). A segunda é apoiar-se num consenso cultural
comum sobre aquilo que constitui um western e depois analisá-lo
detalhadamente. (2009, p.138)
Na segunda opção, afirma Tudor, reside a raiz da maioria das utilizações do gênero. E
é justamente nesse consenso que surgem as “convenções num gênero”. Desse modo, fala-se
que um western tem determinados tipos de tiroteios, os caubóis usam determinado tipo de
32
chapéu, certos tipos de vilões estão presentes e as cores do vestuário delimitam quem é bom
ou mau.
Todas essas características imagéticas resultam em um processo em que “o filme
‘converte’ as imagens à sua linguagem convencional própria” (Tudor, 2009, p.139). A
respeito disso, Buscombe (2005, p.312) diz que “as principais características de definição de
um gênero serão visuais: armas, carros e vestimentas nos filmes de gângster; vestimentas e
coreografias nos musicais; castelos, caixões e presos em filmes de terror”.
Por sua vez, Neale (2000, p.14) diz que as representações simbólicas (iconografias)
assumem um papel de significação dentro de um filme. Assim, “It should be noted that
‘iconography’ here tends to mean the objects, events and figures in films, as well as their
identification and description8”.
Nesse contexto da representação pela imagem9, Tudor (2009, p.139) resume a noção
de gênero como algo que busca sentido em um conjunto de significados estabelecidos
culturalmente. Pois ao vermos determinado filme, como um western, por exemplo, temos a
capacidade de reconhecê-lo. Desse modo, quando o crítico diz que um filme pertence a tal
gênero, ele está afirmando que a obra pertence a uma determinada classe, que tem em comum
diversos fatores. Estará, dessa forma, sugerindo também que este mesmo filme seria
universalmente reconhecido como tal na nossa cultura.
Por outras palavras, os factores cruciais que distinguem um genre não são só
características intrínsecas aos próprios filmes; dependem também da cultura
particular no qual estamos a operar. E a não ser que haja um consenso
mundial sobre o assunto (o que é uma questão empírica), não há bases para
partir do principio de que um western será concebido da mesma maneira em
todas as culturas. (TUDOR, 2009, p.140)
Altman citado por Neal (ALTMAN apud NEAL 2000, p. 27) faz uma ressalva
importante, a de que nem todos os filmes envolvem conhecimentos genéricos dos
espectadores da mesma forma e da mesma medida, ou seja, “While some films simply borrow
devices from established genres, others foreground their generic characteristics to the point
where the genre concept itself plays a major role in the film10”.
8
Deve notar-se que 'iconografia' aqui tende a significar os objetos, eventos e figuras nos filmes, assim como a
sua identificação e descrição.
9
Aumont (2011, p.84) explica que a imagem possui função psicológica de rememorar o espectador, para isso faz
o uso de estruturas simples, que assumem o papel de ensinar, a exemplo de figuras iconográficas com motivos
religiosos. Por estar altamente ligado à cognição, esse esquema é experimentável e marcado por sua capacidade
de ser atualizado e alterado a medida que é disseminado em determinado contexto.
10
Enquanto alguns filmes simplesmente emprestam dispositivos de gêneros estabelecidos, outros inovam em
suas características genéricas ao ponto em que o próprio conceito de gênero desempenha um papel importante no
filme.
33
Com uma definição semelhante de Tudor, Nogueira (2010a, p.4) afirma que quando
existe um esquema que permite reconhecer um padrão recorrente num grande numero de
obras, o gênero ganha uma dimensão crítica, ou seja, um elevado número de qualidades é
partilhado por uma quantidade considerável de filmes. “A partir daí o género torna-se uma
instituição culturalmente relevante – mesmo se o futuro lhe augurara, com certeza, mutações e
hibridações”. (NOGUEIRA, idem)
3.3 O gênero policial
O cerne das discussões e definições sobre o que seria gênero policial também encontra
abrigo nos estudos literários e não por menos as discussões sobre o tema, de um modo geral,
têm como ponto de partida o campo das letras. Por outro lado, também é preciso considerar
um contexto envolto em outras áreas, como defende Almeida (2002, p.81), para o qual as
narrativas policiais envolvem “uma mutação das condições de produção, pelo surgimento da
grande imprensa e de um público popular” (idem). Dessa forma, Almeida (2002, p.81) afirma
que o gênero policial engloba “uma mutação cultural mais global”.
Nesse contexto, o autor (2002, p.82) afirma que a narrativa policial não teve uma
origem única e circunscrita. Sua configuração foi fruto de um “caldo de cultura” que se
formou a partir de 1850. Elementos do raciocínio lógico, a criação de um aparelho policial
com bases científicas, a cidade e toda a problemática que a envolve (pobreza, violência,
corrupção), a questão do crime e da intriga, serviram para fomentar (e como pano de fundo) o
desenvolvimento das histórias de “crime e polícia”. “As convenções inerentes a esse tipo de
narrativa destinaram o gênero a desenvolver-se no interior do romance popular e de suas
condições de produção” (ALMEIDA, idem).
Pelo seu contexto intercultural, o gênero policial multiplica-se em variadas formas e
sua matriz narrativa modifica-se incessantemente, perdendo cada vez mais sua
homogeneidade, o que implica, segundo Almeida (2002, p. 88), em significativos problemas
de classificação. Assim, entre as diversas tipologias, surge uma acepção que opõe duas
definições clássicas: a do romance de enigma e o roman noir norte-americano.
Dessa forma Todorov apud Almeida (2002, p. 88) mostra que o primeiro tem por base
a dualidade, ou seja, a existência de duas histórias, a do crime e a do inquérito. E essas
narrativas ocorrem paralelas e nem se misturam, visto que suas funções são distintas, pois no
34
“crime” vemos tratados os aspectos particulares de cada personagem e no “inquérito” o autor
(narrador) sistematiza e explica como se desenvolve a história.
Em contraponto, o roman noir “funde as histórias, a narrativa coincide com a ação”
(Almeida, 2002, p. 89) destacando-se assim duas formas de prender o interesse sobre a obra: a
curiosidade, que procura estabelecer o caminho que leva do efeito à causa, e o suspense, que
percorre o sentido inverso, da causa ao efeito. Disso, também surge um deslocamento do foco
narrativo e esse passa a ser mais pessoal, “em geral a história é relatada pelo próprio detetive,
em contraposição à narrativa em terceira pessoa, mais distanciada, do romance de enigma”.
Almeida (2002, p. 89-90) também nos explica que a coincidência entre narração e
ação traz duas consequências importantes; a primeira diz: “o leitor compartilha com o
narrador- protagonista uma mesma situação de dúvida e de possibilidade engano, já que não
há nenhuma verdade posterior que possa servir de ponto de partida retrospectivo”, enquanto a
segunda, ressalta uma outra diferença em relação ao romance de enigma: “não há garantia de
imunidade física para o detetive no roman noir – ser surrado ou mesmo morrer, faz parte da
profissão”.
Segundo Freire (2011, p. 354), a historiografia do cinema noir afirma que esse
gênero
11
surgiu em Hollywood da síntese entre literatura policial norte-americana de autores
como Raymond Chandler e Dashiel Hammett com o expressionismo alemão, estando
associado a determinadas características narrativas e visuais presentes e que englobam o
período de1941 a 1958.
Dentre os elementos principais do filme noir estariam o uso constante de
flashbacks e narração em voz over em primeira pessoas, a presença de
detetives particulares e femmes fatales em cenários essencialmente urbanos
(hotéis,escritórios baratos, ruas escuras e molhadas pela chuva, lanchonetes e
bares impessoais e com letreiros de neon nas fachadas), e o apelo à
fotografia “expressionista” preto-e-branco de alto contraste, jogos de sombra
e ângulos inusitados. (FREIRE, idem)
Os motivos do florescimento do cinema noir, ou cinema negro12 como também é
chamado nos EUA, de acordo com Freire (2011), seriam os mais variados. Dentre eles,
11
A classificação de noir como gênero é motivo de polêmica como salienta Freire (2011, p.354), uma vez que
esse tipo de filme seria um “anti-filme de genero”, por suas características peculiares, ousadas e sofisticadas.
Entretanto, pela importância da discussão em especial no tocante aa relação com a literatura policial e também
da presença de temas como corrupção e criminalidade urbana nos filmes tidos como noir, optou-se por abarcar o
tema nesta discussão.
12
Almeida (2007, p139) explica que o cinema negro se caracteriza basicamente pela presença de três elementos
centrais, a despeito de muito outros periféricos: uma relação dialética com o presente da sociedade no qual ele
35
estariam as contingências econômicas no começo da década de 40, ocasionadas pela Segunda
Guerra Mundial, o que causou a redução no número de negativos utilizados e até mesmo na
menor quantidade de luzes nos cenários, resultando assim em filmes mal iluminados. Esse
contexto de escassez de recursos também resultou em um maior apelo às fontes literárias,
porém como menos obras impressas, devido à escassez do papel, o estúdios passaram a
recorrer às revistas pulp13 editadas no período antes da Guerra, cujos autores estavam
acostumados a escrever sob encomenda e com prazos curtos.
Além disso, como diz Freire (2011, p. 355), o filme noir pode ser considerado como
um reflexo do cenário político e social dos EUA dos pós-guerra, marcado por denúncias de
corrupção de instituições públicas, aumento alarmante da criminalidade urbana e também pela
paranóia anticomunista e pelo clima de perseguição do governo MacArthur.
Afora as discussões do contexto social norte-americano, Freire (2011, p. 356) explica
que o noir representa algo novo no cinema estadunidense e segundo Borde e Chaumeton apud
Freire (idem) ele teria sido gerado durante a guerra, tendo sido síntese de três gêneros
hollywoodianos, “o filme de gângster explorado pela Warner, o horror privilegiado pela
Universal, e o filme de mistério compartilhado inicialmente pela Fox e pela Metro”
(FREIRE,2011, p. 356).
3.4 O gênero policial no Brasil
3.4.1 Breve histórico
Como bem explica Almeida (2007, p.138) a ideia de realizar um resumo da
cinematografia policial brasileira esbarra, assim como a própria definição de gênero, na
dificuldade de se definir quais filmes estariam dentro da conceituação de filme policial e quais
ultrapassariam a “fronteira” e não poderiam ser enquadrados dentro da classificação. “Essas
fronteiras são construídas e descontruídas ao longo do tempo, através da criação de um corpus
em permanente mutação, baseado no jogo de repetição e diferença”. (idem)
surge, uma raiz ligada ao expressionismo no que se refere à iluminação e às tonalidades presentes e a
ambiguidade na produção de sentido desses filmes
13
Estas publicações surgiram por volta de 1900 e eram impressas em papel de baixa qualidade. Eram dedicadas
a historias de ficção cientifica ou tidas como de baixa qualidade ou ate mesmo consideradas grotescas. As pulp
magazines eram uma fonte de entretenimento barata e sem grandes pretensões artísticas. Autores como Asimov,
Chandler e Hammett utilizaram esse tipo de revista para publicar suas historias.
36
Em relação à parte histórica, vale frisar a presença do filme policial desde os
primórdios da cinematografia brasileira. Almeida (2007, p.140) destaca o filme Os
estranguladores (1908), de Giuseppe Labanca e Antonio Leal. A película pode ser
considerada o primeiro filme policial brasileiro e retrata o assassinato de dois meninos por
uma quadrilha, no episódio que ficou conhecido como “Quadrilha da Morte”.
O jornalismo (mais especificamente o fait diver jornalístico) serviu histórias ao
incipiente cinema policial brasileiro. Assassinatos como o “crime da mala”, que no ano de
1908 renderia três filmes, assaltos e roubos (Um crime sensacional,1913), biografia de
criminosos (Dioguinho, 1916) e crimes envolvendo a classe média (O crime de cravinhos,
1920) ganharam a grande tela (ALMEIDA, 2007, p.140).
A respeito dessa relação cinema e imprensa (em especial a notícia de folhetim), Freire
(2011, p.165), nos traz a seguinte consideração:
(...) se sustentavam em elementos de matrizes culturais sensacionalistas
como a fascinação pelo outro monstruoso – mais meramente fantástico ou
exótico, mas o assassino que pode estar entre nós, escondido no anonimato
da grande cidade –, assim como a ênfase na sensação em excesso, na
necessidade de realmente ver ou sentir uma realidade desconhecida (ou
acelerada em mudança) transformada em espetáculo.
No fim da Segunda Guerra, a narrativa policial brasileira ganha novos tipos de
personagens, lugares, tramas: a figura do bicheiro, a favela e o tráfico de drogas, a
prostituição, histórias de chantagem, tudo isso envolvendo um novo tipo de protagonista, o
jornalista. Assim, de acordo com Nogueira a narrativa policial brasileira coloca o jornalista
como personagem importante: “Por seu intermédio, procurou compreender e representar as
mudanças operadas nos grandes centros urbanos com o advento do mundo moderno”,
(NOGUEIRA, 2009, p.1). Como principais títulos do período, Almeida (2007, p.141) destaca
Amei um bicheiro (1952), A sendo do crime (1954) e Quem matou Anabela (1956).
Após um período de jejum, as tramas policiais ressurgem na década de 60 com mais
força. Mais uma vez, a relação com o jornalismo está presente e muitas histórias saem das
manchetes e ganham um roteiro, como no caso de Assalto ao trem pagador (1962) e Cidade
ameaçada (1960). Ainda na década de 60 vale destacar O bandido da luz vermelha (1968),
vencedor de melhor filme e melhor diretor no 4º Festival Brasília do Cinema Brasileiro. O
filme dirigido por Rogério Sganzerla narra a história de Jorge, um assaltante de residências
que utiliza uma lanterna de luz vermelha para atordoar as suas vítimas. Segundo o jornalista
Fred Di Giacomo (2008), o longa apresenta uma forma “contundente de retratar o povo” e
define assim a produção: “a realidade é mais crua, a linguagem é popular, o cenário é o
37
urbano decadente, as estrelas são os bandidos, as prostitutas, os policiais e os políticos
corruptos”.
A exemplo de O bandido da luz vermelha, outras biografias de bandidos famosos
ganharam a grande tela, criando assim um novo nicho de mercado. Sete homens vivos ou
mortos (1969), Lúcio Flávio, o passageiro da Agonia (1976) e Eu matei Lúcio Flávio e
República dos assassinos (ambos de 1979) são citados por Almeida (2007, p.141) como as
principais películas da época.
Ao mesmo tempo em que certas amenizações e eufemismos na tramas são evidentes
devido à censura, a mistura de thriller policial com crítica social começa a marcar presença
nas películas, com destaque para Assalto ao trem pagador e Lúcio Flávio, O passageiro da
Agonia. A respeito de Assalto ao trem pagador, Almeida (2007,p.142) se vale das explicação
de Fernão Ramos:
A presença da imagem do povo é uma constante, assim como a análise mais
abrangente, com colorido sociológico, de situações dramáticas como o crime
cometido, sua partilha, as transformações que o assalto causou na vida dos
favelados. A temática social aparece aqui como uma das motivações centrais
da ação na história. Os favelados, aparecendo enquanto grupo explorado,
obtêm a condição necessária para a identificação positiva do espectador da
época. (RAMOS, 1998, p. 33 apud ALMEIDA, 2007,p.142)
Em relação a Lúcio Flávio, história é contada sob o ponto de vista do bandido e a
narrativa acaba “mitificando” o seu personagem principal, fazendo valer, como explica
Almeida (2007, p.142) o refrão popular da época “seja herói, seja marginal”, ou nas palavras
de Ortiz Ramos:
Montava uma história estruturada com personagens que já conhecemos: o
herói, a princesa, os antagonistas (policiais corruptos e transgressores da lei),
o velho protetor do herói que inclusive dá a ele um objeto mágico, no caso,
um colar de umbanda. As ambientações também eram ficcionalmente
atrativas, os espaços bem selecionados. (ORTIZ RAMOS, 1995, p. 179-180
apud ALMEIDA, 2007, p. 142-143)
3.4.2 Cinema policial brasileiro e a crítica social
A característica que mais salta aos olhos na cinematografia nacional a partir do fim da
década de 60 é a predominância de cenários marcados pela vida urbana, gerando assim uma
capacidade de agregar diversos elementos presentes no cotidiano das grandes cidades ou
38
como Almeida (2007, p. 145) diz, “incorporar signos culturais brasileiros” como o carnaval, a
música popular, bem como os problemas sociais afligem os centro urbanos, em especial Rio
de Janeiro e São Paulo.
Vemos que esses filmes policiais retrabalham o gênero no interior do
processo cultural brasileiro. Há todo um desejo da sua utilização para
conseguir cativar o espectador, o que leva também a matrizes do cinema
americano, como a elementos presentes na memória popular e de massa
nacional. Mas também tem agido ativamente o peso da tradição crítica do
intelectual-jornalista, revivida no contexto dos anos 70, quando o aspecto de
“missão” da profissão e o mercado se articulam de uma forma particular
“Mocinhos” e “bandidos” não conseguem se realizar plenamente, a ficção
não deslancha com desenvoltura segundo os moldes dos estereótipos
“clássicos”, e vemos projetadas nas telas personagens e filmes que carregam
inevitáveis hibridismos e ambiguidades. (ORTIZ RAMOS, 1995, p. 189
apud ALMEIDA, 2007, p. 146)
A respeito desse envolvimento do filme policial com elementos sociológicos, Soares
(2005, p. 12) explica que ao expor os problemas do cotidiano, o cinema policial brasileiro
trouxe ênfase ao “caráter excludente e desigual das relações humanas”, oferecendo assim a
possibilidade de discussão e o “reconhecimento como intrínseco à vida social”, o que segundo
a autora reforça ainda mais seu caráter multicultural.
Ainda que tais filmes não proponham soluções para os problemas do país, as
vidas dos personagens ali retratados (sejam fato ou fabulação) servem como
passagens para o estabelecimento de outros laços sociais (outros discursos).
(idem)
O aumento da violência a partir dos anos 8014 e o surgimento do traficante15 de drogas
como figura de comando dos morros e periferias, além do número cada vez maior das
coberturas jornalísticas (em especial na TV) sobre crimes, faz surgir mais um filão para esse
cinema atento aos problemas sociais: os filmes de favela16. Esse comércio ilegal de drogas é
crucial na construção do contexto social nas comunidades carentes, pois ao mesmo tempo em
que existe a presença de homens “fortemente armados” e capazes de realizar atos de
14
Para ilustrar esse quadro da violência urbana em especial nas duas grandes metrópoles brasileiras, Muniz
Sodré (2002, p.13) cita o número de 5.736 homicídios ocorridos na região da Grande São Paulo (1989),
concentrados na periferia. Em relação ao Rio de Janeiro, o estudioso afirma que 43.601 foram assassinadas
durante toda a década de 80.
15
Aliadas aos traficantes do asfalto – por sua vez vinculados a redes internacionais – as pequenas organizações
de comércio de drogas locais formam verdadeiros “Estados paralelos” no nível das massas pobres urbanas
(SODRÉ, 2002, p. 65).
16
Filmes como A voz do carnaval (1932), Favela dos meus amores (1935) e Orfeu do carnaval (1959) já
traziam a favela como cenário e retratavam o cotidiano daquela localidade. Entretanto, essas produções
glamourizavam e estetizavam a pobreza e a criminalidade presentes na periferia (BENTES, 2007). Desse modo
a representação da favela presentes nessas obras era a de berço da boêmia, local de surgimento do samba e do
carnaval, lugar onde o criminoso é apenas um trabalhador com um emprego fora do comum.
39
crueldade, também é possível afirmar que o traficante17 exerce “uma espécie de proteção e
exercendo uma função social” (ROCHA; MARQUES, 2010, p.94).
Na opinião de Hamburguer (2007, p. 114), essa nova exposição da periferia brasileira
(sobretudo a dos morros cariocas) serve para evidenciar a presença de cidadão negros, pobres
e marginalizados no discurso do cinema nacional, pois segundo a pesquisadora:
Ao trazer esse universo à atenção pública, esses filmes intensificaram e
estimularam o chamo de disputa pelo controle da visualidade, pela definição
de assuntos e personagens ganharão expressão audiovisual, como e onde,
elemento estratégico da definição da ordem, e/ou da desordem,
contemporânea. (grifo original) (idem)
Ou nas palavras Nogueira (2009, p. 9):
O “espetáculo” diante das câmeras torna-se a própria notícia: os gestos
efusivos, a respiração ofegante e a narração em ritmo de suspense ganham
relevância em detrimento do fato (...) O que sobressai é a exaltação da
velocidade e do espetáculo proporcionado pelo telejornalismo. (grifo
original)
Filmes como Pixote, a lei do mais fraco (1980, Hector Babenco) abordaram o
universo corrupto e discriminatório das instituições policiais. Na trama, situada em São Paulo,
um adolescente é morto por guardas de um reformatório. Cansados dos castigos físicos
sofridos na instituição, um grupo de internos inicia uma rebelião e consegue fugir do cárcere.
Dentre os fugitivos, está o menino Pixote, que após a fuga passa a praticar crimes e chega ao
Rio de Janeiro, onde vai negociar um carregamento de cocaína.
(...) a pobreza aparece à clientela dessas instituições. A mídia que emergia na
época como elemento recém-enraizado na sociedade brasileira, aparece
como cúmplice das versões oficiais que acobertam a ação corrupta e
discriminatória das instituições disciplinadoras como cadeias, delegacias,
polícias. (HAMBURGUER, 2007, p.120)
As produções do chamado “Cinema de Retomada”
18
auxiliam na consolidação da
favela como cenário para as histórias que ganham a grande tela. Como um dos destaques
desse período podemos citar Como nascem os anjos (1996), produção que narra a história de
17
A figura do traficante organizado, com habilidades em guerra urbana e capacidade de manusear fuzis e
metralhadoras surge nos cárceres do período militar, quando esse tipo criminoso era trancafiado com
guerrilheiros e demais opositores do governo (SANTOS, 1997 apud ROCHA;MARQUES, 2010, p.94).
18
Com o país ainda às sombras da ditadura, o presidente Collor extingue instituições de fomento ao cinema
como a Embracine e a Concine, além dos projetos de financiamento público, o que reduz drasticamente o
número de produções nacionais. Para se ter uma ideia, em 1992 apenas um filme brasileiro chegou às salas de
cinema, A grande arte, de Walter Salles. Somente com saída de Collor, é que a situação tomou novos rumos. O
novo presidente, Itamar Franco cria a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual, que passou a liberar
recursos para produção de filmes. Já em 1995, com FHC, surgem dois importantes mecanismos que dão pontapé
para retomada do cinema brasileiro: a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual.
40
Maguila, que mata por engano o chefe do tráfico no morro Dona Marta. Na fuga da favela, o
personagem principal acaba por fazer refém uma família de norte-americanos, moradores do
bairro do Botafogo, vizinho da comunidade. O longa ganhou o prêmio da crítica e especial do
júri, além de melhor direção, fotografia e montagem no Festival de Gramado.
Porém, a produção policial que causou mais polêmica nos anos 90 foi Notícias de uma
guerra particular (1999), de João Moreira Salles. O documentário feito com base em imagens
de um telejornal da Rede Manchete exibe cenas de tiroteios, intercaladas com depoimentos
que contrastam “com sensibilidade perturbadora três perspectivas sobre a violência que tomou
conta do cotidiano do morro: a dos policiais, a dos traficantes e a dos moradores”
Hamburguer (2007, p. 121). O título da produção foi retirado da fala de um dos policiais
militares, o capitão do Bope Rodrigo Pimentel19.
Em 2002, é a vez da história real de um sequestrador ganhar representação nas telas de
cinema. Ônibus 174, de José Padilha, “revela a performance para as câmeras”
(HAMBURGUER, 2007, p. 121), de Sandro Nascimento, que naquele momento mantinha um
grupo reféns sob a mira de um revólver. O sequestro teve um desfecho trágico: a professora
Geisa Firmo foi morta ao vivo, com quatro tiros, em meio a uma plateia formada por uma
multidão presente na rua e também por outros milhares que assistiam aos telejornais. Assim,
temos um cenário de exploração midiática e espetacularização da violência, tema esse, que
ganha força da imagens e do som proporcionada pelo audiovisual.
A emoção é um elemento recorrentemente utilizado na constituição da
informação-espetáculo, pois cria um laço afetivo entre o telespectador e a
notícia. Imagens e discursos televisivos que remetam à afetividade, à
violência, aos sentimentos e às sensações são mais atrativos e fáceis de
serem assimilados do que argumentações profundas sobre determinado fato,
propostas com o intuito de contextualizá-lo. (ROCHA, 2003)
Hamburguer (2007, p. 121) define assim a narrativa do filme:
Ao mesmo tempo em que se abre para depoimentos que constroem a
trajetória da vítima exemplar, o filme revela o processo de construção do
protagonista. Diante das câmeras, Sandro incorpora o estereótipo do menino
pobre, negro e malvado que suas vítimas reféns, assim como os parentes e
conhecidos que contribuíram com seus depoimentos para o filme, são
unânimes em afirmar que ele não era. Sintomaticamente vai tirando a
máscara até escancarar a cara na janela do ônibus e se dirigir ao Brasil
através das câmeras. (idem)
19
Em 2006, Pimentel lançaria o livro Elite da Tropa, obra que serviu de base para o roteiro do filme Tropa de
Elite.
41
É quase impossível falar sobre a cinematografia polícia-favela e não tratar de Cidade
de Deus (2002). O longa-metragem inspirado no livro homônimo de Paulo Lins retrata a vida
do jovem aspirante a fotógrafo Buscapé. Esse personagem principal por si só já valeria uma
análise profunda, pois é por meio desse rapaz que somos apresentados a cada meandro da
trama ou como explica Marcelo Coelho (2010), “o foco da obra está na primeira pessoa”,
dessa forma “o narrador toma as palavras para explicar o fato ao espectador”.
Além disso, o filme é bem mais que um relato sobre a história de um personagem com
uma infância pobre. Cidade de Deus contou para os 3,2 milhões20 espectadores que foram às
salas de cinema como surgiu o crime organizado na CDD21 dos anos 60 e como a localidade e
seus moradores-personagens se transformaram decorrer de duas décadas.
A definição de tempo e espaço ajuda a construir a verossimilhança do filme,
que se apresenta como a história de um lugar ao longo do tempo, desde a sua
fundação nos anos 60 aos dias de hoje. A verossimilhança do filme é
reforçada pela ausência de atores conhecidos e pela presença física de corpos
com cor, ginga e linguajar da perifa. (HAMBURGUER, 2007, p. 122)
Outro ponto a ser destacado no filme de Fernando Meirelles é como os personagens
são utilizados para expor determinados problemas sociais. A prática de crimes por menores de
idade como é o caso de Dadinho (o futuro Zé Pequeno), é um exemplo, e retrata uma das
cenas mais violentas do filme, quando o menino num ato que mescla insanidade e crueldade
transforma um assalto a um motel e uma chacina. Ou até mesmo Buscapé, que consegue o tão
sonhado emprego de fotógrafo apenas por ter acesso ao criminosos da CDD, o que renderia
fotos exclusivas ao jornal da Zona Sul carioca. Mesmo com esta ascensão profissional, o
jovem repórter fotográfico não consegue se desvencilhar da marginalização e do crime. “O
filme problematiza as relações de poder e desigualdade presentes na sociedade brasileira,
especialmente em relação aos mais carentes de seus cidadãos” (SOARES, 2005, p.11).
Cidade de Deus problematiza, de forma radical, as relações entre centro e
periferia, não mais em relação a um país mas em um microcosmo urbano –
uma favela localizada em uma grande cidade – que tensiona e polariza tais
posições, denunciando, de forma contundente, a impossibilidade de
subverter certos lugares sociais. (SOARES, 2010-2011, p. 91)
20
21
Segundo o site oficial do filme.
Como o bairro é chamado entre os cariocas.
42
4. VIOLÊNCIA E PODER DO ESTADO
Em Sociedade, mídia e violência, Muniz Sodré (2002, p.13), ao listar as diversas
formas de atos violentos, afirma existir a chamada violência sociopolítica, “exercida pelo
aparelhos repressivos de Estado”. Esse tipo de violência seria operado tanto em períodos em
que a voz da democracia é silenciada, tanto na “vida cotidiana regida pelo estado de direito22”.
Ou na precisa explicação de Weber (2003, p. 9), o “Estado é uma comunidade humana que
pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um território
determinado (grifo do autor)”. O autor (2003, p. 8) também nos traz uma definição bem clara
sobre a relação entre o poder estatal e a utilização da força: “o uso da violência” é o
responsável pela existência do conceito de Estado, pois sem o uso da força física, haveria uma
verdadeira “ ‘anarquia’, no sentido específico da palavra”.
Em complemento às definições de Weber (2003), Sodré (2002, p.64) nos explica que o
cenário no qual essa violência sociopolítica opera é marcado pelas grandes diferenças
socioeconômicas. Desse modo, em um país como o Brasil, marcado pela forte
industrialização, exportador de matérias-primas para o todo o mundo, existiria uma “miséria
social comparável à das nações que passaram a depender do narcotráfico”.
Como causa dessa dicotomia que coloca o país como um “pobre menino rico”, o autor
cita as “elites que se reproduzem no poder em face das causas da violência social”, assim o
que vemos é um Estado patrimonialista, “com poder eminente sobre pessoas e bens”
(SODRÉ, 2002, p. 68). E esse mesmo Estado é comandado por uma espécie de principado, ou
seja, “o grupo verdadeiramente soberano dentro do país” ou nesta definição mais completa:
“controla o aparelho de Estado, que por sua vez tutela os cidadãos como se fossem servos,
corroendo as possibilidades de formação de uma sociedade civil no sentido moderno.
(SODRÉ, idem)”. Weber (2003) também considera a existência desse “principado”, que ele
explica como sendo
uma relação de homens dominado homens, relação mantida por meio da
violência legítima (isto é, considerada legítima). Para que o Estado exista, os
domínios devem obedecer à autoridade alegada pelo detentores do poder.
(WEBER, 2003, p.9)
Essa dominação, segundo Foucault (2001, p. 25), seria tão ampla que englobaria até
mesmo o poder sobre os corpos do cidadão, pois são esses que são corrigidos e subjugados.
22
O Estado é considerado como a única fonte no “direito” de usar a violência Weber (2003,p. 8).
43
(...) as relações de poder tem alcance imediato sobre ele [o corpo]; elas o
investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos,
obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. (FOUCAULT, idem)
Os príncipes citados por Weber (2003) e Sodré (2002) – representantes do poder
coercitivo do Estado – também aparecem nos escritos de Foucault (2001), porém o autor
francês concentra os estudos sobre o exercício dessa violência dentro das instituições
(territórios23 bem limitados da força política e da violência estatal). Como exemplo, o
estudioso usa o acampamento militar, o qual seria “o ápice de um poder que deve ter ainda
mais intensidade”, ou seja, um local onde o exercício da vigilância hierarquizada sobre o
outro, consolida o “funcionamento global do poder (FOUCAULT, 2001, p.144)”. É baseado
nesse modelo que, segundo o autor, funcionam as prisões, os asilos e até mesmo as escolas.
O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma
coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina.
E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o
aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo
permanente e contínuo. (FOUCAULT, 2001, p.148)
Nesse sentido, podemos fazer uma relação com o que Weber (2003, p. 8) chama de
“domínio em virtude da ‘legalidade’”, embasada em regras escritas de modo racional, pois
nesse caso exige-se obediência ao cumprimento das obrigações estatutárias. “É o domínio
exercido pelo moderno ‘servidor do Estado’ e por todos os portadores do poder que, sob esse
aspecto, a ele se assemelham” (WEBER, idem) .
Além desse tipo de dominação baseada estritamente nos ditames legais, existe aquela
em que predominam as características pessoais do dominador (WEBER,2003 p. 9). A essa
pessoa damos o nome de “autoridade do dom da graça (carisma)”, nela encontramos a
“dedicação”, o “heroísmo” e “outras qualidades de liderança individual”. Dessa forma, Weber
(idem) exemplifica onde é possível encontrar esse tipo de líder nato: “É o domínio
‘carismático’, exercido pelo profeta ou, no campo da política, pelo senhor de guerra eleito
(...)”.
Esses dois tipos de domínio (aquele exercido com força da lei e o carismático)
raramente são encontrados em total separação, pois segundo o autor, para que exista um
“domínio organizado”, existe a necessidade de se unir “o controle do quadro de pessoal”, bem
como exige o “controle dos bens da administração”, como exemplo dinheiro, material bélico,
imóveis (WEBER, p. 10). Esse cenário é chamado por Sodré (2002,p.39) de tecnoburocracia,
na qual saímos de um Estado liberal para um Estado empresarial e administrador, caminhando
23
Segundo Weber (2003,p.8), o “território” é uma das características do Estado.
44
assim para concepções que defendem “uma gestão racional e eficaz da vida social – mas
também violenta, na medida em que é assumida por um Estado que persegue a mesma
eficiência dinâmica de uma máquina de guerra (...)”.
Para Foucault (1979, p.8), esse novo tipo de Estado não só criou instituições
controladoras como exército, polícia, mas principalmente instaurou “uma nova economia do
poder”, o que para o autor é tido como o conjunto de “procedimentos que permitem fazer
circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e
‘individualizada’ em todo o corpo social”.
Em outras das suas explicações, dessa vez sobre os meios de punição e controle dos
crimes, Foucault (2001, p.66) diz que a evolução no modo de controlar a vida da sociedade
evoluiu devido alterações no próprio meio social, como nas relações de propriedade, meios de
comunicação, dessa forma “significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se
encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade (...) significa
uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população
representa”.
45
5.
METODOLOGIA
Analisar um filme é sinônimo de decompor esse mesmo filme. E embora não exista
uma metodologia universalmente aceita para se proceder à análise de uma obra audiovisual é
comum dizer que analisar implica duas fases importantes: em primeiro lugar decompor, ou
seja, descrever cada elemento e, em seguida, estabelecer e compreender as relações entre
esses elementos decompostos, ou seja, interpretar (AUMONT; MARIE, 1999).
A decomposição recorre a conceitos relativos à imagem (fazer uma descrição dos
planos no que diz respeito ao enquadramento, composição, ângulo) do som (por exemplo, off
e in) e à estrutura do filme (planos, cenas, sequências). O objetivo da análise é, então, o de
explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma interpretação.
Entretanto é preciso saber que essa interpretação muitas vezes não é algo que parte do autor
da obra, mas sim algo gerado “pela atividade interpretativa do leitor”, pois este tem a
capacidade de projetar suas experiências, tensões e concepções sobre qualquer objeto de
análise (VANOYE;GOLIOT-LÉTÉ, 2011, p. 50).
A análise, trata-se, acima de tudo, como afirma Marie (1999), discorrendo sobre o
trabalho de Jacques Aumont, de uma atividade que separa, desune elementos. E após a
identificação desses elementos é necessário perceber a articulação entre eles. Trata-se de fazer
uma reconstrução para perceber de que modo esses elementos foram associados num
determinado filme. Essas informações pessoais podem ser isoladas do filme para “relacionálas com informações extratextuais (biográficas, sociológicas24 ou históricas, estéticas) a fim
de construir minha história, minha descrição, minha tese” (VANOYE;GOLIOT-LÉTÉ, 2011,
p. 49).
A análise de filmes deverá ser realizada tendo em conta objetivos estabelecidos
anteriormente e se trata de uma atividade que exige uma observação rigorosa, atenta e
detalhada de, pelo menos, alguns planos de um determinado filme (AUMONT;MARIE,
1999). A análise é uma atividade que relata um filme ao detalhe e tem como função maior
aproximar ou distanciar os filmes uns dos outros. Ela oferece a possibilidade de
caracterizarmos uma obra na sua especificidade ou naquilo que o aproxima, por exemplo, de
um determinado gênero.
24
Um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto sócio histórico. Embora o cinema
usufrua de relativa autonomia como arte (com relação a outro produtos culturais como a televisão ou a
imprensa), os filmes não poderiam ser isolados dos outros setores de atividade da sociedade que os produz (...)
[7] Comentário: : Vem antes da
análise
46
E essa oportunidade poderia ser melhor aproveitada. Segundo o cineasta russo
Eisenstein, a análise deve ser feita por objetivos (por exemplo, determinar em que medida um
determinado filme pertence a um determinado gênero), que a análise seja detalhada, (pelo
menos, sobre alguns planos do filme selecionado tendo em conta os objetivos estabelecidos);
seguindo Susan Sontag (1961), que a análise seja uma atividade fundamental e seguida por
todos aqueles que escrevem sobre cinema.
Como categorias analíticas elegemos: 1) os planos nos quais aparecem os policiais em
contraponto aos planos dos bandidos. Falar de planificação é entrar em assunto que envolve
diversas significações, porém, como explica Nogueira (2010b, p.13) é fator fundamental para
se compreender uma obra audiovisual. “A forma como vemos e lemos as imagens
cinematográficas é, em grande medida – e para além da cultura e rotinas visuais do espectador
–, o resultado das opções do realizador no que respeita à escolha e organização dos planos”
(idem).
Mas afinal, qual a definição de plano? O próprio autor nos traz uma concisa (mesmo
sabendo o risco de não ser exato ou abrangente suficientemente) definição sobre esse
conceito: “designa a unidade mínima de linguagem cinematográfica, isto é, um segmento
ininterrupto de tempo e espaço fílmico, ou seja, uma imagem contínua entre dois cortes ou
duas transições” (NOGUEIRA ,2010b, p. 13).
Entretanto, além da simples assertiva de Nogueira (2010b) sobre o plano, não
podemos ignorar a importância que Aumont (1995) confere aos “tamanhos” de plano, o que,
de acordo com o autor, resulta em vários enquadramentos possíveis de um personagem: plano
geral25, plano de conjunto26, plano médio27, plano americano28, primeiro plano29, close up30 e
plano detalhe31. Além disso, é preciso considerar também a importância do “plano fixo”
(câmera imóvel durante todo um plano) e também os vários tipos de “movimentos de
aparelho” que envolve a panorâmica, conceituada como o plano em que a câmera sem se
deslocar, gira sobre seu próprio eixo, o que para Aumont (1995, p.43) seria “o equivalente do
25
Possui uma visualização bem ampla do cenário. A figura humana, quando presente, ocupa espaço muito
reduzido na tela. É um plano de ambientação.
26
A câmera revela uma parte significativa do cenário. Nesse plano as pessoas ocupam um espaço maior na tela e
é possível reconhecer os rostos daquelas próximas à câmera.
27
Os personagens são enquadrados de corpo inteiro e com um espaço relativo sobre a cabeça e abaixo dos pés.
28
Plano clássico dos filmes western. Foi criado para que fosse possível visualizar os revólveres nos coldres dos
personagens. Dessa forma, o enquadramento ocorre dos joelhos para cima.
29
Enquadramento do peito do personagem até a cabeça.
30
Também chamado de primeiríssimo primeiro plano, neste enquadramento é possível ver o personagem dos
ombros até a cabeça.
31
A câmera enquadra uma parte específica do corpo. Também é usado para enquadrar objetos
47
olho que gira na órbita”. O travelling cuja câmera montada sobre um carrinho se movimenta
vertical e horizontalmente, afastando-se e aproximando-se do objeto enquadrado, conceituada
pelo autor como sendo o “deslocamento de um olhar”.
2) Também se faz necessário considerarmos a questão da narração do filme, assim
entendendo como sendo o narrativo algo extra-cinematográfico, pois engloba outras artes
como o teatro e literatura, bem como a vida cotidiana, fora do cinema (VERNET apud
AUMONT,1995, p.96). Porém, o próprio autor reconhece a existência “de temas de filmes,
isto é, intrigas, tramas que, por motivos que dizem respeito ao espetáculo cinematográfico e a
seus dispositivos, são tratados preferencialmente pelo cinema (idem).” Assim, como
justificativa pela escolha da narração como objeto de análise, uso as explicações de Vernet
(apud AUMONT, 1995, p. 96): “O estudo do cinema narrativo reside, em primeiro lugar, no
fato de que ele, ainda hoje, é predominantemente e que por meio dele é possível captar o
essencial da instituição cinematográfica, seu lugar, suas funções e seus efeitos (...).”
Nesse sentido, surgem aspectos que o cinema narrativo é capaz de mostrar, dentre eles está a
representação social, definida por Vernet (apud Aumont, 1995, p.98) como sendo “o veículo
das representações que uma sociedade dá de si mesma”.
De fato, é na medida em que o cinema tem capacidade para reproduzir
sistemas de representação ou articulações sociais que foi possível dizer que
ele substituía grandes narrativas míticas. A tipologia de um personagem ou
de uma série de personagens pode ser considerada representativa não apenas
de um período do cinema como também de um período da sociedade.
(VERNET apud AUMONT, 1995, p.98)
3) Por fim, destaco importância de se analisar as falas dos personagens policiais (em
especial as do Capitão Nascimento e as dos Aspirantes Neto e Matias) em contraponto com as
falas dos bandidos. Pois como preceitua Pereira (1980, p. 98), “gera na organização interna da
obra, uma nova trama de relações entre fala, ruídos, imagens, músicas”, passando assim por
um processo de transformação o qual a difere da conversa do cotidiano.
(...) a própria fala, se tomada em si mesma, já é uma substância de notável
complexidade intrínseca. Da sílaba ao ritmo de emissão da frase, do
significado transmitido à ênfase na expressividade da voz (...) de um
extremo ao outro desta escala todo um conjunto de potencialidades estéticas
se oferece à criatividade do cineasta. (PEREIRA, 1980, p. 94)
Dessa forma, a fala se torna espaço no campo cinematográfico, assim o filme “leva-a a
figurar-se, a explicitar sua propriedades de ordem física, seus relevos e espessuras mais
insólitos” (PEREIRA, 1980, p. 98). Ao se apropriar do espaço fílmico, a fala entre em um
estágio de correlação com as imagens, o que o autor chama de “exaltação recíproca”, sem
48
qualquer hierarquia32 ou subordinação do som em relação à imagem. Para Aumont (1995, p.
49), ocorre entre som e imagem um “vínculo biunívoco, ‘redundante’”, entretanto o autor faz
um alerta, pois, se por um lado a imagem fílmica é capaz de “evocar um espaço semelhante ao
real”, o mesmo não acontece com o som, sendo esse “quase totalmente despojado dessa
dimensão espacial33.” Desse modo, inexiste um “primado ao elemento linguístico (PEREIRA,
1980,p.98)”. O que impera nessa relação é o trabalho do cineasta, da equipe de filmagem, pois
é neles que deve estar presente a “habilidade para dar origem a uma tessitura na qual os fios
isolados se perdem, ficam irreconhecíveis enquanto tais” (PEREIRA, 1980, p. 98).
O autor também analisa a importância da linguagem em um contexto de cultura de
massa, pois segundo ele na sociedade contemporânea, a língua falada assume um status de
ícone. Em um cenário urbano e industrial com grandes letreiros luminosos e publicidade por
todos os cantos, a cidade acabam por se assemelhar a um grande texto. Do mesmo modo
ocorre nos gêneros artísticos, até mesmo aqueles mais tradicionais, “estão voltados para a
crescente figuração da linguagem” (PEREIRA, 1980, p. 99). E justamente nesse contexto de
sociedade, multicultural e altamente relacionado com o desenvolvimento tecnológico, é que
devemos “compreender e interpretar a espacialização da linguagem no cinema” (idem). Pois,
segundo o autor esse cenário implica em “uma profundíssima alteração nas próximas
maneiras de transmitir e criar informações, tanto as de imediata função quanto as de
propósitos estéticos bem definidos” (PEREIRA, 1980, p. 99).
32
Quando eventualmente ocorre algum tipo de hierarquia entre fala/som/ruídos e imagens, ela apresenta um viés
provisório, logo dissolvido em benefício da própria dinâmica do filme.
33
A distinção entre som in e som off – que por muito tempo foi a única maneira de classificar as fontes sonoras
com relação ao espaço do campo e que, plenamente calcada na oposição campo/fora de campo, é muito
insuficiente – está sendo aos poucos substituída por análises mais sutis, mais desapegadas dos preconceitos do
cinema clássico. Porém, pois que intenção seja abandonar essa dicotomia, qualquer que seja a tipologia proposta,
esbarramos sempre com uma questão central: “a da fonte sonora e a da representação da emissão de um som
(AUMONT, 1995, p. 50).
49
6. ANÁLISE
6.1 Apresentação e resumo do filme
Tropa de Elite (2007) tem como pano de fundo o Rio de Janeiro de 1997 às vésperas
de receber a visita do Papa João Paulo II. Personagem principal da trama, o capitão do Bope
Roberto Nascimento (Wagner Moura) recebe a missão de “pacificar” o morro do Turano,
favela vizinha ao local escolhido para acomodar o religioso, durante a estadia no Rio.
Nascimento está prestes a se tornar pai e sua mulher, Rosane (Maria Ribeiro), o
pressiona para abandonar a tropa de elite, devido ao alto risco de vida enfrentando pelo
policial. Entretanto, o militar só poderá abandonar o Bope, após cumprir a missão e também
encontrar alguém que o substitua no batalhão. Os aspirantes Neto (Caio Junqueira) e Mathias
(André Ramiro) aparecem como os possíveis substitutos. Ambos são postos para trabalhar no
19º Batalhão, local marcado pela corrupção, começando pelo próprio Coronel Miranda,
comandante da unidade, que recebe propina dos traficantes e dos bicheiros para fazer “vista
grossa”.
Neto fica responsável pela oficina do quartel, mas logo percebe que não conseguirá
trabalhar devido à falta de peças e equipamentos de manutenção. Na tentativa de fazer as
viaturas funcionarem e assim se livrar do trabalho na oficina, ele resolve usar o “próprio
sistema” contra os corruptos. Com informações do desonesto capitão Fábio (Milhem Cortaz),
Neto e Mathias roubam o suborno do jogo do bicho e utilizam para comprar peças novas e
consertar as viaturas. Mathias por sua vez, fica incumbido de contabilizar o número de
ocorrências na área de competência do batalhão, porém ao apresentar o relatório com um alto
índice de crimes, é repreendido pelo comandante e obrigado a refazer o documento de forma a
não prejudicar a reputação do superior.
Ciente da trapaça do capitão Fábio, coronel Miranda ordena que o subordinado suba
ao morro para recolher o pagamento do tráfico. Entretanto, a ideia é assassinar o militar, como
forma de punição pelo roubo do dinheiro do bicho. Desconfiado, Fábio, avisa Neto e Mathias.
A dupla segue o comboio que se dirige à favela. Do alto de um morro, os aspirantes observam
toda a conversa dos traficantes e dos policias corruptos. Fábio está desarmado. Com receio de
que o capitão seja baleado, Neto dispara contra um bandido. Começa o tiroteio. Na confusão,
Fábio consegue uma pistola e troca tiros com os próprios “colegas de batalhão”. Morro acima,
Neto e Mathias são descobertos e agora estão sendo perseguidos. O Bope é avisado da troca
50
de tiros no morro. Os policiais corruptos estão acuados. A situação de Fábio é idêntica. Mais
acima, os aspirantes, sem munição, estão cercados. O Bope liderado por Nascimento chega,
invade o morro e consegue por fim ao tiroteio, matando o “dono do morro”. Nascimento é
avisado por celular que seu filho irá nascer e ordena que Neto e Mathias carreguem o corpo
do chefe do tráfico. Deslumbrado com a atuação da tropa de elite, Neto pergunta a um dos
homens de preto o que ele deve fazer para entrar na tropa.
Mathias começa a namorar Maria (Fernanda Machado), sua colega no curso de
Direito. A jovem trabalha em uma ONG no Morro dos Prazeres, localidade chefiada pelo
traficante Baiano (Fábio Lago).
Neto e Mathias se inscrevem no curso de operações especiais. Nascimento agora tem a
oportunidade concreta de conseguir um substituto. Porém com o tempo, o capitão percebe que
Neto, seu preferido, é extremamente impulsivo. Por outro lado, Mathias, ainda não se “vê”
como policial e está dividido entre a carreira policial e a vida de advogado.
Mathias decide entregar um par de óculos para um menino do Morro dos Prazeres,
porém é avisado por Neto, que no mesmo dia e horário, há uma entrevista de estágio marcada
e o futuro advogado não pode perder essa chance. Para ajudar o amigo, Neto resolver ir à
favela encontrar a criança.
Chegando à localidade, Neto é cercado pela quadrilha de Baiano. O militar é alvejado
nas costas e cai. Ao se aproximar do PM, Baiano percebe que havia baleado um homem do
Bope e que aquilo era o mesmo que assinar a própria sentença de morte. Neto é levado ao
hospital pelos traficantes, porém não resiste aos ferimentos e morre.
Baiano, furioso com o fato de os membros da ONG terem permitido que policiais
convivessem com pessoas do morro, executa Rodrigues (André Di Mauro), presidente da
entidade, e a namorada.
O Bope inicia as incursões no Morro dos Prazeres à procura de Baiano. Após torturar
possíveis informantes, os homens de preto encontram o chefe do tráfico escondido em um
barraco. Ferido, o bandido agoniza sobre uma laje enquanto Nascimento e Mathias o
subjugam. Com um tiro, Mathias põe fim à vida do traficante e consegue vingar a morte do
amigo de infância. Nascimento, enfim, encontrou o substituto.
51
6.2 Análise da obra
As primeiras imagens de Tropa de Elite servem para mostrar ao público como será a
tônica do filme. Ao som do funk “Rap das armas34”, flashes de imagens entrecortadas de
pessoas dançando, no meio delas aparecem traficantes armados. Também é possível visualizar
o conhecido símbolo do Bope, uma caveira com uma faca encravada no topo, ladeada por
duas pistolas. Com essa construção imagética, o filme propõe o seguinte contexto: mostrar
que os traficantes festejam e caminham livremente pelas ruas, porém o Bope está ali, mais
próximos do que eles imaginam.
Com um plongée35 no baile funk somos colocados no filme e logo após uma
panorâmica sobre a multidão que dança ao som do “Rap das armas”, somos apresentadas à
narração36 em off do capitão Nascimento. Como explica Benjamim (1987), o narrador tem a
função de nos contextualizar em uma história. Com o policial do Bope não é diferente, eles
nos explica o cenário de violência do Rio de Janeiro do fim da década de 90, no qual
traficantes fortemente armados comanda as atividades criminosas. Nosso narrador explica
também que existem nesse cenário, traficantes e parte da polícia acabaram por desenvolver
forma pacíficas de convivência.
A narração introdutória de Nascimento cobre a chegada dos Neto e Mathias ao morro.
A câmera que os acompanha foi utilizada no ombro do operador. Como resultado disso vemos
uma imagem trêmula, sem foco, com ar simultaneidade, fazendo parecer que de fato
presenciamos a subida dos aspirantes ao alto do morro, gerando também uma similaridade
com os telejornais policialescos (NOGUEIRA, 2009) e até mesmo com os documentários37.
34
(...) Morro do Dendê é ruim de invadir
Nois, com os Alemão, vamos se diverti
34
Porque no Dendê eu vo dizer como é que é
34
Aqui não tem mole nem pra DRE
34
Pra subir aqui no morro até o Bope treme (...)
34
(Cidinho e Doca, 1995)
35
Mergulho em francês, é o usado para definir um tipo de enquadramento em que a câmera filma um objeto de
cima para baixo, situando o espectador em uma posição mais acima do objeto, vemos a imagem como se
estivéssemos mais altos.
36
Aqui não podemos deixar de relacionar Tropa com a conceituação que Almeida (2002, p.89) faz sobre o
roman noir, cujo foco narrativo é mais pessoal, pois a “narrativa é feita pelo próprio detetive”.
37
Penafria (2001, p. 3) nos diz que o ponto de vista pode ser controlado por elementos da composição formal
dos planos (modo de organização na tela, tipo de plano escolhido), bem como por meio de elementos narrativos,
como o ritmos em que os planos se sucedem e a montagem.
34
52
Na figura 1, o sangue de um traficante baleado suja lente passando: espetacularização da
violência que se assemelha aos jornais policialescos.
Figura 1.
Neto e Mathias protagonizam a primeira troca de tiros entre policiais honestos e
traficantes do filme. Percebemos uma proposta da fotografia em evidenciar os PMs, pois estes
apesar de estarem no fim de um beco e isolados, recebem maior iluminação. Por outro lado,
os criminosos aparecem desfocados e só podemos visualizar uma massa humana.
Figuras 2 e 3: Na primeira, podemos ver Neto em plano conjunto (PC) mais bem iluminado, enquanto na
segunda imagem os traficantes também em PC, aparecem com pouca luz e desfocados.
Nosso narrador aparece na trama, porém ainda não ouvimos a sua fala, pois a narrativa
em off é quem afirma que ele pertence a um batalhão diferente da PM, cuja farda é preta. Para
explicar a função da tropa de elite, a montagem reitera o que é mostrado nos primeiros
minutos do filme, porém dessa vez de forma clara com um plano detalhe de quatro segundos
sobre o escudo do Bope e a narração de Nascimento: “Nosso símbolo mostra o que acontece
quando a gente entra na favela”.
53
Figura 4: Plano detalhe no escudo do Bope: símbolo de
morte e violência.
Esse caráter de quase idolatria do Bope é reforçado quando Nascimento chega ao
morro e grita para os policiais que não usam preto “que não vai subir [na favela] ninguém”.
Em seguida, um plano de médio do capitão e com pouca profundidade campo, seguido pela
auto apresentação do narrador, que se queixa de estar cansado da guerra contra o crime,
mostra de vez para o público quem comanda a narrativa do filme e serve como ponto de
partida para o desenvolvimento da trama.
Figura 5: Capitão Nascimento em primeiro plano e com imagem congelada.
Na cena seguinte, começamos a ter idéia de algumas das características que
sobressaem em Nascimento: a rigidez de caráter e intolerância com os policiais corruptos.
Esse desgosto com os colegas é tão grande, que o policial afirma ter “vontade de meter bala
nesses filhas da puta da PM”, pois ele considera que “quem ajuda traficante a se armar
também é inimigo”.
Figuras 6 e 7: Nascimento, ao lado de um atirador, observa PMs desonestos e ordena a execução de um deles.
54
Mais à frente, surgem os aspirantes Neto e Mathias, personagens que, assim como
Nascimento, representam a lei e a moral e por esse motivo que os apresenta ao público é o
nosso narrador. Apesar de serem PMs convencionais e usarem a mesma farda que os policiais
tidos como corruptos, podemos vê-los em um plano mais bem iluminado, com quantidade de
luz superior até mesmo à dos comandantes do batalhão (policiais desonestos).
Figuras 8 e 9: Mathias e Neto recebem melhor iluminação que os comandantes do batalhão.
Quando um pouco da história de Mathias é contada, somos informados que ele é pobre
e cresceu em um subúrbio, porém venceu na vida e estuda Direito em uma faculdade
particular. O interessante nesse personagem, é o fato dele estudar o sociólogo Michel
Foucault, ou seja, ele conhece sobre os métodos de punição utilizados pelo Estado e como se
dá o processo de dominação da sociedade por meio do poder público. Além disso, Mathias faz
uma defesa contundente da instituição policial (detentora do uso da força) e diz acreditar na
repressão como uma forma de combate ao crime. Podemos ver Mathias lendo o clássico
“Vigiar e punir” e em outro momento um plano detalhe sobre o quadro negro evidencia a
presença do livro e do autor em Tropa.
Figuras 10 e11: A presença de Foucault na obra.
55
.
Figura 12: Mathias defende a PM perante os colegas da faculdade.
Na cena mostrada acima, o policial afirma com veemência que a polícia deve de fato
reprimir. Como um digno representante do Estado como possuidor dos corpos dos cidadãos e
por consequência e detentor do direito de corrigir Foucault (2001) e Weber (2003).
Aos 23 minutos de filme, o traficante Baiano entra na história, nosso narrador ao falar
da origem pobre e marginalizada do bandido, em certo ponto o compara a Mathias. Porém o
off deixa claro como pensa Nascimento: “deve ter tido uma infância fudida, mas eu não vou
aliviar por causa disso”. Além disso, apesar de ser a primeira aparição, o criminoso não
apresenta falas longas e restringe-se a pronunciar gírias e termos usados pelos traficantes. E
como acontece no decorrer do filme, a pouca luz caracteriza os planos destinados aos
bandidos. Baiano (de vermelho) com iluminação fraca e falas curtas marcadas por gírias. O
mesmo se repete com outro bandido, luz quase inexistente e linguajar pobre (figuras 13 e 14).
Figuras 13 e 14: Primeira cena de Baiano no filme (de vermelho).Plano médio exibe um dos comparsas de
Baiano.
Em outro momento, Baiano é mostrado em close, porém apesar do uso de um plano
que gera mais aproximação com o público, a pouca luz no rosto do traficante somada à fala
em tom ameaçador e marcada por gírias como “Tá ligado” e “É nóis”, acabam por afastar o
olhar do espectador. Por sua vez, a personagem Maria aparece no mesmo quadro, também em
close, entretanto a luz projetada sobre ela “chama” a atenção do olhar para a personagem.
56
Figuras 15 e 16: Com pouca luz o rosto de Baiano pouco sobressai em relação à Maria, melhor iluminada.
Não são apenas os traficantes que são retratados com falas reduzidas. Os policiais
desonestos, apesar de terem maior participação na trama, também apresentam falas resumidas
à de gírias, frases curtas, além do uso de palavrões, como por exemplo, em uma sequência em
que os capitães Fábio e Oliveira discutem sobre quem deve se beneficiar da propina cobrada
de comerciantes.
Figuras 17 e 18: Oliveira e Fábio discutem sobre o suborno que exigem dos comerciantes.
O papel de Nascimento como um defensor da moral mais uma vez vem à tela. Quando
um traficante que está rodeado por usuários de drogas é morto pelos agentes do Bope, o
capitão questiona a um dos usuários detidos: “Quem matou esse cara aqui?”. O prisioneiro
diz: “Foram vocês”, Nascimento fica irado, agride o rapaz e vocifera, “Quem matou foi você.
E você quem financia essa merda aqui”. Nesse momento, também fica claro que Nascimento
é um defensor da lei, porém faz uso da violência e do poder que o Estado que lhe conferiu.
Dessa forma, presenciamos o capitão “pregar” (imagem19) uma lição para o público: é a
sociedade quem financia o tráfico. Aqui a crítica social é feita contra a classe média e não é
proferida pelo marginalizado ou oprimido, mas sim por um policial. Dessa forma, há uma
conotação maciça de “voz do Estado”.
57
Figura 19: Nascimento confronta e humilha um usuário de drogas.
Se de um lado temos a figura do Capitão Nascimento como um inequívoco
representante do poder estatal, também temos os policias sem escrúpulos que fazem uso do
cargo e da estrutura do poder público em benefício próprio. A questão da fala relegada aos
criminosos e corruptos é destacada mais uma vez. Enquanto o humilde e honesto cabo
desenvolve um texto longo, com construções frasais variadas, as falas do sargento vêm repleta
de gírias, repetições de palavras e ironias.
Figuras 20 e 21: Para conceder férias ao cabo Paulo (em pé), sargento Rocha exige propina. Plano detalhe na
gaveta de Rocha exibe maços de dinheiro obtidos por meio da corrupção.
Para localizar o corpo de um fogueteiro38 do tráfico, o policial comanda uma sessão de
tortura contra um dos moradores da favela. O famoso saco, usado para asfixiar o interrogado,
é usado. O close no torturado, somado com a luz projetada diretamente sobre o seu rosto,
evidenciam ainda mais a crueldade dos homens de preto.
38
Membro da quadrilha que utiliza fogos de artíficio para avisar aos comparsas sobre a chegada da polícia ou de
algum inimigo à favela.
58
Figuras 22 e 23: Em plano médio, Nascimento observa o interrogado sem fôlego quase desfalecido.
Figura 24: Até uma mulher está na lista de pessoas torturadas por Nascimento e equipe.
Não bastasse a sessão de espancamento, o capitão do Bope ordena ao subordinado que
execute o suspeito. No momento em que ordena a morte do torturado, Nascimento é
representado como “Senhor da Morte”, aquele capaz de decidir até mesmo o destino de uma
pessoa. Podemos dizer também que o policial, investido de representante do Estado, é
proprietário daquela pessoa Foucault (2001).
Figura 25: Policial do Bope executa um suspeito.
Esse viés de dominador de Nascimento e do Bope mostra-se não só contra os
traficantes ou suspeitos de envolvimento com o tráfico, mas também contra os policiais
corruptos. Ao lerem a lista dos inscritos no curso para ingresso na tropa de elite, os homens de
preto listam os crimes cometidos pelos candidatos, bem como explicam o que farão com os
criminosos. Frases como “Vai virar chiclete de caveira” e “Deixa ele comigo” são algumas
das expressões usadas para se referir a quem não é honesto. Dessa forma, Nascimento sela o
59
destino dos PMs corruptos que ousaram se inscrever no curso de operações especiais. Vemos
na imagem 27 uma configuração imagética com um plano detalhe mostrando a sentença que
os homens de preto proferem aos que recebem “arrego” do tráfico, propina de Jogo do Bicho
ou exercem qualquer atividade ilegal.
Figuras 26 e 27: Nascimento e equipe conversam sobre os policiais que farão o curso para ingressar no Bope.
Esse lado inquisidor e violento do Bope mostrado logo no início do filme estampado
com o plano detalhe no escudo da tropa ou mesmo pelas cenas de tortura comandadas por
Nascimento assume um papel institucional. Prova disso, é a canção entoada pelos alunos logo
no começo do curso de operações especiais. Ao som de “Homens de preto, qual sua missão?
É entrar pela favela e deixar corpos no chão. Homens de preto o que é que você faz? Eu faço
coisas que assustam o Satanás”, os futuros homens de preto são adestrados a como agir.
Figura 28: Neto e Mathias cantam o hino de morte do Bope: reforço da violência como forma de demonstração
de poder.
Nascimento, por meio da voz em off, também demonstra o ódio contra aqueles tidos
como “fracos e corruptos”. E para deixar bem claro como é a forma de “trabalhar” do capitão,
o desonesto Fábio é humilhado e xingado. O plano médio com um ângulo de câmera quase
em contra-plongé coloca Nascimento em posição de superioridade (figura 29). Além, disso
com as falas resumidas a choros e resmungos, Fábio, símbolo da corrupção, é mostrado como
uma escória, algo a ser banido. Para completar o episódio de humilhação dos desonestos,
Fábio é obrigado a enterrar o boné que contém seu número de identificação no curso (figura
30).
60
Figuras 29 e 30: Nascimento e Fábio durante o curso de operações especiais.
Na figura 31, Mathias parece ter aprendido as lições de Nascimento e afirma “que não
se mistura com viciado e nem com vagabundo”. O narrador por sua vez diz que o Bope ensina
os seus homens a lidar com a guerra do tráfico, confronto esse que é sustentado pelo comércio
de drogas.
Figura 31: Mathias confronta um dos usuários de drogas da classe média carioca.
Quase no final do filme, temos um único momento em que Baiano é mostrado como
um personagem com um lado humano e sem o vocabulário acentuado pelas gírias e
xingamentos que tanto o caracterizaram no decorrer da trama. O plano conjunto mal
iluminado faz com que quase não vejamos os personagens. A atenção do nosso olhar é
voltada quase totalmente para o abajur no canto direito do quadro.
Figura 32: O traficante Baiano, ao saber que o Bope está a sua procura, se despede da família.
61
Nos últimos minutos do filme, as cenas de tortura ganham mais ênfase com direito a
sessões de tapas na cara de um adolescente, além é claro, da presença do famoso saco de
asfixia.
Figuras 33 e 34: Com uma sequência com cerca de um minuto de duração, um jovem é torturado até revelar o
paradeiro de Baiano.
Na primeira imagem vemos Nascimento e os homens do Bope em contra-plongée, o
que dá um aspecto de superioridade aos policiais e coloca o torturado em posição de
inferioridades. Na segunda, a luz do sol ofusca a visão do torturado que mal consegue ver seu
interrogador, mais uma vez o ângulo de câmera é usado para colocar o suspeito com um
indivíduo inferior.
Os últimos minutos de Tropa consolidam ainda mais a intenção de valorizar as ações
dos homens de preto, representados pelo grande líder e detentor do poder, capitão Nascimento
e agora também por seu substituto, o aspirante Matias.
Figuras 35 e 36: Ferido e capturado, Baiano é humilhado por Nascimento e Mathias. Na segunda imagem, o
capitão entrega a “12” para o aspirante e afirma “Passa que é teu”.
62
Figuras 37: Em plongée, Baiano implora para não morrer. Entretanto, Nascimento e seus homens estão decididos
a “terminar” com a missão.
A cena final coloca os dois pobres e marginalizados frente a frente, entretanto aquele
que é subjugado escolheu a vida do crime, enquanto o algoz resolver ser um policial, um
homem do Estado, estudante de Direito e leitor de Foucault.
Figuras 38 e 39: Baiano faz as últimas súplicas a Mathias.
A câmera subjetiva39 do bandido observa Mathias, mas curiosamente a luz do sol
bloqueia quase que totalmente a visão do traficante (e a do espectador), fazendo
metaforicamente que seja o nosso a olhar a observar o policial. A espingarda está em
desfoque, porém vemos com clareza o olhar do policial, é possível também enxergar o
símbolo do Batalhão no Bope. Mathias dispara, o plano que ora mostrava Baiano, ora exibia o
rosto de Mathias, torna-se um grande clarão.
39
A imagem gera por essa configuração de câmera e colocação no plano, um ponto de vista pessoal, fazendo
com que o espectador sinta-se dentro do filme. Essa participação ocorre de várias maneiras, pode ser ativamente
– onde ocupa o lugar (ou onde se vê no lugar) daquele ator ou coisa que faz as ações – também pode-se colocar a
audiência no lugar de alguém que observa os acontecimentos e ou fazer com que alguém na cena olhe
diretamente para a câmera, criando uma relação olho no olho entre ator e público.
63
CONCLUSÃO
Tropa de Elite é um filme que conta a história de um policial pelo próprio olhar desse
personagem. Isso é um fato marcante na obra, afinal o roteiro do filme foi inspirado em um
livro de um ex-agente do Bope, Rodrigo Pimentel, que inclusive colaborou nas filmagens.
Entretanto, Tropa vai além. O policial do Bope aqui representado na obra pelo capitão
Nascimento assume o papel de narrador40, como alguém que dita os rumos da trama, faz
explicações, descreve personagens e, o mais importante participa da história como o
personagem principal e conta com objetivos bem delimitados como explica Bordwell:
“resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos” (2005b, p. 279).
Nosso capitão é mostrado como o verdadeiro representante do policial honesto, sóbrio
e duro de caráter. Para cumprir com total eficácia o lema do Bope, “missão dada é missão
cumprida”, Nascimento utiliza a violência e coerção, vide as sessões de torturas e execuções
comandadas pelo policial, aparatos que ele possui como um verdadeiro representante da força
e do poder do Estado.
Essa tentativa de conferir espaço ao policial aparece também no documentário
Notícias de uma guerra particular (1999) no qual um agente do Bope e policiais civis contam
para as câmeras como é combater o crime no Rio de Janeiro. Entretanto é com o trabalho de
José Padilha que o estereótipo “todo policial é corrupto” é confrontado. Para isso, o diretor
apresenta ao público o “policial-modelo”, representado pelo Bope ganha força e voz na
grande tela. No documentário Ônibus 174 (2002), ao reconstituir o episódio protagonizado
pelo assaltante Sandro Nascimento, Padilha elege como primeiro personagem a aparecer no
quadro, justamente um homem da tropa de elite. Minutos depois, o já citado Rodrigo
Pimentel, afirma que o policial do Bope tem “vocação” para o combate ao crime.
Por estarem vulneráveis aos perigos da profissão – Neto é morto por um traficante – os
homens do Bope se equiparam em certo ponto aos detetives do filme noir, pois como afirma
Almeida (2002, p.89-90) “ser surrado ou morrer, faz parte da profissão”. Entretanto os
“detetives” de Padilha fazem parte de uma máquina de guerra chamada Bope, são altamente
treinados, armados com fuzis e usam uniforme preto, com essa representação, esses policiais
se revestem de uma superioridade ímpar.
40
“A narrativa coincide com a ação” (ALMEIDA, 2002, p. 89).
64
Vale ressaltar também que o filme de Padilha não inova no tipo de personagem
mostrado na tela, existem os heróis (Nascimento e os demais homens de preto), a princesa (a
esposa de Nascimento e namorada de Mathias) e claro os antagonistas (traficantes e policiais
corruptos), entretanto a mudança está em como esse modelo de personagem é mostrado e
quem o representa. Se em Lúcio Flávio, passageiro da agonia41 o personagem principal é um
bandido e usa um colar de umbanda como proteção, em Tropa o herói usa uma farda preta e
uma boina com uma caveira estampada. Precisa lição de Ortiz Ramos citado por Almeida
(ORTIZ RAMOS, 1995, p. 189 apud ALMEIDA, 2007, p. 146) ilustra bem essa construção
dos personagens em Tropa, para o qual os filmes policiais
(...) retrabalham o gênero no interior do processo cultural brasileiro. Há todo
um desejo da sua utilização para conseguir cativar o espectador, o que leva
também a matrizes do cinema americano, como a elementos presentes na
memória popular e de massa nacional.
As ações dos policiais, em especial do capitão Nascimento, encontram abrigo nas
explicações de Weber (2003) e Foucault (2001). O primeiro aborda, entre outros pontos, a
questão do líder como um indivíduo legalista cumpridor das leis e ordenamentos vindos das
instituições públicas. Enquanto o segundo fala justamente da dominação que o Estado exerce
sobre as pessoas por meio dos seus aparatos sejam imóveis, humanos ou bélicos, como por
exemplo, a polícia.
Curiosamente Foucault é um ator citado no filme e estudado por um dos aspirantes
que se tornara membro do Batalhão de Operações Especiais, reforçando uma proposta do
longa em retratar o Batalhão de Operações Especiais como um aparelho de repressão usado
pelo Estado no combate ao crime. Falamos em Bope, pois essa tropa de elite é retratada de
forma diferenciada no filme, pois como diz o próprio Nascimento “na prática nos somos uma
outra polícia”, ou como Selingmann-Silva (2008, p. 101) coloca: “(...) o Bope é apresentado
como um local externo ao ‘sistema’, sem nenhum tipo de corrupção (...)”. Aos policiais
convencionais é relegada a representação como indivíduos corruptos e inescrupulosos,
sustentados pelas propinas que recebem de bicheiros e do tão falado “arrego do trafico”.
Para esses indivíduos, policiais corruptos e traficantes, não espaço para falas longas.
Os discursos estão dominados por gírias e palavrões e somente aparecem no quadro estão
combinando ou praticando alguma ação criminosa, sendo torturados ou humilhados por
Nascimento e a tropa dos homens de preto. Além desse pouca aparição no plano, policiais e
traficantes, que nesta conclusão já podemos colocar em uma única categoria, a dos
41
ORTIZ RAMOS, 1995, p. 179-180 apud ALMEIDA, 2007, p. 142-143.
65
criminosos, quando surgem na tela estão mal iluminados, o que implica em uma dificuldade
de percebemos as suas expressões, além de certo ponto bloquear nossa percepção visual42
sobre aquele personagem.
Além de ser um forte elemento repressor, Nascimento assume um papel de protetor e
propagador43 de lições de moral, quando, por exemplo, deposita a culpa da existência do
trafico exclusivamente nos usuários de drogas e que esse mesmo consumidor de classe média
quer sair às ruas para fazer passeata contra a violência.
A cena final do filme condensa toda a violência44 e senso de moral demonstrados
pelos homens de preto. Temos cara a cara dois homens oriundos da mesma classe social,
porém, neste momento vemos uma inversão da nossa situação social, quem está ferido e
prestes a ser chacinado não é um negro marginalizado, mas sim um branco, que por sua vez é
dominado por um homem negro, representante do poder estatal, leitor de Foucault e assim
como seu líder, um baluarte da lei.
Baiano então é morto duas vezes, a primeira de forma física, a segunda de forma
social, pois ao ter seu rosto desfigurado por um tiro, tem a sua identidade apagada, ninguém
poderá vê-lo no próprio enterro e assim Nascimento e Mathias, enfim, puderam expurgar todo
o mal, em todas as suas formas, presente na história.
42
Aumont (2011, p. 17) explica que o nosso modo de visão mais habitual corresponde a uma gama de objetos
que consideramos como normalmente iluminados por uma luz diurna. Assim, qualquer configuração de luz que
fuja desse “normal” modificará nossa percepção sobre as coisas.
43
Benjamim (1987) afirma que o narrador assume uma função pratica na historia, dentre ela podemos destacar o
papel de disseminador de ideias, ensinamentos e lições.
44
Padilha foi acusado de “estetizar a violência” e “superdimensionar” as sequências em que ocorrem torturas e
assassinato. A esses questionamentos, o diretor sempre respondia “apenas mostrei a realidade”. Sem ignorar as
discussões, devemos considerar que não basta uma “exposição” da violência na tela, seja como forma de estética,
seja como instrumento de denúncia. É preciso pensar na representação dentro do contexto de uma sociedade
globalizada e fortemente influenciada pelos meios de comunicação de massa.
66
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Padilha, 2007).
70
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Percy Heliogábalo Souza de Melo