Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura
Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128
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A METAFICÇÃO PARÓDICA EM THE PRIVATE LIFE OF SHERLOCK HOLMES
Evaldo Gondim dos Santos (Mestre/UERN)
1. INTRODUÇÃO
No presente trabalho, buscamos analisar a metaficção paródica como meio de
estabelecer um diálogo auto-reflexivo pelo viés da paródia, voltado para o Sherlock Holmes
canônico no romance policial The Private Life of Sherlock Holmes de Michael Hardwick.
Para tanto, fazemos uso de autores que tratam do romance policial de pura detecção,
como por exemplo, Eco (1991) e Boileau e Narcejac (1999), como também autores que
lidam com o romance contemporâneo, tais como Hutcheon (1991) e Pereira (2006). Além
disso, utilizaremos autores que tratam da crítica à razão instrumental como processo de
esclarecimento da racionalidade ocidental, tais como Adorno e Horkheimer (1985), bem
como usamos os conceitos de belo natural em Adorno (1970) e afecto e ritornelo em
Deleuze e Guattari (1992, 1997).
Sherlock Holmes nos romance policiais de pura detecção doyliano é um afecto
produzida pela maneira como ele é constituído pelo narrador-personagem, já nos
romances policiais contemporâneos esse detetive possui o mesmo afecto, porém os
elementos que o estruturam enquanto mente dedutiva pura se apresentam de forma
diferente. Tanto nos romances policiais de pura detecção doyliano como em The Private
Life of Sherlock Holmes, o detetive é uma mente dedutiva pura que não se deixa que ser
racionalizado instrumentalmente pela sociedade administrada da época vitoriana.
2. O ROMANCE DE PURA DETECÇÃO E O SHERLOCK HOLMES CONTEMPORÂNEO
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Os romances policiais de Sir Arthur Conan Doyle têm como detetive Sherlock
Holmes que faz uso de um método de detecção que está relacionado com o espírito
científico da época (HELLER, 2008). É um método racional que busca a verdade através
da construção de uma cadeia de raciocínio fundamentado em vestígios concretos e em
premissas tidas como verdadeiras.
Conan Doyle foi influenciado por seu professor, Dr. Joseph Bell, do Hospital Real de
Edinburgh, na criação de Sherlock Holmes. Ele fez “utilização parcial de um médico como
modelo [numa] tentativa consciente de introduzir um método científico mais rigoroso do que
até então tinha sido utilizado na investigação criminal.” (ECO; SEBEOK, 1991, p. 38). De
acordo com o próprio Conan Doyle, Dr. Bell de Edinburgh tinha um alto poder de
observação do qual ele se orgulhava, afirmando frequentemente que quando colocava os
olhos em um paciente não apenas era capaz de dizer sua doença, como também sua
ocupação e onde morava (DAVIES, 1988, p. viii, tradução nossa). Sendo assim, Sherlock
Holmes foi criado por seu autor com o intuito de resolver crimes de forma semelhante ao
tratamento que Bell dava a seus pacientes, ou seja, da maneira como preconizava o
cientificismo positivista reinante no fim do século XIX.
O que tem de comum entre os romances A Study in Scarlet, The Sign of Four, The
Hound of Baskervilles e The Valley of Fear (DOYLE, 1981) é a capacidade sobre-humana
do detetive em solucionar os casos não por acidente ou descuido do criminoso, mas sim
por dedução e observação. Segundo Reimão (1983, p. 31), “o detetive do romance de
pura detecção é ‘uma mente dedutiva’ que através de vestígios, pistas e indícios consegue
reconstruir uma história”. Em outras palavras, ele obtém provas lógicas que são
rigorosamente deduzidas.
Estando no final do século XIX, quando o clima positivista reinava em todo seu
esplendor, Holmes acreditava possuir conhecimentos totalizantes dos fenômenos
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relacionados aos crimes investigados que desafiavam à polícia da época vitoriana. Ou
seja, como positivista, ele acreditava que o intelecto humano estava condicionado a leis
como qualquer outro fenômeno. Sendo assim, ele seguia a premissa de que a mente,
obedecendo a certos princípios gerais, fazia com que o ser humano desenvolvesse cadeias
de idéias capazes de chegar a conclusões lógicas relacionadas ao mundo real (ECO;
SEBEOK, 1991).
Já os romances policiais de Michael Hardwick, entre eles The Private Life of
Sherlock Holmes, foram escritos a partir dos anos setenta, período contemporâneo que se
caracteriza principalmente pelo incessante questionamento da realidade. Nesse sentido,
esse romance, como qualquer obra de arte contemporânea, questiona interiormente sua
própria poética através do diálogo crítico com as convenções poéticas do romance policial
de pura detecção. Nesse sentido, podemos afirmar que o método utilizado no romance de
pura detecção baseia-se nas metanarrativas que alicerçavam o humanismo liberal, como
certeza, universalização, origem, unidade entre outros. De acordo com Hutcheon (1991), o
humanismo liberal vem perdendo o seu caráter de verdade, pois a razão iluminista como
ethos primordial da modernidade entrou em um colapso incessante.
O mundo que é criado nos romances doyliano é um todo harmônico, previsível, em
suma, mecânico. Sendo o primeiro detetive verdadeiramente científico, Holmes tinha todas
as qualidades positivistas ideais para a solução de crimes, pois munido de conhecimentos
precisos para a solução de um determinado caso era capaz de criar dedutivamente
associações entre as pistas que o levava a uma resolução única. Em The Sign of Four
(DOYLE, 1991, p. 92), por exemplo, ele é capaz de deduzir que um relógio que Watson
ganhou recentemente pertenceu ao seu irmão mais velho:
“Suspect to your correction, I should judge that the watch belonged to your
elder bother, who inherited it from your father.”
“That you gather, no doubt, from the H. W. upon the back?”
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“Quite so. The W. suggests your own name. The date of watch is nearly
fifty years back, and the initials are as old as the watch: so it was made for
the last generation. Jewelry usually descends to the eldest son, and he is
most likely to have the same name as the father. Your father has, if I
remember right, been dead many years. It has, therefore, been in the
hands of your eldest brother.”
Como podemos verificar na citação acima, Holmes possui alguns conhecimentos
unilaterais que o faz chegar facilmente às conclusões finais, uma vez que vive em um
mundo mecânico e predeterminado. A constituição desse mundo no universo ficcional é o
que caracteriza o detetive. Todo a narrativa é organizada para atingir esse fim: criar uma
mente dedutiva em estado puro.
Em outras palavras, de acordo com Deleuze, Sherlock Holmes é um afecto, um
estado puro de sensações. Para esse filósofo francês contemporâneo, a obra de arte é
composta por perceptos e afectos.
Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado
daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou
afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles.
As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e
excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer,
porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo
das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e de afectos. A obra
de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si (DELEUZE,
GUATTARI, 1992, p. 213).
A partir da concepção de afecto em Deleuze e Guattari (1992), podemos afirmar
que Sherlock Holmes enquanto afecto da mente dedutiva pura é um constructo estético
que se dá tão-somente pela organização do enredo dos romances de Conan Doyle.
Primeiramente, o narrador-personagem Watson apresenta as características do detetive,
para depois descrever o caso e a maneira como Sherlock Holmes age durante a
investigação, para apenas no final da narrativa apresentar uma explicação através de um
diálogo com o prendado detetive.
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Enquanto para Adorno (1970), a obra de arte é uma “antítese social da sociedade”,
uma vez que rejeita normas e preceitos determinados, sendo, por conseguinte, instância
crítica que possibilita uma experiência diferente daquela imposta pela racionalidade
instrumental. Ela aponta para o que não pode ser instrumentalizado devido ao seu caráter
mimético que promove o estabelecimento de uma relação de semelhança consigo mesmo,
livre de qualquer sujeição, estabelecida na singularidade da experiência de sua
contemplação. Dessa forma, Sherlock Holmes sendo um ser de sensações puras não se
deixa dominar pelo sistema capitalista, pois tudo o que ele faz é por prazer, ele sente
necessidade de resolver casos que a polícia londrina não consegue solucionar. Por mais
que ele seja criado em pleno clima positivista e ser tido como um exemplo de especialista
positivista, ele não se deixa ser instrumentalizado, pois o trabalho de investigação para ele
não é trabalho, e sim ócio. Ele não reprime seus desejos para contribuir com a riqueza de
seu país, como os indivíduos na sociedade capitalista (ADORNO, HORKHEIMER, 1985),
ao dominar a arte de investigação pela dedução, pois o método dedutivo é parte inerente
ao seu ser.
Já os romances policiais de Michael Hardwick, entre eles The Private Life of
Sherlock Holmes, foram escritos a partir dos anos setenta, período contemporâneo que se
caracteriza principalmente pelo incessante questionamento da realidade. Nesse sentido,
esse romance, como qualquer obra de arte contemporânea, questiona interiormente sua
própria poética através do diálogo crítico com as convenções poéticas do romance policial
de pura detecção. Assim sendo, podemos afirmar que o método utilizado no romance de
pura detecção baseia-se nas metanarrativas que alicerçavam o humanismo liberal
(HUTCHEON, 1991).
Nos romances policiais contemporâneos, Sherlock Holmes se encontra em
situações diferentes daquelas apresentadas nos romances policiais escritos por Conan
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Doyle. O mundo nesses romances se apresenta como imprevisível, uma vez que é
impossível se ter um domínio completo de qualquer fenômeno como preconizava os
positivistas. Dessa maneira, romances como O Nome da Rosa (1983), de Umberto Eco, e
O Xangô de Baker Street (1997), de Jô Soares, demonstram a realidade nos moldes das
teorias pós-modernas, ou seja, como um construto lingüístico relacionado a um contexto
específico, fruto de um contrato social e, por conseguinte, processual. Em O Nome da
Rosa (1983), a busca de William de Baskerville pela verdade pode ser entendida
metaforicamente como uma reflexão das teorias contemporâneas sobre a natureza da
verdade e sua inerente relação com o processo de constituição de significados. Nesse
romance, os vários acontecimentos apenas têm sentido em seus próprios contextos. O
detetive deve ter bastante cautela para escolher o contexto que tem importância para a
interpretação dos misteriosos assassinatos numa abadia beneditina medieval. Assim
sendo, o alto grau de poder dedutivo do detetive não determina com precisão o mistério,
pois existem vários níveis de interpretação que o personagem-narrador Adso, aprendiz de
William, e o próprio leitor percebem. Já em O Xangô de Baker Street (1997), as faculdades
mentais de Sherlock Holmes não funcionam em nenhum momento, ele não consegue nem
sequer fazer uma dedução que o leve a um grau mínimo de veracidade. No calor dos
trópicos, sente-se afetado pelos “perigos locais” do Rio de Janeiro do fim do século XIX,
tais como feijoadas, vatapás, caipirinhas, drogas, pais de santo e mulatas. Não estando em
um local mecanicamente estruturado, os conhecimentos cientificistas do detetive inglês não
funcionam e, dessa maneira, os casos do misterioso desaparecimento do valioso violino
Stradivarius, que o imperador D. Pedro II deu de presente à baronesa Maria Luiza, e os
assassinatos de mulheres que eram deixadas com uma corda de violino na região pubiana
e tinham as orelhas decepadas não foram resolvidos.
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Como o próprio Watson, afirma The Private Life of Sherlock Holmes lida com casos
sensacionalistas como o envolvimento de Sherlock Holmes com uma mulher, bem como
elementos incongruentes, tais como um aparelho mecânico diabólico, um grupo de monges
que deram voto de silêncio e a rainha Vitória. São casos que Watson decidiu esconder do
público durante cinqüenta anos após sua morte, visto que “They involve matters of a
delicate and sometimes scandalous nature, as will become apparent to the reader when
these papers are perused after the expiry of stipulated term”. (HARWICK; HARWICK,
1970). Nesse sentido, temos o outro lado da vida de Sherlock Holmes que não foi narrada
na época vitoriana. Em outras palavras, Conan Doyle não explora o “Outro” de seu
personagem assim como autores vitorianos como Robert Louis Steveson, Joseph Conrad e
Oscar Wilde. O duplo é muito comum entre esses autores da última fase da era vitoriana,
pois eles exploram a vida oficial e não-oficial de seus personagens. Em The Body Snatcher
(STEVESON, 2008), Wolfe Macfarlane e Fettes são estudantes de medicina que ganham
dinheiro e prestígio de um professor, roubando corpos à noite para dissecar na faculdade
onde eles estudam. Já em An Oupost of Progress (CONRAD, 1998), Kayerts e Carlier
diante da selva africana perdem o controle e permitem que o lado inconsciente, irracional e,
por conseguinte, animalesco aflorem e os levem para um fim trágico. Já os personagens
John Worthing e Algernon Moncrieff, em The Importance of Being Earnest (WILDE, 1994),
para ter um escape da rigidez vitoriana hipocritamente criam o alter ego Earnest. Podemos
então afirmar com base no exposto acima que Michael e Mollie Hardwick tratam em The
Private Life of Sherlock Holmes de questões que ficaram encobertas no Sherlock Holmes
canônico.
3. A METAFICÇÃO PARÓDICA EM THE PRIVATE LIFE OF SHERLOCK HOLMES
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A metaficção paródica é um elemento recorrente constituinte da poética
contemporânea que se constitui a partir da auto-reflexividade sobre o fazer literário através
do diálogo com o cânone literário via paródia, pois é acentuado de maneira implícita ou
explícita “[...] a exploração pelos textos literários de sua própria natureza e condição de
ficção.” (CONNOR, 1996, p. 103-4). Ou seja, questionamentos sobre a ficcionalidade são
feitos durante o contacto do leitor com a obra literária contemporânea, pois ele, além de
estabelecer um diálogo com as obras literárias já consagradas por intermédio da paródia,
também cria novas interpretações que subvertem qualquer conceito de realidade enquanto
verdade única e irrefutável pelo viés da ironia, pois o que é dito remete a não-ditos em
potencial.
No romance contemporâneo, a metaficção por meio da paródia cria um
distanciamento em relação às formas narrativas tradicionais. Dessa maneira, a paródia
como uma forma poética consistentemente contraditória confere “[...] uma preponderância
política que a torna um elemento de crítica ideológica bastante poderoso [...]” (PEREIRA,
2006, p. 64). Nesse sentido, o romance pós-moderno é metaficcional e, conseqüente,
paródico, pois se constitui a partir do conflito entre criação e crítica. Fundindo-se esses dois
elementos, as distinções entre ambos sofrem uma ruptura, restando apenas interpretações.
Na arte contemporânea e, por conseguinte, no romance contemporâneo, a
metaficção paródica é um elemento estético que confere o movimento do território para a
terra e está, portanto, relacionado à expressão do belo natural visto aqui como diferente.
O movimento do território a terra, que é chamado por Deleuze (1997) de grande
ritornelo, é marcado pelo repelir do território ao infinito pela terra. Acreditamos que esse
conceito está intimamente relacionado com o belo natural em Adorno (1970),
compreendido como “antítese social da sociedade”, pois a arte abandona normas e
preceitos preconcebidos, rejeitando qualquer aspecto social que seja racionalizado pelo
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processo de Esclarecimento da racionalidade instrumental, chamada por Adorno e
Horkheimer (1985) de indústria cultural. Em Adorno (1970), a arte é a expressão do
silenciado, ou seja, do belo natural enquanto estado de não-dominação não submetido às
normas da sociedade capitalista, ela procura reviver o que foi oprimido pela força da razão
instrumental. Já em Deleuze e Guattari (1992), a arte cria estados de sensações puras,
sendo independente das percepções e afecções do espectador e artista.
Para escapar de uma bailarina russa que quer ter um filho bonito como ela e
inteligente, Sherlock Holmes, em The Private Life of Sherlock Holmes, procura inventar
desculpas afirmando que todos em sua família são hemofílicos, que é inglês e, portanto,
não é bom amante. No entanto, nem um desses pretextos convence a bailarina em fim de
carreira. Somente quando ele diz que tem um caso com Watson é que consegue fugir de
suas garras, como podemos observar no trecho a seguir narrado por ele mesmo e não
Watson: “‘You see, I am not a free man.’ ‘Precisely. A bachelor who, for the past five years,
has … lived with another bachelor.’ I paused fractionally before continuing. ‘Five very happy
years.’ (HARWICK; HARWICK, 1970, p. 41 )”.
Nessa passagem, vemos um lado de Holmes que não aparece nos romances
doyliano, a não-sinceridade, o descaramento. Logo no primeiro falso motivo que cria na
hora, o leitor e a própria bailarina percebem a sua frágil mentira e partir daí entendemos
que as demais desculpas são meras formas indiretas de negar o pedido da russa. Em
outras palavras, Sherlock Holmes enquanto afecto da mente dedutiva não está de forma
nenhuma preocupado com o que suas declarações possam causar, ele não segue as
normas estabelecidas pela sociedade administrada.
Na seqüência da narrativa, Holmes e Watson se deparam com um crime
aparentemente clássico. Uma mulher com amnésia provocada por uma forte batida na
cabeça é trazida por um cocheiro que a encontrou no Rio Tames quase morrendo afogada.
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Ela apenas sabia o nome de Holmes. Como estava em seu costumeiro clima de tédio,
característica peculiar de sua ociosidade, Holmes se entrega de corpo e alma ao caso. À
noite, Holmes é perturbado pelo seu grito enquanto estava dormindo, sendo agarrado por
ela que nua e em estado febril se confunde com seu marido. Holmes aproveita o momento
e displicentemente tem relações sexuais com essa mulher como podemos perceber na
passagem abaixo:
“It was a small voice outside my door; and even as I heard it again there
came the click of the doorknob and the creak of the opening door.
‘Emile?’ I heard the voice of our visitor. ‘Is that you, Emile?’
I had risen to my feet, and now stepped quickly into a path of shadow
beyond the dying firelight’s gleam as she came into the room. She was
what I can only describe as naked.
‘Yes, Gabrielle. It is I,’ I responded, thankful that she has chosen English as
her means of communication with her imagined husband.’ (HARWICK;
HARWICK, 1970, p. 61).”
Podemos nessa passagem da obra perceber que Holmes não é apenas aquele
detetive metafísico com características determinadas a priori demonstradas por Watson,
mas um ser humano que se constitui diariamente enquanto sujeito. Os elementos
peculiares do romance de pura detecção doyliano são repetidos parodicamente de forma
diferente, o que é característico do ritornelo. Nesse romance, nem tudo é narrado pelo
narrador-personagem Watson e Sherlock Holmes não é um detetive que exclusivamente só
vive para seu ócio.
Procurando pistas, Holmes mexe seus pertences e a identifica como sendo
Gabrielle Valledon, esposa de um engenheiro belga. Quando ela recupera a sua memória,
diz que seu marido havia desaparecido enquanto trabalhava na Inglaterra numa empresa
chamada Jonah, Ltda. e que mantinha contato com ele apenas por um endereço postal.
Espionando esse endereço, eles encontram uma loja onde uma senhora numa
cadeira de rodas recolhe cartas. Além disso, nessa loja também existe uma gaiola cheia de
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canários e alguns operários vêm e levam alguns deles num pequeno engradado forrado
com edições de The Inverness Courier. O nome Jonah é enigmaticamente mencionado
novamente e uma carta deixada pela senhora contém o endereço de Holmes. Essa carta é
deixada por seu irmão marcando uma reunião no Clube Diógenes. Nessa reunião, Holmes
percebe que seu irmão Mycroft, ao lhe dar ordens para se afastar desse caso, envolve-se
em todo tipo de atividades secreta no Departamento para Assuntos Estrangeiros Inglês.
Em outras palavras, o irmão de Holmes é um indivíduo do estado que é tido como agente
mantenedor da realidade aparentemente estável da sociedade inglesa. Como indivíduo que
não faz parte da sociedade administrada inglesa, o detetive não se deixa ser controlado
pelo estado e não segue os conselhos do irmão.
Dando continuidade a sua investigação, Holmes parte para Inverness como Senhor
e Senhora Asdown com Watson como o mordomo do casal. Quando chegam ao hotel,
Watson vê um monstro no lago Loch. Durante suas excursões nessa região, eles vêem
num cemitério os coveiros enterrando três caixões, um grande e dois pequenos. De
repente, Holmes percebe que quatro dos garotos que estão presentes no enterro são
anões. Como ele está humilhantemente investigando o desaparecimento de seis anões de
um circo, deduz que os outros que foram enterrados são anões e o homem é o marido de
Gabrielle. À noite, Holmes, Watson e Gabrielle desenterram o caixão maior e encontram o
marido perdido com vários canários mortos.
No
Castelo
Urquat,
eles
encontram
trabalhadores fazendo serviço de restauração a serviço do Clube Diógenes e guias que
não sabem nada de história.
Encontrando novamente seu irmão Mycroft, Holmes confirma suas deduções. Ou
seja, a marinha inglesa estava testando um submarinho chamado HMS Jonah, tripulado
por anões e tendo como combustível uma sistema de baterias criado por Valladon, que,
quando misturado com água, produz um gás mortífero que matou o engenheiro. Além
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disso, Mycroft revela o que ele não deduziu: a mulher que se passa pela esposa do
engenheiro é na verdade a agente alemã Ilse von Hoffmanstall que estava espionando o
projeto Jonah. Em Conan Doyle, Holmes não gosta de mulheres, já nesse romance ele
afirma que essa peculiaridade não é própria de sua personalidade, pois é tão somente uma
das propriedades ficcionais que Watson lhe atribui. Ele apenas diz em The Private Life of
Sherlock Holmes que não confia no sexo oposto. Sendo assim, ele não se preocupa em
uma mulher ter lhe enganado mais uma vez, pois já tinha sido trapaceado por seu alter ego
feminino Irene Idler em A Scandal in Bohemia.
Sherlock é convidado por seu irmão para o batizado do submarino pela rainha
Vitória. Quando a rainha descobre que a invenção é um artefato de guerra, fica horrorizado
e imediatamente ordena sua destruição. A rainha aqui tem a aparência das rainhas dos
contos de fadas, ou seja, ela vive feliz para sempre com seu príncipe no castelo real e
desconhece a situação real de seu país. Provavelmente, ela fica sabendo da criação desse
submarino porque ele fora apenas o primeiro protótipo para construção de outros mais
potentes.
A destruição do submarino é deixada a cargo de Holmes que, de forma melancólica,
desmascara sua amada e destrói o submersível. Alguns meses depois dela ser extraditada
para a Alemanha, o famoso detetive recebe uma carta de Mycroft informando-o que ela
tinha sido acusada de espionagem pelos japoneses e, consequentemente, fuzilada.
Holmes retorna para a sua solução de setenta por cento de cocaína. Nem mesmo Watson
consegue convencê-lo do contrário.
4. CONCLUSÃO
Nesse romance policial de Michael Hardwick, o narrador-personagem não segue o
modelo de enredo característico do romance policial doyliano, ou seja, ele não apresenta
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as capacidades mentais do detetive, não é capaz de descrever o crime e a investigação em
sua totalidade, como também não apresenta o desfecho final da narrativa. Além disso,
Watson não narra todos os acontecimentos do início ao fim do romance. Em The Private
Life of Sherlock Holmes, temos como narrador o porteiro de um banco e próprio Sherlock
Holmes.
Os elementos que estruturam a narrativa em The Private Life of Sherlock Holmes
apresentam-se de forma diferenciada. Contudo, o detetive continua sendo um afecto da
mente dedutiva, um estado puro de sensações, um devir não humano, que só pode existir
na obra de arte. Dito de outra forma, Sherlock Holmes é como nos romances de pura
detecção doyliano, um indivíduo que não deixa ser reprimido pelas regras da sociedade
administrada na época vitoriana.
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O questionamento do romance de pura detecção em The Private Lif