1 LITERATURA BRASILEIRA DE EXPRESSÃO ALEMÃ (Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa) HILDA SIRI 1918-2007 (Celeste Ribeiro de Sousa) 2008 Resumos comentados Hilda Siri está entre os mais profícuos escritores da literatura brasileira de expressão alemã. Poetisa sensível, também produziu bons contos, narrativas memorialistas, peças de teatro e ensaios, além de traduções de obras da literatura brasileira para o alemão. Nos últimos anos de vida, Hilda Siri dedicou-se a coligir a própria produção literária, dispersa em jornais e “Kalender”, num volume intitulado Die alte Truhe (O velho baú), título de um de seus contos. Este volume obteve duas edições, uma em 1999 e outra em 2000. • Hilda Siri em 1999, aos 81 anos, por ocasião do lançamento de seu livro1 1 Fotografia do espólio da autora, gentilmente cedida por seu filho Marcus Zwanziger. 2 A última edição traz o seguinte prefácio do próprio punho da escritora: Sem que tivesse sido essa a intenção, as configurações presentes tanto nas narrativas, quanto nos poemas, fornecem uma imagem fiel do modo de viver, bem como da história dos descendentes dos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul. A fantasia transfigurou a experiência. Através da divisão em capítulos intitulados “floresta”, “colônias”, “cidade” e “interior”, foram preservados o desenvolvimento e a transformação dos hábitos e costumes dos brasileiros-alemães dentro de um período de tempo de cerca de cem anos. A cidade grande não coube mais aqui, pois a miscigenação racial, o progresso técnico, a globalização, o modus vivendi das pessoas, não só no Brasil, experimentam uma incisiva e duradoura generalização. Os hábitos e os costumes dos descendentes de alemães alteraram-se de tal forma no final do século XX, que só em grupos étnicos isolados ainda são cultivados.2 Todavia, nem todos os textos da autora constam desse volume, talvez porque ela mesma os tenha perdido, nas mudanças de Ijuí para Lomba Grande, no Rio Grande do Sul, e/ou de Lomba Grande para São Paulo. E ainda há os casos de discrepâncias entre o registro das 1ªs publicações e o registro dessas mesmas narrativas na coletânea citada. Como ilustração, cite-se o título da narrativa sobre mascates, em que na primeira publicação, de 1956, o registro é Musterreiter sind da! e na coletânea Die alte Truhe (O velho baú), de 2000, é Die Musterreiter sind da. As produções, que ora estão colocadas on line neste seu “ebook”, contemplam todos os textos até agora encontrados. 2 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Ohne es darauf abgesehen zu haben, ergeben die Schilderungen in den Geschichten sowohl in den Gedichten ein getreues Bild der Art und Lebensweise, wie auch Geschichte der Nachkommen der deutschen Einwanderer in Rio Grande do Sul. Die Phantasie verarbeitete das Erfahrene. Durch die Einteilung in Urwald, Siedlung, Stadt und Land wurde die Entwicklung und Veränderung der Sitten und Gebräuche der Deutschbrasilianer in einem Zeitabschnitt von über hundert Jahren festgehalten. Die Großstadt kam nicht mehr hinzu, da durch die Rassenvermischung, den technischen Fortschritt, die Globalisierung[,] die Lebensart der Menschen nicht nur in Brasilien eine einschneidende und fortwährende Verallgemeinerung erfährt. Die Sitten und Gebräuche Deutschstämmiger haben sich Ende des zwanzigsten Jahrhunderts so verändert, dass sie nur noch in vereinzelten ethnischen Gruppen gepflegt werden”. In: Siri, Hilda. Die alte Truhe. Vorwort. Campinas, ed. particular da autora, 2000. 3 Como alude a autora no prefácio, a coletânea apresenta uma determinada divisão temática: Capítulo 1 – textos (poesia e prosa) em torno do tema “Dämmerung” (lusco-fusco); Capítulo 2 – textos (poesia e prosa) em torno do tema “Urwald” (floresta virgem); Capítulo 3 – textos (poesia e prosa) em torno do tema “Siedlung” (colônias); Capítulo 4 – textos (poesia e prosa) em torno do tema “Stadt” (cidade); Capítulo 5 – textos (poesia e prosa) em torno do tema “Land” (interior); Capítulo 6 – textos (poesia e prosa) em torno do tema “Abenteuer” (aventuras); Capítulo 7 – textos em torno do tema “Bühne” (palco); Acrescento aqui, no entanto: Capítulo 8 –, em que caberiam seus inúmeros “ensaios” e artigos publicados em jornal, e Capítulo 9 –, que abarcaria as traduções de obras da literatura brasileira para a língua alemã, efetuadas por Hilda Siri, a saber: O saci, de Monteiro Lobato; “O tempo”, de Olvavo Bilac; Ressurreição, de Machado de Assis; “As pombas”, de Raimundo Correia; O rico e o pobre, de Coelho Netto; A festa no céu, de Luiz da Câmara Cascudo; O mate do João Cardoso, de José Simões Lopes Neto. Além da literatura brasileira, Hilda Siri também contemplou o poema “If” (“Wenn”), de Rudyard Kipling, com uma tradução para o alemão. Cada um dos seis primeiros capítulos, que compõem o livro da escritora, compreende poemas, textos ficcionais e prosa memorialista. Por exemplo, os poemas e as narrativas do 1º capítulo giram em torno da atmosfera da passagem da luz à penumbra (crepúsculo) e da penumbra à luz (alvorada), que em alemão é traduzida por uma 4 única palavra “Dämmerung”, e para a qual a língua portuguesa dispõe do vocábulo “lusco-fusco”. Os poemas são: “So einen Tag wie heut”, “Erwachender Tag”, “Wenn du erwachst”, “Herbst am Lagoão”, “Dämmerstunde”, “Feierabend”, “Der neue Tag” e “Liebesgedichte I – VII”. E as narrativas são: Mein Städtchen erwacht, Abendstimmung auf dem Kamp e Es reift. O poema “So einen Tag wie heut” (Um dia assim como hoje), composto de 2 sextetos, canta a proximidade do eu-lírico à natureza, que é caracterizada através de elementos comuns ao topos do paraíso: luz, cores, calor e sombras frescas, canto dos pássaros, perfume das flores. O eu-lírico expande sua alma em bemaventurança. Não há sofrimento. No poema “Erwachender Tag” (O dia que desponta), de 2 quadras e um sexteto, louva-se a luz do sol, que rasga a penumbra, os véus, criados pelo nevoeiro e faz emergir em puro esplendor as casas, a igreja, os prados, as árvores, as flores e as folhas orvalhadas. O poema “Wenn du erwachst” (Quando tu acordas), de 3 quadras, canta “o estar em processo” (das Werden), a benção do sono que antecede sempre o nascimento de um novo dia pleno de esperança, configurada pela luz dourada do sol, pelos botões prestes a desabrocharem em flores perfumadas de árvores habitadas por pássaros que pipilam o encanto da Natureza. Na poesia “Herbst am Lagoão” (Outono no lagoão), de 4 quintetos, a visão da natureza apresenta-se tão extasiante que o eulírico deixa de conseguir fazer a diferença entre a realidade e o sonho, entre o sonho e a experiência mística. Em “Dämmerstunde” (Hora crepuscular), de 2 quadras, o eulírico refere-se à liberdade do coração em falar o que sente só no final do dia de trabalho: as coisas não realizadas vêm à tona, as coisas mantidas sob controle pela razão libertam-se e uma enorme nostalgia toma conta da alma. 5 Em “Feierabend” (Descanso), um poema triste de 3 quadras, o eu-lírico queixa-se do peso excessivo do trabalho diário, da solidão. De bom sobra-lhe a possibilidade de de sonhar, guiado pela chama de uma vela, por uma palavra boa, por um olhar amoroso. Em “Der neue Tag” (O novo dia), composto de 6 quadras, o eu-lírico volta-se para os inacreditáveis e inesperados movimentos da natureza: como é possível ao calor abrasador e à tempestade, que tudo parecem aniquilar, sobrevir um belo dia? “Liebesgedichte” (Poemas de amor) apresenta-se num conjunto de 7 partes, assinaladas por números romanos. A primeira parte é composta por 4 estrofes bastante irregulares: 1 sexteto, 1 estrofe de 18 versos e 1 estrofe de 7 versos (uma septilha). Aqui o eu-lírico interroga um tu fortemente desejado, um tu de mãos fortes e delicadas que, porém, nunca o tocaram; um tu de braços aconchegantes que nunca o abraçaram; um tu, cujo primeiro olhar o deixou rendido. Sobressai um eu-lírico atônito ante a falta de comunicação entre um eu que deseja e um tu que ignora. A segunda parte, composta de uma estrofe de 11 versos, seguida de outra de 8 (um octástico), ocupa-se com as emoções experimentadas ante a visão desse tu. A terceira parte, constituída de um octástico e de uma septilha, dá notícia da consciência que eu-lírico possui da idealização feita desse tu. Na quarta parte, formada por uma única estrofe de 13 versos, o eu-lírico protege-se de sua (desvairada) paixão, mantendo o tu à distância, a uma distância segura, em que possa, porém, contemplá-lo. Na quinta parte, também composta de uma única estrofe de 10 versos (um decástico), tenta justificar e entender a situação em que se encontra: impossibilidade, incapacidade de se declarar a esse tu, por timidez, orgulho, medo de não ser compreendido. Na sexta parte, formada de 1 quadra seguida de um octástico, o eu-lírico admite que a visão do tu não passa de uma ilusão e, na sétima e última parte, composta de apenas um decástico, 6 volta-se esse eu-lírico para a natureza, evoca a passagem da noite ao dia e imagina-se na manhã que virá, envolto num banho de sol. A narrativa Mein Städtchen erwacht (Minha cidadezinha desperta) começa por estabelecer um contraste entre o ambiente externo, noite funda, quieta e silenciosa, e o eu-narrador, que está acordado, vígil, mas por um problema prosaico: uma dor de dentes. Ainda assim, o eu-narrador consegue escutar as vozes da noite, todos os rumores que se sobressaem: o ladrado dos cães, o farfalhar das folhas, o estridular dos grilos, o pio das corujas, o ranger do madeirame, o liga-desliga da geladeira, as vozes dos noctívagos, como o vigia noturno e seu apito estridente, e sente-se protegido nesta cidadezinha. E, dentro desta emoção, assomam a imagem da praça a marcar o ponto central, em redor do qual se agrupam as casas por cima de três colinas e dois vales, a imagem das duas igrejas principais, das lojas e dos bancos em momentânea hibernação, das ruas adormecidas e do orvalho umedecendo jardins e árvores. Bons vizinhos ladeiam a casinha modesta do eu-narrador. Ali estão o seu quarto de dormir, sua cama, a coberta de penas, que o faz sentir-se confortado e agradecido. Oberva a seu lado o sono profundo e ritmado do filho mais novo, e reparando na sequência anárquica dos próprios pensamentos, ouve a voz da primeira professora, nos tempos em que era permitido desejar coisas e viver em castelos encantados, a voz das colegas nos trajes de então. Tempos bem diferentes dos de hoje, em que a lista dos deveres é interminável e a dos desejos minúscula. Por fim, toma um comprimido e adormece nos braços da cidadezinha, fundada por Augusto Pestana, como se fossem os de uma mãe. Abendstimmung auf dem Kampe (Ao entardecer no pampa) começa por anunciar uma viagem de moto, a dois, pelo campo gaúcho ou pampa – estepes úmidas, regiões típicas do sul do Brasil, verdadeiros tapetes verdes, forrados por leguminosas e gramíneas nativas, que se estendem por mais de 200.000 km². O cair da noite 7 faz-se anunciar pelo aumento da sombra dos viajantes projetada na faixa vermelha da estrada de terra. As cores da paisagem são variadas e ricas de nuances. O gado pastando forma pequenos pontos e as colinas ao longe marcam a presença de pequenas florestas. Fiapos de fumaça assinalam casebres. De repente, tudo se transforma em cinza generalizado. E também a moto sofre uma avaria, que é reparada à luz da lua. A paisagem se transforma e é objeto de nova descrição. Em Es reift (Cai geada), a narrativa, desenrolada no pretérito imperfeito do indicativo, começa com um eu-narrador, acordando atônito e perguntando-se, de dentro da personagem Elvira, por que não o haviam despertado como de costume? Veste-se rapidamente, dando nome aos tecidos e aos trajes a que deita mão (como que a pontuar marcas de uma determinada época). A explicação vem da avó, que alega, estar aquela manhã particularmente fria: lá fora uma capa branca de geada cobre tudo e a água do balde está congelado à superfície. Elvira toma o café da manhã, agarra a mochila e vai para a escola, sem atender às recomendações da avó, que a quer agasalhada e calçada. Descalça, a caminho da escola, encontra Irene, a filha do médico do lugar, que está com sapatos. Inicia-se, então, um diálogo infantil entre “tira os sapatos”, “não, está frio”, “não sabes o que é sentir a geada”, até que Irene, convencida, também fica sem sapatos. As duas crianças encantam-se com a nova experiência, a que outras vão aderindo. Na escola, que tem assoalho de tábuas e uma espécie de lareira de ferro, mal sentem o frio. Nas brasas, costumam assar “pinhões”, que passam de mão em mão, para serem comidos e também para se aquecerem. Com este grupo de crianças contrasta um recém-chegado, vindo da cidade grande, chamado Günther. Ele calça sapatos e meias, veste muito bem e, espantosamente, fala português com fluência! E, então, Elvira confessa à amiga Irene sua atração por Günther, ao que esta replica, não ser possível a um rapaz daquela estirpe estar interessado em 8 menina tão caipira. Este primeiro amor de Elvira derrete-se, então, como a geada ao sol daquele dia. O segundo capítulo do volume coligido por Hilda Siri, abarca textos em torno do tema geral “Urwald” (floresta virgem). São eles: os poemas “Den ersten Einwandern gewidmet” e “Im neuen Land”, e as narrativas Erstes Weihnachtsfest in der neuen Kolonie, Geburt am Rande des Urwalds, Die alte Truhe, Die Rache des Urwalds e Der Tod der Onça. O poema “Den ersten Einwandern gewidmet” (Dedicado aos primeiros imigrantes) conheceu, pelo menos, sete republicações, tanto em coletâneas, como em jornais (veja-se o capítulo “Dados biobibliográficos” sobre a autora), o que atesta o seu enorme valor dentro do grupo étnico de língua alemã no Brasil. Trata-se de uma composição de 5 tercetos de rimas alternadas, um canto de gratidão ao Brasil que acolheu todos os imigrantes antepassados e que lhes deu a colheita que procuravam, apesar do trabalho duro da sementeira. “Im neuen Land” (Na nova terra) é uma composição que obteve duas publicações: uma no jornal Serra-Post, em 24.07.1954, à página p. 1, e outra na coletânea, que a própria autora coligiu. O poema da coletânea apresenta 5 estrofes de 16, 8, 8, 8, 8 versos, respectivamente. Embora assim esteja graficamente apresentado no volume editado pela autora, não se pode deixar de perceber, que talvez a primeira estrofe tenha inadvertidamente escapado sem divisão e, em vez de 5 estrofes, sejam 6 de oito versos cada. De fato, na publicação feita no jornal, a versão do poema é um pouco diferente (e mais antiga), estando as pequenas diferenças apontadas em azul na transcrição a seguir. Im neuen Land Auf kleiner Lichtung, mitten im Wald 9 sitzt eine Frau auf der Truhe. Fernher ein Axtschlag herüberhallt durch die mittägliche Ruhe. Der Mann schlägt mühselig Pfahl um Pfahl Zu Wänden und Dach einer Hütte. Er baut sie am Bach im waldigen Tal nach deutscher Einwanderer Sitte. Die junge Frau erwartet den Mann und hütet, die kostbare Habe. Ihre Hände schützend umfassen kann des Himmels gütige Gabe: Das schlafende Kindlein im weichen Schoß, den Knaben an ihrer Seite; mit nackten Füßlein, die Ärmchen bloß geht forschend sein Blick in die Weite. Die Truhe birgt im eichenen Holz Geschirr, Geräte und Linnen. Der tüchtigen Hausfrau höchster Stolz, auch Rocken und Rad zum Spinnen. Auf allem, was sie ihr Eigen nennt, ruht zärtlich die schwielige Hand. Den einzigen Reichtum, den sie kennt, bringt sie dem neuen Land. Sie sitzt ganz stumm, ihr suchender Blick stellt bangend die wehe Frage: Das ist die Heimat, dies mein Geschick? Kann ich das Los wohl ertragen, In diesem wilden unheimlichen Wald trotzend voll böser Gefahren, ein Heim zu schaffen für jung und alt in mühevollen Tagen und Jahren? Mit Heimweh, das jetzt schon am Herzen nagt, ausharren, schaffen und siegen? Muss ich nicht schließlich verbraucht u. verzagt 10 der furchtbaren Wildnis erliegen? Der Hilfe fern gebären ein Kind und wachen an Krankenlagern? Um, wenn wir alt und müde dann sind noch mit dem Schicksal zu hadern. Die kräftige Frau mit dem stolzen Wuchs wird nie im Kampfe erliegen! Auf ihrem Antlitz steht der Entschluss in zähem Fleiß zu siegen. Der hoffende Glaube Gewissheit enthüllt, ihr zagendes Herz belebt, Dass künftig sich an den Kindern erfüllt, was sie heute ersehnt und erstrebt. Tanto uma versão, quanto outra, (as diferenças não afetam o significado essencial do poema) conformam um hino de louvor à mulher imigrante, que dá retaguarda ao marido que, num trabalho pesado, abate árvores na floresta primeva, para construir o primeiro casebre, que os há de acolher. É a mulher, que cuida deste homem, que cuida das crianças já nascidas e das que virão, dos velhos e dos doentes. É esta mulher, que tece roupas e faz todos os demais serviços. É significativa a presença no poema do baú de madeira de carvalho, trazido da pátria europeia com todos (poucos) haveres do casal. Ele é a alegoria da velha pátria, que embora deixada para trás, não deixa de se fazer presente, e constitui elemento de identidade. Este baú aparecerá ainda em um conto da autora e como título da coletânea. É, portanto, um motivo que carrega significado. Está, com certeza, ligado ao baú real, hoje exposto no Museu de Ijuí, em que o nome dos primeiros donos está gravado no interior da tampa. Segundo informações colhidas no espólio da autora, trata-se de um baú adquirido por um irmão de seu trisavô materno, que, por sua 11 vez, o presenteou ao irmão, C.F. Becker, quando este imigrou com mulher e filho para o Brasil. Foto do baú, que ainda hoje se encontra exposto no Museu de Ijuí. Entre todos os poemas, gostaria de destacar um que tem o título “Ein Tropfen Wasser”, com dois registros linguísticos diferentes. Um poema construído sobre uma delicada metáfora, que enforma os percalços da existência humana: a vida do ser humano em paralelo e em entrecruzamento com a vida de uma gota de água. A narrativa Erstes Weihnachtsfest in der neuen Kolonie (Primeira festa de Natal na colônia) inicia-se com uma exclamação de decepção! A mãe imigrante sente-se muito desconfortável, na verdade sofre, durante as celebrações do Natal no novo país: “Isto não é festa de Natal nenhuma!“3. As circunstâncias em que se 3 Trad. Maria António Hörster “Das ist doch kein Weihnachtsfest”. Siri, Hilda – Die alte Truhe. 2ª ed. Campinas, 2000, p. 16. 12 encontra são tão outras! Ocupada em confeitar as comidas natalinas típicas, não dispõe dos ingredientes necessários: “Não há bolachinhas com gengibre e canela, cravinho e noz-moscada, nem pão de mel com especiarias, porque aqui faltam os ingredientes necessários. Só há bolachinhas de farinha com cobertura de açúcar, do jeito que eles aqui sempre fazem.”4 Também não há maçãs assadas. Também não há neve, nem frio, nem um abeto para montar a árvore de Natal. Não se ouve o repicar do sino, nem as canções de Natal! A colônia em que vivem é uma ilha, cercada de floresta por todos os lados. Os vizinhos mais próximos ficam a quilômetros de distância. O marido retruca com uma visão da esperança no presente e no futuro: eles têm terra própria, e colhem trigo e milho que lhes assegura a comida diária. Há igualmente a possibilidade de assistirem à missa do galo na igreja distante, embora não seja possível levar os filhos, porque o caminho é longo. Em casa, são as crianças que mais se mostram flexíveis, adaptáveis, abertas ao novo: é delas a ideia de substituírem o abeto por um pinheiro que vão cortar na floresta. São elas que o decoram com as bolas coloridas, as pinhas prateadas, as nozes douradas e outros enfeites natalinos que trouxeram da velha Alemanha. Um vizinho ajuda a aclimatar o novo Natal, batendo-lhes à porta, fantasiado de “Papai Noel” (“Weihnachtsmann” ou Papai Noel /“Pelznickel” ou “Nickel das Peles”/“Nikolaus” ou “São Nicolau), nomes que se sobrepõem na narrativa, e, ao visitar as crianças, ajuda a construir as pontes entre a Europa e a América. Este mesmo tema natalino obtém da autora uma versão para teatro, intitulada Das Christbäumchen, cuja tradução já se encontra on line como A arvorezinha de Natal. Em Geburt am Rande des Urwalds (Nascimento na orla da floresta), a narrativa começa pela descrição do espaço: um sol da 4 Trad. Maria António Hörster. “Es gibt keine Pfeffernüsse und keine Lebkuchen, denn dazu fehlen hier die Zutaten. Es ist das Mehlgebäck mit Zuckerguß, wie sie es alle hier backen”. Siri, Hilda – Die alte Truhe. 2ª ed. Campinas, 2000, p. 16. 13 tarde abrasador, apressando o amarelecimento das folhas da plantação de tabaco, colhidas por uma mulher, a sra. Korten, protegida por calças masculinas sob o vestido e, na cabeça, por um lenço e por um chapéu. Mesmo assim, o clima tem-lhe sido implacável com a pele, deixando-a como couro. Chamada com insistência e aflição por um cavaleiro que se aproxima, revela-se também a parteira da vasta região: seu falecido marido havia sido médico. Afinal, o cavaleiro saíra de casa há três quartos de hora. Enquanto o homem é aconselhado a voltar para casa e a ferver água, Frau Korten abandona a plantação, limpa o suor do rosto, tira o chapéu e o lenço da cabeça, dirige-se ao seu cavalo, coloca-lhe os arreios, vai a casa, toma banho, troca as roupas e pega a sacola com os utensílios para o parto. A parturiente encontra-se no meio das dores, mordendo os lábios, numa casinha coberta de folhas de zinco – um verdadeiro forno. Frau Korten tudo observa e escuta. A floresta virgem ali pertinho do quintal da casa, está tranquila. A atmosfera de aflição é criada pelo estabelecimento de dúvidas da jovem mãe que, ora acredita que o parto correrá bem como todos os outros partos ocorridos na colônia, ora pensa que, se tiver dificuldades, o hospital ou médico mais próximos estarão a quilômetros de distância. As frases são construídas de tal forma que uma ansiedade crescente vai sendo elaborada, até que uma menina vem à luz, para decepção da mãe, que queria um menino. Depois de deixar pais e filha tranquilos, pega o cavalo de volta para casa, passa por uma vizinha, dá a boa nova e pede um caldinho de galinha para a jovem mãe. Em Der Tod der Onça (A morte da onça), a narrativa começa com uma oposição entre o espaço doméstico e o espaço exterior: lá fora está frio e venta, dentro o calor do forno e do vinho tornam a vida agradável. À mesa há um “nós”, formado pelo tio Reinhold, irmão da mãe do eu-narrador, e o próprio eu-narrador, o qual relata ter-se tornado ultimamente costume trocar opiniões sobre coisas ocultas e místicas, que desde sempre têm ocupado as fantasias 14 humanas. Naturalmente, as opiniões divergem, indo da crença nas realidades accessíveis pelos cinco sentidos, da explicação de tudo pelas leis da física e pelo intelecto, até a aceitação da reencarnação e do contato com os mortos. Nenhum dos interlocutores, porém, tem qualquer experiência mística ou afim. O tio Reinhold acabara de vir das Missões, mais precisamente de uma colônia chamada Monte Carlo às margens do Rio Paraná, na Argentina, para visitar a família que deixara na “Serra” brasileira. Havia-se mudado com mulher e filhos, junto com outros teuto-brasileiros (Deutschbrasilianer) e mesmo alemães (Reichsdeutsche), para o país vizinho, quando o diretor de colônias, Culmeier, traçou os limites do novo assentamento. É ele quem inicia a narrativa (encaixada), que vai desenrolar-se dentro de uma primeira (encaixante), que acabamos de expor, uma estratégia literária típica do Realismo alemão do século XIX. A “narrativa encaixada”, que se segue no diálogo das duas personagens, passa-se no tempo da colheita de laranjas, ou seja, no fim da primavera e começo do verão, num tempo impossível de precisar, embora o segundo eu-narrador, o tio, garanta conservar a lembrança fresca na memória. Sua casa pequena erguia-se bem no meio do pomar. Os ajudantes estranhos à comunidade, contratados para ajudar na colheita eram albergados em barracão, fora da casa. Estava uma noite clara e estrelada, de sábado para domingo, os ajudantes estavam de folga, mas dois deles haviam detectado pegadas de uma onça por perto e, por isso, puseram-se à caça do bicho antes do cair da noite, dirigindo-se à floresta que ficava a umas boas três horas de distância. E, então, [...] A folhagem lisa das laranjeiras brilhava, prateada, à luz do luar. Eu saboreava o cair da tarde na varanda até que a neblina começou a se formar no rio. Então, fui sentar-me ao lado do rádio, sintonizei boa música de Buenos Aires e peguei um livro para ler. Quando as pálpebras foram ficando pesadas fui para a cama e logo cai em sono profundo, pois havia tido um dia estafante. 15 E, então, tive um sonho singular [...].5 Aqui começa uma terceira narrativa, a do sonho, (encaixada na encaixada) e esta estratégia poética vai adquirindo uma certa complexidade formal e de conteúdo, a entrecruzar diferentes planos de consciência e de subconsciência – os da memória e os do sonho. No sonho, o tio Reinhold acordara e, no escuro, pareceu-lhe ouvir passos furtivos. Soergueu-se à escuta. Os passos pareciam vir de seu próprio quarto, no que ele distinguia a presença de duas pessoas ali perto dele. Ouvia-as até respirar, mas não conseguia vê-las. Foi, então, acometido por um medo animal, que o congelou. A morte parecia-lhe iminente. Reagiu, disposto a se atracar com os invasores. Então, a luz de uma lanterna se acendeu e ofuscou-lhe os olhos. Em seguida, um raio relampejou e um estalido arrepiante cortou o ar, atingindo-lhe o estômago e provocando uma dor lancinante. Sentiu o sangue quente jorrar da ferida, e, enquanto desfalecia, reconheceu o ajudante João, que ainda empunhava a arma fumegante. Acordou banhado em suor. Nada no quarto se alterara. Volta-se, com isto, à narrativa anterior – a do estado de vigília, enformado pela memória. A personagem levanta-se, veste o poncho, pega o revólver e a lanterna. Na cozinha, o relógio marca quatro horas e cinco minutos. Revira a casa e o entorno: não encontra ninguém. Silêncio absoluto. Volta à cama, mas não consegue voltar a adormecer. O curioso é que, realmente, sente uma dorzinha na boca do estômago. Por fim, acabe por adormecer e ao acordar já pensa no trabalho que tem pela frente, apesar de ser domingo. Às nove horas chegam João e Luiz com uma onça morta. Uma quarta narrativa se instala, agora, dentro do primeiro diálogo encaixante, aquele que ocorre à mesa entre o tio Reinhold e o sobrinho: Luiz, na selva úmida e fria, com o apoio da 5 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “[...]Die glatten Blätter der Orangenbäume glitzerten silbern im Mondlicht. Ich genoss den Abend auf der Veranda bis vom Fluss die Nebel aufzusteigen begannen. Dann setzte ich mich ans Radio und stellte gute Musik aus Buenos Aires ein und las ein Buch. Als mir die Augenlieder schwer wurden, ging ich zu Bett und lag bald im tiefen Schlummer, den ich hatte einen anstrengenden Tag hinter mir.” Siri, Hilda – Der Tod der onça. In: Siri, Hilda – Die alte Truhe. Campinas, edição particular, 2000, p. 35. 16 cachaça ingerida, numa situação descrita em minúcia, havia abatido uma onça. Olhando para relógio, viu que havia atirado precisamente às quatro e cinco! Havia acertado o seu relógio pelo da cozinha do tio Reinhold. A bala atingira o estômago da fera! Como explicar as coincidências? A pergunta foi deixada à mesa e aos interlocutores da(s) narrativa(s) e aos leitores. De todas as narrativas, destaco Die Rache des Urwalds e Die alte Truhe. Die Rache des Urwalds (A vingança da floresta virgem) é um pequeno conto, em que o dia-a-dia de uma família imigrante é configurado a partir da perspectiva íntima da mulher, de modo econômico, concentrado, intenso e trágico. No meio de um dia de labuta contra a floresta, na conquista do seu solo fértil, uma das árvores, personificada, ao ser abatida, cai sobre a mãe, diante dos olhos absolutamente espantados e impotentes do marido e de todos os filhos, enquanto a narradora descreve a sua relação com a selva e o processo de sua morte. A narrativa Die alte Truhe (O velho baú) é de cunho autobiográfico, mais elaborada do ponto de vista formal, uma das melhores da autora. Trata-se de um texto, originalmente assinado com o pseudônimo Valdívia, distinguido com o segundo prêmio no âmbito de um certame instituído pela Editora Ulrich Löw. 17 Hilda Siri com 28 anos O baú funciona como mola propulsora do desenvolvimento da ação. Trata-se de uma narrativa que, através de um flash back, projeta no presente o tempo passado, na tentativa de oferecer informações sobre a vida heróica de quatro gerações de antepassados. É uma narrativa contada em primeira pessoa. Tem início no momento em que a personagem principal, o eu-narrador, se dirige ao baú antigo [aquele ainda existente e em exposição no Museu de Ijuí,] para procurar algumas roupas já usadas, destinadas aos pobres. Ao pôr os olhos no baú, o eu-narrador esquece-se momentaneamente de seu intento, interroga o baú, constrói-lhe as respostas em presopopéia, e dá asas à imaginação, que, alimentada 18 pela memória, tece uma série de associações e preenche o tecido da narrativa. A narrativa começa assim em 1677, quando o baú foi talhado para seus primeiros donos. O eu-narrador “conversa” com o baú, interrogando-o acerca da época de sua construção, dos costumes de outrora, situando, deste modo,o trecho no século dezessete. 1677 é a data gravada na tampa do baú. Gravação no interior da tampa do baú Assim, prosseguindo na criação do tempo narrativo, recorda o protagonista-narrador a geração dos antepassados que adquiriram o baú, narrando em seguida todo o percurso da relíquia no tempo e no espaço até chegar ao Brasil, e, mais precisamente até sua casa. O baú remanesce como testemunha viva de tudo o que o protagonista-narrador imagina e recorda. A narrativa desenvolve-se através de dois tipos de ação:uma exterior que mal se esboça, e outra interior, bastante desenvolvida. 19 Ao momento do encontro entre o eu-narrador e o baú, seguem-se instantesde recordações relativas à infância, e só em seguida se delineam os contornos da narrativa propriamente dita, cujo começo se situano passadoremoto. A partir daqui, a ação evolui cronologicamente até o estabelecimento dos imigrantes em terras brasileiras, suas realizações na nova pátria e, portanto, chega à infância e à idade atual do eu-narrador [...]. Aproximando-se do baú, recorda-se o eu-narrador do medo que a sua tampa lhe inspirara quando criança. Temia que aquela tampa tão pesada lhe caísse na cabeça. Observa e descreve o baú e, logo em seguida, lembra-se das histórias que a bisavó [Susanne – elemento autobiográfico] lhe contava à noite, estando ele [ela-Iris Zwanziger – elemento autobiográfico], criança ainda, sentado em cima do baú. Vêm-lhe ainda à mente o ordenhar das vacas e sua alimentação, coisas que a bisavó fazia antes do jantar e antes de lhe contar as histórias numa sala ao cair da noite. A ação externa dá início aos acontecimentos, quando o eu-narrador se dirige ao velho baú para retirar algumas roupas usadas, mas não se desenvolve. Compreende apenas o movimento da personagem em direção à arca. Ao observar o baú, vêm à lembrança do protagonista-narrador reminiscências de sua infância associadas a esta velha peça do mobiliário, reminiscências essas que dão início à ação interior, passada ao nível da consciência – uma ação linear, mostrando todo o itinerário do baú, desde o carvalho que forneceu a madeira para a sua confecção e o bosque onde se encontrava, até a casa do eunarrador, evocando nesse percurso um imaginário castelo medieval, fabulosas perucas e pós-de-arroz associados à „época romântica“, o país do trisavô do eu-narrador na Europa, a viagem até o Brasil, os trisavós no Brasil, a bisavó e a mãe do eu-narrador. Com uma pergunta dirigida ao baú: “De onde vieste, velho baú?”, o protagonista-narrador dá um salto gigantesco até épocas remotas. Refere-se à árvore que viria a dar origem à arca. O 20 proprietário do bosque teria um dia ordenado a derrubada de algumas árvores, e da madeira de um carvalho teria mandado confeccionar um baú que iria abrigar o enxoval de sua filha. Através de uma segunda pergunta dirigida ao baú: “Onde terás estado, quando eras ainda completamente novo?”, o eu-narrador dá mais um impulso ao desenvolvimento da ação interna. Desta forma, o leitor é levado a imaginar um castelo onde vivia a jovem esposa do senhor do castelo, usando saias longas, corpete justo e mangas rocadas, que guardava no baú os preciosos linhos brancos, por ela mesma tecidos e, bem lá no fundo, escondia alguma jóia. A seguir, comentário: não “Quanta mais com alegria, uma quanto pergunta, sofrimento mas com deves ter um já presenciado em tua juventude!” , dá novo estímulo ao desenrolar da ação. São recordados tempos de guerra entre castelos senhoriais. Com outro comentário semelhante, o eu-narrador transporta-nos à época em que o baú abrigava crinolinas e o pó de arroz de perucas teria caído em sua tampa, isto é, ao tempo em que a família possuidora da arca empobrece e a leva a leilão. A partir deste momento, ocorre uma mudança na história da mesma. Depois de pertencer a gente nobre e rica, passa a ser propriedade do tio do bisavô do narrador, um camponês rude. É colocada entre móveis toscos e guarda, agora, linhos grosseiros. Mais tarde, o novo dono oferece-a a um irmão como presente a ser levado para o Brasil. Atravessa o Atlântico e, nesta viagem, August, o filho do trisavô do narrador conhece uma moça chamada Suzana. [Trata-se de elementos autobiográficos presentes da narrativa: C.F. Becker, o terceiro dono do baú, emigrou com mulher e filho. Este filho seria o futuro bisavô da autora. Susanne viajava no mesmo navio. Chegaram todos ao Brasil – a Santa Cruz do Sul - em 1854. August Becker e Susanne Gessinger casaram-se posteriormente.] Logo depois é narrado o desenrolar da vida, das dificuldades e do trabalho desses imigrantes no novo país que os acolhe. Precisam 21 desbravar a selva, a fim de poderem construir uma cabana e, para tornarem o solo arável através de queimadas, têm de lutar contra as cobras e outros animais selvagens. Logo no primeiro ano vem a primeira colheita. Porém, nem todas as colheitas crescem sem perigos. Muitas vezes são devastadas pelos macacos ou pelas enchentes do rio Pardinho. Por causa deste trabalho árduo, muitas lágrimas são derramadas. No entanto, a vida continua. August desposa Suzana, a moça do navio. Trabalham muito. Suzana sentese dividida entre o Brasil e a Alemanha. O Brasil é sua segunda pátria, aqui trabalha, é aqui que tem uma propriedade. A Alemanha, por outro lado, faz-se sentir no seu modo de pensar, na língua que fala, nos costumes. Os trisavós [C.F.Becker e esposa] morrem e são sepultados no jardim atrás da casa. Lágrimas e luto são as derradeiras homenagens a essas pessoas exemplares que tanto fizeram pela nova pátria. O bisavô do protagonista-narrador e Suzana têm dois filhos. A mulher do segundo filho morre ao dar à luz uma menina. Esta menina, que virá a se a mãe do eu-narrador, cresce e casa-se, indo morar na Serra, ondeestabelece um pequeno negócio que prospera à custa de muito trabalho e esforço. O eu-narrador é a terceira criança do casal. Certo dia, a bisavó resolve morar com eles e leva o velho baú. É assim que, aos quatro anos de idade, o eu-narrador trava conhecimento com ele, um baú misterioso, no qual imagina haver algo muito antigo. [Trata-se aqui de mais elementos autobiográficos: August Becker e Susanne (Gessinger) Becker têm dois filhos. Um deles chama-se Rudolf. Rudolf Becker casa com Paulina Emmel. Paulina, morre ao dar à luz uma menina, também chamada Paulina, como a mãe. Ao ficar viúvo, casa uma segunda vez e imigra para a Argentina, estabelecendo-se em Missiones. Quando Susanne enviúva, de fato, muda-se para a casa da neta – a mãe de Hilda Siri. Consta dos dados autobiográficos do espólio, que o afeto entre Susanne e Hilda sempre foi muito intenso.] 22 A ação interna retorna ao ponto de partida. O protagonistanarrador volta a falar dos afazeres da bisavó em casa: cuida das vacas, planta as flores e os legumes. Nos dias de chuva remenda roupas ou faz toalhas dos sacos de farinha ou de açúcar. Apesar de trabalhar bastante, consegue ainda dedicar alguns momentos ao entretenimento dos bisnetos [Henrique, Ilse, Iris e Hildegard], fazendo ela própria poesias, ou recitando de cor as baladas de Schiller, que conhecia, para que eles a imitem, e transmitindo-lhes textos dramáticos do mesmo autor, que eles dramatizam. Este detalhe curioso que o eu-narrador inclui na inumeração dos afazeres da bisavó não é comentado na narrativa, ficando o leitor sem compreender de que forma a bisavó – que aprendeu a escrever só aos setenta anos, conforme o texto, – teria tido acesso à obra de Schiller. [Ao que parece, a bisavó sabia ler, mas não escrever]. [...] [De qualquer forma, o eu-narrador alude à cultura da pátria alemã, da qual até mesmo pessoas rudes partilham]. Ao morrer, a bisavó deixa ao protagonista-narrador o baú como herança. Termina aqui o flash-back. O propósito do eu-narrador consiste em oferecer uma visão épica de seus antepassados, exaltarlhes as virtudes, como podemos constatar pelo desenrolar dos acontecimentos: Que força de touro devem ter tido meus antepassados, para te poderem transportar, velho e pesado baú, carregado de trastes de uma época difícil, através das picadas quase intransitáveis. E tudo tinha de ser carregado, as trouxas, as crianças pequenas; não havia nenhum animal de carga à disposição. E, então, lá estavas tu, velho baú, junto com teus senhores, no meio da floresta virgem, sem um abrigo sobre a cabeça, sem um fogão, frente a uma natureza inimiga. Apenas machados, facas, foices e ancinhos estavam à disposição e braços fortes, e o fogo. O fogo era o único aliado na luta contra o ambiente selvagem, contra os horrores e os animais selvagens. Tudo parecia desesperador, opressivo, imponente, e, apesar disso, em muito pouco tempo vocês tinham um telhado sobre a cabeça, embora fosse apenas o de uma cabana. E, já depois de um ano, podiam teus senhores alimentar-se com o produto da primeira colheita. Da luta dos homens lá fora na selva não podes contar nada, pois não os viste. Não viste as pessoas serem feridas ou 23 atingidas por árvores que caíam; não viste como os macacos se precipitavam sobre a plantação nova e a arrasavam; - não viste a inundação do rio Pardinho, normalmente tão pequeno, que arrastou os poucos haveres de alguns colonos nas suas [...] Tu viste só as lágrimas de saudade da pátria, derramadas por minha bisavó, que acariciava com mãos gastas pelo trabalho os preciosos bens da pátria que tu abrigavas [...] Tu só viste como os homens à noite voltavam para casa, sofridos e cansados, e tiravam do corpo a roupa encharcada de suor. [...] Tudo era feito em casa: fiava-se, tecia-se, tricotava-se, cozia-se pão, depenavam-se patos e gansos, cujas penas enchiam os espessos acolchoados e as cobertas [...] A mulher precisava ir à roça para plantar e semear. Ela educava as crianças e de passagem executava todos os trabalhos da casa, da fazenda e do jardim. Ela alimentava as vacas e as ordenhava; ela ajudava a debulhar os cereais e a descamisar o milho; o mel tinha de ser extraído dos favos e os xaropes e as geléias tinham de ser fervidos.6 É evidente a exaltação dos antepassados pelo trabalho e sacrifícios que fizeram em prol de seus descendentes, e também em favor da nova pátria onde se fixaram e viveram. O enaltecimento da colonização alemã no Brasil é realçado pelo ritmo peculiar ao texto citado, baseado no emprego do paralelismo estilístico. O eu-narrador acumula as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, procedendo ao encadeamento de valores sintáticos idênticos. O efeito retórico, assim 6 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Was müssen meine Vorfahren für Barenkräfte besessen haben, dass sie dich, alte schwere Truhe, angefüllt mit dem schweren Krempel einer schwerlebigen Zeit, durch die fast weglosen Pikaden schleppen konnten. Und alles musste geschleppt werden, die Bündel, die kleinen Kinder; kein Maultier stand zur Verfügung. Und dann standest du, alte Truhe, zusammen mit deinen Herren, mitten im Urwald, ohne Dach über dem Kopf, ohne Feuerstatt, einer feindlichen Natur gegenüber. Nur Äxte, Messer, Sicheln und Hacken standen zur Verfügung und starke Arme und – das Feuer. Das Feuer war der einzige Verbündete im Kampf gegen die Wildnis, gegen die Schrecken und die wilden Tiere. Alles schien hoffnungslos niederdrückend, überwältigend, und trotzdem hattet ihr nach ganz kurzer Zeit ein Dach über dem Kopf, wenn auch nur das Dach einer Hütte. Und schon nach einem Jahr konnten sich deine Herren vom Ertrag der ersten Ernte ernähren. Von dem Kampf der Männer draussen in der Wildnis kannst du nichts erzählen, denn du hast ihn nicht gesehen. Du sahst nicht, wie die Menschen von niederstürzenden Bäumen verletzt oder erschlagen wurden, du sahst nicht, wie die Brüllaffen sich über die junge Pflanzung stürzten und sie verheerten. Du sahst nicht die Überschwemmungen des sonst kleinen Flüsschens Rio Pardinho, das die wenige Habe einiger Siedler in seinen Fluten fortriß, /…/ Du sahst nur die Tränen des Heimwehs meiner Urahne, welche die kostbaren Güter der Heimat, die du bargst, mit den verarbeiteten Händen streichelte, /…/ Du sahst nur, wie die Männer abends abgehärmt und müde nach Hause kamen und die schweißtriefende Kleidung vom Körper streiften. /…/ Alles wurde im Hause gemacht, gesponnen, gewebt, gestrickt, Brot gebacken, Enten und Gänse gerupft, deren Federn die dicken Unter- und Überbetten ausfüllten/…/. Die Frau musste in die Roça zum Pflanzen und Säen. Sie zog die Kinder auf und verrichtete so nebenbei alle Arbeiten im Hause, auf dem Hof und im Garten. Sie fütterte die Kühe und melkte sie; sie half das Korn dreschen und den Mais abribbeln; der Honig musste geschleudert und Syrup und Marmeladen eingekocht werden”. Siri, Hilda. Die Alte Truhe. In: Serra-Post-Kalender. Ijuí, Ulrich Löw, 1952, p. 84-88. 24 obtido, descamba para o melodramático, principalmente, quanto à tripla repetição do sintagma negativo “tu não viste”, se contrapõe a dupla repetição do sintagma, agora afirmativo, “tu viste só”, “tu viste só”, porém de valor semântico negativo, que visa a enfatizar a enumeração das desgraças. A veneração do eu-narrador chega ao auge no final da narrativa, que se concentra novamente no baú: Agora serves à descendente de uma raça forte e trabalhadora, cuja alegria e cujo sofrimento partilhaste durante um século. Testemunhaste a ascenção de uma família durante cinco gerações, que através de esforço próprio conseguiu sair da pobreza e da carência e alcançar prestígio e bem-estar. És para mim uma exortação e me impões o dever de imitar o exemplo de meus avós.7 A recordação dos imigrantes alemães alcança, nesta narrativa, foros de enaltecimento. As personagens da composição literária estudada são vistas só pelo lado dignificante e, por conseguinte, são idealizadas.8 O baú funciona como um verdadeiro totem da família. ANEXO: Exemplo de poema de Susanna Becker9, bisavó de Hilda Siri Zur Einweihung des Friedhofes von Dona Josefa (1ª versão) Friedlich, stille , festumschlossen Schon der Friedhof fertig war. Nur ihm fehlte noch das eine, Der festlich, feierliche Tag. 7 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Du dienst jetzt der Nachfahrin eines starken, arbeitsamen Geschlechtes, dessen Freude und Leid du ein Jahrhundert lang geteilt hast. Du hast den Aufstieg einer Familie durch fünf Generationen hindurch erlebt, die durch eigenen Fleiss aus Armut und Besitzlosigkeit zu Ansehen und Wohlstand gelangte. Du bist mir eine Mahnung und Verpflichtung, dem Beispiel meiner Ahnen zu nachzueifern”. Siri, Hilda. Die Alte Truhe. In: Serra-Post-Kalender. Ijuí, Ulrich Löw, 1952, p. 92. Trad. da autora. 8 Estes comentários foram extraídos de: Sousa, Celeste H. M. Ribeiro de – A narrativa literária no Anuário do Correio Serrano após 1948: temas. Boletim nº 28 (nova série). São Paulo, FFLCH da USP, 1980, p.49-54. (Esgotado). 9 Do espólio da autora, gentilmente franqueado por seu filho Marcus Zwanziger. 25 Kommet alle hier zusammen! Jeder zeige sich als Mann! Ein jeder ohne Unterschieddes Glaubens Schliess sich heut der Feier an. Ist es auch kein Ort der Freude. Ein Ort der Fröhlichkeit und Lust. Ein Ort ist´s, wo noch viel geweinet; Wo mancher Seufzer entringt der Brust. Ein Ort ist´s wo noch Tränen fliessen, Wo mancher ruft ein Ach und Weh, Wenn sich das Grab über seinem Liebsten schliesst, Verzweifelt er daneben steht. Doch davor scheuet keiner sich. Den Weg muss ja ein jeder nehmen, Da gibt´s kein Stillstand, kein Zurück. Da gibt´s kein Stillstand. kein zurück. Auch den eisenfesten Mann. Ein Ort ist´s , wo noch beten lernet Der auch nicht mehr beten kann. Und doch ist es ein Ort des Friedens; Und der sahren Einigkeit. Denn friedlich ruht hier einst beisammen. Was sich im Leben angefeindet. Hier werden nebeneinander gebettet, Was sich im Leben ferne stend, Ohne Unterschied des Alters, Ohne Unterschied des Stands. Hier ruht einst Jugend neben Greisen. Hier scheidet weder Schönheit, Gut noch Geld; Wenn der Tot der Unerbitterliche Grausam seine Ernte halt. Auch der Fremdling, der Heimatlose Der kommt auch an diesen Ort, Wenn ihn Gott in unserer Gemeinde Ruft von dieser Erde fort. Hier wird ihm sein Grab gegraben, Wenn ihn gleich auch niemand kennt. Hier soll er sein Plätzchen haben, Das er ganz sein Eigen nennt. 26 Als der Friedhofbau ward vorgeschlagen Und keener da war, der sagt ¨Nein¨. Doch ein mancher möchte fragen: Wer wird wohl der erste sein? Ein Kindlein war´s, das den Anfang machte. Ist schon bestattet an diesem Ort. ¨Lasset die Kindlein zu mir kommen!¨ War ja stets des Herren Wort. Nun gebt dem Werke seine Weihe! Was die schwache Kraft vollbracht. Die Stätte, die uns all vereinet, Wenn uns umfängt die Tpdesnacht. Susanna Becker, gedichtet 1855 Zur Einweihung des Friedhofs von Dona Josepha (2ª versão) Friedlich, stille, fest umschlossen Schon der Friedhof fertig war. Nur ihm fehlte nur das eine: Der festlich, feierliche Tag Kommet alle hier zusammen! Jeder zeiget sich als Mann! Ein jeder, ohne Unterschied des Glaubens Schließ sich heut der Feier an! Ist es auch kein Ort der Freude, Kein Ort der Festlichkeit und Lust. Ein Ort ist’s, wo noch viel geweinet Und mancher Seufzer entrinnt der Brust. Ein Ort ist’s wo noch Tränen fließen, Wo mancher ruft ein Ach und Weh.. Wenn sich das Grab über seinem Lieben schließt, Verzweifelt er daneben seht. Ja, es ist ein Ort der Tränen; Doch davor schrecket keiner nicht! Den Weg muss ja ein jeder nehmen, Da gibt’s kein Widerstand und kein zurück. Ein Ort ist’s, wo das Herz erweichet Auch dem eisenfesten Mann. Die Ein Ort ist’s, wo noch beten lernet, Der schon nicht mehr beten kann. Und doch ist es ein Ort des Friedens Und der wahren Einigkeit, Denn friedlich ruht hier einst besammen, 27 Was sich im Leben angefeind’t. Hier werden nebeneinander gebettet, Was sich im Leben ferne stand; Ohne Unterschied des Alters, Ohne Unterschied des Stands. Hier ruht einst Jugend neben Greisen. Hier scheidet weder Schönheit, Gut noch Geld. Wenn der Tod, der unerbittliche, Grausam seine Ernte hält. Auch der Fremdling, der Heimatlose, Der kommt auch an diesen Ort, Wenn ihn Gott in unserer Gemeinde Ruft von dieser Erde fort. Hier wird ihm sein Grab gegraben Ob ihn gleich auch niemand kennt. Hier soll er sein Plätzchen haben, Das er ganz sein Eigen nennt. Als der Friedhofsbau ward vorgeschlagen Und keiner da war, der sagt „Nein“, Mochte wohl ein mancher fragen: Wer wird wohl der erste sein? Ein Kindlein war’s, das den Anfang machte. Ist schon bestattet na diesem Ort. „Lasset die Kindlein zur mir kommen!“ War ja stets des Herrn Wort. Nun gebt dem Werke seine Weihe! Was die schwache Kraft vollbracht: Die Stätte, die uns all’ vereinet, Wenn und umfängt die Todesnacht. Gedichtet 1864 von Susanna Becker geb. Gessinger im Alter von 20 Jahren, (Ihrer Urenkelin Iris Gressler diktiert, 1929.) A temática explorada por Hilda Siri incide quase sempre sobre a vida nas colônias, raramente transcende esses limites. Em Die Rache des Urwalds e em Die alte Truhe talvez se pudesse vislumbrar um modelo exemplar da existência imigrante de língua alemã no Brasil. Outros exemplos de textos memorialistas são: Roman Riesch, Die grosse Tour (A grande viagem). 28 Roman Riesch é o nome de um ator alemão, dono e diretor da companhia de teatro (Heimattheater)10 que leva o seu nome, e de cujo elenco Marquard Siegfried Zwanziger, futuro marido de Hilda Siri, fazia parte. Roman Riesch tinha também uma segunda profissão: pintar igrejas, ofício aprendido com o pai em Oberammergau, cidade alemã, famosa pela encenação, de dez em dez anos, dos últimos cinco dias da paixão de Jesus. Consta que a companhia de teatro Riesch já tinha percorrido a América do Sul entre os anos de 1926 a 1936. No entanto, sua chegada ao Brasil, especificamente à cidade de Ijuí, deu-se em 1935, no ano em que a Segunda Grande Guerra rebentou. Era, então, uma Companhia em fuga da Alemanha. Mas, ao contrário do esperado, a narrativa não cita nenhuma peça de teatro levada à cena no Brasil, mas ilumina duas outras coisas: uma obra de pintura e um gesto teatral. Trata-se do trabalho de pintura existente atrás do altar da Catedral de Santa Cruz do Sul, posteriormente Catedral de São João Batista (o maior templo católico em estilo neogótico da América Latina), conhecido como “Grupo da Cruz”, terminado em 1936, o qual tem sua primeira execução pelos pincéis de Arno Seer. Cabe, porém, a Roman Riesch dar-lhe acabamento com o processo de douramento. E, com esta lembrança, engata-se na narrativa a criação da atmosfera triste da perseguição aos alemães, que fica toda subentendida e densa no gesto de Roman Riesch. Na cidadezinha de Ijuí, a sala da delegacia está apinhada de alemães, de seus descendentes e de judeus. Para ali, também é levado Roman Riesch, que já estivera no front durante a Primeira Guerra, pelo que havia ganho a Cruz de Ferro. Riesch atravessa a sala da delegacia, olha em volta, cumprimenta conhecidos, acha um degrau, sobe nele, levanta as mãos e pede silêncio. Quando todos lhe prestam atenção, exclama teatralmente: “Honrado público! A apresentação está com 10 Por “Heimattheater” entenda-se um teatro amador ou não, cujo repertório assenta em peças populares de ambientação local. 29 uma boa assistência, mas o espaço, infelizmente, não se adequa a espetáculos”. Os aplausos explodem. Abre-se com este texto o campo para uma futura pesquisa, uma investigação do repertório desta companhia de teatro, dos lugares visitados, bem como da presença de outras companhias alemãs de teatro e de seus repertórios, a alimentarem culturalmente as colônias, dando sustenção ao seu sentimento de pertença étnica. O segundo texto é mais longo (41 páginas), intitulado Die große Tour. Trata-se de uma narrativa de viagem, mas de uma viagem não experimentada pela autora, mas sim ouvida ao companheiro Willi Fick, ele sim um dos viajantes, uma narrativa que mostra a marcante presença alemã na região brasileira. Willi (Guilherme Hugo) Fick era um dos dirigentes do Grupo Escoteiro de Porto Alegre, fundado em 1912 por Georg Black, professor de ginástica (e hoje ainda existente e conhecido por Grupo Escoteiro Georg Black o mais antigo do Brasil), e a viagem empreendida pelo Grupo começa em 27 de dezembro de 1914, em Porto Alegre, e termina em Blumenau um mês depois, tendo se desdobrado em dezesseis etapas e tendo sido organizada por Black, de Porto Alegre, por Köpke, de Florianópolis, e por Köhler, de Blumenau. Cada etapa empresta título aos capítulos: “Der Tag zuvor” (O dia anterior), “Von Porto Alegre nach Taquara” (De Porto Alegre a Taquara), “Von São Francisco de Paula nach Salto Grande” (De São Francisco de Paula a Salto), “Von Tainhas nach Azulegas” (De Tainhas a Azulegas), “Von Azulegas nach Taimbezinho” (De Azulegas a Itaimbezinho), “Vom Taimbezinho nach Praia Grande” (De Taimbezinho a Praia Grande), “Von Praia Grande nach Torres” (De Praia Grande a Torres), “Torres”, “Von Torres bis Araranguá” (De Torres a Araranguá), “Von Gamacho nach Laguna” (De Gamacho a Laguna), “Von Laguna nach Florianópolis” (De Laguna a Florianópolis), “Florianópolis”, “Von Florianópolis nach Itajaí” (De Florianópolis a Itajaí), “Von Itajaí nach Blumenau” (De Itajaí a Blumenau), „Blumenau“, “Von Blumenau nach Porto Alegre” (De 30 Blumenau a Porto Alegre). O texto, que contém as memórias de Willi Fick, é, assim, registrado pela pena de Siri. Não se sabe, se as palavras do texto escrito correspondem às palavras orais ouvidas, mas muito provavelmente há alterações, pois é sabido que o discurso oral difere do escrito. Isto significa que, de uma forma ou de outra, o imaginário de hilda Siri está imiscuído no texto registrado. O texto oral, por sua vez, ditado por Willi Fick dista bastante tempo do momento do registro. Trata-se de acontecimentos que remontam a dezembro de 1914 e janeiro de 1915, quando a autora nem nascida era. Portanto, o imaginário deWilli Fick também deve estar muito presente e a memória já se encarregou de guardar determinados fatos e esquecido outros tantos do total experimentado. O texto que nos chega oferece ao leitor uma verdadeira topografia não só da cidade de Porto Alegre à época, como também da viagem encetada pelo grupo escoteiro até Blumenau, em que são descritas as paisagens, a culinária e, sobretudo, a rede de intercâmbio existente entre os alemães do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, todos eles enriquecidos e bem de vida. Basta dizer que quem recebeu os escoteiros com todas as honras e abastança em Blumenau foi o dono do jornal Der Urwaldsbote, G. A. Koehler. A narrativa também mostra o esforço de manutenção da identidade étnica do grupo, em que muitos dos utensílios usados tinham sido comprados na Alemanha, as marchas que cantavam durante a viagem eram alemãs (“Das Wandern ist des Müllers Lust”, “Ade Du mein lieb Heimatland” e “Muss i denn, muss i denn zum Städtle hinaus”). Entretanto, também fica evidente a apropriação de muitos termos brasileiros (bolacha Maria, mandioca, gasosa, tarrafas, botos, guará, tropeiros, rapadura, charque, arroz-carreteiro, ford-bigode) e a explicação para fenômenos vários, como, por exemplo, o surgimento do movimento escoteiro, ou a importância da fundação da cidade de Blumenau pelo Dr. Blumenau. 31 O primeiro capítulo chama a atenção pelos cuidados dispensados ao grupo, examinado por um médico e por um pofessor de ginástica, também eles participantes, e vacinado contra a varíola. Depois os cuidados com as noções das necessidades básicas. O uniforme era verde caqui, feito de tecido comprado na Casa Carvalho de Porto Alegre. Alguns tinham agasalhos e muitos dos utensílios comprados na Alemanha. No segundo capítulo, a voz de um “nós” assume a narrativa com a descrição pinturesca e metafórica do entorno e das personagens: no ar áspero da madrugada, quando a coluna já estava em marcha a caminho da estação do trem, cantando “Das Wandern ist des Müllers Lust”, o único bulício na cidade era o das carroças dos leiteiros, dos padeiros, dos verdureiros, de suas vozes apregoadores, através das ruas de Porto Alegre, e com isso vai-se processando uma verdadeira topografia da cidade de então. O trem, com um vagão para a primeira classe de bancos de couro e dois de bancos de madeira para a segunda, onde viajavam os trabalhadores e o povo pobre, um para o correio, já estava na estação soltando fumaça. Cheirava a urina e à gordura dos alimentos ali oferecidos em cestos cobertos por panos brancos por vendores ambulantes. Um negro colocava sem cessar madeira na “goela” da locomotiva. O chefe da estação tocou o sino, apitou duas vezes, e o trem põe-se em movimento, trepidando e bufando. À esquerda, o rio Guaíba e a Ilha do Pavão ainda encobertos pela neblina, bancos de areia, o estaleiro Mabilde e algumas choupanas. À direita, haviamais para ver: jardins, pomares, residências, fábricas – a aciaria de Kappel, a fábrica de limonada de Fischel, a cervejaria de Ritter, a fábrica de móveis de Gerdau, a fábrica de fogões Wallig, a fábrica de chocolate Neugebauer. telegráfos.Para monumental na igreja Depois, estação dos os postes Navegantes, Navegantes. de Logo das linhas dos onde se avista a galga as próximas estações: Gravataí, Canoas e Esteio, Sapucaia e São Leopoldo. Às vezes os trilhos eram margeados por água coberta de aguapés. 32 Outras por campos de pastagens. Nas estações os ambulantes ofereciam pasteis de carne, espigas de milho cozidas, rapadura, doce de leite e frutas da época que eram agora uvas e melão. Em Sapucaia ainda havia o beijú, que o eu-narrador se imcumbe de explicitar. Digno de nota é também a ponte sobre o rio Gravataí e, em Esteio, a grande figueira, a maior do Rio Grande do Sul. E assim continuam, deliciosas, as descrições paisagísticas urbanas e rurais, passando por Neustadt, Neu-Hamburg, Alt-Hamburg, pedacinhos transplantados da Alemanha Almoçaram todos na casa do Dr. Tschermak em Taquaral, onde o seu novo automóvel foi objeto de admiração. Ali dormiram em barracões e seguiram a pé, cantando, em direção á serra envolta em neblina nas primeiras horas damanhã, pelas ruas cortadas pelas rodas dos carros de bois, pelas paisagens de pastos misturadas com rochas pelos pinhais. Na subida, o nevoeiro transformou-se em chuva, trovões e ralâmpagos que obrigaram a procurar abrigo numa cabana abandonada. Continuaram subindo até o hotel de madeira, do sr. Hampel na Encosta, cercado por pinheiros, jantaram e pernoitaram. Todos são conhecidos e se cumprimentam com um „Hallo“. Acordam no outro dia com o canto do galo e colocam a roupa para secar ao sol. Descobrem um lago e uma cachoeira de água gelada nas redondezas, onde se banham. Voltam para almoçar carne de porco assada, frango, salada de batata, arroz e feijão preto. De sobremesa, queijo serrano e goiabada. À tarde, desbravando as belezas naturais do lugar. No dia seguinte, prosseguem até o alto da serra, 1.200m, onde fica a pequenina São Francisco de Paula. Era um acontecimento ver uma coluna de escoteiros em marcha, cantando! Abastecem-se numa pequena venda de salsichas, arroz, charque, rapadura e bolachas e começam a descida. Agora a paisagem modificava-se. A floresta espessa deu lugar ao campo. Pastos a perder de vista, interrompidos aqui e ali por grupos de árvores ou pequenas matas e por muitas quedas d’água. [...] Grandes pássaros levantavam vôo em bandos, quando nos aproximávamos, mudando-se de uma 33 mata para outra. ensurdecedor.[...] Por muares, rebanhos de para onde quer que se Assustavám-nos com um alarido toda a parte, gado bravo, cavalos e ovelhas.[...] Nenhuma casa, vivalma olhasse.11 À tarde estavam em Salto, a visitar a represa do rio Santa Cruz e a usina, de onde desde o início do século XX sai a energia para São Leopoldo e Lomba Grande, graças ao trabalho de Theodomiro Porto e Coronel Gölzer, conhecido como o imperador de São Leopoldo. Pertenceu-lhe o primeiro “Ford-bigode” do Rio Grande do Sul e com ele viajou de sua fazenda em Santa Maria dos Caboclos até São Leopoldo. A subida da serra continuou até 1.800m. Aqui montaram barracas vindas da Alemanha e procederam aos rituais escoteiros da arrumação, do preparo das refeições, do fogo do conselho.. No dia seguinte, levantaram acampamento prosseguiram até o rio tainhas. Almoçaram schmarren e, ao que parece, ficou ruim, pois a delícia da alta bavária não dispunha dos ingedientes alemães para ser feita. À tardinha, chegaram a Azulegas, uma minúscula povoação com uma venda, que servia os tropeiros. Ali acamparam e se abasteceram. Na serra ressentiam-seda falta de frutas e verduras. Dali, prosseguiram até Taimbezinho. De singular neste trajeto, acharam um corno de boi transformado em garrafa com cachaça que algum tropeiro havia perdido e o cânion de 5,8 km extensão, com uma largura e uma altura máxima de cerca de 700 m, sendo percorrido pelo arroio Perdizes, onde experimentaram os efeitos do eco. Consta da descrição do cânion, o seguinte texto: 11 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Nun veränderte sich die Landschaft. Der dichte Wald wich dem Kamp. Weideland, so weit das Auge schaute, unterbrochen von Baumgruppen oder Wäldchen, besonders an Wasserläufen. [...] Große Spechte flogen in Schwärmen auf, wenn wir uns näherten und flogen von einem Wäldchen zum anderen. Sie erschreckten uns mit ihrem ohrenbetäubenden Gekreische. [...] Überall weidete wildes Vieh, Pferde und Maultiere, auch Schafherden waren zu sehen”. In: Siri, Hilda – Die alte Truhe. Campinas, edição particular, 2000, p. 199-200. 34 Vista do cânion do Itaimbezinho no Rio Grande do Sul. Foto extraída da net. O Taimbezinho é uma garganta profunda, de mais ou menos 200m de profundidade, lavada por um rio pouco caudaloso, mas impaciente. Tem três cachoeiras. A água despenca em direção ao fundo num fio fino e ciciante, abafando o embate com vapor branco, por sobre o qual se forma frequentemente um arco-íris.12 Armaram as barracas na região (1800 m altura), e ali pernoitaram e apreciaram o entorno deslumbrante. Na manhã seguinte, iniciou-se a descida até a Praia Grande já em Santa Catarina. Fazem menção a um lobo guará e ao fachinal, como explica o texto, uma áspera e estreita vereda, usada por tropeiros desde tempos imemoriais, o único caminho a ligar a serra ao litoral. Aqui, deram passagem a uma tropa de mulas. Já era noite quando atingiram Praia Grande. Logo atravessaram o rio Mampituba, a 12 - Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Der Taimbezinho ist eine ungefähr 200m tiefe Schlucht, ausgewaschen durch einen kleinen, aber reißenden Fluss. Er hat drei verschiedene Wasserfälle. Das Wasser ztürzt in dünnen zischenden Strahl in die Tiefe und verhüllt den Aufprall mit weißem Dampf, über dem häufig ein Regenbogen steht.” Siri, Hilda – Die große Tour. In: Siri, Hilda – Die alte Truhe. Campinas, edição particular, 2000, p. 203. 35 fronteira e seguiram para Torres, onde ficaram no hotel “Picoral”, também de madeira. Muitos dos escoteiros viam o m mar pela primeira vez. A paisagem voltou a se alterar: região mais densamente povoada, pomares de laranjas e plantações de abacaxis e hortas. Torres era o balneário preferido dos Portoalegrenses ricos. Lá estavam as residências, todas de madeira, de Herbert Müller, Krahe, Reiniger e de muitas outras famílias alemãs. Em Torres, os pontos visitados foram: o Morro das Furnas, a praiada Guarita, o farol e o cemitério, que chamou a atenção pelo grande número de nomes alemães inscritos nas lápides, e depois a Ilha dos Lobos (marinhos) e a Praia de Itapeva. Como foi explicado, na época da primeira onda imigratória entre 1824 e 1850, um grande veleiro com colonos havia encalhado nas proximidades da povoação, pelo que os colonos já se estabeleceram ali. Os escoteiros também ouviam muitas histórias contadas pelos chefes, inclusive, a história do póprio escotismo. Na manhã seguinte, seguiram para Araranguá, ao lono da praia, descalçõs pela areia, cantando “Ade Du mein lieb Heimatland“, como se na Alemanha estivessem. Almoçaram na areia da praia e houve areia na comida. O chefe cozinheiro passou mal, tomou gotas de Opium que, por serem mal contadas, o fizeram dormir longamente eacordar mal, deixando os escoteiros preocupados, pois nas redondezas não havia vivalma. Por fim, puseram-se a caminho até Araranguá, onde chegaram à noite. Esta foi a maior distância percorrida num dia. Todos estavam muito cansados. Na manhã seguinte: céu azul sem nuvens, dunas amarelas, sol quente e mar; na areia conchas e moluscos. Só ao cair da noite ouviram um latido, o que sinalizava a proximidade de gente, finalmente, uma aldeia de pescadores chamada Gamacho. Os pescadores tinham acabado de puxar uma rede e preparavam o peixe – tainhas - para secar. Os escoteiros conseguiram tainhas frescas para assar e nunca peixe algum tinha sido mais saboroso. Por seu lado, os pescadores divertiram-se observando os rituais dos escoteiros. A próxima cidade 36 era Laguna, que, para ser atingida foi preciso alugar uma canoa a um pescador. Chegados à praça central, o prefeito permitiu que, ali, acampassem. Mas uma tempestade de água inundou todas as barracas,pelo que o prefeito condoído com os meninos lhes ofereceu a cocheira de sua casa para pernoitarem. Nessa noite,um deles começou a ter dores de barriga.: foi tratado com calor na barriga e chá preto com cachaça. No dia seguinte, passearam pela cidade de arquitetura portuguesa, passaram pelo Museu Anita Garibaldi. Só no dia seguinte, partiram para Florianópolis, cantando e bordeando o litoral entre o mar e a Serra do Mar, de onde se avistavam plantações de bananeiras, milho, mandioca, muitas casinhas, aldeotas de pescadores Nas proximidades de Imbituba, uma ciadezinha portuária, de escoamento do carvão de Santa Catarina acamparam. Depois, a paisagem passou a oferecer dificuldades: “A Serra do Mar debruçavase agora sobre o oceano, apoiada em rochedos íngremes e, em parte, descalvados. Ilhas e recifes alcantilados, rochas abaixo do nível do mar dificultavam aqui, ameaçando mesmo, a travessia dos barcos. Alguns já haviam afundado lá.”13 Levaram três dias de marcha difícil até Florianópolis. Era grande o cansaço e os machucados do corpo, e todos se tornaram psicológicamente muito vulneráveis. Os mosquitos também não davam trégua. Até que, por fim, como numa miragem, avistaram os pilares da ponte anterior à Hercílio Luz, que liga a Ilha Santa Catarina, que outrora chamou-se do desterro, por abrigar prisioneiros, ao continente. Ainda na ponte foram recebidos por uma comissão de outros jovens. E levados em triunfo até o centro da Florianópolis, aplaudidos pelos transeuntes nas ruas. Atravessar aquela ponte era um acontecimento: era um verdadeiro monumento da modernidade: 200m de comprimento, aseentados sobre pilares colossais de aço, amarrados a torres de 20m de altura, com cordas 13 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa “Die Serra do Mar zog sich jetzt mit steilen, teils kahlen Felsen an der Küste längs bis ins Meer hinein. Inseln und steile Riffe, auch Felsen unter dem Meeresspiegel erschwerten hier die Schiffahrt und gefährdeten die Schiffe. Manches Schiff ist hier gesunken.” Id. ibid., p.215. 37 de aço mais grossas que um braço. Em baixo, só água, em cima o céu azul. Dirigiram-se à casa do sr. Köpke, que era agente de uma companhia de navegação, pertencente à Hamburg-Süd, cerca de 50 anos era um homem alto de traços enérgicos e amigáveis. Foram levados a uma casa magnífica rodeada por grande parque. Já havia mandado reservar nos estábulos um espaço para vários colchões e havia providenciado mantas. Os escoteiros armaram barracas à sombra das árvores, enquanto os mosquitos não davam trégua. Alimentaram-se como cães famintos. As roupas e os utensílios, tanto quanto os corpos e a alma, estavam esgarçadas. Recuperadas as forças, foram visitar um vapor alemão, o Pontius, ancorado na baía, que os encantou e de onde avistaram os muitos faróis na costa brasileira. A Europa estava em guerra (1ª GuerraMundial que começou em 28 de julho de 1914), mas o Brasil ainda estava de fora. O vapor aguardava o desfecho do que se pensava ser uma breve guerra. Pertencia o vapor à Hamburg-Süd e costumava transportar cereais, couro e outras matérias primas e também gado. Voltaram à magnífica resdidência do sr. Köpke, onde receberam alimentos de maneira bastante sofisticada. Despediram-se de tão excelente hospedagem cantando “Muss i denn, muss i denn zum Städtle hinaus”. E, então, prosseguiram até Itajaí a bordo do vapor Max. Tudo ia bem até o momento em que o vapor alcançou mar aberto e começou a balançar violentamente com as ondas, mareando todos. Aos poucos, tudo voltou à normalidade, o sono veio e, quando acordaram já era manhã e estavam em Itajaí. É aqui que o rio ItajaíAçu desagua no mar. Faltavam 33 km para alcançar a pé o final da viagem até Blumenau. O grupo recobrou a animação perdida, já cantava a marcha bávara e a paisagem também se torna mais acolhedora: campos semeados e prados onde vacas pastavam, casinhas de treliça pintadas, cortinas e flores nas janelas de colonos e suas adjacências com estábulos, currais, pocilgas e galinheiros, estradas cuidadas, plantações de cana-de-açúcar, bananas e tabaco, 38 milho, mandioca, verduras e frutas. Os pinhais haviam ficado para trás. Agora apareciam cedros, caneleiras, palmeiras, coqueiros, palmitos. Viam-se pelo rio Itajaí pequenos vapores, barcos, canoas, meios de transporte para gente, animais, mercadorias e produtos da colônias. Também aqui foram recebidos por uma comissão, enviada pelo sr. Köhler, dono e redator do jornal Urwaldsbote, e levados em triunfo até o centro, à sede do jornal. A população ficava animada com a novidade, já anunciada pelo jornal, que a recebera de Itajaí por telégrafo. O sr. Köhler, ele próprio chefe criador de um grupo escoteiro local providenciou alojamentos. Willi ficou hospedado na casa da família Schachtleben, gente rica, donos de um cortume. E, depois de um bom banho e alimentação e barbeiro, teve de contar a sua aventura para os membros da família. Em troca recebeu informações sobre a cidade e sobre seu fundador, o Dr. Blumenau. Ficaram 3 dias em Blumenau. O ponto de encontro era a sede do jornal, de onde o grupo partia para várias visitas a fábricas, à tecelagem Hering, fábrica de conservas, cervejaria, fábrica de tijolos. Também visitaram uma fábrica de porcelana em Pomerode. No quarto dia, cedo, pegaram um vapor Ita e regressaram a Porto Alegre,levando como presente da cidade um cacho de bananas cada um. O chefe escoteiro, sr. Black, ganhou uma cobra, enrolada numa caixa. O capitão só concordou em transportar os escoteiros sem pagar na condição de que eles se mantivessem no deck e não se misturassem com os passageiros. A viagem foi tranquila, na companhia de gaivotas e botos.e peixes voadores, e durou dois dias, um deles percorrendo a Lagoa dos Patos, perigosa, porque o canal navegável é muito estreito e assinalado por bóias. Nas margens da lagoa gigante, avistavam-se patos bravos, corças e um montão de outros pássaros. Curioso observar como a água doce ao penetrar na água salgada vai deixando um rastro vermelho longo e largo. À vista de Porto Alegre, deitaram fora últimas bananas. No molhe foram recebidos pela família e pelos amigos, mas dirigiram-se em marcha e 39 cantando até a sede do grupo e só lá cada um foi para sua casa. A viagem tinha durado quase um mês. Avultam nesta narrativa em língua alemã a flora e a fauna brasileiras, as gentes alemãs fortemente marcadas pela identidade étnica. A reação dos escoteiros é de espanto e de admiração ao compartilharem uma culinária híbrida. Por exemplo, a schmarren... não tinha saído boa por falta dos ingredientes alemães. Despontam nestes e em muitos outros textos os hibridismos linguísticos, que aos poucos se foram instalando no idioma alemão falado nas colônias, hibridismos estes criados, tanto a partir da matriz brasileira, quanto da alemã, e mesmo os empréstimos puros e simples. O capítulo 7 do livro, dedicado ao palco, oferece duas peças de teatro: Mucker und Spötter (Muckers e caçoadores) e Die Bremer Stadtmusikanten (Os músicos cantores de Bremen). Mas, a estas duas peças eu acrescento mais duas: Das Christbäumchen (A arvorezinha de Natal) e Die Auflehnung (A sublevação). Na primeira peça o tema é o episódio histórico, passado no fim do século XIX, no interior do Rio Grande do Sul, envolvendo uma família de imigrantes de língua alemã, em que Jacobina sentindo-se chamada por Deus, resolve fundar uma seita religiosa. Tal fato levou os protestantes e os católicos a acusarem a nova comunidade de criminosa, até que esta acaba aniquilada pelas forças do governo. A segunda peça leva ao palco a lenda do mesmo nome e que serviu de pano de fundo para a composição Os saltimbancos, de Chico Buarque de Holanda. A terceira peça tematiza as emoções da exótica celebração da festa de Natal, em meio ao calor dos trópicos. E Die Auflehnung configura o abandono das colônias por parte dos imigrantes, rumo à cidade grande. A prosa ensaística de Hilda Siri é de vária espécie. No geral, trata-se de textos que têm o objetivo precípuo de ajudar as mulheres, com conselhos domésticos sobre jardins e hortas, 40 explicações científicas sobre doenças, resenhas de livros, receitas culinárias que barateiam o orçamento doméstico, etiqueta, no que a autora se releva uma feminista no contexto da colônia. São pequenos textos, geralmente ilustrados por uma epígrafe, em que Hilda Siri oferece poemas da literatura alemã. Por exemplo, na apresentação do artigo intitulado “Zum Gedenken an eine mütterliche Freundin [Julia Löw]” (À memória de uma amiga maternal), publicado no jornal Die Serra-Post, de 4 de dezembro de 1954, à página 3, há o seguinte poema de Richard Dehmel (1863- 1920), que se articula com a matéria da articulista: Nachglanz (Brilho póstumo) Einst geliebte Seele, immer noch empfundne, sternklar weist die Nacht mir Weiten, die auch dich umschließen, du entschwundne. Gütig glänzen wieder alle Lichter oben, die uns je zu gleicher Andacht von der trüben Erde auferhoben. Einsamkeit und Dunkel sind nun nicht mehr Qualen. Dankbar betet Seel in Seele: Sterne, all ihr Sterne, helft uns strahlen! Sobre este artigo, há nesse mesmo jornal, de 18 de dezembro de 1954, à página 3, o seguinte comentário de uma leitora: Senhora Hilda Siri! Cada vez que eu leio o Cantinho Feminino no CorreioSerrano, sinto que tenho de lhe agradecer. Por que isso já não aconteceu, não saberia dizer-lhe; acho que faltou coragem. Aproveito agora o artigo “À memória de uma amiga maternal” para lhe apresentar o meu muito obrigada. Também lhe peço: continue sempre a escrever os artigos para o Cantinho Feminino, mesmo que colha poucos louros. Muitas de suas receitas culinárias – à exceção daquelas para as quais me faltam os ingredientes necessários – já as experimentei e recomendo-as de bom grado. Eu 41 simplesmente recorto o Cantinho Feminino para tê-lo sempre à mão. Também sempre lamento que o Cantinho Feminino não seja semanal, pois muitos de seus artigos falam-me ao coração. E, certamente, ao de muitas outras leitoras; críticas também não devem faltar.14 Pelo menos um dos artigos, veiculados nesse “Frauenecke” (Cantinho feminino), em 13 de setembro de 1952, à página 3, tornou-se alvo de polêmica. Trata-se de um texto, de tom anunciado pelo poema de Ludwig Uhland (1787–1862) “Frühlingsglaube” (Fé na primavera), em epígrafe, e que tem o seguinte título provocativo: “An die Herren der Schöpfung” (Aos senhores do universo). Assim começa o texto de Siri: Meus caros Senhores do Universo, sabem os senhores realmente o que significa ser dona de casa? “Claro”, haverão de dizer, “na qualidade de maridos já possuímos um conceito”. É possível e, no entanto, conhecem tão pouco a realidade nua e crua da rotina cotidiana das donas de casa [...]15 No artigo “Wem der Schuh passt ...” (A quem serve a carapuça...), de 27 de setembro de 1952, também à página 3, temse acesso às reações provocadas pelo texto atrás citado. Depois da seguinte epígrafe “’Nun!” sprach die Frau – ‘das kann wohl mal passieren. Hast Du mich lieb, so wird´s Dich nicht genieren!’”, 14 Tradução de Celeste Ribeiro de Sousa “Frau Hilda Siri! Jedesmal, wenn ich die Frauenecke in der Serra-Post lese, habe ich das Beduerfnis, Ihnen zu danken. Warum es aber nicht schon laengst geschah, kann ich Ihnen gar nicht sagen, es fehlte mir wohl der Mut. Anlaesslich des Artikels “Zum Gedenken an eine mütterliche Freundin” will ich Ihnen nun meinen Dank zum Ausdruck bringen. Auch ich bitte Sie: schreiben Sie die Artikel fuer die Frauenecke ruhig weiter, auch wenn Sie wenig Lorbeeren ernten. Viele Ihrer Backrezepte – mit Ausnahme solcher, für die mir die Zutaten fehlten – probierte ich schon und kann sie sehr gut empfehlen. Ich schneide einfach die “Frauenecke” heraus, damit ich´s immer zur Hand habe. Auch bedaure ich immer wieder, dass nicht woechentlich die “Frauenecke” zu lesen ist, den gar mancher Ihrer Artikel sprach mir aus dem Herzen. So haben sie ganz bestimmt noch mehrere stille Anhaengerinnen, an Kritikern wird es wohl auch nicht fehlen.“ 15 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Wissen Sie eigentlich, lieben Herren der Schoepfung, was es heisst, Hausfrau zu sein? ‘Natuerlich’, werden Sie sagen, ‘als Ehemann hat man schon einen Begriff davon’. Moeglich, und doch ist Ihnen die rauhe Wirklichkeit der alltaeglichen Hausfrauenpflichten nur wenig bekannt. […].” 42 retirada do diálogo satírico “Die Brille”, de Wilhelm Busch (1832- 1908), escreve Hilda Siri ironicamente: Que bom que o último artigo “Aos Senhores do Universo” encontrou algum eco também no mundo dos homens. Um desses leitores chegou a expressar-se por escrito e, porque ele apresenta em sua carta algumas talvez legítimas reivindicações para o “modelo de esposa”, eu não gostaria de omiti-la de nossas leitoras. Uma troca de impressões aberta só pode contribuir para o entendimento de ambas as partes. [...]16 E, ainda num outro artigo, intitulado “Was uns an den Männern nicht gefällt” (O que nos homens não nos agrada), a escritora volta à carga, depois da epígrafe, extraída de Justinus Kerner (1786-1862): Getragen hat mein Weib mich nicht, Aber ertragen! Das ist, Weiss Gott, ein weit schwereres Gewicht, Als ich mag sagen. Entretanto, destaco o ensaio Bodenständiges Schrifttum. Betrachtungen einer Dichterin. (Letras localistas. Considerações de uma poetisa)17, em que Hilda Siri reflete sobre a natureza da literatura teuto-brasileira e, nele, a autora aponta as circunstâncias e as condições de vida das comunidades teuto-brasileiras, quer geográficas, quer sociais e culturais, para explicar a falta de expoentes literários, sobretudo, para os críticos alemães. Esta observação também surge na forma da IV estrofe do poema, intitulado “Kleinigkeiten”: Caros teuto-brasileiros, Por acaso, já refletiram, No que um Wolfgang Goethe Teria na selva realizado? Quem falaria hoje do gênio, 16 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. Der letzte Artikel: ‘An die Herren der Schoepfung’ fand erfreudlicherweise auch in der Maennerwelt einigen Widerhall. Eine der ‘angesprochenen’ Leser aeusserte sich sogar schriftlich dazu, und da er in seinem Brief einige, vielleicht berechtigte Ansprueche an eine ‘Mustergattin’ stellt, moechte ich ihn unseren Leserinnen nicht vorenthalten. Eine offene Aussprache kann nur zum beiderseitigen Verstehen beitragen. […]” 17 In: Brasil-Post, São Paulo, 24.10. 1959, p. 1. Tanto o original quanto a tradução encontram-se on line. 43 Tivesse ele em Ijuí nascido.18 No ensaio acima mencionado, a autora também se refere a um certo “dirigismo” no âmbito das editoras, que facilitava e incentivava o registro de memórias. Diz o texto: Quem hoje quiser ver o seu trabalho literário impresso - e qual escritor não gostaria de vê-lo? - precisa escrever exatamente o que os senhores editores ou as instituições fomentadoras da cultura germânica (Deutschtum) desejam do escritor. O mais fácil de publicar ainda são os “poemas e histórias localistas”, que se referem à imigração e ao destino dos imigrantes.19 Hilda Siri publica entre os anos de 1951 e 2001, no mesmo período que Alfred Reitz, por exemplo, (outro autor contemplado por este projeto). Para se perceber o que há de genuíno e de localista na literatura produzida por Hilda Siri, basta olhar para o espaço de cultura alemã e para o Brasil durante o mesmo período. Os países de língua alemã conhecem vários movimentos literários, que se articulam com as circunstâncias, com a História de seu tempo, tais como: a Literatura da década de 50 (Heinrich Böll, Alfred Andersch, Günter Grass, Marie Luise Kaschnitz, Paul Celan, Hans Magnus Enzensberger, Rose Ausländer, Ingeborg Bachmann, Eugen Gomringer, Siegfried Lenz Wolfgang Koeppen, Ernst Jünger, Max Frisch, Uwe Johnson), a Literatura da década de 60 (Peter Weiss, Hans Magnus Enzensberger, Martin Walser, Günter Grass, Heinrich Böll, Peter Schneider, Gabriele Wohmann, Bernward Vesper, Siegfried Lenz, Peter Härtling, Franz Xaver Kroetz, Max Frisch, Friedrich 18 Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Ihr lieben Bras-Teutonen/habt ihr schon überdacht,/was wohl ein Wolfgang Goethe/im Urwald hätt‘ vollbracht?/Wer spräche heut‘ von dem Genie,/Wär‘ er geboren in Ijuí”. In: Siri, Hilda. “Kleinigkeiten”. Die alte Truhe. Campinas, ed. particular da autora, 2000, 141. 19 Trad. Luana Camargo. In: “Literatura brasileira de expressão alemã”: www.martiusstaden.org.br. “Hilda Siri. Letras localistas”. “Wer heute seine schriftstellerische Arbeit gedruckt sehen will (und welcher Schreibende möchte das nicht?), muss das schreiben, was die Herren Verleger oder die das Deutschtum pflegenden Institutionen gerade von ihm wünschen. Am leichtesten sind noch die ‚bodenständigen Gedichte und Geschichten‘, die sich auf die Einwanderung und die Einwanderer-Schicksale beziehen, unterzubringen.” 44 Dürrenmatt, Peter Handke, Elias Canetti Günter Wallraff, Helmut Heißenbüttel, Ernst Jandl Erich Fried, a Literatura da década de 70 (Max Frisch, Peter Handke, Elias Canetti, Hubert Fichte, Nicolas Born, Verena Stefan,Karin Struck, Christa Reinig, Ingeborg Bachmann, Peter Schneider, Bernward Vesper, Peter Rühmkorf, Karl Krolow, a Literatura da década de 80 (Yoko Tawada, Rafik Schami, Patrick Süskind, Anne Duden, Brigitte Kronauer, Christa Wolf, Elfriede Jelinek, Sarah Kirsch, Michael Krüger, Guntram Vesper, Ulla Hahn, Hans Magnus Enzensberger Christoph Meckel, Alfred Andersch, Helga Novak, Tankred Dorst, Botho Strauß, Thomas Bernhard, Heinrich Böll Martin Walser, Uwe Johnson,Alfred Muschgel, Peter Bichsel, Peter Handke, Friederike Mayröcker, a Literatura da década de 90 ou literatura alemã-alemã (Ulrich Peltzer, Durs Grünbein, Raoul Schrott, Ulrich Beil, Marcel Beyer, Thomas Kling e Brigitte Oleschinski, Thomas Kling, Franz Josef Czernin, Brigitte Oleschinski, Ingo Schultze, Günter Grass, Thomas Hettche, Wolfgang Hilbich, Monika Maron, Christoph Hein, Oswald Wiener, Hans Wollschläger, Christoph Ransmayr, Walter Moers, Marlene Streeruwitz, W. G. Sebald, Feridun Zaimoglu, Wladimir Kaminer, Rafik Schami, Thomas Brussig, Dietmar Dath, Daniel Kehlmann Martin Mosebach, Ulrich Peltzer, Ingo Schulze, Uwe Tellkamp, Albert Ostermaier, Moritz Rinke, Roland Schimmelpfennig. No Brasil, esses mesmos anos pertencem ao Modernismo em toda a sua extensão. Escrevem Carlos Drummond de Andrade, Mário e Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Geir Campos, Fausto Cunha, Milton Dias Heitor Marçal, João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Fernando Gabeira, Vilma Guimarães Rosa, Maria Cecília Caldeira, Ariano Suassuna, Rui Mourão, Esdras do Nascimento, José Cândido de Carvalho, Murilo Rubião, Osman Lins, Orides Fontela, os escritores 45 da chamada prosa intimista: Lygia Fagundes Telles, Osman Lins Autran Dourado Nélida Piñon, Hilda Hilst, os chamados autores da prosa memorialista ou autobiográfica Pedro Nava e Érico Veríssimo, e tantos outros.