Um breve relato do trabalho realizado nas oficinas de arte nos Centros de Convivência da Saúde Mental Luisa Macedo1 Ela chegou mais perto de mim e tocou minhas mãos com uma ternura agressiva. Com seus olhos arregalados, óculos quase caindo do nariz, pediu ajuda como se eu pudesse oferecê-la: naquele dia eu também precisava ter meus cacos remontados. A mulher parou de fazer o mosaico a que se atinha e me olhou com mais desespero. Parecia ter uma sede insaciável, fome infinita. Procurei não demonstrar minha angústia diante de tanta realidade e, tentando parecer calma, perguntei o que a afligia. Chorando muito e secando as lágrimas com violência ela pediu desesperada: “Eu quero uma cabeça boa! Me dá uma cabeça boa, por favor!” Perplexa diante de pedido tão dolorido respondi com uma pergunta: “E o que é uma cabeça boa?”. Sem pensar muito a senhora respondeu: “Uma cabeça boa é uma cabeça igual à sua”. O diálogo acima, estabelecido com uma usuária participante da oficina de mosaico que coordeno é aqui utilizado para que a sutileza do contato entre monitor e participante possa ser um pouco mais conhecida. Acredito que descrever os processos vividos a cada dia seja árdua e talvez impossível tarefa, uma vez que de diálogos como esse e vivências únicas e às vezes irreproduzíveis é que se constrói a percepção do trabalho desenvolvido. É por isso que resolvi nortear essa tentativa pela fala de quem mais propriedade tem para dizer de seu sofrimento: o próprio usuário. A oficina de mosaico tem sido, desde o início, uma rica experiência tanto no sentido da criação quanto no sentido da transformação da “incapacidade” em superação de limites. No primeiro quesito, confesso me sentir mais confortável para sugerir saídas e propor idéias, já que minha formação em Artes Plásticas foi, todo o tempo, pautada na criação 1 Luisa Macedo é fotógrafa e cursa o Mestrado em Artes Visuais na UFRJ. Atuou como coordenadora de oficinas de arte nos Centros de Convivência São Paulo, Oeste e Pampulha por quatro anos. visual como melhor maneira de exprimir os anseios e desejos. Dessa maneira, esse artifício tem sido sempre o principal eixo para propor atividades quaisquer e o que surgir a partir disso será administrado com os recursos que me foram concedidos nas pesquisas em arte. Qualquer encaminhamento feito durante as oficinas tem a ver, sobretudo, com a arte e seus meios, nunca com outra área do conhecimento que não me seja familiar. Acredito que nessa especificidade é que se encontra o maior mérito das atividades artísticas propostas nos Centros de Convivência: a possibilidade de trazer a arte para a vida das pessoas para que elas possam fazer surgir o desejo de manifestação criativa e, com isso, transformar o sofrimento de alguma maneira. O fato de que as oficinas são coordenadas por artistas possibilita uma mudança de foco no tratamento , já que este que passa a ser o potencial criativo a ser desenvolvido por cada sujeito e não as maneiras de tratá-lo e as intervenções necessárias para fazê-lo. Assim, o artista tem diante de si alguém a quem oferecer recursos para transformar algumas questões de sua vida, mesmo sem saber exatamente como isso acontecerá. O manejo de cada situação é único, acrescentando saídas ao nosso repertório de estratégias de convivência para tornar a oficina um lugar de experimentação, onde o sujeito possa dar vazão às aflições e angústias sem ser questionado diretamente a respeito da origem das mesmas. O diálogo transcrito no início desse texto reflete como, muitas vezes, não há respostas para os questionamentos lançados por essas pessoas, mas é possível, através deles, pensar que essa junção dos cacos, seja ela metafórica ou concreta, possibilita ao indivíduo momentos de reavaliação, de retomada e transformação. É extremamente relevante perceber que a mesma pessoa que deseja ter uma “cabeça boa” como a minha começa a perceber, um tempo depois, que cada um tem seus momentos de desordem e conflito e que à sua maneira, encontra um jeito de remontar os cacos e fazer surgir um belo desenho, nem melhor nem pior, apenas diferente. Acredito, então, que a tarefa primordial do coordenador da oficina seja, a cada dia, reaprender que o sujeito cria maneiras de se expressar, que deverão sempre ser percebidas, na sua singularidade. Exemplo disso aconteceu quando o usuário M. fazia um desenho e eu o instruía sobre este ou aquele traço: “_ O queixo da mulher não está muito grande, M? _ Não, é que ela é gorda!” Esse diálogo mostra que aquilo que acreditamos ser o correto, o mais bonito, o esteticamente mais aceito, não é, em absoluto, o que cada um tem como valor para se expressar. E o exercício cotidiano é o de enxergar nas diferenças toda a riqueza do aprendizado possibilitado pelo convívio com os usuários da Saúde Mental.