UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
JULIANA LUSTOSA JUCÁ
“NÓS TEMOS QUE ASSUMIR QUE SOMOS ÍNDIOS E QUEBRAR ESSE
PRECONCEITO”: ESTUDANTES TAPEBA E O RECONHECIMENTO DA
IDENTIDADE INDÍGENA.
FORTALEZA – CEARÁ
2014
JULIANA LUSTOSA JUCÁ
“NÓS TEMOS QUE ASSUMIR QUE SOMOS ÍNDIOS E QUEBRAR ESSE
PRECONCEITO”: ESTUDANTES TAPEBA E O RECONHECIMENTO DA
IDENTIDADE INDÍGENA.
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado
Acadêmico
em
Políticas
Públicas e Sociedade do Centro de
Estudos
Sociais
Aplicados
da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Políticas Públicas e
Sociedade.
Área de Concentração: Políticas Públicas
e Sociedade.
Orientador: Prof. Dr.
Maranhão P. Aires
FORTALEZA – CEARÁ
2014
Jourberth
Max
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
Bibliotecário Responsável – Francisco Welton Silva Rios – CRB-3/919
J91n
Jucá, Juliana Lustosa
“Nós temos que assumir que somos índios e quebrar esse preconceito”:
estudantes Tapeba e o reconhecimento da identidade indígena / Juliana
Lustosa Jucá . -- 2014.
CD-ROM. 77 f. : 4 ¾ pol.
“CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico,
acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm)”.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de
Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas
Públicas e Sociedade, Fortaleza, 2014.
Área de Concentração: Políticas Públicas e Sociedade.
Orientação: Prof. Dr. Jourberth Max Maranhão Piorsky Aires.
1. Identidade étnica – Tapeba – Caucaia – Ceará. 2. Estudantes
indígenas – Tapeba – Caucaia – Ceará. 3. Relações interétnicas – Tapeba –
Caucaia – Ceará. 4. Preconceito étnico – índio – Tapeba – Caucaia – Ceará.
I. Título.
CDD: 155.92
AGRADECIMENTOS
A Deus por estar sempre ao meu lado, pela força para superar as dificuldades e
concluir mais uma etapa da minha vida.
Ao apoio e amor incondicional da família, fazendo-se presente em todos os
momentos e acreditando em meu sucesso. Obrigada por tudo: Eloneide, Aroldo,
Piunga, Allan, Thiago, Muciana e as pequenas Ana Beatriz, Ana Alice e ao mais
novo membro da família, Caetano, pelos momentos de afeto e leveza.
Aos meus colegas de mestrado Dani, Maurício, Adjacy e Tony pela amizade e apoio
para seguir em frente. Em especial à Jocastra, Clarinha e Nayane com quem
compartilhei todos os bons momentos e os difíceis. Vocês estarão sempre comigo,
amigas.
Aos amigos que sempre torceram pela realização deste sonho: Karine, Kelly
Antônio, Vanessa, Tereza Emanuelle, Danielle, Ariádine, Renata, Juliana, Thais,
Ellen, Rebeca e Sâmea.
A minha amiga Daniele Teodoro pela amizade, incentivo, companheirismo e por se
fazer sempre presente em todos os momentos da minha vida.
Ao amor, apoio e compreensão do Fernando, que me foi tão importante nesse
percurso.
Aos professores e Coordenadores do programa MAPPS por terem sido
fundamentais na minha formação. E à assistência cotidiana de Cristina Pires.
À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(FUNCAP) pelo financiamento da bolsa de estudos.
Ao meu orientador, Max Maranhão, pela confiança, atenção e contribuição oferecida
durante a construção deste trabalho.
Aos professores Stephen Baines e Bernadete Beserra pela disposição de analisar o
presente trabalho e de participar da banca avaliadora, oferecendo generosamente
suas considerações e contribuições.
A Araújo, Bartolomeu, Léia, Kátia, Ozilene, Marta, Janiele, Francisco, Kennedy e
todos os alunos Tapeba pela atenção e contribuição fundamental para a realização
desta pesquisa.
A todos que me acompanharam nessa jornada de dois anos de mestrado e, que de
algum modo, contribuíram para que a caminhada fosse de crescimento e
aprendizado, minha sincera gratidão!
RESUMO
Nesta dissertação, analiso as relações interétnicas no interior de uma escola nãoindígena, frequentada por alunos Tapeba, localizada no município de Caucaia,
Ceará, no Nordeste brasileiro. Para tanto, busco descrever a história da construção
dessas relações, as quais podem ser compreendidas mediante a exposição de uma
situação complexa que envolve, dentre outros aspectos, luta pela terra e escola,
significados jurídicos da definição de indígena e o papel atribuído pelas lideranças
Tapeba às escolas indígenas. Durante a década de 1990, lideranças indígenas
justificaram a criação de escolas “diferenciadas” usando, principalmente, dois
argumentos: combater o preconceito sofrido pelos alunos Tapeba em escolas nãoindígena da rede pública, bem como ensinar-lhes a não ter vergonha de ser índio.
Esta pesquisa focou o quadro das relações entre índios e não-índios no interior da
escola,
explorando
temas
como
preconceito,
sistemas
de
classificação,
autoidentificação, bem como a maneira que um grupo de estudantes indígenas se
definiu e posicionou-se em relação a estes temas. Nesta comunicação, explorei
como os estudantes responderam às situações de preconceito e às suspeitas em
relação à identidade indígena dos Tapeba.
Palavras-Chave: Estudantes Tapeba. Relações Interétnicas. Preconceito.
ABSTRACT
This dissertation analyzes the inter-ethnic relations within a non-indigenous school,
frequented by Tapeba students, localized in the city of Caucaia, State of Ceará, in
the Northeast of Brazil. To this end, I describe the history of the construction of these
relations, which could be comprehended by exposing a complex context involving,
among other aspects such as the struggle for land and school, juridical meanings of
indigenous definition and the role assigned by Tapeba leadership for the indigenous
school. During 1990s Tapeba leadership justified the creation of “differentiated
school” especially using these arguments: combating prejudice suffered by Tapeba
students in public non-indigenous schools, as well as teaching how to not to be
ashamed of being indigenous. This research focuses on the relations between
indigenous and non-indigenous in the school, by exploring themes such as prejudice,
systems of classification, self identification, as well as the manner in which a group of
students has defined and faced those themes. This communication explores the way
that those students answered to the situations of prejudice and the suspicious related
to the indigenous.
Keywords: Tapeba Students; Inter-ethnic Relations; Prejudice.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACRC – Associação das Comunidades do Rio Ceará
CESIT – Centro de Saúde dos Índios Tapeba
EEM José Alexandre- Escola Estadual de Ensino Médio José Alexandre
ENEM – Exame Nacional de Ensino Médio
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
MEB- Movimento pela Educação de Base
MIRAD – Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário
ONU- Organização das Nações Unidas
SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena
SISU- Sistema de Seleção Unificada
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
UECE – Universidade Estadual do Ceará
UFC – Universidade Federal do Ceará
UNB- Universidade de Brasília
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01: Mapa dos Povos indígenas no Ceará contemporâneo............................. 18
Figura 02: Fachada da Escola................................................................................... 29
Figura 03: Um dos corredores que dá acesso às salas ............................................ 30
Figura 04: Cozinha .................................................................................................... 30
Figura 05: Marcha Tapeba, outubro de 2012. ........................................................... 61
Figura 06: Alunos indígenas na Festa da Carnaúba, outubro de 2013. .................... 62
Figura 07: Apresentação da Escola Diferenciada Tapeba dos Trilhos na Festa da
Carnaúba, outubro de 2013....................................................................................... 63
Figura 08: Faixa sobre o preconceito exposto na Festa da Carnaúba, outubro de
2013. ......................................................................................................................... 64
Figura 09: Cartaz sobre a Campanha pela Demarcação das Terras Indígenas no
Ceará, exposto na Festa da Carnaúba outubro de 2013. ......................................... 64
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
1. IDENTIDADES INDÍGENAS EM CAUCAIA ......................................................... 17
1.1 Mobilizações indígenas no Nordeste Brasileiro ............................................... 17
1.2 A atuação da Igreja Católica e a luta pela terra ............................................... 20
1.3 “Resgatando” a cultura dos Tapeba ................................................................. 23
1.4 A luta pela educação articulada ao contexto fundiário ..................................... 24
1.5 Os professores indígenas e a intensificação do reconhecimento .................... 25
1.6 Conclusões ...................................................................................................... 26
2. IDENTIDADES INDÍGENAS NA ESCOLA ........................................................... 27
2.1 A criação das escolas “diferenciadas”.............................................................. 27
2.2 Escola de Ensino Médio José Alexandre: onde estudam alunos Tapeba ........ 28
2.2.1 Quem é Tapeba na escola? ....................................................................... 31
2.2.2 Exibição Pública da cultura e o reconhecimento ....................................... 31
2.2.3 Características fenotípicas e as relações de parentesco ........................... 33
2.2.4 “Em Caucaia não existe índio puro” ........................................................... 35
2.2.5 Território .................................................................................................... 37
2.2.6 “Os índios evoluíram muito, eles têm carro e moto” .................................. 39
2.3 Contando os indígenas na escola .................................................................... 40
2.4 Interagindo com os estudantes ........................................................................ 42
2.5 Motivos para os Tapeba não estudarem em escolas indígenas ...................... 44
2.6 Conclusões ...................................................................................................... 45
3. ESTUDANTES INDÍGENAS E O PRECONCEITO ............................................... 47
3.1 Estereótipos ..................................................................................................... 47
3.2 Explicações sobre a desconfiança da identidade indígena .............................. 51
3.3 “Verdadeiro Tapeba” e “os índios em si tinha preconceito contra eles mesmos”
............................................................................................................................... 54
3.4 “O que queremos é a demarcação de nossas terras” ...................................... 57
3.5 Outras situações de preconceito ...................................................................... 65
3.6 Conclusões ...................................................................................................... 68
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 73
ANEXOS ................................................................................................................... 76
12
INTRODUÇÃO
Neste estudo, apresento resultados de uma pesquisa sobre relações
interétnicas no interior de uma escola não-indígena, frequentada por alunos Tapeba,
no município de Caucaia, pertencente à Região Metropolitana de Fortaleza, capital
do estado do Ceará.
Os Tapeba somam aproximadamente 6.600 indivíduos (FUNASA, 2010) e
estão dispersos em inúmeras localidades no município de Caucaia, das quais as
mais conhecidas são Vila Nova, Pontes, Água Suja, Capoeira, Trilho, Lagoa dos
Tapeba (dividida em Lagoa I e Lagoa II), Cutia, Lamarão e Jandaiguaba. Dentre
estes locais citados, existem áreas habitadas predominantemente por estes
indígenas e áreas onde a presença deles é residual. Entre os municípios da Região
Metropolitana de Fortaleza, Caucaia é a cidade mais próxima da capital, da qual
dista 16 km. Entre 1991 e 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) registrou um aumento populacional de 165.099 habitantes para 325.441
indivíduos residentes em Caucaia, numa área de 1.229 km².
Sobre a formação do município de Caucaia, as fontes históricas
acessíveis trazem dados imprecisos, entretanto mencionam que ele teria se
originado de uma aldeia jesuíta entre 1741 e 1759, chamada Nossa Senhora dos
Prazeres de Caucaia. Após a expulsão dos jesuítas, a aldeia foi elevada à categoria
de Vila Nova de Soure, também conhecida até meados do século XIX como “Vila
dos Índios”, atestando a histórica presença dos Tapeba que faziam uso comum da
terra, ao contrário do que acontecia em outras localidades. Segundo dados também
imprecisos, teriam se reunido, naquela região, três a quatros etnias: Potiguara,
Cariri, Tremembé e Jucá (BARRETTO FILHO, 2004).
Não existe na literatura etnológica nem em documentos históricos,
qualquer referência a uma sociedade indígena denominada Tapeba. Barretto Filho
(2004) menciona matérias de jornais locais que dataram do período anterior a 1984,
as quais falam sobre as precárias condições de vida desta população. Em abril de
1968, no Jornal do Brasil, saiu a matéria intitulada “Indígena no Ceará não é nem
cidadão”. Em maio de 1982, o Estado de São Paulo, publica “Os últimos Tapebas,
na miséria”.
13
De acordo com registros da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e
levantamentos realizados por antropólogos e missionários, os estados do Ceará, Rio
Grande do Norte e Piauí eram dados, até bem pouco tempo atrás, como os únicos
estados do Brasil em que inexistiam índios (BARRETTO FILHO, 2004). No entanto,
a atuação da Arquidiocese de Fortaleza, na década de 1980, teve um papel
importante na identificação dos Tapeba como um grupo indígena, quando tomou
conhecimento dos “remanescentes indígenas” em Caucaia.
Os objetivos deste trabalho são os seguintes: entender o quadro das
relações interétnicas no interior de uma escola não-indígena, explorando temas que
encontrei
em
campo,
tais
como
preconceito,
sistemas
de
classificação,
autoidentificação, entre outros; analisar a maneira como os estudantes responderam
às situações de preconceito e às suspeitas em relação à identidade indígena dos
Tapeba.
Percurso até os estudantes Tapeba
Fiz pesquisa de campo na Escola Estadual de Ensino Médio José
Alexandre entre os meses de julho de 2012 e março de 2013 e nos meses de agosto
e setembro de 2013, totalizando 105 dias.
Frequentei a escola duas a três vezes na semana e, nos últimos dois
meses de campo, em agosto e setembro, fui a esta todos os dias, nos turnos da
manhã, tarde e alguns dias à noite. Cheguei ao colégio nos mesmos horários em
que os alunos, às 7 horas. Estava lá antes de tocar o sino, que indicava o horário de
entrada dos estudantes nas salas de aula. Minha saída acontecia sempre às
17h30min, horário do término das aulas.
Enquanto os alunos indígenas de cada turno não chegavam à escola, eu
ficava andando pelo pátio, corredores, salas de aula, secretaria, cozinha e
banheiros, esperando-os entrar e, em seguida, ia até eles e iniciava uma conversa
sobre a matéria ou a aula do dia. Essa iniciativa era uma forma de eu me aproximar
e de eles se familiarizarem com a minha presença.
O horário do recreio foi o momento em que tive maior interação com os
alunos, em que colhi boa parte dos meus dados, através de conversas individuais ou
14
em grupo, observações e fotografias, pois era neste momento que eles interagiam
mais, conversavam e discutiam sobre diversos temas do seu cotidiano. Era um
momento de encontro, em que os estudantes de diferentes turmas se misturavam e
formavam grupos de interesse. Enquanto uns lanchavam, outros, quase sempre
rapazes, sentavam-se nos batentes no pátio. Alguns ficavam em sala ou nos
corredores em pequenos grupos. Era também comum haver meninos no pátio
jogando ping-pong.
Durante o intervalo do meio-dia, eu ficava na escola, geralmente
almoçava com a cozinheira e às vezes com os professores e/ou coordenador. Houve
ocasiões em que ajudei na cozinha, lavando algumas louças, servindo lanches e
fazendo saladas. Nessas situações de interação e contato, observei os debates dos
funcionários da escola (diretor, coordenador, cozinheira, zelador, digitadora, entre
outros) sobre a suspeita da identidade indígena dos Tapeba. As concepções dos
informantes sobre o que é ser índio podem ser englobadas em vários critérios,
dentre eles, que o índio tem que viver da agricultura e da pesca1.
No primeiro dia de observação, depois de ter permanecido sentada no
pátio da escola por várias horas, notei que era recorrente, mesmo durante o horário
de aula, a ida de alunos à cozinha. Foi quando percebi que alguns destes
estudantes eram indígenas. Então, conclui que ali seria um ambiente propício à
minha aproximação inicial a estes alunos e à coleta de informações, especialmente
pelo grande fluxo de Tapeba naquele espaço.
Foi no espaço da cozinha e com o auxílio de Iracema, a cozinheira, que
conheci os três primeiros alunos Tapeba da escola. Em momentos distintos, quando
eles se aproximaram dali, Iracema afirmou “Esse(a) aí é Tapeba”. Então, eu me
aproximei do estudante e me identifiquei, estabelecendo nosso primeiro contato.
Alguns estudantes com quem mantive maior contato e que possuíam uma
dimensão da minha pesquisa, sobre o tipo de informação que pudesse me
interessar, me convidaram para conhecer suas casas, então, a pedidos deles,
passei a acompanhá-los em seu percurso de ida e volta para casa, nas idas ao
shopping de Caucaia e fui às suas residências aos fins de semana. Os dados desta
1
Esta parte será explorada no capítulo 2, subtópico 2.2.4.
15
pesquisa também foram colhidos através de longas caminhadas por entre as ruas e
casas, de pequenas paradas em alguns lugares para cumprimentos e pequenas
conversas. Lembro-me de que, em agosto de 2013, uma aluna me pediu que fosse
com ela até o salão de beleza no bairro Jandaiguaba e lá, eu soube que a
cabeleireira Joana era Tapeba. Joana me disse que a população local não acredita
que ela é indígena, e um dos argumentos utilizados pelos essa população é que ela
não vive da agricultura nem da pesca. Ela me contou inúmeras histórias sobre os
Tapeba, dentre elas, a da Srª. Maria Camaleão, que, quando estava aparentemente
com oito meses de grávida, sentiu-se mal, abaixou-se e, neste momento, segundo a
cabeleireira, saiu um sapo de dentro dela. As cinco pessoas que estavam no salão
confirmaram a conversa.
Acompanhada de alguns estudantes indígenas, presenciei ainda alguns
eventos dos Tapeba, como a Marcha Tapeba, realizada em outubro de 2012 e a XIV
Festa da Carnaúba/ XIII Feira Cultural/ XII Jogos Indígenas, que ocorreram em
outubro de 2013. Participei também da formatura de conclusão do ensino médio, a
convite de dois alunos em março de 2013, que aconteceu num buffet em Caucaia.
Foram, ao todo, onze meses de contato com os sujeitos da pesquisa em
que observei, interagi, fotografei e fiz o levantamento do número de estudantes
Tapeba, para saber quem eram eles na escola2. Neste período, apareceram
informações acerca da caracterização das relações entre estudantes indígenas e
não-índios: (1) as impressões sobre a imagem que os funcionários da escola fazem
dos Tapeba, as quais levam à dúvida, em diversos contextos, se os Tapeba são ou
não índios; (2) o sistema de classificação que os informantes utilizaram no
reconhecimento de alunos indígenas; (3) a definição de preconceito pelos
estudantes; (4) o modo como eles reagiram a estas situações; e (5) a multiplicidade
de sentidos articulados pelos alunos para o reconhecimento de um “verdadeiro
Tapeba”.
Este trabalho está estruturado em três capítulos. No primeiro capítulo,
denominado Identidades indígenas em Caucaia, faço uma breve contextualização
histórica sobre o surgimento dos índios do Nordeste e, em seguida, trato
2
Uma descrição detalhada sobre como ocorreu este processo será abordada no capítulo 2, tópico
2.2.
16
especificadamente dos Tapeba, abordando a luta pela terra e por escolas
diferenciadas relacionadas ao reconhecimento de sua identidade indígena. Para
tanto, busquei me referenciar na bibliografia de Aires (2008; 2012), Arruti (1995;
2004), Barretto Filho (2004), Nascimento (2009), Oliveira Júnior (1998), Oliveira
(2004), Valle (2003), Tófoli (2010) dentre outros autores, que foram fundamentais
para análise e contextualização dos processos de formação das identidades Tapeba
que permitiram o reconhecimento do grupo como indígena.
No segundo capítulo, Identidades indígenas na escola, abordo
mobilizações de lideranças e professores indígenas em torno da criação das escolas
“diferenciadas”, os quais utilizaram como argumento que legitimou o surgimento
destas escolas; alguns episódios de preconceito vivenciados por estudantes
indígenas nos colégios de Caucaia. Descrevo a escola não-indígena onde fiz a
pesquisa de campo e conheci o sistema de classificação utilizado pelos funcionários
no reconhecimento dos alunos Tapeba. Exploro como os estudantes identificaram
outros do grupo no espaço escolar.
No terceiro capítulo, intitulado Estudantes indígenas e o preconceito,
exploro as experiências de preconceito descritas pelos estudantes indígenas, a
variedade de sentidos atribuídos ao uso desse termo e demonstro, a partir de seus
discursos, como eles reagiram a essas situações. Em seguida, descrevo as
condutas elencadas pelos alunos para um indivíduo Tapeba ser considerado um
“verdadeiro índio”, em meio ao tema do preconceito e da desconfiança sobre a
identidade indígena dos Tapeba.
17
CAPÍTULO 01: IDENTIDADES INDÍGENAS EM CAUCAIA
Neste capítulo, faço uma breve contextualização histórica sobre o
“ressurgimento” dos índios do Nordeste e no estado do Ceará. Em seguida, trato
especificamente dos Tapeba de Caucaia, abordando suas mobilizações políticas e o
reconhecimento da identidade indígena no contexto de luta pela terra e por escolas
diferenciadas.
1.1 Mobilizações indígenas no Nordeste Brasileiro
Entre os anos de 1970 e 1980, chegaram ao conhecimento público
reivindicações e mobilizações de povos indígenas que não eram reconhecidos pelo
órgão indigenista e, em alguns casos, nem eram conhecidos pela literatura
etnológica. A exemplo disto, citam-se os Tinguí-Botó, Karapotó, Kantaruré,
Jeripancó, Wassu, Tapeba, entre outros povos, os quais passaram a ser chamados
de “novas etnias” ou de “índios emergentes” (OLIVEIRA, 2004).
No Ceará, somente após as mobilizações dos índios Tapeba (Caucaia),
Tremembé de Almofalas (Itarema), Pitaguary (Maracanaú) e Jenipapo-Kanindé
(Aquiraz), a FUNAI passou a reconhecer a presença indígena neste estado. Na
década de 1980, houve manifestação de comunidades que reivindicaram o
reconhecimento da identidade indígena e o dos direitos diferenciados adquiridos
com a Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que diversas autoridades políticas
afirmavam a não existência de índios no Ceará (RATTS, 2009).
18
Figura 01: Povos indígenas no Ceará contemporâneo
Fonte: PALITOT, 2008, p.35
O intenso contato interétnico dos grupos indígenas do Nordeste com os
colonizadores fez com que estes grupos sofressem modificações dos sinais
distintivos mais evidentes, tais como fisionomia, costume e idioma que os
diferenciavam
da
população
não-indígena
à
medida
que
assimilavam
completamente a sua cultura. Assim, “a partir da segunda metade do século, os
índios dos aldeamentos passaram a ser nomeados com frequência como índios
“misturados” (OLIVEIRA, 2004, p. 19).
Para entender essa mistura, às quais foram submetidos os grupos
indígenas do Nordeste, é fundamental compreender os consecutivos processos de
19
territorialização3, nos quais os povos indígenas estariam envolvidos, que resultaram
na heterogênea organização espacial em que se encontram atualmente.
O primeiro processo de territorialização se deu na segunda metade do
século XVII e nas primeiras décadas do século XVIII. Estava associado às missões
religiosas, unidades básicas de ocupação territorial e de produção econômica,
localizadas principalmente no sertão do São Francisco. Nesta região, o Estado
colonial português incorporou aos aldeamentos missionários famílias de nativos de
línguas e culturas diferentes, catequizando-as, o que caracterizou uma primeira
“mistura”. Destas missões é que advêm as atuais denominações indígenas do
Nordeste. O segundo processo de territorialização, articulado com a agência
indigenista oficial, teve início na década de 1920, quando o governo de Pernambuco
passou as terras doadas ao antigo aldeamento missionário de Ipanema ao órgão
indigenista, para que nela pudessem residir os descendentes dos Carnijós. Estes
passaram a ser chamados de Fulni-ô, após a implantação de um Posto Indígena que
levava o mesmo nome. Este grupo constituía o único na região que mantinha
evidentes sinais diacríticos com relação aos regionais: falava o Iatê, bem como
praticava rituais. No Nordeste, o grupo indígena Fulni-ô foi o primeiro a obter
proteção do órgão indigenista oficial.
Com a perspectiva de perda e/ou aculturação, os índios do Nordeste
foram se fortalecendo através da construção de imagens, ritos e memórias das
relações esquecidas, percebendo-os em seu aspecto simbólico, buscando o que
este conjunto significa para aqueles que o viveram (ARRUTI, 1995). Entretanto,
Oliveira Junior (1998) chama atenção ao fato de que a reelaboração cultural está
inserida num complexo jogo político, pois tem o Estado como o principal interlocutor
dos grupos indígenas, sendo esse o responsável pelo reconhecimento das
identidades reivindicadas e pela demarcação de suas terras.
1.2 A atuação da Igreja Católica e a luta pela terra
Há muito tempo atrás, ninguém podia dizer que uma pessoa era Tapeba,
porque elas ficavam com raiva da gente e dava até briga. Mas depois que
3
“Um processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma unidade sociocultural
mediante o estabelecimento de uma nova identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de
mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos
ambientais; iv)a reelaboração da cultura e da relação com o passado” (OLIVEIRA, 2004, p.24).
20
apareceu a Igreja Católica ajudando os Tapeba e eles passaram a ser
4
reconhecidos, aí hoje você pode chamar eles de Tapeba (João , secretário
da escola, não-Tapeba, 51 anos)
Antigamente o povo aqui [população local] comentava que na estrada que
liga fortaleza à Caucaia, tinha um monte de Tapeba pedindo esmola, aí o
pessoal comentava muito né, que eles eram preguiçosos, que preferiam
pedir na estrada do que trabalhar. O povo também comentava que tinha
muito índio que só queria beber cachaça (Bento, diretor não-Tapeba, 55
anos)
O termo Tapeba, segundo Barretto Filho (2004) configurou, em certos
contextos, um insulto e xingamento, dado à associação social desabonadora que o
termo transmitia, referindo-se ao ato de “comer carne podre”, “consumir álcool” e de
serem “ladrões” e “preguiçosos”. Este autor expõe que era concepção corrente,
entre Tapeba e população regional, que tais condutas significassem características
diferenciais entre eles.
Desde a primeira metade da década de 1980, os Tapeba passaram a ser
identificados como um grupo indígena, quando a então Equipe de Assessoria a
Comunidades Rurais, atendida posteriormente por Equipe Arquidiocesana de Apoio
à Questão Rural da Arquidiocese de Fortaleza, tomou conhecimento dos
“remanescentes indígenas” em Caucaia. Aliada ao apoio da legislação brasileira
com a criação do Estatuto do Índio em 19735 e, sobretudo, a Constituição Federal de
1988, a equipe passou a ter interesse em impulsionar as lutas pela terra no Ceará,
com o objetivo de resolver o problema agrário entre índios e os não-índios no
município.
Após chegar ao Ceará, em 1970, Dom Aloísio Lorcheider, Arcebispo de
Fortaleza, organizou o Movimento pela Educação de Base (MEB). Este projeto
educacional foi coordenado por José Cordeiro e sua esposa, militantes da Juventude
Agrária Católica. Em 1980, Cordeiro iniciou suas ações com uma população
residente às margens do rio Ceará, rio na fronteira entre Fortaleza e Caucaia, que
intitulou de “miseráveis” e “remanescentes indígenas”. Cordeiro proporcionou ajuda
material para estas pessoas e expandiu o trabalho para outros locais. Ele
4
No intuito de manter o sigilo da identidade de todos os informantes da pesquisa (funcionários da
escola e estudantes indígenas) os nomes foram modificados.
5
Lei Nº 6.001, de 19 de Dezembro de 1973, em seus Art. 1º, regula a situação jurídica dos índios ou
silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los,
progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.
21
possibilitou a entrada de recursos financeiros para a compra e doação de alimentos,
construção de casas, tratamentos médicos e ajuda funeral. Em 1985, Cordeiro
organizou Tapeba e trabalhadores rurais de Caucaia, em torno da formação da
primeira organização política institucional- Associação das Comunidades do Rio
Ceará (ACRC), a qual reunia em sua estrutura administrativa indígenas e nãoindígenas para resolver a situação fundiária (AIRES, 2012). Neste período, os
Tapeba entraram em contato pela primeira vez com a FUNAI (TÓFOLI, 2010). Ainda
neste ano, numa carta enviada ao presidente da República, ao presidente da
Fundação Nacional do Índio e ao Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário,
os Tapeba foram apresentados como índios mestiços que queriam terra, posto
médico e escolas. Segundo (AIRES, 2012), “esta carta tornou-se o documento que
deflagrou a abertura do processo administrativo de regularização fundiária e
reconhecimento da identidade indígena”.
O apoio da Igreja e a chegada de Dom Aloísio Lorcheider, foram
determinantes no engajamento de autoridades estaduais em defesa dos indígenas
cearenses, já que se acelerou o processo de reconhecimento dos Tapeba. Entre os
anos de 1985 e 1986, sociólogos e antropólogos do Ministério da Reforma Agrária
(MIRAD) e do Museu do Índio elaboraram estudos que reuniram evidências para a
comprovação da identidade indígena Tapeba. Mesmo com o processo de
aculturação apontado por estes pesquisadores, os estudos identificaram traços
culturais que atestaram a origem pré-colombiana e pequenas diferenças culturais
frente aos não-índios do município de Caucaia, tal como na definição de indígena
que consta no Estatuto do Índio. As indicações destes pesquisadores foram
suficientes para a realização do primeiro relatório de identificação dos limites da
Terra Indígena Tapeba (AIRES, 2012).
Em 1986, foi realizado o primeiro levantamento para delimitação da Terra
Indígena Tapeba, sendo esta demarcada e identificada em Caucaia pela FUNAI e
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que gerou
conflitos e situações de resistência ativa e passiva dos não-índios, devido à
desapropriação de alguns imóveis rurais. A vistoria para demarcação das terras fez
com que muitos regionais, após o levantamento fundiário, vendessem e/ou
loteassem seus imóveis, o que levou alguns políticos do cenário municipal, estadual
22
e federal a contestarem a existência de índios em Caucaia. Estes políticos eram
proprietários de terras que estavam inseridos nos limites de áreas indígenas. Estes
fatos podem ser confirmados na declaração feita por uma deputada estadual e exprimeira dama do município de Caucaia no período em questão.
Nunca existiu índios Tapebas. O que existe é um grupo de descendentes de
um caboclo conhecido pela alcunha de “Perna-de-Pau” que habitou na área
de Caucaia no início do século e teria vivido maritalmente com duas irmãs,
o que gerou um grupo racial fechado que foi habitar nas proximidades da
Lagoa do Babaçu, hoje Caucaia (O POVO, 1987 apud BARRETTO FILHO,
1993).
Em 1988, devido às contestações, houve o arquivamento do processo
relativo à delimitação das áreas indígenas, agravado pela ideia de que os nãoindígenas proprietários de terras faziam da suposta aculturação dos Tapeba o fato
de estarem integrados aos regionais de Caucaia. Em 1989, o processo foi reaberto
com o respaldo da Constituição Federal (1988), quando reconheceu que aquelas
áreas eram uma terra indígena, tendo em vista a ocupação tradicional e permanente
dos Tapeba ali. Em 1997, foi assinada uma portaria declaratória dando parecer
favorável aos Tapeba. Em seguida, a Prefeitura Municipal de Caucaia recorreu da
decisão, por meio de um Mandado de Segurança, por considerar que a Terra
Indígena estava localizada na região metropolitana de Fortaleza, alegando que o
reconhecimento da terra aos índios levaria prejuízos ao progresso e ao
desenvolvimento local (NASCIMENTO, 2009).
No ano de 2003, o Poder Judiciário determinou que fosse realizado outro
estudo e uma perícia antropológica em resposta à contestação se os Tapeba são
índios. Neste estudo, foi observada a Festa da Carnaúba6, realizada em outubro de
2002, que foi importante para o registro de rituais e manifestações culturais, por
meio dos quais os Tapeba afirmam sua identidade indígena, demonstrando que
esse quadro cultural é a base legítima de entendimento das concepções e práticas
que definem a diferenciação étnica e a etnicidade dos Tapeba. Neste cenário, a
performatividade das tradições indica os significados do pertencimento a um lugar
que é culturalmente reconhecido (VALLE, 2003).
1.3 “Resgatando” a cultura dos Tapeba
6
A formação de denominadores culturais dos Tapeba será apresentada no capítulo 2, tópico 2.2.2.
23
Cordeiro começou uma pesquisa para a produção de conhecimento da
presença de índios em Caucaia e da identidade indígena dos Tapeba, o que pôde
ser encontrado em nomes de ruas com origem tupi, remédios caseiros e artefatos
feitos com a palha da carnaúba, os quais foram nomeados como práticas culturais
indígenas. A Arquidiocese de Fortaleza também propiciou possibilidades aos
Tapeba, já que ensinou às lideranças indígenas o seu passado, cultura e direitos.
Em virtude da noção que os tapebas têm de serem índios, a equipe
Arquidiocesana, num primeiro momento de sua atuação, desenvolveu
esforços didáticos e pedagógicos especiais de “resgatar” a memória deles,
através de inúmeros artifícios e práticas, tais como dramatizações e
apresentações de teatro de bonecos, exposições de “conjuntos de cartazes
educativos”, e da produção de um vídeo (Tapeba: resgate e memória de
uma tribo). Essas iniciativas, por sua vez, estavam baseadas nos inúmeros
textos produzidos pela Equipe Arquidiocesana a partir de uma pesquisa
documental e bibliográfica que desenvolveu sobre a história do Ceará, das
populações aborígines e da ocupação colonial onde hoje se situa o
município de Caucaia (BARRETTO FILHO, 2004, p.124-125).
Segundo o autor supracitado, alguns desses textos se tornaram públicos
na tentativa de tornar comprobatória a presença histórica dos Tapeba em Caucaia,
dando suporte à demanda de reconhecimento de seus direitos territoriais.
Noutro esforço, a Equipe Arquidiocesana atuou com os Tapeba e
institucionalizou a data de 03 de outubro como o “Dia do Índio Tapeba”. Esta data
faz referência à morte de Vitor Tapeba, que era tido como o último chefe indígena. O
objetivo da Igreja local, ao instituir essa data, era fortalecer os vínculos desta
comunidade.
No final da década de 1980, a Igreja criou a Pastoral Indigenista. Esta
continuou a produzir fatos para o reconhecimento dos Tapeba como um grupo
indígena e incentivou a criação de cacique e pajé em substituição à estrutura de
cargos da Associação das Comunidades do Rio Ceará, que se transformou numa
organização indígena denominada Associação das comunidades dos Índios Tapeba.
A igreja também propiciou oportunidades de viagens para lideranças indígenas, que
conheceram as lutas de outros povos no Nordeste brasileiro, práticas culturais e
agenda de mobilizações de outros grupos. Posteriormente, os líderes iniciaram a
reconfiguração das práticas culturais. Neste período, foram criadas escolas
indígenas em inúmeras localidades (Pontes, Vila, São Raimundo Nonato, Vila Nova
e Trilho), entretanto não duraram muito tempo pela falta de recursos (AIRES, 2012).
24
1.4 A luta pela educação articulada ao contexto fundiário
Segundo AIRES (2012), a criação das escolas indígenas foi uma
estratégia da Igreja em ampliar a identificação e avançar no processo de
regularização fundiária. O autor explica que a ação da Igreja gerou uma expectativa
de criação da primeira “reserva indígena” do Ceará, respaldada pelo fato de a
Constituição Federal ter estabelecido o prazo de até outubro de 1993 para
demarcação de todas as terras no Brasil, bem como pela proclamação do Ano
Internacional das Populações Indígenas do Mundo pela Organização das Nações
Unidas (ONU). Em abril daquele ano, a Igreja conduziu a Campanha pela
Demarcação das Terras Indígenas no Ceará7 quando grupos indígenas Tapeba,
Tremembé, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé se reuniram numa mobilização na praça
José de Alencar, importante espaço público da cidade de Fortaleza. Naquela
campanha, os Tapeba acamparam e exibiram o artesanato com a palha de
carnaúba, remédios caseiros etc e, ao distribuírem e divulgarem material publicitário
que contemplava trechos do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB)8, reforçavam que a criação das escolas serviria para “recuperação
da memória e identidade étnica”, “formação de agentes educacionais” e educação,
“segundo sua tradição e cultura”.
As lideranças indígenas começaram, então, a participar dos circuitos de
reuniões e assembleias nacionais. A exemplo disto, pode-se citar o cacique
Francisco Alves Teixeira, chamado de Alberto, o qual conheceu as lutas de outros
grupos por escolas diferenciadas e aprendeu a dança do Toré9. Em vistas de
7
A partir de janeiro de 1993, o Movimento Indígena se articulou pela primeira vez entre si, para a
realização da Campanha de Demarcação das Terras indígenas no Ceará- “Terra Demarcada- vida
garantida”, movimento também organizado a nível regional e nacional, decidido e assumido pelos
Povos Indígenas nas diversas regiões do Brasil. Essa campanha contou com a realização de várias
atividades, priorizando a luta pela demarcação das terras indígenas e sua cultura (LEITE, 2009,
p.411).
8
Segundo Tófoli (2010) a mobilização em torno da educação diferenciada vai se consolidar a partir da
aprovação da Lei de Diretrizes e Base de Educação Brasileira (LDB), em 1996, e dos Parâmetros
Curriculares Nacionais para escola Indígena elaborados em 1999.
9
Esta dança era encenada para a imprensa ou estudantes e professores de escolas de Fortaleza e
Caucaia, que se dirigiam até os Tapebas, especialmente no Dia do Índio, para conhecê-los. A
performance da dança acontecia sob a direção de um adulto, que reunia crianças em círculos para
ensinar-lhes as músicas e a ginga corporal ao som de instrumento de percussão. Em seguida,
lideranças de três outras localidades organizaram grupos para treinar o Toré (AIRES, 2012, p. 9).
25
ausência de símbolos e práticas culturais diferenciadoras, Alberto ensinou o Toré
para lideranças de outras localidades, uma vez que o aprendizado daquela dança
representava a possibilidade de se obter um traço cultural, historicamente
empregado pelo órgão oficial federal no reconhecimento de índios no Nordeste
brasileiro (Grünewald, 2005 apud Aires, 2012).
O artesanato e medicina popular, como metáforas que estabeleceram uma
ligação primordial entre Tapebas e a terra, bem como a dança do Toré e
títulos políticos indígenas (cacique e pajé), eram reconfiguradas,
submetidas a uma leitura informada pelas trajetórias pessoais das
lideranças e articuladas as estratégias de produção de informações para
justificar a identidade indígena (AIRES, 2012, p. 9).
1.5 Os professores indígenas e a intensificação do reconhecimento
Os professores indígenas se apropriaram das experiências de “resgate”
da cultura dos Tapeba, produzidas pela Igreja, e tornaram-se figuras essenciais no
processo de intensificação da identificação (AIRES, 2008). Com a possibilidade de
recuperação da cultura, os professores, junto com as lideranças, formularam a
linguagem de reivindicação das escolas indígenas, colocando o tema do preconceito
como uma das justificativas para a criação das escolas diferenciadas10 (AIRES,
2012). O autor cita que, na localidade das Pontes, Trilho e Lagoa dos Tapeba, foram
criadas escolas denominadas de “diferenciadas”, onde na luta por reconhecimento,
os professores exibiam os estudantes com cocar, saias de tucum, artesanato e
rostos pintadas para dançar o Toré. Esses professores produziram um livro intitulado
“Memória viva dos índios Tapeba: terra demarcada, vida garantida” e criaram
eventos que comemoram a cultura Tapeba, para o público não-indígena, como
resposta a um contexto marcado pela discriminação de suas crianças em escolas de
ensino regular da rede pública e as constantes dúvidas da existência de índios em
Caucaia.
1.6 Conclusões
Procurei mostrar como os Tapeba passaram de um grupo tido como
aculturado para sujeitos de direito, os quais segundo BARRETTO FILHO (2004: 122)
“gozam hoje de um novo status: são reconhecidos, são vistos”, a partir da atuação
da Arquidiocese de Fortaleza no sentido de regularizar a situação fundiária, através
10
Situações que descrevo no capítulo 2, tópico 2.1.
26
do “resgate” da história e cultura dos Tapeba, em meio à desconfiança da existência
de índios em Caucaia pela população regional, que marcou o processo de luta do
grupo pela terra.
Em seguida, explorei que, na intensificação do reconhecimento da
identidade indígena, foi fundamental a importância da mobilização dos professores,
os quais produziram junto, com as lideranças Tapeba a linguagem de reivindicação
das escolas diferenciadas, que insistiu na necessidade da exibição pública do grupo.
27
CAPÍTULO 02: IDENTIDADES INDÍGENAS NA ESCOLA
As mobilizações dos Tapeba em torno da criação das escolas
“diferenciadas” colocaram o tema do preconceito na agenda política de lideranças e,
principalmente, de professores indígenas. Estes alegaram que seus filhos eram
objeto de discriminação nas escolas de Caucaia e, por essa razão, era necessário
enfrentar esta questão. Este capítulo analisa o quadro das relações interétnicas no
interior da escola Escola Estadual de Ensino Médio José Alexandre, localizada em
Caucaia, na localidade de Capuan. Exploro o sistema de classificação empregado
pelos funcionários da escola na identificação dos Tapeba, bem como analiso de que
modo os estudantes indígenas identificaram outros Tapeba.
2.1 A criação das escolas “diferenciadas”
A mobilização nacional em prol da escola “diferenciada” data da década
de 1970 e 1980 e foi garantida na Constituição Federal de 1988 e na Lei de
Diretrizes e Base da Educação 199611. Ao final da década de 1980 e início de 1990,
grupos indígenas de alguns estados do Nordeste brasileiro, que estavam
começando a participar do movimento indígena no cenário nacional, reivindicando o
reconhecimento da sua identidade indígena, estavam lutando na elaboração de suas
escolas diferenciadas (SOUSA, 2009).
Em Caucaia, o projeto de escolas “diferenciadas” dos Tapeba pode ser
compreendido, de início, mediante a ação da Igreja Católica e, em seguida, das lutas
de lideranças e, principalmente, dos professores indígenas em intensificar os
processos de reconhecimento dos Tapeba como um grupo indígena em face das
suspeitas, durante o processo de regularização fundiária, de que o grupo era ou não
indígena, bem como resolver o problema agrário entre índios e os não-índios no
município.
11
Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à
cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para
oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:
I - proporcionar aos índios, às suas comunidades e povos a recuperação de suas memórias
históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;
II - garantir aos índios, às suas comunidades e povos o acesso às informações, conhecimentos
técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
28
Alguns casos de preconceito vivenciados por estudantes nas escolas nãoindígenas do município de Caucaia e explorados nos discursos dos líderes
indígenas colocaram o assunto do preconceito como uma das justificativas para a
criação de escolas diferenciadas (AIRES, 2012). O autor menciona uma situação
vivenciada por um adolescente, numa escola pública, no distrito de Capuan, em que
a diretora ameaçou segurar o aluno indígena para cortar-lhe os cabelos, afirmando
não existir índio em Caucaia. Tal episódio fez com que o menino desistisse de
frequentar a escola não-indígena. Em outros casos, lideranças informaram que as
famílias não tinham condições financeiras para comprar fardamento escolar ou
chinelo adequado à escola para seus filhos, por isso os alunos indígenas eram
discriminados. Diante destes fatos, as lideranças pediram o apoio da Igreja para
redigir um documento a ser entregue à Diretora com esclarecimentos sobre a
história dos Tapeba.
Aires (2012) explica que estes episódios ajudaram a formar o discurso
que legitimou a criação das escolas diferenciadas. Na década de 1990, lideranças e
professores Tapeba reivindicaram um projeto diferente para as escolas indígenas,
que enfatizou a inclusão da diferença cultural nos currículos. Esta escola passou a
ser denominada de “Escola Diferenciada Tapeba”12, cujo objetivo era a formação de
uma educação que valorizasse suas práticas culturais e que combatesse o
preconceito e, ainda, que lhes ensinasse a não ter “vergonha de ser índio
2.2 Escola de Ensino Médio José Alexandre: onde estudam alunos Tapeba.
A Escola Estadual de Ensino Médio José Alexandre, localizada no distrito
de Capuan, município de Caucaia, é frequentada por muitos Tapeba, sendo esta
uma das instituições onde as lideranças indígenas relataram casos de preconceito
contra estudantes Tapeba (AIRES, 2012).
A escola foi construída pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará,
no governo Plácido Castelo, em uma área de 86,780m². Ela foi inaugurada em 1970
e carrega o nome da pessoa que fez a doação do terreno onde foi construída. Até o
12
Conforme Sousa (2009), a palavra “diferenciada” tem acompanhado o nome das escolas indígenas
com a intenção de afirmar uma identidade, pela qual não basta ser indígena, tem que ser
diferenciada.
29
ano de 2001, funcionou neste espaço o ensino fundamental e, no ano de 2002,
passou a funcionar somente o ensino de nível médio. Ela possui 11 salas de aula,
onde funcionam 28 turmas, 11 manhã e tarde e 06 à noite, uma sala de multimídia,
um laboratório de informática e um de ciência, além das salas destinadas à Direção,
à coordenação, à secretaria e aos professores. Em 2012 e 2013, tinha 1.093 e 1.053
alunos respectivamente (E.E.M JOSÉ ALEXANDRE, 2009).
O espaço físico da escola ocupa um quarteirão, que inclui a quadra de
esportes. Sua frente e as laterais são cercadas de residências e, ao fundo, existe um
campo de futebol de areia. Na fachada, predomina a cor rósea com alguns detalhes
em azul e o seu nome destacado em letras grandes e azuis. O espaço interno é
claramente delimitado, formado por três blocos. O primeiro bloco fica em frente ao
portão de entrada, onde se localizam, ao lado direito, as salas da Direção, da
secretaria, dos coordenadores, dos professores, a cozinha e duas salas de aula. No
segundo bloco, há cinco salas e no terceiro há quatro salas de aula.
Figura 02: Fachada da escola, 2012.
Fonte: Juliana Jucá
30
Figura 03: Um dos corredores que dá acesso às salas, 2013.
Fonte: Juliana Jucá
Figura 04: Cozinha
Fonte: Juliana Jucá.
31
2.2.1 Quem é Tapeba na escola?
Em seguida, descrevo de que modo os funcionários da escola (diretor,
coordenador, cozinheira, secretário, digitadora e zeladora) identificaram os alunos
Tapeba.
2.2.2 Exibição pública da cultura e o reconhecimento
Alguns informantes não indígenas na escola disseram que suspeitam da
existência de índios em Caucaia, pois muitos Tapeba não se assumem
publicamente como índios, não participam da Festa da Carnaúba, Feira Cultural e
Jogos Indígenas13 nem dançam o Toré. Os funcionários disseram que a participação
dos Tapeba nos eventos culturais é uma forma de reconhecimento da identidade
indígena do grupo. No entanto, Lúcia, 55 anos, digitadora, disse que os Tapeba
inventaram a Festa da Carnaúba porque precisavam criar uma cultura para dizer
que são índios. Segundo ela, “é muito fácil fazer qualquer tipo de evento. Qualquer
pessoa poderia fazer isso, qualquer artista montaria um cenário igual”.
Na
luta
dos
Tapeba
para
a
produção
de
evidências
para
o
reconhecimento de sua identidade indígena, um grupo de lideranças formulou a
linguagem de reivindicação das escolas diferenciadas, que insistiu na necessidade
de exibição pública da cultura e no ensino da identificação como indígenas para
crianças. Com a disseminação da possibilidade da recuperação da cultura,
professores e lideranças indígenas iniciaram um longo trabalho para construir uma
comunidade tribal em Caucaia, com a articulação das identidades às noções
contidas na legislação, à politica educacional e fundiária (AIRES, 2012).
A partir do ano 2000, os Tapeba começaram a criar um conjunto de
eventos articulados ao modelo de educação indígena, definida pelo estado brasileiro
como “específica, diferenciada, bilíngue e intercultural”. Como exemplo, cita-se a
13
A Festa da Carnaúba, Feira Cultural e Jogos Indígenas ocorrem anualmente no mês de outubro,
por três dias consecutivos, nos três turnos e abertos ao público. São realizados nos Paus-Branco,
(lugar sagrado para os Tapeba) às margens da Lagoa II dos Tapeba, na localidade de Capuan. Deste
ponto em diante, esses eventos serão designados como a Feira da Carnaúba, pois é assim que os
Tapeba os chamam.
32
Festa da Carnaúba14, criada em 2000 por lideranças indígenas, durante a ocupação
de área geográfica reivindicada como território Tapeba. Nos anos seguintes,
incorporaram à festa a Feira Cultural15 e os Jogos indígenas16, sendo estes últimos
criados por professores indígenas, tornando todas essas atividades em a Festa da
Carnaúba, Feira Cultural e Jogos Indígenas Tapeba. Todo esse aparato cultural era
empregado para a comunicação entre os próprios Tapeba e uma espécie de face
pública do grupo. Os professores imaginaram a Feira Cultural como um momento
de encontro entre alunos e pais em torno das escolas diferenciadas. Na feira, os
pais dos estudantes conheceram a cultura e a agenda política das mobilizações dos
Tapeba. Estes conjuntos de práticas culturais tinham como objetivo comemorar o
que foi concebido pelos professores como a “cultura Tapeba”, apresentando sua
etnia ao público não-indígena e, nestas ocasiões, também chamavam a atenção das
autoridades e meios de comunicação, em especial jornais locais para os problemas
das escolas (AIRES, 2008). Estes eventos foram fundamentais na identificação de
um número maior de indivíduos, bem como no estabelecimento de novas bases de
relação entre os Tapeba, população regional e instituições de estado (AIRES, 2012).
14
Esta Festa constitui um ritual em homenagem à carnaubeira, elegida pelos Tapeba como a “arvore
mãe”, pois dela tudo se aproveita, a cera, a semente e a palha, que servem para fazer, a exemplo,
artesanatos e trajes que são utilizados no próprio evento. A comemoração é bastante antiga, segundo
alguns depoimentos, remontando-se a uma celebração realizada pelos ancestrais em louvor a uma
grande colheita. Apresentando-se como uma espécie de referência mítica para os Tapeba pensarem
a origem dos festejos, a celebração dos ancestrais simbolizaria a ligação com o grupo local,
lembrando que este foi o lugar de moradia dos antigos [...] A carnaúba, desse modo simbolizando a
ligação do grupo com a terra, é tomada como elemento de identificação coletiva dos índios. Eles
buscam demonstrar sua ancestralidade no local fazendo referência aos usos tradicionais da
carnaúba. Dessa forma, na busca de um símbolo que os associasse ao lugar, os Tapeba elegeram a
carnaubeira (NASCIMENTO, 2009, p. 159).
15
A Feira Cultural consiste na exposição e na comercialização de artefatos compostos por trabalhos
feitos em sala de aula por professores e alunos, a exemplo dos colares, brincos e anéis. Uma parte
destes produtos é destinada à exposição, enquanto a outra parte é comercializada. Durante a Feira,
vendem-se também comidas e bebidas típicas, das quais se destaca o Mocororó, que é uma bebida
de origem indígena que tem por base a fermentação do sumo do caju que é utilizada durante os
rituais Tapeba.
16
Paralelamente à Feira Cultural, acontecem os Jogos Indígenas, que constituem competições
esportivas de diferentes modalidades, tais como a queda de braço, arremesso de lança, atletismo
entre outras. A criação dos jogos indígenas aconteceu em resposta a outro evento realizado no
Ceará, os Jogos Indígenas Nacionais, que contaram com a participação de líderes do movimento
indígena. O evento negou a participação dos povos indígenas locais, com a justificativa de que os
povos indígenas do Ceará não possuíam “esportes tradicionais”. Logo, os esportes indígenas na
Feira Cultural ofereciam uma resposta ao movimento indígena nacional (AIRES, 2008).
33
Maria, 52 anos, zeladora, falou que às vezes se questiona se os Tapeba
são ou não índios, pois muitos indígenas que ela conhece não participam da própria
cultura. Ela explicou que os Tapeba devem participar da Festa da Carnaúba, dançar
o Toré e não ter vergonha de assumir sua identidade indígena. Maria disse: “se eles
mesmos não participam das próprias festas que criaram, como é que a gente
[população de Caucaia] vai acreditar que eles são índios né!”. Ela continuou: “eu sei
dançar Toré igual aos índios, enquanto muitos Tapebas não sabem, ou têm
vergonha de dançar, isso não pode”. Para Maria, os índios têm que “participar dos
eventos deles, pois isso indica que eles são índios”.
Abel, 46 anos, coordenador, disse o mesmo que Maria ao informar que
uma das formas que ele identifica os alunos Tapeba é através da participação deles
nos eventos culturais. Ele contou que, em razão do longo período em que trabalha
na escola, recebe pedidos dos estudantes para serem liberados das atividades
escolares para participarem da Festa da Carnaúba.
Todo ano têm as festas dos Tapeba que acontece lá nos Paus- Branco, aí
os alunos que são Tapeba, pedem para serem liberados porque essa festa
acontece por três dias consecutivos e nos três turnos, manhã, tarde e noite
(Abel).
2.2.3 Características fenotípicas e relações de parentesco.
Os funcionários da escola sabiam quem eram os Tapebas por meio de
índices fenotípicos (pele de “cor escura”, cabelos lisos e pretos) e também por meio
dos sobrenomes dos moradores mais antigos das aldeias.
Abel me indicou dez estudantes durante os dez meses que passei na
escola, dos quais sete eram do turno da manhã e três do turno da tarde. Os alunos
chegaram até mim e disseram que Abel tinha pedido para eles falarem comigo sobre
minha pesquisa. Muitos nem sabiam do que se tratava. Ele comentou que
certamente devia haver outros Tapeba na escola, além daqueles que ele conhecia,
porém não tinha certeza daquilo. O motivo que o levava a considerar a hipótese de
haver mais índios naquele espaço se dava pelo fato de alguns alunos apresentarem
“cor negra”. Devido a isso, orientou-me que, ao tentar identificar sozinha quem ali
era indígena, eu direcionasse meu olhar para aqueles estudantes de pele mais
34
escura. Em seguida, ele disse: “tapeba é aquele [indivíduo] de pele mais escura,
então aqueles alunos de pele mais escura é bem provável que sejam um Tapeba”.
Assim como Abel, Bento distingue os indígenas pelo critério “cor da pele”.
Ele informou-me que, naquela escola, havia muitos estudantes indígenas e que seria
fácil identificá-los: “nessa escola têm muitos alunos Tapeba, você vai ver e logo vai
saber quem é índio aqui”. Bento perguntou se eu já tinha visto algum Tapeba e se
eu me recordava das figuras de índios representadas nos livros infantis, pois,
segundo ele, ao ver um indígena na escola, eu rapidamente o associaria aos
desenhos contidos nas obras infantis, assim como ele o fazia. Ele ensinou-me duas
maneiras de se identificar um Tapeba, eis a primeira:
Você vai perceber que são [aqueles indivíduos] de pele mais escura e
alguns com cabelos pretos e lisos. Sabe quando você abre um livro e tem a
figura de um índio? Pois é a mesma coisa, você associa logo, é mesmo que
estar vendo. Cara de índio, você conhece (Bento).
Eis o segundo critério de identificação:
Sabe qual é a outra forma de você saber quem é Tapeba aqui? É só você
perguntar o sobrenome da pessoa, por exemplo, aqui têm muitos Tapeba
que têm o sobrenome Nascimento, que é dos moradores mais antigos. Esse
sobrenome ai é muito conhecido aqui (Bento).
João, Maria e Lúcia, informaram-me que uma das formas de saber quem
é índio na escola é através dos sobrenomes e citaram as famílias de Matos, Soares
e Teixeira.
Ao ouvir pela primeira vez a palavra “sobrenome” para saber quem era
Tapeba na escola, associei tal termo a uma conversa com Iracema, 29 anos,
cozinheira Tapeba, a qual me contou que, antes de morar em Caucaia, no Capuan,
em um período anterior, residiu na cidade de Fortaleza, com seu ex-companheiro,
pai de dois filhos seus. Ao se separar dele, retornou para Caucaia e comunicou o
fato à sua família. Naquela ocasião, sua avó paterna pediu-lhe que se cadastrasse
como indígena, para que pudesse gozar do recebimento de alguns benefícios, os
quais se referiam à conquista de direitos, como acesso à educação, saúde, entre
outros. Iracema a questionou sobre como ela poderia conseguir o cadastramento, já
que era recém-chegada ao município de Caucaia. Em seguida, sua avó disse-lhe
para falar o sobrenome de sua família, Fortunato, uma vez que todos saberiam que
Iracema seria neta de um dos moradores mais antigos daquele lugar.
35
Perguntei a Iracema como era feito o cadastramento. Ela me explicou
que, quando acontece o cadastro, que não tem data certa, são formadas várias
comissões das lideranças mais antigas de todas as aldeias, as quais ficam em
escolas diferenciadas ou em pontos de apoio nas comunidades. Ela explicou que os
índios “mais antigos” fazem a identificação de Tapeba através da referência familiar,
baseada no sobrenome. Os indígenas que querem se cadastrar preenchem uma
ficha com alguns dados pessoais e depois essa documentação é enviada à FUNAI.
Segundo ela, normalmente se cadastram aqueles Tapeba que voltaram a morar nas
aldeias.
2.2.4 “Em Caucaia não existe índio puro”
Os informantes fizeram uma diferenciação entre ser índio puro/verdadeiro
e índio remanescente. Essa diferença se deu com base em duas justificativas. A
primeira é que, com o cadastramento, houve uma mistura entre regionais e índios,
dificultando a identificação do “verdadeiro Tapeba”. A segunda é que o índio deve
viver do sustento da terra e da pesca. Esses dois fatores, segundos alguns
informantes, fazem com que eles e a população de Caucaia tenham desconfianças
em relação à identidade indígena dos Tapeba.
Hoje não existe índio puro, mas remanescente de índios, porque os índios
já tinham perdido seus costumes quando tiveram que correr atrás por causa
da FUNAI. É tanto que eles têm costumes de branco que é diferente do
costume de índio. (Bento).
Lúcia me contou que índio puro/verdadeiro, termos que ela utilizou para
referir-se aos Tapeba, não existe mais e o que se tem hoje são “remanescentes de
índios”. Ela quis dizer que, com o cadastramento dos índios em Caucaia, o direito de
receber benefícios indígenas fez com que a população regional se cadastrasse
como Tapeba e, como consequência, houve uma mistura entre índios e regionais.
Tal fato dificultou a identificação de quem é “índio puro” no referido município.
Nesse momento, Maria se levantou sorrindo e disse que sempre brincou
com os Tapeba, “eu digo pra eles que queria ser era índia, pra ter direito a receber
tantos benefícios e não precisar trabalhar”. Segundo ela, eles levam esse tipo de
comentário na brincadeira.
36
João disse que hoje, depois do cadastramento, é difícil saber quem de
fato é índio. Ele revela que antigamente as pessoas não queriam ser chamadas de
Tapeba e isso dava até morte, porém, depois dos benefícios, tudo mudou, e ser
chamado de Tapeba não é mais entendido como um “insulto”.
Para João, “hoje todo mundo quer ser índio. Eles não acham ruim ser
chamados de índios não. É muito benefício, ai não pode achar ruim né”. Ele sorriu,
apontou para Maria e disse: “ela é doida pra ser índia, pra ter direito aos benefícios”.
Lúcia criticou os Tapeba ao dizer que, se eles fazem retomada de
terras17, com a justificativa de estarem reivindicando o que lhes pertence e que
precisam da terra para viver, então, devem “colocar a terra pra produzir”. Para ela,
índio que é índio deve viver do que planta, caso contrário, ela não considera como
“indígena verdadeiro” e afirmou que em Caucaia não se observa índio plantando e,
por essa razão, os Tapeba são “remanescentes de índios”.
João também concordou com Lúcia ao afirmar que, se os indígenas
fazem retomada de terras, eles devem viver do sustento da terra, entretanto não é o
fato de não plantarem que faz com que não sejam tidos como “indígenas
verdadeiros”
Maria contou que ninguém na escola ou em qualquer outra localidade
percebe diferença entre índio e população regional, pois eles são iguais. Para ela,
eles devem ser “diferenciados” e acrescenta que a única coisa que faz com que
sejam “diferentes” é o fato de receberem benefícios indígenas. Maria explicou que
índio tem que viver da terra, isso para ela, é a principal característica diferenciadora
entre os indígenas e a população de Caucaia.
Lúcia
disse
que, mesmo não
considerando
os Tapeba “índios
verdadeiros”, ela não tem preconceito contra eles. Inclusive, afirmou que é amiga de
muitos índios e, sempre que surge o assunto sobre a dúvida da identidade indígena
17
“As retomadas de terras são ações de ocupações de áreas para usos voltados para interesses
indígenas, pautados na ideia de retorno aos locais dos quais foram expropriados no passado e
considerados importantes para a memória do grupo, seja por motivos ritualísticos ou para realização
de atividades produtivas ou moradia” (TÓFOLI, 2010, p. 16). A autora explica que no caso dos
Tapeba, as retomadas surgiram principalmente pela diminuição dos espaços disponíveis em seu
território de uso tradicional, devido à histórica relação de dominação dos fazendeiros locais que fazia
a população indígena mudar de residência constantemente.
37
deles, ela fala o que pensa a respeito, e isso nunca foi motivo de discussão entre
eles.
Observei que, durante toda a conversa, Lúcia repetiu com frequência que
não tinha preconceito contra os índios, então perguntei-lhe o motivo. Ela respondeu
que hoje ninguém pode fazer um comentário, pois tudo é entendido de “forma
errada”.
2.2.5 Território
Maria e João me ensinaram outra forma de saber quem em Caucaia é
descendente de “índio verdadeiro”. Para eles, são aqueles que vivem em
determinados locais de moradia e citaram a Comunidade do Trilho18, no distrito de
Capuan e o bairro Lagoa II19 (áreas de retomada de terras), pois sempre souberam
que nessas localidades havia índios, diferente de outras áreas em que eles não
sabiam da existência de Tapeba. João também explicou que nessas comunidades
foram construídas escolas indígenas, que, para ele, prova a existência de “índios
verdadeiros”. Em seguida, Lúcia disse: “faz retomadas de terras, mas não planta,
então, alguma coisa tinha que ser feita”. Ela reforçou a crítica que fez aos Tapeba
ao dizer que se eles fazem retomada de terras porque precisam de suas terras para
viver, então eles deveriam plantar, e, como não fazem isso, constroem escolas
indígenas nestas áreas retomadas.
Nos
anos
1990,
surgiram
as
primeiras
escolas
indígenas
nas
comunidades da Lagoa II e Trilho, estendendo-se posteriormente para outras
18
A Comunidade do Trilho conta hoje com 250 famílias e, conforme Tófoli (2010), neste local houve
duas retomadas de terras, cujas iniciativas partiram dos professores e tiveram o apoio de lideranças e
da comunidade. A primeira ocorreu no dia 22 de novembro de 2004, no intuito de assegurar o terreno
onde funciona a Escola Diferenciada Tapeba dos Trilhos e a creche Kurumiri. A segunda retomada
aconteceu no dia 03 de abril de 2006, no local onde moram várias famílias. Segundo a autora, a
última retomada foi reservada para moradia e construção de um Centro de Saúde dos Índios Tapeba
(CESIT), o qual, até dezembro de 2013, não tinha sido construído.
19
Os Tapeba já realizaram retomadas em diversas localidades. As duas primeiras ocorreram nos
anos 1990, na localidade da Lagoa II. A primeira, por volta de 1993; e a segunda em 1995. Esta foi a
primeira em que de fato ocorreu conflito direto entre posseiros e Tapeba no momento da retomada. A
segunda retomada pode ser considerada um marco na luta pela terra em termos de capacidade de
organização e das conquistas advindas desta. As retomadas da Lagoa II correspondem ao maior
espaço já retomado, o qual possibilita uma área contínua sob controle indígena, interligando três
aldeias: Lagoa I, Lagoa II e Jardim do Amor. Posteriormente, foram realizadas mais 12 retomadas
nas seguintes localidades: Lagoa I, Trilho, Lameirão, Jandaiguaba, Jardim do Amor, Sobradinho,
Ponte, Vila dos Cacos e Capoeira (TÓFOLI, 2010).
38
localidades (TÓFOLI, 2010). Nascimento (2009) analisa a estreita relação entre os
processos de retomadas e a escola indígena, pois, entre as 12 escolas existentes na
comunidade Tapeba, apenas 03- Capuan, Lameirão e Lagoa I - não funcionam em
áreas de retomadas.
As retomadas realizadas no trilho em 2004, na Capoeira e Lameirão, todas
em 2007, tiveram como mote principal a construção das escolas
diferenciadas, o que nos leva a considerar a escola como a primeira
instituição firmada nos territórios em disputa (NASCIMENTO, 2009, p. 101).
No entanto, Lúcia disse que o fato de haver escolas indígenas em
algumas comunidades não faz com que ela acredite que existam índios verdadeiros,
pois, da mesma forma que eles “inventaram” os eventos culturais, eles podem ter
criado as escolas para dizer que são índios. Em seguida, ela mencionou: “índio que
é índio, tem que plantar e pescar, se não faz isso, pra mim não é índio de verdade”.
Lúcia me informou que o último Tapeba verdadeiro foi um homem
chamado de Perna-de-Pau, que viveu nas margens da linha do Trilho20 no Distrito do
Capuan, há muitos anos. Para ela: “esse sim era índio verdadeiro”, pois ele vivia da
caça e da pesca diferente dos índios de hoje.
Barretto Filho (2004) menciona que uma das referências ao termo Tapeba
é fisiográfica, alusiva a um riacho e lagoa homônimos, na proximidade dos quais as
famílias Tapeba são hegemônicas. A possibilidade (e mesmo o esforço deliberado e
consciente) de reconhecer e ter reconhecida sua origem, através destas áreas e da
vida tradicional que ali se levava, é um dos referentes constitutivos da atribuição
categórica dos Tapeba. O reconhecimento coletivo da procedência comum fez com
que houvesse uma estreita correlação entre o topônimo e o etnônimo. Logo, o
referente espacial, toponímico, passou a ser uma referência “familiar”, na medida em
que as pessoas veem sua descendência em virtude das relações de parentesco
(consanguinidade e ou aliança) com os ancestrais que viveram nessas áreas.
O autor destaca que a figura de José Alves dos Reis, o Zé Zabel,
identificado como “Perna de Pau”, o “último Taxaua”, foi tido como a última forte
liderança dos Tapeba da localidade Paumirim. Após a morte de Zé Zabel, os índios
20
Barretto Filho (2004) explica que Trilho é uma referência a estrada de ferro de Baturité (atualmente
desativada), que corta o município de Caucaia, ligando Fortaleza a Sobral, num trecho de 2,5 km.
39
que viviam sob sua autoridade se dispersaram. O caso de poliginia sororal que ele
manteve e os filhos que ele teve com as suas duas mulheres geraram um grupo de
descendência que casaram entre si.
Este grupo se refere como a “verdadeira
nação”, opondo-se aos Tapeba de outras localidades, os quais eles não
consideravam como puros. Eles referem-se a “Perna-de-Pau” como o “fundador” da
“nação” e demandam o status de Tapeba exclusivamente para si mesmos, negandoo a outros
2.2.6 “Os índios evoluíram muito, eles têm carro e moto”
As dúvidas em relação à identidade indígena dos Tapeba também estão
associadas ao uso de aparelhos eletrônicos, bem como ao fato de eles residirem
nas mesmas localidades que a população regional.
Em certa ocasião, enquanto Sr. Bento me mostrava a estrutura física da
escola, passávamos por um grupo de estudantes que conversavam no pátio e
faziam uso do celular. O fato de os estudantes indígenas estarem fazendo uso de
aparelhos eletrônicos levou-o a dizer-me que, naquele ambiente, eu não iria
perceber diferença de comportamento (se referindo ao falar e agir) entre os alunos
Tapeba em relação aos não-Tapeba. Sr. Bento acreditava que, ao morarem na
cidade, convivendo com outros indivíduos, os indígenas perdem sua identidade
indígena. Como consequência, os índios de Caucaia passaram a ter os mesmos
costumes dos demais sujeitos daquele município e perderam os costumes antigos,
e, não são, portanto, mais “índios verdadeiros”.
Eles não são índios verdadeiros é tanto que nessa escola todo mundo é
igual, você não vai ver diferença entre eles. Eles se comportam igual aos
outros, mas também eles foram criados nos costumes dos brancos né. Tem
celular, fazem tudo que os outros alunos fazem (Bento).
Na escola, uma estudante disse o mesmo que Bento ao afirmar que os
índios no passado não usavam aparelhos celulares e que “índio mesmo” mora em
aldeias, nas matas, na região amazônica.
Os índios antigos, eles não usavam celular eles não eram iguais a eles
[referindo-se aos alunos Tapebas da escola], eles só são índios porque as
famílias antigas deles eram, só por isso... mas eu acho que índio mesmo
mora em aldeia, nas matas como os da Amazônia e eles são pessoas como
a gente (aluna não-indígena, 2º ano).
40
Maria contou que fez bolos e farofa de cobra de jibóia para a Feira
Cultural. Segundo ela, antigamente no período das festas, os Tapeba iam a sua
casa pegá-la de carroça e hoje os índios vão à sua residência de carro. Em seguida,
disse: “os índios evoluíram muito. Eles têm carro e motos e trocam de carro todo
ano, são iguais a todo mundo e isso não pode né?”. Retornei a pergunta “por que
não pode?”. Ela respondeu: “mas se eles têm carro e motos pra que eles recebem
benefícios? E outra, eles passam a ser iguais a qualquer pessoa”.
As situações analisadas neste capítulo referem-se aos funcionários mais
antigos da escola, todos com mais de dez anos de serviço e moradores antigos de
Caucaia. Por outro lado, os professores que começaram a trabalhar num período
recente disseram que não percebem diferença entre os estudantes indígenas e os
não-indígenas e que não sabem fazer a identificação dos alunos Tapeba.
2.3 Contando os indígenas na escola
Minha estratégia inicial foi saber quem eram os Tapeba na escola. Para
isso, fiz levantamento dos estudantes em 28 salas dos três turnos. Após três
semanas, foram contabilizados de 1.035 alunos, 85 indígenas, dos quais 34
estudavam no período da manhã, 17 à tarde e 34 à noite. Destes 85, 57 são
mulheres e 28 são homens, com idade entre 15 a 25 anos, os quais moram nos
mais diversos bairros de Caucaia, que são Jandaiguaba, Capuan, Comunidade do
Trilho, Lagoa I e II, Genipabu, Pedreiras, Jardim do Amor e Capoeiras.
A turma de que obtive os dados iniciais da pesquisa foi a do terceiro ano
do turno da tarde, pois eu tinha o nome de dois alunos que haviam sidos indicados
por Iracema, à cozinheira. Em momentos distintos, quando eles se aproximaram da
cozinha, ela afirmou “Esse(a) aí é Tapeba”. Então, eu me aproximei do estudante e
me identifiquei, estabelecendo nosso primeiro contato.
Cada sala em que entrei, eu tinha, na maioria das vezes, o nome de um
estudante indígena que havia sido indicado por outros Tapeba das salas que
percorri anteriormente. Quando ia para uma nova turma e não tinha nenhum nome
como referência, perguntava aos líderes de sala se eles conheciam algum Tapeba,
porém, muitas vezes, eles não sabiam informar e alguns disseram que não tinha
indígena em sua turma.
41
Eu cheguei até os alunos que foram indicados como índios e fiz-lhes
algumas perguntas, como nome, data de nascimento e bairro em que moravam.
Além disso, perguntei-lhes se eles conheciam na escola outros indígenas.
Os poucos alunos que tinham certeza do reconhecimento que faziam de
outros Tapeba utilizaram alguns critérios, como os seus locais de moradia. Outros
levaram em consideração o fato de terem estudado em escolas diferenciadas e por
terem conhecido alguns Tapeba nos eventos culturais.
Certa vez, eu estava na sala de aula com uma aluna, e, no momento de
ela me informar quem era Tapeba, ela pediu para eu esperar foi até o pátio e
conversou rapidamente com uma menina. Quando retornou, disse: “eu fui perguntar
a minha amiga se eu podia dizer pra você que ela é Tapeba e ela disse que sim”.
Elas moravam no mesmo bairro, Jandaiguaba.
Houve uma situação em que o aluno me contou que conhecia um rapaz
de sua turma que era Tapeba, pois estudou com ele na mesma escola indígena,
entretanto, eles não eram próximos e, por essa razão, fez a seguinte recomendação:
“quando você for à sala dele, falar com ele, não diz que foi eu que falei”. Perguntei o
porquê. Ele respondeu: “algumas pessoas não gostam de dizer que são Tapeba”.
No geral, os alunos tiveram dificuldades para reconhecer os Tapeba,
inclusive da sala em que estudaram. Quando pedia que eles me indicassem os
nomes, normalmente eles diziam: “eu acho que aquele (a) é Tapeba”, sendo
necessário, em alguns casos, eles perguntarem diretamente aos estudantes que
eles supunham ser índios da seguinte maneira: “você é Tapeba, né?”, grande parte
era, embora houvesse aqueles que não eram indígenas.
Quando eu perguntei o motivo da dúvida sobre outros estudantes, a
maioria respondeu: “porque hoje tudo é misturado, todo mundo é índio, devido o
cadastramento” e “por não terem conhecimento de todas as pessoas que são
Tapeba”.
Após passar por todas as turmas, fiquei com a sensação de não ter
contado todos os indígenas.
Informaram que, no horário da noite, os alunos
faltavam bastante e, nos três dias em que permaneci nesse horário, não foi
42
diferente. Muitos deles não compareceram. Alguns alunos me perguntaram quantos
Tapeba eu tinha encontrado na escola e, quando souberam da quantidade,
disseram-me que tinham mais. Algumas vezes, os próprios estudantes indígenas e
até os não-indígenas perguntavam aos seus colegas se eles conheciam algum
Tapeba e diziam: “ei tu acha que tem mais de trinta Tapebas aqui à noite?”. A
maioria respondeu: “acho que sim, deve ter uns quarenta ou mais”. Durante uma
conversa informal com um estudante não-indígena que ficou curioso com minha
presença na escola, eu soube que ele conhecia um Tapeba e, quando ele disse o
nome e a série do aluno indígena, verifiquei que não constava na minha lista.
2.4 Interagindo com os estudantes
Após ter feito o levantamento dos alunos indígenas na escola, assisti a
quatro aulas nas turmas do terceiro e segundo ano, em que eles eram em maior
número e acompanhei a discussão de alguns temas, como a possibilidade de
aquisição de bens de consumo.
Nas turmas em que entrei, sentava no fundo da sala para ter uma visão
geral de todos. Normalmente, eu acompanhava as aulas de física, pois quem
ministrava essa disciplina era um professor mais antigo na escola e para ele não
haveria “problema” que eu ficasse em sua sala. Alguns professores mais novos
pareciam se intimidar com a minha presença e, por mais que eu dissesse que não
estava ali para avaliar suas aulas, eles tinham certa insegurança.
Em uma das salas em que entrei, havia uma turma de quarenta alunos do
terceiro ano da manhã, dos quais sete eram Tapeba. Nesta sala, os índios sentavam
perto dos outros, era um grupo de meninas que moravam no mesmo bairro e eram
vizinhas. Tal fato não acontecia nas demais salas, pois muitos Tapeba não sabiam
da presença de outros indígenas em sua própria turma, e alguns passaram a ter
conhecimento devido a minha pesquisa.
No cotidiano da sala de aula, os alunos Tapeba vão produzindo
estratégias
para
suportar,
segundo
alguns
disseram,
as
“aulas
chatas”,
principalmente as de Física. O que parecia ajudar a passar o tempo eram as
conversas e brincadeiras. Na sala havia desde aqueles que ficavam sempre calados
43
praticamente toda a aula, os que ficavam mexendo no celular e até os que não
paravam dentro de sala.
Nesse período de observação, notei que as conversas dominantes entre
os alunos eram a respeito das tarefas escolares. O que lhes dava motivação eram
os possíveis pontos que iam ganhar em cada atividade passada.
O conteúdo era encarado com um único objetivo: passar de ano para ter
um diploma e, com ele, a esperança de um “bom emprego”. Muitos afirmaram que
não prestariam o vestibular porque não teriam chance de serem aprovados.
Disseram sentir dificuldades em muitas disciplinas, entre elas, as de Matemática,
Química e Física, das quais, quase nunca entendiam os conteúdos e seria difícil
concorrer com os alunos de escolas particulares. Eles também falaram que, quando
conseguissem um emprego, pagariam uma faculdade particular.
Quando perguntei qual profissão eles queriam ter, as respostas eram as
mais variadas, entre elas, Medicina, Veterinária, Nutrição, Direito, Arquitetura,
Administração, Educação Física, Jornalismo, Psicologia e Pedagogia. Apenas três
querem ser professor indígena. Dois alunos disseram que, por terem participado de
retomada de terras que aconteceu na Comunidade do Trilho, em 2004 e 2006,
acompanhado a criação da Escola Diferenciada Tapeba dos Trilhos e a creche
Kurumirim nesta localidade e por possuírem na família professores indígenas,
querem tornar-se professores com o objetivo de narrar e ensinar aos mais novos
suas experiências no grupo.
Uma aluna me contou que nunca passaria numa faculdade pública e,
quando lhe perguntei qual profissão ela queria seguir, esta sorriu, ficou pensativa por
alguns segundos e respondeu: “não é pra rir, é um sonho, eu sei, mas queria ser
veterinária”. Perguntei-lhe por qual motivo esse sonho não poderia se realizar. Ela
falou: “eu tenho muita dificuldade em várias matérias e como vou ser veterinária sem
saber das matérias?”.
Após o fim das aulas, permaneci com os Tapeba do lado de fora da
escola. Durante boa parte do tempo, observei seus momentos de interação, em que
o teor das conversas dos estudantes, principalmente das meninas, eram sobre
paqueras e, o consumo de alguns produtos, como, por exemplo, roupas de marcas
44
conhecidas e quando falavam sobre futuro, expuseram seus desejos: “quero
comprar um carro, uma casa”, entre outros objetos. Para algumas alunas, consumir
determinados produtos é um modo de ser notada. Uma delas me disse: “eu quero é
ter muito dinheiro pra viajar bem muito e pra comprar todas as roupas que eu nunca
pude ter”. Outra estudante me contou que, se tivesse condições financeiras, usaria
somente roupas que estão na moda. Ela também contou que, muitas vezes, vai ao
shopping para ficar por “dentro da moda”. Fora da escola, acompanhei uma indígena
ao shopping Iandê em Caucaia. Nós entramos em diversas lojas de roupas
femininas, e, em muitas delas, a aluna experimentou algumas peças e, num
determinando momento, disse: “não posso comprar roupa porque não tenho
condições, mas posso experimentar né”.
2.5 Motivos para os Tapeba não estudarem em escolas indígenas
Diferentes significados foram dados para a escola. As respostas eram as
mais variadas possíveis: o lugar de encontrar amigos e conviver com eles, com
novas pessoas; local onde se obtém um diploma e a possibilidade de conseguir um
emprego, local de muitas paqueras e onde se adquirem conhecimentos.
Uma das alunas contou que achou bom estudar nesta escola, porém
preferia ter continuado em uma escola indígena. A menina estudou na Escola
Diferenciada Tapeba dos Trilhos, onde cursou da 2ª à 6ª série do Ensino
Fundamental. Ela relatou que, ao iniciar os estudos, a escola funcionava debaixo de
um “pé de pau”, e os únicos objetos disponibilizados, à época, eram as cadeiras. Ela
disse que, quando chovia, os professores colocavam lonas para os alunos se
protegerem das chuvas. Somente quando estava cursando a 4ª série, é que a escola
estava quase toda construída, e os alunos passaram a ter aulas no prédio. Nesta
escola, funcionavam turmas até a 6ª série, o que fez com que ela se matriculasse na
E.E.M José Alexandre, onde concluiu o Ensino Médio.
Porém, outros estudantes relataram que preferem estudar em escola nãoindígena, tomando por base a justificativa de seus pais, os quais disseram que o
ensino da escola diferenciada era deficiente e somente ensinava sobre a cultura
45
Tapeba21. Esses dois fatores fizeram com que alguns alunos buscassem uma escola
de ensino regular.
Um aluno me disse ainda que não teve interesse em estudar em escola
diferenciada, pois queria conhecer pessoas não-indígenas que não morassem em
sua localidade, a Comunidade do Trilho. Ele falou que, na Escola Diferenciada
Tapeba dos Trilhos, próxima a sua casa, era bem provável que ele já conhecesse a
maioria dos estudantes. Relatou que, nas escolas de ensino regular em que
estudou, conheceu várias pessoas que não eram Tapeba, apesar de que também
encontrou índios da comunidade. Disse ainda que fazia questão de dizer para todos
na escola que era Tapeba, o que levou algumas pessoas a terem interesse em
saber sobre ele, como era ser índio e o que ele fazia.
2.6 Conclusões
Explorei, na primeira parte deste capítulo, as impressões acerca da
imagem que os funcionários da escola fizeram dos índios e as dúvidas se os Tapeba
são ou não indígenas e mostrei como isso foi debatido entre eles: (1) não se
assumem publicamente como indígenas; (2) não participam dos eventos culturais;
(3) não vivem do sustento da terra e da pesca, fatores imprescindíveis para alguém
ser
considerado
um
“índio
verdadeiro”;
(4)
pessoas
não-indígenas
que
supostamente se passaram por índios para obtenção de direitos, dificultam a
identificação de quem é um “verdadeiro” Tapeba; e (5) uso de aparelhos eletrônicos.
Tais fatos fizeram com que os informantes fizessem uma diferenciassem um “índio
puro” ou “verdadeiro” e “índio remanescente”.
Entretanto,
mesmo
com
as
suspeitas da
existência
de
“índios
verdadeiros” em Caucaia, os informantes disseram que o reconhecimento dos
alunos indígenas na escola é feito através (1) pele de “cor escura”; (2) cabelos lisos
e pretos; (3) sobrenomes das famílias mais antigas das aldeias; e (4) por meio de
21
“As primeiras escolas “diferenciadas” estavam organizadas em torno de uma precária rede de apoio
financeiro. Em alguns casos não tinham nem mesmo o local para funcionamento. Os professores
possuíam pouca formação escolar, e o ensino da cultura também encontrou dificuldades para entrar
no currículo, pois eram habilidades dominadas por um pequeno grupo de líderes. Os pais queriam
uma escola para ensinar seus filhos a ler e escrever, como nas escolas de ensino regular e
suspeitavam das escolas indígenas sem infraestrutura e pensada com base na diferença cultural”
(AIRES, 2012).
46
determinados locais de moradia, onde sempre souberam da existência de índios,
como a Comunidade do Trilho e Lagoa II.
Na segunda parte do capítulo, apresentei a quantidade de indígenas que
estudavam na escola, faixa etária, onde moravam e os critérios que eles utilizaram
na identificação de outros Tapeba: (1) local de moradia; (2) escolas diferenciadas; e
(3) eventos culturais. Analisei os efeitos dos cadastramentos que, segundo os
alunos, ocasionou a dificuldade de reconhecer outros indígenas na escola em que
mencionaram: “hoje é tudo misturado”. Finalmente explorei os motivos apresentados
por alguns alunos Tapeba para não estudarem em escolas indígenas, que são
estes: o ensino deficiente nas escolas “diferenciadas”, ao fato de estas escolas
ensinarem somente a cultura Tapeba. Também disseram que estudam em escolas
não- indígenas para conhecerem outras pessoas não-Tapeba.
47
CAPÍTULO 03 – ESTUDANTES INDÍGENAS E O PRECONCEITO
Neste capítulo exploro o tema do “preconceito”, categoria usada pelos
estudantes indígenas. Este tema surgiu nos primeiros dias de observação na escola,
quando dois alunos Tapeba me perguntaram se eu acreditava que eles eram índios
de “verdade”, pois, segundo eles, a população de Caucaia acredita que no município
não existem indígenas. Analiso as experiências descritas pelos estudantes, a
multiplicidade de sentidos atribuídos ao uso deste termo por um grupo de alunos
indígenas e o modo como eles reagiram às situações de preconceito.
3.1 Estereótipos
Na escola, muitos alunos me disseram que a imagem que os não-Tapeba
fazem dos índios parece depender de alguns critérios, como características
fenotípicas (ter a pele de cor escura e cabelos lisos), baixa condição
socioeconômica, morar na mata (comparação com os índios da Amazônia),
apresentar nudez, viver da agricultura e pesca, não possuir aparelhos eletrônicos
nem carro. Por isso, é comum a população regional fazer as seguintes perguntas:
“você é índio de verdade?” ou “pra ser índio vocês não deveriam morar distante da
cidade igual aos índios da Amazônia e viver do que plantam?”.
Eu acho que as pessoas pensam que ser índio tem que estar dentro da
mata, como os índios da Amazônia, afastado de tudo e andando nu. As
pessoas acham que a gente não pode andar bem vestido, que não
podemos ter celular, carro, essas coisas. Ser índio não tem nada a ver com
andar nu ou viver no meio da mata, isolado de tudo. Eu pelo menos gosto
de moda, adoro moda, gosto de ter as coisas e só porque gosto disso não
vou ser índio, é? Eu acho que quando a gente vai se apresentar nos locais,
as pessoas esperam que a gente quando termine as apresentações esteja
vestido com roupas bem pobrezinhas (risos) e se ver a gente com coisa
boa, acho que pensam que nós não somos índios (Ceci, 19 anos).
Francisco, 20 anos, disse que, quando conhece alguém, gosta de
informar que é Tapeba e, geralmente, as pessoas perguntam se ele é “índio de
verdade” e, ao fazerem tal pergunta, justificam respondendo que ele não parece ser
índio, pois se veste como a população local. Francisco explicou que, por ele não ter
o “perfil indígena”, as pessoas tendem a ser preconceituosas. “Só porque eu não
ando mal vestido, só porque eu tenho um celular, as pessoas dizem que a gente não
é índio, que é mentira nossa, isso é preconceito né?”.
48
Para exemplificar o comentário que ele fez, lembro-me de um sábado à
tarde em que Francisco e eu esperávamos Ceci sair da aula de informática, no
centro de Caucaia, quando ele me mostrou um rapaz que descia de um carro e se
dirigia para o mesmo local onde Ceci fazia o curso. Ele olhou para o homem e disse
que, no entendimento da população regional, índio nunca poderia ter um carro nem
se vestir igual ao indivíduo que, segundo Francisco, usava “roupas boas”.
Ele explicou que muitos de seus amigos indígenas, moradores do bairro
Capuan, contaram histórias sobre as dúvidas da população de Caucaia acerca da
identidade indígena dos Tapeba e descreveu esta situação.
Um amigo meu nesse ano [2013] disse que convidou os colegas do trabalho
[seu amigo é funcionário de uma padaria no município de Fortaleza] para
irem à festa da Carnaúba para conhecer sua cultura e alguns deles riram e
disseram que ele não tinha nada de índio, pois nunca viram índio ter celular
e morar na cidade junto com outras pessoas, pois índio de verdade é que
nem aqueles da Amazônia.
Francisco fez críticas ao pensamento que os regionais têm sobre os
Tapeba. Segundo ele, as pessoas não devem achar que uma pessoa não é índio
porque não anda nu ou porque não mora na mata, pois os índios também têm
“direito de acompanhar a modernidade”. Ele colocou que não é o fato de ter um
aparelho celular que o faz menos índio que os da Amazônia e, enquanto os nãoindígenas não mudarem esse pensamento, sempre haverá o preconceito contra os
Tapeba.
Outros estudantes disseram que escutaram da população local que índio
não pode fazer uso do aparelho celular nem ter carro. João, 19 anos, contou que,
desde o ano de 2010, quando seus pais compraram um automóvel, seus amigos da
escola e do bairro de Jandaiguaba, local em que moram, falaram que sua família
deixou de ser Tapeba no momento em que adquiriu um veículo. Ele disse que não
entende porque as pessoas acham que ter um carro é sinônimo de não ser índio.
Para ele, os índios têm direito de adquirir “coisas modernas e evoluir”. Em seguida,
João perguntou: “quer dizer eu que vou ter que passar a vida toda andando de
ônibus e bicicleta só para as pessoas acharem que sou índio?”.
Na escola, ouvi inúmeras histórias contadas pelos alunos sobre a imagem
que a população regional faz dos índios. Cito uma conversa que aconteceu numa
tarde de quarta-feira, na qual o professor de geografia faltou e não tinha outro
49
profissional que o substituísse. Entrei na sala de aula e conversei com Helena, 19
anos. Seus vizinhos disseram que em Caucaia não existe índio de verdade, pois,
para eles, os “verdadeiros índios” devem tirar o sustento da terra e viver como os
indígenas exibidos nos programas de televisão, que moram em locais distantes da
cidade e no meio da mata. Ela disse que é comum ouvir a população local fazer
comparação entre os Tapeba e os índios da Amazônia.
Durante a conversa com Helena, uma aluna indígena juntou-se a nós.
Trata-se de Patrícia, 17 anos, que, ao adentrar a sala, quis saber qual era o assunto
sobre o qual estávamos conversando. Antes mesmo que eu pudesse informar,
Helena disse que falávamos sobre “o preconceito que as pessoas têm contra nós,
de não acreditar que nós somos índios”. Patrícia contou que é muito difícil que a
população regional acredite que os Tapeba são índios, pois eles associam indígena
a morar afastado da cidade, viver da agricultura e pesca.
Antigamente eu discutia quando um amigo meu dizia que eu não era índio,
ficava com muita raiva e algumas vezes, passava dias sem falar com eles,
mas depois de um tempo eu me acostumei e vi que não valia a pena brigar
toda vez que alguém dissesse que eu não sou Tapeba.
Em seguida, Patrícia sorriu e disse que esse é um assunto que não tem
fim e que acha “chato” frequentemente justificar para a população regional a
identidade indígena dos Tapeba. A “tendência é piorar, pois nós vamos evoluindo
junto com a modernidade”. Ela fez esse comentário, saiu e apenas voltou quando o
professor da aula seguinte entrou na sala.
No contexto local, os estudantes associaram a identidade indígena à pele
de “cor escura”. Pedro, 17 anos, contou que alguns de seus amigos e vizinhos nãoTapeba, moradores do distrito Capuan, ao conhecerem sua sobrinha, de cor branca,
afirmaram que a menina não era indígena, pois, para eles, não existe índio branco.
Pedro comentou que sua família fica chateada quando escuta esse tipo de
comentário. Para ele, índio pode ser de toda cor, e as pessoas, ao alegarem que
sua sobrinha não é Tapeba, estão sendo preconceituosas.
Neste momento, ele olhou para todos os estudantes que estavam no pátio
da escola e apontou para uma menina que estava na fila da merenda e fez o
seguinte comentário: “minha sobrinha tem a cor daquela menina ali, é bem
branquinha”. Em seguida, Pedro me mostrou o braço e disse que a população local
50
acha que índio tem que ter a cor dele “morena” ou a pele de cor “mais escura” que a
dele.
Juana, 19 anos, contou-me que tem uma irmã de “cor branca”. Ela e seus
pais, no entanto, possuem a “cor morena” e não têm cabelos lisos. Por essa razão,
sempre escutou “piadas” de colegas que moram na sua rua, no bairro Jandaiguaba,
ao dizerem que sua família não é indígena, pois nunca viu índio da “pele branca” e
“cabelo enrolado”. Ela fez críticas aos conhecimentos locais acerca dos índios. Para
ela, ninguém pode sair dizendo o que as pessoas são ou como devem ser. No
entendimento de Juana, se alguém se considera Tapeba, é para ser respeitado, mas
ao invés disso, os não-indígenas insistem em dizer que eles não são índios, com
argumento de que eles não têm a pele escura e os cabelos lisos. Joana entende
essa situação como uma forma de preconceito.
Há, entretanto, uma constante suspeita não apenas por parte da
população de Caucaia, mas também de alguns estudantes Tapeba que
desconfiaram de indivíduos brancos que se diziam índios. Durante a Marcha
Tapeba22, realizada no dia 03 de outubro de 2012, na Praça da Igreja Matriz, no
centro de Caucaia, Ceci olhou para um rapaz de cor branca e olhos claros, que
estava participando do evento. Ao vê-lo, Ceci comentou com desconfiança: “esse
menino aí é índio? Hoje tem índio de toda cor, né? Todo mundo também é índio, né,
hoje?”. Perguntei naquele momento se índio teria uma cor específica, referindo-me
ao comentário que ela havia feito e, em seguida, Ceci respondeu:
23
Minha cor é indígena, é morena, é tanto que no formulário do Enem que
eu fui preencher tinha lá nas opções da pergunta sobre sua cor, aí tinha a
opção cor indígena e eu marquei essa, claro né? [...] Mas hoje não tem mais
isso de cor não né? Porque eu sei que hoje tá tudo misturado, que tem índio
branco (Ceci).
22
Em 2005, a data do dia 03 de outubro “Dia do Índio Tapeba” foi retomada com a criação da Marcha
Tapeba, uma caminhada pelas ruas e praças principais do Distrito de Capuan. Neste evento, o qual
integra o calendário político dos Tapeba e das escolas diferenciadas, as escolas modificam suas
rotinas em decorrência de sua preparação, quando parte da carga horária das aulas é destinada aos
ensaios e à produção de materiais. No dia do evento, os estudantes indígenas, organizam-se em
pelotões (o que me lembrou dos desfiles das escolas convencionais em comemoração ao dia 7 de
setembro), vestem-se em saias de tucum e cocar e pintam seus corpos.
23
O Exame Nacional de Ensino Médio – ENEM é uma prova realizada pelo Ministério da Educação e
serve para o acesso ao ensino superior em Universidades Públicas Brasileiras, através do Sistema de
Seleção Unificada (SISU).
51
Noutras ocasiões, Ceci suspeitou da identidade indígena de jovens
brancos. Ao mesmo tempo, relatava ter conhecimento de que índio poderia ter a
pele de cor branca e citou o exemplo dos índios Anacés24: “tem muito índio Anacés
que é branco, mas todo mundo sabe que lá, sempre teve índio branco, as pessoas
já são acostumadas com isso”.
3.2 Explicações sobre a desconfiança da identidade indígena
Para os alunos, a suspeita em relação à identidade indígena dos Tapeba
aumentou depois do cadastramento realizado pela FUNAI. Os estudantes afirmaram
que indivíduos não-indígenas se cadastraram como índio para ter acesso aos
direitos indígenas. O debate girou em torno de pessoas “negras” que supostamente
se passaram por indígenas para obtenção de direitos ou as diferentes opiniões
sobre os casamentos entre Tapebas e não-Tapebas e acesso à direitos.
De tanto ouvir a respeito desse tema, perguntei aos estudantes como era
feito o cadastramento e quando tinha sido realizado. Muitos não souberam
responder, e os poucos que se arriscaram falaram com base nos comentários de
seus pais.
Eu sei que têm um povo aí que vai na casa da gente e faz um monte de
perguntas e minha mãe disse que se um índio é cadastrado e se casa com
uma mulher índia ai essa mulher faz o cadastro dela como índio, mas não
tenho certeza. (Irani, 16 anos)
Minha mãe diz que hoje não é mais como antes, que qualquer pessoa
chegava e se cadastrava, mas, que hoje tá tudo documentado e não é mais
só chegar e dizer que é índio, ainda bem, né? Porque o tanto de pessoa
que já se cadastrou sem ser índio de verdade, né? Fora que eles ficam
usando os nossos direitos, usam o posto que é pros índios. Apesar, que
outras pessoas podem usar, mas não precisa fingir que é índio, né? (Ceci).
Uma das alunas me procurou na escola e disse que tinha perguntado aos
seus pais quando tinha sido realizado o cadastramento dos Tapeba. Ela disse que
eles não tinham certeza do período, mas informaram que o último cadastro foi feito
entre os anos de 2009 e 2010. Perguntei também aos estudantes a que tipo de
benefícios eles se referiam. A maioria respondeu que:
24
Os Anacé constituem um grupo de 1.281 indivíduos (SESAI, 2012), distribuídos em São Gonçalo do
Amarante e Caucaia, municípios pertencentes à região metropolitana de Fortaleza, capital do Estado
do Ceará (BRISSAC e NOBREGA, 2010 apud POVOS INDÍGENAS DO BRASIL, 2013).
52
São as cestas básicas que a gente recebe. Mas pra receber as cestas têm
que ser cadastrado, ai todo mundo quer receber as cestas né!. Também
tem os postos de saúde dos índios né, e também quando uma mulher fica
grávida ela recebe dinheiro pra cuidar do bebê, é dois mil reais, eu acho
(Ceci).
Os alunos repetiram com frequência uma mesma frase: “tem tanta gente
que não é índio, mas se cadastrou só pra ter direito ao que a gente [Tapeba] tem”.
Ouvi este comentário pela primeira vez através de Ceci e pedi que me explicasse
com mais clareza do que se tratava tal afirmação, quando ela me respondeu:
Minha avó e mãe sempre dizem quando veem uma pessoa que se
cadastrou como índio assim: “esse aí nem é índio, se aproveitou do
cadastro e virou índio”, esse aí eu vi se criar e agora virou índio (Ceci).
Muitos estudantes mencionaram que a conquista de benefícios advindos
do reconhecimento dos Tapeba fez com que alguns indivíduos não-indígenas
aproveitassem o cadastramento como chance para “tornarem-se índios” e ocasionou
uma “mistura” entre índios e regionais. Por essa razão, é difícil identificar quem de
fato é indígena. Francisco, por várias vezes, repetiu com outras palavras o conteúdo
desta frase: “Tem aqueles [indivíduos] que nem são índios, mas se cadastraram
como índios pra ter os nossos direitos”. Perguntei a Francisco como ele identificou
esses indivíduos que não eram indígenas, mas que haviam se cadastrado como
índio e, ele me disse:
Na verdade, eu vejo as pessoas comentar sabe? Principalmente minha mãe
e meu pai. Eles conhecem muita gente né, aí eles dizem que tem gente aqui
que se cadastrou sem ser índio, só pra receber os nossos benefícios
(Francisco).
Os estudantes disseram que aprenderam esse tema na família, com seus
pais, avós e tios. Ceci conheceu pessoas que se dizem índios, que se cadastraram
como Tapeba sem sê-lo. Ela tomou conhecimento destas situações pela sua mãe e
avó materna. Esta última, moradora antiga do distrito de Capuan e, portanto,
conhece grande parte das famílias que ali moravam.
Certa vez, assim que Ceci, Francisco e eu chegamos à entrada da
Comunidade do Trilho, ela apontou para uma casa e comentou com a voz baixa que
sua avó havia dito que a família que morava ali não era Tapeba, mas se cadastrou
com índio. Em seguida, Francisco relatou que sua mãe também disse para ele sobre
pessoas que “viraram índio”.
53
Guilherme, 23 anos, me falou que sua mãe comentou sobre indivíduos de
“cor negra” que se cadastraram somente para “receber benefícios”. Ele disse que a
Srª. Maria, não-indígena e mãe de sua namorada, contou que, há uns quinze25 anos,
quase ninguém escutava falar em índios em Caucaia, mas, depois que as pessoas
souberam que o cadastramento como indígena daria direito a benefícios, surgiu
índio de toda cor e de todos os bairros do referido município; Por essa razão, ela e a
população local não acreditavam na existência de índios. Para Guilherme, tal
situação fez com que o preconceito contra eles aumentasse.
Ana, 19 anos, e Irma, 18 anos, são irmãs. Elas contaram que todas as
vezes que sua mãe ia a uma reunião para receber cesta básica chegava em casa
comentando que havia um novo índio e que ela tinha dificuldade para identificar
quem era ou não Tapeba, pois, com o cadastramento, muitos indivíduos passaram a
ser Tapeba somente para ter acesso a direitos. Elas relataram o caso de duas
senhoras, vizinhas e moradoras do bairro Genipabu, que dizem ser os índios “um
bando de aproveitadores”, pois fingem algo que não são somente pelo interesse,
além de falarem: “como eu queria ser índio, é muito benefício que você recebe só
pra dizer que é índio”. As meninas disseram que se sentem ofendidas com esses
comentários.
Francisco comentou o seguinte: “Hoje é tudo misturado e nós [Tapeba]
acaba levando nome de falso índio por causa desses que fingem ser índio”.
Outro tema explorado pelos estudantes foi sobre os casamentos
interétnicos, ou seja, um casamento entre um Tapeba com um indivíduo nãoindígena e o acesso aos direitos indígenas.
Ana e Irma disseram que consideram errado o casamento entre um
Tapeba e um não-Tapeba, pois este passa a receber os benefícios indígenas. Para
elas, índio deve casar com índio, como seus pais que são casados.
Quando Guilherme ouviu o que as duas irmãs falaram, levantou-se de sua
cadeira, aproximou-se e perguntou se poderia participar da conversa. Em pé e
olhando para as duas garotas, disse que não fazia sentido um não-Tapeba se casar
25
Conforme mencionado na introdução deste trabalho, as poucas referências encontradas sobre o
grupo datam antes de 1984 (BARRETTO FILHO, 2004).
54
com um Tapeba e não ser tido como índio; citou o caso de seus pais como exemplo,
pois sua mãe era Tapeba, mas seu pai não era. Em seguida, ele perguntou para as
duas estudantes: “se vocês se cassassem com um homem que não é Tapeba,
vocês não iriam querer que eles se cadastrassem pra ter os mesmos direitos que
vocês?”. As meninas ficaram em silêncio.
Guilherme ainda informou que existem muitos casos de pais e mães de
alunos que casaram com pessoas que não são Tapeba e hoje são cadastrados
como indígenas e têm os mesmos direitos que eles.
Meu pai é índio e casou com minha mãe que não era índia, mas se tão
casado é pra ter os mesmos direitos. Se eu me casar com uma pessoa que
não é Tapeba eu quero que minha esposa tenha os mesmos direitos que
eu. As pessoas julgam muito, e eu sei que falam mal da gente dizendo que
tudo é misturado, mas é pra ter direito sim, porque quando o homem índio e
a mulher não-índia se casam e têm filhos, os filhos têm o sangue dos dois,
ou seja, ele é misturado, então os filhos são índio sim (Júlio, 18 anos).
3.3 “Verdadeiro Tapeba” e “os índios em si tinha preconceito com eles
mesmos”
Os alunos me disseram que conhecem índios que têm vergonha de
assumir publicamente sua identidade indígena. Também contaram que têm
conhecimento daqueles que não se consideram índios. Então, alguns estudantes
citaram condutas que um “verdadeiro Tapeba” deve ter.
Perguntei aos alunos se eles e suas famílias se consideravam Tapeba.
Oitenta e três alunos responderam que sim e não tinham vergonha de dizer que eram
indígenas. Alguns, entretanto, acrescentaram que apenas dizem que são índios
quando alguém lhes pergunta.
Três estudantes relataram que não dizem ser Tapeba, pois têm vergonha
e, dessa forma, evitam que as pessoas falem mal deles. Tal argumento é justificado
por eles terem escutado alguns vizinhos e colegas não-índios criticarem os indígenas
quando fazem retomada de terras ou por não considerarem os Tapeba índios, pois
estes andam bem vestidos e possuem aparelhos eletrônicos. Por escutarem termos
negativos e “preconceituosos” sobre seu grupo, os três alunos preferem dizer que não
são indígenas.
55
Uma das alunas que não se considera Tapeba me pediu para não dizer a
ninguém da escola sobre sua identidade indígena. Com a voz baixa e olhando para
dentro da cozinha, local onde estávamos, instruiu-me o seguinte: se alguém
perguntasse sobre o teor da conversa, eu deveria responder que estávamos
conversando a respeito de outros assuntos. Eu apenas soube que a menina era
Tapeba quando ela se aproximou da cozinha por curiosidade em saber o que eu
fazia lá e, quando eu expliquei que estava fazendo uma pesquisa sobre os Tapeba,
a estudante relatou que era indígena, mas que eu não contasse a ninguém. A garota
me viu conversando com dois alunos Tapeba de sua sala no turno da tarde e me
ouviu perguntar se naquela turma havia mais indígenas. Ela disse que preferiu ir ao
meu encontro e se certificar do que se tratava.
Sobre essas situações de índios se assumirem ou não publicamente
como indígenas, Ceci e Francisco disseram que não tinham vergonha de dizer que
eram índios e citaram algumas condutas que consideram como as que um
“verdadeiro Tapeba” deve ter. Uma primeira característica, a mais importante para
eles, era não ter vergonha de dizer que é índio. Outra conduta valorizada era a
participação nos eventos culturais e, principalmente, dançar o Toré. Este último
apareceu de modo recorrente em muitas falas, como se pode verificar nas duas
narrativas abaixo:
Tem muita gente que é índio, mas nunca participou de mobilização de nada,
sabe? Aí quando veio o cadastramento que eles [Tapeba] sabiam que era
pra receber benefícios, aí num instante saiu dizendo que era índio. Só se
assumiram mesmo pra se cadastrar. Pergunte se eles dançam nos eventos
dos Tapeba o Toré... Pergunte se eles participam das mobilizações que os
Tapeba fazem... Eles não vão não, porque eles só querem ser chamados de
índios só pra receber os benefícios e nada mais. E isso é errado né? Índio
que é índio é independente de ter esses benefícios (Ceci).
Eu danço o Toré em qualquer lugar, pode ser nas festas do Pau-Branco,
pode ser na minha escola, eu não tenho vergonha. E tem muito índio aí que
nem sabe dançar o Toré. Como é que pode um índio não saber dançar um
Toré? Eu não entendo essa vergonha que esse povo diz que tem, é a nossa
cultura não é pra ter vergonha, aí a gente sabe logo que só se cadastrou
por causa dos benefícios né, mas pra mim, eles nem deviam ser cadastrado
como índio, porque eles não são índios (Francisco).
Ceci enfatizou que o Toré lhe foi ensinado desde criança e que outros
Tapeba, assim como ela, também deveriam saber dançá-lo. Para ela, o fato de
muitos não o dançarem faz com que haja dúvidas sobre a identidade indígena dos
56
Tapeba, pois saber a dança do seu grupo é uma forma de a população de Caucaia
identificar que eles são indígenas. Em seguida, Ceci comentou:
[...] Nós participamos da nossa cultura, dançamos o Toré, nos
apresentamos onde precisarem e sempre que alguma liderança chama a
gente pra participar de algum evento, nós vamos para mostrar nossa
cultura. E depois a gente que finge ser índio né? A gente que é interesseira,
mentirosa né?! (Ceci).
Muitos alunos também disseram que ser Tapeba é não ter vergonha de
dizer que é índio. Então indaguei se aqueles indígenas que não falam que são índios
e que também não sabem dançar o Toré não são tidos como Tapeba por eles. A
maioria respondeu que uma pessoa não deixa de ser índio porque tem vergonha de
assumir a identidade indígena. Três alunos disseram que ser indígena “tá no sangue”,
apontando para seus braços. Outros relataram não consideraram Tapeba quem não
se diz publicamente como indígena.
Um dos colegas Tapeba de Júlio não participa da Festa da Carnaúba nem
de mobilizações, nem dança o Toré mas, se fosse necessário, participaria desses
eventos ou o dançaria. Para Júlio, a população regional e os próprios índios sabem
que existem muitos Tapeba iguais ao seu amigo que não gostam de estar envolvidos
em nada que se refira aos indígenas e, devido a isso, questionam que tipo de índio é
esse que não “participa da própria cultura”. Participar da cultura significa ser
reconhecido como indígena pela população regional e pelos membros de seu próprio
grupo.
Ceci e Francisco disseram que alguns Tapeba não têm coragem de
assumir, em certos momentos, que são índios. Ela disse que o fato de os Tapeba
não se assumirem publicamente faz com que eles tenham “preconceitos contra eles
mesmos”. Para exemplificar o que disse, ela contou sobre um discurso que fez
durante um desfile que organizou junto com Francisco. Ceci e Francisco consideram
a comunidade pouco dinâmica, “sem cultura” e com poucos projetos destinados aos
jovens. O tema do desfile era “Brasil: todos os amores, raças e cores”, que ocorreu
na Escola Diferenciada Tapeba dos Trilhos, em 28 de dezembro de 2012, com o
intuito de “mostrarem que eram capazes”.
A gente fez esse desfile, porque aqui não tem nada para nós sabe? Devia ter
algum projeto aqui pros jovens, sabe? ‘A gente fica tudo parado’, tem que ir
pra outros cantos atrás de cursos, essas coisas sabe? Aí pensamos em fazer
um desfile que ninguém acreditou que pudesse dar certo, mas foi um
57
sucesso! Acho que ninguém achou que nós dois conseguiríamos, é tanto que
ninguém quis ajudar (Ceci).
Foram convidadas as meninas que tivessem entre 13 e 17 anos de idade
e que estudassem em escola diferenciada, mesmo que não fossem indígenas. Ceci
reclamou que a comunidade é desunida, pois, ao pedir apoio financeiro ou
organizacional, ninguém se comprometeu em ajudá-la. Entrou em contato com sua
tia, diretora da Escola, pedindo-lhe que cedesse o espaço do colégio para realizar o
evento. A diretora sugeriu que toda a arrecadação financeira do desfile fosse doada
à festa dos alunos do 9º ano.
Ceci ficou encarregada de discursar na abertura do desfile. Em seguida,
levantou-se da cadeira, perguntou se eu estava gravando o que ela dizia e me
contou o que disse no início do evento:
Eu disse que nós temos que assumir que somos índios e quebrar esse
preconceito, pois os índios em si tinha preconceito com eles mesmo, que
estávamos ali para quebrar o preconceito que nós tinha contra a gente
mesmo, que era pra gente mostrar nossa cultura, não ter vergonha em dizer
quem somos índio. Eu disse isso, porque eles mesmos não se assumem
né? Só quando é preciso [se referindo aos benefícios] (Ceci).
Num determinado momento, parou de contar a história e falou: “se você
quiser eu chamo minha mãe e minhas irmãs para confirmarem que eu disse isso no
evento”. Sua família, que escutava o que Ceci dizia, confirmou fazendo um gesto
afirmativo com a cabeça.
3.4 “O que queremos é a demarcação de nossas terras”
Outro tema que os estudantes associaram ao preconceito foi sobre
retomada de terras. Eles disseram que a população regional acredita que os Tapeba
dizem ser índios com o intuito de tomar terras “alheias” e, por essa razão, são “mal
vistos” quando estão fazendo alguma mobilização na luta por direitos.
Desde criança, Ceci acompanhou o engajamento de sua família,
principalmente de sua mãe, a Sra. Araci, na conquista de alguns direitos,
especialmente no que se referia à educação diferenciada e à saúde. Baseando-se
nas histórias de sua mãe, Ceci contou:
As pessoas têm raiva, porque índio invade a terra que é nossa, mas eles
acham que não é, e como ninguém pode fazer nada contra a gente, aí as
pessoas têm raiva porque quando a gente invade um terreno ninguém pode
58
bater nem tirar a força. Eu sempre escutava dos outros [ela se refere aos
não-Tapeba de Caucaia] como na retomada aqui [no distrito Capuan] onde
foi construída a minha casa, que a gente finge que é índio só pra tomar o
terreno dos outros, que em Caucaia nunca teve índio. Eu perguntava a
minha mãe se aquele lugar era nosso porque eu era criança né? [Nessa
retomada, Ceci tinha 12 anos de idade] e ela dizia que era nosso por direito
e que antes do dono tomar, era dos índios que moravam nessa área e por
isso era nossa (Ceci).
Francisco, quando ouviu o que Ceci relatou, lembrou-se de uma conversa
que havia escutado entre duas pessoas desconhecidas, dentro de um ônibus no
município de Caucaia. Naquela conversa, criticava-se a retomada de terras pelos
Tapeba, que estava acontecendo num terreno do distrito de Capuan, onde hoje está
construída a casa de Ceci.
Eu já ouvi gente [não-Tapeba] que fala da gente, eu lembrei de uma vez
que eu tava no ônibus aqui mesmo dentro de Caucaia indo pra casa, aí eu
ouvi umas pessoas que não conheço dizendo assim: “bando de índio que
não tem o que fazer, aí ficam invadindo terra dos outros dizendo que são
deles” (Francisco).
Ele disse que não teve reação alguma. Ficou calado em pé no ônibus
apenas escutando a conversa dos regionais. Segundo Francisco, muitos nãoindígenas, ao se referirem aos Tapeba,
utilizam, em suas falas, expressões
“preconceituosas”, principalmente quando o assunto é retomada de terras.
Essas coisas que a gente escuta é preconceito, né? Chamar a gente de
bando de índio que não tem o que fazer, dizer que a gente não é índio, que
aqui não existe índio... mas eu acho que isso é inveja que esse povo tem da
gente, porque tudo que a gente precisa a gente tem. Se quiser um carro pra
ir pra uma consulta a gente tem, se quiser ir pro médico, tem aqui os postos
dos índios, se uma mulher engravidar e não tiver condições, ela recebe uma
ajuda. É muita coisa que a gente tem né? E ainda tem as cestas básicas.
(Francisco)
De um modo geral, os alunos relataram que normalmente escutam
expressões depreciativas sobre os Tapeba quando eles fazem mobilizações em que
interditam as ruas. Segundo eles, as pessoas “falam mal” dos Tapeba, usando as
seguintes expressões “bando de índio que não tem o que fazer”, “esses índios que
fingem ser índio pra tomar terra das pessoas de bem” e “virou moda” eles fecharem
vias principais de acesso.
Guilherme contou que, quando tinha quatorze anos estava jogando
futebol com uns amigos num campo perto de sua casa e entre os seus colegas,
59
havia um garoto que morava no estado do Mato Grosso do Sul e estava passando
férias na casa de uma tia, que era sua vizinha, no bairro Lagoa I. Ele disse que sua
mãe chegou ao local onde ele estava e pediu que ele fosse se informar sobre as
cestas básicas. Seu amigo, ouvindo o teor da conversa, perguntou a Guilherme se
ele era índio e, quando Guilherme confirmou que era indígena, seu colega começou
a falar mal dos índios afirmando que eles eram ladrões, pois tomavam as terras de
outras pessoas e mentiam alegando que as terras pertenciam a eles. Disse que os
índios do estado onde morava roubaram as terras que pertenciam ao seu pai, e, por
isso, ele e sua família não gostavam de indígenas.
Maiara, 18 anos, certa vez estava almoçando com seu namorado numa
churrascaria no centro de Caucaia e ouviu a conversa de duas mulheres que
estavam sentadas em uma mesa próxima a dela. Elas comentaram que era absurdo
as pessoas terem suas terras invadidas por um bando de indivíduos que se dizia
índio, alegando que queriam suas terras de volta. Maiara disse que ficou com
vontade de ir até a mesa das mulheres e falar que os Tapeba estavam pegando de
volta aquilo que lhes pertenciam por direito, mas, ao mesmo tempo, sabia que não ia
adiantar nada, então preferiu ficar calada, pois era comum ouvir da população local
esse tipo de comentário.
Clara, 19 anos, mora na Comunidade do Trilho, no distrito Capuan. Ela
relatou que, quando sua colega de trabalho soube onde ela residia, disse que
algumas pessoas naquela localidade não eram indígenas e que estas se tornaram
índios para “tomar as terras de pessoas de bem”, que, na verdade, era tudo um
“bando de interesseiros”. Sua amiga falou ainda que os indígenas eram mal vistos,
pois não é o fato de um indivíduo ser índio que ele pode sair pela Caucaia
“escolhendo terras para invadir, afirmando que são deles”. Clara respondeu que os
Tapeba reivindicam as terras que são deles por direito e que os índios eram os
maiores prejudicados, pois haviam perdido seus lugares de origem e que eles
também eram “pessoas de bem”.
Com a informação sobre a existência de um preconceito em relação aos
moradores da Comunidade do Trilho, perguntei aos outros seis estudantes que
moram nesta localidade se eles tinham passado pela mesma situação de Clara, mas
todos disseram que não.
60
Clara contou que, quando o assunto é retomada de terras, é comum ouvir
a seguinte frase pelos regionais: “os Tapeba são interesseiros”. Segundo ela, é
“muito preconceito pra um só povo”, pois eles não são vistos como índios, não
podem fazer reivindicações e aqueles que moram em áreas de retomadas são tidos
como pessoas “interesseiras”. Para ela, escutar tais comentários é algo que
incomoda e provoca indignação.
Alda, 20 anos, ao escutar o que Clara falou, respondeu que morar em
uma área de retomada é uma forma de as pessoas saberem que ali há índios e não
deveriam existir indivíduos desconfiando de que eles não eram indígenas ou falando
que eles eram “interesseiros” nem sendo preconceituosos com os moradores de lá.
Pois, se eles tinham conseguido aquele espaço, é porque foi entendido que aquele
local pertencia ao grupo. Ela falou que o pai de uma colega comentou que a
Comunidade do Trilho é um local que pode se dizer que existe “índio de verdade”,
pois há muitas pessoas antiga lá, mesmo que alguns tenham se aproveitado e
estejam morando nessa área. Alda olhou para Clara e disse que ela não deveria se
incomodar com esse tipo de comentário, pois a população regional sempre irá falar
mal dos índios por eles fazerem retomada de terras e repetiu o que havia dito
anteriormente, que Clara devia entender que, se eles estavam morando em áreas de
retomadas, é porque aquelas terras pertenciam ao seu grupo e, em seguida, olhou
para mim e perguntou, não é?
Os estudantes informaram que, ao longo dos anos, os Tapeba vêm
travando um grande embate pela demarcação de suas terras e, por isso, utilizam-se
das manifestações culturais para atrair a atenção do Poder Público. Eles citaram
como exemplo a Marcha Tapeba e a Festa da Carnaúba.
Ceci lembrou-me da Marcha Tapeba que ocorreu no dia 03 de outubro de
2012, no centro de Caucaia, em que ouvimos o discurso de uma liderança indígena
para um jornalista.
Nessa Marcha também chamamos atenção para a demarcação de terras,
pois nós aguardamos a publicação no Diário Oficial da União, de um
relatório com identificação e delimitação da terra que foi concluído pela
FUNAI desde dezembro do ano passo (ano de 2011).
61
Figura 05: Marcha Tapeba, outubro de 2012.
Fonte: Juliana Jucá
Alda comentou que, no dia do evento, acompanhou sua irmã de oito anos
que desfilou pela Escola Diferenciada Tapeba dos Trilhos e, quando chegou ao local
marcado para o encontro, ouviu a conversa entre duas funcionárias de uma loja, em
que uma falou para a outra: “lá vem aquele bando de índios reivindicarem as coisas
e parar o trânsito daqui, é melhor baixar as portas da loja, porque é capaz de ter
arrastão”. Em seguida, Alda levantou e reproduziu a reação que teve ao ouvir o
comentário das vendedoras, aproximou-se de mim como se eu fosse uma das
funcionárias e disse:
Nós não vamos fazer arrastão, nós estamos aqui para mostrar nossa cultura
e reivindicar nossas terras. Infelizmente têm muitas pessoas que se
aproveitam dessa situação para fazer bagunça, mas não somos nós.
Na XIV Festa da Carnaúba/ XIII Feira Cultural/ XII Jogos Indígenas que
ocorreram nos dias 20, 21 e 22 de outubro de 2013, nos Paus-Branco, encontrei
muitos alunos da escola e a grande maioria dos estudantes estavam usando trajes
feitos com palhas de carnaúba.
62
Figura 06: Alunas indígenas, outubro de 2013.
Fonte: Juliana Jucá
No primeiro dia, eu fui acompanhada de Ceci e Francisco. Eles me
levaram a cada oca e me ensinaram que todas elas representavam uma escola
diferenciada. Apresentaram-me, Weiber, um dos líderes do movimento indígena e
disseram que ele era uma referência para eles. Quando fomos à oca que
representava a Escola Diferenciada Tapeba dos Trilhos, Ceci perguntou a sua tia,
que é diretora, porque ela não foi chamada para participar da peça que a escola
apresentou.
Em uma das ocas que visitamos, Ceci olhou para duas meninas que
usavam roupas iguais a população regional (short jeans e blusa de malha) e disse
que elas deveriam estar trajadas com as roupas feitas de palha de carnaúba, como
muitos Tapeba que estavam lá.
Enquanto assistíamos à apresentação de uma das escolas diferenciada,
Ceci contou que, diferente de muitos jovens indígenas, ela faz questão de participar
de todos os eventos dos Tapeba. Após o fim da apresentação da escola, o grupo fez
uma roda para dançar o Toré, juntaram-se a eles, a população regional e outros
Tapeba. Ceci, no mesmo instante, foi para a roda e disse “Eu amo dançar o Toré”.
63
Figura 07: Apresentação da Escola Diferenciada Tapeba dos Trilhos na Festa da Carnaúba, outubro
de 2013.
Fonte: Juliana Jucá
Quando terminou a dança, Ceci criticou algumas meninas que não
dançaram o Toré e disse: “tá vendo, sempre têm aqueles que nunca dançam. Ficam
somente olhando, elas deviam participar né”. Enquanto Ceci e Francisco me
mostravam o local, olhei faixa e cartaz que traziam frases que remetiam ao tema do
preconceito e da demarcação das terras indígenas.
64
Figura 08: Faixa sobre o preconceito exposto na Festa da Carnaúba, outubro de 2013.
Fonte: Juliana Jucá
Figura 09: Cartaz sobre a Campanha pela Demarcação das Terras Indígenas no Ceará, exposto na
Festa da Carnaúba, outubro de 2013. (Fonte: Juliana Jucá)
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Quando Ceci me viu fotografando o cartaz e faixa, olhou para Francisco e
disse: “olha Francisco tudo que nós falamos pra ela [referindo-se a mim] pode se
resumir nessa faixa. Os Tapeba têm que assumir que são índios, não ter vergonha,
eles têm que quebrar o preconceito contra eles mesmo”. Em seguida, Francisco
falou para Ceci que aquela frase também servia para a população regional que
duvida da identidade indígena deles. Ele acrescentou que no cartaz a população
local poderia ver que eles fazem retomada de terras em áreas que pertencem aos
Tapeba e não porque são um “bando de índio que não tem o que fazer”, em
referência à frase que escutou dentro de um ônibus, em que duas pessoas nãoTapeba criticaram as retomadas.
Todos os estudantes de que me aproximei perguntei-lhes o que
significava as frases que estavam escritas na faixa e no cartaz.
A maioria
respondeu que essas frases chamariam atenção da população de Caucaia,
mostraria através do evento sua cultura, como a dança, o Toré, suas bebidas, entre
outros. Revelariam que eles não tinham perdido seus costumes com o passar dos
tempos nem deixaram de ser índio por conviver junto com a população regional.
Outra aluna respondeu: “queremos a demarcação de nossas terras e que as
pessoas [regionais], entendam que as terras que reivindicamos são nossas”.
Dois estudantes me contaram que, durante o evento, ouviram um grupo
de regionais comentarem que tudo ali era uma farsa e que era muito fácil criar uma
festa, inventar bebidas e danças para afirmarem que são índios e tomar as terras
dos outros. Eles disseram que escutaram a conversa e depois saíram de perto do
grupo.
3.5 Outras situações de preconceito
Uma das estratégias que usei para explorar o tema do preconceito com
os alunos foi perguntar-lhes se souberam de uma discussão que aconteceu na
escola, entre duas alunas não-indígenas, em que uma apelidou a outra de “nega”
durante uma aula de Geografia, no turno da tarde, no ano de 2012. Após este tema,
surgiram
inúmeros
“preconceituosas”.
relatos
de
situações
que
eles
consideraram
como
66
Comentei o episódio pela primeira vez na turma do terceiro ano do turno
da tarde, no horário de intervalo. Quando entrei na sala, havia um grupo de quatro
estudantes Tapeba que estavam conversando sobre modelos de carros, aproximeime e perguntei se poderia me juntar a eles. Depois de um tempo, inseri o assunto da
briga, e os alunos responderam que não souberam dessa situação, mas que era
comum existirem confusões na escola entre as mulheres por causa de namoro.
Todos deram suas opiniões e exemplos de situações de preconceito que eles
vivenciaram fora da escola.
Tiago e Alan, 19 anos, contaram que estavam numa festa de forró em um
clube no município de Fortaleza no ano de 2011. Neste dia, a namorada de Tiago
saiu para ir ao banheiro e quando voltou um rapaz puxou sua mão. Os dois meninos,
quando viram o que tinha acontecido, foram até o rapaz e começaram a discussão.
O menino que pegou na mão da namorada de Tiago sabia que ele era Tapeba e, no
momento da briga, começou a insultá-lo de “Tapeba véi”.
Os rapazes, quando terminaram de contar a história, foram até o pátio da
escola e chamaram sua prima, Daniele, 18 anos para contar um episódio de
“preconceito” que tinha acontecido com ela numa escola não-indígena no município
de Caucaia. A menina disse que sempre participou da Festa da Carnaúba e contribui
com o evento fazendo pintura na população regional e nos próprios Tapeba. No ano
de 2007, quando estudou numa escola não-indígena, duas meninas de sua sala
pediram que ela fizesse uma pintura em seus braços. Quando a coordenadora
percebeu que os braços das alunas estavam pintados, chamou a atenção de
Daniele e pediu que ela não fizesse mais aquilo, pois a cultura dela não podia estar
no ambiente escolar. A garota respondeu que não pintaria mais o corpo de suas
colegas, mas que não deixaria de pintar o dela. Então a coordenadora rebateu
dizendo que, se Daniele voltasse com uma pintura exposta no braço, levaria
suspensão. A menina, quando concluiu o ano letivo, saiu da escola, pois, segundo
ela, “sofria preconceito”. Ela se matriculou em uma escola diferenciada e somente
saiu de lá porque na época não existia o ensino médio, então voltou a estudar em
uma escola não-indígena. A estudante ressaltou que, no atual colégio (E.E.M José
Alexandre), nunca vivenciou esse tipo de situação.
67
Lembrei-me, a partir dessas histórias narradas pelos três estudantes
acima, do caso de Pedro que, no início da minha observação na escola, contou-me
uma situação, a qual classificou ser “constrangedora” um caso de “preconceito”,
termos que ele utilizou para narrar o episódio. Em agosto de 2012, comemorou-se a
inauguração do Shopping Iandê no município de Caucaia. Segundo Pedro, naquela
ocasião, ele e outros Tapeba foram convidados por uma liderança indígena para
dançarem o Toré e, após terminarem a apresentação, eles foram conhecer o
referido shopping, vestindo as roupas utilizadas na apresentação, vestimentas feitas
a partir de palhas de carnaúba. Ele relatou que, após o término da dança, foi
conhecer o local com seus amigos, e algumas pessoas que estavam por lá lhes
disseram para ir embora e trocarem suas roupas, entre elas funcionários das lojas.
Pedro disse que ficou chateado com o que ouviu das pessoas no
shopping e, devido a isso, preferiu sair de lá. Ele falou que, quando conhece alguém,
não diz que é indígena porque tem medo de fazerem chacota ou não quererem ter
sua amizade, pois ele não sabe qual seria a atitude do novo conhecido, isto é, se ele
será receptivo ou não ao fato.
Nem todo mundo quer amizade com a gente que é Tapeba, por isso eu só
falo que sou se me perguntarem, mas se não precisar falar eu não falo.
Tipo: se eu for conhecer alguém, eu não digo que sou Tapeba. Mas eu não
tenho vergonha, sabe? Eu só não ando falando pra todo mundo que sou
índio, eu sou na minha, sabe? (Pedro).
Certa vez, enquanto Ceci e eu conversávamos, em sua casa, sua mãe
apareceu e, ao ouvir o que dialogávamos, narrou um caso de preconceito que
vivenciou.
Antigamente, as pessoas davam desprezo na gente: quando os Tapeba
chegavam, as pessoas saíam de perto. Eu me lembro de uma apresentação
do Toré, num canto que não me lembro do nome, porque eu ia há muitos
locais para me apresentar, ai num desses cantos aí, uma mulher me deu
um beliscão para saber se eu era índia. Hoje o pessoal ainda acha que a
gente não é índio, mas eu não vou com agressão não, até porque se
alguém discriminar a gente, a gente pode ir atrás dos nossos direitos né?
(Araci).
Quando a Sra. Araci terminou de falar, Ceci disse que não sofreu nenhum
tipo
de
preconceito,
mas tinha
conhecimento
de
algumas
histórias
que
demonstraram haver dúvidas sobre os Tapeba serem indígenas. Ceci colocou que,
se acontecesse alguma situação com ela, faria uma denúncia, pois se tais fatos
68
acontecem é porque os indígenas não tomam uma atitude que é ir até a delegacia.
Para ela, discutir e/ou ignorar o ocorrido não resolve nada.
3.6. Conclusões
Neste capítulo, explorei como o tema do preconceito está presente no
cotidiano dos alunos indígenas e como o recurso a uma visão estereotipada sobre o
grupo remete a suspeita da sua identidade indígena, que é baseada em: (1) ter a
pele de cor escura e cabelos lisos; (2) baixa condição socioeconômica; (3) morar na
mata; (4) apresentar nudez; (5) viver da agricultura e pesca; (6) não possuir
aparelhos eletrônicos; (7) nem carro; e (8) não fazer retomada de terras, esta última
faz com que haja uma imagem negativa dos Tapeba, que está associada
principalmente ao “desrespeito à propriedade alheia”.
Analisei também os efeitos do cadastramento que, segundo explicação
dos jovens indígenas, fizeram com que indivíduos não-indígenas se cadastrassem
como índio para ter acesso a direitos. Estes não indígenas eram classificados por
meio de uma linguagem racializada, indivíduos considerados “negros” ou “brancos”
ou ainda não-indígenas que se casaram com Tapebas. Para os estudantes e suas
famílias, estas situações fizeram com que a população de Caucaia tenha dúvidas
sobre a existência de índios neste município.
Outros temas que apresentei foi sobre a vergonha que alguns alunos têm
de assumir publicamente que são Tapeba e o fato de alguns não se considerarem
índios. Esses dois fatos fizeram com que os estudantes citassem as condutas que
um “verdadeiro Tapeba” deve ter, em meio ao tema do preconceito e da
desconfiança sobre a identidade indígena do grupo. Contudo, embora haja
desconfiança em relação à identidade do grupo, os estudantes acreditam que o
preconceito hoje é menor, pois a população de Caucaia passou a reconhecer a
existência de índios ou a se acostumar com a presença deles no município.
Este reconhecimento é atribuído à importância dos eventos culturais em
que lideranças, professores e estudantes indígenas tornam público as suas
condições diferenciadoras frente à população regional. Nesses eventos, as
denúncias de situações de omissão e/ou a demora das ações políticas diante dos
impasses de sua legitimação indígena são feitas, bem como são expostas situações
69
de preconceito vivenciadas pelo grupo, a exemplo das faixas, cartazes e peças
encenadas sobre a expropriação de suas terras durante a Festa da Carnaúba.
70
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na década de 1980, os Tapeba reivindicaram o reconhecimento de sua
identidade indígena e dos direitos diferenciados adquiridos com a Constituição de
1988, ao mesmo tempo em que autoridades locais e população regional afirmavam
a não existência de índios em Caucaia. Neste período, a Arquidiocese de Fortaleza
iniciou suas ações com os índios e não-índios, com a intenção de solucionar o
problema agrário no município. Sobre os indígenas, a Igreja afirmou que
Apesar das semelhanças com a população regional, apesar do processo de
aculturação, não estavam integrados ou tinham deixados de ser índios, mas
para que isso voltasse a tona era necessário “resgatar” a “verdadeira
história e memória” (apud AIRES, 2008, p.95).
Posteriormente, a ação dos professores demonstrou como eles
articularam as representações da Igreja as suas mobilizações políticas no contexto
de luta pela terra e por escolas indígenas. Na intensificação da produção de
evidências para o reconhecimento de sua identidade indígena, professores e
lideranças colocaram o tema do preconceito vivenciado por estudantes nas escolas
não-indígenas do município de Caucaia como uma das justificativas para a criação
das escolas “diferenciadas”. Em seguida, criaram imagens e um conjunto de práticas
culturais, como, por exemplo, a Feira Cultural, que era empregada para a
comunicação entre os próprios Tapeba e uma espécie de face pública do grupo.
Todo esse aparato cultural ofereceu uma resposta ao cenário marcado pela suspeita
da existência de índio no município e pela discriminação de crianças indígenas em
colégios de ensino regular (AIRES, 2012).
Este trabalho representou um esforço de demonstrar como se dão as
relações interétnicas no interior da escola não-indígena José Alexandre, localizada
no distrito de Capuan, município de Caucaia, onde as lideranças indígenas
apontaram relatos de preconceito contra alunos Tapeba.
Num primeiro momento, contabilizei a quantidade de Tapeba na escola e
apresentei os critérios que os alunos indígenas utilizaram na identificação de outros
índios, que foram seus locais de moradia, escolas diferenciadas e eventos culturais.
Demonstrei que os Tapeba tiveram dificuldades de reconhecer outros do grupo, e
alguns tomaram conhecimento de estudantes índios por meio da minha pesquisa.
71
Num segundo momento, explorei as impressões acerca da imagem que
os funcionários da escola fizeram dos índios, as quais também foram descritas pelos
alunos sobre a concepção que os regionais têm sobre os indígenas e que levam a
suspeita da identidade indígena dos Tapeba, que são (1) não vivem do sustento da
terra e da pesca, fatores imprescindíveis para alguém ser considerado um “índio
verdadeiro”, (2) ter baixa condição socioeconômica; (3) morar na mata; (4)
apresentar nudez; (5) não possuir aparelhos eletrônicos; (6) nem carro; (7) ter a pele
de cor escura e cabelos lisos; (8) não se assumir publicamente como indígenas, (9)
não participam dos eventos culturais; e (10) não fazer retomada de terras. Esta
última faz com que haja uma imagem pública negativa dos Tapeba, que está
associada principalmente ao “desrespeito à propriedade alheia”. Todos esses fatos
fizeram com que houvesse uma diferenciação entre ser “índio puro” ou “verdadeiro”
e “índio remanescente”. Entretanto, verifiquei que alguns estudantes Tapeba
também desconfiaram de indivíduos brancos que se diziam índios. Em seguida,
identifiquei as classificações que os funcionários utilizaram para saber quem era
Tapeba na escola, que foram por meio de características fenotípicas, relações de
parentesco e determinados locais de moradia.
Outro tema bastante discutido tanto pelos estudantes como pelos
funcionários da escola foi os efeitos do cadastramento que, segundo eles, fizeram
com que indivíduos não-indígenas se cadastrassem como índio para ter acesso a
direitos, o que acarretou uma mistura entre população regional e Tapeba,
dificultando a identificação de índios “verdadeiros”.
Pude observar que o tema do preconceito faz parte do cotidiano dos
alunos e está associado à dúvida constante da população regional acerca da
identidade indígena do grupo (segundo critérios já citados) a que chegou a utilizar
termos depreciativos para se referir aos indígenas em diversos contextos,
principalmente quando os Tapeba fazem retomada de terras.
Como consequência da discriminação da qual são alvos, alguns alunos
preferem omitir que são índios. Por outro lado, há também aqueles que não se
consideram indígenas. Esses dois fatos fizeram com que os estudantes citassem as
condutas que um “verdadeiro Tapeba” deve ter, em meio às suspeitas de que eles
são ou não índios. Contudo, os estudantes disseram que o preconceito hoje é
72
menor, pois a população de Caucaia passou a reconhecer a existência de índios ou
a se acostumar com a presença deles no município.
Mostrei que o reconhecimento dos Tapeba como um grupo indígena tanto
pelos alunos como pelos funcionários da escola é atribuído, principalmente, à
participação do grupo nos eventos culturais, em que tornam público as suas
características que são concebidas como diferenciadoras frente à população
regional.
Por fim, acredito que este trabalho possa servir como uma fonte de
referência, mesmo que a partir de impressões iniciais, sobre as formas como os
estudantes Tapeba estão interagindo com os não-índios, a partir das experiências
descritas e vividas pelos alunos, representando mais uma, entre as diversas e
possíveis interpretações, das observações realizadas acerca das relações
interétnicas numa escola não-indígena.
73
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2003.
76
ANEXO
77
ANEXO A- Fotos dos estudantes indígenas na escola e na Festa da Carnaúba
Alunos indígenas e não-indígenas ensaiando para o desfile de 7 de setembro da escola.
Estudantes indígenas e não-indígenas durante o intervalo da escola
78
Tapeba e população regional dançando o Toré na Festa da Carnaúba, outubro de 2013.
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Nós temos que assumir que somos índios e quebrar esse