Noll e as fronteiras do texto literário Os instantes ficcionais do escritor gaúcho João Gilberto Noll, ora aqui em João Pessoa para o lançamento de “Mínimos, Múltiplos, Comuns”, dividem as opiniões de leitores e críticos. Uns acreditam serem, esses instantes, pequenos contos na melhor linha da tradição do gênero. Outros, os vêem como poemas em prosa e outros, ainda e até, como romance. Wagner Carelli, o editor da belíssima obra de Noll, é texativo quando afirma que chamar os textos de contos seria incorreto e mais ainda de uma narrativa poética. Carelli diz que mais adequado seria defini-los como romances integrais, encerrando-se a si mesmo como proposta literária a cada um dos cinco capítulos do livro. E talvez essa última ponderação do Carelli seja a que mais se aplique aos textos de João Gilberto Noll, esse escritor que apesar de ter nascido no Rio Grande do Sul não pode ser considerado tipicamente gaúcho, na avaliação de Moacyr Scliar. É que, na verdade, “Mínimos, Múltiplos, Comuns” pode ser lido e digerido num fôlego só como um romance. Seus textos, apesar de aparentemente independentes, se interligam a cada página, como se fosse uma seqüência ou um quebra-cabeça da cena urbana brasileira, com cada capítulo exigindo o seguinte para encaixar a precisão literária da obra. Passando os olhos no texto “Fronteiras”, inserido no capítulo Gênese, viaja-se um pouco nesse fio tênue entre romance, conto e poesia. Diz o texto citado: “Quando na esquina ergui o braço, suspeitei não estar mais no dia que eu dava como certo. Senti uma fisgada a cortar a tarde pelo meio, a tarde agora em completo desalinho, sem face definida, ora me deixando como que solto do quadro, ora me integrando tanto a tudo que eu me lançava em instintivas braçadas, tentando uma evasão. Parou um táxi. Entrei. Não consegui indicar o rumo ao motorista. Falei apenas que me levasse. Que no caminho eu lembraria. E ele foi me levando, muito lentamente, meio curvado, olhos comprimidos, como se estivéssemos a ponto de ultrapassar uma linha delicada, sim... uma fronteira...” Percebam a angústia do personagem, cortando a tarde pelo meio, como uma analogia do autor, com uma obra sem face claramente definida (por isso mais encantadora ainda) que ora deixa o leitor solto num tema isolado (como no belíssimo Véspera Macia), ora o integra em todo o livro (como se Faminto e o Parque da Redenção fossem faces de um mesmo intertexto literário). As desvantagem aqui para o leitor é que ele não pode tentar qualquer tipo de evasão. Ele vai sendo levado lentamente às 338 narrativas do livro, com sofreguidão até, mas muitas e muitas vezes com arrebatamentos provocados na alma de quem não resiste a um texto claro, preciso, enxuto, sem adjetivos desnecessários e nem o falso e infausto humor que infestam a literatura de boutique de muitos livros anunciados como best-seller. O livro de João Gilberto Noll está dividido em cinco partes, assim definidas na apresentação da obra: Gênese (que trata do Nada a que tudo precede), Os Elementos (água, ar, fogo e terra), As Criaturas (mais extenso e complexo entre os conjuntos), O Mundo (local onde vive essas criaturas) e O Retorno (que vai do fim do universo à volta à origem). Esses instantes ficcionais de João Gilberto Noll, portanto, começam pelo começo, como é de praxe naqueles bons escritores que não costumam inventar bossas. No Retorno, O Sono Flagelado do personagem que deveria ter ficado quieto ouvindo as orações matutinas e vespertinas (aliás, interessante como o sentimento de religiosidade é presença marcante no livro!). Esse retorno faz com que o leitor queira retomar, ao final da obra, ao fio da meada, para buscar a identidade da Mínimos, Múltiplos, Comuns. Ou apenas para tentar entender como Noll transpôs para a literatura um rico e contraditório painel da cena urbana brasileira. Como se fosse um Livro do Desassossego da ficção. (Texto escrito originalmente em 21.01.2004 e publicado no blogue “Zumbi escutando blues”)