SOB O SIGNO DA MIMESE: LITERATURA E HISTÓRIA
EM “CHASQUE DO IMPERADOR”
A MIMESE’S SIGN: LITERATURE AND HISTORY
IN “CHASQUE DO IMPERADOR”
Vanessa Lago Sari*
Elaine dos Santos**
Pedro Brum Santos***
Resumo
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre as relações Literatura e História e escolhe como elemento
para tal o conto “Chasque do Imperador”, publicado em Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto. Faz
considerações sobre a escrita da História e sobre a representação literária que se realiza pela mimese,
para, no texto literário, evidenciar que um acontecimento histórico serviu como dado possível para
legitimar as características que são atribuídas ao habitante do Rio Grande do Sul, estabelecendo-se uma
oposição entre o modo de vida campeiro e aquele conformado na Corte.
Palavras-chave: Literatura, História, Mimese, Conto.
Abstract
This paper presents a reflection on the relations Literature and History and chooses as element for such a
short story “Chasque do Imperador”, published in Contos Gauchescos, of Simões Lopes Neto.
Considerations on the History’ writing and the literary representation that if carries through for mimese, for,
in the literary text, to evidence that a historical event served as given possible to legitimize the
characteristics that are attributed to the inhabitant of the Rio Grande do Sul, establishing itself an
opposition between a “campeiro” way of life and that one conformed in the Empire.
Key words: Literature, History, Mimese, Short Story.
1 Introdução
A Literatura e a História, na constituição das manifestações literárias do Rio Grande do Sul,
sempre estiveram intimamente vinculadas. A primeira poetisa, Delfina Benigna da Cunha, lançou
suas obras durante a Revolução Farroupilha e, claramente, opôs-se a Bento Gonçalves e seus
comandados; Caldre e Fião, por seu turno, um dos fundadores do Partenon Literário, situa uma de
suas principais narrativas – O corsário – nos tempos da Guerra dos Farrapos e ousa questionar
alguns atos daquele movimento, que, paulatinamente, fora exacerbadamente valorizado como um
grito de liberdade (Zilberman, 1992).
Se, de um lado, pois, a História sacralizou alguns acontecimentos sociais, econômicos e políticos da
então Província do Rio Grande de São Pedro, a Literatura, de modo ficcional, pautada pela mimese,
voltou para a indagação das causas e das consequências que o movimento representou. Notório,
contudo, é o processo pendular que se operou na segunda metade do século XIX e que encontrou
fortes ecos no início do século XX, em que a sacralização daquele episódio, assim como da figura
do gaúcho, misto de soldado e peão, sofreram.
Analisa-se, no presente texto, o conto “Chasque do Imperador” que compõe a coletânea de Contos
gauchescos, de Simões Lopes Neto (1998). Para tal, opta-se pelo viés das relações que pautam
Literatura e História, dando-se especial enfoque à mimese, entendida como uma representação
linguística da realidade circundante que é apreendida pelo artista. Assim posto, no primeiro
segmento, concede-se espaço à História, tida como uma narrativa de eventos, com base em
documentos, e, de acordo com os postulados de Paul Veyne (1998), alinham-se Literatura e
História como formas de apreensão e representação da realidade. No segmento seguinte, o
enfoque recai especificamente sobre a mimese e a representação que o artista faz da sociedade.
Em seguida, o estudo volta-se para os contos de Simões Lopes Neto, de forma mais específica, para
“Chasque do Imperador”, narrativa atribuída a Blau Nunes, que, a caminho da Guerra do Paraguai,
serve a D. Pedro II, Imperador do Brasil. A partir do recorte dos fatos que Blau conta, faz-se
possível enunciar alguns elementos em que se assenta a narrativa de modo a valorizar o campeiro,
contrapondo-o ao sujeito vindo da Corte, no caso, representado por Pedro II.
2 Da História e da Literatura
Desde o aparecimento da escrita, o homem tem podido registrar as suas experiências individuais e
coletivas. Assim, narrativa mítica – popular e oral – cedeu espaço ao registro documental da
memória coletiva. Le Goff (1996) esclarece:
O aparecimento da escrita está ligado a uma profunda transformação da memória
coletiva (...). A escrita permite à memória coletiva um duplo progresso, o
desenvolvimento de duas formas de memória. A primeira é a comemoração, a
celebração através de um monumento comemorativo de um acontecimento
memorável. A memória assume então a forma de inscrição (...).
A outra forma de memória ligada à escrita é o documento escrito num suporte
especialmente destinado à escrita (p. 431-432).
A partir do registro escrito em forma de documentos, o homem e o grupo social dispõem de um
meio para o armazenamento e a seleção de informações a serem transmitidas à posteridade. O
documento escrito permite-lhes organizar, relacionar, reexaminar os acontecimentos em que
tomam parte. Desse processo de armazenamento e seleção, nasce a História.
De acordo com Veyne (1998), a História, assim como a sua escritura, consiste em
uma narrativa de eventos (...), ela não faz reviver esses eventos, assim tampouco o
faz o romance; o vivido, tal como ressai das mãos do historiador, não é o dos atores;
é uma narração (...). Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz
com que um século caiba numa página (...). A história é, em essência, conhecimento
por meio de documentos. Desse modo, a narração histórica situa-se para além de
todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento (p. 18).
Assim compreendida, História representa um recorte da realidade feito mediante documentos, os
quais são interpretados à luz da perspectiva adotada pelo historiador diante dos acontecimentos.
Contudo, a própria tarefa do historiador é limitada, posto que ele depende do material disponível.
Desse modo, ele trabalha em consonância com a documentação que lhe é acessível e, a partir daí,
elabora generalizações, conclusões face a outros documentos. A narrativa histórica perde, dessa
forma, o caráter de verdade absoluta, constituindo-se, a exemplo da narrativa mítica, em um
recorte do real feito por aqueles que detêm a informação e as formas de divulgação. Veyne (1998)
acresce:
Os homens nascem, comem e morrem, mas só a história pode informar-nos sobre
suas guerras e seus impérios; eles são cruéis e banais, nem totalmente bons, nem
totalmente maus; mas a história nos dirá se, numa determinada época, preferiram
ter maior lucro por um tempo mais dilatado a se aposentarem depois de terem
feito fortuna, e como percebiam e classificavam as cores (p. 19).
Sob essa perspectiva, a História constitui uma seleção de eventos passados, que é feita pelo
historiador, cujo objetivo é conservar as informações, os costumes, as tradições de uma
comunidade, de um grupo social. O historiador compromete-se, porém, com a verdade1 que se
refere a essa sociedade em oposição ao romancista que, sob o signo da mimese, ficcionaliza
acontecimentos que envolvem o ser humano inserido em um determinado contexto sóciohistórico.
2.1 Sobre a Mimese
Rastrear as principais manifestações humanas de caráter lúdico significa, conforme Hauser (1982),
retroceder ao Período Neolítico, em que a arte, ainda que ganhe uma conotação doméstica,
atribuída às mulheres, adquire sua especificidade. Objeto de estudo de Aristóteles, filósofo helênico,
as formas, os modos como o homem representa a realidade que o circundam adquiriram
relevância naquele período em que a arte literária lançava as suas bases.
Aristóteles (2005), em sua Poética, admite que os homens têm uma tendência nata à imitação que
se manifesta desde a infância, distinguindo-os, assim, dos demais seres, sendo “o mais capaz de
imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em
imitar” (p. 22). Aristóteles atenta para dois pontos básicos em sua teoria: a imitação do real e a
imitação como aquisição do conhecimento. Em continuidade, o filósofo argumenta:
... das coisas cuja visão é penosa temos prazer em contemplar a imagem quanto mais
perfeita; por exemplo, as formas dos bichos mais desprezíveis e de cadáveres.
Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos filósofos (...). Se a
vista das imagens proporciona prazer é porque acontece a quem as contempla
aprender e identificar cada original... (p. 22).
Observe-se que, segundo a concepção do estagirita, a representação do real assume papel
significativo na produção do conhecimento e na realização do prazer estético, isto é, não basta o
fato vivido, o objeto em sua concretude, mas a forma como são representados pela mão do artista.
Sob tal ótica, mais do que memória de um povo, registro histórico da sua existência, a obra de arte
constitui um fazer em que o prazer estético se evidencia. Ressalte-se, neste ponto, que, para
Aristóteles, a arte não guardava qualquer conotação moral, seu objetivo era o prazer, donde deriva
a catarse. Prosseguindo em suas ponderações, Aristóteles (2005) afirma:
Como a imitação é feita por personagens em ação, necessariamente seria uma parte
da tragédia em primeiro lugar o bom arranjo do espetáculo; em segundo, o canto e
as falas, pois é com esses elementos que se realiza a imitação.
Por falas entendo o simples conjunto dos versos; por canto, coisas que têm um
sentido inteiramente claro.
Como se trata da imitação de uma ação, efetuada por pessoas agindo, as quais
necessariamente se distinguem pelo caráter e ideias (pois essas diferenças
empregamos na qualificação das ações), existem duas causas naturais das ações:
ideias e caráter, e todas as pessoas são bem ou malsucedidas conforme essas causas.
Está na fábula a imitação da ação (p. 25).
Neste ponto, parece tangível arguir-se o caráter meramente imitativo do real que se atribui à
mimese, posto que ela se transforma em fenômeno de linguagem.
O poeta latino Horácio (2005), em sua Epistola ad Pisones, atentará para a questão linguística que se
faz presente na obra poética. Afirma ele:
Guarde cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta.
Às vezes, contudo, a comédia ergue a voz e um Cremes zangado ralha de bochechas
inchadas; muitas vezes, também, na tragédia, um Télefo ou Peleu se lamenta em
linguagem pedestre, quando este ou aquele, na pobreza ou no exílio, rejeita os
termos empolados e sesquipedais, se lhe importa tocar, com suas queixas, o coração
da plateia (p. 57-58).
Assim posto, a mimese assume caráter de representação que se faz do real por meio da linguagem.
Da mesma forma, é possível atribuir-se tal postulado à História. Contudo, Aristóteles (2005)
salienta ainda o caráter verossímil que se atribuiu à representação artística, em que “a obra do
poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas, sim, coisas que poderiam acontecer, possíveis
no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade” (p. 28). Convém ressalvar-se que o
filósofo estabelece a diferenciação entre o objetivo da Literatura, conforme a concebemos na
atualidade, e da História propriamente dita, atentando para o fato de que ambas eram escritas,
naquela época, em versos.
Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de
Heródoto podia ser metrificada; não seria menos história com o metro do que sem
ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam
acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História;
aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares. Enunciar verdades
gerais é dizer que espécies de coisas um indivíduo de natureza tal vem a dizer ou
fazer verossímil ou necessariamente; a isso visa a Poesia... (Aristóteles, 2005, p. 28).
Dessas observações, depreende-se que a Poesia é universal, enquanto a História é particular; e,
desse modo, a diferença entre poeta e historiador assenta-se na distinção narrativa daquilo que
aconteceu, portanto, histórico, daquilo que poderia ter acontecido e que, na concepção aristotélica,
pertence aos limites da arte.
3 Considerações Sobre Contos Gauchescos
Assentada em uma tradição literária em que predomina um Romantismo tardio implantado pelo
grupo do Partenon Literário, sociedade fundada em Porto Alegre no ano de 1868, a literatura
produzida no Estado mais meridional do Brasil, segundo Zilberman (1992, p. 13), resulta de ações
que consolidaram uma “cultura com características próprias”, em que predomina a exaltação de
um tipo humano, o gaúcho, e suas ações nos tempos de paz, como peão, ou nos tempos de guerra,
como soldado. Nasce dessa duplicidade a face mais característica do gaúcho, ser bifronte que
recebe a alcunha de “centauro dos pampas”.
Chaves (1999) anota o papel fundamental assumido por José de Alencar na conformação da
tradição literária sul-rio-grandense:
A meio caminho do ambicioso programa nacionalista que se propôs, Alencar traçou
uma oposição explícita entre a civilização europeia dos conquistadores e o “novo
mundo” (...). Serviu-lhe o gaúcho, exemplarmente, porque ele acreditava divisar uma
“alma pampa”, cujos atributos básicos são força, beleza, nobreza, coragem, altivez,
pundonor, brio, fundidos numa solda moral, a “consciência de liberdade” (p. 71: grifos
no original).
Uma das obras basilares da literatura produzida no Rio Grande do Sul, legatária da tradição
alencariana que já se manifestara, por exemplo, em O vaqueano, de Apolinário Porto Alegre, Contos
gauchescos, de Simões Lopes Neto, data de 1912 e constitui um conjunto de 19 contos narrados
por Blau Nunes, o campeiro, que é apresentado por um narrador anônimo que procede à
introdução dos Contos (1998):
Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um
tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e
infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e
encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.
E do trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias dos fogões a que se
aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou (...); do pelo a pelo com
os homens, das erosões, da morte e das eclosões da vida, entre o Blau – moço militar – e o
Blau – velho, paisano –, ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos,
dizia –, que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estende no sol, para
arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca (p. 14-15).
Chaves (2001) destaca a estratégia narrativa adotada pelo autor que concede voz ao vaqueano:
“Escolheu-o Simões Lopes Neto para encarnar o gaúcho, e mais do que isto, transformá-lo em
personagem-narrador” (p. 67); fixam-se, assim, nos dizeres de Chaves, um modelo: o protótipo do
gaúcho e um estilo: a narrativa em primeira pessoa que aproxima narrador e narratário em certo
tom confidencial, permeado por esse interlocutor privilegiado que “atentamente escuta e anota
aquilo que o outro lhe diz para reproduzir por escrito seu complexo depoimento pessoal” (p. 67).
As histórias narradas por Blau são marcadas pela fixação de usos, costumes, perfis e ambientes
característicos como nos contos: “Correr Eguada”, “Juca Guerra” e “O Mate do João Cardoso”;
pela paixão amorosa que se faz presente em ”O Negro Bonifácio” e “No manancial”, “Os cabelos
da china”; e pela nota histórica: que retoma eventos da História oficial, como ocorre em Duelo de
farrapos e Anjo da vitória.
De acordo com Augusto Meyer, em Textos críticos (1986): “são contos de sangue e paixão, contados
em poucas palavras, ao modo vivo de Blau Nunes. São principalmente histórias da vida bárbara dos
gaúchos ...” (p. 560).
“Chasque do Imperador” situa-se em um clima beligerante em que a passagem do Imperador D.
Pedro II, por Uruguaiana, é narrada por Blau. A respeito do conto, Chaves (2001) registra:
Em plena Campanha do Paraguai, durante o cerco de Uruguaiana em 1865, Blau
Nunes é apresentado por Caxias a D. Pedro II; logo, torna-se seu ajudante de ordens,
o chasque de confiança para missões perigosas; dirigindo-se agora ao seu
interlocutor, [Blau] narra episódios envolvendo o Imperador (...), cinco episódios
cômicos e altamente irreverentes, condimentados ainda mais pelas maliciosas
observações de Blau, tudo desembocando na desmistificação do vulto imperial (p.
72).
Outro aspecto da narrativa, no entanto, chama a atenção do leitor: trata-se das histórias do povo,
do homem comum do pampa que se defronta com o Imperador do Brasil e, nessas histórias, se
sobressaem caracteres típicos da alma pampa que Alencar divisava.
3.1 Chasque do Imperador
Chasque, de acordo com o Dicionário de Regionalismo do Rio Grande do Sul (Nunes e Nunes, 1996),
deriva do quíchua “chasqui” e equivale a “mensageiro, estafeta, próprio, pessoa que se despacha
levando uma mensagem” (p. 108). Assim, Blau narra os fatos de um ponto de vista muito próximo
do Imperador, daquele que se tornou seu ajudante, seu estafeta. A narrativa, a exemplo dos demais
contos, ocorre em primeira pessoa, dá-se de forma linear e predomina o espaço do pampa, em que
a tropa comandada por D. Pedro II se desloca, ora acampando, ora sendo recebida por estancieiros
da região.
- Quando foi do cerco de Uruguaiana pelos paraguaios em 65 e o imperador Pedro
II veio cá, com toda a frota da sua comitiva, andei muito por esses meios, como
vaqueano, como chasque, como confiança dele; era eu que encilhava o cavalo, que
dormia atravessado na porta do quarto dele, que carregava os papéis dele e armas
dele (Lopes Neto, 1998, p. 57).
Dialogam, assim, de imediato, personagens ficcionais – Blau Nunes – e personagens que ocuparam
seu espaço na História oficial do Brasil. Além do Imperador, Duque de Caxias se fará presente,
responsável por mediar o encontro entre o narrador e o governante máximo do país, assim como,
de fato, ser o responsável pelas tropas que atacariam Solano Lopes no Paraguai.
Convém acrescer-se, neste ponto, que, conforme Aristóteles (2005), a presença de personagens
históricos, pessoas que tiveram existência real e cujos nomes são inseridos no texto literário,
atribui-lhe maior confiabilidade, uma vez que os fatos passados, se existiram, são aceitos
exatamente porque existiram e, como consequência, são fatos possíveis.
Blau não se julga apto a servir D. Pedro II: “O senhor imperador vai ficar mal servido; sou um
gaúcho mui cru”; e acrescenta: “Eu pensava que o imperador era um homem diferente dos outros...
assim todo de ouro, todo de brilhantes, como olhos de pedras finas...” (Lopes Neto, 1998, p. 59).
Nesse particular, evidencia-se a relação entre dois universos distintos: a vida árdua, dotada de
poucas informações e de pouco preparo social que emerge na campanha sulina, e o homem da
Corte, pouco afeito à vida campeira. E, em seguida, o leitor é informado dessa diferença, por um
arroubo de um dos comandantes das tropas gaúchas:
Havia um que era barão e comandava um regimento, que era mesmo uma flor, tudo
moçada parelha e guapa.
O imperador gabou muito a força, e aí no mais o barão já lhe largou esta agachada:
- Que vossa majestade está pensando?... Tudo isto é indiada coronilha, criada a apojo,
churrasco e mate amargo ... Não é como essa cuscada lá da Corte, que só bebe água
e lambe a... barriga! (Lopes Neto, 1998, p. 60).
Nesse aspecto, Chaves (2001) assinala:
Implicitamente esse texto – que aparentemente trata do Imperador e de sua
participação épica na guerra contra o inimigo externo – termina fazendo a apologia
das qualidades gaúchas, sob o ponto de vista do narrador-personagem, a rusticidade,
a coragem, a virilidade (...) (p. 72).
Faz-se possível, nessa medida, asseverar que “Chasque do Imperador”, visto pela ótica adotada por
Chaves, se faz legatário de uma tradição de exaltação do modelo literário proposto por José de
Alencar e que só encontraria um contraponto definitivo a partir da chamada geração de 30 do
Modernismo Brasileiro.
No deslocamento da tropa, um novo acontecimento, um novo personagem: “uma velha, que já tinha
os olhos como retovo de bola” (Lopes Neto, 1998, p. 60-61). A mulher, após perambular pelo
acampamento, oferece ao soberano “um requeijão, que pela cor devia de estar um gambelo, de
gordo e macio” (ibidem).
Nessa passagem, salienta-se, de modo especial, o papel da mulher sul-rio-grandense nos confrontos
bélicos que marcaram a região. Enquanto os homens seguiam para os campos de batalha, cabia-lhes
esperar. Há, porém, uma nota irônica que se ressalta na fala da personagem: “Vancê dê notícias
minhas e bote a bênção neles; e diga a eles que não deixem o imperador perder a guerra... ainda
que nenhum deles nunca mais me apareça!” (Lopes Neto, 1998, p. 61). Com a economia
constantemente desorganizada, a província do Rio Grande do Sul sacrificou homens, gado e a
própria organização estancieira para demarcar a fronteira sul do país, a custa do choro e do
sofrimento de mães, filhos, esposas, amantes. A velha analfabeta lega seu absoluto respeito ao
Imperador, à guerra, ciente de que não importa a sua atitude, mas o ato corriqueiro, naqueles
tempos, de juntar às tropas homens menos afortunados, meros peões que apenas tinham a sua
força física para oferecer e pouco pediam em troca.
Mais irônica ainda é a observação que Blau dirige ao Imperador, o combatente que seguia rumo ao
campo de batalha: “O imperador – esse era meio maricas, era! – abraçou a velha, prometendo
voltar, por ali, e quando ela saiu, disse: ‘- Como é agradável esta rudeza tão franca’” (Lopes Neto,
1998, p. 61). Se, de um lado, o Imperador não logra entender a situação em que se encontrava a
província – devastada que fora pelos combates da Cisplatina e, em seguida, da Revolução
Farroupilha, Blau também se mostra incapaz de “assimilar” aquele homem, gentil, que dedica a sua
atenção a uma velha. Essa dicotomia é ressaltada pelo par agradável x rudeza, em que o primeiro
termo remete ao mundo da Corte – tranquilo, ameno –, enquanto o outro – rudeza – diz respeito
à vida daquela gente perdida entre coxilhas e banhados. Cabe notar que ao Imperador encanta a
franqueza.
Por fim, elucidativa é a diferença de concepção do mundo que se expressa no episódio do
fazendeiro que serve apenas doces ao Imperador: “– Quê! Pois vossa majestade come carne?!
Disseram-me que as pessoas reais só se tratavam a bicos de rouxinóis e doces e pasteizinhos!”
(Lopes Neto, 1998, p. 62), exclama o homem que ofertara doces à hora do almoço, à hora do
jantar, à hora da ceia e que se preparava para servir doces no café da manhã. Blau enuncia que,
embora seja rico, o fazendeiro era “mui gauchão”; portanto, acostumado à rude vida campeira, ao
churrasco, mas que se propusera alterar os hábitos domésticos em respeito e admiração pelo
Imperador.
Pertinente ponderar-se que, recuperando um fato histórico – a passagem das tropas imperiais
rumo à guerra –, a narrativa, de fato, exalta caracteres típicos atribuídos ao gentílico gaúcho:
hospitalidade, franqueza, lealdade, hombridade, coragem, e que foram delineados, a princípio, pela
literatura oral: “Ser monarca da coxilha, / foi sempre o meu galardão./ E quando alguém me duvida /
descasco logo o facão”, conforme informa Chaves (1999, p. 70), e, posteriormente, pela literatura
culta que se conformou na esteira de O gaúcho, de José de Alencar. Tais características ganham
relevo exatamente quando contrapostas aos modos imperiais, à fineza e à gentileza apresentadas
pelo soberano brasileiro.
Essa dualidade, se for levada ao universo da guerra, parece, também, adquirir relevância, posto que
a incumbência da luta caberá aos peões, homens rudes, afeito às lides bélicas, enquanto o
Imperador se manterá protegido, distante do confronto, servindo apenas como um reforço ao
moral das tropas em combate.
Por último, mas não se esgotando a análise, faz-se importante retomar os costumes, os hábitos
gaúchos que a narrativa traz à cena: os cuidados com os cavalos, o chimarrão, aspectos que, de
certa forma, fazem eco ao propósito narrativo de valorizar a vida campeira.
4 Considerações Finais
Tomando-se como pressuposto que a história literária do Rio Grande do Sul tem sido marcada
pela íntima relação que se estabelece entre História e Literatura, fez-se, neste estudo, a análise do
conto “Chasque do Imperador”, da coletânea Contos gauchescos, evidenciando-se o contraponto
entre o narrador, sujeito rude, afeito à lide campeira, e o Imperador, vindo da Corte, de um modelo
social oposto àquele vivido no pampa.
O mote desencadeador da reflexão diz respeito à mimese, entendida como a linguagem que
representa a realidade, o instrumento linguístico de que se vale a narrativa para expressar fatos
verossímeis – aqueles que poderiam ter acontecido – em oposição à História, cuja incumbência
volta-se para a verdade configurada em documentos acessíveis ao historiador.
Contos gauchescos é uma das obras fundamentais do regionalismo sul-rio-grandense que resgata, do
meio campeiro, a fala e a vida do homem rural e, nessa condição, em “Chasque do Imperador”, o
que se observa, como legatária da tradição romântica de José de Alencar, é a afirmação dos
caracteres marcantes do tipo criado no pampa. No caso específico, essas características são
reforçadas pela oposição explícita com o comportamento e a percepção de mundo do outro, o
Imperador, desde o início, tido como um “maturrango”, isto é, o “indivíduo que monta mal a cavalo,
que não entende dos trabalhos do campo” (Nunes e Nunes, 1996, p. 297). D. Pedro II é, portanto,
sob a ótica de Blau, um estranho. E o narrador não deixa dúvidas de seu posicionamento:
Um dia apresentaram ao imperador um topetudo não sei donde, que perguntou, mui
concho:
- Então, vossa majestade tem gostado disto por aqui?
- Sim, sim, muito!
- Então, por que não se muda pra cá, com a família?... (Lopes Neto, 1998, p. 60).
Dois universos distintos, ainda que aceitos pelo Imperador, se tocam e o gaúcho deixa clara a sua
valentia, o seu destemor, assim como não titubeia em afirmar o distanciamento que a autoridade
máxima do país vivia em relação aos seus súditos meridionais.
Nota
[1] O vocábulo verdade é aqui entendido, segundo Veyne (1998), como tudo que “tenha, realmente,
acontecido” (p. 25).
Referências
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LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. 2. ed. São Paulo: Ática, 1998.
MEYER, A. Textos críticos. Organização João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva; Brasília: INL,
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NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de Regionalismo do Rio Grande do Sul. 10.
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VEYNE, P. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Tradução Alda Baltar e Maria Auxiliadora
Kneipp. 4. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1998.
ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
Dados dos autores:
*Vanessa Lago Sari
Graduanda em Letras – UFSM – e Bolsista – PIBIC.
Endereço para contato:
Universidade Federal de Santa Maria
Avenida Roraima, nº 1000
Cidade Universitária
Bairro Camobi
97105-900 Santa Maria/RS – Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]
**Elaine dos Santos
Doutoranda em Estudos Literários – UFSM – e Bolsista – REUNI.
Endereço eletrônico: [email protected]
***Pedro Brum Santos
Pós-doutor em Literatura Brasileira, Doutor em Teoria Literária e Docente – PPGL/UFSM.
Endereço eletrônico: [email protected]
Data de recebimento: 1º jun. 2010
Data de aprovação: 18 jun. 2010
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