SOB O SIGNO DA MIMESE: LITERATURA E HISTÓRIA EM “CHASQUE DO IMPERADOR” A MIMESE’S SIGN: LITERATURE AND HISTORY IN “CHASQUE DO IMPERADOR” Vanessa Lago Sari* Elaine dos Santos** Pedro Brum Santos*** Resumo Este trabalho apresenta uma reflexão sobre as relações Literatura e História e escolhe como elemento para tal o conto “Chasque do Imperador”, publicado em Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto. Faz considerações sobre a escrita da História e sobre a representação literária que se realiza pela mimese, para, no texto literário, evidenciar que um acontecimento histórico serviu como dado possível para legitimar as características que são atribuídas ao habitante do Rio Grande do Sul, estabelecendo-se uma oposição entre o modo de vida campeiro e aquele conformado na Corte. Palavras-chave: Literatura, História, Mimese, Conto. Abstract This paper presents a reflection on the relations Literature and History and chooses as element for such a short story “Chasque do Imperador”, published in Contos Gauchescos, of Simões Lopes Neto. Considerations on the History’ writing and the literary representation that if carries through for mimese, for, in the literary text, to evidence that a historical event served as given possible to legitimize the characteristics that are attributed to the inhabitant of the Rio Grande do Sul, establishing itself an opposition between a “campeiro” way of life and that one conformed in the Empire. Key words: Literature, History, Mimese, Short Story. 1 Introdução A Literatura e a História, na constituição das manifestações literárias do Rio Grande do Sul, sempre estiveram intimamente vinculadas. A primeira poetisa, Delfina Benigna da Cunha, lançou suas obras durante a Revolução Farroupilha e, claramente, opôs-se a Bento Gonçalves e seus comandados; Caldre e Fião, por seu turno, um dos fundadores do Partenon Literário, situa uma de suas principais narrativas – O corsário – nos tempos da Guerra dos Farrapos e ousa questionar alguns atos daquele movimento, que, paulatinamente, fora exacerbadamente valorizado como um grito de liberdade (Zilberman, 1992). Se, de um lado, pois, a História sacralizou alguns acontecimentos sociais, econômicos e políticos da então Província do Rio Grande de São Pedro, a Literatura, de modo ficcional, pautada pela mimese, voltou para a indagação das causas e das consequências que o movimento representou. Notório, contudo, é o processo pendular que se operou na segunda metade do século XIX e que encontrou fortes ecos no início do século XX, em que a sacralização daquele episódio, assim como da figura do gaúcho, misto de soldado e peão, sofreram. Analisa-se, no presente texto, o conto “Chasque do Imperador” que compõe a coletânea de Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto (1998). Para tal, opta-se pelo viés das relações que pautam Literatura e História, dando-se especial enfoque à mimese, entendida como uma representação linguística da realidade circundante que é apreendida pelo artista. Assim posto, no primeiro segmento, concede-se espaço à História, tida como uma narrativa de eventos, com base em documentos, e, de acordo com os postulados de Paul Veyne (1998), alinham-se Literatura e História como formas de apreensão e representação da realidade. No segmento seguinte, o enfoque recai especificamente sobre a mimese e a representação que o artista faz da sociedade. Em seguida, o estudo volta-se para os contos de Simões Lopes Neto, de forma mais específica, para “Chasque do Imperador”, narrativa atribuída a Blau Nunes, que, a caminho da Guerra do Paraguai, serve a D. Pedro II, Imperador do Brasil. A partir do recorte dos fatos que Blau conta, faz-se possível enunciar alguns elementos em que se assenta a narrativa de modo a valorizar o campeiro, contrapondo-o ao sujeito vindo da Corte, no caso, representado por Pedro II. 2 Da História e da Literatura Desde o aparecimento da escrita, o homem tem podido registrar as suas experiências individuais e coletivas. Assim, narrativa mítica – popular e oral – cedeu espaço ao registro documental da memória coletiva. Le Goff (1996) esclarece: O aparecimento da escrita está ligado a uma profunda transformação da memória coletiva (...). A escrita permite à memória coletiva um duplo progresso, o desenvolvimento de duas formas de memória. A primeira é a comemoração, a celebração através de um monumento comemorativo de um acontecimento memorável. A memória assume então a forma de inscrição (...). A outra forma de memória ligada à escrita é o documento escrito num suporte especialmente destinado à escrita (p. 431-432). A partir do registro escrito em forma de documentos, o homem e o grupo social dispõem de um meio para o armazenamento e a seleção de informações a serem transmitidas à posteridade. O documento escrito permite-lhes organizar, relacionar, reexaminar os acontecimentos em que tomam parte. Desse processo de armazenamento e seleção, nasce a História. De acordo com Veyne (1998), a História, assim como a sua escritura, consiste em uma narrativa de eventos (...), ela não faz reviver esses eventos, assim tampouco o faz o romance; o vivido, tal como ressai das mãos do historiador, não é o dos atores; é uma narração (...). Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba numa página (...). A história é, em essência, conhecimento por meio de documentos. Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento (p. 18). Assim compreendida, História representa um recorte da realidade feito mediante documentos, os quais são interpretados à luz da perspectiva adotada pelo historiador diante dos acontecimentos. Contudo, a própria tarefa do historiador é limitada, posto que ele depende do material disponível. Desse modo, ele trabalha em consonância com a documentação que lhe é acessível e, a partir daí, elabora generalizações, conclusões face a outros documentos. A narrativa histórica perde, dessa forma, o caráter de verdade absoluta, constituindo-se, a exemplo da narrativa mítica, em um recorte do real feito por aqueles que detêm a informação e as formas de divulgação. Veyne (1998) acresce: Os homens nascem, comem e morrem, mas só a história pode informar-nos sobre suas guerras e seus impérios; eles são cruéis e banais, nem totalmente bons, nem totalmente maus; mas a história nos dirá se, numa determinada época, preferiram ter maior lucro por um tempo mais dilatado a se aposentarem depois de terem feito fortuna, e como percebiam e classificavam as cores (p. 19). Sob essa perspectiva, a História constitui uma seleção de eventos passados, que é feita pelo historiador, cujo objetivo é conservar as informações, os costumes, as tradições de uma comunidade, de um grupo social. O historiador compromete-se, porém, com a verdade1 que se refere a essa sociedade em oposição ao romancista que, sob o signo da mimese, ficcionaliza acontecimentos que envolvem o ser humano inserido em um determinado contexto sóciohistórico. 2.1 Sobre a Mimese Rastrear as principais manifestações humanas de caráter lúdico significa, conforme Hauser (1982), retroceder ao Período Neolítico, em que a arte, ainda que ganhe uma conotação doméstica, atribuída às mulheres, adquire sua especificidade. Objeto de estudo de Aristóteles, filósofo helênico, as formas, os modos como o homem representa a realidade que o circundam adquiriram relevância naquele período em que a arte literária lançava as suas bases. Aristóteles (2005), em sua Poética, admite que os homens têm uma tendência nata à imitação que se manifesta desde a infância, distinguindo-os, assim, dos demais seres, sendo “o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar” (p. 22). Aristóteles atenta para dois pontos básicos em sua teoria: a imitação do real e a imitação como aquisição do conhecimento. Em continuidade, o filósofo argumenta: ... das coisas cuja visão é penosa temos prazer em contemplar a imagem quanto mais perfeita; por exemplo, as formas dos bichos mais desprezíveis e de cadáveres. Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos filósofos (...). Se a vista das imagens proporciona prazer é porque acontece a quem as contempla aprender e identificar cada original... (p. 22). Observe-se que, segundo a concepção do estagirita, a representação do real assume papel significativo na produção do conhecimento e na realização do prazer estético, isto é, não basta o fato vivido, o objeto em sua concretude, mas a forma como são representados pela mão do artista. Sob tal ótica, mais do que memória de um povo, registro histórico da sua existência, a obra de arte constitui um fazer em que o prazer estético se evidencia. Ressalte-se, neste ponto, que, para Aristóteles, a arte não guardava qualquer conotação moral, seu objetivo era o prazer, donde deriva a catarse. Prosseguindo em suas ponderações, Aristóteles (2005) afirma: Como a imitação é feita por personagens em ação, necessariamente seria uma parte da tragédia em primeiro lugar o bom arranjo do espetáculo; em segundo, o canto e as falas, pois é com esses elementos que se realiza a imitação. Por falas entendo o simples conjunto dos versos; por canto, coisas que têm um sentido inteiramente claro. Como se trata da imitação de uma ação, efetuada por pessoas agindo, as quais necessariamente se distinguem pelo caráter e ideias (pois essas diferenças empregamos na qualificação das ações), existem duas causas naturais das ações: ideias e caráter, e todas as pessoas são bem ou malsucedidas conforme essas causas. Está na fábula a imitação da ação (p. 25). Neste ponto, parece tangível arguir-se o caráter meramente imitativo do real que se atribui à mimese, posto que ela se transforma em fenômeno de linguagem. O poeta latino Horácio (2005), em sua Epistola ad Pisones, atentará para a questão linguística que se faz presente na obra poética. Afirma ele: Guarde cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta. Às vezes, contudo, a comédia ergue a voz e um Cremes zangado ralha de bochechas inchadas; muitas vezes, também, na tragédia, um Télefo ou Peleu se lamenta em linguagem pedestre, quando este ou aquele, na pobreza ou no exílio, rejeita os termos empolados e sesquipedais, se lhe importa tocar, com suas queixas, o coração da plateia (p. 57-58). Assim posto, a mimese assume caráter de representação que se faz do real por meio da linguagem. Da mesma forma, é possível atribuir-se tal postulado à História. Contudo, Aristóteles (2005) salienta ainda o caráter verossímil que se atribuiu à representação artística, em que “a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas, sim, coisas que poderiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade” (p. 28). Convém ressalvar-se que o filósofo estabelece a diferenciação entre o objetivo da Literatura, conforme a concebemos na atualidade, e da História propriamente dita, atentando para o fato de que ambas eram escritas, naquela época, em versos. Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos história com o metro do que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História; aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares. Enunciar verdades gerais é dizer que espécies de coisas um indivíduo de natureza tal vem a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente; a isso visa a Poesia... (Aristóteles, 2005, p. 28). Dessas observações, depreende-se que a Poesia é universal, enquanto a História é particular; e, desse modo, a diferença entre poeta e historiador assenta-se na distinção narrativa daquilo que aconteceu, portanto, histórico, daquilo que poderia ter acontecido e que, na concepção aristotélica, pertence aos limites da arte. 3 Considerações Sobre Contos Gauchescos Assentada em uma tradição literária em que predomina um Romantismo tardio implantado pelo grupo do Partenon Literário, sociedade fundada em Porto Alegre no ano de 1868, a literatura produzida no Estado mais meridional do Brasil, segundo Zilberman (1992, p. 13), resulta de ações que consolidaram uma “cultura com características próprias”, em que predomina a exaltação de um tipo humano, o gaúcho, e suas ações nos tempos de paz, como peão, ou nos tempos de guerra, como soldado. Nasce dessa duplicidade a face mais característica do gaúcho, ser bifronte que recebe a alcunha de “centauro dos pampas”. Chaves (1999) anota o papel fundamental assumido por José de Alencar na conformação da tradição literária sul-rio-grandense: A meio caminho do ambicioso programa nacionalista que se propôs, Alencar traçou uma oposição explícita entre a civilização europeia dos conquistadores e o “novo mundo” (...). Serviu-lhe o gaúcho, exemplarmente, porque ele acreditava divisar uma “alma pampa”, cujos atributos básicos são força, beleza, nobreza, coragem, altivez, pundonor, brio, fundidos numa solda moral, a “consciência de liberdade” (p. 71: grifos no original). Uma das obras basilares da literatura produzida no Rio Grande do Sul, legatária da tradição alencariana que já se manifestara, por exemplo, em O vaqueano, de Apolinário Porto Alegre, Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto, data de 1912 e constitui um conjunto de 19 contos narrados por Blau Nunes, o campeiro, que é apresentado por um narrador anônimo que procede à introdução dos Contos (1998): Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco. E do trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou (...); do pelo a pelo com os homens, das erosões, da morte e das eclosões da vida, entre o Blau – moço militar – e o Blau – velho, paisano –, ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia –, que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estende no sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca (p. 14-15). Chaves (2001) destaca a estratégia narrativa adotada pelo autor que concede voz ao vaqueano: “Escolheu-o Simões Lopes Neto para encarnar o gaúcho, e mais do que isto, transformá-lo em personagem-narrador” (p. 67); fixam-se, assim, nos dizeres de Chaves, um modelo: o protótipo do gaúcho e um estilo: a narrativa em primeira pessoa que aproxima narrador e narratário em certo tom confidencial, permeado por esse interlocutor privilegiado que “atentamente escuta e anota aquilo que o outro lhe diz para reproduzir por escrito seu complexo depoimento pessoal” (p. 67). As histórias narradas por Blau são marcadas pela fixação de usos, costumes, perfis e ambientes característicos como nos contos: “Correr Eguada”, “Juca Guerra” e “O Mate do João Cardoso”; pela paixão amorosa que se faz presente em ”O Negro Bonifácio” e “No manancial”, “Os cabelos da china”; e pela nota histórica: que retoma eventos da História oficial, como ocorre em Duelo de farrapos e Anjo da vitória. De acordo com Augusto Meyer, em Textos críticos (1986): “são contos de sangue e paixão, contados em poucas palavras, ao modo vivo de Blau Nunes. São principalmente histórias da vida bárbara dos gaúchos ...” (p. 560). “Chasque do Imperador” situa-se em um clima beligerante em que a passagem do Imperador D. Pedro II, por Uruguaiana, é narrada por Blau. A respeito do conto, Chaves (2001) registra: Em plena Campanha do Paraguai, durante o cerco de Uruguaiana em 1865, Blau Nunes é apresentado por Caxias a D. Pedro II; logo, torna-se seu ajudante de ordens, o chasque de confiança para missões perigosas; dirigindo-se agora ao seu interlocutor, [Blau] narra episódios envolvendo o Imperador (...), cinco episódios cômicos e altamente irreverentes, condimentados ainda mais pelas maliciosas observações de Blau, tudo desembocando na desmistificação do vulto imperial (p. 72). Outro aspecto da narrativa, no entanto, chama a atenção do leitor: trata-se das histórias do povo, do homem comum do pampa que se defronta com o Imperador do Brasil e, nessas histórias, se sobressaem caracteres típicos da alma pampa que Alencar divisava. 3.1 Chasque do Imperador Chasque, de acordo com o Dicionário de Regionalismo do Rio Grande do Sul (Nunes e Nunes, 1996), deriva do quíchua “chasqui” e equivale a “mensageiro, estafeta, próprio, pessoa que se despacha levando uma mensagem” (p. 108). Assim, Blau narra os fatos de um ponto de vista muito próximo do Imperador, daquele que se tornou seu ajudante, seu estafeta. A narrativa, a exemplo dos demais contos, ocorre em primeira pessoa, dá-se de forma linear e predomina o espaço do pampa, em que a tropa comandada por D. Pedro II se desloca, ora acampando, ora sendo recebida por estancieiros da região. - Quando foi do cerco de Uruguaiana pelos paraguaios em 65 e o imperador Pedro II veio cá, com toda a frota da sua comitiva, andei muito por esses meios, como vaqueano, como chasque, como confiança dele; era eu que encilhava o cavalo, que dormia atravessado na porta do quarto dele, que carregava os papéis dele e armas dele (Lopes Neto, 1998, p. 57). Dialogam, assim, de imediato, personagens ficcionais – Blau Nunes – e personagens que ocuparam seu espaço na História oficial do Brasil. Além do Imperador, Duque de Caxias se fará presente, responsável por mediar o encontro entre o narrador e o governante máximo do país, assim como, de fato, ser o responsável pelas tropas que atacariam Solano Lopes no Paraguai. Convém acrescer-se, neste ponto, que, conforme Aristóteles (2005), a presença de personagens históricos, pessoas que tiveram existência real e cujos nomes são inseridos no texto literário, atribui-lhe maior confiabilidade, uma vez que os fatos passados, se existiram, são aceitos exatamente porque existiram e, como consequência, são fatos possíveis. Blau não se julga apto a servir D. Pedro II: “O senhor imperador vai ficar mal servido; sou um gaúcho mui cru”; e acrescenta: “Eu pensava que o imperador era um homem diferente dos outros... assim todo de ouro, todo de brilhantes, como olhos de pedras finas...” (Lopes Neto, 1998, p. 59). Nesse particular, evidencia-se a relação entre dois universos distintos: a vida árdua, dotada de poucas informações e de pouco preparo social que emerge na campanha sulina, e o homem da Corte, pouco afeito à vida campeira. E, em seguida, o leitor é informado dessa diferença, por um arroubo de um dos comandantes das tropas gaúchas: Havia um que era barão e comandava um regimento, que era mesmo uma flor, tudo moçada parelha e guapa. O imperador gabou muito a força, e aí no mais o barão já lhe largou esta agachada: - Que vossa majestade está pensando?... Tudo isto é indiada coronilha, criada a apojo, churrasco e mate amargo ... Não é como essa cuscada lá da Corte, que só bebe água e lambe a... barriga! (Lopes Neto, 1998, p. 60). Nesse aspecto, Chaves (2001) assinala: Implicitamente esse texto – que aparentemente trata do Imperador e de sua participação épica na guerra contra o inimigo externo – termina fazendo a apologia das qualidades gaúchas, sob o ponto de vista do narrador-personagem, a rusticidade, a coragem, a virilidade (...) (p. 72). Faz-se possível, nessa medida, asseverar que “Chasque do Imperador”, visto pela ótica adotada por Chaves, se faz legatário de uma tradição de exaltação do modelo literário proposto por José de Alencar e que só encontraria um contraponto definitivo a partir da chamada geração de 30 do Modernismo Brasileiro. No deslocamento da tropa, um novo acontecimento, um novo personagem: “uma velha, que já tinha os olhos como retovo de bola” (Lopes Neto, 1998, p. 60-61). A mulher, após perambular pelo acampamento, oferece ao soberano “um requeijão, que pela cor devia de estar um gambelo, de gordo e macio” (ibidem). Nessa passagem, salienta-se, de modo especial, o papel da mulher sul-rio-grandense nos confrontos bélicos que marcaram a região. Enquanto os homens seguiam para os campos de batalha, cabia-lhes esperar. Há, porém, uma nota irônica que se ressalta na fala da personagem: “Vancê dê notícias minhas e bote a bênção neles; e diga a eles que não deixem o imperador perder a guerra... ainda que nenhum deles nunca mais me apareça!” (Lopes Neto, 1998, p. 61). Com a economia constantemente desorganizada, a província do Rio Grande do Sul sacrificou homens, gado e a própria organização estancieira para demarcar a fronteira sul do país, a custa do choro e do sofrimento de mães, filhos, esposas, amantes. A velha analfabeta lega seu absoluto respeito ao Imperador, à guerra, ciente de que não importa a sua atitude, mas o ato corriqueiro, naqueles tempos, de juntar às tropas homens menos afortunados, meros peões que apenas tinham a sua força física para oferecer e pouco pediam em troca. Mais irônica ainda é a observação que Blau dirige ao Imperador, o combatente que seguia rumo ao campo de batalha: “O imperador – esse era meio maricas, era! – abraçou a velha, prometendo voltar, por ali, e quando ela saiu, disse: ‘- Como é agradável esta rudeza tão franca’” (Lopes Neto, 1998, p. 61). Se, de um lado, o Imperador não logra entender a situação em que se encontrava a província – devastada que fora pelos combates da Cisplatina e, em seguida, da Revolução Farroupilha, Blau também se mostra incapaz de “assimilar” aquele homem, gentil, que dedica a sua atenção a uma velha. Essa dicotomia é ressaltada pelo par agradável x rudeza, em que o primeiro termo remete ao mundo da Corte – tranquilo, ameno –, enquanto o outro – rudeza – diz respeito à vida daquela gente perdida entre coxilhas e banhados. Cabe notar que ao Imperador encanta a franqueza. Por fim, elucidativa é a diferença de concepção do mundo que se expressa no episódio do fazendeiro que serve apenas doces ao Imperador: “– Quê! Pois vossa majestade come carne?! Disseram-me que as pessoas reais só se tratavam a bicos de rouxinóis e doces e pasteizinhos!” (Lopes Neto, 1998, p. 62), exclama o homem que ofertara doces à hora do almoço, à hora do jantar, à hora da ceia e que se preparava para servir doces no café da manhã. Blau enuncia que, embora seja rico, o fazendeiro era “mui gauchão”; portanto, acostumado à rude vida campeira, ao churrasco, mas que se propusera alterar os hábitos domésticos em respeito e admiração pelo Imperador. Pertinente ponderar-se que, recuperando um fato histórico – a passagem das tropas imperiais rumo à guerra –, a narrativa, de fato, exalta caracteres típicos atribuídos ao gentílico gaúcho: hospitalidade, franqueza, lealdade, hombridade, coragem, e que foram delineados, a princípio, pela literatura oral: “Ser monarca da coxilha, / foi sempre o meu galardão./ E quando alguém me duvida / descasco logo o facão”, conforme informa Chaves (1999, p. 70), e, posteriormente, pela literatura culta que se conformou na esteira de O gaúcho, de José de Alencar. Tais características ganham relevo exatamente quando contrapostas aos modos imperiais, à fineza e à gentileza apresentadas pelo soberano brasileiro. Essa dualidade, se for levada ao universo da guerra, parece, também, adquirir relevância, posto que a incumbência da luta caberá aos peões, homens rudes, afeito às lides bélicas, enquanto o Imperador se manterá protegido, distante do confronto, servindo apenas como um reforço ao moral das tropas em combate. Por último, mas não se esgotando a análise, faz-se importante retomar os costumes, os hábitos gaúchos que a narrativa traz à cena: os cuidados com os cavalos, o chimarrão, aspectos que, de certa forma, fazem eco ao propósito narrativo de valorizar a vida campeira. 4 Considerações Finais Tomando-se como pressuposto que a história literária do Rio Grande do Sul tem sido marcada pela íntima relação que se estabelece entre História e Literatura, fez-se, neste estudo, a análise do conto “Chasque do Imperador”, da coletânea Contos gauchescos, evidenciando-se o contraponto entre o narrador, sujeito rude, afeito à lide campeira, e o Imperador, vindo da Corte, de um modelo social oposto àquele vivido no pampa. O mote desencadeador da reflexão diz respeito à mimese, entendida como a linguagem que representa a realidade, o instrumento linguístico de que se vale a narrativa para expressar fatos verossímeis – aqueles que poderiam ter acontecido – em oposição à História, cuja incumbência volta-se para a verdade configurada em documentos acessíveis ao historiador. Contos gauchescos é uma das obras fundamentais do regionalismo sul-rio-grandense que resgata, do meio campeiro, a fala e a vida do homem rural e, nessa condição, em “Chasque do Imperador”, o que se observa, como legatária da tradição romântica de José de Alencar, é a afirmação dos caracteres marcantes do tipo criado no pampa. No caso específico, essas características são reforçadas pela oposição explícita com o comportamento e a percepção de mundo do outro, o Imperador, desde o início, tido como um “maturrango”, isto é, o “indivíduo que monta mal a cavalo, que não entende dos trabalhos do campo” (Nunes e Nunes, 1996, p. 297). D. Pedro II é, portanto, sob a ótica de Blau, um estranho. E o narrador não deixa dúvidas de seu posicionamento: Um dia apresentaram ao imperador um topetudo não sei donde, que perguntou, mui concho: - Então, vossa majestade tem gostado disto por aqui? - Sim, sim, muito! - Então, por que não se muda pra cá, com a família?... (Lopes Neto, 1998, p. 60). Dois universos distintos, ainda que aceitos pelo Imperador, se tocam e o gaúcho deixa clara a sua valentia, o seu destemor, assim como não titubeia em afirmar o distanciamento que a autoridade máxima do país vivia em relação aos seus súditos meridionais. Nota [1] O vocábulo verdade é aqui entendido, segundo Veyne (1998), como tudo que “tenha, realmente, acontecido” (p. 25). Referências ARISTÓTELES. A Poética. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. CHAVES, Flavio Loureiro. História e literatura. 3. ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1999. ______. Simões Lopes Neto. 2. ed. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; Ed. da UFRGS, 2001. HAUSER, Arnold. 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Endereço para contato: Universidade Federal de Santa Maria Avenida Roraima, nº 1000 Cidade Universitária Bairro Camobi 97105-900 Santa Maria/RS – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] **Elaine dos Santos Doutoranda em Estudos Literários – UFSM – e Bolsista – REUNI. Endereço eletrônico: [email protected] ***Pedro Brum Santos Pós-doutor em Literatura Brasileira, Doutor em Teoria Literária e Docente – PPGL/UFSM. Endereço eletrônico: [email protected] Data de recebimento: 1º jun. 2010 Data de aprovação: 18 jun. 2010