Programa DIREITOS HUMANOS EDUCAÇÃO E CIDADANIA Subprograma ESCOLA E CIDADANIA 3ª oficina: “Democratização da educação: em busca da efetiva qualidade” No texto da 2ª oficina afirmamos a urgência de discutir que qualidade queremos para a educação, entendendo que existem diferentes critérios para definir a qualidade, variando de acordo com diferentes concepções e projetos de sociedade. O sentido da qualidade de educação por nós defendido refere-se a um direito que se estende a todos. O lema que vem sendo trabalhado pela Novamerica em 2006 – Educação de qualidade não é privilégio! É direito de tod@s. – coloca-nos em aliança com os educadores que defendem o critério de qualidade como fator intrinsecamente relacionado a uma democratização radical do direito à educação e a um fortalecimento da escola pública. Nesta oficina, tendo em vista discutirmos mais amplamente a qualidade na perspectiva da democratização da educação, selecionamos e adaptamos textos de diferentes autores que abordam temas ou questões relacionadas a essa discussão. O primeiro texto foi montado a partir de fragmentos de um artigo de José Carlos Libâneo (“Sistema de ensino, escola, sala de aula: onde se produz a qualidade das aprendizagens?” in Lopes, Alice Casimiro e Macedo, Elizabeth, Políticas de currículo em múltiplos contextos. São Paulo: Cortez Editora, 2006.) no qual o autor, ao discutir a possibilidade de construção de uma pauta comum para os defensores da escola pública, enfatiza a importância de pensar a escola “por dentro”, ressaltando que é na ponta do sistema de ensino, nas escolas, que se constrói e se avalia a qualidade da escolarização. O segundo texto foi composto a partir de fragmentos do Relatório de Desenvolvimento Humano – Brasil 2005 Racismo, Pobreza e Violência, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e do livro “Na lei e na raça. Legislação e relações raciais, BrasilEstados Unidos”, de Carlos Alberto Medeiros (Rio de Janeiro, DP&A, 2004), com o objetivo de apresentar um panorama da desigualdade racial no Brasil e suas repercussões na educação. REALIZAÇÃO APOIO 1. Sistema de ensino, escola, sala de aula: onde se produz a qualidade das aprendizagens? (José Carlos Libâneo) A escola tem sido abordada como espaço de realização tanto dos objetivos do sistema de ensino quanto dos objetivos de aprendizagem. Situa-se, assim, na confluência entre as políticas educacionais / diretrizes curriculares / formas organizativas do sistema e as ações pedagógicodidáticas na aula. Enquanto objeto de estudo, ela comporta análises sócio-políticas mais globais e, também, quanto à investigação de aspectos curriculares, pedagógicos e organizacionais. Esse modo de compreensão da questão suscita dois enfoques na investigação: a análise externa e a análise interna. A análise externa pretende captar a escola a partir de um olhar mais global, abordando aspectos sociais, econômicos, culturais, institucionais das políticas educacionais, das diretrizes curriculares, da legislação, das formas de gestão do sistema de ensino, portanto, uma análise de fora para dentro. A análise interna aborda os objetivos, os conteúdos, as metodologias, as ações organizativas e curriculares, a avaliação das aprendizagens, isto é, os processos internos da escolarização, sem desconsiderar os contextos sociais particulares e os mais amplos. Isso significa pensar a escola "por dentro", analisando os elementos que a constituem, os processos de aprendizagem e de ensino e seus resultados. As análises críticas das políticas educacionais e do sistema de ensino perdem a força analítica se não tiverem como referência a escola e suas funções sociais e pedagógicas. Do mesmo modo, os profissionais envolvidos no campo interno da escola podem ter reduzida a eficácia pedagógica e social do seu trabalho, se não tiverem uma visão integrada e crítica dos determinantes sociais e culturais do sistema de ensino. Como tese inicial, afirmo que, quanto mais se discursa sobre qualidade de ensino, tanto na linguagem do mundo oficial quanto na linguagem dos educadores ditos progressistas e até na linguagem da crítica acadêmica, mais se amplia a distância entre esses discursos e as questões pedagógico-didáticas efetivas da escola e do espaço da sala de aula, a ponta do sistema de ensino. As políticas educacionais pressupõem políticas para a escola, e estas devem basear-se em necessidades e em demandas originadas nos contextos concretos de ensino e na aprendizagem das escolas e das salas de aula. Chamo de políticas para a escola a definição de objetivos sociais e culturais para a escola, as capacidades a formar, as competências cognitivas e habilidades, os formatos curriculares, as metodologias de ensino, as práticas de organização e de gestão da escola, as condições profissionais que asseguram os objetivos e os melhores resultados de aprendizagem, os níveis esperados de desempenho escolar dos alunos. É na ponta do sistema de ensino, nas escolas, que se constrói e se avalia a qualidade da escolarização. Conhecer o mundo da escola por dentro significa saber em que consiste o problema pedagógico-didático na educação escolar. Esse problema refere-se a, no mínimo, quatro coisas: a) como se organiza o conhecimento a ser trabalhado com os alunos; b) como esse conhecimento pode melhor e mais eficazmente ser apropriado pelos alunos pela mediação (comunicação) dos professores; c) como os professores fazem a gestão da sala de aula, especialmente as relações professores-alunos e de que forma planejam e organizam as situações pedagógicas e de aprendizagem: d) como é a organização da escola, enquanto práticas socioculturais, pedagógicas e institucionais. As possibilidades de avanço em relação aos processos e procedimentos mais eficazes de aprendizagem escolar dependeriam de buscar consensos possíveis sobre quais objetivos efetivamente se buscam em relação à educação escolar para todos, e sobre quais diretrizes propor para atuar nas situações educativas concretas, já que é razoável supor que objetivos e formas de organização das escolas devem ser pautados pela concepção de aprendizagem desejada para os alunos. Seria pedagogicamente viável prover os alunos dos conteúdos científicos sem deslegitimar os discursos dos alunos a partir de seus contextos de vida? Haverá efetiva incompatibilidade entre a aprendizagem dos conteúdos científicos associados aos processos de pensamento e a incorporação no currículo da experiência sociocultural e características sociais e psicológicas dos alunos? Constata-se, assim, que diferentes pontos de partida poderiam alimentar uma pauta comum de ação. A escola deve estar, em primeiro lugar, comprometida com a aprendizagem dos saberes produzidos historicamente e com o desenvolvimento de competências cognitivas. É claro que não se quer uma escola meramente transmissora, memorística, ainda com traços de autoritarismo, de acumulação de informações. Mas, sem dúvida, a escola continua indispensável como lugar da sistematização de conhecimentos, de desenvolvimento do pensamento teórico, de formação moral, de preparação para a cidadania e para o trabalho. A escola é, também, lugar de construção e de fortalecimento da subjetividade. Ao lado da formação de conceitos e desenvolvimento das competências do pensar, é preciso uma atenção prioritária aos aspectos afetivos e comportamentais do desenvolvimento individual. Isso leva a que o processo educativo favoreça o crescimento autônomo dos sujeitos, de modo que cada pessoa construa-se de forma crítica, questionando e interrogando o valor das influências que recebeu em sua etapa de socialização e as próprias maneiras de sentir, pensar e agir. Em terceiro lugar, a escola é lugar de desenvolver práticas de cidadania para o exercício da democracia social e política. As escolas hoje não podem eximir-se de discutir e de implantar formas muito concretas de vivência democrática e prática de valores humanos. Tais práticas precisam assentar-se num imperativo do aprender a compartilhar, que é aprender – pela convivência coletiva, pelo diálogo e pela reflexão crítica – a construir significados e entendimentos a partir do respeito às diferenças, considerando-se marcos universais de convivência humana. A gestão dos sistemas de ensino terá pouca eficácia se não partir de uma premissa muito simples: a escola existe para que os alunos aprendam conceitos, teorias; desenvolvam capacidades e habilidades de pensamento; formem atitudes e valores e se realizem como profissionais-cidadãos. Qualidade de ensino é, basicamente, qualidade cognitiva e operativa das aprendizagens escolares (saber fazer e saber agir moralmente). É para isso que devem ser formuladas as políticas, os projetos pedagógicos, os planos de ensino, os currículos, os processos de avaliação. Há que se juntar os esforços de todos os que compartilham a crença na escola como uma das instâncias de democratização da sociedade e de promoção de uma escolarização de qualidade para todos, centrada na sua função nuclear que é a atividade de aprendizagem. 2. Um panorama das desigualdades e das injustiças raciais no Brasil Com base em dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) do ano de 1999, o economista Ricardo Henriques, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), chega à conclusão de que, no Brasil, pobreza e indigência têm cor, já que "Os negros em 1999 representam 45% da população brasileira, mas correspondem a 64% da população pobre e 69% da população indigente. (...) E esse excesso de pobreza concentrado entre a comunidade negra mantém-se estável ao longo do tempo, em particular na última década (HENRIQUES, 2001, p. 10). O estudo de Ricardo Henriques mostra que essas desigualdades se reproduzem em todos os segmentos socioeconômicos: não só a maioria dos negros se insere nas faixas de menor renda per capita, mas os negros ricos são menos ricos que os brancos ricos, e os negros pobres, mais pobres que os brancos pobres. Isso permite que se construam dois mundos hipotéticos: "o Brasil da população branca e o Brasil da população negra". O "Brasil branco" é cerca de 2,5 vezes mais rico que o "Brasil negro”. Ao longo de toda a distribuição, sem exceção, a renda média dos brancos é maior que a renda média dos negros presentes no mesmo quantil de suas respectivas distribuições. Isto é, a renda média dos 10% mais pobres entre os brancos é superior à renda média dos 10% mais pobres entre os negros, e esta diferença em favor dos brancos se repete até alcançarmos os indivíduos mais ricos das duas populações [...] (HENRIQUES, 2001, p. 20). Tais disparidades obviamente se refletem no mercado de trabalho, que é sem dúvida o principal determinante da renda das famílias. As taxas de desemprego, de informalidade e de precarização dos trabalhadores negros são absurda e sistematicamente mais altas que as dos brancos, desde que existem estatísticas sobre essas variáveis. A remuneração do trabalhador negro é, em média, e em todas as regiões do país, cerca de metade daquela do trabalhador branco, e este hiato está crescendo com a passagem do tempo, refletindo claramente a ampliação dos hiatos de escolaridade. Outros indicadores, referentes à saúde, longevidade, mortalidade, condições habitacionais, exclusão digital etc., repetem, monotonamente, a mesma história, para não falar da exposição à violência estatal e privada, acesso à justiça e participação na representação política e nos centros de decisão e de poder. Ainda no lado das permanências herdadas do passado, podemos ver que o preconceito e a discriminação racial continuam em pleno vigor. Os dados do mercado de trabalho demonstram que, entre brancos e negros com a mesma escolaridade, os últimos ganham cerca de um terço menos que os primeiros, e que os negros são nitidamente pior remunerados mesmo nas ocupações mais rústicas (que não requerem escolaridade alguma), tais como serviço doméstico e trabalho braçal na agricultura. Um grande número de ocupações continua fechado aos negros simplesmente em virtude de sua cor. As desigualdades raciais têm também um viés de gênero, o que faz com que a pirâmide sócioracial brasileira seja constituída, do topo para a base, por homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras – estas últimas recebem, em média, pouco mais de 35% daquilo que recebem os homens brancos. Os resultados desse estudo também apontam uma perversa e persistente desigualdade racial no campo da educação: De fato, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo. O diferencial é de 2,3 anos [...]. A intensidade dessa discriminação racial [...] é extremamente alta, sobretudo se lembramos que se trata de 2,3 anos de diferença em uma sociedade cuja escolaridade média dos adultos gira em torno de 6 anos. Embora intensa, não é esse o componente mais incômodo na discriminação observada. Em termos do projeto de sociedade que o país está construindo, o mais inquietante é a evolução histórica e a tendência de longo prazo dessa discriminação. Sabemos que a escolaridade média dos brancos e dos negros tem aumentado de forma contínua ao longo do século XX. Contudo, um jovem branco de 25 anos tem, em média, mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro da mesma idade, e essa intensidade da discriminação racial é a mesma vivida pelos pais desses jovens – a mesma observada entre seus avós. [. ..] As curvas [do gráfico correspondente] parecem construídas com intencional paralelismo, descrevendo, com requinte, a inércia do padrão de discriminação racial observado em nossa sociedade (HENRIQUES, 2001, p. 26-27). Embora a taxa geral de analfabetismo tenha caído significativamente nas últimas décadas, a dos negros se manteve em patamares duas a três vezes mais altos que a dos brancos, em todas as faixas etárias. Da mesma forma, apesar dos grandes avanços na inclusão educacional em todos os níveis, os perfis da escolaridade de brancos e negros se distanciaram nos anos de 1990, ou seja, a inclusão dos brancos ocorreu mais rapidamente que a dos negros. Só nos níveis elementares de educação houve uma ligeira convergência. Nos níveis médio e superior as distâncias aumentaram claramente nesse período. A universidade brasileira (especialmente a universidade pública, supostamente aberta a todos, integrada e racialmente democrática) continua literalmente fechada aos jovens negros. No seu conjunto, nosso sistema universitário (medido em número de matrículas) mais que dobrou em tamanho absoluto entre os censos de 1991 e de 2000, mas tornou-se proporcionalmente ainda mais branco do que já era: a percentagem de negros na população universitária diminuiu ao invés de aumentar. Em 2001, enquanto 10,2% dos brasileiros brancos adultos (com 25 anos ou mais) tinha alcançado 15 anos ou mais de educação formal, entre os negros adultos esse percentual chegava apenas a 2,5%. As explicações tradicionais sobre as desigualdades raciais nos indicadores de escolaridade costumam destacar que, por serem mais pobres, as pessoas negras tenderiam a apresentar dados piores que os das pessoas brancas. Esse aspecto deve ser levado em consideração, mas cabe salientar a influência da própria dinâmica de aprendizado, estabelecida no interior do espaço escolar. Na escola por vezes se reforçam estereótipos que acabam incidindo como um estigma sobre as crianças negras. Esse reforço provém de fontes como práticas pedagógicas de professores malpreparados que tendem a reproduzir preconceitos; tratamento diferenciado aos alunos por parte dos diretores, professores e funcionários; ofensas raciais, travestidas de brincadeiras de colegas e professores; uso da agressão verbal; e descaso das autoridades escolares em prevenir e punir semelhantes práticas. O resultado dessas práticas foi mensurado pela pesquisadora Vera Figueira, no município do Rio de Janeiro. No final dos anos 1980, a autora aplicou um questionário entre 442 estudantes de escolas públicas que atendem jovens de baixa renda entre 7 e 18 anos (238 brancos, 121 pardos e 83 pretos). Na sondagem, os brancos eram associados às seguintes qualidades: bonito (95%), inteligente (81,4%), engenheiro (85,4%) e médico (92,2%). Já os negros foram associados aos seguintes atributos: feio (90,3%), burro (82,3%), faxineiro (84,4%) e cozinheira (84,4%). O confronto com essa realidade de discriminação e injustiça social nos provoca a assumir posicionamentos mais definidos diante de algumas questões. Destacamos aqui a discussão em torno das políticas de ação afirmativa que recentemente vem mobilizando diferentes forças da sociedade brasileira. Embora a expressão “ação afirmativa” seja associada a algo que se aplica aos negros e reduzida à política de cotas, a idéia de dispensar um tratamento positivamente diferenciado a determinados grupos em função da discriminação de que são vítimas já está presente no Brasil há muito tempo. Exemplo disso é a chamada Lei dos Dois Terços, implementada na década de 1930 para garantir a participação majoritária de trabalhadores brasileiros nas empresas em funcionamento no Brasil, numa época em que muitas firmas de propriedade de imigrantes costumavam discriminar os trabalhadores nativos, sobretudo em São Paulo e nos estados do Sul. Também existem leis que favorecem a idosos, crianças, pequenos empresários, mulheres, entre outros grupos. Atualmente, o debate nacional se polariza entre grupos contra e a favor da aprovação de dois projetos de lei, o PL 73/1999 – também chamado de lei de Cotas – e o PL 3.198/2000, o Estatuto da Igualdade Racial, ambos defensores de políticas de ação afirmativa para a população negra no Brasil. Ressalta-se, assim, a necessidade do Estado lançar mão de duas formas de políticas públicas: universais – visando erradicar a pobreza e o racismo a partir de um contexto mais sistêmico e abrangente no qual o norte seja o desenvolvimento humano de todos os segmentos excluídos do país, e focalizadas – que, reconhecendo as singularidades de determinados grupos historicamente discriminados na sociedade, visam a adoção de mecanismos capazes de viabilizar a igualdade universal apregoada na Constituição brasileira. Considerando a importância de fundamentar nossos posicionamentos diante das atuais discussões sobre políticas de ação afirmativa, apresentamos em anexo “Os Dez Mitos Sobre as Cotas”, um trabalho de divulgação pública elaborado pelo Programa Política da Cor do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ.