UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES LICENCIATURA PLENA EM LETRAS HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA VINICIUS DE MORAES: RESSONÂNCIAS DO TROVADORISMO NA POESIA BRASILEIRA JONATHAN LUCAS MOREIRA LEITE JOÃO PESSOA 2014 JONATHAN LUCAS MOREIRA LEITE VINICIUS DE MORAES: RESSONÂNCIAS DO TROVADORISMO NA POESIA BRASILEIRA Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação em Língua Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne JOÃO PESSOA 2014 Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal da Paraíba. Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Moreira Leite, Jonathan Lucas. LUCAS MOREIRA LEITEna poesia brasileira/ ViniciusJONATHAN de Moraes: ressonâncias do trovadorismo Jonathan Lucas Moreira Leite. - João Pessoa, 2014. 49f. Monografia (Graduação em Letras- Língua Portuguesa) – Universidade Federal da Paraíba - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne 1. Poesia brasileira. 2. Neotrovadorismo. 3. Trovadorismo. I. Moraes, Vinicius de. II. Título. BSE-CCHLA CDU 82-1 VINICIUS DE MORAES: RESSONÂNCIAS DO TROVADORISMO NA POESIA BRASILEIRA Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação em Língua Portuguesa. Data de aprovação: ____/____/____ Prof.ª Dr.ª Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, DLCV, UFPB orientadora Prof. Dr. Amador Ribeiro Neto, DLCV, UEPB examinador Prof. Dr. Rinaldo Nunes Fernandes, DLCV, UFPB examinador Aos meus pais Aos meus portos AGRADECIMENTOS A minha mãe e ao meu pai pelo carinho, força e vida dedicados aos seus filhos tantos anos; pelo azul da minha perene infância. A Júnior, pelo apoio constante. A Érika, pela atenção dedicada; pelo companheirismo nas etapas finais deste processo; pelo carinho destes dias; pelos nossos dias. À professora Luciana Calado, pela orientação competente e humana; pela generosidade e respeito que sempre demonstrou por mim; por me clarear os olhos incansáveis vezes. Aos professores Amador Ribeiro; Ana Marinho; Gláucia Machado; Rinaldo Fernandes; Sérgio de Castro Pinto e Vanessa Riambau por me ensinarem, entre tantas coisas, o pouco que sei sobre literatura. Pela atenção que me dedicaram durante esses quatro anos de graduação. A Devyd, um irmão leal, e Allan, amigo de horas todas, por serem a medida da realidade. A Rebeca, ímã, irmã, pela compreensão e pelo carinho. A Pedro, amigo de fé, pela perspicácia em tantas ajudas. A Romero por compartilhar conhecimento com imensa generosidade. A todos na minha vida que tornaram possível este trabalho. Não é o grito A medida do abismo? Por isso eu grito Sempre que cismo Sobre tua vida Tão louca e errada... - Que grito inútil! - Que imenso nada! (Vinicius de Moraes) RESUMO O presente trabalho insere- se no campo dos Estudos Medievais, assim como no da poesia brasileira moderna e contemporânea, tendo como principal objetivo analisar as ressonâncias da literatura trovadoresca na obra do poeta e compositor brasileiro Vinicius de Moraes. Primeiro, discorreremos sobre o Neotrovadorismo, conceito trazido ao Brasil pela pesquisadora Maleval (2002), e desenvolvido também pela professora Calado (2000). Em seguida, faremos uma reiteração sobre as principais características do Trovadorismo, que serão norteadas, principalmente, pelos medievalistas Spina (1956) e Dronke (1978), e ainda pelo poeta e ensaísta Paz (1994). Finalmente, analisaremos os poemas A mulher que passa e A anunciação, atentando para as marcas trovadorescas nos textos do poeta. A análise do primeiro poema focalizará o seu diálogo com a modalidade “cantiga de amor” da lírica trovadoresca e, no segundo poema, será evidenciada a ressonância da “cantiga de amigo” no texto de Vinicius de Moraes. Palavras-chave: Vinicius de Moraes; Neotrovadorismo; Trovadorismo. ABSTRACT This study falls within the field of Medieval Studies, as well as modern and contemporary Brazilian poetry. Its main objective is to analyze the resonances of Troubadour literature in the work of the Brazilian poet and composer Vinicius de Moraes. First, we will discuss Neo-troubadourism, a concept brought to Brazil by the researcher Maleval (2002), and also developed by professor Calado (2000). Next, we will reiterate the main characteristics of Troubadourism, which will be guided mainly by the medievalists Spina (1956) and Dronke (1978), and also by the poet and essayist Paz (1994). Finally, we will analyze the poems A mulher que passa and A anunciação, directly observing the troubadour traces in the poet‟s texts. The analysis of the first poem will have its dialogue focused on the modality cantigas de amor of troubadour lyric. In the second poem, the resonance of cantiga de amigo in Vinicius de Moraes‟ text will be shown. Keywords: Vinicius de Moraes; Neo-troubadourism; Troubadourism. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10 I. NEOTROVADORISMO: TRADIÇÃO E MODERNIDADE ..................................... 14 II. A LÍRICA TROVADORESCA ................................................................................. 21 2.1 Uma breve reiteração sobre o medievo .................................................................... 21 2.2 Feudalismo e o surgimento do Amor cortês ............................................................. 25 2.3 Amor cortês: literatura e sociedade medieval........................................................... 28 III. A POESIA DE VINICIUS DE MORAES, UM NEOTROVADOR ......................... 31 3.1. Vinicius: Canção (e) poesia ..................................................................................... 31 3.2. Um trovador moderno ............................................................................................. 33 3.3. Um cantar de amor para as mulheres que passam ................................................... 34 3.4. A anunciação: o cantar feminino de Vinicius de Moraes ........................................ 41 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 46 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 48 10 INTRODUÇÃO Os estudos acadêmicos acerca da Idade Média, apesar do crescimento das últimas décadas, ainda ocupam pouco espaço nas pesquisas e nos currículos do curso de letras. A professora da UFPB e coordenadora do GIEM (Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais), Luciana Eleonora Calado Deplagne, aponta duas razões para a pouca disseminação dos estudos medievais nas universidades brasileiras: i) como o Brasil não teve produção literária durante a Idade Média, uma vez que foi colonizado apenas em 1500, não seria necessário o estudo da literatura medieval para os cursos de Letras língua vernácula. ii) o juízo de valor negativo em relação a esse período, recorrente no discurso comum: a Idade Média como sinônimo de obscurantismo e retrocesso cultural, a Idade das Trevas. A falta de conhecimento sobre esse período gera o reducionismo que vincula, imediatamente, Idade Média à inquisição cristã e ao atraso científico. Não podemos ler a produção cultural de um período tão extenso apenas a partir de um julgo moral. Entendemos, ainda, que o primeiro argumento é bastante frágil, tendo em vista que o Brasil não vivenciou a Idade Média e tão pouco a Idade Clássica, porém existe uma forte tradição dos estudos clássicos na universidade brasileira. Os colonizadores que aqui chegaram eram muito influenciados pela cultura medieval. Logo, a sociedade que se formou a partir dos europeus no Brasil também é culturalmente ligada ao medievo. Com isso não pretendemos desmerecer a importância de um estudo em detrimento de outro, e sim reiterar a necessidade dos estudos medievais, tendo em vista as suas diversas influências em nossa cultura. Uma das formas de estudarmos a cultura medieval é a partir de suas ressonâncias na arte moderna e contemporânea. A pesquisadora Maria do Amparo Maleval foi a responsável por introduzir o termo Neotrovadorismo no Brasil. Relevantes estudos vêm sendo realizados sobre a ressonância do medievalismo na arte brasileira; entre esses podemos citar a pesquisa de Van Woensel e Viana (1998) sobre os poetas Augusto dos Anjos e João Cabral de Melo Neto; além da própria Maleval (2002) que apresenta alguns autores da poesia moderna brasileira, considerados por ela como neotrovadores. 11 Este trabalho começou a ser pensado durante a minha participação na pesquisa “Ressonâncias medievais na literatura brasileira” coordenada por Luciana Calado Deplagne e vinculada ao CNPQ como PIBIC. Após fundamentar o arcabouço teórico necessário para a pesquisa, a professora orientou os membros do grupo para que, individualmente, focalizássemos nossas pesquisas em um autor da nossa predileção, atentando para as possibilidades de análise a partir do estudo proposto. A minha opção foi o poeta e compositor popular Vinícius de Moraes. A escolha do autor analisado foi regida, principalmente por dois motivos: o primeiro foi a inclinação que eu já tinha pela poesia do autor; o segundo diz respeito a Vinicius de Moraes ter uma obra substancial tanto na poesia quanto na canção popular, sendo que esse fato, por si, já nos faz pensar na possibilidade do poeta como um trovador. Há uma longa discussão sobre letra de música e poesia; ao nosso entendimento, a demarcação das fronteiras entre esses dois objetos é, no mínimo, uma tarefa árdua. Uma possibilidade de discorrer sobre essa relação é tomando o Trovadorismo como ponto de partida, tendo em vista que na arte dos trovadores ainda não havia distinção entre poesia e música. O estudo da obra de Vinicius de Moraes pode ser esclarecedor, também, no que diz respeito à relação citada. Vinicius de Moraes é um dos grandes poetas brasileiros. Elogiado por outros poetas como Manoel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, o apelido de “poetinha” só pode ser entendido a partir do carinho que o diminutivo pode expressar e, nunca, como querem alguns, tomando Vinicius como um poeta menor. O autor foi fundamental para a bossa nova e por conseguinte para a música brasileira que é produzida até hoje. São suas as letras de Garota de Ipanema; Chega de saudade e A felicidade, versos que o eternizaram como um dos compositores de maior importância na história de nossa música. Muito provavelmente, a hostilidade que o poeta enfrentou por uma considerável parte da crítica advinha, exatamente, de sua ligação com a música popular, vista como uma arte menor em relação à poesia. O mero fato de conceber uma linguagem artística hierarquicamente superior à outra já diz muito sobre tais considerações críticas. Vinicius de Moraes nunca fora popularesco; foi, pelo contrário, um poeta erudito, um conhecedor da linguagem poética. Havia sim, como houve com 12 Mario Quintana uma leitura depreciativa do lirismo dominante na sua obra, como uma poesia menor, eternamente imatura. Vinicius de Moraes é comumente ligado à figura do trovador, muito possivelmente por sua, já referida, ligação tanto com a canção quanto com a poesia. Além disso, um dos temas mais abordados pelo autor é a devoção e a exaltação à mulher amada, tema reconhecidamente ligado aos trovadores. Apesar dessa associação comum de Vinicius como um trovador, não encontramos nenhum estudo acadêmico em língua portuguesa que aponte nessa direção. Ao consultarmos o banco da CAPES 1 encontramos pouco menos de uma dezena de dissertações e teses que tinham como objeto de estudo a obra de Vinicius de Moraes, como a dissertação de mestrado do professor Daniel Vasilenskas Gil (2009) que faz um balanço sobre os poemas de Vinicius que não foram publicados em livro. No entanto, nenhum estudo tinha como objetivo analisar o trovadorismo presente em sua obra. O objetivo principal deste trabalho é estabelecer relações entre a poesia de Vinicius de Moraes e as marcas da literatura trovadoresca. A análise dos poemas do autor se guiará a partir dos estudos que indicam a presença da poesia medieval na produção poética moderna e contemporânea. Entendemos que este estudo traz alguma contribuição à fortuna crítica sobre Vinicius de Moraes e também, em paralelo, às pesquisas sobre o Neotrovadorismo na poesia brasileira, já que o estudo desenvolve uma análise que evidencia as características da poética medieval na obra do autor, sendo um exemplo prático da possibilidade de análise das obras de autores modernos e contemporâneos. No entanto, acreditamos que a contribuição maior desse trabalho se dá pelo possível ineditismo no Brasil do aspecto estudado na obra de Vinicius de Moraes. O trabalho divide- se em três partes: no primeiro capítulo atentaremos para o Neotrovadorismo, a partir das considerações de Maleval (2002) e Teresa Lópes (1997), e inda das contribuições dos estudos sobre a ressonância do trovadorismo na poesia e na canção popular. No segundo capítulo discorreremos sobre o Trovadorismo e os princípios da poética medieval. A esse respeito utilizaremos, principalmente, as formulações dos medievalistas Segismundo Spina (1956), Massaud Moisés (2003) e 1 Endereço eletrônico: http://www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses 13 Luciana Calado (2000); além do poeta e ensaísta Octávio Paz (1994). O terceiro capítulo será dedicado à apresentação do poeta Vinicius de Moraes, sua importância, tanto no âmbito da poesia quanto da canção popular. Sobre essa relação traremos considerações de Charles Perrone (1988) e Amador Ribeiro Neto (2000). Por fim, analisaremos dois poemas do autor, atentando para suas correlações com a cantiga de amor e a cantiga de amigo. 14 I. NEOTROVADORISMO: TRADIÇÃO E MODERNIDADE A história da arte é feita de rompimentos e reaproximações com estéticas anteriores; rompe-se com algumas, dialoga-se com outras. Temos o marcado exemplo do Romantismo que se desligou da tradição Árcade enquanto recorreu, muitas vezes, à estética medieval; o Romantismo, por sua vez, foi posto em cheque pelos Realistas. Uma das maiores forças criadoras da arte é exatamente essa intertextualidade, esse jogo de atração e repulsão entre as diversas formas de pensá-la e produzi-la. No caso particular do trovadorismo, podemos observar diversos diálogos com essa estética através dos séculos que lhe sucederam. Como exemplo, citamos o medievalista Segismundo Spina2 sobre Camões: “A própria gentil senhora dos sonetos camonianos não é mais que uma sobrevivência da pseudonímia poética dos trovadores, que na observância à mesura, criaram o retrato ideal da criatura amada”. Posteriormente Fernando Pessoa publica um poema intitulado “D. Dinis”. Segue o poema: D. DINIS Na noite escreve um seu Cantar de Amigo O plantador de naus a haver, E ouve um silêncio múrmuro consigo: É o rumor dos pinhais que, como um trigo De Império, ondulam sem se poder ver. Arroio, esse cantar, jovem e puro, Busca o oceano por achar; E a fala dos pinhais, marulho obscuro, É o som presente desse mar futuro, É a voz da terra ansiando pelo mar. (PESSOA, 1936, 1972, p. 73) Lemos, então, nos dois mais aclamados poetas portugueses seus diálogos com o trovadorismo. Sobre o poema-homenagem ao rei-poeta D. Dinis, afirma a medievalista Maria do Amparo Maleval, em breve análise: O poema remete-nos para a época do rei-trovador, acentuando-lhe os presságios do futuro Império ultramarino em belíssimas imagens (dos pinhais), dotadas de cor sugestiva de riqueza (“como um trigo de Império”), movimento (“ondulam”) e som (“rumor”, “fala”, 2 SPINA, Segismundo. Era Medieval, DIFEL, Rio de Janeiro, 2006. 15 “marulho”), que se confundem com o seu cantar de “arroio”, na busca do oceano desconhecido. (MALEVAL. 2002. P 10) Segundo Maleval, Manuel Rodrigues Lapa, em 1933, denominou esse diálogo com a cultura medieval como Neotrovadorismo, termo que desde então vem sendo utilizado nos estudos referentes às ressonâncias da cultura medieval. A professora descreve essa estética da seguinte forma: Tal movimento neotrovadoresco – se é que podemos assim caracterizá-lo, uma vez que sem manifestos ou outro tipo de doutrinamento – não fora meramente saudosista do esplendor passado. Embora heterogêneo, pode ser definido como, na síntese de Xosé Manuel Enríquez, uma “recriación do universo poético medieval (ambiente e recursos formais: paralelismo, refrán, leixa-pren...) co espírito do século XX” (MALEVAL, 2002. p 21) Não há um manifesto do Neotrovadorismo, como houve nas vanguardas europeias. Não existiu ou existe uma organização articulada entre os autores para construir uma arte que resgatasse o medievo; por isso a ressalva da autora ao utilizar “movimento” para discorrer sobre o Neotrovadorismo. O que podemos afirmar com certeza é que diversos artistas utilizam nas suas obras um constante diálogo com os conteúdos e/ou com as formas prototipicamente medievais. Entendemos que o Neotrovadorismo não é apenas um resgate da cultura medieval no sentido de repeti-la, imitá-la; é, antes, uma recriação, uma transfiguração dos elementos medievais. Concordamos com Maleval3 quando ela afirma que: “Nele [Neotrovadorismo] se uniriam as audácias metafóricas da poesia moderna com as velhas formas de expressão lírica, tornando-o um fenômeno também original”. Focalizando a cultura moderna e contemporânea brasileira, é muito difícil determinar quem foi o primeiro autor Neotrovadoresco nacional. Porém, Maleval (2002) afirma: “embora não possamos determinar com precisão quem teria sido o seu primeiro realizador, citamos, como pioneiros, Onestaldo de Pennafort, Martins Fontes, Paulo Bonfim, Augusto Meyer”. 3 MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e poesia. Rio de Janeiro: Editora Ágora da Ilha, 1999. P 83. 16 Tanto nas chamadas artes populares, quanto nas eruditas, diversos autores brasileiros utilizam-se do diálogo com o trovadorismo para construir suas obras. Dentre as obras que podem ser consideradas Neotrovadorescas, devemos destacar a incidência desse fenômeno no nordeste brasileiro. A literatura de cordel, os cantadores e o movimento Armorial são amplamente influenciados pela cultura medieval. Autores como o poeta Cego Aderaldo, Oliveira de Panelas e Ariano Suassuna representam muito fortemente essa herança. As interseções entre a cultura medieval e o nordeste brasileiro são inegáveis; basta ver as pelejas dos cantadores; a oralidade e musicalidade indissociáveis na poesia popular com o uso comum das redondilhas; a dimensão mítico-fantástica das narrativas orais e escritas; os romanceiros, o eco das novelas de cavalaria nas histórias, cantadas ou não, que, muitas vezes, trazem os cangaceiros como protagonistas. No caso específico do movimento Armorial, que surgiu nos anos 1970 capitaneado pelo paraibano Ariano Suassuna, observamos um resgate à tradição nordestina a partir do diálogo com a cultura ibérica medieval. É importante frisar que o movimento Armorial busca a valorização da cultura popular nordestina. Logo o diálogo com o mundo medieval é um meio de enaltecer a sabida ligação do nordeste com essa tradição. (Barbalho 2004) No âmbito da canção popular brasileira, além da própria execução cantada de um texto, fato que remete, imediatamente, aos trovadores; não é raro observamos recriações trovadorescas nas obras de compositores como Caetano Veloso, Gonzaguinha e Gilberto Gil. Temos como exemplo o estudo realizado pela professora Luciana Calado (2000), no qual Chico Buarque foi descrito como um “moderno trovador”. A pesquisadora identificou nas canções do autor diversas marcas do medievo, categorizando as canções a partir dos gêneros poéticos trovadorescos, como as cantigas de amor (A Rita, Tanta saudade) e as cantigas de amigo (Atrás da porta, Olhos nos olhos). Dentro do universo da poesia, destacamos a importante pesquisa que Maleval (2002) desenvolveu sobre a relação do Neotrovadorismo e o modernismo brasileiro. O trabalho conta com uma antologia dos poetas que, segundo a autora, “praticaram as suas incursões poéticas no medievo”. Entre eles estão Cecília Meireles, Manoel Bandeira e Guilherme de Almeida. 17 Dentre os poetas brasileiros contemporâneos, Stella Leonardos representa um exemplo bastante interessante de como o diálogo com o trovadorismo pode ser feito de forma integral e completamente consciente, utilizando-se dos temas, das formas e até, algumas vezes, da língua arcaica. Podemos observar essa assertiva no poema que segue: DO CANCIONEIRO DA DESAJUDA FLOR do ramo flor do ramo: ven cantiga. “Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é ?” En que seja Dona Flor non quero cantar d‟ amor. Nen cantar de maldizer. Sou d‟ agosto, vivo a gosto, a contragosto vos amo e o gosto meu é morrer. “Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! Ai deus, e u é?” Flor sem ramo. Do enramado sen cantiga. (LEONARDOS, 1974, p.76) Estella Leonardos dialoga nesse poema com os versos da cantiga de amigo (CBN 568, CV 171) do rei poeta D. Dinis, “Ai flores, ai flores do verde ramo”. O diálogo acontece tanto na epígrafe trazida por Leonardos, com a indicação do primeiro verso da cantiga e de sua autoria, quanto na inserção de duas estrofes da cantiga medieval, apresentadas no poema entre aspas e em estrofes alternadas, dando-lhes destaque da espacialidade na folha. É interessante observarmos, que já foi referida nesse trabalho, a inovação em diálogo com a tradição. Percebe-se que a poeta utiliza-se do português arcaico e da redondilha maior, porém desde o título “Do cancioneiro da desajuda” a autora recria o sentido tradicional da cantiga. No poema de Leonardos o eulírico não se envaidece do sofrimento que o amor causa, muito pelo contrário, afirma: “a contragosto vos amo/e o gosto meu é morrer”. 18 O descrito acima aplica-se a os outros poetas modernos brasileiros. Ao dialogar com o medievo não perdem a marca moderna de suas obras. Sobre a poesia moderna brasileira Maleval afirma: No Brasil, mesmo os líderes do Modernismo – movimento que propugnava uma arte nacionalista, ligada à sociedade tecnológica, caracterizada pela liberdade de idéias e de formas, pela ruptura com o passado europocentrista – souberam aproveitar a herança das nossas origens líricas, como o próprio Mário de Andrade, que se dizia “um tupi tangendo um alaúde” (Andrade, 1987, p. 83). Por exemplo, em alguns dos seus poemas de Lira paulistana, é visível o diálogo com Martin Codax, jogral galego do século XIII, que imortalizou para todo o sempre as “ondas do mar de Vigo” em letra e música (Maleval, 2002, p. 28-34). Pensando que o movimento modernista execrava toda a arte que se embebecesse do estilo lusitano – incluindo, talvez erroneamente, o aclamado Machado de Assis - as incursões dos poetas modernistas em uma tradição literária galegoportuguesa podem parecer, inicialmente, contraditórias com os preceitos do movimento, porém, Maleval nos esclarece acerca desse estranhamento: O Trovadorismo medievo, diga-se de passagem, não fizera parte da tradição literária portuguesa incorporada pelos brasileiros e combatida pelos modernistas. Isto porque, após séculos de desconhecimento, os Cancioneiros galaico-portugueses apenas em fins do século XIX e inícios do XX foram publicados, a partir dos manuscritos medievos e tardo-medievos; o que tornou possível o advento do Neotrovadorismo. (Maleval, 2002, p. 28-34). Entre os autores modernos brasileiros que podem ser lidos através dos olhos do Neotrovadorismo está o poeta focalizado na nossa análise, Vinicius de Moraes. Apesar de o autor não ter sido incluído na seleção, já referida nesse trabalho, realizada por Maleval, é possível observar, tanto nas poesias cantadas, quanto nas poesias dos livros, diversas recorrências às temáticas ligadas ao medievo, como explicitaremos no decorrer deste trabalho. A pesquisadora Sílvia Marisa Almeida Cunha(2008) cita a tipologia organizada pela medievalista Teresa López sobre os neotrovadores; para López é possível categorizar o neotrovadorismo em três tipos. São eles: 1) aquel que reproduz mimeticamente os modelos da poesia medieval; 19 2) aquel que recria a atmosfera, ambiente, símbolos, estrutura e procedimentos de tipo paralelístico, que obrigan a ler estes textos en confronto coa lírica medieval; 3) aquel que utiliza fórmulas e estilemas medievais, ben polo seu carácter falsamente popular e/ou exótico para construir imaxes vanguardistas (simbolistas, criacionistas e mesmo surrealistas) ben polo carácter lúdico dentro das correntes neopopularistas de vanguarda (LÓPEZ, 1997, p.30-31) Almeida Cunha (2008) aponta para uma problemática na tipologia feita por Teresa López: há uma dificuldade em distinguir claramente as duas últimas categorias, tendo em vista que elas podem coexistir na mesma composição. Além disso, a autora discorre sobre as composições “cuja forma e musicalidade nos remetem, de imediato, para os códigos fónico-rítmicos explorados pelos trovadores medievais, sem que haja, ao nível temático, qualquer aproximação” (CUNHA. 2008, p 10), que não são contempladas pela tipologia referida. A autora sugere, então, uma revisão da tipologia proposta por Teresa López: 1) composições que evidenciam uma reprodução mimética, onde, aliando os temas à forma, encontramos uma reprodução quase perfeita das cantigas trovadorescas; 2) composições onde se evidencia a referência ao universo trovadoresco, através do reavivamento dos seus símbolos e personagens, versos ou expressões, que podem variar entre uma ou mais referências (incidindo a sua manifestação no plano temático ou vocabular); 3) composições que manisfestam uma aproximação formal muito evidente, evocando, de imediato, no leitor a sonoridade da lírica medieval, estatuindo, porém, um efeito de estranhamento anacrónico, uma vez que, ao nível temático, se distanciam das referidas cantigas. (CUNHA. 2008, p 10) Pensando nessa tipologia, entendemos que Vinicius de Moraes se enquadra no segundo grupo. Os textos do poeta dialogam com elementos medievais como o amor cortês (conceito explorado no capítulo II deste trabalho), sem reproduzir, via de regra, as estruturas formais das cantigas trovadorescas e sem utilizar-se da língua arcaica; diferentemente do que acontece, por exemplo, com alguns poetas brasileiros, como é o caso de Stella Leonardos, acima referida. O autor transparece em seus poemas o universo medieval, sem com isso restringir os sentidos do poema apenas para esse diálogo. Um poema de Vinicius de Moraes em que o eu-lírico dialogue com a vassalagem amorosa, com a exaltação à amada, pode ser analisado como uma obra 20 neotrovadoresca, mas não terá seu entendimento restrito aos leitores que dispõem de conhecimento acerca das cantigas provençais. Para esclarecermos a incursão Neotrovadoresca na poesia brasileira é importante atentarmos para as questões fundamentais da lírica trovadoresca e a sociedade em que estava inserida essa poética. O próximo capítulo será dedicado ao Trovadorismo. 21 II. A LÍRICA TROVADORESCA 2.1 Uma breve reiteração sobre o medievo A Idade Média inicia- se com a queda do império Romano ocidental no século V, estendendo-se até o fim do século XIV ou início do século XV. Sendo assim, quando referimos- nos a “medievo” estamos remetendo- nos a dez séculos de cultura, que, obviamente, não são homogêneos na sua organização social e nas suas produções culturais. Pensando nisso, a forma de ver a Idade Média como um bloco único que separa a idade clássica da idade moderna pode ser explicada, provavelmente, devido ao desconhecimento sobre o período e pela forma pejorativa com que se lê a Idade Média. O presente capítulo devotará as atenções para o fenômeno do surgimento da lírica trovadoresca. Segundo Lênia Mogelli4, o Trovadorismo é: “o movimento poético iniciado no século XI, na Provença e difundido pela Península Ibérica, Itália e Alemanha entre os séculos XII e XIV”. Porém, antes de adentrarmos sobre a formação da lírica trovadoresca é necessário discorrermos sobre alguns fatores desse período. É importante atentarmos para o fato de que ainda não existia uma distinção clara entre os campos do conhecimento formal. O ocidente ainda não havia sido invadido pelos ideais cartesianos e o pensamento aristotélico só viria a ser revisitado no final do século XII. Não se tinha compartimentado a literatura, a filosofia, a história. Nos nossos dias fluidos discutimos se essas barreiras realmente existem ou se são meros facilitadores didáticos. Massaud Moises também discorre sobre essas assertivas: O objeto literário, como o entendem as teorias contemporâneas – ou seja, aquele que se serve conscientemente da faculdade criadora da imaginação para recompor uma dada realidade com fins de fruição artística – ainda não existe no período aqui focalizado. As “artes poéticas” e os demais excertos delas afins, embora já anunciem a autonomia que os estudos teóricos-literários ganharão a partir do século XVI, estão por ora imbricados com o ensino da Filosofia, da Teologia e das disciplinas gerais do trivium/quadrivium, mormente a Gramática a Lógica e a Retórica. (MONGELLI. 2003, p11) 4 Ver: MONGELLI, Lênia M., VIEIRA, Yara Frateschi. A estética ,medieval. Direção de Massaud Moisés. Cotia, SP: Editora Íbis, 2003. 22 Como é de saber tácito, na Idade Média não havia imprensa, logo não existia uma produção literária como a que conhecemos hoje, voltada para a fruição a partir dos livros; tampouco existia uma comunidade leitora, pensando aqui na leitura como mera contemplação do texto escrito. Como em outros momentos da história, a leitura pode ser entendida como um indicador de estratificação social; pouquíssimas pessoas sabiam ler, aquelas que sabiam eram, obviamente, das classes mais abastadas: da nobreza ou do clero. Assim estabelece- se uma inegável presença da oralidade na arte produzida durante esse período. Tendo em vista o que foi dito, a arte ligada à palavra só poderia ser vinculada à oralidade. O canto, os instrumentos musicais, a performance durante a execução são fatores necessários ao trovadorismo. Não era possível dissociar, àquela época, a música da poesia, pois ambas ainda não haviam assumido a autonomia que nos parece natural. No trovadorismo é inconcebível a discussão, que dura décadas, sobre a função poética da letra de música ou a musicalidade presente na poesia. Tudo estava intrinsicamente ligado. Segundo Spina, “Foi durante o século XI que surgiram os primeiros Trouvères no norte da França e os Trobadours da Provença” (SPINA. 1956 p 11). Nos nossos dias, quando falamos em trovador, lembramos a figura do artista popular, talvez, mais vinculada ao jogral. Porém muitos dos trovadores faziam parte da aristocracia, e suas obras não tinham um cunho popularesco. Acerca desse fato, Maleval afirma: Lembrando que por Trovadorismo é nomeada, na Idade Média central, a produção dos fidalgos trovadores, regida por normas rígidas coligidas nas Artes de trovar, em tudo diversa do que hoje se entende por “trova”, composição de cunho popular, de versos curtos, geralmente redondilhos. Essa produção medieva, feita para ser musicada e cantada, ou até dançada, denominou-se “cansó” nos territórios localizados ao sul da hoje França e “cantigas” na Península Ibérica. (MALEVAL 2002. P 13) Sobre a figura do trobadour é importante destacar que não havia apenas um único modelo desse artista ligado à palavra cantada. Há algumas distinções, inclusive de cunho hierárquico, entre os trovadores. Eles poderiam corresponder ao jogral, ao menestrel e ao segrel. Calado nos esclarece sobre tais diferenças: 23 O trovador era considerado o artista completo, quase sempre de linhagem nobre, que compunha e interpretava suas cantigas sem receber para isso. Os jograis, pertencentes a uma classe social inferior, eram artistas itinerantes, que exerciam funções variadas. Podiam ser saltimbancos, atores, mímicos, apresentadores de marionetes ou animais adestrados, e também músicos, compositores. O menestrel era um tipo de jogral, que tinha trabalho estável. Era ligado a uma corte e encarregado de entreter a alta nobreza, interpretando as poesias escritas pelos trovadores. Eles raramente compunham. (CALADO. 2000, p21) O que havia era a prática trovadoresca nas diversas camadas sociais. Alguns trovadores o faziam por dinheiro, outros eram nobres e não precisavam da renda advinda daquela atividade; alguns compunham e trovavam, outros apenas repetiam composições de outros trovadores. Um fator interessante para observarmos é que, independentemente da classe social a que pertenciam, havia uma importância dos trovadores enquanto cronistas daquela época. Calado discorre sobre tal relação: Criando e divulgando sua cultura os poetas medievais deixaram um importante legado para a história da literatura, da mesma forma que desempenharam um papel relevante na interpretação histórica da sociedade ocidental. Refletores dos fatos sociais, e não meros documentos históricos, seus textos literários mostram a relação de interdependência entre literatura e sociedade na Idade Média. (CALADO. 2000, p 24) Otávio Paz (1994), Calado (2000) e Spina (1956) concordam que a maioria dos trovadores eram profissionais e seus cantos não retratavam apenas as suas experiências pessoais, refletiam também uma doutrina estética e ética. As cantigas trovadorescas, apesar de não terem como objetivo inicial o retrato da sociedade, esclarecem-nos acerca de uma visão de mundo que tinham os trovadores, ainda que seguindo um modelo estético. Calado (2000) discorre sobre as principais formas poéticas praticadas no medievo: as cantigas de amor e as cantigas de amigo, que serão aprofundadas no terceiro capítulo deste trabalho, as tenções, os bestiários e as cantigas de escárnio e maldizer. A tensão fora um gênero iniciado na Provença que depois expandiu-se para as outras regiões europeias, segundo Calado: “essa modalidade consistia em um debate 24 poético entre dois troubadour que defendiam, cada qual, opiniões diferentes relativas a uma determinada questão” (CALADO. 2000, p 40) As temáticas das tenções poderiam ser variadas, mas geralmente circundavam a temática amorosa. Observamos nas pelejas dos cantadores nordestinos um referencial contemporâneo desse gênero. Calado lembra-nos que os bestiários são “as obras redigidas em prosa ou em verso que continham descrição de certos animais, reais ou lendários, visando a um ensinamento religioso ou moral.” (CALADO. 2000, p 43) Existiam dois tipos de cantigas satíricas na poesia galego-portuguesa, uma era a cantiga de escárnio, na qual não se falava diretamente a pessoa para qual era dirigida aquela ofensa. “É através de figuras de estilo, como antítese e jogos de palavras que ocorrem a sátira indireta e as expressões irônicas das cantigas de escárnio, sempre cuidando em não revelar o nome da pessoa satirizada” (CALADO. 2000, p 49). O segundo tipo era a cantiga de maldizer, que também ironiza e satiriza, porém o alvo da sátira era claramente nomeado. O poeta baiano Gregório de Matos tem diversos poemas que dialogam com as cantigas satíricas. O conhecimento geral acerca do trovadorismo contempla algumas falácias; uma delas é que não existiam mulheres trovadoras. Essa informação é normalmente vinculada nos livros didáticos de ensino médio, geralmente referentes ao primeiro ano de ensino dessa modalidade. Isso pode ser entendido como outro indicador sobre o desconhecimento ou preconceito acerca do período medieval, visto que em todos os medievalistas consultados para este trabalho a presença da escrita feminina é confirmada. Vejamos a breve reiteração de Otávio Paz: “Várias damas da aristocracia foram também trovadoras. As mulheres desfrutavam de liberdades no período feudal e a perderam mais tarde pela ação combinada da Igreja e da monarquia absoluta”. (PAZ. 1994, p72) Otávio Paz traz-nos a condessa de Dia, como exemplo de uma mulher que produzia cantigas, uma Trobairitz. Com isso não diminuímos a imensa misoginia que havia na época, explicitamos o fato, pois é uma falácia amplamente disseminada no discurso comum. Para compreendermos o trovadorismo é necessário explicitarmos alguns elementos sobre o surgimento do amor cortês, código amoroso e matéria principal para o cantar dos trovadores. Para isso dedicaremos o próximo tópico deste capítulo. 25 2.2 Feudalismo e o surgimento do Amor cortês Surge, na chamada baixa Idade Média, o Feudalismo, modelo de organização social que perdurará até o Renascimento e será fundamental para o surgimento da lírica trovadoresca. Sobre o surgimento dessa estrutura social, afirma Spina: “É durante estes sombrios séculos IX e X que surge o Feudalismo como único meio de defesa militar da Europa ocidental, assolada agora pelos invasores sarracenos, eslavos, magiares e dinamarqueses.” (SPINA. 1956, p 13) O sistema feudal representou um grande avanço enquanto organização social, pois não apenas ajudou na proteção dos cristãos, mas aumentou a autonomia e o poder dos senhores que, em troca do juramento de servidão dos vassalos, oferecia- lhes alguma proteção. Instala-se assim uma relação hierarquizada entre o senhor e o vassalo O Feudalismo caracterizava- se por uma confluência de interesses entre o Senhor dono da terra e os seus vassalos; essa relação ficou conhecida como vassalagem. Sobre essa relação servil, afirma Otto Maria Carpeaux: Os vassalos que se encontravam nas cortes dos grandes senhores feudais da Provença dependiam do apoio econômico do senhor e da benevolência humana da senhora. Esta, vendida ao marido, como um pedaço de carne, encontrou nas relações com os vassalos novos sentimentos de amizade... Mas o erotismo das relações era limitado pelo rigor da dependência feudal. O amor dos trovadores provençais, dirigindo-se sempre a uma dama de categoria superior, tomou a feição de um Código Jurídico ou de um cerimonial áulico. (CARPEAUX. 1961. Apud CALADO 2000 p 22) O amor cortês surge em meio a essa organização hierarquizada do feudalismo; os trovadores transpuseram, então, essa hierarquia para as cantigas. Surge a vassalagem amorosa, sendo o senhor dessa hierarquia a dama e o vassalo o trovador, que lhe jurava servidão e fidelidade. Esse fenômeno firma- se como um traço fundamental do amor cortês e, por conseguinte, da lírica trovadoresca. Diversas são as circunstâncias que tornaram possível o surgimento de uma valorização da mulher em meio à misoginia daquela sociedade. Paz (1994) e Spina (1956) concordam que o cristianismo dera à mulher uma dignidade que não havia no 26 paganismo; durante os períodos de ausência os Senhores eram obrigados a deixar a administração das terras com suas mulheres, aumentando a importância e autonomia social que elas tinham. Os casamentos aconteciam por acordos políticos, estratégicos, com interesses nada ligados à afetividade; não havia um extremo rigor quanto à fidelidade de ambas as partes. Sobre o surgimento do amor cortês, afirma Paz: No século XII, na França, aparece por fim o amor, não como delírio individual, uma exceção ou um extravio, mas como um ideal de vida superior. A aparição do amor cortês tem algo de milagroso, pois não foi consequência de uma pregação religiosa nem de uma doutrina filosófica. Foi a criação de um grupo de poetas no seio de uma sociedade reduzida: a nobreza feudal do sul da antiga Gália. (PAZ. 1994, p 69) A evolução da condição da mulher é fundamental para o Trovadorismo. Segundo Spina: “Nos castelos esboça-se uma nova situação social criada pouco a pouco pela mulher, que começa a ter relevo nessa organização, criando um mundo à parte, seu, e os salões tornam-se um centro de convivência social”. (SPINA. 1991, p. 22) O amor cortês nasce nessa convivência palaciana, inclusive o “cortês” remete à cortesia, à corte. Otavio Paz nos esclarece a distinção entre o “amor villano” e o “amor cortês”: O „amor cortês‟ que reflete a diferença medieval entre corte e villa. Não o amor villano – copulação e procriação –, mas sim um sentimento elevado próprio das cortes senhoriais. Os poetas não o denominaram „amor cortês‟; usaram a expressão fin‟amors, quer dizer, amor purificado, refinado. Um amor que não tinha por fim nem o mero prazer carnal nem a reprodução (PAZ. 1994, p 70) O amor cortês é revestido por um caráter adulterino, tendo em vista que a dama pela qual o trovador jurava servidão era casada e de uma classe social acima da sua. Porém os trovadores não acreditavam nesse adultério como algo pecaminoso, segundo Paz: “Para os adeptos do „amor cortês‟, o casamento era um jugo injusto que escravizava a mulher, enquanto o amor fora do casamento era sagrado e conferia aos amantes uma dignidade espiritual.” (PAZ. 1994, p 85) Essa forma de entender o amor gerou o descontentamento da Igreja católica que concebe o casamento como uma união sagrada e mais do que isso um dos sacramentos instituídos por Jesus Cristo. Além disso, o cristianismo pregava que o sexo, 27 mesmo no casamento, deveria servir apenas para os fins reprodutivos, enquanto no amor cortês o prazer, sexual ou não, era o objetivo do contato carnal e espiritual. A igreja condenava ainda o amor cortês, pois afirmava que a exaltação da mulher praticada pelos trovadores era uma idolatria e que aquele amor só poderia ser dedicado a Deus. Sobre as possíveis influências do amor cortês, existem algumas coincidências entre o amor cortês e o platonismo, assim como há com o catarismo e com o cristianismo. No caso do platonismo, havia a exaltação do amor puro e elevado, um amor idealizado, que ganhou eco nos ideais do amor cortês. Paz (1994) afirma que o contato com a tradição grega deu-se a partir da poesia árabe-andaluza, que influenciou o trovadorismo por outros motivos: O eixo da sociedade feudal era o vínculo vertical, ao mesmo tempo jurídico e sagrado, entre o senhor e vassalo. Na Espanha mulçumana os emires e os grandes senhores haviam se declarado servidores e escravos de suas amadas. Os poetas provençais adotam o costume árabe, invertem a relação tradicional dos sexos, chamam a dama de sua senhora e se confessam seus servos. (PAZ. 1994, p74) A exaltação da mulher, o elogio à beleza física da amada e o culto à castidade são alguns pontos de interseção entre a poesia árabe e o amor cortês. Também existem coincidências entre o catarismo e o amor cortês Durante um período da Idade Média houve um grande crescimento da heresia dos cátaros, que conquistou uma grande popularidade tanto com as camadas mais humildes, quanto com a nobreza. O catarismo tornou-se uma alternativa contra os abusos da Igreja católica. Paz (1994) afirma que havia uma antítese teológica entre o cristianismo e o catarismo, que acreditava em uma dualidade maniqueísta interdependente. Para os cátaros o mundo fora criado por um Deus maligno, sendo assim, a matéria é obrigatoriamente má, enquanto seu par antagônico é o espírito completamente bom. Paz (1994) esclarece-nos que, apesar das interseções entre o catarismo e o amor cortês, é inconcebível a influência daquele neste. Os dois condenavam o casamento, porém o amor cortês condenava-o porque era um acordo feito sem o amor, com interesses político-econômicos e, geralmente, sem o consentimento da mulher; enquanto para os cátaros o casamento era condenável, pois servia para a reprodução, 28 perpetuando o mal que é a matéria. Paz confirma a independência do amor cortês em relação às suas possíveis influências: Entre o „amor cortês‟ e o catarismo há pontos de contato que também existem com o cristianismo e a tradição platônica. Essas afinidades são naturais: o assombroso e significativo é que o „amor cortês‟ desde o princípio tenha se manifestado de maneira independente e com características que proíbem confundi-lo com as crenças do cátaros ou com os dogmas da Igreja católica. (PAZ. 1994, p83) O amor cortês entende o amor como um fim nele mesmo, um próprio sentido, e não como um meio para transcender para divindade. Discorreremos sobre as principais características do amor cortês no tópico seguinte. 2.3 Amor cortês: literatura e sociedade medieval O amor cortês não é erotizado no sentido de que o prazer da carne seja imediato, ou mais importante, bem como não é um amor meramente espiritual. O amor para os trovadores era o amor integral, o puro e o da carne, o da razão e o sensorial. Spina reitera esse pensamento: “Se por um lado a canção provençal é um hino ao amor puro, nobre, inatingível, por outro sentimos constantemente pulsar nas camadas subjacentes da inspiração trovadoresca o amor carnal”. (SPINA. 1956, p22) Sobre a consumação sexual do amor cortês, Paz (1994) atenta para um fato confirmador a esse respeito. A alba, gênero de cantiga praticado pelos trovadores, na qual os amantes são avisados, de que o dia nasceu, por um mensageiro, geralmente pássaros, ou/e lamentam a chegada da aurora, pois com ele vem a separação do casal. A alba deixa-nos evidente que existe o amor carnal dentro do amor cortês, porém existe um extenso caminho para chegar a ele, e mesmo não se faz obrigatório para o trovador a consumação física desse amor, visto que o grande valor do amor não estava na concretude sexual. Sobre o serviço do trovador para sua dama, Paz (1994) afirma que existem três graus. No primeiro grau o trovador já devota seu amor e fidelidade à dama, porém ainda não conseguiu declarar-se para a amada, esse é o Pretendente. No segundo grau, 29 chamado de Suplicante, o trovador já se declarou à sua amada e esta mostrando-se favorável ao amigo, entrega-lhe um objeto pessoal, como uma luva ou uma joia. No terceiro grau o trovador torna-se Aceito, transformando-se em amante da dama (drudo). Este último estágio não implica, obrigatoriamente, no ato sexual. O trovador deseja servir a dama, fiel e pacientemente, sendo sua própria servidão a sua satisfação. O amor cortês exige, necessariamente, tempo e parcimônia. É um processo de devoção total e irrestrito do trovador para a dama, segundo Spina: “é a religião dos trovadores, um verdadeiro culto à mulher, que prevê a observância de todo um complexíssimo ritual”. (SPINA. 1991, p. 359). Paz nos alerta que durante esse processo o trovador era submetido a uma espécie de período probatório chamado assai: A ideia de que o amor é uma iniciação implica que é também uma prova. Antes da consumação física havia uma etapa intermediária que se chamava assag ou assai... O assai abrangia, por sua vez, vários graus: assistir ao levantar e ao deitar da dama; contemplá-la desnuda (o corpo da mulher era um microcosmo e em suas formas se fazia visível a natureza inteira com seus vales, colinas e florestas). Enfim, penetra ao leito com ela e entregar-se a diversas carícias, sem chegar à final. (PAZ. 1994, p82) Um conceito fundamental para o amor cortês é a joi d’amour. Segundo Spina (1956), a joi não era a mera satisfação do gozo, era uma espécie de ápice sensorial, mental e espiritual; um sentimento de felicidade e plenitude supremas, inalcançável por outro meio que não fosse a devoção à dama, ao amor cortês. A tentativa de representar tal sentimento só poderia ser feita através da arte. A joi era a maior força criadora possível para o trovadorismo. Quanto maior fosse o arrebatamento provocado por esse amor, mais perfeita seria a composição artística realizada pelo trovador. O amor cortês estabelece-se também como um código estético e comportamental para os trovadores. A moderação, o equilíbrio, a capacidade de controlar os arroubos da paixão são fundamentais para o trovador. André, o Capelão, no livro De amore, enumera doze regras que orientam o amor puro: I. Foge da avareza, como de uma peste nociva, e abraça o seu contrário. II. Deves conservar a castidade para a tua amada. III. Não tentes perverter uma mulher que sabes estar idoneamente unida ao amor de outro. 30 IV. Não procures eleger o amor daquela com a qual o pudor natural te impede de contrair núpcias. V. Lembra-te de evitar completamente o engano. VI. Não queiras ter muitos confidentes do teu amor. VII. Esforça-te por te agregares à milícia do amor, obedecendo sempre a todos os preceitos das damas. VIII. Ao oferecer e receber os prazeres do amor, o pudor deve estar junto à vergonha. IX. Não deves ser maledicente. X. Não queiras ser o propagador dos segredos dos amantes. XI. Mostra-te educado e cortês em todas as ocasiões. XII. Quando te entregares aos prazeres do amor, não te sobreponhas aos desejos da tua amada. (MONGELLI; VIEIRA, 2003, p. 65-66) Podemos observar as diversas interseções entre as regras acima e os preceitos do amor cortês. O comedimento, a valorização da amada, a discrição, a retidão de caráter mostram-se semelhantes nos ensinamentos de André, o Capelão e na prática do amor cortês. Os trovadores prestavam devoção completa às suas damas. O amor cortês concedeu à mulher a apreciação total de sua figura, tanto no plano estético, quanto no plano subjetivo. Paz (1994) afirma que o uso do senhal, masculinizando o tratamento da dama, não servia apenas para não revelar o seu nome, mas para conferir-lhe a posição superior na hierarquia amorosa, revertendo o poder social masculino para a dama. É importante reiterar que o cantar dos trovadores fora influenciado por diversas circunstâncias culturais do medievo. Entendemos o trovadorismo como um momento fundamental para a literatura, principalmente das línguas neolatinas; vemos nascer no século XII uma estética que influenciou grande parte da construção da lírica ocidental até nossos dias. Os conceitos expostos neste capítulo sobre o Trovadorismo são fundamentais para compreendermos e analisarmos as obras como Neotrovadorescas. No capítulo seguinte iremos demonstrar a presença do Neotrovadorismo na obra de Vinicius de Moraes. 31 III. A POESIA DE VINICIUS DE MORAES, UM NEOTROVADOR 3.1. Vinicius: Canção (e) poesia O carioca Vinicius de Moraes viveu de 1913 a 1980 e fora, antes de tudo, um artista consciente e inquieto. Tornou-se bacharel em letras pelo Colégio Santo Inácio em 1929 e formou-se em direito 1933. Desde muito jovem fora influenciado por dois mundos que, para ele, nunca foram opostos: o erudito e o popular. Seu pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, era um ex-professor de Francês e escrevia sonetos muito influenciados pela estética parnasiana, nunca publicados em livro. Sua mãe, Lídia Cruz de Moraes, tocava piano, assim como boa parte da família materna de Vinicius. O poeta foi durante muitos anos diplomata, profissão que o levou a morar em diversas cidades como Roma, Los Angeles e Londres. Em 1969 foi desligado do seu cargo e passou a dedicar-se exclusivamente à poesia e à canção popular. O autor publicou doze livros de poesia e deixou uma considerável produção que não foi publicada em vida. Além da poesia, Vinicius escreveu crônicas, reunidas nos livros Para viver um grande amor (1962) e Para uma menina com uma flor (1966), e críticas sobre cinema. O poeta teve uma exitosa passagem pelo teatro com o musical “Orfeu da conceição”, que ganhou adaptação para o cinema e foi premiada com a Palma de ouro, o Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro do ano de 1959. Como compositor de música popular, Vinicius de Moraes foi fundamental para a história da música brasileira, pois mudou o modo de escrever letra de música no Brasil. Foi, ao lado de Tom Jobim e João Gilberto, o responsável pela Bossa Nova, momento impar na música de todo o mundo. Garota de Ipanema, parceria sua com Tom Jobim, foi durante meses uma das músicas mais tocadas no mundo. Vinicius foi um dos artistas que influenciaram toda uma geração de compositores como Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Zé e Gilberto Gil. Sobre a relação entre letra de música e poesia, a obra de Vinicius de Moraes é um terreno fértil para tais considerações. Na música brasileira existem diversos letristas que fazem canções com um elevado grau de poesia. Além dos já referidos acima, podemos citar Noel Rosa, Edu Lobo, Chico César, Djavan, Alceu Valença e Zeca 32 Baleiro. De outra parte existem poetas que se propuseram a escrever letra de música, entre eles está Paulo Leminski, Antônio Cícero e Wally Salomão. A relação entre canção e poesia é fronteiriça, isso se evidencia por diversas vezes na obra do autor analisado. Em entrevista cedida à Clarisse Lispector, publicada originalmente na revista Manchete, o próprio poeta afirma: “Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções” (HOMEM, 2013. p 16.) Tal fato é refletido na impossibilidade de responder, satisfatoriamente, ao questionamento: é mais relevante a poesia dos livros ou a dos discos de Vinicius de Moraes? É, realmente, uma discussão difícil quando pensamos em determinar um veredito sobre a plenitude da análise de letra de música apenas como texto poético; Perrone descreve a canção popular como uma literatura de performance, segundo o autor “se um texto é criado com a finalidade de ser cantado, e não para ser lido ou recitado, ele deve ser estudado na forma dentro da qual foi concebido”(PERRONE, 1988, p. 23). Entendemos que os aspectos musicais da canção popular são muito relevantes para a apreciação do objeto artístico e a análise destes elementos pode ser muito enriquecedora. Os estudos semióticos são uma possibilidade de abordar a canção na sua duplicidade de signos, como tão bem faz o crítico Luiz Tatit5. Porém não concordamos com a impossibilidade da análise da letra de música dissociada da parte musical. Entendemos que é necessário relativizar essa premissa uma vez que a letra de música pode ter uma infinidade de elementos a serem analisados. Canções como Construção, de Buarque, e Os quereres, de Caetano, são exemplos da riqueza do signo verbal na canção popular. Pensamos, ainda, nos casos dos diversos poemas que são musicados, ou ainda dos textos que se conceberam inicialmente como canção e se tornaram poesia de livro. Na obra de Vinicius são vários os exemplos como Poema dos olhos da amada ou Rosa de Hiroshima. Sobre essa discussão, o professor e semioticista Amador Ribeiro Neto 6 nos atenta para alguns cancionistas, e entre eles o caso de Arnaldo Antunes que, além de 5 6 VER: TATIT, Luiz. Semiótica da Canção: Melodia e Letra. São Paulo: Ed. Escuta, 1994. VER: RIBEIRO NETO, Amador. Uma levada maneira: ao ar, poesia e música. In Conceitos, v.3, João Pessoa: ADUFPB, p; 21-27, 2000. 33 compositor de MPB, é poeta de livros. Temos o exemplo do poema-canção “O quê?” que foi concebido e publicado como música e depois foi transposto para livro, como um poema de influência concretista. O próprio Arnaldo Antunes transformou o poema “Budismo moderno”, de Augusto dos Anjos, em uma canção. Como podemos observar nos exemplos citados, se concordássemos completamente com a assertiva de Perrone não poderíamos analisar a poesia presente nas canções apenas a partir dos signos linguísticos, mesmo sendo estes extremamente ricos para uma análise. Atentamos, ainda, que tal veredito inibiria o campo de estudo da literatura para a análise da poesia trovadoresca, uma vez que os textos eram orais e criados, geralmente, para a execução acompanhada de instrumentos musicais. A obra de Vinicius de Moraes é lugar comum para estes dois universos, poesia e canção; a poesia presente na sua canção e a musicalidade formadora de sua poesia são visíveis de tal forma que, não raras vezes, o poeta é lembrado a partir da figura do trovador. Tal comparação explica-se em Vinicius de Moraes muito além da factual ligação entre poesia e canção; é possível observar na sua obra diversas ressonâncias da poética trovadoresca, assim como discorreremos a seguir. 3.2. Um trovador moderno Uma das possibilidades de leitura da poesia de Vinicius de Moraes é interpretála a partir do Neotrovadorismo. Se observarmos o trabalho do poeta, em linhas gerais, podemos observar a existência de duas características bastante distintas em sua obra, entendemos que ambas podem ser lidas como ressonâncias trovadorescas na poesia do autor. A primeira característica, presente principalmente em seus primeiros livros, Caminho para a distância (1933) e Forma e exegese (1935) – ganhador do prêmio nacional de literatura–-, diz respeito a uma busca por Deus, pelo transcendental, pela metafísica a partir da religiosidade cristã, sem com isso restringir-se a ela. Há uma ligação entre o poeta e Deus, seja a busca do eu-lírico pelo divino, seja a comunhão entre o sagrado e o humano, transformando o ato de escrever em algo que transcende a razão. Sobre a mística, no período medieval afirma a pesquisadora Mariani (2009): 34 Mística é então, nesse contexto, discurso sobre a relação com Deus daquele que faz um percurso que implica o envolvimento num trabalho de despojamento de si, para deixar-se transformar pelo totalmente Outro que, em sua grandeza e liberdade, é absolutamente transcendente, impossível para o entendimento e o querer humanos (MARIANI, 2009, p. 371). Podemos observar tais considerações nos versos do poema O poeta (2008, p. 33) “O poeta é o destinado do sofrimento(...) E a sua alma é uma parcela do infinito distante/ O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende (...) o poeta não teme a morte” ou no poema Os malditos (A aparição do poeta) (2011, p. 83) “E que somos belos como deuses mas somos trágicos/Viemos de longe... Quem sabe no sono de Deus tenhamos aparecido como espectros”. Há nestes dois primeiros livros, um Vinicius menos conhecido, melancólico e afeito às questões existenciais. „O que é o poeta‟ é um assunto presente nos dois poemas citados; o eu-lírico relaciona constantemente o poeta, a inspiração poética ou o fazer poético com a transcendência da mística ligação com Deus. Esta face do poeta não chega a desaparecer logo em seguida, porém tais poemas tornam-se cada vez mais espaçados na sua obra. A segunda característica é a mais conhecida do poeta, o amor. O elogio à sua amada, o sofrimento amoroso, a paixão irrefreável. Em alguns poemas o amor aparece de forma pura, platônica e em outros o amor é vinculado ao desejo sexual. Podemos observar esta exaltação ao amor nos versos da canção Canto de Xangô: “Amar é sofrer/Mas amar é morrer de dor (...) Me faça sofrer/Ah me faça morrer/Mas me faça morrer de amar”. Entendemos que uma possibilidade de analisar esses poemas de Vinicius de Moraes seja a partir do diálogo com o amor cortês dos trovadores. Discorreremos a seguir sobre esse cantar de Amor do poeta analisado. 3.3. Um cantar de amor para as mulheres que passam As cantigas de amor (cansó) eram a forma principal da lírica trovadoresca, como os demais gêneros da época eram feitas para serem acompanhadas por música. Calado afirma que “É através da cansó que os trovadores lançam a ideia do amor como inspiração poética, inventando o “amor cortês” ou a “fin‟amors”, o amor purificado, 35 refinado” (CALADO, 2000, p. 32). Como o próprio título do gênero já anuncia, tais cantigas tinham como principal tema o amor, porém também poderiam surgir outros assuntos como a morte ou a natureza primaveril; discorreremos sobre as suas características mais especificas durante a análise do poema A mulher que passa que integra o livro Novos Poemas publicado a primeira vez em 1938. Citamos, então, a breve descrição de Maleval (2002) acerca das cantigas de amor: Nas cantigas de amor, masculinas, o trovador expressa via de regra a sua renúncia ou sua dor, a sua coita, provocada pela sintomatologia amorosa e pela indiferença, pela falta de mercê da dama, da senhor inalcançável; desta louva as virtudes e a beleza sem par, mas sem particularizar-lhe o físico: sabemos que é jovem, esbelta (“delgada”) e clara (“alva”). (MALEVAL, 2002, p. 15) Como já afirmamos ao longo deste trabalho, o amor é um tema muito visitado na obra de Vinicius de Moraes. Em seu quarto livro, chamado não por acaso de Novos Poemas, observamos uma virada na obra do poeta. Quando pensamos na distinção exposta no tópico anterior entre o primeiro momento do autor, ligado à metafísica, calcado nas questões existenciais, e o segundo momento, dos seus poemas de amor, de saudade, de sofrimento amoroso, podemos afirmar que é a partir desse livro que Vinicius de Moraes passa a dialogar de forma mais acentuada com a cantiga de amor, aumentando consideravelmente a incidência dos seus poemas de amor e saudade. Poderíamos analisar a relação entre a cantiga de amor e a poesia de Vinicius de Moraes em muitos poemas do autor, como Ária para o assovio, Invocação à mulher única, Soneto do amor perdido, Soneto de contrição e Soneto à Katherine Mansfield. Nesta perspectiva, focalizaremos nossa análise no poema A mulher que passa, que como todos os citados, apresenta algumas ressonâncias do cantar de amor dos trovadores. Vamos ao poema: A MULHER QUE PASSA 1. 2. 3. 4. Meu Deus, eu quero a mulher que passa. Seu dorso frio é um campo de lírios Tem sete cores nos seus cabelos Sete esperanças na boca fresca! 5. 6. 7. Oh! como és linda, mulher que passas Que me sacias e suplicias Dentro das noites, dentro dos dias! 36 8. 9. 10. 11. 12. 13. Teus sentimentos são poesia Teus sofrimentos, melancolia. Teus pelos leves são relva boa Fresca e macia. Teus belos braços são cisnes mansos Longe das vozes da ventania. 14. Meu Deus, eu quero a mulher que passa! 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. Como te adoro, mulher que passas Que vens e passas, que me sacias Dentro das noites, dentro dos dias! Por que me faltas, se te procuro? Por que me odeias quando te juro Que te perdia se me encontravas E me encontrava se te perdias? 22. 23. 24. 25. 26. 27. Por que não voltas, mulher que passas? Por que não enches a minha vida? Por que não voltas, mulher querida Sempre perdida, nunca encontrada? Por que não voltas à minha vida? Para o que sofro não ser desgraça? 28. Meu Deus, eu quero a mulher que passa! 29. Eu quero-a agora, sem mais demora 30. A minha amada mulher que passa! 31. 32. 33. 34. No santo nome do teu martírio Do teu martírio que nunca cessa Meu Deus, eu quero, quero depressa A minha amada mulher que passa! 35. Que fica e passa, que pacifica 36. Que é tanto pura como devassa 37. Que boia leve como a cortiça 38. E tem raízes como a fumaça. (MORAES, 2012, p. 31) Observamos, imediatamente, o diálogo estabelecido entre o poema acima e o poema de Baudelaire7 A une passante em que o eu-lírico descreve, apaixonadamente, a passagem de uma mulher pela rua. No seu texto, Baudelaire recorre ao tema do amor avassalador, a impossibilidade de comunicação amorosa, assim como o autor analisado. No poema de Vinicius de Moraes o eu-lírico diz-se perdidamente apaixonado por sua “amada mulher que passa”. Podemos afirmar, inicialmente, que o poema 7 BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Edição biligue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 37 desenvolve-se a partir de duas máximas: o elogio à amada; e o desencadeamento ver/amar/sofrer, muito recorrente no trovadorismo ibérico. Durante todo o poema o eu-lírico canta as virtudes de sua amada, recorrendo, predominantemente, à beleza física da dama. Há sempre a hipérbole nos elogios que o eu-lírico tece sobre a amada. “A mulher excede a todas no mundo em formosura (tema do elogio impossível)” (SPINA, 1956 p. 21). Uma forte característica do cantar de amor dos trovadores, presente também no poema analisado, é a exaltação do corpo da amada a partir de analogias com a natureza. Isso acontece nos versos: “Teu dorso frio é um campo de lírios (...) Teus pelos leves são relva boa (...) Teus braços são cisnes mansos”. As virtudes físicas da amada são enaltecidas a partir das possíveis similitudes entre seu corpo e a natureza, a suavidade da sua tez, a delicadeza de seus gestos e a brancura de sua pele. O elogio à brancura da pele da amada é recorrente na poesia dos trovadores. Neste poema há as comparações do dorso da amada com um campo de lírios e dos seus braços com cisnes. A mulher cantada pelos trovadores era, via de regra, de uma condição social acima da deles, as cantigas eram feitas para as damas palacianas. A brancura da pele das amadas é uma marca dessa dama nobre. No poema há, ainda, os elogios a respeito do campo subjetivo da amada, nos versos “Teus sentimentos são poesia/ Teus sofrimentos melancolia”. Para os trovadores a contemplação da amada se dava em todas as instâncias, o amor para os trovadores era o amor integral, amava-se o corpo e o espírito da dama. É interessante pensarmos na presença do olhar no poema de Vinicius de Moraes. Inicialmente, todo o amor do eu-lírico acontece através da mera visão de sua amada, ele vê a dama passando e a deseja incondicionalmente. Nas cantigas trovadorescas a presença do olhar é muito importante como um sinal do amor. No tratado O colar e a pomba, composto pelo cordovês Abu Muhammad „Ali Ibn Hazm, observamos sobre esse primeiro sinal do amor: O amor tem sinais que o homem sagaz persegue e que um observador inteligente pode descobrir. O primeiro é a insistência do olhar, pois os olhos são a grande porta da alma, que permite ver o seu interior, revelando a sua intimidade e denunciando os seus segredos. Verás, assim, que o amante, quando olha, não pestaneja; desloca o seu olhar para onde se desloca o ser amado, afasta-se para onde ele se afasta e inclina-se para onde ele se inclina, a exemplo do camaleão com o sol. (MONGELLI, 2003, p. 48) 38 Apesar de no poema A mulher que passa não podermos observar a descrição dos olhos da amada, é de fundamental importância a presença do olhar. O primeiro sentido ativado pelo amor, o primeiro canal pelo qual se percebe a presença da amada, são os olhos. Na poesia existe a repetição do verso “Meu Deus, eu quero a mulher que passa”, aparecendo em três momentos durante o poema. Apesar da evocação a Deus nesses versos não entendemos este fato como um intertexto religioso. O eu-lírico utiliza “Meu Deus” como uma força de expressão cotidiana, muito presente na fala. Nas cantigas trovadorescas também é recorrente essa citação de Deus destituída do contexto religioso, assim como observa Maria da Conceição Vilhena (1977): A frequência do termo „Deus‟ nas cantigas medievais não traduz de modo algum a fé ou a esperança do apaixonado na proteção divina. „Que Deus me perdon‟ ou „Ai Deus‟ são expressões próprias duma civilização cristã, mas que perderam todo o conteúdo semântico. O trovador emprega-as constantemente, de uma maneira automática, sem que espere a intervenção divina na solução de sua „coita‟ de amor. (VILHENA, 1975, p. 64) Outro diálogo possível com o cantar de amor é o tema que SPINA (1956) destaca, o da dame sans merci, a incorrespondência da mulher amada. Podemos observar em alguns versos durante o poema que o amor dedicado pelo eu-lírico não é correspondido. Nos versos “Por que me faltas, se te procuro?/ Por que me odeias quando te juro? (...) Por que não enches a minha vida?/ Por que não voltas, mulher querida/ Sempre perdida, nunca encontrada?” A amada mulher que passa não corresponde às expectativas amorosas do eu-lírico. Podemos observar, também, a referida ocorrência neste trecho da “cantiga de amor” de Martim Soares: Senhor fremosa, pois me non queredes creer a coita'n que me ten Amor, por meu mal é que tan ben parecedes e por meu mal vos filhei por senhor, e por meu mal tan muito ben oí dizer de vós, e por meu mal vos vi: pois meu mal é quanto ben vós havedes. E pois vos vós da coita non nembrades nen do afán que mi o Amor faz sofrer, 39 por meu mal vivo máis ca vós cuidades, e por meu mal me fezo Deus nacer e por meu mal mon morrí u cuidei como vos viss', e por meu mal fiquei vivo, pois vós por meu mal ren non dades. Desta coita en que me vós tẽedes, en que hoj'eu vivo tan sen sabor, que farei eu, pois mi a vós non creedes? Que farei eu, cativo pecador? Que farei eu, vivendo sempre assí? Que farei eu, que mal día nací? Que farei eu, pois me vós non valedes? (CBN 158, CA 46.) Maleval (1999) aponta um desenvolvimento sentimental muito presente no trovadorismo ibérico, a relação do ver/amar/sofrer. Essa relação estabelecida entre o eulírico e sua amada nas cantigas medievais também está presente no poema analisado. Já no primeiro verso estabelece-se o ver e o amar. “Meu Deus, eu quero a mulher que passa.” Ao se deparar com aquela mulher o eu-lírico vê-se entregue ao amor. O poema desenvolve-se com a declaração de amor para a dama, o elogio constante às suas virtudes, seu dorso, seus sentimentos. O segundo estágio culmina no verso 15 “Como te adoro, mulher que passas”. A partir de então o eu-lírico entra no terceiro estágio, o sofrimento que advém da não reciprocidade do sentimento, ou pelo menos da falta de certeza dessa reciprocidade. Após o décimo quinto verso o poema se reveza entre o amor do eu-lírico e o sofrimento que este amor o causa. O sofrer do amante parece ter a grandeza proporcional ao tamanho deste amor. O eu-lírico quer, desesperadamente, a mulher que passa, e seu desespero é imenso por não tê-la. Há no texto de Vinicius de Moraes, ainda, a construção de um jogo antitético que, apesar de não ser um traço especificamente neotrovadoresco, não poderíamos deixar de citar. Durante todo o poema podemos observar a ocorrência das antíteses, como nos versos: “Que me sacias e suplicias (...) Dentro das noites, dentro dos dias/ Por que me faltas, se te procuro?” No verso “Por que me odeias quando te juro”, por exemplo, podemos observar uma quebra na obviedade da antítese, uma vez que o desencadeamento lógico seria ódio e amor. O jogo antitético acaba tendo duas funções principais na construção do poema. A primeira é a descrição final da amada, situando-a a partir da dualidade: “Que fica e passa, que pacifica/ Que é tanto pura como devassa/ Que boia leve como a cortiça/ E 40 tem raízes como a fumaça.”. A segunda função é expor, liricamente, a perturbação do mundo do eu-lírico, causada pela mulher que passa. Tendo em vista a importante presença da antítese para a construção do poema, podemos afirmar que uma das chaves de leitura poderia ser a do Neobarroco8, porém não é o objetivo da nossa análise se aprofundar nesse aspecto. Por fim, a polissemia é uma característica bem marcada da linguagem poética, a possibilidade de múltiplos entendimentos a partir do mesmo texto é uma grata característica da poesia, como afirma Pound no seu livro ABC da literatura: “literatura é linguagem carregada de significado” (2006, p. 32). A partir disso se estabelece no poema a dúvida sobre a mulher que passa. Esse passar pode ser entendido de forma literal, uma pessoa que passa pela outra, ou um passar mais profundo na vida do eulírico. Podemos compreender o poema a partir de um “amor à primeira vista”, o eulírico se apaixona de forma devastadora pela mulher que havia passado. Porém alguns versos durante o poema evidenciam uma presença anterior daquela mulher na vida do eu-lírico, por exemplo: “Que vens e passas, que me sacias/ Dentro das noites, dentro dos dias!” ou “Por que não voltas à minha vida?”. Uma possibilidade para interpretarmos esses versos é a hipérbole do eu-lírico a declamar seus sentimentos, sendo toda a vida do amante o momento em que a mulher passa por ele. Há também a possibilidade de ser uma mulher que se relacionou durante um período de tempo com o eu-lírico e depois se foi de sua vida deixando-o no sofrimento. Essa interpretação se fixaria nos versos em que a presença da amada mostra-se anterior ao tempo do poema. Existe, ainda, o entendimento de que essa mulher que passa seja uma iconização das várias mulheres que passaram, uma representante dos amores de uma vida. É interessante atentarmos para o uso do tempo verbal de “passar”, não é a mulher que passou, é a mulher que passa, permanece passando. Mesmo que seja um amor antigo, ele ainda não se foi do sentimento do amante. 8 Sobre isso ver: SARDUY, Severo. O barroco e o neobarroco. In: MORENO, César Fernández (org.) América Látina em sua literatura. Tradução de Luiz João Gaio. São Paulo: Perspectiva (Col. Estudos, v. 52). 1979. 41 O quarteto final evidencia o caráter evanescente da amada, uma mulher que fica e passa. “Que boia leve como a cortiça/ E tem raízes como a fumaça.” Uma mulher que segue seu “caminho de passar”, sem prender-se, que não desenvolve raiz alguma. No poema analisado podemos perceber algumas semelhanças entre o amor das cantigas trovadorescas e o amor dedicado às mulheres que passam. O elogio à amada e o sofrimento amoroso são essenciais para o poema de Vinicius. A seguir analisaremos as marcas da cantiga de amigo no poema A anunciação. 3.4. A anunciação: o cantar feminino de Vinicius de Moraes O poema A anunciação, presente na Nova antologia poética (2003), é um dos diversos textos de Vinicius de Moraes em que é possível encontrar as ressonâncias da poesia trovadoresca em sua obra. Neste poema, em particular, analisaremos suas similitudes com a cantiga de amigo trovadoresca. Vamos ao poema: A anunciação 1 Virgem! filha minha 2 De onde vens assim 3 Tão suja de terra 4 Cheirando a jasmim 5 A saia com mancha 6 De flor carmesim 7 E os brincos da orelha 8 Fazendo tlintlin? 9 Minha mãe querida 10 Venho do jardim 11 Onde a olhar o céu 12 Fui, adormeci. 13 Quando despertei 14 Cheirava a jasmim 15 Que um anjo esfolhava 16 Por cima de mim... No poema acima fica visível o diálogo entre duas vozes femininas, o que nos remete, imediatamente, à cantiga de amigo, “gênero poético cultivado pelos trovadores, cuja principal característica é a expressão dos sentimentos através de um eu-lírico feminino” (CALADO. 2000 p 24). Os conceitos desse gênero poético serão 42 desenvolvidos, mais detalhadamente, durante a análise do poema. No texto de Vinicius de Moraes é evidente um diálogo entre a donzela e sua mãe. Sobre os diálogos presentes nessas cantigas afirma Calado: Num universo estritamente feminino, longe inclusive da figura paterna, a Cantiga de Amigo se desenvolve com o desabafo amoroso de uma donzela, ora a uma amiga ou irmã; ora à sua mãe, que nem sempre é conivente com ela; ora ao próprio namorado ou amante, numa espécie de debate amoroso; algumas vezes, o desabafo é dirigido às ondas do mar ou ao rio. (CALADO. 2000, p 25) O diálogo entre a donzela e uma confidente é bastante comum entre as cantigas de amigo, como afirma Dronke (1978, p 111): “Es especialmente em las canciones que la muchacha dirige a su confidente, su madre, donde puede verse hasta qué punto de complicación porían llegar sus sentimientos.” No plano formal podemos atentar para a regularidade dos versos, ritmo, métrica e rima. É notável sua cadência quando o poema é lido em voz alta. Essa musicalidade é resultante da alternância regular entre as sílabas fortes e fracas. Não menos responsável por isso é a rima presente em todos os versos pares. O poema é formado, desde o título, por versos de cinco sílabas, o que nos remete à poesia provençal, como afirma Goldstein (2006, p33): “O verso de cinco sílabas, ou redondilha menor já era empregado na Idade Média pelos poetas portugueses nas cantigas de amor e de amigo.” A semelhança formal com o cancioneiro popular pode ser percebida se compararmos o poema com algumas marcas desse gênero, como a presença da rima soante apenas em versos alternados; estrutura binária do verso, onde cada dupla de versos formam, sintaticamente, uma só frase. (WOENSEL, VIANA, 1998, p. 126.) Uma característica muito presente no trovadorismo é a ligação com a religiosidade. No poema analisado existe um discurso religioso que atravessa o texto. O título “A anunciação” remete, inevitavelmente, à visita do anjo Gabriel à Maria, avisando-a de sua gravidez. No primeiro verso, a mãe diz “Virgem!” que pode ser analisado, em sua pluralidade de sentido, como uma expressão exclamativa ou como uma alusão à Maria, o que muito se adequa à poesia provençal, pois muitas vezes a 43 exaltação da mulher fora canalizada para o símbolo religioso da virgem; sobre isso desenvolve Spina: A musa trovadoresca passa a ser dirigida pelo extra oficial da Igreja, derivando então para o lirismo contemplativo da Virgem; as condições favoreciam essa derivação, pois o serviço cavalheiresco, humilde e genuflexo, que prestava o vassalo, o home-lige, diante de sua dama, tinha o seu correspondente religioso na genuflexão dos fiéis diante da virgem. (SPINA, 1956. p 23) As referências à religiosidade cristã aparecem, por exemplo, com o surgimento da figura do anjo no 15º verso. Porém nesse poema os termos referentes à religiosidade não têm a mesma função daqueles frequentemente encontrados nas cantigas de amor, com uma forma de exaltação da virgem Maria. Podemos pensar aqui que o termo “Virgem” funciona, antes, como intertexto para antecipar ao leitor questões relativas à virgindade da dama. Tais insinuações vão se intensificando ao longo do poema através de imagens que sugerem uma possível defloração da donzela. Há no poema uma forte presença da natureza, em vários versos espalham-se palavras como terra; jasmim; flor; jardim e céu. Na poesia provençal, não apenas nas cantigas de amigo, como também nas cantigas de amor, é muito presente a correspondência entre a dama e a natureza, seja ao seu estado emocional, seja à caracterização da sua interlocutora, seja do próprio eu-lírico. O poema estrutura-se em duas partes, os primeiros oito versos constituem a fala da mãe e os versos seguintes correspondem à resposta da filha. A mãe, preocupada, pergunta onde estivera a filha que chega agora “tão suja de terra/cheirando a jasmim/A saia com mancha/ de flor carmesim”. Pensando na forma que a mãe descreve o estado da filha, o jasmim é, segundo o dicionário Aurélio (2000), “Flor alva, perfumadíssima”; e o carmesim9, “Cor carmesim, associada pela sua intensidade à cor do pecado, como nos aponta a passagem bíblica no livro de Isaias 1:18: `Vinde, pois, e arrazoemos.` -diz o Senhor-` `Ainda que vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve ; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã.”. Então, a filha volta à presença da mãe, cheirando a uma flor esbranquiçada, toda suja de 9 Ver: http://www.bibliaonline.com.br/acf/is/ 44 terra e com uma mancha vermelha no vestido, estabelece-se, então, a dúvida sobre a desfloração da virgem. Na segunda metade do poema a filha responde à mãe onde estivera durante esse tempo: “Venho do jardim/Onde a olhar o céu/Fui, adormeci./Quando despertei/Cheirava a jasmim/Que um anjo esfolhava/ Por cima de mim...”. A amiga relata à mãe que quando acordou um anjo esfolhava jasmim por cima dela. A flor esbranquiçada, utilizada tanto pela mãe quanto pela filha, alude, provavelmente, ao sêmen. Aqui o anjo da anunciação não apenas comunica a gravidez da virgem, como no texto bíblico, mas uma metáfora possível é a de que o anjo seja o protagonista da possível desfloração da donzela. Outro fato que merece atenção nesse contexto da religiosidade é o lugar em que a “donzela” afirma ter estado com o anjo. No décimo verso, a filha declara que vem do “jardim”; dentro da construção do poema podemos, perfeitamente, analisar esse jardim como uma referência ao Eden, sendo assim, ao pecado original. Essa interpretação vai ao encontro da desfloração da virgem. A importância do jardim, ou pomar, não fica apenas no intertexto religioso. Na literatura cortês o jardim é o espaço das delícias, de sensualidade, do encontro dos amantes, local fechado, secreto. Sobre a representação desse segundo jardim, afirma Ronchetti: Na descrição poética, o jardim é, então, um espaço fechado em que se entra por uma porta, circundado por um muro que separa o que está dentro do que está fora, a realidade exterior e a interior: o espaço do jardim é um fresco alegórico de um lugar sem tempo, lugar da eterna primavera, sempre cheio de frutos e flores que não conhecem a caducidade. (RONCHETTI, 2009, p 269) O jardim ocupa, no poema, uma função de visível polissemia, a insinuação da desfloração da donzela dialoga com o intertexto religioso que se forma desde o título, remetendo, imediatamente, à mística cristã da Virgem mãe de Deus, que fora assim anunciada por um anjo. Como foi possível observar durante a análise, o poema pode ser lido como um texto Neotrovadoresco, o que fica claro tanto do ponto de vista formal quanto temático. Dentre as diversas fontes que o poeta Vinicius de Moraes nutriu sua obra poética uma delas foi, sem dúvidas, a poesia provençal. 45 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS Vinicius de Moraes tem uma respeitável obra na poesia e na canção popular. O poeta tem sua obra marcada pela mudança, pela diversidade. José Castello, na biografia Vinicius de Moraes, O poeta da paixão (1994, p. 20) afirma que Vinicius foi rejuvenescendo com os anos. O jovem conservador e direitista passou a ser um ateu de esquerda e terminou a vida confortável com o misticismo dos Orixás. A sua obra, sem dúvidas, reflete estas mudanças ideológicas. Um homem que viveu e produziu entre o popular e o erudito, que entre o atrito desses dois mundos fez sua obra poético-musical. Existem seus poemas metafísicos, outros de amor platônico, alguns de desejo sexual avassalador, mais uns tantos atentados para um vazio comum a Beckett e ainda aqueles em que a crítica social ganha força no lirismo do poeta. Entendemos que uma face do camaleônico Vinicius de Moraes é a do trovador. Além de o autor fazer poesias para serem cantadas, seus versos promovem um diálogo possível com a lírica trovadoresca. O amor integral dos trovadores encontra eco no Amor Total de Vinicius. A devoção do eu-lírico à amada, o elogio àquela mulher acima de todas as outras, a entrega incondicional ao amor como forma de vida, tal qual o código dos trovadores. Vinicius de Moraes é um importante poeta do Brasil, porém sua obra não vem sendo muito estudada nas universidades brasileira. Houve durante alguns anos uma crítica depreciativa de sua obra, que, no nosso entendimento, foi muito vinculada à ligação do poeta com a música popular, uma arte menor para uma parte dos críticos. Acreditamos que Vinicius de Moraes é uma leitura vital para quem quer conhecer poesia brasileira, como leitor, como crítico ou como acadêmico. O “poetinha” só serve para descrever Vinicius como reciprocidade do carinho que ele tinha com seus “parceirinhos”, que era como o poeta chamava os seus parceiros de composição. Antonio Candido, no documentário “Vinicius” dirigido por Miguel Faria Jr., afirma: “Um poeta que é autor de poemas como A balada do mangue, por exemplo, só pode ser considerado um grande poeta”. O presente trabalho buscou analisar algumas marcas da lírica trovadoresca na obra de Vinicius de Moraes a partir da analise dos poemas A mulher que passa e A 47 anunciação. Acreditamos que esta pesquisa apresenta-se de forma exitosa no que pretendíamos, dentro do tempo escasso e na dimensão possível nesse formato de trabalho, de modo que é uma possível contribuição para os estudos críticos sobre a obra de Vinicius de Moraes e também sobre o Neotrovadorismo na poesia brasileira moderna. 48 REFERÊNCIAS BARBALHO, Alexandre. Estado, mídia e identidade: políticas de cultura no Nordeste contemporâneo. ALCEU – v.4 – n.8 – p. 156 a 167 – jan./jun. 2004. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Edição biligue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. CALADO, Luciana Eleonora de Freitas. Chico Buarque: um moderno trovador. João Pessoa: Ideia, 2000. CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1961. CASTELLO, José. Vinicius de Moraes: o poeta da paixão, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. DRONKE, Peter. La lírica em la Edad Media. Barcelona: Seix Barral, 1978. GIL, Daniel Vasilenskas. A poesia esparsa de Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2009. GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática (col. Principios, v. 6). 2007. HOMEM, Wagner, DE LA ROSA, Bruno. História das canções. São Paulo: Leya, 2013. LEONARDO, Stella. Amanhecência. Rio de Janeiro: Aguilar; Brasília: INL, 1974. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e poesia. 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