CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO CURSO DE LETRAS FLÁVIA DANIELLY NASCIMENTO DOS SANTOS GIULLIANE SABRINA BUENO AMBRÓZIO PRECONCEITO LINGUÍSTICO E SUA PRESENÇA NO CONTEXTO ATUAL DE ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS, ESTUDO E PESQUISA ENGENHEIRO COELHO 2013 FLÁVIA DANIELLY NASCIMENTO DOS SANTOS GIULLIANE SABRINA BUENO AMBRÓZIO PRECONCEITO LINGUÍSTICO E SUA PRESENÇA NO CONTEXTO ATUAL DE ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS, ESTUDO E PESQUISA Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo do curso de Letras, sob orientação do Prof. Ms. Joubert Castro Perez. ENGENHEIRO COELHO 2013 Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo, do curso de Letras apresentado e aprovado em 24 de novembro de 2013. ______________________________________________________________ Orientador: Prof° Ms. Joubert Castro Perez. ________________________________________________________________ Segunda leitora: Profª Drª Ana Maria de Moura Schäffer Dedicamos este trabalho a todos os linguistas e sociolinguistas que se dedicam a seu trabalho e através de sua produção acadêmica têm contribuído com a conscientização da sociedade linguístico. em relação ao preconceito AGRADECIMENTOS Primeiramente queremos agradecer a Deus, o Mantenedor de nossa vida, e Criador da língua. Agradecemos a nossas famílias, que desde o começo dessa jornada nos deram apoio e incentivo para chegarmos até aqui. Não podemos deixar de agradecer ao Prof. Joubert que nos ajudou muito para a conclusão deste trabalho, e também ao Prof. Edley que também deu a sua contribuição neste projeto. Queremos agradecer a nossos professores que dedicam sua vida ao aprendizado e formação de educadores, obrigada por acrescentar conhecimentos e experiências em nossa vida. Agradecemos também aos nossos colegas de classe que nos acompanhou durante esses anos, e nos deram o privilégio de sua preciosa amizade. Agradecemos ao Centro Universitário de São Paulo, por proporcionar a tantas pessoas a oportunidade de ter uma formação acadêmica. Que Deus continue usando vocês para abençoar a vida de muitos que ainda procuram por essa oportunidade. “A ignorância não fica tão distante da verdade quanto o preconceito.” Denis Diderot RESUMO Este trabalho tem o objetivo de compreender o que pesquisadores da língua têm discutido sobre o preconceito linguístico. Procuramos lançar um olhar investigativo sobre o preconceito linguístico presente na sociedade e nas escolas e sobre as causas e consequências que tal comportamento tem trazido à civilização. O fio norteador do trabalho é o estudo da língua em diversos contextos, como ela é abordada nas escolas, na sociedade e na mídia. Fundamentamos-nos em trabalhos do sociolinguista Marcos Bagno, e de linguistas como Sírio Possenti, Maria Scherre etc. autores, linguistas e sociolinguistas que têm tratado desse problema a partir de uma ideia libertária da língua, não descartando, porém, a importância da norma culta. A problemática que incentivou esta pesquisa foi a nossa percepção despertada pelas pesquisas e leituras realizadas, da falta de compreensão das pessoas por não saberem distinguir a diferença entre a língua e a norma culta. É essa falta de compreensão que tem contribuído para a desconstrução da cultura e do patrimônio linguístico de diversos grupos sociais que têm na língua sua identidade. É também o que tem prejudicado a inclusão social dessas pessoas em outras sociedades ou comunidades. Logo, a hipótese levantada foi a de que o preconceito em relação à “língua viva” se deve à intolerância das pessoas com relação às variações da língua e também devido à generalização e imposição da norma culta como uma regra tanto para a linguagem escrita quanto para linguagem falada. Palavras Chave: Preconceito linguístico; Norma culta; Variações; Intolerância. ABSTRACT This work aims to understand what researchers of the language have discussed about the linguistic prejudice and to investigate. Language prejudice in society and in schools, and about the causes and consequences that such a prejudice such has brought to civilization. The guiding theme of the research is the study of language in several contexts, and how it is discussed as it is discussed in schools, in society and in media.We based our research on the work sociolinguist Marcos Bagno, and linguists as Sírio Possenti, Maria Scherre etc; authors, linguists and sociolinguists who have dealt with the problem from a libertarian idea of language, but rejecting the standard norms. The problem that encouraged this research was our perception from the researches and readings, of the lack of understanding about how to differentiate between language and standard norms. And we believe that it is this lack of understanding that has contributed to the destruction of culture and linguistic heritage of several social groups who have in the language their identity. It's also these facts which have damaged the social inclusion of people in other societies or communities. Therefore, our hypothesis was that the prejudice against the "living language" is due to people's intolerance regarding to the language and also because of the generalization and imposition of the standard norms as a rule both for written language as for spoken language. Key words: Linguistic prejudice; Standard norms; Variations; Intolerance. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 10 2 PRECONCEITO LINGUÍSTICO E SUA PRESENÇA NO CONTEXTO SOCIAL ...................... 12 3 PRECONCEITO LINGUÍSTICO E SUAS RELAÇÕES COM A MÍDIA....................................... 18 4 NORMA CULTA, ENSINO E PRECONCEITO........................................................................... 23 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 30 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................... 32 10 1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa pretende abordar um assunto considerado polêmico nos dias de hoje, pois se trata de um tema ainda pouco discutido com a sociedade, o que acaba favorecendo, consequentemente, a circulação opiniões relacionadas ao senso comum, desprovidas de rigor e fundamento teórico. Existem diversos motivos para se discutir o preconceito linguístico, porém o nosso foco estará na forma como ele se manifesta socialmente, por meio de ideias muitas vezes distorcidas transmitidas aos cidadãos e pelos cidadãos que fazem o uso diário da língua. Entre as consequências da propagação de tais distorções, podem ser mencionados o preconceito contra a fala do outro e a banalização da “língua viva”. Para a discussão do assunto usaremos como base teórica principalmente os trabalhos de Marcos Bagno (2005; 2007), Sírio Possenti (1996; 2009) e Maria Scherre (2005), sobre os motivos dessa polêmica gerada no meio linguístico. Podemos inicialmente indagar se existem formas menos repressoras de abordar o preconceito linguístico sem que se gere mais preconceito ou se defenda a ideia de que a língua culta não é importante e não deve ser ensinada nas escolas. Diante desta problemática, levantamos a hipótese de que essa falta de compreensão acerca da verdadeira língua é que provoca a intolerância da sociedade quanto às variações linguísticas e a imposição da norma culta, tanto na escrita quanto na fala. Deixemos que a opinião do linguista Possenti esclareça este fato: Eu acuso os intelectuais brasileiros de [...] serem absolutamente incapazes de compreender e de aceitar que haja variação linguística, dialetos regionais, sociais, profissionais etc., por mais que esta variação seja mais evidente do que todas as outras, e detectável em todos os lugares do mundo, em todas as línguas do mundo (POSSENTI, 2009, p. 13). Para tentarmos mostrar a veracidade desta hipótese discorreremos durante esta pesquisa sobre os problemas sociais causados com o uso da variedade popular em diversos contextos. Abordaremos o tema a partir dos acontecimentos sociais, discorrendo sobre como a sociedade tem tratado essa temática, como tem reagido mesmo com o surgimento de conceitos que refutam as variações linguísticas. O próximo passo será analisar os fatos expostos na mídia sobre o preconceito linguístico, levando em 11 consideração todos os privilégios que a mídia tem, devido ao aumento da tecnologia, dos meios de comunicação e do uso frequente que as pessoas fazem deles hoje. Concluiremos o assunto abordando o que essas concepções midiáticas e sociais tem refletido no ensino-aprendizagem, visto que é um ambiente privilegiado onde as mudanças desejáveis podem acontecer. Dentre os objetivos específicos, tentaremos discutir a autoridade que o preconceito tem sobre os sujeitos de linguagem e à linguagem, discorrer sobre as variações linguísticas como resultado das relações que os sujeitos têm com o meio em que vivem, sua condição social, seu grau de escolaridade, e analisar também dentro desses parâmetros o papel da mídia, dos meios de comunicação de massa, como produtores e reprodutores do preconceito linguístico. Este aspecto nos chamou atenção, pois reparamos que de todos os preconceitos combatidos, o preconceito linguístico nem sequer é reconhecido como tal. A população ignora o problema que, ao invés de ser reprovado, cresce disfarçadamente no meio social. Se o problema sequer é reconhecido não admira que os sujeitos de linguagem não saibam lidar com o preconceito linguístico. Quando reproduzem consciente ou inconscientemente o preconceito, todos os que estão fora dos padrões da norma culta são qualificados como indivíduos sem prestígio, motivando a exclusão social. Em situações nas quais lutam para reprovar esse preconceito não têm recursos ou argumentos suficientes para contestar tais atos preconceituosos. Assim, o assunto acaba sendo tratado quase sempre superficialmente. No próximo capitulo veremos como o preconceito linguístico se manifesta no meio social; como a sociedade tem reagido com o surgimento das variações linguísticas; quais são as consequências que a má compreensão da língua tem causado em alguns contextos. 12 2 PRECONCEITO LINGUÍSTICO E SUA PRESENÇA NO CONTEXTO SOCIAL De acordo com o dicionário Aurélio (1999, p. 1625), preconceito é: “Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; ideia preconcebida. 2. Julgamento ou opinião formada sem levar em conta o fato que os conteste; prejuízo.” Não seria honesto desconhecer que a noção de preconceito exposta acima está associada com raça, sexo, religião e, também, lamentavelmente, com língua. Para piorar o quadro, sabe-se que de todos os preconceitos combatidos na sociedade o preconceito linguístico sequer é reconhecido como tal. Vejamos o que Bagno (2005) diz sobre essa desconsideração do preconceito linguístico: Parece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma forte tendência a lutar contra as mais variadas formas de preconceito, a mostrar que eles não têm nenhum fundamento racional, nenhuma justificativa, e que são apenas o resultado da ignorância, da intolerância ou da manipulação ideológica. Infelizmente, porém, essa tendência não tem atingido um tipo de preconceito muito comum na sociedade brasileira: o preconceito linguístico. Muito pelo contrário, o que vemos é esse preconceito ser alimentado diariamente em programas de televisão e de rádio, em colunas de jornal e revista, em livros e manuais que pretendem ensinar o que é “certo” e o que é “errado”, sem falar, é claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da língua: a gramática normativa e os livros didáticos (BAGNO, 2005, p.13, grifo do autor). Não causa nenhum espanto que a língua mais uma vez sofra com o desprezo social. De acordo com Possenti (2009), a atitude preconceituosa em relação à língua existe, porém a sociedade como um todo ainda não trata do assunto como preconceito. Isso pode estar associado a ideias arraigadas no senso comum. No decorrer deste capítulo analisaremos alguns dos mitos apresentados por Bagno (2005) em seu livro “Preconceito linguístico: o que é, como se faz”, para compreendermos o poder do preconceito linguístico sobre o corpo social, mesmo sendo de todos os preconceitos o menos discutido. Bagno introduz sua apresentação de alguns mitos que circulam na sociedade nos seguintes termos: 13 O preconceito linguístico fica bastante claro numa série de afirmações que já fazem parte da imagem (negativa) que o brasileiro tem de si mesmo e da língua falada por aqui. Outras afirmações são bem intencionadas, mas mesmo assim compõem uma espécie de “preconceito positivo”, que também se afasta da realidade (BAGNO, 2007, p.13). É de se levar em conta que realmente existe essa “imagem negativa” dita por Bagno, do próprio usuário para com a língua, isso se deve ao comodismo e talvez à falta de orgulho de nosso patrimônio cultural. Explicaria inclusive o conceito cultural deturpado que exportamos de nós aos estrangeiros, como bem diz Lya Luft, o de que o Brasil seja um país de carnaval, futebol e índios apenas, mas não de cultura literária, acadêmica, ou seja, de valorização do trabalho intelectual sobre a linguagem. Valorizar o trabalho intelectual sobre a linguagem, contudo, não significa reduzir ao ensino do que Celso Luft chama de “esqueleto da língua”: A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. [...] É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua, mas sozinha não diz nada, não tem futuro (LUFT, 1994, p. 22). É justamente por isso que devemos combater os mitos aceitos socialmente em relação à língua, que frequentemente se espelham num esqueleto de língua presente até em línguas mortas. Devemos repudiar opiniões inconsistentes sobre fenômenos de linguagem, ou seja, que desconsideram que as manifestações linguísticas num país tão heterogêneo como o Brasil não podem ser julgadas por critérios que valem só para o “esqueleto” de uma língua viva, sempre sujeita a transformações. Tem relação com o que acabamos de dizer, o primeiro mito apresentado por Bagno: “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”, para logo em seguida acrescentar: Ora, a verdade é que no Brasil, embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português, esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, não só por causa da grande extensão territorial do país - que gera as diferenças regionais, bastante 14 conhecidas e também vítimas, algumas delas, de muito preconceito (BAGNO, 2005, p.16). Para o autor este é o pior dos mitos que compõe a mitologia do preconceito linguístico, e afeta a visão crítica até mesmo de intelectuais. É de nossa compreensão que a variedade da linguagem, de fato existe e nada mais é do que vários modos de se falar a mesma língua. De acordo com a definição do autor, é esse mito que gera os preconceitos no contexto regional, como o fato de a sociedade rotular os falantes de origem nordestina, por exemplo, como indivíduos atrasados, mal instruídos, sem prestigio, etc. Bagno mostra seu desconforto quanto a este ponto de vista preconceituoso e aproveita a oportunidade de desenvolver este assunto ao tratar de outro mito, a saber, o de que “As pessoas instrução falam tudo errado”: Como se vê, do mesmo modo como existe o preconceito contra a fala de determinadas classes sociais, também existe o preconceito contra a fala característica de certas regiões. É um verdadeiro acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da rede Globo. Todo personagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador. No plano linguístico, atores não nordestinos expressam-se num arremedo de língua que não é falada em lugar nenhum do Brasil, muito menos no Nordeste [...]. Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão (BAGNO, 2005, p.40, grifo nosso). Não é difícil perceber que o preconceito linguístico acarreta, assim, problemas sociais como a exclusão social e marginalização, já que prevalece o senso comum de que “pessoas sem instrução falam tudo errado”. A existência desse mito fortalece a hipótese inicial de que uma concepção errada de língua, baseada na gramática escolar e no dicionário apenas, produz preconceito e, agora podemos acrescentar, depreciação, exclusão e marginalização social. Contudo, se a questão for estudada fielmente, pode-se notar que as falas consideradas “erradas” são, na verdade exemplos de fenômenos fonéticos que, de acordo com Bagno (2005), contribuem para a formação da própria norma padrão. 15 Qualquer manifestação linguística que escape desse triangulo escolagramática- dicionário, é considerada, sob a ótica do preconceito linguístico, “errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente”, e não é raro a gente ouvir que “ isso não é português”(BAGNO, 2005, p.37). O autor continua dizendo sobre a suposta colocação de erros que na verdade fazem parte de um fenômeno linguístico conhecido como fonética: Ora, estudando cientificamente a questão, é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de “atraso mental” dos falantes “ignorante” do português, mas simplesmente de um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão (BAGNO, 2005, p.37). Realmente não é raro que pessoas julguem o que é diferente em matéria de linguagem, uma vez que tudo o que envolve cultura é aceito como parte de um patrimônio, inclusive a língua vista como expressão de cultura em sua beleza e diversidade. Conhecer a história da língua, sua tradição, sua riqueza é muito importante. Isso não justifica, contudo, seu uso como instrumento de exclusão social, ferramenta de poder e superioridade. O “perigo” verdadeiro não está nas regras da língua, de acordo com Bagno, está no “uso social perverso que se faz do domínio desse suposto saber”: Dizer em voz alta que as formas não normatizadas também estão corretas é impedir que o conhecimento da norma tradicional seja usado como um instrumento de perseguição, de discriminação, de humilhação do outro, ou como uma espécie de saber esotérico, reservado para alguns iluminados de inteligência superior (BAGNO, 2007, p.160, grifo do autor). Se é verdade que a língua deve ser admirada pela sua beleza e diversidade, é verdade também, infelizmente, que, ao invés de usá-la a seu favor, o próprio homem está usando contra si mesmo, transformando-a, como diz o autor, em instrumento de repressão, de discriminação por parte dos que se consideram superiores. Visto que é importante conhecermos a nossa língua e fazermos bom uso dela, devemos nos perguntar se é legítima ou não a intolerância das pessoas quanto às variações da língua. A linguagem é um poderoso instrumento de comunicação e, assim como os indivíduos, ela também está exposta às mudanças sociais e não está em nossas mãos individualmente mudar esse fato. A língua muda e não podemos impedir isso. Uma 16 atitude saudável diante das mudanças deveria ser a de acompanhar o processo de mudança, aceitando-o como sinal de que, assim como a vida, a língua muda porque seu uso ocorre nos eventos que fazem a história. Por isso devemos evitar ao máximo reforçar concepções que promovam o preconceito linguístico. Bagno, depois de contestar manifestações preconceituosas que encontram eco na sociedade, sugere uma mudança de paradigma em que o preconceito seja substituído pelo convívio tranquilo entre diversos modos de falar e de significar os acontecimentos da vida: Já passou a hora de todas essas regras novas (e muitas outras que não listamos aqui) serem consideradas tão corretas, elegantes e bem estruturadas quanto as regras previstas e prescritas pela tradição gramatical [...] temos que lutar, sim, é para permitir o convívio tranquilo e tolerante entre as muitas formas de se dizer a mesma coisa, reconhecendo nelas uma riqueza da nossa língua e, por conseguinte, da nossa cultura e da nossa vida pessoal (BAGNO, 2007, p.159, grifo do autor). Outro mito que circula socialmente e acaba gerando preconceito tem a ver com duas diferentes formas em que a comunicação pela língua acontece: a língua escrita e a língua falada. Bagno o resume assim: “O certo é falar assim porque se escreve assim”; e, a seguir, observa: Infelizmente, existe uma tendência (mais preconceito!) muito forte no ensino da língua de querer obrigar o aluno a pronunciar “do jeito que se escreve”, como se essa fosse a única maneira “certa” de falar português. [...] Essa supervalorização da língua escrita combinada com o desprezo da língua falada é um preconceito que data de antes de Cristo (BAGNO, 2005, p.49). A confusão entre essas duas modalidades linguísticas, tem gerado "erros" que não seriam considerados assim, caso a escrita com sua fixidez nos dicionários e gramáticas não fosse mais valorizada que a fala. Esses "erros" seriam, talvez, menos visíveis e notórios se não houvesse a imposição da norma padrão como instrumento de uniformização, tornando a escrita homogênea e estabelecendo uma forma única de grafar e pronunciar as palavras. Tornar, porém, a linguagem escrita um espelho para a linguagem falada reforça o preconceito e marginaliza todos aqueles que não dominam a 17 norma padrão. Além disso, confere às manifestações linguísticas certo "artificialismo", já que consideram a língua como imune a variações. Bagno associa esse problema a um equívoco analítico dos primeiros gramáticos: Ainda na questão da variação, os primeiros gramáticos, comparando a língua escrita dos grandes escritores do passado e a língua falada espontânea, concluíram que a língua falada era caótica, sem regras, ilógica, e que somente a língua escrita literária merecia ser estudada, analisada e servir de base para o modelo do “bom uso” do idioma. Essa separação rígida entre fala e escrita é rejeitada pelos estudos linguísticos contemporâneos, mas continua viva na mentalidade da grande maioria das pessoas (BAGNO, 2007, p.69, grifo nosso). De acordo com Bagno (2007), esses estudos associados à Gramática Tradicional começaram a ser refutados no século XIX, junto com o inicio dos primeiros estudos linguísticos de caráter científico e foram contestadas pela ciência contemporânea. Apesar disso, porém, a visão preconceituosa de determinados comportamentos linguísticos permanece na mente dos ocidentais até hoje. Ao encerrar este capítulo, parecem muito próprias as palavra de Bagno: Se queremos construir uma sociedade tolerante, que valorize a diversidade, uma sociedade em que as diferenças de sexo, de cor de pele, de opção religiosa, de idade, de condições físicas, de orientação sexual não sejam usadas como fator de discriminação e perseguição, temos que exigir também que as diferenças nos comportamentos linguísticos sejam respeitadas e valorizadas (BAGNO 2007, p. 159). No próximo capitulo, veremos o que a mídia tem feito com relação ao preconceito linguístico e o que ela tem pregado aos que fazem o uso diário dos meios de comunicação. 18 3 PRECONCEITO LINGUÍSTICO E SUAS RELAÇÕES COM A MÍDIA Na sociedade presente, a mídia é a grande fornecedora de relatórios rápidos e completos dos episódios que ocorrem a nossa volta. Ela é responsável por obter a informação, interpretá-la e pô-la em circulação. Assim, as funções dos meios de comunicação são indiscutivelmente importantes. Acostumados a colher informações dos diversos meios de comunicação, já nem nos damos conta de que, devido à sua imagem pública autorizada e institucionalizada, acabamos lhe dando tal crédito que não questionamos sua função ideológica, seu poder de ditar padrões de comportamento (morais, estéticos, etc.), lançar modas e gírias, elaborar hábitos de consumo, formar opinião pública, estipular padrões morais e estéticos, propagar valores e crenças e acentuar a ideia do preconceito linguístico. Isso mostra a necessidade de filtrar e analisar de modo crítico tudo aquilo que ouvimos e vemos, para que não sejamos manipulados e não colaboremos de forma direta ou indireta com o reforço do preconceito linguístico, na mídia. A “função” dos meios de comunicação e de todos (indivíduos), deveria ser, como já foi dito neste trabalho, o de incentivar a valorização da língua no intuito de defender o idioma enquanto instrumento de cultura, e não incentivar a discriminação. Entretanto infelizmente isso acontece como diz Scherre (2005), ao apontar o preconceito em uma matéria publicada no Correio Braziliense em 1995: A meu ver, o apresentador da seção faz confusão entre língua e discurso político, e suas palavras refletem uma visão equivocada de língua, que nos tem sido passada ao longo dos séculos: a visão de que há línguas estruturalmente melhores do que outras; mais ricas e mais complexas - o que já se sabe que, do ponto de vista da estrutura linguística, não é verdade. (SCHERRE, 2005, p.39, grifo nosso). O que se lê acima lembra uma declaração já batida do gramático Bechara, de que o ideal é ser “um poliglota dentro de sua própria língua” e deixar de expor ao ridículo aquele que acusamos ignorantemente de “não saber falar a sua própria língua”. Esse tipo de julgamento não leva em conta que a língua é a identidade do povo que a usa e se fundamenta no pensamento generalizado de reduzir a língua à norma padrão, como 19 afirma Scherre em seu livro “Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito”(2005): “Então, quando um falante nativo de uma língua explicita o sentimento de que não saber falar a sua própria língua, ele de fato esta confundindo a sua língua com a gramática normativa de parte de sua língua” (SCHERRE, 2005, p.89). Considerando o fato de que a língua está em constante mutação pelas mais diversas razões, afirmar que alguém que fala “diferente” é alguém sem instrução ou sem prestigio é a mesma coisa que afirmar que ele não é um cidadão que atua e convive com a sociedade, pois somos expostos a diversos tipos de mudanças todos os dias, inclusive da língua conforme afirma o autor, “[...] acusar alguém de não saber falar a sua própria língua materna é tão absurdo quanto acusar essa pessoa de não saber ‘usar’ corretamente a visão” (BAGNO, 2005, p. 17). Ao mesmo tempo em que valoriza a norma culta, a defesa do português “puro” e “correto”, obediente à gramática tradicional, essa mídia gera o preconceito contra as variedades linguísticas populares ao apresentar tais variedades de modo pouco crítico, caricaturado, provocando a hostilidade contra os que falam tais dialetos. É o que diz Bagno (2005), ao considerar o modo como a mídia apresenta a cultura nordestina: É um verdadeiro acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador. No plano linguístico, atores não nordestinos expressam-se num arremedo de língua que não é falada em lugar nenhum no Brasil, muito menos no Nordeste (BAGNO, 2005, p.44). Além da TV, que é um dos meios de comunicação mais populares e de vasto alcance de pessoas de qualquer nível social e intelectual, outro meio muito utilizado e que tem trazido consequências positivas e negativas, é a internet. Assim como ocorre com a TV, ela pode nos trazer muito conhecimento e informação, mas ao mesmo tempo contribuir para a propagação de opiniões preconceituosas. Com o aparecimento de diversas redes sociais que pregam a “liberdade de expressão”, tanto o preconceito linguístico quanto o racial, religioso, social, sexual, etc., têm sido reforçados, só que dessa vez por meio de um forte aliado: a comunicação em rede. Nesse espaço, a cada clique corremos o risco de sermos ou vítimas ou causadores do preconceito. 20 O advento da internet como um novo suporte de diferentes gêneros textuais trouxe como consequência a velha reação do preconceito linguístico motivada por um novo alvo: o chamado “internetês”. Por internetês, devemos entender, de acordo com a Wikipedia: [...] a linguagem utilizada no meio virtual, em que "as palavras foram abreviadas até o ponto de se transformarem em uma única expressão, duas ou no máximo cinco letras", onde há "um desmoronamento da pontuação e da acentuação", pelo uso da fonética em detrimento da etimologia, com uso restrito de caracteres e desrespeito às normas gramaticais. Um exemplo são as abreviações: vc (você); obgda (obrigada) e kbça (cabeça), entre outras. Além, é claro, da não-exigência de escrever corretamente. Fazendo uma relação com as questões abordadas no capítulo anterior sobre a linguagem escrita e falada, podemos observar que na internet as expressões escritas são reproduções da fala. De acordo com Possenti (2009), não se deve criar um preconceito contra isso: Talvez o que mais chame a atenção dos críticos são formas como naum por não, taum por tão e Jaum por João. Já ouvi gente (repórteres) falando [naúm], como se o /u/ fosse a vogal tônica da sílaba. Quando ouço casos como esse, tenho vontade de sacar a fórmula que costumo aplicar sempre que alguém se queixa de não conseguir ler textos de alunos que cometem erros ortográficos: se é verdade, em certo sentido que quem escreve naum não sabe escrever (o que precisa ser demonstrado), é ainda mais verdade que quem lê [naúm] não sabe ler (POSSENTI, 2009, p.61, grifos do autor). O autor ainda defende o fato da linguagem utilizada nas redes sociais não dever ser considerada como uma linguagem e sim um “conjunto de soluções ortográficas”, e que, de fato, os jovens, na ausência de cobrança, se sentem livres para agilizar a comunicação pela diminuição do número de toques necessários para grafar um palavra. Sendo assim, não deveriam ser estigmatizados por fazerem uso deste recurso: É verdade que essas regras não são seguidas com muito rigor (não há uma lei que as imponha, nem uma escola que cobre correção; se houvesse, logo os jovens abandonariam o sistema que inventaram). Por exemplo, as regras, para escrever kbça não são seguidas até o fim em blz (se fossem, teríamos blza) (POSSENTI, 2009, p. 61). 21 De acordo com Leite (2008), a mídia difunde o preconceito frequentemente tanto na realidade quanto na ficção, ela ilustra isso através da entrevista feita com o diretor de novelas da Globo Aguinaldo Silva, no qual ele responde a pergunta: “Porque a novela teve tanta agressão aos nordestinos?”: Olha, a gente vê isso nas ruas todo dia. Existe muito preconceito contra nordestino. Atualmente está acontecendo uma coisa que me espanta: Lula e o Severino Cavalcanti, na verdade, são muito próximos. Mas as pessoas têm um respeito enorme pela figura do Lula, mas não têm o menor respeito pela figura do Severino é porque ele é nordestino, não por ser de direita (LEITE, 2008, p.33). Nos jornais o preconceito aparece, geralmente, em noticias. De acordo com Leite (2008), o foco de repórteres de jornal são os políticos pelo fato precisarem manter uma boa reputação em todos os aspectos, principalmente com relação ao uso da norma culta. As referências ao fato de Lula, antes e depois de ter-se tornado presidente, não ser usuário da norma culta são constantes na imprensa. Ainda como candidato, em maio de 2002, Lula demonstrou tanto ter consciência disso quanto saber que esse era também um meio pela qual o preconceito contra ele existia (LEITE, 2008, p.37). A autora Scherre em seu livro “Doa-se lindos filhotes de poodle” apresenta vários exemplos de personalidades que sofreram preconceito linguístico por parte da mídia, e critica uma matéria jornalística feita por uma professora de português chamada Dad Abi Chachine no jornal Correio Braziliense: Através dessas duas colunas, de sua autoria, creio que o Correio Braziliense perde uma oportunidade ímpar de discutir de forma respeitosa os diversos aspectos que envolvem a estrutura e o uso do português do Brasil. [...] não sou contra a gramática normativa; sou contra, sim, a sua veneração cega, que gera necessariamente o seu uso equivocado e, até, perverso humilhando o ser humano por meio do que ele tem de mais característico: o dom de dominar uma língua (SCHERRE, 2005, p.91-92). Diante do que foi apresentado, compreendemos a importância de criarmos uma distância crítica ao lermos o que é veiculado pela mídia. Compreendemos também que a internet, a exemplo das demais mídias, ao permitir a participação dos leitores nas redes 22 sociais e nos espaços destinados aos comentários do leitor, cria mais um espaço social em que se pode tanto combater quanto promover o preconceito linguístico. Sendo assim, essa distância crítica deve ser incentivada como um filtro necessário de toda forma de preconceito, com o objetivo de contribuirmos para uma sociedade mais justa e respeitadora dos direitos individuais e coletivos. Posteriormente trataremos da repercussão do preconceito linguístico no ensino, a luz de opiniões de linguistas, a fim de compreender o que deve ser analisado em sala de aula quando o assunto envolve preconceito. 23 4 NORMA CULTA, ENSINO E PRECONCEITO Neste capítulo será abordado o preconceito linguístico dentro do ambiente escolar, visto que este é um ambiente privilegiado onde se pode lançar as sementes das transformações sociais desejáveis. A escola, embora parte da sociedade e inserida nela, não pode fugir de sua responsabilidade de agir no sentido da mudança. Uma escola que apenas reproduz o meio em que se insere perdeu se papel de agente transformador. É na escola, nas práticas de ensino, que a sociedade tem mais poder “para romper o círculo vicioso do preconceito linguístico” (BAGNO, 2005, p. 118). Sabemos que é na escola que os estudantes teriam a oportunidade de tomar a linguagem como um objeto de estudo, de compreender seu funcionamento e de entrar em contato com algumas regras de uma gramática que elas já dominam a chamada “gramática natural” ou internalizada de que trata Luft em seu livro “Língua e liberdade”. Mas, lamentavelmente, não é isso o que acontece, pois a escola, apesar dos avanços no campo da sociolinguística, continua a ter uma visão estreita do que seja a língua. Muitos professores ainda confundem o estudo da língua com o estudo da chamada “gramática normativa”. Tal estudo nega uma constatação óbvia: a de que quando iniciamos na escola já dispomos de uma língua instituída, aquela a que desde o nosso nascimento somos expostos, aquela que naturalmente adquirimos e com a qual temos mais contato, dentre a grande diversidade de culturas e línguas presentes em nosso convívio social. A escola não deveria, portanto, ao ensinar a “língua”, restringir o aluno apenas à norma culta defendida nos manuais de gramática normativa, mas ampliar seu discernimento em relação à diversidade constitutiva da língua. Ao fazer isso, a escola estaria, por meio da linguagem cumprindo um papel fundamental, a saber, o de promover a “constituição da consciência e do pensamento do homem” (Vygostsky (1987), apud Bigonjal-Braggio (1999, p.13). Para cumprir esse papel de formação de consciência crítica diante da realidade que o cerca, é responsabilidade do professor preparar seu aluno para os possíveis cenários que ele encontrará na sociedade quando o assunto é a língua. Ele pode orientálo, por exemplo, quanto à importância da norma culta para seu crescimento profissional, e mesmo adverti-lo quanto aos problemas sociais e ao preconceito de que será vítima, caso 24 use a variedade popular em contextos específicos em que a norma culta é exigida. Mas não pode, sob o pretexto de ensinar a norma culta, acabar reforçando o preconceito contra formas linguísticas que não são contempladas nos manuais de gramática normativa. Diante disso, parecem adequadas às palavras de Oliveira. Diferentemente dos linguistas estruturalistas, os professores de português não podem deixar de pensar na variação linguística e nas especificidades culturais dos seus alunos. Entretanto, muitos professores elegem as formas que constam nas gramáticas normativas para serem ensinadas em sala de aula, as quais são apresentadas como as únicas formas corretas de escrever e de falar português. Isso é reflexo do fato de muitos professores conceberem a língua equivocadamente como um fenômeno homogêneo, ignorando a existência das variações linguísticas e sujeitos culturais que são seus alunos (OLIVEIRA, 2010, p. 33). Percebe-se, assim, que a reprodução do preconceito no âmbito escolar está relacionada a uma visão equivocada e limitada do que seja uma língua e, por conseguinte, do que seja ensiná-la. Os professores de português que põem no centro de suas atividades pedagógicas o estudo das normas gramaticais acabam não se dando conta de que estão reduzindo a língua à sua gramática, abrindo com isso um espaço favorável ao preconceito em sala de aula. Isso lembra o que nos diz Bagno sobre a importância do papel do professor de língua materna: As atitudes da professora em sala de aula, no tratamento dado aos fenômenos de variação linguística, podem exercer uma grande influência no comportamento de seus alunos [...], a variação linguística está intimamente ligada a aspectos de natureza social, cultural, política, humana, enfim. Por isso, devemos prestar toda atenção possível ao que esta acontecendo no espaço pedagógico em termos de discriminação, desrespeito, humilhação e exclusão por meio da linguagem. É inadmissível, nos dias de hoje, que o modo de falar de uma pessoa continue sendo usado como justificativa para atitudes preconceituosas e humilhantes (BAGNO, 2007, p. 207) A partir dessa situação, não é surpresa verificar certo descaso em relação ao processo de ensino-aprendizagem de língua materna por parte dos alunos e professores, cada vez mais reféns de um círculo vicioso: o professor pensa que ensina a língua quando, na verdade, ensina frequentemente mal a gramática normativa; o aluno pensa 25 que aprende a língua quando, na verdade, aprende e, às vezes mal, apenas algumas regras de gramática normativa. E a escola acaba não cumprindo seu papel de formar cidadãos críticos, capazes de ler e escrever com propriedade ou, em outras palavras, a escola falha em ministrar um ensino de língua que não prepara o aluno para que ele se torne um bom usuário da língua e se relacione com a diversidade linguística sem preconceito e intolerância. As consequências desse quadro não são animadoras, mas a escola continua sendo um espaço privilegiado onde as mudanças podem ocorrer. Por outro lado, os autores pesquisados são unânimes em reconhecer a necessidade do ensino das normas gramaticais. A acusação de que os linguistas e sociolinguistas, ao defenderem um conceito de língua mais amplo que sua redução à dita norma culta, promovem o “vale-tudo” na língua, pregam a inutilidade da gramática normativa, defendem o uso de uma “linguagem popular” ou do “caipirês” em todas as circunstâncias de comunicação oral ou escrita, apregoam a desnecessidade de as classes desfavorecidas aprenderem as formas prestigiadas da língua escrita e falada e incentivam o uso de estrangeirismos nas comunicações diárias, não procede e é classificada por Bagno com termos tais como: “mentira”, “balela”, “calúnia”, “lorota”, “conversa fiada” e “piada de mau gosto”. Na verdade, o que se verifica ao ler esses autores é que eles recomendam o ensino da gramática, desde que ela não se resuma a nomenclaturas sem objetivo relevante, à análise de expressões fora do contexto e mesmo ridículas. Deixemos que o próprio autor esclareça a questão: Mas se por gramática entendermos o estudo sem preconceitos do funcionamento da língua, do modo como todo ser humano é capaz de produzir linguagem e interagir socialmente através dela, por meio de textos falados e escritos, portadores de um discurso, então, definitivamente é para ensinar gramática, sim. Na verdade, mais do que ensinar, é nossa tarefa construir o conhecimento gramatical dos nossos alunos, fazer com que eles descubram o quanto já sabem da gramática da língua e como é importante se conscientizar desse saber para a produção de textos falados e escritos coesos, coerentes, criativos, relevantes etc (BAGNO, 2007, p. 70). Para os pesquisadores, assim, o ensino da gramática na escola, além de ter um propósito significativo e contribuir para a formação de cidadãos competentes no uso da 26 linguagem em diversos contextos, não pode servir como instrumento de preconceito e exclusão social. Outro aspecto que torna injustificável a imposição da norma culta como instrumento de intolerância é o fato de que, embora seja utilizada para fins acadêmicos, profissionais e políticos, mas não é, entretanto, utilizada diariamente pelas pessoas, até mesmo por aqueles que dizem falar corretamente o tempo todo. Bagno nos esclarece: Até mesmo as pessoas que julgam conhecer muito bem as regras normativas deixam de obedecê-las em diversos momentos, inclusive na escrita mais monitorada. Isso não significa, de modo nenhum, que todas as pessoas falem a língua “sem seguir nenhuma regra”, porque já sabemos que a variação linguística é ordenada [...] (BAGNO, 2007, p. 221). O preconceito linguístico, portanto, tem relação direta com certo modo redutor de conceber a língua, limitando-a à gramática tradicional, que, segundo Bagno, se constituiu historicamente - num contexto favorável a preconceitos sociais - “como produto intelectual de uma sociedade aristocrática, machista, escravagista, oligárquica, fortemente hierarquizada”, tomando como referência e modelo o dialeto de um pequeno mas prestigiado grupo de falantes com as seguintes características: “do sexo masculino, livres, membros da elite cultural, cidadãos (eleitores e elegíveis), membros da aristocracia política e detentores da riqueza econômica.”. (BAGNO, 2007, p. 68) Não causa espanto, deste modo, que a língua assim entendida funcione como um instrumento de poder e seja considerada a única língua “certa”, passível de estudo e posta como modelo para toda a sociedade, como se fosse mais importante que a língua natural. Mas o que ocorre, de fato, é o contrário disso, como podemos compreender a partir da afirmação de Bagno: O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações linguísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam de gramática, como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura” (BAGNO, 2005, p. 64). 27 A “língua-viva”, portanto, tem um valor primordial na formação da norma culta. Apesar disso, o preconceito linguístico é uma evidência de que houve uma inversão de valores que fez com que a verdadeira língua perdesse o seu mérito. Essa concepção equivocada imposta à sociedade tem dificultado o ensino do português nas escolas. Segundo Possenti: É comum ouvir jovens classificando as aulas de Português de “cultura inútil”. Normas demais, fora da realidade, eivadas de um purismo reacionário. Pormenores supérfluos em grande quantidade, distinções, regras superadas por novos usos. [...] exigimos que decorem formas e vocábulos bizarros e totalmente inusitados; perdemos tempo com definições, discussões teóricas, complicadas análises sintáticas. Nada mais natural que os alunos a língua materna pareça algo estranho, esotérico (POSSENTI, 1996, p. 21). Luft complementa dizendo que todo esse ensino será pouco usado durante a vida, até mesmo nas situações em que, como profissionais, souberem falar, escrever e se comunicar bem, devem isso à boa leitura e não a “tanto ensino de sua língua”; exigir de todos as regras gramaticais da norma culta não os tornam bons ou maus falantes, todo indivíduo domina a sua língua independentemente de regras ou vocábulos bizarros. (LUFT, 1994, p. 47) Concordamos com o que Luft fala sobre a leitura. É pertinente compreender a importância que esse recurso exerce sobre o domínio da língua e estimular os alunos a desenvolverem o hábito da leitura talvez se torne um método mais eficaz de ensinar norma culta do que sobrecarregá-los com regras gramaticais. Depois de apresentarmos fatos relacionados à norma culta, nos indagamos se a escola tem abordado a temática das variações populares em sala de aula também. Devem-se esclarecer para o aluno as formas “corretas” e as “reprovadas” de hoje, sem reforçar o preconceito. Como bem recomenda o linguista Possenti: O que o aluno produz reflete o que ele sabe (gramática internalizada). A comparação sem preconceito das formas é uma tarefa da gramática descritiva. E a explicitação da aceitação ou rejeição social de tais formas é uma tarefa da gramática normativa. As três podem evidentemente conviver na escola. Em especial, pode-se ensinar o padrão sem estigmatizar e humilhar o usuário de formas populares como “nós vai”. (Na verdade, a 28 comparação entre tais formas pode ser enriquecida através de comparações com formas de outras línguas, o que implicaria na introdução informal - mas não inútil - de uma gramatiquinha comparativa) (POSSENTI, 1996, p. 90). A apresentação da diversidade linguística deve fazer parte das aulas de português e o professor pode partir das formas familiares, naturais aos alunos para chegar às formas defendidas nos manuais de gramática, sem que os envolvidos neste ensino não saiam psicológica e linguisticamente prejudicados. Possenti acrescenta: Formas inadequadas desse tipo tenderão a desaparecer com o domínio progressivo da variedade padrão. Tratar esses usos inadequados como marcas de incompetência ou “burrice” produz como único resultado a resistência do aluno, que tenderá a achar-se “fraco” ou “sem capacidade” para aprender português, assumindo como real o papel que lhe é atribuído por preconceito (POSSENTI, 1996, p. 87). Fazendo isso, o professor assume o papel que se espera dele e da escola, que é o de desincentivar o preconceito. Tratar do assunto da língua com os próprios usuários dela não é uma tarefa fácil, por isso as concepções que o docente tem sobre o que seja uma língua e de como ensiná-la, como já dissemos, é de grande valia no processo de ensinoaprendizagem e no combate ao preconceito linguístico. Neste sentido, parecem apropriadas as palavras de Bagno: Por isso, na escola, temos que fazer todos os esforços possíveis para tirar o maior proveito do espaço-tempo pedagógico, a fim de transforma-lo num foco de resistência e combate ao preconceito linguístico e toda forma de discriminação social. Negar o que é caracteristicamente nosso na língua é negar a nossa própria identidade cultural como povo e nação independente! (BAGNO, 2010, p.15, grifos do autor). Diante do exposto acima, podemos compreender a importância da escolha de uma metodologia que considera a sala de aula um espaço favorável ao dialogismo entre a valorização da norma culta e das variações linguísticas, mostrando que não há expressões completamente erradas, de um ponto de vista linguístico, evitando, ao mesmo tempo, que se conceba a norma culta como um ensino de regras obrigatórias acessíveis 29 apenas para pessoas de prestígio. Em outras palavras, se, por um lado, não devemos tomar a norma culta como um espelho que aponte “erros” nas expressões populares, por outro não devemos considerar seu ensino como algo impossível. Neste aspecto, uma posição equilibrada dos professores parece ser recomendável. Se o ensino não pode partir da concepção incoerente em que se reduz a língua a uma única variedade, mesmo que seja a padrão. Também não pode deixar de contemplar essa variedade, caso queira formar indivíduos competentes para agir socialmente em diversos contextos de interação verbal. 30 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como já apresentamos no começo de nosso trabalho, o objetivo desta pesquisa foi estudar o preconceito linguístico. Para isso, baseamo-nos no que alguns autores – principalmente Bagno, Possenti, Leite e Scherre - falam sobre o assunto. Esperamos ter confirmado a hipótese de que o preconceito linguístico existe por causa de uma compreensão equivocada do seja uma língua. Seria desnecessário falar dos prejuízos e consequências do preconceito linguístico ao ambiente escolar. Para dar início a nossa pesquisa, colhemos informações sobre os reflexos do ensino sobre a sociedade. Claro que o ensino não é o causador de todo preconceito presente na sociedade, mas a escola como agente transformador, pode combater o preconceito de um modo mais eficaz, já que dispõe de tempo e espaço privilegiados para formar cidadãos conscientes. Neste capítulo procuramos expor alguns mitos sobre a linguagem que circulam na sociedade que acabam gerando o preconceito linguístico, mitos esses que têm relação com a concepção estreita do seja uma língua, que é a hipótese de nosso trabalho. Vimos ainda que o pior efeito do preconceito linguístico é a exclusão e marginalização dos que o sofrem. Na segunda parte do nosso trabalho, discorremos brevemente sobre a presença do preconceito na mídia. Vimos que, a exemplo da escola, a mídia em vez de ser um posto de combate ao preconceito, acaba sendo em muitos casos promotora desse comportamento. Concluímos o capítulo com a sugestão de que deveria incentivar todos as assumirem de uma distância crítica em relação ao que é veiculado pelas diferentes mídias, como precaução contra o preconceito. No próximo e último capítulo do trabalho, entendemos que é no ambiente escolar que as crianças sofrem de modo mais sistemático o doloroso processo do preconceito. Para frequentar uma escola, saímos do aconchego familiar e nos deparamos com modos diferentes de falar, com uma linguagem pouco familiar, a norma culta. Vimos que a escola, portanto, tem uma responsabilidade importante no sentido de tornar esse primeiro contato de todo cidadão com a língua culta o menos traumático possível, mas, infelizmente, de acordo com os autores estudados, não é esta a realidade. Vimos, ainda, que o papel da escola seria de prover ao aluno uma visão adequada e abrangente do 31 processo de linguagem, sem permitir que sua visão da língua se reduza ao politicamente “correto” (norma culta), mas que inclua a diversidade da “língua viva”, para que ele não apenas seja vacinado contra o preconceito linguístico, mas também saiba se comportar, linguisticamente falando, em diferentes contextos com desenvoltura. Estamos conscientes de que muitas ideias sobre o preconceito linguístico não foram contempladas neste trabalho. O estudo, porém, serviu como ponto de partida e estímulo para futuras pesquisas e aprofundamento do assunto. 32 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 36. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005. BAGNO. Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. – 3 reimpressão. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. CORACINI, Maria José Rodrigues Faria. Interpretação, Autoria e Legitimação do Livro Didático. Campinas: Pontes, 1999. FARACO, Carlos Alberto. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. LEITE, Marli Quadros. Preconceito e intolerância na linguagem. São Paulo: Editora Contexto, 2008. LUFT, Celso Pedro. Língua e Liberdade. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. LUFT, Lya. Pensar e transgredir. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004 PERINI. Mário A. Sofrendo a Gramática. São Paulo: Ática, 1997. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: ALB, Mercado de Letras, 1996. POSSENTI, Sírio. Língua na mídia. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.