Departamento de História A HISTORICIDADE DA ARTE RETÓRICA E SUA PRESENÇA NOS DRAMAS TRÁGICOS, E NA ESCRITA DA HISTÓRIA NO MUNDO GRECO-ROMANO Aluno: Isabel M. A. Pereira Orientador: Flávia Schlee Eyler Introdução O gênero trágico surgiu na Grécia Antiga, no fim do século VI a.C., quando, com a criação da Polis, a linguagem dos mitos deixou de representar a realidade política da cidade. O teatro foi a maneira encontrada de transmitir os valores prezados pelo novo regime democrático, como a valorização das ações coletivas em contraposto às ações individuais. No conflito trágico, ainda existem as personagens que representam o herói, o rei e o tirano, que continuam presos à tradição heroica da mitologia, porém, não são eles mais os responsáveis a solucionar o problema do drama. Nas tragédias, a solução jamais é encontrada pelo herói solitário, mas sim pelo triunfo dos valores coletivos. [1] A abordagem da arte retórica para a compreensão do teatro trágico grego é um caminho frutífero, pois permite a aproximação entre o social, o político e o religioso através das estratégias narrativas da composição trágica. A retórica, como arte da persuasão e arte da memória, é capaz de criar novos relacionamentos entre história e literatura. Ativar determinados sentimentos que podiam "educar" os novos homens, que eram incorporados a política ateniense, aproximava as tradições mitológicas mais antigas das necessidades de uma nova compreensão do mundo. Assim, a escolha da retórica juntamente com a poética aristotélica nos permite analisar os efeitos do teatro trágico na história da democracia grega. Objetivos Analisar o problema da antiga palavra mágico-religiosa diante das necessidades da palavra-diálogo. Identificar a potencialidade da encenação trágica na articulação entre o dizer e o fazer do dizer na Poética de Aristóteles; a historiografia greco-romana e o seu material literário nos permite uma pesquisa que recoloque algumas questões relativamente novas tais como a íntima relação entre linguagem e mundo e as estratégias retóricas escolhidas para determinados fins específicos. Neste caso salientamos a abertura do projeto para a sedimentação do mundo cristão com sua reapropriação dos "clássicos" greco-romanos que se colocam a serviço de uma nova visão de mundo. Metodologia Do ponto de vista da encenação trágica, a sua configuração contribui para a recapitulação da existência humana de modo indireto na medida em que ao trazer para a cena antigos mitos e colocá-los sob o “julgamento” do tempo presente abre-se um espaço para novas compreensões tanto do passado quanto do próprio presente.[2] Na junção entre a narrativa dos velhos mitos e a narrativa de uma intriga é possível uma refiguração do mundo e da vida. Os mitos quando reapresentados sob um horizonte novo, trazem um estranhamento que conduzem à reflexão. Os poetas passam mensagens aos espectadores através das falas do coro, composta por música e palavras, que através da persuasão (retórica) alertam sobre as consequências da desmedida, ou seja a hybris, tendo os heróis como exemplo negativo.[3] O coro é um membro à parte dos personagens centrais, nunca é ouvido pelo herói, exprimindo em seus temores, em suas esperanças e julgamentos, os sentimentos dos espectadores que compõem a Departamento de História comunidade cívica. Como exemplo, foi analisado o drama trágico de Eurípedes, As Bacantes, escrito em 405 a.C. O texto relata a volta de Dionísio, filho de Zeus, à cidade natal de sua mãe, Tebas, em busca do reconhecimento como um deus por seus habitantes. O objetivo, porém, não foi alcançado desde o princípio, devido à acusação de suas tias maternas de que ele não fosse realmente filho do senhor do Olimpo, mas sim de um homem comum. Como punição Dionísio espalhou a loucura entre as mulheres tebanas, transformando-as assim nas bacantes, adoradoras de seu culto. O rei-tirano, Penteu, manda prender o deus, que no momento toma a forma de um estrangeiro vindo da Lídia, recusando-se a reconhecer a divindade de Dionísio. O papel de conselheiro nessa tragédia é dividido entre o adivinho Tirésias, que fala diretamente à Penteu: “Atenta, Penteu, peço-te: não penses que o poder é dono do homem, tampouco creias – há doença nessa crença!que saibas algo. Acolhe o deus em Tebas, liba, dionisa-te, coroa-te de hera!”[4] e o coro, que se dirige aos espectadores: “Quem visa o deslimite, perde o dia presente. Só louco assim procede, ou – julgo – um malevolente.” [5] O coro alerta o público sobre as consequências de agir com “deslimite”, alegando que só o louco o faz. Na tragédia de Eurípedes, a loucura do “deslimite” é representada pelas bacantes, que se esquecem da razão, entregando-se à festa, bebedeira e orgia. Quando a loucura passa, não se lembram de nenhum de seus atos enquanto estavam sob a influência de Dionísio, nem mesmo do mais terrível deles: a morte de Penteu pelas mãos de sua própria mãe. Uma característica das Bacantes que a diferencia de outros dramas trágicos é o fato de possuir o deus Dionísio como personagem, pois apesar dele estar sempre presente na temática e na encenação, ele raramente é citado nas peças trágicas. Dionísio é o deus dos mistérios, das máscaras, da ilusão, é aquele que assume diferentes formas e está presente e ausente em todos os lugares. O teatro é a forma laica e política da presença do deus, é a maneira de reverenciálo, já que se originou a partir dos antigos rituais dionisíacos. Paul Ricoeur [6] ao retomar a retórica aristotélica e sua poética aponta para possibilidades éticas e políticas que podem nos auxiliar no pensamento de nossos problemas atuais. Com Agostinho, Ricoeur coloca a capacidade humana de uma alma em distensão na medida em que ela pode se lembrar do passado (retentio); de perceber o presente (attentio) e de esperar ou antecipar o futuro (protentio). Quando a alma traz para o presente a ausência dos outros tempos, a narrativa entra em cena, pois somente ela é capaz de harmonizar a desarmonia da vida propriamente vivida e criar uma concordância na discordância e é ela que se torna uma condição de existência temporal . A encenação trágica pode, então, ser resignificada pela narrativa daquilo que era pré-significado nas ações humanas. De acordo com Aristóteles,[7] a tragédia é a imitação de uma ação séria, completa, que possui certa extensão, em uma linguagem tornada agradável na forma de uma interpretação teatral, na qual os atores, ao fazerem seus espectadores experimentarem a compaixão e o medo, visam à purgação desses sentimentos. Aristóteles em seu muthos que Departamento de História possui a vantagem de compreender as peripécias e os episódios que não estariam integrados na ação principal. Tal aproximação está integrada a uma concepção geral da mímesis literária que não é nem reprodução simples (e supérflua), nem uma construção homogênea em si que seria descolada de toda realidade. Como toda linguagem, a mímesis literária também precisa de seu “outro”. Conclusão Por ser uma imitação (mímesis), o drama trágico aborda questões humanas que incidem no campo das relações entre todos, e no campo das emoções individuais, fazendo com que quem assista reflita e questione seus próprios problemas. Com isso, a tragédia tenta resgatar a visão organizada que a Polis tem de si mesma, porém sem impor essa perspectiva, mas sim aconselhar sobre como agir ao confrontar-se com um problema. Ao retratar conflitos humanos, o drama trágico tem o intuito de gerar empatia nos espectadores, devido à possibilidade de relação com o mundo real. [8] O grande ideal grego seria a constituição de cidadãos autárquicos que não precisariam ser movidos por algo exterior a eles mesmos. Como o pathos (paixão) é sempre uma reação a algo de fora, ela é provocada pela presença ou imagem de algo que nos leva a reagir. Ela mostra que depende do “outro” para surgir. Ela não é autárquica e sim dependente. Ao assistir á uma encenação trágica, o público é comovido pelas emoções, pelo páthos, que são expressos pelas personagens, até que atinjam uma kátharsis, ou seja, a purificação das emoções. Ao experimentar uma kátharsis trágica, o espectador toma consciência das fraquezas e forças humanas, através dela são reconhecidas as tensões mais difíceis das quais se sujeita o homem. O purificatório trágico é, simultaneamente, sagrado, educativo, cívico e ritualístico. Ao mesmo tempo em que é pessoal, também representa o modo de sentir de cada pessoa em relação ao coletivo, de acordo com os moldes da pólis. Ele purifica no sentido de que, ao aproximar o homem da realidade de seus limites e deslimites, permite-lhes a visão do sagrado proibido e do profano objetivados no teatro. [9] Referências 1-VERNANT; VIDAL-NAQUET. Mito e tragédia na Grécia Antiga. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. 2- CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Filosofia Grega, Rio de Janeiro: Daimon, 2010. 3-GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: Ensaio sobre aspectos do trágico. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 4-EURÍPEDES. As Bacantes, trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2010. p.62 5- EURÍPEDES. As Bacantes, trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2010. p.66 6- RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação, Lisboa: Ed.70, 1976, p.47. 7-ARISTOTELES. A Poética in A Poética clássica. São Paulo: Cultrix, 2011. 8- LESKY, Albin. A Tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1996. 9- GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: Ensaio sobre aspectos do trágico. São Paulo: Edições Loyola, 2001.