O Fantasma de Tom Joad Segundo Bruce Springsteen: Estudos Culturais e uma relação entre a literatura e música popular americanas The ghost of Tom Joad according to Bruce Springsteen: Cultural Studies, and a relation between American literature and popular music Paulo Ricardo Pereira e Alves Centro de Comunicação e Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP [email protected]; [email protected] Resumo. Tendo como base a abordagem da área de Estudos Culturais, apoiada por elementos de Literatura Comparada e teoria literária, a pesquisa buscou desenvolver um estudo sobre a releitura e recontextualização da significação cultural do personagem Tom Joad, protagonista do romance As vinhas da ira (1939), de John Steinbeck, na visão de Bruce Springsteen em seu álbum de música popular The ghost of Tom Joad (1995). O álbum rearticula o personagem em um contexto sócio-histórico sessenta anos depois de sua criação, e é examinada como se dá essa rearticulação, não do ponto de vista estritamente textual, e sim observando a relação entre o social e o cultural. O paralelo traçado diz respeito não simplesmente às duas obras entre si, mas também (e pricipalmente) a como representam, como produtos culturais, suas realidades sócio-históricas específicas ao longo da história americana contemporânea. Palavras-Chave: Culturais. Literatura americana. Cultura americana. Estudos Abstract. Having as its basis a Cultural Studies approach, backed by elements found in Comparative Literature and literary theory, our research sought to develop a study on the rereading and the contextual relocation of the cultural signification of the character Tom Joad, protagonist of John Steinbeck’s The grapes of wrath (1939), as seen by Bruce Springsteen in his popular music album The ghost of Tom Joad (1995). The album rearticulates that character sixty years after its creation, and we intend to examine the way such articulation takes place, not from a strictly textual point of view, but observing the relations between social and cultural. The drawn parallel regards not only between each work, but also (and mainly) how they represent, as cultural products, their specific social and historical realities throughout American contemporary history. Keywords: American literature. American culture. Cultural Studies. 1. Pressupostos teóricos e metodológicos dos Estudos Culturais A vertente acadêmica adotada pelo trabalho é aquela seguida pela área de Estudos Culturais, bem como suas preocupações e ponto de vista crítico: a relação pragmática com a teoria, que funciona como um meio para o trabalho concreto, sua motivação principal; sua natureza interdisciplinar (interação mútua com outras áreas e disciplinas específicas). A preocupação e concentração dos Estudos Culturais estão em estudar a cultura em relação às vidas dos indivíduos (ou seja, da sociedade em que está inserida), focando-se nas idéias de subjetividade e identidade(s), e tendo como eixo de suas pesquisas as relações entre cultura e sociedade. A noção de cultura aqui adquire certo caráter antropológico, abrangendo em sua reflexão uma rede de sistemas de costumes sociais, valores, crenças, ideologias, vivências – de onde surgem, mesmo como reflexos dessa realidade, os produtos culturais que vêm a se tornar os objetos de estudo. O paradigma da teoria cultural é: como refletir a interação/articulação entre os elementos social e simbólico (ideologicamente, a representação de uma representação) “no cultural”? Do ponto de vista crítico, ao núcleo inicial dos Estudos Culturais – o conceito de “classes” – incorporaram-se fortemente os conceitos de subjetividade e identidade culturais (BARKER; BEEZER apud ESCOSTEGUY, 2006). Assim, a análise dos objetos e formas culturais populares demanda “as funções que elas assumem perante a dominação social” (GRIGNON; PASSERON apud MATTELART; NEVEU, 2003, p. 72) através e dentro desses conceitos. O exame dos objetos culturais tem como marco zero, portanto, o ponto de vista da produção, suas condições e meios, em especial nos aspectos subjetivos e socioculturais. De caráter talvez muito mais “reflexivo” do que “teórico”, a visão crítica dos Estudos Culturais procura focalizar o método de abordagem das outras vertentes disciplinares, seja por aquilo que é enriquecido e ampliado por elas, seja pelo que é subtraído ou minimizado. Sendo assim, apesar de ter como ponto de partida um personagem do romance As vinhas da ira (1939), o trabalho proposto não se foca estritamente no estudo literário, à medida que vale-se da “presença” deste personagem em uma obra de diferente forma textual – o álbum musical The ghost of Tom Joad (1995) –, mas que pertence a um mesmo sistema cultural, o americano. Daí o direcionamento de nosso embasamento ao dos Estudos Culturais. Ambos os objetos do corpus serão analisados enquanto conceituados como objetos culturais ou produtos culturais. Segundo Raymond Williams, a área dos Estudos Culturais se propõe ainda a “analisar todas as formas de significação (...) como concretização dos meios e das condições de sua produção” (CEVASCO, 2003, p. 4). Assim sendo, é possível considerar e estudar The ghost of Tom Joad, álbum de música popular, dentro de um mesmo nível ou parâmetro que As vinhas da ira, romance, sendo ambos produtos culturais, concretizações dentro de um mesmo sistema cultural. A abordagem dos Estudos Culturais, quando da análise dos produtos culturais, considera-os “práticas sociais” e tem como objetivo “desvendar as condições dessa[s] prática[s] e não meramente elucidar os componentes de uma obra” – a cultura vista aqui como “produção e reprodução de valores”. Nesta análise, “os procedimentos dos estudos de cultura vão indagar as condições de possibilidades históricas e sociais (...) [e] observar as condições de uma prática” (CEVASCO, 2003, p. 5). A questão central, de maneira simplificada, seria: “quais os motivos da efetivação da produção do material cultural? O que levou a essa produção?”. Partindo-se desses conceitos, e aliando-os à tentativa de “entender as formações sociais e culturais que se inscrevem [nas] práticas” (DENNING, 1987 apud CEVASCO, 2003, p. 6), ou seja, nos produtos culturais, o que se propôs foi: analisar elementos como condições de possibilidades históricas e sociais, notações, convenções específicas, formações sociais, culturais e/ou mesmo políticas etc. – em As vinhas da ira e The ghost of Tom Joad em paralelo. Para os Estudos Culturais, o texto deixa de ser estudado por si próprio, ou pelos efeitos sociais que intenta (ou supõe intentar) produzir, mas sim pelas formas subjetivas e culturais que concretiza e disponibiliza. As narrativas e/ou imagens, por exemplo, enquanto formas fundamentais da organização da subjetividade, pressupõem ou acarretam posturas a partir das quais devem ser examinadas, uma vez que estão se posicionando relativamente ao significado(s) do(s) qual(is) tratam. E, na (e do ponto de vista da) articulação intertextual e interdiscursiva, os textos são permeados pelos elementos discursivos que atravessam outros textos; as formas subjetivas nunca se concretizam por conta própria, por si mesmas. De modo geral, é importante para o desenvolvimento do trabalho de Estudos Culturais a análise, a discussão e a descrição não somente das condições de produção do objeto cultural, mas também do próprio ato da produção, seus processos e aspectos subjetivos e objetivos; seu momento real específico, independente e particular. É importante descrever uma formação sociocultural “diretamente através do circuito de suas transformações” e buscar inseri-la em todo o contexto de inter-relações socioculturalmente presentes – exemplificados por alguns dos tópicos importantes de reflexão dos Estudos Culturais: pós-modernidade, globalização, migrações, “o papel [...] da cultura nacional e suas repercussões sobre o processo de construção das identidades”; em torno do núcleo básico de pesquisa desse campo: “as [inter-]relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais” (ESCOSTEGUY, 2006, p. 138). O essencial para a prática dos Estudos Culturais e para a compreensão da amplitude de sua abordagem acadêmica é o reconhecimento da relação indissolúvel e fundamental entre o objeto cultural determinado e a realidade sociocultural na qual ele está inserido e foi concebido: o “não-fechamento” do estudo do objeto dentro do mesmo. Como visão crítica, tal elaboração permite, muito mais do que a compreensão específica (e necessária) de um produto cultural, a busca da reflexão do todo específico (ou dotado de múltiplas especificidades, de relações dialógicas) do qual ele faz parte – da cultura, ou inter-cultura, que o concebeu – daí a necessidade, na prática de Estudos Culturais, de se analisar os contextos sócio-históricos específicos. 2. A contextualização sócio-histórica de As vinhas da ira O romance As vinhas da ira (The grapes of wrath, 1939), de John Steinbeck, é produto de um contexto sócio-histórico muito particular: a década de 1930 nos Estados Unidos, os anos da Grande Depressão. Em 1936, Steinbeck foi convidado pelo jornal San Francisco News a escrever uma série de artigos sobre as famílias migrantes do Dust Bowl, fenômeno natural e verdadeiro terror ecológico que assolara o meio-oeste e o sudoeste americanos, ao mesmo tempo em que a crise econômica da Depressão se alastrava pelo país. Destituídos de sua terra pelas forças da natureza e pelas forças econômicas, cerca de 130.000 trabalhadores rurais migraram para a Califórnia, revivendo o mito da ida para o Oeste, tão presente na história dos Estados Unidos. Lá, deparavam-se com um “falso Éden” e terminavam forçados a viver em condições sub-humanas e opressoras, sofrendo ainda perseguição por parte das autoridades e grandes fazendeiros locais. Ou eram oprimidos na sujeição a tais sub-empregos, ou instalavam-se em precários assentamentos conhecidos como Hoovervilles. Em suas pesquisas para escrever os artigos para o San Francisco News, Steinbeck visitou alguns dos assentamentos Hoovervilles à beira das estradas, cujas condições de vida o chocaram de maneira profunda, e um acampamento governamental na cidade de Arvin, onde conheceu o administrador Tom Collins, que viria a lhe fornecer a maior parte das informações e material para o desenvolvimento tanto dos artigos quanto, posteriormente, de As vinhas da ira (LOFTIS, 1989). A série de sete artigos, intitulada “Os ciganos da colheita” (“The harvest gypsies”), foi publicada no San Francisco News de 5 a 12 de outubro de 1936, e subseqüentemente num livreto intitulado Their blood is strong (1938). Os artigos trazem relatos intensos e diretos da tragédia das famílias migrantes, que marcam a passagem da visão de Steinbeck de alheia a defensora, a expositora dos abusos do sistema e das implicações humanas da opressão (DICKSTEIN, 2004). No ano seguinte, 1937, Steinbeck contatou Tom Collins novamente, partindo em uma viagem pelo Vale Central, numa espécie de pesquisa de campo, durante a qual se misturou aos migrantes, estudando suas idiossincrasias, seus hábitos, sotaques e características regionais; a idéia de uma obra maior sobre a causa e o drama dos migrantes já estava em andamento (LOFTIS, 1989). Faria ainda novas visitas, no início de 1938, acompanhado do fotógrafo Horace Bristol, a pedido da revista Life. É importante notar também que, à época dessas visitas, o escritor teve ainda muito contato com o documentarista Pare Lorentz, cujo trabalho pioneiro nos filmes The plow that broke the plains (1936), sobre o drama do Dust Bowl, e The river (1937), sobre enchentes do rio Mississippi, tratava dos temas que vinham sendo explorados pelo próprio Steinbeck. Lorentz demonstrou a ele suas técnicas e teorias sobre a narrativa do cinema documental, que viriam a influenciar sua escrita (STARR, 1996). Finalmente, ainda no início daquele ano de 1938, com as experiências vividas nas viagens aos assentamentos exercendo um impacto tremendo sobre Steinbeck, o escritor sentia que a questão não apenas pedia, mas necessitava de uma obra de escopo e profundidade muito maiores, pressionando a si mesmo a concebê-la. Escrito de março a outubro de 1938, As vinhas da ira narra a jornada da família Joad, que, destituída de sua pequena propriedade em Sallisaw, Oklahoma, parte para a Califórnia em um, atraída pelas promessas de uma “Terra Prometida” e por panfletos com ofertas de trabalho supostamente fartas. Em um precário automóvel usado, obtido por meio da troca de alguns poucos bens materiais e animais que possuíam, tomam a Rota 66 rumo ao oeste, atravessando a duras penas os estados do Texas, Novo México e Arizona, e o deserto do Mojave. Na Califórnia deparam-se com os Hoovervilles, com a perseguição aos okies e com as condições abusivas dos empregos, e eventualmente instalam-se em um acampamento do governo em Weedpatch. Steinbeck constrói a saga dos Joads, a mesma de muitas famílias desoladas pelo Dust Bowl, em um romance de proporções épicas, permeado por um intencional realismo descritivo e detalhista, e por fragmentos do folclore e da cultura dos migrantes, bem como de seus costumes e comportamento – cujas fontes foram sua convivência com os posseiros durante suas viagens e os registros do cotidiano dos acampamentos governamentais fornecidos a ele por Tom Collins (BENSON, 1989) – a quem, juntamente com Carol Steinbeck, o livro é dedicado. Os diálogos procuram reproduzir a fala coloquial dos migrantes e seu sotaque característico de Oklahoma. Intercalados à narrativa sobre os Joads estão capítulos descritivos – certamente influenciados pelos conceitos apresentados a Steinbeck por Pare Lorentz – que afastam temporariamente o foco da família e oferecem um panorama e um comentário questão migratória, do trabalho rural e do momento político, em algo relativamente próximo a uma literatura documental. Steinbeck tinha o intuito de fazer o leitor “participar” da realidade exposta por ele no romance (STEINBECK, 1975 apud SHILLINGLAW, s/d). Indignado com as implicações morais e humanas do momento pelo qual os Estados Unidos passavam, concebeu As vinhas da ira como sua grande e inevitável reação àquele momento de crise social, econômica, política e humana. Publicado em 14 de abril de 1939, o romance foi recebido de maneira polêmica. Trouxera à tona uma questão à qual ninguém sabia, ou queria, responder – mas que exigia uma resposta. Celebrado como um retrato extremamente marcante da assombrosa realidade dos anos 30, o romance não apenas trouxe atenção nacional para a questão dos migrantes e registrando dramática e literariamente todo um período e sua realidade aterradora, como também, mais importante, o situou num legado histórico americano. 3. A contextualização sócio-histórica de The ghost of Tom Joad Por volta de 1978, o cantor e compositor Bruce Springsteen tem contato com a música de Woody Guthrie, uma das figuras mais emblemáticas não apenas da música folk, mas também da cultura popular americana – um trovador, um cantor e compositor itinerante, extremamente engajado social e politicamente, e boa parte de seu legado de centenas de músicas é composta por canções de protesto ou de forte cunho social. Nativo de Oklahoma, Guthrie viveu na pele as dificuldades dos anos da Grande Depressão e do Dust Bowl, e suas viagens muitas vezes acompanharam a trilha dos migrantes – a quem deu voz em suas chamadas Dust Bowl ballads (“baladas do Dust Bowl”, como vieram a ser conhecidas), na tradição das hurt songs (“canções de dor”, em tradução livre) da música folk (GARMAN, 2004). À época desse contato com a obra de Guthrie, Springsteen começara a ler autores como John Steinbeck e Flannery O’Connor e a assistir a filmes do diretor John Ford, todos artistas de fortíssima identidade americana, começando assim a nutrir um grande interesse pela história cultural e política dos Estados Unidos (GARMAN, 2000), o que o leva à intenção de que sua música “continue a ter valor e um senso de lugar” (SPRINGSTEEN apud SAWYERS, 2004, p. 9). A influência da ideologia de Woody Guthrie, de seu legado musical e da tradição da música folk das hurt songs – canções simples, esparsamente acústicas e muitas vezes de atmosfera carregada – viriam a marcar amplamente o trabalho subseqüente de Springsteen, e expõe-se, pela primeira vez de maneira flagrante e visceral, em Nebraska, de 1982 (GARMAN, 2004). A “descoberta” de Woody Guthrie por Springsteen coincide com um momento de crescente desigualdade social nos Estados Unidos, o início dos anos 80 e da era Reagan, e Nebraska é um reflexo desses tempos, documentando um “isolamento [americano] [...], o que acontece às pessoas quando elas são alienadas [...] de suas comunidade, de seu governo e de seu emprego” (SPRINGSTEEN apud GARMAN, 2004, p. 224). Seus trabalhos subseqüentes, do decorrer dos anos 80 e início dos anos 90 seriam pontuados, em maior ou menor grau, por comentários sociais, mas Springsteen, só retornaria a uma estética musical semelhante à de Nebraska e ao realismo social que permeia aquele álbum e a se inserir na tradição das hurt songs em 1996 (GARMAN, 2004), quando As vinhas da ira, a herança cultural de Woody Guthrie e um contexto sócio-histórico tão opressor quanto o do romance de Steinbeck exercem papel e influência fundamentais na concepção de The ghost of Tom Joad. Ao longo da década de 80 e início da década de 90, Ronald Reagan e George H. W. Bush haviam conseguido direcionar (e manter) o posicionamento e foco políticos dos Estados Unidos à direita republicana, conservadora. Assim, segundo comenta Eric Alterman (2001), na metade dos anos 90, já no governo de Bill Clinton, a grande maioria republicana da população acreditava encontrar-se numa nação em prosperidade e providência. Porém, para as minorias relegadas pelas alas republicanas, as classes baixas e particularmente os imigrantes desfavorecidos, havia uma outra perspectiva: a verba governamental para o acesso a, por exemplo, “vales-refeição, moradia subsidiada, programas extracurriculares nas escolas, tratamento médico emergencial e afins” foi cortada ou reduzida, em favorecimento a investimentos bélicos e ao reforço de policiamento de imigração – as atuais classes desfavorecidas (e em especial os imigrantes nelas inseridos) teriam de “simplesmente descobrir como sobreviver na América”, à maneira de gerações passadas (ALTERMAN, 2001, p. 255). The ghost of Tom Joad foi lançado no final de 1995, chegando ao mercado com os resquícios da era Reagan ainda reverberando consideravelmente nas esferas social e política, e Springsteen trata, no álbum, de uma controvérsia cada vez mais crescente nos Estados Unidos nas últimas décadas, a da questão da imigração ilegal, praticamente inexistente como problemática social de peso nos anos 30, quando os migrantes do Dust Bowl (como romantizados por Steinbeck) provinham diretamente do povo americano. Springsteen, na alusão ao personagem de As vinhas da ira, canta os “Tom Joads atuais”, da América moderna, incluindo entre eles “os novos imigrantes do México e do Vietnã, que sofrem as mesmas injustiças que os trabalhadores migrantes dos anos 30” (HILBURN, 1996, p. 25). Em entrevista a Will Percy para a revista Doubletake, em 1998, Springsteen comenta sobre a concepção do álbum (tradução nossa): O que chamamos “arte” tem a ver com políticas sociais – e tem a ver com como você e sua esposa ou você e seu parceiro se relacionam no cotidiano. Eu [me preocupo] que minha música aborde todas essas bases. E como eu faço isso? O faço ao contar histórias, através da voz de personagens – com sorte, histórias sobre inclusão. As histórias em The ghost of Tom Joad foram uma extensão [uma ampliação] desses ideais: histórias sobre irmãos, amantes, mobilidade, exclusão – exclusão política, exclusão social – e também sobre a responsabilidade desses indivíduos – ao fazerem más escolhas, ou escolhas as quais foram pressionados a fazer (SPRINGSTEEN apud PERCY, 1998, p. 40; tradução nossa). Tanto a declaração de Springsteen quanto a “atualização” dos temas de As vinhas da ira que ocorre em The ghost of Tom Joad corroboram com as questões de interesse da área de Estudos Culturais, cujos conceitos e posicionamentos elementares procuramos explanar no referencial teórico do presente trabalho. A perspectiva de Springsteen sobre as “políticas sociais” da arte (ou, pelo ponto de vista dos Estudos Culturais, da produção cultural) ilustra exatamente a abordagem do objeto cultural como articulador, em sua estrutura, das subjetividades sociais do cotidiano. 3. Da análise de As vinhas da ira e The ghost of Tom Joad e da articulação sociocultural entre as obras, e as conclusões refletidas Woody Guthrie afirmava que sua função como cantor folk era, com as hurt songs, contar “histórias sobre as pessoas do Dust Bowl sobre as quais John Steinbeck não havia escrito” (GUTHRIE apud GARMAN, 2004, p. 222), e as novas relações de poder historicamente estruturadas à época de The ghost of Tom Joad levam o álbum de Springsteen, como um produto cultural inspirado artística e ideologicamente em outro, anterior (As vinhas da ira), a abranger justamente esse espectro: a Califórnia como retratada por Springsteen em The ghost of Tom Joad tem algo de muito próximo à Califórnia dos anos 30 e da Grande Depressão. Agora, porém, as migrações deixavam de ser apenas internas, intraterritoriais e envolviam fronteiras geográficas, humanas e interculturais. O que era, na Grande Depressão dos anos 30, o êxodo de uma comunidade específica inserida nos limites geográficos de uma nação, passara, no mundo globalizado pós-moderno, de sua dimensão “local” para uma dimensão “global”: tornara-se um movimento diaspórico, ou seja, uma mobilidade não mais de uma comunidade ou grupo de indivíduos “local”, mas de uma comunidade compreendida por uma outra cultura, outra sociedade, outra nação (HALL, 2006). Ideologicamente e como produto cultural, As vinhas da ira (assim como o conjunto da obra de Springsteen) tem implicações, interesses e preocupações de classe muito mais do que raciais (CULLEN, 2005). Porém, o fato de canções de The ghost of Tom Joad tratarem de imigrantes mexicanos (e não de brancos, anglo-saxões provindos do “coração da América” como os okies “originais”) se deve não somente à escolha de Springsteen de compor sobre eles. Essa escolha, como meio de produção, como processo criativo na produção de um objeto cultural – como foi a trajetória de Steinbeck junto aos migrantes para vir a escrever As vinhas da ira – foi tomada exatamente devido às conjunturas socioeconômica, ideológica e política (e a seus reflexos práticos) e às relações de poder da sociedade na qual The ghost of Tom Joad se inseria como objeto cultural, e com a qual se articulava como tal. Ambas as obras de Steinbeck e Springsteen procuram comentar e trazer à baila questões de relações sociais e de poder, e, como produtos culturais, observar como indivíduos e comunidades específicas respondem ou reagem a essas relações. Ao intitular seu álbum de The ghost of Tom Joad, “o fantasma de Tom Joad”, Springsteen busca não apenas evocar a personagem, mas também sua significação cultural, compartilhando com Steinbeck uma visão de empenho artístico ligado intrinsecamente a seu momento histórico específico (COLOGNE-BROOKES, 2002). Em As vinhas da ira, Tom Joad representaria “o peregrino fundamental” (RAILTON, 1990, p. 36): no início do romance, ele está a caminho de casa (seu “lar”), sem muita escolha de fato, pois forças maiores econômicas e naturais já o têm como exilado de seu lar antes mesmo que ele possa alcançá-lo – submetendo-o à migração, em busca de um novo lar. Mesmo alcançando a “Terra Prometida” na Califórnia, Tom escolhe, por derradeiro, abandonar a família para representar um ideal de resistência àquelas forças maiores instituídas – seja no aspecto social ou humano: “onde quer que o povo esteja – este é o novo lar de Tom. Todas as fronteiras ao redor de seu eu se dissolveram” (RAILTON, p. 37; grifos nossos). Tendo passado por toda sua formação até atingir seu destino na “Terra Prometida”, Tom finalmente rompe seus laços e limitações privados para abraçar uma causa de integração e unidade humanas, interdependentes, forjando sua “nova identidade” em sua nova terra (HOCHENAUER, 1994, p. 404; grifo nosso). As questões das fronteiras em oposição ao individualismo (“eu”), da interação humana unificadora e da formação de uma nova identidade em uma nova terra permitem situar o escopo da obra de Steinbeck (e, mais especificamente, a significação de seu personagem Tom Joad) no contexto sócio-histórico do álbum de Bruce Springsteen, The ghost of Tom Joad: o mundo pós-moderno, globalizado, no qual as problemáticas sociais, como retratadas por Springsteen, ampliaram-se desde a época da concepção de As vinhas da ira e de Tom Joad. O contexto do “fantasma de Tom Joad” envolve o cruzamento de fronteiras não apenas nacionalmente internas, mas internacionais, interculturais e ideológicas, além do reflexo desse cruzamento nas relações sociais entre os indivíduos. Entram em questão a noção de integração e aceitação desses indivíduos em (uma) sociedade(s), bem como a da constituição de suas novas identidades, ou da hibridização de suas identidades já formadas, em uma “nova terra” – cujo conceito agora extrapola o geográfico, implicando uma nova sociedade e uma nova cultura (HALL, 2003; 2006). Bruce Springsteen, ao conceber o álbum The ghost of Tom Joad, em 1995, dá continuidade a essas releituras, situando a força simbólica e a significação de Tom Joad no contexto da sociedade americana das décadas de 90 e do mundo globalizado. Ao dar voz ao fantasma que pretende recriar, Springsteen dá vazão ao seu próprio discurso e visão quanto à luta de classes e a resistência social, ao mesmo tempo em que reafirma a significação cultural de Tom Joad como concebido por Steinbeck e como “profeta das classes desfavorecidas” (SHINDO, 1997, p. 215). Nesse processo, reafirmando a significação da personagem no contexto sociocultural do álbum, Springsteen efetivamente associa a voz de Tom Joad à voz dos “novos” oprimidos do final do século XX, deslocando o símbolo do migrante local do Dust Bowl de suas circunstâncias históricas e situando-o na realidade globalizada (SHINDO, 1997). Entretanto, na articulação desenvolvida por Springsteen entre o elemento simbólico (a significação da personagem) e o elemento social (o contexto de seu objeto cultural), Tom Joad não é, como em As vinhas da ira, a personificação de fins pragmáticos de seus ideais e senso de resistência, e sim um “fantasma” imbuído desses ideais e desse senso de resistência, porém desprovido de materialidade. Ou seja, uma fantasmagoria capaz de criar figuras e noções de tais ideais em sua realidade social determinada, mas não de efetivá-las por si só. O que Springsteen ressalta ao evocar o fantasma de Tom Joad é uma necessidade da apreensão social de sua significação, ou seja, de seus ideais de resistência. Tom Joad faz-se finalmente “presente” na canção, mas como um perseverante “fantasma” (“the ghost of old Tom Joad”) de “velhos” símbolos de resistência (MARIL, 2002, p. 9). A rodovia, aqui símbolo da migração forçada pela opressão, está viva (“the highway is alive”), enquanto Tom Joad existe apenas como evocação, como fantasma. Com as fronteiras diluídas, a hibridização do senso de identidade cultural e social do indivíduo e as conjunturas socioeconômica e política da globalização (HALL, 2006), a opressão sobrepõe-se às resistências social e moral outrora idealizadas e pregadas por John Steinbeck em As vinhas da ira, ao mesmo tempo em que cresce a sensação de “não pertencer” (“not belonging”) entre os indivíduos. Na visão oferecida por Springsteen, o mito sociocultural americano da mobilidade desilude-se, no mundo pós-moderno globalizado, configurado numa jornada para lugar nenhum, ou cujo final traz perspectivas e implicações acerbas (CULLEN, 2005; GARMAN, 2000). O personagem do qual a canção tira sua força inspiradora, Tom Joad, foi concebido como uma articulação cultural dos indivíduos oprimidos dos anos da Grande Depressão e do Dust Bowl, e é essa mesma atmosfera social que assombra os indivíduos oprimidos de sessenta anos depois. Se, por um lado, o Tom Joad de As vinhas da ira representava uma possibilidade humana de resistência e subseqüente mudança social, o Tom Joad da canção de Bruce Springsteen é apenas uma evocação dessa possibilidade, cujas perspectivas são reduzidas e limitadas, ou mesmo rarefeitas, pela “nova ordem mundial” (“the new world order”) pós-moderna. Gore Vidal (apud COLOGNE-BROOKS, 2002, p. 43) afirma que a obra de Steinbeck foi um “nobre registro” de “seu tempo” e do “espírito de uma nação e de uma era”; segundo Cologne-Brooks (2002, p. 43), “o mesmo se aplica a Springsteen”: ambos Steinbeck e Springsteen teriam dado voz poética às classes oprimidas de seus contextos sócio-históricos específicos e, por meio dessa voz, apontado o status quo da sociedade americana. A era retratada em The ghost of Tom Joad se insere na continuidade histórica daquela retratada em As vinhas da ira. Se, por um lado, o contexto de produção de As vinhas da ira como objeto cultural – a Grande Depressão – suscitava o anseio por resistência e mudança sociais, conquanto incertas, por outro lado os desdobramentos sócio-históricos posteriores da sociedade americana terminaram no contexto de produção do álbum de Springsteen – o mundo globalizado: as problemáticas de opressão e inserção sociais amplificaram-se do local para o global, e as presentes relações de poder minam o senso de resistência representado por Tom Joad. Não obstante, a significação do personagem de Steinbeck permanece, fundamentalmente, calcada na concepção do “homem comum” ante à sua sociedade; sociedade essa cuja formação e solidificação dependeram intrinsecamente da participação desse “homem comum” – “Tom Joad [seria] uma força cultural firmada [no espírito da ‘América’], um sinal de alerta em tempos conturbados” (MARIL, 2002, p. 10). The ghost of Tom Joad reivindica sua relevância, e reafirma a de As vinhas da ira, como produto cultural à medida que demonstra, reconstruindo simbolicamente sua realidade contextual, a necessidade da (re)apreensão da consciência de resistência moral e social como concebida por John Steinbeck. O legado de As vinhas da ira reflete-se em The ghost of Tom Joad não apenas na “releitura” do personagem, mas também na própria estruturação do álbum (ou, mais precisamente, da canção-título) como produto cultural. Ambos transmitem, no cultural, uma visão e reflexão da relação dos indivíduos com seus grupos sociais e seus contextos sócio-históricos. O fantasma de Tom Joad segundo Bruce Springsteen é não apenas uma releitura do personagem de As vinhas da ira, mas um reflexo da continuidade, do desenvolvimento e da ampliação do diâmetro de um ciclo sócio-histórico: a experiência dos Joads “é universal”, à medida que Steinbeck retrata a família “vivenciando o que imigrantes suportaram ao longo da [H]istória” (GLADSTEIN, 1999, p. 126-127; tradução e grifo nossos). A realidade americana como representada em The ghost of Tom Joad é o produto do desenredo histórico da realidade americana dos anos da Grande Depressão: os migrantes chegaram à “Terra Prometida” na Califórnia, e não se podia ir mais além; no mundo globalizado pós-moderno, essa fronteira foi transposta e as direções invertidas: a nação americana inteira sublimou-se na idealização da “Terra Prometida”, tornando-se o destino de (i)migrantes de origens internacionais e interculturais e, ao mesmo tempo, estratificando sua própria sociedade e identidade cultural em subclasses e classes excluídas. Finalmente, notamos que, se The ghost of Tom Joad não aponta, em sua articulação social, implicações ou vieses práticos para os meios de resistência, como o faz As vinhas da ira, isso também é reflexo e diz respeito à conjuntura sócio-histórica na qual o álbum se insere como produto cultural – que oprime ou não dá vazão a tais meios de resistência. Não obstante, a própria estética musical na qual The ghost of Tom Joad foi concebido vai contra uma perspectiva estritamente comercial e mercadológica da música popular como produto cultural – o que por si só já pode constituir um posicionamento de resistência, ou ao menos de oposição a um establishment, da parte de Bruce Springsteen enquanto “produtor cultural” de uma mídia específica. A análise proposta pelo trabalho, da articulação entre os dois produtos culturais focados, cujas vozes são essencial e absolutamente americanas, nos permite, por derradeiro, parafrasear Jean-Paul Sartre (1946) em artigo sobre As vinhas da ira: as injustiças representadas, no cultural, em As vinhas da ira e, subseqüentemente, em The ghost of Tom Joad, são produto não apenas da deficiência de uma sociedade específica, como também um sinal da imperfeição de nossa época. Referências ALTERMAN, Eric. It ain’t no sin to be glad you’re alive: the promise of Bruce Springsteen. Boston: Back Bay, 2001. 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