Mecanismos e critérios de cooperação em redes mercantis na segunda metade do século XVI – a rede de Simon Ruiz (1553-1597). Considerações sobre um projecto de doutoramento. Ana Sofia Ribeiro1 O projecto com o acrónimo Dyncoopnet “Dynamic Complexity of CooperationBased Self-Organising Networks in the First Global Age” reúne, além de historiadores, especialistas de outras ciências, onde trabalham três equipas distintas: a americana, a esponhola e a portuguesa, da qual fazemos parte. A equipa concebeu um projecto centrado na segunda metade do século XVI e primeiras décadas do século seguinte, uma vez que foi uma época particularmente activa a nível económico, “oú les marchands s’enrichissent et s’élévent2.” A organização das finanças chega ao Estado, grandes companhias mercantis internacionais interferem nas finanças do Estado, assumindo funções a nível do abastecimento e do crédito. Estas oportunidades de negócio a uma escala transnacional multiplicaram-se e adensaram-se, obrigando estes importantes mercadores a construirem uma rede de contactos numa vasta geografia do negócio. Simon Ruiz e a sua companhia comercial afiguram-se-nos como um excelente caso de estudo. Nascido em Burgos, entre 1525 e 1526, no seio de uma família de pequenos comerciantes de lã, começou a sua actividade comercial 25 anos mais tarde, por meados de quinhentos, como agente de Ivon Roncaz de Nantes, no trato de panos nas feiras de Medina del Campo. A importância destas feiras consideradas um ponto nevrálgico de circulação de pessoas, mercadorias e crédito3, encorajaram Ruiz a envolver-se em parcerias sucessivas em actividades de comércio4. Procurando investir para alargar os lucros no comércio do azeite, especiarias, indigo, sal e trigo, Simon Ruiz começou a colocar agentes da sua confiança em pontos geográficos vitais para os seus negócios. Além disso, começou a construir uma rede de informantes em praças de relevância internacional no tempo, como Lisboa, Génova, Ruão, Roma, Veneza ou Lyon5. A importância da sua firma não se fixou no mero trato comercial. Em Medina del Campo, uma importante praça de câmbio, iniciou-se como banqueiro, 1 Estudante de doutoramento em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e “Group Member” como investigadora na equipa portuguesa do projecto TECT/EUROCORES DyncoopNet (Dynamic Complexity of Cooperation-Based Self-Organizing Networks in the First Global Age, 15001800), financiado pela European Science Foundacion (ESF) e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). 2 JEANIN, Pierre – Les marchands au XVIe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 1957.p.3. 3 BRAUDEL, Fernand – Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVIII. Lisboa: Teorema, 1992. Vols. 2. p. 68. 4 LAPEYRRE, Henri (1955) – Une famille de marchands: les Ruiz. Paris: Armand Collin, 1955.pp. 60-62. 5 GONZALEZ TORGA, José Manuel – “Simón Ruiz, un Mercader banquero: volcado a Europa desde Medina del Campo.” Revista de la Hermandad del Valle de los Caídos. Nº 97 (2005). LAPEYRRE, Henri – op. cit. pp. 144-145. Page 1 especializando-se em câmbios. Entre 1576 e 1588 encontra-se entre um dos mais significativos credores de Filipe II. Preenchendo em traços gerais o retrato do mercador-banqueiro da centúria de quinhentos, Simon Ruiz deixou documentadas relações de cooperação comerciais pontuais ou contínuas com alguns indivíduos, como com os Rodrigues de Évora6. Por outro lado, contrui uma rede social de agentes, representantes da firma, colaboradores e informantes comerciais que, de forma dinâmica, vão apresentando relações e comportamentos económicos que evoluem ao longo do tempo. A sua importância em espaços chave da economia europeia do início da época moderna tornam-no uma referência não só na Península Ibérica, mas também no resto da Europa, aumentando a potencial amplitude da rede, a variedade e heterogeneidade de parceiros que resultarão num estudo representativo dos mecanismos de cooperação e constituição de redes comerciais na Europa da segunda metade do século XVI, ainda que a actividade da firma comercial de Simon Ruiz se mantenha até ao início de seiscentos, depois da data da sua morte em 1597, sob a direcção do sobrinho Cosme Ruiz. Justificado o nosso objecto de estudo importa nesta comunicação: 1) Salientar o que entendemos por cooperação – conceito central e multidisciplinar; 2) Evidenciar as linhas teóricas que fundamentam o nosso projecto; 3) Explicitar a metodologia a adoptar; 4) Elencar os problemas suscitados no trabalho em curso e as formas de ultrapassá-los. 1. Cooperação – ideia central A palavra central no título da nossa futura dissertação de doutoramento é a palavra «cooperação» invocada aqui em redes sociais, comerciais e financeiras do século XVI. A cooperação será estudada por nós em duas vertentes: os seus mecanismos, isto é, a forma em que a cooperação se cria e se desenvolve;7 e os seus critérios, os factores decisivos para a escolha de parceiros, parceiros esses incorporados na sua rede de negócio, através de opções baseadas em decisões racionais.8 1.1. O conceito Todavia, a escolha do estudo da cooperação implica o conhecimento de uma pluralidade de metodologias e conceitos, dado o seu carácter multidisciplinar. Apesar 6 SILVA, J. Gentil da - Marchandises et finances. Lettres de Lisbonne (1563-1578). Paris: Armand Collin, 1959. 2 vols. 7 Oxford English Dictionary in www.askoxford.com. 8 “From the cognitive science viewpoint, cooperative learning involves modeling, coaching, and scaffolding (conceptual frameworks provided for understanding what is being learned). The learner must cognitively rehearse and restructure information for it to be retained in memory and incorporated into existing cognitive structures.” In BALTES, Paul; SMELSER, Neil J. – International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences. Oxford: Elsevier, 2001. Vol. 4. p. 2748. Page 2 de muitas variantes e dos diversos enfoques no objecto, a cooperação. O seu conceito tem sido construído pelos contributos da Biologia Evolucionária. Para Hamilton, a cooperação existe quando um indivíduo assume um comportamento que lhe traz custos mas ajuda a criar um ganho para todos a si relacionados («public good»), beneficiando a todos9. Hamilton assume claramente um princípio altruístico na cooperação, que nos parece claramente insuficiente. A cooperação pode ser originada por um princípio mais egoísta. Por isso, é também no ramo da biologia evolucionária que mais recentemente se têm produzido conceitos de cooperação que estão cada vez mais afinados. West et al. produzem o seguinte: “a behavior which provides a benefit to another individual and which is selected for because of its beneficial effect on the recipient.10” Na nova Economia, o conceito de cooperação reporta-se a duas características fundamentais. A primeira de que é uma acção colectiva de indivíduos que pretendem partilhar, de forma espontânea ou planeada, uma determinada tarefa necessária e lucrativa para todos. A segunda de que é um processo social em que pessoas, grupos, instituições actuam de forma combinada para atingir objectivos comuns11. No fundo, esta definição de cooperação apresenta-se uma característica necessária das relações económico sociais. Este será uma das ideias chave a utilizar na versão historiográfica, além da dualidade custo vs. benefício já aqui descrita da Biologia. A sociologia foi e é uma das disciplinas que mais estudo a cooperação. Axelrod, nos anos 80, define cooperação como a forma como agem os indivíduos com os seus próprios interesses, seguido de uma análise sobre os efeitos que produzem sobre o todo12. A introdução dos interesses individuais parece-nos um factor chave quando se fala da cooperação em humanos, sobretudo em actividades económicas. Existem interesses individuais das duas partes cooperantes, que vêem na cooperação um meio em que ambos podem beneficiar – “It is a major and fundamental error to take it for granted that because certain cooperative behaviour will benefit every individual in a group, ratinal individuals will adopt this bahaviour.13” Motivos e crenças individuais são a base da cooperação, são eles que permitem um certo equilíbrio na acção dos indivíduos e mantêm o princípio de que a cooperação é um jogo em que o benefício de cada parte cooperante terá de ser maior do que o custo dessa acção para cada uma delas. A Antropologia importa a influência dos aspectos culturais na emergência da cooperação. Para os antropólogos, é a identidade de um grupo que sustenta a acção 9 HAMILTON, William D. - “The genetical evolution of social behavior. I & II”. Journal of Evolutionary Biology, nº 7. P. 3. 10 WEST, S. A.; GRIFFIN, A. S.; GARDNER, A. (2007a) – “Social semantics: altruism, cooperation, mutualism, strong reciprocity and group selection”. Journal of Evolucionary Biology, nº 20. p. 416. 11 JESUS, Paulo de; TIRIBA, Lia – “Cooperação” in CATTANI, A. D.; LAVILLE, J.-L.; GAIGER, L. I.; HESPANHA, P. (coord.) – Dicionário Internacional da Outra Economia. Coimbra: Almedina, 2009. p. 80. 12 AXELROD, Robert – The evolution of cooperation. New York: Basic Books, 1984,p. 6. 13 GAMBETTA, Diego – “Can we trust trust?” in GAMBETTA, Diego (ed.) – Trust: making and breaking cooperative relations. Oxford: Basil Blackwell, 1990. p. 216. Page 3 do Homem.14 “Cooperation is typically characterized by conditions in which individual group members can maximize their gains by refraining from cooperation when others invest in the cooperative activity.”15 Assim, a cooperação é promovida pelos sistemas humanos de crenças e valores, tal como a cooperação é uma vantagem de adaptação à vida em sociedade, conseguindo o beneficío individual em simultâneo com o benefício do grupo, tornando-se intragrupal ou intergrupal. Os especialistas das Ciências Cognitivas e Comportamentais, além de defenderem que a cooperação é baseada num processo de decisão racional, compreendem-na de forma mais individualizada, com a tónica nas emoções. Vêem-na como um processo em que os indivíduos agem para maximizar os seus próprios interesses, actuando de forma a maximizar as suas recompensas (experiências de interacção positivas que trazem benefícios que lhe conferem bem-estar físico ou emocional, auto-estima ou crescimento pessoal) e minimizar os seus custos ou punições (experiências de interacção negativas que trazem ao indivíduo dor emocional ou sensações de falhanço). “Cooperation exists when individuals work together to accomplish shared goals. When a situation is cooperatively structured, individuals’ goal achievements are positively related; individuals perceive that they can reach their goals if, and only if, the others in the group also reach their goals.”16 Apesar de muitos historiadores portugueses e estrangeiros terem estudado diversas redes de mercadores em vários períodos da Época Moderna (Braudel, Wallerstein, Gentil da Silva, Vitorino Magalhães Godinho17) e de terem compreendido que as estruturas sociais do negócio funcionavam através da interrelação entre diferentes indivíduos, em diferentes espaços, não focalizaram nunca a ideia de cooperação. Nos últimos anos, alguns profissionais da História começaram a olhar para estas redes através dos factores que potencializavam uma interacção prolongada entre diferentes companhias ou entre diferentes indivíduos.(Margrit Schulte Beerbuhl, Francesca Trivellato, Jessica Roitman, Ricardo Court, entre outros...).18 14 RUFFLE, Bradley J.; SOISES, Richard – “Cooperation and the in-group-out-group bias: a field test on Israeli Kibbutz members and city residents”. Journal of Economic Behavior and Organization: Elsevier. Nº 60 (2006), p. 148. 15 IRONS, W. – “Religion as a hard-to-fake sign of commitment” in NESSE, Randolph (ed.) –The evolution of commitment. New York: Russel Sage Foundation, 2001, 16 BALTES, Paul; SMELSER, Neil J. – International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences. op. cit.. p. 2749 17 BRAUDEL, Fernand – Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVIII. Lisboa: Teorema, 1992. Vols. 2 e 3; WALLERSTEIN, Immanuel – O sistema Mundial Moderno. Porto: Afrontamento, 1990. Vol.1.; SILVA, J. Gentil da - Marchandises et finances. Lettres de Lisbonne (1563-1578). Paris: Armand Collin, 1959. 2 vols; Idem – Stratégie des affaires à lisbonne entre 1595 et 1607. Lettres Marchands des Rodrigues d’Evora et Veiga. Paris: Libraire Armand Colin, 1956. 18 BEERBÜHL, Margrit Schulte; VÖGELE, Jörg (eds.) – Spinning the commercial web: international trade, merchants and commercial cities, c. 1640-1939. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2004; BEERBÜHL, Margrit Schulte – “Spatial construction and social norms in eightennth century trade networks” in the DyncoopNet Workshop TRUST, REPUTATION, DEFECTORS, and SUSTAINING SOCIAL NORMS: STUDYING SPATIALLY COMPLEX COOPERATIVE RELATIONSHIPS IN WAYS THAT CONNECT TECT PROJECTS. Porto.2629 March 2008. Texto policopiado; TRIVELLATO, Francesca – The Familiarity of Strangers: the Sephardic Diaspora, Livorno and cross-cultural trade in the Early Modern Period. Yale: Yale University Press, 2009; Page 4 Uma das definições que poderá traduzir melhor a ideia de cooperação em circuitos comerciais, na realidade em estudo, baseia-se na dependência entre as duas partes para sustentar a ideia de que colaboração entre ambas, cada uma com as suas motivações específicas, só é possível porque sozinhas não produzirão lucros (benefícios) tão alargados. “Two agents cooperate when they engage in a joint venture for the outcome of which the actions of each other are necessary, and where a necessary action by at least one of them is not under the immediate control of the other.19” Aceitando esta definição de cooperação, devemos entendê-la como um trabalho comum entre indivíduos com objectivos mutuamente acordados e em que o seu sucesso é dependente do dos outros; é um tipo de interacção orientada para um objectivo comum, através de determinada estratégia, num momento específico. É um puzzle aritmético de custos e benefícios, crenças e motivações. 1.2. Níveis de Cooperação De forma a dar alguma inteligibilidade a esta ideia de cooperação, necessitámos de criar os níveis de cooperação possíveis no nosso estudo de caso. Inspirados entre as ideias lançadas por um dos Associated Partners do projecto Dyncoopnet, Mathew Ciolek, e pelo trabalho de constituição de níveis de cooperação em relações cooperantes entre empresas da actulidade de Marko Makipaa20, optámos por criar uma taxonomia, que nos permitirá categorizar cada acto em estudo de forma mais exacta, através de uma classificação numérica, dividida em pontos negativos e positivos. Esta taxonomia é hieráquica. Quanto maior o numeral introduzido maior é a cooperação ou a não-cooperação. ROITMAN, Jessica - Us and Them: Inter-cultural Trade and the Sephardim, 1595-1640. Leiden: [s. e.], 2009. Tese de doutoramento apresentada à Universidade de Leiden; COURT, Ricardo (2008) – “The Language of Trust: reputation and the spread and maintenance of social norms in sixteenth century genoese trade”. in the DyncoopNet Workshop TRUST, REPUTATION, DEFECTORS, and SUSTAINING SOCIAL NORMS: STUDYING SPATIALLY COMPLEX COOPERATIVE RELATIONSHIPS IN WAYS THAT CONNECT TECT PROJECTS. Porto.26-29 March 2008. 20 MAKIPAA, Marko – “On cooperative inter-organisational relashionships: historical ground and levels of cooperation”. International Journal of Enterprise Network Management. Vol.2, nº2, pp. 105-122. Page 5 Tabela 1 – Taxonomia de comportamentos cooperantes Classificação numérica Designação +3 Colaboração +2 Coordenação +1 Comunicação -1 «Defection» -2 «Cheating» -3 Concorrência Definição Pólo Positivo São, normalmente, relações de dependência de longa data, como por exemplo quando uma sociedade comercial se mantém por longos anos. Este garu mais intenso de cooperação inclui a promoção do ingresso de alguém na equipa de trabalho, partilha igualitária de ganhos e perdas e a divisão de tarefas através de uma especialização interconectada. Exige o mutualismo entre duas partes, porque existem dependências. Podemos designar este tipo de relações como relações de investimento, em que ambas as artes trocam serviços. Aqui se inclui a facultação de ajuda social dentro de alguns círculos, para facilitar a introdução de novos agentes no negócio de um parceiro, facultar ajuda técnica, facultar e facilitar empréstimos a alguém que precisa, entre outros. É o requerimento mínimo para haver relações de mnegócio entre duas partes, partilhando determinado tipo de informação, que aumentará a previsibilidade do negócio, reduz custos e ajuda a inserir em determinados mercados pelo ajustamento da oferta à procura. Poderá constar também num aviso de um indivíduo exterior à rede, um conselho sobre novas oportunidades de venda mais rentável, melhores oportunidades de investimento, dar uma recomendação ou uma boa referência a quem necessita, ... Pólo Negativo Uma das partes recusa-se a cooperar or um qualquer motivo, quando a expectativa do outro era a de que cooperasse. Indivíduos que premeditadamente não cooperam, mas conseguem usufruir dos benefícios dos outros, ainda que possam vir a ser severamente punidos. Indivíduos que se auto escluem da rede, boicotando a cooperação entre a rede e Page 6 cortando com as relações comerciais. 2. O quadro teórico 2.1. Pressupostos teóricos e hipóteses a testar Procuraremos testar na nossa dissertação de doutoramento as seguintes hipóteses: • As dinâmicas de cooperação numa determinada rede, além de directamente condicionados por questões de conjuntura económica e política, estão relacionados com outros factores intangíveis, como a confiança, a reputação, o risco, elementos fulcrais para o estabelecimento de cooperação e não cooperação. Na segunda metade do século XVI, a interdependência entre indivíduos no trato comercial estava a aumentar, tal como se interpenetravam vários circuitos comerciais mesmo dentro do continente europeu. A juntar-se a este adensamento das redes comerciais, surgiram redes sociais de negócio cada vez mais densas. Se se multiplicavam os pontos geográficos de negócio, cada um desses pontos poderia corresponder a contactos com indivíduos que poderiam ocupar inúmeras funções dentro dessas redes. Evidência de tal são as nações de determinadas comunidades de mercadores nas principais praças financeiras e económicas da época.21. Para isso, a confiança parecia vital para que o próprio negócio se realizasse. Ricardo Court investigando a correspondência dos Brignole de Génova constatou que a confiança era um dos principais factores para a manutenção de longas relações comerciais, que às vezes eram reforçadas por actos para a consolidação desta confiança, como o casamento22. Mas as ciências cognitivas provaram já que a confiança é essencial quando se tomam decisões de risco. Depois da avaliação se a cooperação com determinado indivíduo é importante para atingir os seus interesses, e tendo uma imagem social da reputação desse agente, o mercador escolheria ou não estabelecer uma relação de cooperação com um novo parceiro23. Por isso, este 21 CASADO ALONSO, Hilario – Castilla y Europa. Comercio y mercaderes en los siglos XIV, XV, XVI. Burgos: EXCMA/ Diputación Provincial de Burgos, 1995. p. 37. 22 COURT, Ricardo (2008) – “The Language of Trust: reputation and the spread and maintenance of social norms in sixteenth century genoese trade”. in the DyncoopNet Workshop TRUST, REPUTATION, DEFECTORS, and SUSTAINING SOCIAL NORMS: STUDYING SPATIALLY COMPLEX COOPERATIVE RELATIONSHIPS IN WAYS THAT CONNECT TECT PROJECTS. Porto.26-29 March 2008. P.4. 23 DI TOSTO, Gennaro– “Social Psychology of reputation and the maintenance of social norms”, in the DyncoopNet Workshop TRUST, REPUTATION, DEFECTORS, and SUSTAINING SOCIAL NORMS: STUDYING SPATIALLY COMPLEX COOPERATIVE RELATIONSHIPS IN WAYS THAT CONNECT TECT PROJECTS. Porto.2629 March 2008. Page 7 sistema seria absolutamente controlado pela informação que circulava entre os parceiros, onde a reputação é absolutamente dependente do boato. • As redes de negócio têm um ciclo de vida dinâmico, onde os parceiros progressivamente fazem negócio com continuidade temporal e têm tendência a ser mais punitivos em relação ao rompimento das normas de funcionamento da rede. Este é um processo dinâmico e complexo, uma vez que a cooperação assenta em redes nunca fechadas. Assim, alguns agentes entram, outros saem, a estrutura muda. As relaçãoes de poder e hierarquia dentro da rede são mutáveis. As regras evoluem, podendo ser informais (delineadas pelo próprio grupo) ou formais (de instituições externas à rede, como o próprio Estado legislador)24. • A endogamidade de uma rede económica do século XVI era limitativa, obrigando o mercador a encontrar parceiros exteriores ao grupo inicial, familiar e étnico, fundamentando a escolha em critérios sociais e não exclusivamente económicos. Hanna Kokko, através de observação empírica, constatou que, no mundo animal, a sobrevivência da rede de relações e mesmo a sua reprodução é assegurada pelo alargamento do grupo inicialmente formado por indivíduos geneticamente relacionados, através do recrutamento de indivíduos estranhos às relações próximas; é designado por «group augmentation»25. Temos o exemplo da comunidade de judeus sefarditas de Amesterdão, que depois de construírem uma rede baseada na mesma filiação etno religiosa, se voltaram para parceiros externos à comunidade judaica26. A portuguesa judia Gracia Nasi (ou Beatriz de Luna) mantinha relações com católicos propositadamente para manter a sua sobrevivência e a do seu património face às perseguições governamentais e inquisitoriais27. Este alargamento do grupo não tem o mesmo nível de integração para todos os agentes. Assim assistimos a um alargamento passivo, quando os indivíduos beneficiam unicamente da presença do outro. Por outro lado, um alargamento activo ocorria quando a inclusão de um novo parceiro trazia ucros significativos ao nosso mercador, não só económicos, mas também através da possibilidade de recrutamento de novos membros para o grupo. 2.2. Delimitação espacial e temporal do objecto de estudo 24 INSTITUTE FOR THE FUTURE - Toward a new literacy of cooperation in business: managing dilemmas in the 21st century. Melon Park: [s. e.], 2004. Documento electronic: http://cooperation.smartmobs.com/cs/files/IFTF_New_Literacy_of_Cooperation1.pdf. 25 KOKKO, Hanna; JOHNSTONE, Rufus; CLUTTON-BROCK, T. H. (2001) – “The evolution of cooperative breeding through group augmentation”. The Royal Society, nº 268(2001). p. 187. 26 ROITMAN, Jessica – Us and Them: inter-cultural trade and the Sephardim. Leiden: [s. e.], 2008. Dissertação de doutoramento. 27 BIRNBAUM, Marianna – A Longa Viagem de Gracia Mendes. Lisboa: Edições 70, 2005. Page 8 Face às hipóteses a testar, por nós traçadas, é importante explicitar o espaço e o tempo escolhidos para o desenhar deste estudo. Na realidade, o nosso estudo não incidirá sobre nenhuma entidade geográfica, em particular. Basear-nos-emos numa construção mental do espaço, condicionada pelo estrutura da rede a obter a partir da recolha da informação. Não queremos circunscrever nenhum agente a nenhum espaço. É a estrutura ou padrão dos laços nesta rede social que é importante para os seus membros. Assim, o espaço em estudo será ele próprio definido pelas estratégias cooperativas em jogo e pelos seus contextos. Este conceito de contexto não aquele a que os historiadores estão habituados, mas sim uma noção da infogeomática e dos sistemas de visualização geográficos. Definido por Sperber and Wilson como “… a psychological construct, a subset of the historians´ assumption about the world.”28 No fundo, são todas as formas espaciais que podemos caracterizar, que podem ser de três tipos distintos: o primeiro, o espaço observacional que no fundo se revela no espaço físico, a que dizem respeito os movimentos e os valores de densidade. Em segundo lugar, aparece-nos o espaço simbólico, que se reporta às interacções entre pessoas, tal como aos valores finais que essa interacção traz aos agentes envolvidos. Por último, o espaço comportamental. No nosso caso específico, vamos analisar comportamentos de cooperação, tal como os valores subjectivos e comportamentais (confiança, reputação, opiniões dos agentes sobre outros indivíduos).29 A segunda metade do século XVI foi um período de franca expansão económica, para a Europa de uma forma geral. Os circuitos comerciais e financeiros encontravam-se dinâmicos, em parte devido à afluência de metal precioso, nomeadamente a prata da América espanhola. Face a isto, Castela, sede da firma comercial de Simon Ruiz, gozava de uma grande vitalidade quer ao nível da produção da lã, mas também de tecidos. Mas era o mercado financeiro que chamou até Madrid e bem perto do imperador Filipe II os grandes banqueiros alemães, que já lá estavam no tempo de Carlos V, e genoveses, que começam a ganhar uma enorme força. A prata espanhola que chegava a Sevilha era esperada como contrapartida nas praças comerciais como Antuérpia, Lisboa, Ruan, mas também no coração financeiro, Lyon. Mas a segunda metade de quinhentos esteve longe de ser um mar de rosas para o grande comércio e para a alta finança no espaço castelhano e não só. A política expansionista de Filipe II, que continuava o trabalho do seu predecessor, desviava os lucros da prata para os pagamentos de empréstimos dos grandes banqueiros, que utilizava para sustentar a guerra nos Países-baixos, a insubordinação de Nápoles e da Sicília. É importante, no entanto, compreender que foi a falta de liquidez e a impossibilidade de pagar aos credores que despoletou marcos importantes, que condicionaram a actividade comercial e financeira neste período. Oportunisticamente esta cronologia é privilegiada para o estudo do impacto de crises financeiras, níveis de 28 SPERBER, D. & WILSON, D. - Relevance: Communication and Cognition. Harvard University Press, Cambridge, MA, 1986. p.139. 29 WACHOWICZ, Monica – Contextualizing the unstructured text documents of Simón Ruiz, 2009. Working Paper apresentado numa sessão de discussão do projecto Dyncoopnet na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, nos dias 24 e 25 de Fevereiro de 2009. Page 9 risco, ruptura de padrões de cooperação, especulação financeira acrescida, na rede de Simon Ruiz e no comportamento económico dos agentes, bem como um teste à confiança e a maior probabilidade de os indivíduos se tornarem «cheaters» ou «defectors». Basta ler Wallerstein30 ou Braudel para aferirmos a importância de anos como 1557, 1575 e 1596 – as grandes bancarrotas filipinas, que intervêm directamente na actividade de Simon Ruiz, entre 1553 e 1597. Paulatinamente, a actividade produtiva castelhana parou em detrimento da especulação financeira, sobretudo a partir do último terço do século. Os banqueiros genoveses obtinham facilmente o direito de exportação de capital, o que era anteriormente interdito, diminuindo as suas compras em Espanha, abrandando a procura e multiplicando-se as falências31. A riqueza chegava, mas logo era escoada para fora da Espanha, fazendo com que todos fossem atingidos. Se queremos testar não só o impacto de factores intangíveis na cooperação, mas também da força das conjunturas esta parece uma época com um óptimo perfil para constituir um estudo de caso deste tipo, não só a nível económico, mas também político. Destacam-se a guerra com os Países Baixos, que poderia afectar trocas e câmbios com Antuérpia e o Norte da Europa, tal como com as praças franceses, mas também da anexão do Reino de Portugal em 1580, abrindo as portas a uma circulação exclusivamente hispânica no Atlântico e no Índico (embora fosse mais teórica do que real), e uma porta directa às especiarias chegadas a Lisboa, mais uma oportunidade de investimento. Terá esta união dinástica promovido alterações na rede e na orientação de Ruiz e seus parceiros? 2.3. Corpus Documental Os corpus documentais privilegiados nesta dissertação serão os fundos das letras de câmbio e de correspondência comercial, concentrados no Arquivo Fundação Simon Ruiz, sediado em Valladolid. Se no primeiro fundo contamos com mais de 21 000 letras de câmbio, a correspondência expedida e recebida por esta firma comercial chegaria às mais de 56 000 cartas. No entanto, a nossa atenção será focada unicamente com a correspondência relacionada com Portugal, cerca de 11 000 cartas. No século XVI a letra de câmbio era o meio de pagamento e crédito mais usual nos circuitos comerciais europeus. Com a progressiva introdução do endosso, a letra assume menos uma função contractual e mais como uma extensão de papel-dinheiro. Depois da expansão ibérica, este era um mecanismo essencial para a existência de uma semântica económica compreensível numa cada vez maior dimensão espacial de negócio e investimento. A letra de câmbio tem como principais actores principais no acto de câmbio, pese embora que beneficiario e pagador e dador e tomador, em certas circunstâncias, são a mesma pessoa: Beneficiário – destinatário final da letra e do dinheiro transaccionado. 30 31 WALLERSTEIN, Immanuel – O sistema Mundial Moderno. Porto: Afrontamento, 1990. Vol.1. PEREZ, Joseph– Filipe II e o seu Império. Lisboa: editorial Verbo, 2008. p. 181. Page 10 Dador – adianta o dinheiro ao tomador para que ele pague a um beneficiário. Tomador – toma o câmbio, é aquilo a que podemos chamar um cambista. Ele emite a letra a favor do beneficiário, designado pelo dador. Pagador – assegura o pagamento ao beneficiário, mantendo uma conta corrente com o tomador. Desde logo se prefiguram duas relações distintas neste circuito. Um vínculo de carácter financeiro entre tomador e pagador e entre beneficiário e dador, com contas correntes entre si; “(...)este vínculo solía responder a corresponsalías bancarias en el extranjero, relaciones de parentesco o sociedad o vínculos de carácter mercantil, que en cualquier caso garantizaban la fluidez del trafico fiduciario materializadao en la cédula o letra de cambio.”32 R. De Roover fala-nos mesmo na existência de um mandante e de um mandatário, um ao serviço de outro33. A estes, podem ainda juntarse outros indivíduos que, de forma indirecta, entram neste circuito do dinheiro, relacionando-se com um ou mais agentes referidos anteriormente. Com estes personagens, a letra de câmbio desenvolve-se em dois momentos: um primeiro, em que o dador entrega o dinheiro ao tomador e indica-lhe qual o beneficiário desse dinheiro, situado numa praça distinta. Depois, o tomador fabrica um documento, em que diz ao pagador que deve pagar um determinado valor, em determinada moeda, ao beneficiário. Circulam simultaneamente normalmente 4 vias deste documento, face aos riscos do correio e à facilidade com que este não chegava ao destino. Enviava-se uma primeira cópia directamente ao pagador, entregando o tomador uma segunda ao dador para que este a enviasse ao beneficiário, que iria cobrar a letra ao pagador. As outras cópias ficavam para os restantes interlocutores. O verso da letra de câmbio pode assumir-se como um recibo ou quitação da letra, informando o investigador do acto da cobrança daquela letra por parte do beneficiário ou seu representante, junto do pagador ou do seu representante. Consta também se a referida letra foi aceite (o pagador aceita pagar a letra, dando a quantia ao beneficiário); recusada (o pagador recusa-se a pagar a letra, quando o beneficiário aparece a cobrá-la, ou porque não recebeu a ordem por parte do tomador ou não recebeu provisão de dinheiro suficiente ou duvida da solvabilidade do tomador34); protestada (normalmente por falta de aceitação ou por falta de pagamento; é o beneficiário que apresenta o protesto); aceite sob protesto (quando depois de protestada, o pagador acaba por pagar) ou endossada (o beneficiário passa a sua posição para outra pessoa; nomeia um novo beneficiário). Este pareceu-nos ser uma fonte que nos permitiria ter uma ampla reconstituição da rede social, mercantil e espacial em volta de Simon Ruiz e da sua variabilidade cronológica. Cobrindo o período de 1553 a 1597 ininterruptamente, permite-nos ver a evolução da rede como um todo, descobrindo novos e velhos parceiros, tal como alguns dados de caracterização individual dos agentes, nomeadamente questões de 32 . RODRIGUEZ GONZALEZ – “La negociación cambiaria en la banca de Simón Ruiz” in BERNAL RODRIGUEZ, Antonio Miguel (coord.) – Dinero, moneda y credito en la monarquia hispánica: actas del simposio Internacional DINERO, MONEDA y CREDITO: DE lA MONARQUIA HISPÁNICA A LA INTEGRACIÓN MONETARIA EUROPEA. Madrid, 4-7 Mayo 1999. p. 684. 33 ROOVER, Raymond – L’évolution de la lettre de change. XIVe-XVIIIe siècles. Paris: Armand Collin, 1953. p. 48. 34 LAPEYRRE, Henri – op. cit., p. 281. Page 11 género, local de residência, filiação religiosa, profissão, cargo, título. Permitem-nos, dentro deste âmbito da teoria de redes, perceber a mobilidade e a variabilidade dos agentes na rede. Por outro lado, as letras de câmbio, além das relações implícitas entre os agentes que referimos anteriormente, apresentam por vezes relações explícitas, que de outra forma seria difícil conhecermos, como por exemplo, relações de confiança (quando estes intervenientes têm alguém que os representa neste circuito financeiro, por forma de procuração ou não), relações familiares, de sociabilidade (em heranças, por exemplo) e outras ligações financeiras a parceiros que não fazem parte daquele acto em concreto, mas estão ligados em parcerias comerciais ou financeiras a um ou outro dos principais agentes. A análise serial deste tipo de documentação permite-nos ainda encontrar relações de parceria, esporádicas ou prolongadas, quando, numa ou mais letras de câmbio, os mesmos indivíduos aparecem a desempenhar uma mesma função. “Partnerships and financing, which had previously lasted only for a single voyage, took on a more permanent aspect…”35 Quando falamos de cooperação, as letras de câmbio permitem-nos, quer pela medida da densidade destas relações, quer pelo valor transaccionado, encontrar diferentes graus de cooperação e, nomeadamente, de confiança. Podem aferir-se diferentes graus de risco, custos e benefícios e perceber se existem comportamentos de reciprocidade. Através do estudo das formas de aceitação do câmbio, poderemos chegar a quebras não só de confiança, mas mesmo à recusa da cooperação («defecting»), quando a letra é protestada e recusada. Mas é no estudo aprofundado das dinâmicas cooperativas que o uso deste tipo de documentação apresenta mais fragilidades. A carta comercial não tem de todo uma estrutura rígida como as letras de câmbio, apresentando uma maior riqueza e detalhe informacional e maior variabilidade de dados que possamos retirar. Isto significa que a extracção dos dados será muito mais complicada. Além de nos dar nomes e outras características individuais dos indivíduos e ser também possível o estabelecimento de relações, muito mais tipologicamente diversas, entre estes agentes, as cartas dão-nos infindáveis informações sobre questões de negócio: preços de mercadorias, unidades de peso e medida, prémios de seguros, fretes, câmbios, descrições qualitativas e quantitativas de produtos diponíveis em determinadas regiões ou cidades... A correspondência comercial permite-nos, ao contrário das letras de câmbio, conhecer as conjunturas que podem condicionar a nossa rede de indivíduos: notícias sobre a situação política, militar, diplomática, climática e sobre calamidades; flutuações de mercado e oportunidades de investimento. A grande potencialidade da correspondência comercial para o nosso projecto de investigação é conhecermos pormenores das relações entre agentes que sustentam as ligações cooperantes, mais pontuais ou permanentes. Informam-nos acerca de 35 SPUFFORD, Peter (2002) – Power and Profit: the merchant in medieval history. New York: Thames and Hudson, 2002. p. 22. Page 12 qualidades intangíveis que influenciam a cooperação: a amizade, a ajuda, a confiança e a estima que pode até condicionar uma futura colaboração, a cumplicidade e a reputação. Percebemos por elas porque entram ou são excluídos determinados indivíduos na rede, testando o conceito de «group augmentation». A troca de cartas entre parceiros permitem-nos compreender a importância do rumor ou boato no funcionamento da rede, assim como tipos de informação que influenciaram o comportamento cooperante, como notícias de falências, perdas de credibilidade de determinado agente na praça, grandes lucros em determinado negócio. Com a recolha da informação, conseguiremos aferir normas que condicionam estes comportamentos. 3. Metodologia a adoptar Quando queremos compreender uma rede é necessário, antes de mais, estabelecer que rede, com que grupo vamos partir para estudar a sua evolução, os mecanismos de inclusão e exclusão. De forma simplista, podemos afirmar que uma rede consiste num conjunto de vértices (nós, o actor) e linhas (o laço entre actores) entre pares de vértices e da informação adicional de ambos, que, embora não interfira na estrutura da rede, que é definida pelo padrão dos laços de relação, caracteriza essa relação36. O grupo inicial desta pesquisa terá de ser definido de acordo com estas características – relações (linhas) estabelecidas entre dois ou mais vértices e a informação que suporta e caracteriza estas interacções. Na realidade, precisamos de um grupo inicial de N>1, onde se verifiquem trocas sociais de alguma forma, sobretudo de cooperação. Colocámos como balizamento cronológico inicial o ano de 1553, ano em que temos testemunhos da actividade comercial de Simon Ruiz. No entanto, os vestígios de trocas entre agentes é ainda muito diminuto e os anos seguintes muito esparsos em documentação. Será pois mais plausível e representativo que a primeira radiografia da rede de Simon Ruiz seja no ano de 1557, primeiro ano de representatividade documental e como dissemos antes, um ano especial – o da primeira bancarrota de Filipe II. Os dados da documentação serão registados numa base de dados informática desenvolvida por um grupo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a direcção do Professor Doutor Joaquim Carvalho, que utiliza o software TimeLink. Este software tem imensas vantagens para a sua utilização neste projecto: é extremamente flexível e permite que se registe todos os atributos dos indivíduos, assim como todas as relações entre eles; funciona pelo registo de todas as partes do texto da fonte e não por formas rígidas; é capaz de combinar informação de diversos tipos de fontes; permite a identificação dos indivíduos em qualquer fonte, reconstruindo as suas biografias, utilizando informação fragmentada37. Este software permite ainda facilmente fazer exportações de dados para o software de visualização de redes que 36 DE NOOY, Wouter; MRVAR, Andrej; BATAGELj, Vladimir (2005) – Exploratory Social Network Analysis with Pajek. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 6. 37 POLONIA, Amélia (coord.) – Relatório da equipa portuguesa do Projecto DynCoopnet à European Science Foundation, 2008 in www.dyncoopnet-pt.org. Page 13 decidimos utilizar, o Guess, programa desenvolvido especificamente para este efeito, por investigadores de análise de redes. Definido o ponto de partida da nossa rede, importa reflectir nas variáveis teóricas e metodológicas a utilizar na dissertação, consoante as questões de partida. 3.1 Variáveis teóricas e metodológicas Q.P.1 - Quais as condicionantes das dinâmicas cooperantes e não cooperantes associados à actividade mercantil da segunda metade do século XVI? Para termos noção da evolução das dinâmicas de cooperação na rede mercantil de Simon Ruiz, utilizaremos, por amostragem, visualizações desta mesma rede em diferentes momentos temporais. Nestes retratos sucessivos, analisaremos as seguintes variáveis, com uma análise paralela dos contextos políticos e económicos e analisando de que forma interferem: Nº de interacções entre indivíduos, que visualmente resultarão em pontos amiores ou menores, padronizadas por um sistema de cores, que classificaram essas interacções; Durabilidade das relações entre indivíduos no tempo, mostrando cooperação pontual vs. Contínua, permitindo aferir a força da confiança como condicionante da cooperação. Função dos indivíduos na rede Hierarquia dos indivíduos na rede e sua sucessão – aquele com mais relações será interpretado como o mais valorizado parceiro. Q.P.2: De que forma evoluem e se cruzam os critérios de inclusão e exclusão dos indivíduos neste tipo de rede social? Q.P.3: Em que medida o perfil social dos vários actores interfere na aceitação de um agente a cooperar com alguém externo à rede? Analisando a viabilidade da aplicação do conceito de «group augmentation» e de avaliar o carácter endo ou exogâmico da rede, procuraremos utilizar a mesma metodologia de retratos de rede, analisando os membros da rede, vendo os novos membros e os excluídos. Assim, as grandes variáveis que importa, desde logo, sublinhar são de carácter individual: O género O local em que estão fixados nacionalidade Filiação religiosa Carácter socioprofissional – a profissão, o título, o cargo Integração familiar (nome do agente e papel no âmbito de uma rede familiar, se for o caso) Page 14 Comportamentos sociais: a confiança é aferida através das seguintes variáveis, com uma metodologia qualitativa de análise de conteúdo38: 1. Reputação – registo ao longo do tempo de expressões textuais, que registem marcas de reputação dos indivíduos, tendo depois uma categorização destas linhas de reputação positivas e negativas, mas que será feita a posteriori; 2. Performance cooperativa do indivíduo no momento da exclusão e da inclusão do indivíduo, a partir do desempenho cooperativo enunciado atrás; 3. Condição económico-financeira do indivíduos: saúde económica dos negócios, recolhida através dessas expressões textuais; 4. Estabelecimento de contratos formais prévios, que segundo Sztompka, diminui os níveis de confiança; Q.P.4: Que mecanismos existiam para a promoção da cooperação e quais os requisitos que os tornavam operacionais? Se, por um lado, procuramos padrões de causas comportamentais que levam alguém a cooperar com outrem e, por outro lado, de que forma há um ponto em que estas premissas se tornam operacionais e se transformam em efectiva cooperação ou punição se falamos de alguém que infringe essas regras.. Para este objectivo, terão de ser a posteri classificados os comportamentos e actos (os critérios), como confiança/desconfiança, ajuda, emissão de boas notícias e através da quantificação dos diferentes percursos serão tratados estatisticamente os padrões, de forma a avaliarmos como se processa este fenómeno. Para isso, as variáveis a analisar serão os tipos de comportamento prévio à inclusão do membro na rede (se possível), que originam a sua aceitação no grupo, tal como as características individuais já enunciadas, que podem estar cruzadas com este processo. Uma outra variável a ser comparada é o espaço. Partimos do princípio, de que estes mecanismos podem variar de praça para praça. Q.P.5: Quais as normas associadas à criação, manutenção e finalização das relações cooperantes? A norma é um comportamento coordenado que serve para regular conflitos39. Pode ser mais ou menos consensual, formal ou informal mas intitui-se nas relações entre indivíduos. Para isso, será accionada a estatística para medir acções e reacções dentro das relações de cooperação dentro da rede de Simon Ruiz. Esta metodologia será aplicada em 3 momentos distintos da cooperação – no início da parceria, na 38 SZTOMPKA, Piotr – Trust: a sociological theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. pp. 70101. 39 AXELROD, Robert (1997) – The complexity of cooperation: agent-based models of competition and colaboration. Princeton: Princeton University Press, 1997, p.45. Page 15 manutenção da relação e em casos de ruptura de relações cooperativas. Estas normas podem variar segundo as relações dos indivíduos, por isso, as suas características voltam a ser variáveis fundamentais. Em grupos de cristãos-novos, serão as normas semelhantes na cooperação com cristãos-velhos, por exemplo? Como vimos, a análise destas variáveis irá combinar diferentes metodologias desde a quantificação de comportamentos, da existência de padrões, da categorização e da análise de conteúdo, por trabalharmos muito com informações qualitativas e dependentes de textos pessoais, fruto da subjectividade de quem a escreve. 4.O Futuro – que inquietações? Os nossos problemas estão já centrados no nosso universo documental. É vastíssimo e não se coaduna aos novos tempos académicos de Bolonha. Por outro lado, o facto de concentrarmos toda a investigação no arquivo pessoal de um mercador, distorcendo a visão efectiva da realidade. Funcionando como informação de controlo é importante recorrer à correspondência comercial publicada, dentro de um intervalo cronológico semelhante, nomeadamente as relativas à praça de Antuérpia, Florença e praças francesas. A consulta de regras de direito comercial internacional parece pertinente, uma vez que “Norms often precede laws but are then supported, maintained, and extended by laws.40” A lei define obrigações de forma mais clara do que uma norma informal, promovendo uma validação externa a estas normas41. Pelo mesmo motivo importa consultar alguns manuais de mercadores em vigor na segunda metade do século XVI, como o de Tomás de Mercado (Summa de tartos e contratos de mercaderes, 1569). Este tipo de fonte, permite-nos o entendimento dos processos usuais do comércio e do crédito em meados de quinhentos, de forma a aferirmos posteriormente se a acção dos agentes poderia ou desviar-se da norma. É preciso estar ciente da sua intencionalidade e condicionalismos geográficos, económicos e pessoais que influenciam a sua produção. Como pudemos constatar ao longo desta comunicação sobre o nosso projecto de investigação, vamos tentar aplicar, à história, metodologias e enfoques teóricos e conceptuais pertencentes a outras áreas de investigação. Por vezes, torna-se difícil para nós. Desde logo, entrar em mundos muito complexos de abstratização, que permitam encontrar formas de flexibilizar estas novas formas de conheceimento histórico, o que nem sequer pode trazer algo de original e cientificamente válido. É como começar do zero. A verdade é que, felizmente, temos contado com essa ajuda e disponibilidade para o diálogo com especialistas do ramo do modelling, do GIS, do software de redes e da sociologia. Muitas das ferramentas tecnológicas a utilizar na análise e tratamento dos dados contará muito com a sua ajuda. Como puderam constatar este é um projecto individual, mas que se estende a todos os braços que trabalham no projecto DynCoopnet. Por vezes, avança-se de 40 Idem, Ibidem, p.60. Idem, Ibidem, p. 61. 41 Page 16 forma morosa, mas a realidade é que começam a aparecer resultados que fazem valer a pena todo o esforço. É um estudo conceptualmente muito teórico e abstracto, onde é difícil encontrar vestígios. Lembremos que os autores destas fontes não registavam os seus actos a pensar na cooperação. Importa, pois, fazer ao longo deste percurso, categorizações permanentes, de forma a aproveitar a transdisciplinaridade deste projecto. Bibliografia: AXELROD, Robert – The evolution of cooperation. New York: Basic Books, 1984,p. 6. AXELROD, Robert (1997) – The complexity of cooperation: agent-based models of competition and colaboration. Princeton: Princeton University Press, 1997. BALTES, Paul; SMELSER, Neil J. – International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences. Oxford: Elsevier, 2001. Vol. 4. pp. 2746-2751. BEERBÜHL, Margrit Schulte; VÖGELE, Jörg (eds.) – Spinning the commercial web: international trade, merchants and commercial cities, c. 1640-1939. 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