XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL - 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI. GT04 - Educação, Cultura e Sociedade EDUCAÇÃO E ARTE: EXPERIÊNCIAS E AUSÊNCIAS AFRODESCENDENTES Francilene Brito da Silva Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI) [email protected] Francis Musa Boakari Universidade Federal do Piauí (UFPI) [email protected] RESUMO: Este trabalho é um dos frutos da dissertação de Mestrado em Educação intitulada, Arte Afrodescendente a partir de Três Olhares de Educadoras em Teresina. No recorte feito objetivamos compreender experiências educativas sociais e escolares sobre a temática cultural da Arte Afrodescendente e procuramos interpretar as ausências percebidas. Fizemos uso da entrevista semi-estruturada, da observação livre, das anotações em campo e das descrições destas experiências. Sustentamonos teoricamente em pensamentos como o da descolonialidade de poder e de saber contemporânea, da pedagogia da diferença, da experiência estética e da identidade como fator de suma importância quando tratamos de culturas. Autores como Antonacci (2009), Barbosa (2005), Boakari (2006), Cunha Junior (2005), Mignolo (2010), Morin (2003), Santos & Meneses (2010), nos ajudaram a confrontar os dados para maior discernimento. Palavras-chave: Educação. Arte. Afrodescendência. Processos identitários. 1 EDUCAÇÃO E ARTE: EXPERIÊNCIAS E AUSÊNCIAS AFRODESCENDENTES “Conhecimento” – um elemento do sistema de escrita em ideogramas: 1 Adinkra. 2 “Os Congo de Oeiras” – desenho em CorelDrow, 2011. (SILVA, 2011, p.90) Vamos ouvir esse silêncio meu amor amplificado no liquidificador do estetoscópio do doutor no lado esquerdo do peito esse tambor. (Carlinhos Browne Arnaldo Antunes, CD: O Silêncio, 1996) Adinkra são ideogramas, ou seja, uma escrita com símbolos abstratos convencionados em conceitos e ideias da cultura dos Akan ou Ashanti (MENEZES & CASTRO, 2007). O desenho ideográfico acima significa: conhecimento, busca constante pelo saber. E, assim como o desenho sobre a apresentação de um dos grupos artísticos mais tradicionais de Oeiras-PI no Nordeste brasileiro, pode nos 1 Imagem disponível em: <file:///G:/Hist%C3%B3ria%20e%20Cultura%20Africana-Afro-BrasileiraInd%C3%ADgena%20Adinkra.html>. Acesso em: 17 mai. 2012. 2 Esse desenho ilustra o tópico intitulado Girassol, da Dissertação de Mestrado citada acima no resumo deste artigo. As experiências de uma professora de arte, natural de Oeiras do Piauí, cujo codinome fora Girassol, nos despertou para conhecer esse grupo cultural chamado Congo de Oeira. Formado só por homens vestidos com trajes femininos, esse grupo brinca a tradicional festa dos Congos, vivenciada em todo o Brasil em suas diferentes formas. 2 ajudar a pensar sobre o quanto nós conhecemos ou desconhecemos de pessoas, culturas, sociedades diversas, bem como do nosso próprio ser brasileiro afrodescendente, afropiauiense, afroteresinence e outros tantos seres brasileiros de raízes africanas. Ou, se as conhecemos, como as percebemos? Um símbolo, uma arte, uma escrita, uma língua, são a própria cultura manifestando-se em comunicações e, ao mesmo tempo, identidades; são poderes e saberes. Vamos ouvir esse silêncio! Ou, seria esse tambor? Ou, seria aquela voz “sombria”? pois, por muito tempo, já não ouvimos/vemos nossos sons, nossas vozes, nossos corpos/pensamentos amplificados em sistemas não eurocentrados. Então, como nos conhecemos? O que sabemos das nossas experiências, inclusive das silenciadas? Neste texto, tentamos expor, no setido de arriscar, algumas incursões pela arte e afrodescendência na educação teresinense a partir das vivências de três educadoras. Estamos usando o termo educador em referência às pessoas com mensagens para transmitir ou compartilhar, usando um meio determinado e com objetivos pretendidos. Afrodescendência para nós é uma categoria que engloba ou tenta positivar os segmentos formados por pessoas de fenótipo negro e não negro, descendentes de africanos direta ou indiretamente devido as conseqüências das diásporas em colonizações e escravizações criminosas. Também estão incluídas as culturas e artes formadas e ressignificadas a partir destas diásporas, inclusive as que formaram a cultura brasileira. Arquiteturas, pinturas, esculturas, músicas, danças, festas, vestes, celebrações religiosas, conhecimentos orais, literatura, etc. foram e ainda são conjuntos de saberes construídos não só por europeus, mas sobretudo, por braços e cabeças afrodescendentes e por nativos destas terras do Sul. Também foram consideradas afrodescendentes, por suas histórias, identidades e fenótipos, as três partícipes (sujeitos) da pesquisa aqui lembrada. Essas três educadoras foram ouvidas durante dois meses, no processo de estudos no Mestrado em Educação da Universidade Federal do Piauí (UFPI) nos anos de 2010 e 2011, e se identificaram como: Quadro 01: Identificação dos sujeitos da pesquisa Arte Afrodescendente a partir de Três Olhares de Educadoras em Teresina (SILVA, 2011) CODINOMES E IDENTIFICAÇÕES NÊGA ZINGA GIRASSOL VIRGIPEDAG Ancestralidade africana; Professora Formadora; Professora de Ensino Bailarina e Coreógrafa de Natural de Oeiras-PI; Religioso da Rede 3 dança Afro do Grupo Cultural “Afoxá”; Formação social nos grupos de CEB´s (Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica) e de Movimento Negro de Teresina-PI; Formação acadêmica em Educação Artística (UFPI). Formada em Pedagogia e Educação Artística (UFPI); Professora de Arte da Rede Municipal e Estadual de Educação em Teresina Piauí. Municipal e Estadual de Educação em Teresina-PI (também ministrou aulas na disciplina Arte); Formada em Pedagogia (UESPI) e Teologia (UFPI); Foi Coordenadora Escolar do “Mais Educação” (um Programa do Governo Federal) onde vivenciou um oficina de Capoeira com alunas(os) de uma Escola Estadual. Quadro organizado por Francilene Brito da Silva & Francis Musa Boakari, em 03 de junho de 2012. Durante as conversas, as escutas, as anotações, as descrições e as vivências com as três educadoras procuramos experiências com o que denominamos de arte afrodescendente. Essa, vinha sendo uma inquietação nossa devido a muitos fatores, em especial dois deles: a dúvida que muitas pessoas têm quanto à importância do ensino da arte nas escolas brasileiras e à constante negativização das lutas das pessoas organizadas socialmente para reivindicar vida digna à população “preta” e “parda” na sociedade brasileira. Enquanto em outros países como os Estados Unidos, a Alemanha, a França, etc. a luta é para sanar as deficiências que os racismos, os preconceitos e as discriminações trouxeram contra populações afrodescendentes, no Brasil, ainda lutamos para admitir que somos racistas. Enquanto isso perdemos ou desperdiçamos vidas, conhecimentos, saberes e arte. Esse desperdício foi plasmado em nosso país pela colonialidade de poder e saber ou pelo racionalismo eurocêntrico, que provocou epistemicídios contra diversos segmentos sociais na América Latina, por exemplo. Essa colonialidade ainda hoje se sustenta nas mentes e jeitos de nos relacionar, mesmo tendo-nos “libertado” territorialmente. Uma das explicações para que isso ocorra é o tipo de língua (cultura) na qual nos expressamos e somos. Junta-se a isso, a estética e ciência europeia/ocidental que assumimos como nossa, em detrimento (epistemológico, social, cultural, etc.) dos saberes “indígenas”, “primitivos”, “bárbaros”. Que, aliás, são denominações herdadas do racionalismo eurocêntrico. Em Santos & Meneses (2010), Antonacci (2009), Mignolo (2011) e Boakari (2006), encontraremos ampla e aprofundada explicação para com estas questões, que, por 4 sua vez, pode nos instigar a pensar sobre as políticas de ações afirmativas como necessárias. Com o advento das políticas de afirmação, principalmente com as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que obrigam o ensino dos “conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros [...] no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras” (§ 2 da Lei 11.645/2008), passamos a nos perguntar quais ações já estão sendo implementadas no sentido de desnaturalizar esse não conhecimento. Partimos do pressuposto de que arte é conhecimento (BARBOSA, 2005) e, portanto, podemos investigar e construir a partir de saberes artísticos anteriores. A arte afrodescendente é um conceito ainda em construção que nos leva a pensar em experiência no que expressa Larrosa: A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente ex-iste de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. [...] O sujeito da experiência, se repassarmos pelos verbos que Heidegger usa [...], é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não o sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. (LARROSA, 2002, p.25) É uma experiência fortemente vinculada às ancestralidade africanas, onde daquilo que nos restou, do que nos fora negado, ressignificamos com resiliência e criatividade em nossos corpos negros e não-negros (que pensam, fazem, investigam, se vestem, plasmam, contam, constroem) heranças de saberes que agitam (perturbam) paradigmas eurocêntricos através de sons, cinestesias, cenários e visualidades. Assim, a dança dos Congo, a capoeira, a dança afro, o barroco brasileiro, e muitas outras construções artísticas nos animam para perceber não uma representação da realidade ou uma imitação da vida, mas, o que há de essencial em cada realidade vivida, experienciada. Arte afrodescendente é saber vivido. As ausências aqui ressaltadas são a negação de todas essas experiências frisadas acima por via da naturalização dos racismos e da ênfase no saber científico 5 e na estética ocidental. Por esses paradigmas denominamos a arte afrodescendente de “folclore”, “arte popular”, “Primitivismo”, empobrecendo o que não é pobre. Como narra Boaventura de Sousa Santos: a pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a podemos identificar e valorizar. (SANTOS, s/d, p.10). A essa razão ou lógica que empobrece nossas riquezas culturais afrodescendentes, indígenas, nordestinas, piauienses, teresinenses precisamos responder com uma lógica que reconheça ecologicamente os(as) diferentes saberes, temporalidades, pessoas, seres e produções com responsabilidade. Pois a ausência é a falta, o silenciamento daquilo que está incluído como “folclórico”, “exótico” e “bizarro” e, por isso mesmo, excluído. Para desconstruir tal racionalidade é que se fala em ecologias mentais, sociais, políticas que favoreçam o conhecimento do que hoje ainda são só rastros não explorados e conhecidos de fato. Ou seja: Por registros escritos, iconográficos ou sonoros – como relatos de viajantes, missionários e literaturas coloniais; gravuras, fotografias, filmes ou gravações rítmicas; expressões artísticas e religiosas; provérbios, contos e mitos; rituais, danças e festas –, podemos contestar discursos e imaginários de tempos modernos que negaram historicidade às Áfricas e suas culturas, como as reinvenções de africanismos na diáspora Atlântica. (ANTONACCI, 2009, p.48) Nesse sentido é que encontramos fôlego para repensar uma educação que reconte histórias mais positivas das reinvenções artísticas e culturais afrodescendentes por uma pedagogia que valorize e se paute na diferença e não na desigualdade (BOAKARI, 2007), na complexidade da sociedade, da vida e do conhecimento (MORIN, 2003), nas epistemologias negadas e ou negativizadas que, no entanto, nos dizem muito (SANTOS & MENESES, 2010). Alguns momentos das falas das partícipes dessa pesquisa servem de ilustração para uma possível reflexão a propósito do nosso objetivo de expor experiências e ausências sobre educação com arte afrodescendente. Na sequência, extraímos trechos das conversas (em entrevistas, diários, descrições e observações livres): 6 Quadro 02: Falas dos sujeitos da pesquisa Arte Afrodescendente a partir de Três Olhares de Educadoras em Teresina (SILVA, 2011) CODINOMES DAS PARTÍCIPES (SUJEITOS) EXPERIÊNCIAS/AUSÊNCIAS O Afoxá surgiu também com pesquisa só de dança, né... e daí nós fomos incluindo outros elementos... e aí veio a percussão por necessidade... aí veio o artesanato por necessidade pra poder elaborar figurino e... depois fomos pesquisar culinária por necessidade... pra tá... é... criando alternativa de auto sustentação do grupo, né. E... e... a estética afro também por necessidade pra questão mesmo do palco, né... pro teatro... essa questão de maquiagem, né... e aí então, mas assim... sempre a... a bandeira principal sempre foi a dança. E até hoje... o grupo já tem o que... quinze anos de existência. (NÊGA ZINGA, Conversa do dia 11 jun. 2011, Teresina, PI). Nêga Zinga [...] a dança afro é uma estratégia, um instrumento de mudança de realidade. Né. Porque ... mexe com a auto estima das pessoas, né... O objetivo real da... da questão da arte negra, afro descendente é ta resgatando a auto estima, porque é impossível você fazer arte sem falar da história... sem falar da situação de escravidão, sem falar do processo de... de libertação, de resistência, né... e a... e ainda hoje, fazer arte negra é sinônimo de resistência. É uma arma de guerra. É como a capoeira, né. (NÊGA ZINGA, Conversa do dia 11 de junho de 2011, Teresina, PI). [...] A dança afro tem três segmentos, podemos dizer assim. Tem o PRIMITIVO que é mais ligado com a terra, às batidas, ao tribal, ao fazer diário. O GUERREIRO, que tem a ver com as lutas dos Orixás guerreiros, narrativas, representações de Orixás e cavalgadas. E, o CONTEMPORÂNEO que são nossos ritmos mais próximos como o samba reggae ou afoxé, enfim. (NÊGA ZINGA, Conversa do dia 22 de julho de 2011, Teresina, PI). O grupo de Erês do Afoxá é composto por 06 meninas cantoras, 08 dançarinos e 10 percussionistas. Naquele dia eu quis explorar mesmo o trabalho corporal, a adequação do corpo, do movimento. No momento em que você vai trabalhando o corpo, automaticamente você vai trabalhando os seus conhecimentos também. A própria letra da música faz com que você absorva as aprendizagens, te formando sem você perceber. Criando interrogações. Às vezes, trabalhamos com aqueles vídeos da “A Cor da Cultura” e debatemos, discutimos. Tentamos fazer um trabalho para que as crianças se conheçam, se reconheçam, mantenham-se nas suas origens, mas fazendo mudanças. Faço também visitas nas casas deles, converso com os pais, as mães. Mas, deixo bem claro que a pessoa que deve acompanhar mesmo são eles, os pais. (NÊGA ZINGA, Conversa do dia 22 de junho de 2011, Teresina, PI) 7 Girassol [...] E aqui, no Instituto, quando é... a partir de... 2004... começou a ter o curso superior... e eu já comecei a trabalhar... mais com a disciplina ligada a arte... que nós conseguimos aqui no curso de formação... Curso Normal Superior... duas disciplinas de Arte... isso pros professores que são formados aqui no Curso Normal Superior... eles estão habilitados a trabalhar no Ensino Fundamental nas séries iniciais, do primeiro ao quinto ano. Então nós conseguimos juntamente com o outro grupo, com o grupo de professores de Arte... é... colocar duas disciplinas: uma no primeiro bloco que é Arte e Educação. Que é mais uma questão... é ... envolvendo mais a questão fundamental... Fundamentos do Ensino de Arte... e.... no sétimo bloco... é ... uma Metodologia do Ensino de Arte... na verdade... é uma disciplina chamada Arte Aplicada às Séries Iniciais, do sétimo bloco, onde a gente vai trabalhar mais as questões metodológicas, né... do Ensino de Arte... E acredito que isso foi um ganho... né... porque as outras disciplinas não têm essas duas disciplinas, né... e Artes a gente conseguiu colocar isso... a primeira... o primeiro bloco uma disciplina de 36 horas e no segundo bloco uma de seten... e no sétimo bloco uma de 72 horas.... Pelo menos, considerando outros cursos de formação de professores nas séries iniciais... o ganho daqui é esse. (GIRASSOL, Conversa do dia 17 jun. 2011, Teresina, PI) [...] Outro ponto também que eu acho que... que... que... que vai caber aí é a discussão até... foi...assim rapidamente foi colocado... e aí lembrando... hoje nós não colocamos na pauta, que foi a questão da... da Arte Afrodescendente, porque ainda não... não foi assim... a maioria... é... na Universidade... ainda não teve contato com isso... então ainda... nós não... é... acho que é necessário a gente começar a discutir, inclusive eu mesma... assim, poder ter mais leitura, mais aprofundamento, porque praticamente eu nunca... acredito assim... diretamente... ou que eu tenha consciência de ter feito isso, dessa abordagem da Arte Afrodescendente. Até porque na Universidade a gente nem ouviu falar disso assim... pelo menos, né... a gente num ouve com essa... com essa... com esse nome, mas... às vezes são... pontos assim...esporádicos que talvez no momento a gente nem tenha dado a atenção devida, né. (GIRASSOL, Conversa do dia 17 jun. 2011 sobre o Curso de Formação de Professores da Prefeitura local, Teresina, PI). [...] é, Bairro dos Negros. Inclusive é o bairro que eu... não que eu nasci, mas que eu... fui morar ainda cerca de um ano ... nesse bairro, que é onde eu mais frequento quando vou pra lá realmente vou pra esse bairro. É chamado bairro dos Negros, bairro do Rosário... [...]a Igreja Nossa Senhora do Rosário que antigamente era chamada mesmo a Igreja dos Negros. E... lá tem um grupo que eu acho muito interessante, né... que quando eu morava lá, eu não lembro de ter visto, né, e depois que saí de lá ... que é o grupo dos Congos. Que eles fazem... um trabalho muito bom, que é... da dança, né... trabalha a dança e essas questões... até também afrodescendente. Eu não conheço o trabalho de estudo, né, deles, embora eu conheça as pessoas que fazem parte desse grupo, porque sou até... eles consideram a gente meu parentes [...]Congos e são homens... e são... vestidos de branco e se caracterizam vestidos de mulheres, né, com roupas femininas. [...] (GIRASSOL, Conversa do dia 17 jun. 2011, Teresina, PI). [...] Oeiras é um pouco falar das minhas raízes, da cultura, né, porque lá, não só a questão religiosa, né (F: hum rum), mas a questão artística, das Igrejas, dos monumentos, das praças, da, da, até das ruas, do calçamento, digamos assim, antigo, né, de que ainda... tenta-se preservar e... eu acho que isso é uma forma de alimento... estético [...] (GIRASSOL, Conversa do dia 17 jun. 2011, Teresina, PI). 8 Virgipedag [...] e... esse temática que você tá trabalhando eu acho ela riquíssima, pertinente, necessária... e... eu até falava também pra você... nos bastidores, quando a gente conversava informalmente, eu sinto falta disso na escola. E, agora com essa experiência de tá como professora de Arte, eu sinto que isso não faz parte... ainda... da visão do próprio professor, do próprio Centro de Formação. Eu tenho visto as atividades que são feitas, mas, eu tô sentindo que ainda são mais pr’aquele modelo de arte europeu... mesmo... lá... das origens... e a nossa? “Vamos trabalhar...” Gente, mas, a gente não tá tendo um momento assim de... de... discutir essa questão... da cultura negra no Brasil. [...](VIRGIPEDAG, Conversa do dia 29 jun. 2011, Teresina, PI). Com a afrodescendência eu tenho uma experiência de vida. Eu tava até falando pra você antes que a gente, enquanto negro, a gente pra chegar nesse estágio de si dizer... (faz movimento com os braços e as mãos mostrando o corpo)... auto-denominar... mas, é sem preconceito nenhum mesmo... de orgulho mesmo de ser... a gente tem que passar por um percurso... às vezes, dolorido, [...] as minhas amigas que não eram moreninhas... que eram brancas... elas não gostavam de brincar com a “(diz o nome dela mesma) moreninha”... brincar com as meninas loiras, brancas como elas... e eu ficava naquela... sempre achando... porque eu não tinha aquele perfil delas. [...] (VIRGIPEDAG, Conversa do dia 29 jun. 2011, Teresina, PI). [...] e me chamaram pra trabalhar na coordenação desse Programa [Programa Mais Educação que a aconteceu no contraturno do horário escolar oficial da escola onde trabalhava]... e meu público é esse público aí, negro, de periferia, de família desestruturada, de família desorganizada, de pessoas que tem contato com dependenci... que são dependentes químicos enfim [...]pra começar, pelo próprio professor que trabalhava com a capoeira com esses meninos, que era uma pessoa também com essa mesma experiência... negro... vindo de periferia, história de vida... difícil... mas, que venceu todas as adversidades [...] não quero dizer que só quem possa fazer isso é quem viveu isso, não... porque pode... isso aí é muito subjetivo [...]E, trabalhávamos disciplina, trabalhávamos organização de um trabalho, toda uma estrutura que era previamente planejada... a pedagogia dentro desse processo também foi trabalhada... porque “é capoeira”... “vamos gingar”... “mas, vamos gingar como?”... a capoeira tá acontecendo dentro da escola... e ela tem que ser um projeto... um processo pedagógico... não pode ser só gingado... por quê que a gente ginga?... como foi que começou esse gingado? Como foi que começou essa capoeira pra gente aqui? Então o, professor, além de fazer a ginga, fazia a roda, apresentava os instrumentos e a indumentária... ele tinha que também ir pra sala de aula com os meninos... trabalhar, textualizar, contextualizar isso aí, toda essa construção de capoeira pra gente... e, depois disso, é que a gente ia envolvendo os meninos pra questão... nas outras questões que a gente queria... [...] (VIRGIPEDAG, Conversa do dia 29 jun. 2011, Teresina, PI). Quadro organizado por Francilene Brito da Silva & Francis Musa Boakari, em 03 de junho de 2012. 9 Das falas dessas educadoras, foi possível problematizar algumas questões no tocante à cultura brasileira afrodescendente especialmente ao tratar em termos dos espaços em que elementos desta cultura são usados para desenvolver atividades educativas com crianças e jovens, o futuro/presente da sociedade brasileira. De formas diferentes, elas apontam preocupações, estratégias, deficiências e possibilidades em fazer com que profissionais da educação (escolar ou social) possam colaborar para fazer uma educação cultural integrada; uma modalidade de trabalho educacional que possibilite interações culturais e produções com significados explicitamente brasileiros. E, neste sentido, podemos desenvolver leituras das ideias e posições expressas pelas entrevistadas. Em primeiro lugar, das falas da Nêga Zinga, a arte afrodescendente na forma de dança é “instrumento” de “resistência”, “estratégia” para reconstrução da “autoestima” de um grupo, cujas representações foram excluídas de elementos do nacional, ou negativizadas, por serem marcadas por imagens desumanizadoras e vergonhosas. O trabalho que ela desenvolve com as crianças é uma tentativa de ajudar com o seu “processo... de libertação”, “trabalhando o corpo”, “vai trabalhando os seus conhecimentos também”. É um processo onde o fazer, o pensar e o saber são trabalhados juntos, de tal forma, que a coletividade é mantida através das contribuições e valorização da participação individual. Tanto a educadora quanto “o grupo de Erês do Afoxá” tem, cada um, responsabilidades específicas para o funcionamento de todos. “Criando interrogações”, trabalha no debate e discussões “para que as crianças se conheçam, se reconheçam, mantenham-se nas suas origens, mas fazendo mudanças”, permitindo uma melhor caracterização desta pedagogia popular que usa a dança afrodescendente como eixo didático-pedagógico para educações sócio-acadêmicas. E como nota principal, Nêga Zinga coloca a lição educacional mais importante – “visitas nas casas deles, converso com os pais, as mães. Mas, deixo bem claro que a pessoa que deve acompanhar mesmo são eles, os pais”. É esta a educação afrodescendente – atividade coletiva envolvendo a famílias, comunidade e um espaço escolar que valoriza a sua diversidade respeitando os indivíduos que o frequentam nas suas individualidades, diferenças. Girassol fala de conquistas curriculares e lamenta a falta da inserção do conteúdo sobre arte afrodescendente nas suas atividades escolares. Uma vez que especificamente não consta no currículo, ela não trabalha o mesmo. Deixa evidente o seu não envolvimento com a citada forma de produção artística. Ela disse não ter 10 o conhecimento necessário e termina culpando a formação dela – “na universidade a gente nem ouviu falar disso assim”. E ela trabalha com formação de professores, num “Curso Normal Superior...”. Quando falou de uma manifestação cultural da sua cidade natal, disse “eu não lembro de ter visto”, mas já em Teresina e retornando para Oeiras ouviu falar do grupo. O que então é arte afrodescendente para Girassol? Como entende o seu papel como formadora de pessoas que vão formar o futuro desta sociedade de diversidades? E, no tocante à problemática do estudo, quais as ausências das quais ela fala sem nomeá-las? O fato de haver disciplinas de arte no currículo que de fato elas não contemplam elementos das culturas locais não estaria apontando para a prática de incluir a fim de excluir? Esta não seria uma discussão urgente no ensino da arte? No caso da Virgipedag, sobre arte afrodescendente ela oferece perspectivas pedagógicas – “temática... riquíssima”, “gente não tá tendo um momento assim” para “trabalhar” esta temática. Ela aborda questões de identidade: “auto-denominar”, “não tinha aquele perfil delas” e a necessidade de uma educação voltada às realidades das pessoas, em particular as mais marginalizadas de “família desestruturada”, “dependentes químicos” e “negro vindo de periferia”. Há necessidade de “trabalhar, textualizar, contextualizar” a arte afrodescendente como representação viva da cultura africana no Brasil. Este deve ser um “processo pedagógico” voltado à história, ao conteúdo analítico das atividades porque tudo envolve o saber, o saber ser, o saber fazer sozinho e o saber fazer como parte de uma coletividade. Saberes cognitivos interagindo com saberes práticos sem menosprezar as pessoas envolvidas no processo e nos produtos. De fato, para Virgipedag, através da dança como “capoeira”, a arte afrodescendente volta para a “história de vida” de um povo “que venceu todas as adversidades” e enfrenta “outras questões que a gente queria”. Como processo de auto-libertação, todas as armas e estratégias precisam ser testadas porque o que está em jogo é a nação, a sociedade brasileira nas suas idiossincrasias. Em toda esta discussão, vale à pena explicar que o pano de fundo está parcialmente nestas palavras: A marca africana é indiscutível na cultura brasileira. Mas estes povos africanos e afro-descendentes, nas suas epopéias de busca de liberdade e de igualdade social, realizaram eixos marcantes da história social do povo brasileiro. Empreenderam milhares de 11 quilombos, de rebeliões, de instituições no combate ao escravismo criminoso. Tiveram intensa participação em todos os movimentos da história nacional. No pós-abolição, a história de africanos e afrodescendentes se transcreve na organização de novos movimentos sociais, religiosos e culturas, entre os quais se destaca um atuante Movimento Negro. (CUNHA JÚNIOR, 2005, p. 251) Evidenciamos durante os estudos finais, que a educação social (em organizações como grupos culturais Afros, movimentos de afrodescendentes) ainda se configura como um lócus de discussões e aprendizagens mais abertos do que a educação em espaços escolares para tais questões afirmativas pois, das três educadoras em questão, apenas uma (Nêga Zinga) conhecia e desenvolvia atividades no sentido de implementação destas leis. E, mesmo se tratando de professoras, e, professoras formadoras, das Redes oficiais de Ensino, as duas outras educadoras não tinham em seus cronogramas de trabalho – até a data da pesquisa – nenhuma ação direcionada para essas questões. Por isso, tivemos que enveredar também pelos questionamentos sobre os silenciamentos (ausências) naturalizados na nossa educação escolarizada. Contudo, a educação social não é um instrumento que por si só fará desconstruir os paradigmas que permitem os silenciamentos,as ausências e as negativizações sociais e culturais. Nós somos muitos, não dá pra não ver, não dá para não escutar Old pirates, yes, they rob I, Sold I to the merchant ships, Minutes after they took I From the bottomless pit But my hand was made strong By the hand of the Almighty We forward in this generation 3 Triumphantly (Bob Marley, Redempition Song) 3 “Velhos piratas, sim, eles me roubaram, Me venderam para navios mercantes Minutos depois deles terem me tirado De um buraco menos profundo Mas minha mão foi fortalecida, Pela a mão do todo poderoso Nós avançamos nessa geração Triunfantemente!” (Tradução livre, disponível em: <http://letras.terra.com.br/bob-marley/24572/traducao.html>. Acesso em: 1º jun. 2012.). 12 Mais de 5 milhões de africanas(os) foram forçadamente trazidas(os) para o Brasil no período da escravidão criminosa, dentre os séculos XVI e XIX sob o julgo do sistema colonialista da modernidade eurocêntrica. Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), identificou-nos como a nação com maior número de pretos e pardos, fora da população em continente africano. Mesmo que muitos teóricos “racistas do século XVIII e XIX pregassem que os nobres europeus/brancos tivessem supremacia em relação aos outros povos, chegando mesmo a afirmar que o futuro das nações mestiças seria a extinção” (SILVA, 2011, p.109), aqui tivemos um significativo aumento populacional, inclusive afrodescendente. De acordo com um estudo feito pelo Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)4, a cidade de Teresina-PI, por exemplo, foi a segunda capital nordestina que se autodeclarou como preta e parda (71% das pessoas ouvidas pelo CENSO de 2010) só ficando abaixo de Salvador-BA (79,5%) que, historicamente já vinha liderando nesse sentido. Onde estão estes afrodescendentes em posições de destaque, de poder? Quantos atuam em instituições públicas de ensino superior? E, entre os legisladores ou magistrados? Entre os artistas mais renomados? As perguntas não intencionam que haja uma inversão hierárquica de raças/etnias/segmentos populacionais, mas, uma redistribuição equânime das ofertas, oportunidades e permanências profissionais e artísticas. A arte pode ser um dos veículos comunicacionais que nos faz despertar. Como disse o poeta: “Emancipate yourselves from mental slavery None but ourselves can free our minds”5 (Bob Marley, Redempition Song). Essa emancipação é possível? Qual a participação da arte e da educação? O diálogo entre educação e arte permite constante desafio no tocante aos conhecimentos e às experiências das pessoas no mundo. Edgar Morin acentua que: 4 Esses dados estão disponíveis numa matéria on-line. Disponível em: <http://www.cidadeverde.com/teresina-e-a-2-capital-do-nordeste-em-numero-de-pretos-e-pardos87887>. Acesso em: 20 dez. 2011. 5 “Liberte-se da escravidão mental, Ninguém além de nós pode libertar nossas mentes” (Tradução livre, disponível em: <http://letras.terra.com.br/bob-marley/24572/traducao.html>. Acesso em: 1º jun. 2012.) 13 O conhecimento do mundo como mundo é necessidade ao mesmo tempo intelectual e vital. É o problema universal de todo cidadão do novo milênio: como ter acesso às informações sobre o mundo e como ter a possibilidade de articulá-las e organizá-las? Como perceber e conceber o Contexto, o Global (a relação todo/partes), o Multidimensional, o Complexo? [grifos do autor] Para articular e organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do mundo, é necessária a reforma do pensamento. Entretanto, esta reforma é paradigmática e, não programática: é a questão fundamental da educação, já que se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento. (MORIN, 2003, p. 35) Destarte, apostamos que a arte participa da nossa educação e vice-versa como um elemento de conhecimento e experimentação (vivência) poderoso no sentido de provocar informações, leituras e organização da nossa vida, tanto à nível local quanto global. E, que as pessoas afrodescendentes ou as suas manifestações artísticas nos ensinam e são referências na complexidade deste mundo em que (re)(des)construímos nossos saberes. Os programas, os currículos, os conteúdos na escola são diferentes formas de lidar com essas complexidades, porém, se não partirmos de uma transformação das nossas referências e paradigmas para visões amplas sobre nós mesmos e as outras pessoas (comunidades) estaremos reproduzindo os mesmos problemas que permitimos ficar “ausentes” para não nos arriscarmos como seres existentes e inteiros no mundo. Alguém que narra histórias em Adinkra também no Brasil; um artista “brincante” da festa dos Congo em Oeiras-PI; uma Erê do grupo Afro Afoxá de Teresina-PI; uma pessoa que faz Capoeira de Angola, aquela experiência/arte/jogo dos povos (escravizados) denominados de bantos aqui no Brasil; toda essa gente boa pode ser referência educativa em diálogos culturais que fortalecem identidades na complexa teia da sociedade. Uma nova postura racional que chama as ausências para serem referências como saberes implica em descobertas reais e imaginárias de nós mesmos, pois, não mais pode dar espaço a um só tipo de racionalidade, mas se abre para e com os outros e as outras. 14 Referências Bibliográficas ANTONACCI, Maria Antonieta. África/Brasil: corpos, tempos e histórias silenciadas. In: Tempo e Argumento: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – Dossiê. Florianópolis: V. 1, n. 1, p.4667, jan./jun.2009. Disponível em: <www.periodicos.udesc.br/index.php/tempo/article/download/709/600>. Acesso em: 21 de jul. 2011. BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte: anos oitenta e novos tempos. 6.ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. BOAKARI, Francis Musa; GOMES, Ana Beatriz Sousa Gomes (Orgs.). Comunidades Negras Rurais no Piauí: mapeamento e caracterização sociocultural. Teresina: EDUFPI, 2006. BOAKARI, Francis Musa. 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