Tradução & Comunicação Revista Brasileira de Tradutores Nº. 22, Ano 2011 ADAPTAÇÕES, APROPRIAÇÕES E O PAPEL DO ADAPTADOR MICHAEL CUNNINGHAM EM 'THE HOURS' Adaptations, appropriations and the role of Michael Cunningham as an adapter in the novel ‘The Hours’ Yuri Jivago Amorim Caribé Universidade de São Paulo - USP [email protected] RESUMO Este trabalho trata de apropriações e adaptações de textos da escritora inglesa Virginia Woolf propostas por Michael Cunningham no romance The Hours (Picador, 1998), sob a abordagem dos Estudos da Tradução e da Adaptação. Traz ainda um estudo sobre as traduções da obra de Woolf no período posterior à publicação desse romance no Brasil (Companhia das Letras, 1999) e do lançamento do filme homônimo (Daldry, 2002). A hipótese a ser discutida é que a reescritura de textos virginianos proposta por Cunningham (1998) estabelece de fato uma interação com leitores de Woolfou convida a leitura de suas obras. Cunningham adaptou trechos e outros elementos de Mrs. Dalloway (1925), do segundo volume dos diários de Woolf (HarcourtBrace & Company, 1978) e do sexto de suas cartas (HarcourtBrace & Company, 1980). Para a realização desta pesquisa, de caráter bibliográfico, utilizamos algumas das mais relevantes leituras dos Estudos da Tradução e da Adaptação, principalmente os conceitos de reescritura segundo Lefevere (1992) e de apropriação de Sanders (2006). Assim, também pretendemos com esse trabalho contribuir com os estudos historiográficos e analíticos acerca das traduções e adaptações de obras da escritora inglesa Virginia Woolf no Brasil. Palavras-Chave: adaptação; reescritura; apropriação; Michael Cunningham; tradução. ABSTRACT Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 [email protected] Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 01/08/2011 Avaliado em: 03/09/2011 Publicação: 30 de setembro de 2011 This paper is on appropriations and adaptations of some Virginia Woolf’s texts proposed by Michael Cunningham’s novel named The Hours (Picador, 1998) over the Translation and Adaptation Studies’ approach. We also point out a survey involving the translation of some Woolf’s novels published in Brazil after The Hours (1998 and 2002). The main hypothesis to be discussed here is that the rewriting of some elements from Virginia Woolf’s books actually establishes an interaction with Woolf’s readers through The Hours (1998) or invites people to read her. Cunningham adapted some parts and elements from Mrs. Dalloway (1925), also from the Diary of Virginia Woolf vol. II (1978) and from the Letters of Virginia Woolf vol. VI (1980). To accomplish the proposal, some of the most important works on Translation and Adaptation Studies were researched as the concept of rewriting by Lefevere (1992) and Sanders’ idea on appropriation (2006). Both will be used to support the hypothesis that one of the roles of translated and adapted literature is to attract people’s attention to know, revisit or revalue classic texts. Thus, we also intend to contribute with studies on the historiography and analyses of translations and adaptations of Woolf’s texts in Brazil. Keywords: adaptation; rewriting; appropriation; Michael Cunningham; translation. 43 44 Adaptações, apropriações e o papel do adaptador Michael Cunningham em 'The hours' 1. INTRODUÇÃO Olhando para o mercado literário moderno, sob uma perspectiva mundial, percebemos uma tendência adaptativa, motivada por objetivos editoriais pré-estabelecidos. Essa linha editorial, impulsionada pelo capitalismo, consiste, por exemplo, em adaptar grandes clássicos intralinguisticamente (JAKOBSON, 2000) a fim de trazê-los para mais perto de outro (grande e lucrativo) público. Dizemos, então, que esse fato promove uma revalorização ou uma valorização permanente dos clássicos, desde que tudo se converta em um negócio lucrativo para as editoras. E isso de fato acontece. Tratamos aqui de um nicho do mercado editorial mundial: contemplar temas do mundo em livros feitos por grandes escritores já bastante conhecidos e aclamados pela crítica, mas em linguagem e cenários modernos. Vejamos: as adaptações intralinguais trabalham a decodificação de signos linguísticos, de marcas textuais, a interpretação da linguagem metafórica e de outras figuras de linguagem do texto original dentro do mesmo idioma, porém sob o ponto de vista do adaptador e este, por sua vez, atende a diretrizes impostas pela editora. Normalmente, essas diretrizes passam por sugerir ao adaptador que promova uma linguagem menos complexa para o clássico adaptado. Segundo O’Sullivan (2006, p. 151) esse procedimento é bastante aplicado, pois é imprescindível que se “adapte o texto fonte às normas literárias e tradições da cultura alvo, para que, assim, o texto seja mais bem recebido pelos novos leitores em questão” (tradução nossa). Dessa forma, ele recomenda o caráter didático das adaptações. O próprio conceito de boa literatura, segundo Lefevere (1992, p. 3), também sugere isso: traduzir um texto pensando em seu público, como as adaptações voltadas para crianças dos irmãos Charles e Mary Lamb. No Brasil, um exemplo dessa valorização em torno das adaptações é a adoção de obras desse gênero (adaptações literárias) pelas escolas, como as adaptações da obra “Os Lusíadas” (CAMÕES, 1572). Esse feito revaloriza, revisita a obra e promove novas reflexões. Dada sua importância histórica e cultural, “Os Lusíadas” sempre figuram como tema para a elaboração de questões em provas de Literatura Portuguesa de vestibulares de universidades nacionais diversas e, portanto, deve ser estudada pelo aluno brasileiro ainda no período escolar (ensino fundamental ou médio). Então, tendo em vista essa discussão sobre o clássico “Os Lusíadas” (1572), muitas escolas encomendaram adaptações às editoras, neste caso atendendo a uma necessidade pedagógica. Rubem Braga (1987), autor brasileiro aclamado pela crítica literária nacional, foi um dos adaptadores dessa obra e a ele sucederam diversos outros trabalhos de releitura, reinterpretação e retextualização, sejam publicadas por outras editoras ou disponíveis eletronicamente – hoje é bastante comum no mercado literário brasileiro encontrar Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53 Yuri Jivago Amorim Caribé 45 clássicos “recontados” por grandes escritores. Assim, os processos de recontar, adaptar e traduzir são, de certa forma, semelhantes, como nos mostra Lefevere (1992, p. 9) a seguir: O mesmo processo de reescritura funciona na tradução, na historiografia, na elaboração de antologias, crítica e edição. Obviamente que atua inclusive em outras formas de reescritura, como nas adaptações para o cinema e televisão, mas sobre essas não tomarei posição por estarem fora de minha área (tradução nossa). Dessa forma, utilizaremos com frequência dentro deste trabalho conceitos dos Estudos da Tradução que julgamos comuns ao estudo em pauta, como reescrever (LEFEVERE, 1982, 1992), traduzir e refratar, comparando-os ao adaptar. Voltando às adaptações: quando tratamos da adaptação de obras da Literatura Inglesa, percebemos que a publicação de adaptações intralinguais (JAKOBSON, 2000) também se revela como tendência. Temos como exemplo as peças do dramaturgo do período elisabetano William Shakespeare, adaptadas primeiramente em prosa. Isso aconteceu porque, da forma como existiam antes, a leitura das plays de Shakespeare teria ficado restrita a leitores familiarizados com esse gênero, uma leitura condicionada diríamos. Assim, a ideia dos primeiros editores foi de publicá-las em linguagem mais próxima dos romances modernos, trazendo Shakespeare para mais perto de um público ainda maior. A motivação para adaptar também atende a outros pressupostos. Editoras como a Longman publicaram adaptações de várias peças shakespearianas para crianças. Um exemplo marcante foram as Lamb’s Tales from Shakespeare (1933) e More tales from Shakespeare (1956), já mencionadas, com várias das mais famosas tragédias e comédias de Shakespeare, como The Merchant of Venice, Midsummer night’s dream, MacBeth e The tempest, adaptadas em prosa e linguagem bem familiar (conto) pelos irmãos Charles e Mary Lamb. Os Lamb (1933 e 1956) queriam que os leitores ainda pequenos conhecessem a obra de Shakespeare, e assim fizeram as adaptações que julgaram pertinentes (principalmente nas tragédias) para que a obra “conversasse” também com esse público. Pois bem, sabemos que, para atender tais anseios, os adaptadores precisam com frequência recorrer a supressões, explicações, condensação de ideias e diversos outros procedimentos técnicos quando adaptam, por exemplo, textos clássicos intralinguisticamente. E o mesmo acontece com tradutores, porém interlinguisticamente. Estabelecemos, então, um paralelo entre o papel do tradutor e o do adaptador: eliminar partes do texto original ou recolocar trechos de outro modo no texto da Língua de tradução são exemplos de estratégias utilizadas tanto por tradutores como por adaptadores. O’Sullivan (2006) confirma esse aspecto quando trata de uma questão: tradutores convertendo grandes obras da literatura infantil para outros idiomas. Ele nos Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53 46 Adaptações, apropriações e o papel do adaptador Michael Cunningham em 'The hours' mostra diversos exemplos e conclui que a internacionalização de clássicos infantis passará certamente por procedimentos de adaptação, e não há alternativa. Assim, o processo de internacionalização de uma obra (texto fonte) – ou de várias que serviram de inspiração a essa obra – acopla-se a procedimentos de adaptação ainda que isso não ocorra de forma intencional. E quando é intencional, percebemos o olhar do adaptador para o texto fonte. Foi essa curiosidade acerca do olhar do adaptador que nos levou à obra The Hours (Picador, 1998) do romancista americano Michael Cunningham. The Hours (CUNNINGHAM, 1998) é uma obra que contém trechos originais e também outros elementos provenientes de The Diary of Virginia Woolf Volume II, 1920-1924 (Harcourt Brace & Company, 1978), Mrs. Dalloway (Penguin, 1925) e The Letters of Virginia Woolf, Volume VI, 1936-1941 (Harcourt Brace & Company, 1980), todos da notável romancista inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Contudo, além das adaptações e apropriações, outros personagens, roupagens e cenários também foram inseridos por Cunningham. Assim, preferimos não entrar na discussão em torno da categorização desse romance enquanto adaptação ou original. Assim, dizemos que Cunningham adaptou elementos que desejamos discutir e o faremos, através de leituras provenientes dos Estudos da Tradução e da Adaptação. Reiteramos então que este trabalho não pretende ser mera repetição do que já foi escrito sobre as traduções e adaptações de Woolf (1925), mas tem o intuito de propiciar um exame analítico do processo de recomposição de Mrs. Dalloway (1925), The Diary vol. II (1978) e The Letters vol. VI (1980) em The Hours (livro, 1998), desta vez sob a abordagem dos Estudos da Tradução e da Adaptação. Também levantaremos a mesma discussão em torno do filme The Hours (DALDRY, 2002). O objetivo é estudar todo o percurso pelo qual passou o texto virginiano, submetido a diversas transformações. 2. A COMPOSIÇÃO DE THE HOURS (1998) Em The Hours (1998) o autor Michael Cunningham deixa claro que recebeu permissão para adaptar Mrs. Dalloway (Penguin, 1925), o segundo volume do Diário (1978) e o sexto das Cartas (1980) mencionados, como consta na ficha catalográfica do livro, e constrói sua narrativa onde aparecem personagens novos, novas tramas e algumas estratégias textuais criadas pelo autor para “narrar” determinadas passagens dos textos virginianos que serviram de inspiração à obra. Em “a note on sources” (1998, p. 229), Cunningham menciona ainda o acesso que teve a diversas biografias da escritora, além de prefácios de vários editores das obras publicadas e diversas outras fontes que o ajudaram a construir seu romance. Porém, discutiremos aqui apenas os textos virginianos explicitamente Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53 Yuri Jivago Amorim Caribé 47 recolocados pelo autor conforme consta na ficha, por considerar as adaptações e apropriações que partiram dessas três obras as mais representativas. A passagem desses textos pelo olhar de Cunningham (1998) se dá de maneira bastante criativa. Seria esse o caso de uma discussão sobre os limites de criação que separam uma obra adaptada de uma obra dita nova? Não necessariamente. Desejamos apenas confirmar, através deste estudo, o papel do adaptador Cunningham como formador de novos leitores virginianos e talvez até de alguém que resgatou antigos leitores de Woolf (1925). Esse papel foi cumprido pela obra (1998) e complementado pelo filme (2002) posteriormente, conforme veremos. Parece-nos que a motivação de Cunningham (1998) para construir The Hours (1998) foi uma tentativa de estabelecer proximidade dos clássicos e de seus grandes autores com outro público. Essa consideração que fazemos é uma tentativa de atenuar discussões e categorizações, ao menos dentro deste trabalho, acerca do público para o qual se adapta, como verificamos em muitos artigos que se referem ao tema adaptação. Preferimos descrever a situação de adaptação verificada em The Hours (1998) apenas como tornar um clássico “disponível para outro grande público” (tradução nossa), como disse Hutcheon (2006, p. 2), ainda que essa situação ocorra com frequência em alguns casos. O que sabemos é que algumas estratégias textuais peculiares da autora inglesa Virginia Woolf foram recolocadas por Cunningham em The Hours (1998) de modo a conduzir o leitor a um ponto de vista do adaptador, como fez Rubem Braga e como acontece sempre que lemos uma adaptação. Sim, somos conduzidos às conclusões do adaptador... e as conclusões de Cunningham acerca desses textos virginianos são no mínimo interessantes. Vejamos: muitos dos acontecimentos e lembranças narradas por Woolf (1925, etc.) nas três obras supramencionadas – narrações conhecidas por fluxos de consciência – aparecem reconfiguradas por Cunningham (1998) em The Hours (1998). Ele utilizou os fluxos de consciência de Woolf percebidos por ele no Diary vol. II (1978), em Mrs. Dalloway (1925) e no Letters vol. VI (1980) para construir três personagens centrais em The Hours (1998) e dividir o livro em capítulos que tratam de forma alternada dessas três personagens. O autor chega mesmo a dar a cada capítulo os nomes Mrs. Brown, Mrs. Dalloway e Mrs. Woolf. Esses personagens são, ao mesmo tempo, atores e narradores de suas histórias. Mais ainda: Cunningham foi buscar nos diários de Woolf, principalmente no segundo volume (1978), a inspiração para descrever em The Hours (1998) um período na vida da própria Virginia Woolf, também personagem da obra. Assim, ele fala das memórias de Woolf ao escrever Mrs. Dalloway (1925), uma adaptação da biografia contada por ela mesma em seus diários e cartas. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53 48 Adaptações, apropriações e o papel do adaptador Michael Cunningham em 'The hours' 3. REESCREVENDO WOOLF Através de algumas colocações de Lefevere apresentadas a seguir (1992, pp. 1-2) apontaremos Cunningham como alguém que retoma a leitura de Virginia Woolf no mundo. Dizemos isto, pois nunca se falou tanto em Virginia Woolf desde a publicação do livro e a veiculação do filme (1998 e 2002). A obra fora publicada apenas três anos antes do aniversário de 60 anos da morte de Woolf. Dessa forma, consideramos que o momento foi propício, o olhar de Cunningham acreditou que refratar uma Mrs. Dalloway em tempos modernos, por exemplo, seria bastante conveniente. Assim, criou uma nova Clarissa, dessa vez uma moradora de Nova Iorque nos anos 2000 e que se prepara para dar uma festa para seu amigo Richard, tal qual fez Clarissa Dalloway em Mrs. Dalloway (1925). O mesmo Lefevere (1992, p. 7) nos diz ainda que algumas reescrituras são inspiradas por motivações ideológicas (de Cunningham, nesse caso) e na concordância dos reescritos com motivações atuais. As reescrituras manipulam e são eficazes, além de funcionarem sempre em adaptações para filme (2002) ou TV (LEFEVERE, 1992, p. 7). Essas reescrituras são percebidas pelo leitor familiarizado com os textos de Woolf (1925, etc.), logo no início de The Hours (Cunningham, 1998, pp. 6-7), através da carta de suicídio deixada por Woolf a seu esposo Leonard que se apresenta como prólogo, adaptada de Letters vol. VI (1980), e por toda obra, seja com menções bibliográficas provavelmente recriadas a partir do Diary vol. II (1978), seja com a utilização de elementos do romance Mrs. Dalloway (1925) e das cartas. Aliás, em entrevista consultada, o autor enfatiza que sua paixão pelo estilo virginiano e, de maneira mais direta, por Mrs. Dalloway (1925) são as molas propulsoras do processo de criação de The Hours (1998). O trecho abaixo, retirado dessa entrevista, deixa transparecer o que parece ser uma necessidade que Cunningham tem de falar sobre o romance Mrs. Dalloway (1925) como o primeiro e inesquecível romance da sua vida: Me envolvi com Mrs. Dalloway de uma maneira que nunca tinha acontecido com nenhum outro livro. Até que depois de muito, muito, muito tempo eu cresci e escrevi The Hours, tentando partir de um grande trabalho artístico para construir outro, da mesma forma que um jazzista faz improvisos em uma música já aclamada pelo público. Como escritor, preciso dizer que aprendi muito com Virginia Woolf. Creio que, de tudo, o mais importante foi perceber sua convicção de que o papel da existência humana, embora tendo utilizado guerras estrangeiras e morte de reis, e outros temas bastante recorrentes nos grandes romances, está associado a cada hora da vida, da mesma forma que o código genético de todo organismo está contido em cada linha do seu DNA. Se você observa com a devida sensibilidade, e arte, uma hora da vida de qualquer pessoa, você pode desvendá-la. E daí pode descobrir qualquer coisa. Virginia Woolf considerava que cada personagem dos romances que escrevia, mesmo sem tanta importância, visitava a história em algum momento e que, dessa forma, fazia seu próprio romance, sendo ele o herói de outra grande tragédia ou de uma passagem divertida. (ENTREVISTA COM MICHAEL CUNNINGHAM, 2010) Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53 Yuri Jivago Amorim Caribé 49 A reconfiguração da personagem principal homônima do romance virginiano Mrs. Dalloway em duas outras no livro The Hours (1998) é outro ponto interessante: a primeira de mesmo nome (Clarissa) é ambientada por Cunningham (1998) nos anos 2000, conforme já mencionamos, e a segunda, Laura Brown, parece trazer a Mrs. Dalloway do original de Woolf (1925) sob seu olhar crítico e descritivo. Ele percebe, dentro de todos os afazeres daquele dia, todo sofrimento, solidão e nostalgia da personagem. Assim, descreve Brown como leitora de Mrs. Dalloway (1925), dona de casa, infeliz no casamento, com desejos secretos, reprimidos e, enfim, angustiada com a situação de vida que se apresenta a ela. A atualidade sobre a qual Lefevere (1992) fala é bastante evidente nas duas personagens (Brown e Clarissa), o que promove a identificação do público leitor (1998) e expectador (2002). Lefevere (1982, p. 18) também afirma que antes de publicar uma obra refratada alguns questionamentos são feitos, por isto certamente foram feitas perguntas do tipo: o livro pode trazer à tona a discussão em torno de Virginia Woolf? Parece comercialmente rentável? Tem chances de ser traduzido? O argumento pode virar filme? A resposta a cada pergunta foi positiva. Continuando, Lefevere fala ainda no mesmo estudo (1982) de um sujeito-tradutor que conhece a língua, a literatura, a cultura e os movimentos de intercâmbio entre culturas. Em The Hours (1998) esse sujeito é Cunningham, leitor de Woolf que atendeu a interesses pessoais e também editoriais quando publicou The Hours. Acreditamos, então, que a indústria literária e cinematográfica americana fez o que pareceu interessante fazer, comercialmente falando, quando publicou o livro The Hours (CUNNINGHAM, 1998) e lançou o filme (DALDRY, 2002). 4. WOOLF NO BRASIL Levando em conta a indiscutível repercussão de The Hours (1998 e 2002), chamamos a atenção para a valorização da literatura virginiana no Brasil. Neste ponto, a tradução feita por Beth Vieira e publicada em 1999 pela Companhia das Letras (apenas um ano após o lançamento do original) e a veiculação do filme em circuito mundial a partir do ano de 2002 merecem destaque. Dizemos isto, pois a publicação de obras da escritora inglesa Virginia Woolf recebeu no Brasil atenção por parte das editoras no período que sucedeu o lançamento do livro (1998) e do filme (2002). E o afirmarmos com base em pesquisa recente de nossa autoria (CARIBÉ, 2010) que aponta uma aceleração em termos de publicações dessa autora no Brasil, conforme comparativo que apresentamos nos quadros 1 e 2. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53 50 Adaptações, apropriações e o papel do adaptador Michael Cunningham em 'The hours' Quadro 1. Publicações de Woolf no Brasil antes da publicação/lançamento de The Hours (1998 e 2002). Original Tradução (edição mais recente) Orlando (1928) 1978 / trad. por Cecília Meireles / Nova Fronteira Mrs. Dalloway (1925) 1980 / trad. por Mário Quintana / Nova Fronteira A room of one’s own (1929) Um teto todo seu / 1985/ Nova Fronteira The voyage out (1915) 1993 / Siciliano Quadro 2. Publicações de Woolf no Brasil depois da publicação/lançamento de The Hours (1998 e 2002). Original Tradução Jacob’s room (1922) Republicado em 2003 (trad. por Lya Luft) Carlyle’s house and other sketches (2003) A casa de Carlyle (2004) Flush (1933) Republicado em 2004 The complete shorter fiction of Virginia Woolf (1985) Contos completos (trad. por Leonardo Fróes) em 2005 A room of one’s own (1929) Um teto todo seu – relançado pela Nova Fronteira em 2005 Além do que foi mostrado no Quadro 2, tivemos o lançamento de várias biografias, a reedição dos Diaries e Letters no exterior, a realização de diversos estudos acadêmicos e jornalísticos sobre Woolf, e, por fim, a reedição de todos os grandes romances e contos de Woolf no Brasil. 5. TRADUÇÕES, APROPRIAÇÕES E ADAPTAÇÕES Antes de Cunningham (1998), o tradutor de Mrs. Dalloway no Brasil, o famoso escritor Mário Quintana, já se apropriava de um nome de Woolf, isso ocorreu quando o mesmo título do original batizou também a tradução em Língua Portuguesa, publicada pela editora Nova Fronteira (Mrs. Dalloway, Nova Fronteira, 1978). Falamos em apropriação, pois conforme nos diz Sanders (2006, p. 26) não se trata de termo acusativo. Pelo contrário, ela confirma, como Lefevere (1982, 1992), o sucesso que advém da identificação do leitor ao reconhecer mesmo que sejam pequenas nuanças do texto fonte no texto adaptado. Se não houver esse conhecimento, trata-se, então, de uma oportunidade para familiarizá-lo com aspectos que chamaram a atenção do adaptador no texto inicial e quiçá convidá-lo, posteriormente, a uma possível leitura do mesmo. Assim, Quintana manteve o título da obra inicial, mesmo sabendo que seria aquela uma edição em Língua Portuguesa. Talvez tenha levado em conta todos os aspectos que permeiam um grande clássico quando reconhecido mundo afora por críticos literários e pelo público já familiarizado com obras desse autor e achou que não caberia a ele adaptar título e personagem tão marcantes. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53 Yuri Jivago Amorim Caribé 51 Cunningham (1998) seguiu a mesma tendência e batizou seu romance com o título que Woolf daria a Mrs. Dalloway (1925), qual seja: The Hours. Essa discussão em torno da adaptação/apropriação de Mrs. Dalloway (Woolf, 1925) por Cunningham também provoca Sanders (2006, p. 118) a tecer diretamente suas considerações em torno desse processo e ela o faz de forma elogiosa: “Cunningham atualiza o romance virginiano Mrs. Dalloway em movimentos sucessivos através do tríptico de personagens no espaço temporal, geográfico e cultural de sua criação (...)” (tradução nossa). Sobre o filme (2002), não poderíamos deixar de destacar a recriação do imaginário de Cunningham sobre Woolf segundo o diretor Daldry (2002) e o efeito das imagens e também da trilha sonora para que o público perceba as questões profundas que envolvem os pensamentos e o lado psicológico das personagens, já que esses pontos são bem característicos do estilo de Woolf. Os monólogos destacam esse aspecto e evidenciam o texto de Cunningham roteirizado por David Hare e a importante atuação das intérpretes de Mrs. Dalloway (Clarissa Vaughan, Meryl Streep), Mrs. Woolf (Virginia Woolf, Nicole Kidman) e Mrs. Brown (Laura Brown, Juliane Moore). Por último, destacamos ainda a trilha sonora instrumental e a fotografia, buscando retratar a Inglaterra dos anos 1920, um bairro americano nos anos 1940 e a Londres dos anos 2000, como fatores que também contribuem para um filme reconhecidamente merecedor da crítica positiva que recebeu. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Woolf (1925) ocupa posição importante dentro dos sistemas literários mundiais. Acontece que todas as traduções e adaptações de obras dessa autora são tentativas de dar conta da, muitas vezes, complexa leitura de seus textos. Cunningham mergulhou nesse universo de complexidade e conseguiu dialogar com ele, dando origem a uma nova obra. Assim, como o livro de Cunningham (1998) e o filme (DALDRY, 2002) conseguiram estabelecer uma comunicação com leitores e espectadores sob a ótica virginiana, ousamos discutir os aspectos adaptativos que promoveram essa (bem sucedida) comunicação. O livro traz diversos depoimentos de importantes meios de comunicação com críticas bastante positivas a esse romance. Porém, o mais importante, em termos editoriais, é o público, e Hutcheon (2006, p. 7) confirma esse aspecto quando se refere às adaptações bem recebidas pelo público e pela crítica dizendo que “adaptação é repetição, mas repetir sem replicar” (tradução nossa). Mesmo dedicando grande parte de sua fala às adaptações fílmicas, ousamos aplicar alguns de seus conceitos (HUTCHEON, 2006) para este caso, que trata de uma obra construída a partir de elementos adaptados intralingualmente. Sua fala Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53 52 Adaptações, apropriações e o papel do adaptador Michael Cunningham em 'The hours' confirma ainda o que levantamos no início deste trabalho quando falamos em releitura que promove uma revalorização, pois a adaptação envolve tanto um processo de (re-) interpretação e, posteriormente, de (re-) criação (HUTCHEON, 2006, p. 8). Conclui (2006, p. 121) lembrando o que também mencionamos durante este trabalho, que “adaptações bem sucedidas são feitas para ambos os públicos: os que conhecem e não conhecem os textos-fonte”. Como vimos, esse é o caso de The Hours (1998). Percebemos também a necessidade de uma pesquisa que mensurasse dados precisos sobre a discussão em torno da recepção das traduções de Virginia Woolf pós The Hours (1998) no Brasil, uma vez que ainda são poucos os estudos que tragam uma análise historiográfica mais aprofundada sobre traduções e adaptações de obras de Woolf (1925, etc.) produzidas em Língua Portuguesa por exemplo. Considerando que o livro The Hours (1998) e o filme sejam formas de reescritura, ou seja, traduções de vários elementos recodificados por Cunningham, a comparação dos originais de Woolf (1925) com The Hours (1998) e com o filme poderá fornecer um campo rico de novas possibilidades de leitura e interpretação das obras dessa escritora inglesa. Acredita-se, pois, que a escolha dos objetos de estudo deste trabalho sejam relevantes para o avanço das pesquisas em Estudos da Tradução com foco em adaptações. A leitura de Cunningham, principalmente sobre o Diary vol. II (1978), Mrs. Dalloway (1925) e de Letters vol. VI (1980), refratada em seu romance The Hours (1998) parece uma tentativa de reescrever personagens, enredo e tramas da forma como foram percebidas pelo autor/adaptador após algum tempo como leitor de Virginia Woolf. Reiteramos, por fim, que o principal objetivo (do autor e da editora) que motivou a publicação de The Hours (1998) era mesmo retomar a leitura de Virginia Woolf pelo mundo, apostando na receptividade do público em torno desse aspecto. REFERÊNCIAS BELL, A.O. (Ed.). The Diary of Virginia Woolf (Vol. II 1920-1924). Nova Iorque: Harcourt Brace & Company, 1978. ______. (Ed.). The Letters of Virginia Woolf (Vol. VI 1936-1941). Nova Iorque: Harcourt Brace & Company, 1980. BRADSHAW, Tony. The Bloomsbury Artists: Prints and Book Design. Aldershot, U.K.: Scholar Press, 1999. CAMÕES, Luiz Vaz. Os Lusíadas. Trad. Rubem Braga. São Paulo: Scipione, 1987. CARIBÉ, Y.J.A. Panorama das traduções de Virginia Woolf publicadas no Brasil. 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Yuri Jivago Amorim Caribé Tradutor e professor de Literatura Inglesa e Tradução. É mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e doutorando em Letras, subárea Tradução, pela Universidade de São Paulo - USP. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 43-53