Direito ao espaço cotidiano: moradia
e autonomia no plano de uma metrópole
The right to the everyday space: housing
and autonomy in the master plan of a metropolis
Silke Kapp
Resumo
A proposição de Henri Lefebvre de um direito à
cidade tem sido amplamente utilizada em meios
acadêmicos e extra-acadêmicos, com tendência a
uma certa banalização. O presente artigo retoma
alguns aspectos dessa proposição aqui considerados fundamentais, para então discutir sua relação com a ordem jurídico-urbanística inaugurada
pelo Estatuto da Cidade, particularmente no que
diz respeito aos princípios de participação e autonomia. A terceira parte explora uma possibilidade
de ampliação concreta da autonomia coletiva na
escala microlocal, partindo dos estudos da temática habitacional elaborados para o Plano Diretor de
Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI-RMBH). Ainda com
base nesses estudos, a quarta parte sintetiza os
entraves à autonomia nas instituições existentes, e
a última parte expõe a proposta de uma Tipologia
de espaços cotidianos para estruturar articulações
que a favoreçam.
Palavras-chave: espaço cotidiano; habitação; autonomia; planejamento; Região Metropolitana de
Belo Horizonte.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Abstract
Lefebvre’s proposition of a right to the city has
been widely used in academic and extra-academic
circles, with a tendency to oversimplification.
This paper resumes some aspects of this
proposition that we consider fundamental, and
then discusses their relationship to the legal
order inaugurated by the City Statute, particularly
with regard to the principles of participation and
autonomy. The third part explores a possibility
of concrete amplification of collective autonomy
at the microlocal scale, drawing from studies
developed for the Master Plan for the Integrated
Development of the Metropolitan Region of
Belo Horizonte (Brazil). Also based on these
studies, the fourth part summarizes the barriers
to autonomy in the existing institutions, and the
last part outlines the proposal for a typology of
everyday spaces to structure articulations that
could favor it.
Keywords: everyday space; housing; autonomy;
planning; Metropolitan Region of Belo
Horizonte.
Silke Kapp
Imaginar a cidade
tais como são. Pelo contrário,­ trata-se de
“prospectar as novas necessidades, sabendo que tais necessidades são descobertas no
Há uma entrevista do psicólogo social Erich
decorrer de sua emergência e que elas se re-
Fromm à rede de televisão norte-americana
velam no decorrer da prospecção” (Lefebvre,
ABC no ano de 1958 em que, a certa altura, ele
2001 [1968], p. 125). O direito à cidade é o
se diz a favor do socialismo desde que o termo
direito de imaginar e realizar a cidade, contí-
não fosse identificado com o regime então em
nua e concomitantemente. Lefebvre­associa
vigor na União Soviética, mas com “uma socie-
esse processo aos procedimentos artísticos e
dade na qual o objetivo da produção não é o
propõe “pôr a arte ao serviço do urbano” para
lucro, mas o uso, na qual o cidadão individual
abrir uma “práxis e poiesis em escala social”
participa de modo responsável no seu traba-
(Lefebvre,­2001 [1968], pp. 134-135).
lho e em toda a organização social, e na qual
ele não é um meio empregado pelo capital”
(Fromm, 1958). O jornalista Mike Wallace, reproduzindo o discurso típico da grande mídia
ocidental, retruca que o trabalhador que não
fosse empregado do capital se tornaria empregado do Estado e estaria numa situação ainda
pior. E Fromm, como que solicitando ao interlocutor e ao público a ultrapassagem do racio-
O direito à cidade se manifesta como
forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à
obra (à atividade participante) e o direito
à apropriação (bem distinto do direito à
propriedade) estão implicados no direito
à cidade. (Lefebvre, 2001 [1968], p. 135;
grifos do autor)
cínio polarizado entre uma ou outra forma de
A expressão lefebvriana tem estado na
dominação social, responde: “Temos sido incri-
pauta das discussões nacionais e internacio-
velmente imaginativos em tudo o que diz res-
nais, acadêmicas e extra-acadêmicas, especial-
peito à técnica e à ciência. Mas quando se trata
mente entre grupos que intencionam uma ou
de mudanças nos arranjos sociais, tem nos fal-
outra forma de resistências à globalização de
tado totalmente a imaginação” (Fromm, 1958).
modelo neoliberal e à governança corporativa
Uma tal imaginação para mudanças
das cidades que ela tende a promover. Além
nos arranjos sociais também me parece im-
de inúmeras publicações e da Carta Mundial
prescindível à concepção de direito à cidade
pelo Direito à Cidade , são exemplos nesse
formulada por Henri Lefebvre. Como sugere
sentido conferências como Rights to the City:
Harvey (2012, p. xiii), a gênese dessa con-
Citizenship, Democracy and Cities in a Global
cepção pouco antes dos eventos de maio de
Age (Toronto, 1998) e Rights to the City (Ro-
1968 provavelmente deva mais ao ativismo
ma, 2002), diversos eventos no Fórum Social
nas ruas e vizinhanças de Paris do que à tradi-
Mundial, movimentos como o Right to the City
ção intelectual­em que ela (também) se apóia.
Alliance (EUA) e o Recht auf Stadt-Netzwerk
O pleito de Lefebvre não é simplesmente um
(Alemanha), e legislações como a Lei de Desen-
pleito pela satisfação de necessidades defi-
volvimento Territorial na Colômbia e o Estatuto
nidas ou induzidas na cidade e na sociedade,­
da Cidade no Brasil.
464
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
Nesse contexto de difusão relativamente
ampla, o significado da expressão “direito à
cidade” se tornou objeto de disputa. Diversos
autores têm protestado contra sua banalização como simples análogo ou somatório do
acesso ampliado a serviços e equipamentos de
habitação, saúde, educação, transporte e lazer.
Mitchell­(2003) discutiu em profundidade­o que
significaria habitação e apropriação da cidade
no sentido lefebvriano, muito além da acomodação de cada família numa unidade habitacional de determinado padrão. Harvey (2008) vem
tentando resgatar o caráter emanci­patório do
direito à cidade, enfatizando que se trata “do
exercício de um poder coletivo de dar uma nova forma ao processo de urbanização”. Souza
(2010, p. 319) argumenta que sua “trivialização e corrupção” tende a tornar essa expressão
inútil para quaisquer propósitos críticos. Merrifield (2011) retoma as possibilidades de transformação criativa hoje, explorando um artigo
tardio em que o próprio Lefebvre abandona a
ideia do direito à cidade (“entrega-a ao inimigo”) por considerá-la ultrapassada “quando a
cidade se perde numa metamorfose planetária” (Lefebvre, 1989). E principalmente Purcell
(2002) se opôs, já há alguns anos, a leituras
políticas­e econômicas na cidade e para
além dela. (Purcell, 2002, p. 101)
Segundo Purcell, a diferença entre o direito à cidade intencionado por Lefebvre e as
ideias que têm sido veiculadas em seu nome
equivale à diferença entre uma democratização parcial das decisões hoje tomadas na esfera do Estado e uma democratização radical
de todas as decisões que afetam a produção do
espaço urbano, isto é, também daquelas hoje
tomadas na esfera do capital. Isso significaria
nada menos do que uma rearticulação mundial
de escalas de governança, com a substituição
da atual hegemonia do Estado-nação por uma
hegemonia das cidades governadas diretamente por seus habitantes. Os resultados disso são
inteiramente abertos, imprevisíveis, porque
não se limitariam à redistribuição socialmente
mais justa das possibilidades disponíveis, nem
estacionariam diante dos entraves operacionais determinados pelas instituições existentes.
Elas mobilizariam aquele tipo de imaginação
solicitado por Erich Fromm, mas nada garante
que levariam a um estado de coisas que, nas
perspectivas que a cidade e a sociedade atual
oferecem, fosse considerado ideal.
superficiais, “escavando” as proposições de Lefebvre até as últimas consequências:
[...] o direito à cidade de Lefebvre é um
argumento para mudar profundamente
tanto as relações sociais do capitalismo
quanto as estruturas vigentes de cidadania democrático-liberal. Seu direito à
cidade não é uma sugestão de reforma,
nem visa a uma resistência fragmentada, tática, passo-a-passo. Sua ideia é em
vez disso uma convocação para uma reestruturação radical de relações sociais,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Reformar a cidade
No Brasil, a resposta à chamada crise urbana centrou-se por décadas na ideia da reforma urbana; e reforma, como se sabe, não é
revolução, pois ocorre dentro de estruturas
e instituições sociais existentes. Inaugurada
formalmente com o Seminário de Habitação
e Reforma Urbana de 1963 (Bonduki e Koury,
465
Silke Kapp
2010), a mobilização­por essa ideia se tornou
leis, planos e instrumentos jurídicos tende a
mais expressiva com a elaboração da Emenda
ser inútil porque, no melhor dos casos, resulta
Popular da Reforma Urbana (Silva, 1991), par-
em documentos de conteúdo escorregadio e de
cialmente acatada nos Artigos 182 e 183 da
uma linguagem que permite apropriações por
Constituição Federal de 1988. A regulamen-
agendas opostas, ao ponto de simplesmente le-
tação desses artigos pelo Estatuto da Cidade,
gitimar o status quo. No segundo caso, caberia
que pode ser considerada uma conquista dos
o contra-argumento de Mitchell (2003), de que
movimentos e entidades reunidos no Fórum
pressões populares podem, sim, levar o Estado
Nacional da Reforma Urbana, permite afir-
de Direito a proteger os socialmente mais fra-
mar que “o Brasil incorporou formalmente a
cos e a fortalecer agendas emancipatórias.
noção de ‘direito à cidade’ em [seu] sistema
Ermínia Maricato, que foi responsável
legal” (Fernandes, 2007, p. 202). O processo
pela defesa da Emenda perante a Comissão
possibilitou a criação de uma ordem jurídico-
de Sistematização da Constituinte e teve im-
-urbanística na qual as chamadas funções
portantes atuações na Prefeitura de São Paulo
sociais da propriedade e da cidade são decla-
e no Ministério das Cidades, assumiu recente-
radas prioritárias, bem como a criação de um
mente a alternativa mais pessimista. Ela diag-
Ministério das Cidades para articular políticas
nostica que o ciclo de mobilização no Brasil se
habitacionais e urbanas, um Sistema Nacional
encerrou sem alcançar “uma mudança de rota
e um Fundo Nacional de Habitação, e inúme-
no rumo que orientou a construção das cida-
ros órgãos e conselhos estaduais e municipais
des” (Maricato, 2011, p. 77). A disputa dos ca-
para detalhá-las e pô-las em prática.
pitais por localização e pelo valor de uso com-
Na perspectiva de transformação radi-
plexo das cidades, a indústria imobiliária e as
cal, aberta e imprevisível que Lefebvre levan-
operações especulativas continuam muito mais
ta, a incorporação do direito à cidade num
determinantes na produção do espaço urbano
sistema legal existente seria contraditória. Há
do que qualquer participação popular nas de-
de se convir então que o direito à cidade ins-
cisões do Estado ou qualquer função social da
titucionalizado no Brasil não tem caráter re-
propriedade. Muito se fez em termos institu-
volucionário. Declaradamente, a “bandeira de
cionais, abriram-se alguns canais novos, houve
luta” da reforma urbana desde os anos 1980
um aprimoramento politicamente correto dos
visa, sobretudo, a amenizar a dicotomia entre
discursos (inclusive das frentes mais conser-
cidade legal e clandestina, cidade moderna e
vadoras) e um aporte significativo de meios,
precária, cidade rica e pobre (Silva, 1991, p. 7).
mas as cidades estão piorando e os supostos
A questão é se esse enquadramento mais limi-
avanços dificilmente chegam aos meandros do
tado constituirá um dos muitos expedientes de
cotidiano, seja da própria população, seja da
neutralização das energias críticas nessa socie-
administração pública ou do trabalho técnico.
dade ou se ele pode avançar paulatinamente
Enquanto isso, “o ideário da ‘reforma urbana’
rumo a mais espaços de democracia direta. No
que tem o ‘direito à cidade’ ou a justiça urbana
primeiro caso, caberia aplicar-lhe o argumento
como questão central [...] parece ter se evapo-
de Tushnet (1984), de que o engajamento por
rado” (Maricato, 2011, p. 29).
466
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
Cardoso e Silveira (2011) chegam a
Nesse sentido, uma fragilidade funda-
conclusões semelhantes, se bem que não tão
mental do Estatuto é o papel acessório que
categóricas, acerca dos Planos Diretores ela-
nele se atribui à participação popular. Não
borados a partir do Estatuto da Cidade: in-
que ela não seja mencionada inúmeras ve-
tenções e objetivos relevantes estão em toda
zes. Mas as menções têm justamente aquele
parte, mas há poucas medidas e estratégias
caráter vago­criticado por Tushnet (1984). Co-
concretas para sua realização. Poder-se-ia
mo Souza­ (2006, p. 221) analisa com muita
acrescentar que esse efeito estava quase pré-
contundência, “a maneira como o Estatuto
-programado no Estatuto porque, paradoxal-
a esta se refere é, quase sempre, indefinida –
mente, a mesma legislação federal que esta-
admitindo-se uma interpretação que privilegie,
belece a função social da propriedade torna
a depender da Prefeitura,­um processo delibe-
sua aplicação inteiramente dependente das
rativo ou meramente consultivo – ou então a
instâncias legislativas e executivas municipais
tônica é claramente­consultiva”. Discutimos
(e aos agentes privados capazes de influenciá-
em outra ocasião (acrescentar depois) que a
-las localmente), dando-lhes poder suficien-
participação institucionalizada, orquestrada
te para procrastinar tal aplicação por mais
por técnicos­e administradores públicos para
algumas décadas. Soma-se a isso a incoe­
satisfazer exigências­ formais, não é apenas
rência de programas federais mais recentes,
insuficiente, mas perniciosa. Ela não constitui
cujos recursos­podem atropelar o mais bem
um “degrau” numa “escada da participação”
intencionado planejamento municipal, como
(Arnstein, 1969) cujo topo seria a autogestão
vem ocorrendo em muitos empreendimentos
ou a autonomia coletiva dos habitantes da ci-
do Programa Minha Casa Minha Vida ou do
dade (Souza,­2001), mas burocratiza, frustra e
Progra­ma de Aceleração do Crescimento.
arrefece o engajamento. Isso vale muito parti-
Por outro lado, assumindo a alternativa
cularmente para o contexto de intervenções em
menos pessimista, pode-se considerar que a
áreas habitadas pela população política e eco-
formalização de direitos que o Estatuto ofere-
nomicamente mais pobre, isto é, naquelas por-
ce, com todas as suas limitações, também pro-
ções da cidade para as quais a ideia da reforma
tege e fortalece interesses tradicionalmente
urbana e o próprio Estatuto foram formulados.
obliterados nas legislações urbanas brasileiras;
Nesse âmbito, técnicos e administradores ten-
ou, indo um pouco mais longe, que “a reforma
dem a tomar a participação como uma tarefa
da ordem legal é uma das principais condições
entre outras, a ser realizada pelo “pessoal do
para transformar a natureza do processo de
social” (os assistentes sociais que compõem as
desenvolvimento urbano” (Fernandes, 2007,
equipes de orgãos públicos e empresas priva-
p. 208). Uma condição, no entanto, não sig-
das) sem influência decisiva sobre os proces-
nifica realização. Mesmo a possibilidade de
sos e produtos de intervenções urbanísticas ou
reformar a cidade – sem revolucioná-la por
construções novas.
ora – dependerá da mobilização continuada e
Ora, a participação não é apenas uma
crítica da imaginação coletiva para criar suas
entre outras ideias relacionadas ao direi-
formas concretas.
to à cidade. Ela é seu cerne. Talvez a escolha
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
467
Silke Kapp
do termo seja infeliz, porque participação,
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da
independentemente­do adjetivo que a qualifi-
Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI-
que (plena, verdadeira, genuína, etc.), sempre
-RMBH), aprovado em 2011.1 Não obstante
sugere uma outra instância, não composta pe-
suas­ especificidades, as contradições dessa
los próprios “participantes”, que determina e
situação são aplicáveis a muitas outras. Como
coordena o processo. Isso vale mais ainda para
um plano que está inserido em estruturas insti-
a sua especificação como participação popular,
tucionais relativamente convencionais, inclusi­
pois se há o popular, deve haver o não popular.
ve no que diz respeito à participação, poderia
Qualquer interpretação do significado
político da palavra “povo” tem de partir
do fato singular de, nas línguas europeias
modernas, ela designar sempre também
os pobres, os deserdados, os excluídos.
Uma mesma palavra nomeia, assim,
tanto o sujeito político constitutivo [da
democracia] como a classe que de fato,
senão de direito, está excluída da política.
(Agamben, 2010, p. 31)
abir caminho para uma produção do espaço
com maior autonomia?
Habitar a cidade, no sentido enfático do
“direito à obra [...] e à apropriação” (Lefebvre,
2001, p. 135), significa poder determinar como
se quer habitar, incluíndo as características de
espaços privados e públicos, as relações entre
uns e outros, com o meio natural, com a vizinhança imediata e mediata, com as centralidades e redes urbanas mais abrangentes e assim
Ampliar e concretizar o direito à cidade
por diante. As políticas públicas de habitação
para além das legislações exige criar possi-
no Brasil estão longe dessa compreensão am-
bilidades, não apenas de maior participação
pla. Quando são destinadas à produção de
popular, mas de autonomia socioespacial, isto
novos espaços de moradia, via de regra, par-
é, possibilidades para que diferentes coletivida-
tem da premissa de grande conjuntos de uso
des adquiram o direito e a capacidade de de-
exclusi­vamente habitacional, com unidades-pa-
finir a produção do espaço, em contraposição
drão para famílias-padrão e espaços coletivos
à heteronomia ou à definição dessa produção
e públicos tratados, senão como sobra entre
por instâncias alheias. O dilema nesse raciocí-
edificações, como circulação ou equipamento
nio – ao qual volto em seguida – é a escala de
de uso predefinido e monitorado.
abrangência de tais “coletividades”.
Tomem-se por exemplo as recomendações do Ministério das Cidades para a elaboração dos Planos Locais de Habitação de
Direito à cidade
e espaço cotidiano
Interesse Social (PLHIS), que sugerem que os
municípios comecem por “conhecer [quantitativamente] o conjunto das necessidades
habitacionais e dimensionar os recursos ne-
As concepções delineadas acima constituíram
cessários” (MCidades,­ 2009, p. 171). Esse
algumas das balizas de uma abordagem da
dimensionamento de recursos­deve ser feito
temática habitacional elaborada sob coordena-
por faixas­de renda, com base no custo pra-
ção da autora no contexto dos estudos para o
ticado por unidade habitacional­convencional
468
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
(“vertical­e horizontal”)­e no valor médio da
se essa última é “aquilo que ‘resta’ quando se
terra no respectivo­setor urbano (MCidades,
subtraem todas as atividades distintas, supe-
2009, p. 173). Ainda que se trate apenas de
riores, especializadas, estruturadas” (Lefebvre,
uma esti­ma­tiva e que o processo possa, em
1991, p. 97), espaço cotidiano seria o que resta
teo­ria, incluir a concepção de novos parâmetros
quando se subtraem espaços ‘distintos, supe-
urbanísticos e tipos arquitetônicos, a quantifi-
riores, especializados, estruturados’, como mo-
cação ocorre num momento em que, do pon-
numentos e redes e equipamentos urbanos de
to de vista operacional, é improvável que uma
amplo alcance. Define-o o fato de não deman-
prefei­tura consiga elaborar e orçar alternativas
dar organização para funções especializadas,
concretas para espaços específicos ou novas or-
nem tampouco organização por especialistas.
ganizações da produção por associações, coo­
Mas o cotidiano não é como uma “planície”
perativas e outras entidades comunitárias. A
contraposta aos “picos” dos momentos criati-
tendência é que sejam reproduzidos processos
vos; ele é o “solo fértil” no qual surgem avan-
e rotinas já consolidados e que elas acabem
ços criativos e no qual eles são reincorporados
sendo mantidas­mais tarde. Existem exceções
(Lefebvre, 1991, p. 87; cf. Lefebvre, 2002).
como os empreendimentos autogestionários,
mas quantitativamente são pouco expressivas.
O espaço cotidiano seria, assim, a menor
escala de um exercício concreto do direito à ci-
Já políticas e programas destinados à
dade entendido como direito coletivo de trans-
melhoria de assentamentos existentes tendem
formá-la. A autonomia na sua produção implica
a reproduzir procedimentos de urbanização da
que grupos locais e microlocais determinem
cidade formal, também heterônomos. A popu-
seus processos e desenvolvam-nos ao longo
lação é convidada a participar de processos
do tempo. Essa possibilidade está focada em
cuja estrutura está prefixada e nos quais suas
relações de vizinhança, na negociação e ação
informações e opiniões têm pouco ou nenhum
numa coletividade territorial, na capacidade de
peso diante de ditames técnicos, econômicos e
solucionar diretamente e sem complexos meca-
burocráticos. Embora seja preferível a proces-
nismos burocráticos os fatores de desconforto
sos sem nenhuma participação, essa modali-
de ambientes privados, coletivos ou públicos,
dade de “participação restrita ou instrumen-
nas oportunidades de transformar rotinas ou
tal” (Azevedo, 2008, p. 90) satisfaz o princípio
levar a cabo empreendimentos criativos, na
de gestão democrática apenas formalmente e,
perspectiva de definir serviços ou equipamen-
como já indicado, até dificulta avanços para a
tos disponíveis.
autonomia. O direito à moradia entendido nes-
O dilema dessa proposição é, como já
ses termos contradiz o direito à cidade em vez
indicado acima, a abrangência de uma tal
de ampliá-lo.
“menor escala” e sua articulação com as de-
Para tentar fugir a tais entendimentos
mais. Assim como as atividades especializadas
naturalizados, a abordagem da temática ha-
não são da ordem da vida cotidiana, mesmo
bitacional do PDDI-RMBH se deu com foco no
que muita gente se envolva com elas diaria-
que denominamos espaço cotidiano. O concei-
mente, um grande equipamento urbano não é
to foi introduzido em analogia à vida cotidiana:
um espaço cotidiano segundo essa definição,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
469
Silke Kapp
mesmo­que muitos o frequentem todos os dias.
para­a redução­de investimentos­públicos nas
Só cabem­no espaço cotidiano assim definido
comunidades­pobres. Tome-se, por exemplo,
porções­urbanas cuja influência seja relativa-
os programas de autoajuda do Banco Mundial
mente limitada. No entanto, como determinar
incitados por John­F. C. Turner, que Mike Davis
esse limite? E como evitar o paroquialismo?
critica: “elogiar a práxis dos pobres tornou-se
Como fugir do fechamento dessas porções ur-
uma cortina de fumaça para revogar compro-
banas sobre si mesmas que, no pior dos casos,
missos estatais históricos de reduzir a pobreza
resulta em guetos com autoritarismos locais e
e o déficit habitacional” (Davis, 2006, p. 81).
sem nenhuma articulação política mais ampla?­
Seria importante, no entanto, compreender
O já citado Purcell (2006) formulou críticas
até que ponto as tentativas de incremento da
contundentes nesse sentido, batizando de local
autonomia na escala microlocal engendradas
trap a crença de que a escala local teria uma
por Turner e outros se fragilizaram por falta de
virtude inerente e seria sempre e necessaria-
uma discussão mais abrangente da economia
mente mais propícia à justiça social (ou socio-
política da produção social do espaço. Como
espacial) do que a grande escala.
nota Cardoso (2008, p. 31), Turner pressupõe
A armadilha local [local trap] na literatura sobre a democracia urbana está na
pressuposição de que a restituição da
autoridade produzirá maior democracia.
Assume-se que quanto mais localizadas
as instituições de governo, mais democráticas serão. Mais especificamente, o
pressuposto é que quanto mais autonomia a população local tiver sobre sua área
urbana, mais democráticas e justas serão
as decisões sobre aquele espaço. (Purcell,
2006, p. 1925)
um processo evolutivo de integração social
concomitante ao desenvolvimento econômico
dos países “atrasados”, deixando de lado as
desigualdades estruturais que marcam esse
desenvolvimento e que não serão eliminadas
pelo simples crescimento. Na mesma linha dos
advogados da nova direita, os engajados nessa autonomia restrita tenderam a identificá-la
com “empreendedorismo” (Frank, 2000, p. 35;
cf. Ronneberger, 2008).
Por outro lado, assim como não cabe
O principal argumento contra a hipósta-
uma hipóstase da escala local ou microlocal,
se da escala local é que ela abre mão de outras
não cabe seu oposto. O espaço cotidiano e
articulações, sem nem mesmo examiná-las,
particularmente a habitação não constituem,
e assim abre mão também da constituição
em si mesmos, um equipamento ou serviço que
democrática de coletividades amplas, organi-
possa ser determinado a partir de um planeja-
zadas, por exemplo, em redes e não em ilhas
mento em escala metropolitana. Mesmo que
territoriais. Tudo isso acaba por favorecer as
ele fosse plenamente participativo, não poderia
agendas às quais o “localismo” pretende se
contemplar as características específicas que
contrapor, já que em escala regional, nacional
definem qualidades e mazelas de cada peque-
ou global deixa de lhes fazer qualquer oposi-
na porção do território. Então, é preciso admitir
ção. Experiên­cias de produção relativamente
a impossibilidade de que se faça jus a todas as
autônoma de habitações e vizinhanças nas
nuances da escala microlocal em discussões de
décadas de 1960 e 1970 abriram caminho
tal abrangência, em vez de ceder à “propensão
470
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
ao gigantismo” (Schumacher, 1981) estimulada
texto. A primeira parte consistiu num exame
por uma aparente eficiência técnica e adminis-
de como o espaço cotidiano comparece nas
trativa. Além de anular qualidades microlocais
estruturas institucionais existentes, incluindo
e possibilidades de ação dos habitantes ao
marcos regulatórios, programas públicos habi-
longo do tempo, ela favorece as interferências
tacionais e práticas das prefeituras municipais.
sistemáticas de instâncias “superiores” no co-
Seu objetivo foi evidenciar em que medida ca-
tidiano – essa “mistificação profissional das
da uma dessas instâncias promove ou interdita
atividades cotidianas” (Turner, 1976, p. 26) por
as possibilidades de autonomia, considerando
administradores, sanitaristas, urbanistas, ar-
mecanismos participativos, estrutura de ges-
quitetos e afins – que certamente não garante
tão, incentivos a associações e cooperativas
maior justiça social e, ainda por cima, perpetua
de habitação e de construção, e o caráter mais
a dominação social na forma da tutela.
ou menos determinista das legislações quanto
No processo de discussão da temática
às formas urbanas e edificadas. Disso resultou
da habitação no PDDI-RMBH, entendemos que
um diagnóstico que, embora se refira a dados
uma saída possível para esse dilema seria um
colhidos na RMBH,2 pode ser lido como uma
planejamento metropolitano que, em vez de
análise qualitativa mais geral dos efeitos que
projetar esse ou aquele modo de vida, garantis-
a nova ordem jurídico-urbanística baseada na
se alguns limites à interferência das operações
noção de direito à cidade gerou até agora. A
de grande escala nas menores porções urbanas
segunda parte consistiu numa tentativa de es-
e, ao mesmo tempo, oferecesse condições favo-
truturar, mediante uma tipologia de espaços
ráveis para que essas porções se articulassem
cotidianos, as articulações futuras entre por-
entre si e com escalas mais abrangentes. Qual-
ções distintas e por vezes dispersas no territó-
quer espaço cotidiano numa metrópole sofre,
rio, mas que têm características semelhantes
com maior ou menor intensidade, impactos me-
quanto à inserção metropolitana e à resposta
tropolitanos produzidos por fenômenos como
aos impactos dela decorrentes.
dinâmica imobiliária, investimentos públicos,
grandes empreendimentos produtivos, condições ambientais ou estrutura de transporte e
mobilidade. O planejamento deveria ajudar a
criar uma relação de forças mais equilibrada entre essas escalas, removendo obstáculos a uma
Estruturas instituídas
e autonomia
no espaço cotidiano
maior autonomia microlocal, examinando como
instâncias de governança mais abrangentes
Uma característica que perpassa todas as ins-
podem apoiar ações nessa escala e ampliando
tâncias de regulação, planejamento e gestão
as possibilidades de constituição de redes entre
habitacional que examinamos nos estudos
espaços cotidianos microlocais.
para o PDDI-RMBH é o fato de mencionarem
A abordagem então se desdobrou
e até enfatizarem a participação popular e
em duas par tes, cujos resultados estão
a função social da cidade e da propriedade,
sintetizados­ nos dois próximos itens deste
mas não levarem esses princípios às últimas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
471
Silke Kapp
consequências, nem reverterem rotinas prove-
seriam o instrumento mais importante para
nientes da tradição de produção heterônoma
que os municípios construíssem suas políticas
pública e privada.
habitacionais. No período dos estudos para o
A análise comparativa dos Planos Direto-
PDDI-RMBH (2009-2010), esses planos não
res de 22 dos 34 municípios da RMBH mostrou
estavam concluídos em nenhum município da
que a maioria foi elaborada ou revisada após
RM. Em contrapartida, quase todos os Planos
a aprovação do Estatuto da Cidade (2001) e
de Regularização Fundiária Sustentável (PRFS),
adere aos seus princípios e instrumentos. No
que deveriam se basear nos respectivos PLHIS,
entanto, talvez pelo fato de terem sido ela-
haviam sido elaborados em função de uma
borados em grande parte por terceiros e com
mudança na alocação de recursos federais que
participação social reduzida (ao menos os re-
estabeleceu a exigência do PRFS para acesso
gistros a esse respeito são escassos e surpre-
ao Programa de Aceleração do Crescimento
endentemente semelhantes entre si), os Planos
(Orientação operacional nº 12, de 30/10/2009).
Diretores trazem pouca articulação entre tais
Os Planos de Regularização da RMBH
princípios e as especificidades locais. Muitos
resultantes dessa antecipação seguem as fór-
destacam o incentivo a formas alternativas de
mulas de regularização consolidadas em Belo
construção, à criação de cooperativas, asso-
Horizonte, a partir dos princípios da função so-
ciações e sindicatos habitacionais autogestio-
cial da propriedade e do direito da população
nários e à capacitação de iniciativas coletivas
de permanecer nas áreas ocupadas. Remoções
por meio de assessoria técnica, sem explicitar
são recomendadas apenas em casos de risco
como isso seria implementado. Já as parcerias
ou quando há necessidade de desadensamen-
com o setor privado para a implementação de
to e implantação de infraestrutura. Em tese,
programas habitacionais são estimulados me-
famílias removidas devem ser reassentadas
diante operações urbanas consorciadas e flexi-
em áreas próximas, embora se saiba que isso
bilização de parâmetros de uso e ocupação do
nem sempre é possível e que a própria noção
solo. Alternativas de menor porte, mais pulveri-
“necessidade” de remoção também dê mar-
zadas do que os grandes empreendimentos pri-
gem a ações autoritárias. Os PRFS propõem
vados, quase não comparecem senão abstrata-
“cardápios” de instrumentos do Estatuto da
mente. Com relação à regularização jurídica de
Cidade, para que o corpo técnico-administra-
assentamentos consolidados, há uma tendên-
tivo (não a população) discuta mais tarde as
cia de reconhecimento do direito individual de
opções mais viáveis para cada assentamento:
propriedade plena, desconsiderando a titulação
delimitação e regulamentação de ZEIS, trans-
coletiva no caso de regularização por usuca-
ferência de título pela aplicação da Concessão
pião em imóveis privados, bem como a Conces-
de Direito Real­de Uso, doação e Usucapião,
são de Uso Especial para Fins de Moradia e a
além de aprovação e registro de áreas repar-
Concessão de Direito Real de Uso, previstas no
celadas e legalização individual por emissão
Estatuto da Cidade.
onerosa de título.
Depois dos Planos Diretores, os Planos
No entanto, a enunciação genérica
Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS)
desses instrumentos nos PFRS e nos Planos
472
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
Diretores,­sem regulamentação por outras leis
de 100hab/km2). As secretarias de assistência
municipais, torna rara sua execução. As en-
social, meio ambiente, obras e planejamento
trevistas nas prefeituras apontaram questões
urbano dividem as atribuições para possibilitar
concretas nesse sentido. Quando perguntamos
algum acesso a programas federais e atender a
quais dos instrumentos do Estatuto da Cida-
demandas pontuais da população. Esse atendi-
de presentes nos respectivos Planos Diretores
mento se dá muitas vezes pela solução imedia-
têm sido utilizados de fato, as respostas foram
ta de casos de risco ou precariedade habitacio-
quase sempre evasivas. Muitos técnicos muni-
nal sem o acionamento de programas específi-
cipais estão convencidos de que quaisquer ins-
cos e de uma maneira que até reforça situações
trumentos que atacam o direito de propriedade
irregulares. Em muitos municípios, os técnicos
privada são inviáveis na prática. Assim, o Direi-
da prefeitura só vão a campo quando solicitado
to de Superfície e a Outorga Onerosa são con-
pelo setor de obras ou planejamento ou pela
siderados aplicáveis, mas medidas como o IPTU
vizinhança. Essas situações podem ser vistas
progressivo e outras que alterariam a lógica de
como uma maneira assistencialista de enfren-
especulação, gentrificação, vacância e irregula-
tar os problemas urbanos, mas, por outro lado,
ridade são descartadas. Segundo os técnicos,
indicam que os planos e os programas federais,
gerariam conflitos políticos e econômicos que
cuja estrutura é fundamentalmente a mesma
as administrações não estão dispostas a en-
para municípios de quaisquer tamanhos, não
frentar. Ao mesmo tempo, faltam experiências
correspondem à realidade administrativa e fi-
próximas que inspirem ações mais incisivas e
nanceira dos municípios menores. Ainda que o
aumentem a confiança na aplicabilidade de
estabelecimento de prazos para a elaboração
instrumentos jurídicos menos conservadores.
dos diversos planos municipais tenha decor-
Para vencer tais dificuldades e possibilitar uma
rido da “necessidade de que [o Estatudo da
execução justa dos planos seria necessário um
Cidade] não se transformasse imediatamente
processo de conscientização que incluísse a po-
em “lei que não pega” antes mesmo de ser
pulação interessada. Sua própria avaliação dos
experimentado” (Rolnik et al., s.d., pp. 33-34),
benefícios e prejuízos de cada instrumento do
os prazos acabam transformando os planos em
Estatuto da Cidade e as reinvindicações feitas
meros instrumentos de acesso a recursos. Em
a partir disso seriam cruciais para modificar as
vez de “leis que não pegam”, acumulam-se
práticas políticas e administrativas.
planos que não refletem a realidade urbana,
Outra questão evidenciada nas entrevis-
não têm reflexo nessa realidade e constituem
tas foi o descompasso entre programas fede-
apenas expedientes burocráticos sem nenhuma
rais, com suas agendas e pré-requisitos, e os
possibilidade de inovações locais e microlocais
problemas enfrentados pelas prefeituras no
a partir de uma participação ampla.
dia a dia. Em muitas delas não existe nenhum
Outro imenso entrave a transformações
órgão especificamente responsável pelas políti-
nesse sentido são os normativos da Caixa Eco-
cas habitacionais e urbanas (a RMBH inclui 14
nômica Federal. Não apenas inúmeras famílias
municípios com menos de 20 mil habitantes e
se engajam em programas participativos e
14 municípios – não os mesmos – com menos
depois são reprovadas na análise de crédito,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
473
Silke Kapp
como­também os normativos induzem à uni-
providos­de infraestrutura estão pulverizados e
formização das soluções técnicas e espaciais.
a verticalização contrasta agressivamente com
Dado que a Caixa toma os imóveis financia-
as construções existentes e com os hábitos da
dos por garantia, seus agentes privilegiam os
população. As prefeituras se veem diante de
processos e produtos que estão habituados a
um impasse, pois as propostas lhes chegam co-
financiar e fiscalizar, vale dizer, aqueles usuais
mo que em pacotes fechados e os técnicos des-
em empreendimentos com fins lucrativos. Co-
conhecem arranjos produtivos que envolvam
mo nos tempos do Banco Nacional de Habita-
as comunidades e viabilizem empreendimentos
ção, não se estruturou “qualquer ação signifi-
menores. Resta-lhes a implantação em novas
cativa para apoiar, do ponto de vista técnico,
áreas, mesmo quando a malha urbana existen-
financeiro, urbano e administrativo, a produção
te comportaria moradias em número suficiente.
de moradia ou urbanização por processos alter-
À medida que aumenta essa “sinergia”
nativos, que incorporassem o esforço próprio
entre capital privado e programas públicos,
e capacidade organizativa das comunidades”
a ideia da autogestão dos empreendimentos
(Bonduki, 2009, p. 74). A atual política nacional
pelos futuros moradores tem sido deixada de
inclui processos participativos na elaboração
lado. Muitas prefeituras parecem conhecer
dos planos urbanos e habitacionais e propõe
apenas os mutirões geridos pelo poder públi-
programas de autogestão, mas faltam arranjos
co, nos quais a participação da população nada
institucionais mais adequados a essa e outras
mais visa do que a reduzir custos. Belo Horizon-
formas alternativas de gestão. Tais arranjos
te é o único município da RMBH onde houve
são mencionados, mas, na prática, os recursos
empreendimentos autogestionários na década
continuam geridos pela Caixa, agente operador
de 1990 e, mais tarde, pelo Programa de Cré-
de todos os programas com recurso da União e
dito Solidário, mas não há previsão concreta de
agente financeiro da grande maioria.
continuidade dessa prática. Ela tem esbarrado
Quanto ao Programa Minha Casa Minha
num alto nível de burocratização e controle,
Vida, ele promove empreendimentos habita-
e é considerada de difícil execução pela Se-
cionais financiados com recursos públicos, mas
cretaria Municipal de Habitação, embora seus
propostos, planejados e executados por empre-
resultados sociais sejam assumidamente mais
sas privadas, à revelia de toda a ordem jurídica
positivos do que os da gestão pública. Assim,
instituída a duras penas para uma – ainda que
a previsão de que o PMCMV enfraqueceria os
relativa – democratização. Dado que as rotinas
movimentos sociais urbanos se confirma na
de produção das empresas são mais lucrativas
RMBH (Arantes e Fix, 2009). Assim como os
quando repetidas em grande escala, empre-
recursos do Programa de Aceleração do Cres-
endedores e construtores têm pressionado as
cimento destinados às favelas, o PMCMV tem
prefeituras para acatar empreendimentos de
gerado uma onda de produção heterônoma,
prédios de apartamentos com 500 unidades
que não potencializa, mas esfacela os proces-
(limite máximo do Programa). Esse pressupos-
sos de aprendizado para a autonomia iniciados
to é conflitante com a estrutura do espaço ur-
anteriormente, num período de pouquíssimas
bano de muitos municípios, onde lotes vagos
políticas habitacionais.
474
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
Em suma, a análise no âmbito municipal
perspectivas­de maior abertura nas instâncias
mostrou que ainda são escassos os instru-
que hoje tendem a promover uma massifica-
mentos para promover a autonomia ou, pelo
ção de soluções convencionais.
menos, ampliar uma participação mais efetiva. Há uma retórica de democratização, enquanto legislações e rotinas frequentemente
impedem que decisões sejam de fato tomadas
pelos habitantes. Com as devidas ressalvas,
isso vale também para a infinidade de agentes públicos e privados envolvidos na questão
habitacional, de organismos internacionais a
movimentos sociais, de empresas a entidades
do terceiro setor e universidades. Seja qual
for o foco de uma entidade, o engajamento
no tema da habitação traz ganhos peculiares,
tais como o acesso a recursos, a melhoria da
imagem corporativa ou o incremento de capi-
Tipologia de espaços cotidianos
Como já mencionado, um segundo desdobramento da abordagem da temática habitacional nos estudos para o PDDI-RMBH consistiu
numa tipologia de espaços cotidianos, isto
é, numa ferramenta conceitual para descrever diferentes situações típicas de moradia e
ambiente urbano na RMBH. Seu objetivo é estruturar as articulações futuras, tanto no planejamento metropolitano e municipal, como
tal político. No entanto, constatamos de mo-
em novas formas de planejamento pela popu-
do geral a predominância de uma abordagem
lação e na relação entre as diferentes escalas
convencional. A meta da regularização fundiá-
que isso implica.
ria é central, sem que se questione, por exem-
Uma tipologia é uma maneira de descre-
plo, o título de propriedade individual em
ver um conjunto de fenômenos organizando-
contraposição à possibilidade de propriedade
-os de acordo com suas características.3 A es-
coletiva. Ao lado da regularização, promove-
colha dessas características ou variáveis define
-se a produção de unidades habitacionais no-
a tipologia, isto é, a lógica de articulação entre
vas nos moldes dos clássicos conjuntos habi-
os tipos, que não é hierárquica, mas pode ter
tacionais horizontais ou verticalizados, tendo
diferentes níveis de generalidade ou especifi-
por pressuposto a gestão ou execução dos
cidade. Dada a diversidade dos espaços coti-
empreendimentos pelo capital privado. Até
dianos da RMBH, uma tipologia que refletisse
mesmo a porção mais consolidada dos movi-
cada um de seus meandros seria inútil, porque
mentos sociais pela moradia está afinada com
teria a mesma complexidade. Inversamente,
essa abordagem. Na contramão, encontramos
uma tipologia ordenada por alguns critérios
os movimentos sociais mais frágeis, a própria
universalmente aplicados a quaisquer espaços
sociedade civil não organizada, bem como al-
também significaria reduzir a realidade. Por
gumas instituições de pesquisa, que tentam
essa razão, procuramos extrair as variáveis
abordagens mais abertas e mais condizentes
mais decisivas a partir de dados do Censo, das
com o direito à cidade como direito de trans-
análises, entrevistas e oficinas, de bases car-
formar a cidade. O desafio seria conseguir
tográficas e aerofotogramétricas disponíveis
articular entre esses extremos, introduzindo
e de pesquisas acadêmicas existentes acerca
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
475
Silke Kapp
dos espaços em questão (sobretudo estudos
O grupo denominado Conjuntos abrange
de caso). Cristalizou-se­por fim um aspecto
as situações em que um planejamento centrali-
elementar, que se reflete nas formas visí-
zado define arruamento, parcelamento, equipa-
veis dos espaços cotidianos da RMBH, tanto
mentos e edificações numa única operação ou
quanto em seus processos de transformação e
em operações conjugadas. O empreendimento
suas potencialidades: o próprio grau de auto-
assim planejado e construído define, por si só,
nomia ou heteronomia da população no que
um ambiente urbano, uma vizinhança específi-
diz respeito às decisões sobre espaço urbano,
ca ou, enfim, um certo espaço cotidiano. Por-
incluindo o impacto das dinâmicas metropoli-
tanto, trata-se de um espaço que não resulta
tanas nesses espaços. A partir disso definimos
de um processo histórico ou orgânico de produ-
quatro grandes grupos, a cada um dos quais
ção, mas de deliberações feitas principalmente
corresponde um critério primário de diferen-
no momento do planejamento com o pressu-
ciação, que leva aos Tipos propriamente ditos,
posto de que, uma vez construído, o empreen-
elencados no Quadro 1.
dimento estará “pronto” e não precisará­ser
Quadro 1 – Tipos de espaços cotidianos da RMBH
Conjuntos
Parcelamentos
Aglomerados
Moradias rurais
... são situações em que as decisões mais relevantes sobre a moradia e seu ambiente imediato são tomadas ...
... por uma instância única
(planejador, empreendedor)
num momento determinado
... em parte por uma instância
única num momento
determinado e em parte por
muitos indivíduos ao longo
do tempo
... por muitos indivíduos ao
longo do tempo
... por uma instância única ao
longo do tempo
Seu principal aspecto de diferenciação é...
... a faixa de renda dos
moradores
... o tamanho das parcelas
(lotes)
... o grau de consolidação
... a relação entre trabalho e
moradia
Essa diferenciação dá origem aos tipos:
(1) Conjunto de interesse
social
(4) Parcelamento de lotes
pequenos (< 360m2)
(7) Aglomerado frágil
(10) Unidade agrária familiar
(2) Conjunto popular
(5) Parcelamento de lotes
médios (360m2 a 1.000m2 )
(8) Aglomerado consolidado
(11) Unidade agrária
empregadora
(3) Conjunto de classe média
ou alta
(6) Parcelamento de lotes
grandes (> 1.000m2 )
(9) Aglomerado histórico
(12) Unidade rural não
produtiva
Fonte: PDDI-RMBH, Produto 6, 2010.
476
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
modificado. Os empreendimentos desse grupo,
expulsão­da população mais pobre. Já nos Con-
encontrados na RMBH, são sempre: grandes
juntos de classe média a alta a questão da lo-
(alguns com 5 mil habitantes ou mais), por isso
calização urbana se apresenta de modo inver-
mesmo implantados em áreas periféricas (que
so. Eles frequentemente abrem novas frentes
podem se tornar centrais em razão de um pro-
de expansão, inclusive externas ao perímetro
cesso posterior); destinados a um público numa
urbano previsto nos Planos Diretores dos muni-
faixa de renda específica, nunca a um público
cípios, em áreas rurais ou áreas de preservação
heterogêneo; promovidos pelo poder público
ambiental, mas tendem a criar sua articulação
ou pelo capital privado (nunca pelos futuros
urbana com a própria implantação, além de
moradores); formalmente homogêneos e até
gerar também novos Aglomerados frágeis em
monótonos; com espaços públicos e coletivos
suas proximidades, já que raramente preveem
predeterminados (funcionalistas); e regulariza-
moradias ou serviços para os trabalhadores dos
dos juridicamente ou com irregularidades de
quais dependem.
solução relativamente simples. Tudo isso vale
O grupo denominado Parcelamentos,
para os três tipos incluídos no grupo dos Con-
o mais comum na malha urbana da RMBH,
juntos: Conjunto de interesse social, Conjunto
abrange as situações em que a estrutura ur-
popular e Conjunto de classe média a alta.
bana e as parcelas com suas respectivas edifi-
Tais tipos se diferenciam entre si prima-
cações são decididas por instâncias diferentes
riamente pela faixa de renda do público ao
e em tempos diferentes. A estrutura urbana é
qual se destinam ou pelo qual são ocupados
fruto de um planejamento realizado por téc-
ao longo do tempo. Assim, por exemplo, uma
nicos e encomendado pelo poder público, por
característica decisiva para todos os espaços
um loteador privado ou até pelos próprios (fu-
cotidianos, a sua localização na metrópole, têm
turos) moradores. Já a parcela é uma porção
consequência muito distintas para os Conjun-
da terra urbana sobre a qual os proprietários
tos de interesse social e Conjuntos de classe
ou usuários dispõem, dentro das limitações
média a alta. Os primeiros, quando implanta-
postas pela legislação – mais ou menos efeti-
dos em periferias sem articulação urbana ten-
va – ou pela vizinhança. O critério primário de
dem a degradar rapidamente não apenas pela
diferenciação no grupo dos Parcelamentos é o
de falta de acesso a oportunidades de trabalho
tamanho das parcelas – lotes grandes, médios
e renda (que afeta igualmente áreas perifé-
ou pequenos – que também define muito de
ricas de outros tipos), mas também pelo fato
sua inserção na dinâmica urbana (como co-
de que o espaço é definido, restringe ao extre-
mentado adiante). Não foi adotada a distinção
mo as possibilidades de criação de trabalho e
primária de parcelamentos regulares e irregu-
renda por iniciativa dos próprios moradores. O
lares porque entre a situação de plena regulari-
desenvolvimento socioeconômico só se dá por
dade e a de total irregularidade os matizes são
iniciativa externa, que, via de regra, precisa ser
inúmeros. Também não foi utilizada a distinção
realizada ou estimulada pelo poder público, ou
primária por bairros populares, médios, de alto
então pela própria expansão da malha urba-
padrão e de luxo, como o faz a Fundação Insti-
na, mas que implica também uma ameaça de
tuto de Pesquisas Econômicas, Administrativas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
477
Silke Kapp
e Contábeis­de Minas­Gerais (IPEAD) no mo-
lotes. Assim, as parcelas absorvem, acomodam
nitoramento do mercado imobiliário formal de
e amortecem mudanças condicionadas por di-
Belo Horizonte. Como essa classificação se ba-
nâmicas urbanas mais amplas (o que se reflete
seia na renda média dos chefes de família, não
em preços de venda e aluguel, grau de ocupa­
registra o grau de heterogeneidade na renda
ção ou vacância, construção de barracos de
da população residente, que é o principal indí-
fundos, novas instalações comerciais, reformas
cio de integração ou segregação socioespacial.
ou degradação nas unidades, etc.), enquanto a
Cabe observar ainda que estão incluídos no ti-
estrutura urbana tende a permancer a mesma,
po Parcelamentos de lotes pequenos aqueles
até um ponto de colapso.
iniciados pela própria população, tais como as
Já o grupo denominado Aglomerados
ocupações por movimentos sociais organiza-
abrange situações em que a estrutura urbana
dos. Essas iniciativas têm reproduzido a lógica
tem um grau de flexibilidade mais próximo ao
dos parcelamentos formais, sempre na pers-
de suas parcelas (em muitos casos não formali-
pectiva de regularização posterior: as decisões
zadas como lotes). Isso inclui as cidades histó-
são tomadas num único momento e segundo
ricas, tanto quanto as ocupações mais recentes
um plano geral, que define lotes individuais de
que não tiveram planejamento técnico prévio.
propriedade privada.
A fluidez espacial e as possibilidades de nego-
Uma característica decisiva dos diferen-
ciação são maiores do que nos tipos do grupo
tes tipos de Parcelamentos é como são afeta-
parcelamentos: pedaços do terreno de um vi-
dos pela dinâmica urbana (sobretudo imobiliá­
zinho são usados como passagem, ventilação
ria) e, inversamente, afetam essa dinâmica.
ou depósito, e eventualmente comprados ou
Dado que as edificações nas parcelas estão a
alugados; o lote privado tem seus limites rigo-
cargo de inúmeras iniciativas e decisões indi-
rosamente definidos apenas com a ação exter-
viduais, que se fazem ao longo do tempo, há
na de regularização. Assim, os aglomerados de
certa inércia em relação a novas ações plane-
todos os tipos se caracterizam, não tanto pela
jadas pelo poder público e em relação à pró-
ausência total de planejamento, mas por plane-
pria produção capitalista do espaço em gran-
jamentos contínuos, mais ou menos fragmenta-
de escala. É mais difícil alterar parâmetros
dos ou coletivos. Um dos maiores atrativos das
urbanísticos, arruamentos ou espaços públicos
cidades históricas está justamente na diversi-
em áreas parceladas do que em áreas de ex-
dade de seus espaço urbanos, nas surpresas e
pansão, pois as alterações na estrutura urbana
peculiaridades que proporcionam: em lugar de
implicam acordos com muitos proprietários. Já
malhas geométricas regulares e cursos d’água
a ocupação das parcelas tem, pelo contrário,
retificados, tem-se traçados surgidos em fun-
relativa flexibilidade, especialmente quando se
ção do relevo e dos percursos; em lugar de um
trata de parcelas de dimensões médias (entre
espaço público indiferente aos usos de seus
360m e 1000m ). Elas possibilitam mudanças
lotes, tem-se espaços públicos que reagem a
de usuários e usos, alteração e substituição das
esses usos.
2
2
edificações, adensamento, verticalização e até
As vilas e favelas da RMBH apresentam,
alterações subdivisão ou remembramento de
em muitos casos, qualidades semelhantes.­
478
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
A grande diferença entre os apreciados
infraestrutura, o risco e a vulnerabilidade so-
núcleos­ históricos e as depreciadas ocupa-
cial. Cabe perguntar então se, no século XXI,
ções informais é a disponibilidade de tempo,
daremos continuidade a esse padrão ou se há
recursos e conhecimento na constituição de
outros procedimentos possíveis, para além de
sua estrutura urbana. Núcleos históricos, mes-
um processo técnico convencional. Isso signi-
mo quando surgidos com características de
ficaria proteger os contextos microlocais do
urbanidade moderna, isto é, como centros de
“atropelamento” pela dinâmica urbana mais
produção, distribuição e reprodução da ativi-
abrangente e, ao mesmo tempo, seria o oposto
dade mineradora (Monte-Mór, 2001), puderam
da preservação inerte do patrimônio histórico,
dispor de grande parte dos conhecimentos e
que desemboca facilmente em congelamento
recursos disponíveis no período de seu desen-
e supressão dos processos múltiplos de desen-
volvimento e tiveram um ritmo de crescimento
volvimento microlocal. Em lugar de congelar a
mais compatível com decisões, negociações e
cidade histórica e “tecnificar” a favela, talvez
ajustes feitos ao longo do tempo. Na RMBH
haja maneiras para que diversidade e imprevi-
do século XX, pelo contrário, esse desenvolvi-
sibilidade existam sem precariedade.
mento paulatino e aberto ficou reservado aos
A relativa dispersão espacial das Mora-
pobres e exposto a toda espécie de cataclis-
dias Rurais, o último dos quatro grande grupos
mas, enquanto os recursos para a urbanização
da tipologia em questão, faz com que as de-
se concentraram em instâncias que operam via
cisões de um indivíduo ou uma família acerca
planejamento técnico centralizado, tais como
do espaço cotidiano pouco ou nada afetem
o poder público e o grande capital privado.
seus vizinhos: são situações em que uma ins-
Ações e programas públicos para a me-
tância única (a família ou um grupo pequeno)
lhoria de aglomerados consolidados e a conso-
produz o espaço ao longo do tempo. A forma
lidação ou eliminação de aglomerados frágeis
como se dá essa produção está diretamente
têm sido reunidos sob a bandeira da regulari-
vinculada à propria relação entre a moradia e
zação fundiária, que também abrange lotea-
o trabalho rural, mais do que ao tamanho da
mentos irregulares e conjuntos degradados. A
unidade rural em que a moradia está implan-
escolha dessa bandeira tem a vantagem de re-
tada. Embora os dados que obtivemos nas pre-
tirar as ações de um contexto ideológico assis-
feituras e em trabalhos acadêmicos acerca das
tencialista. Não se trata de “ajudar os pobres”,
moradias rurais sejam muito mais escassos do
mas de tentar remediar um processo histórico
que os dados acerca das moradias urbanas, é
de supressão dos direitos de grande parte da
possível afirmar que muitos municípios da RM-
população. No entanto, a noção de regulariza-
BH preservam tradições rurais. Há zonas urba-
ção também dá margem a um entendimento
nas com características de cidades pequenas,
por vezes formalista e burocratizado dos pro-
interioranas, onde os habitantes zelam, eles
blemas reais. Irregularidade, como situação ju-
mesmos, pela qualidade do espaço cotidiano
rídica, não é o problema mais importante, nem
e organizam-se coletivamente com mais faci-
é exclusividade dos pobres. Mais importante é
lidade do que nos grandes centros. Contudo,
sua conjunção com a precariedade, a falta de
a questão da moradia rural vai muito além de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
479
Silke Kapp
uma preservação­de tradições antigas, romanti-
a partir deles; e de um conjunto de interfaces
zadas em hotéis-fazenda. Trata-se, na verdade,
digitais abertas a toda a população para au-
de possibilitar a criação de novas relações en-
mentar a disponibilidade e a troca de informa-
tre campo e cidade na RMBH, como, aliás, já
ções. A tipologia deveria facilitar a cooperação
vem ocorrendo em alguns municípios. Projetos
entre prefeituras e, sobretudo, a organização
de assentamento e acampamentos, assim co-
coletiva dos habitantes, já que lugares de mes-
mo os projetos “rururbanos” das Brigadas Po-
mo tipo tendem a compartilhar problemas, in-
pulares, apontam interações entre o rural e ur-
teresses e possibilidades de ação.
bano de caráter emancipatório. Como constata
De qualquer modo, considero que a com-
Silva (2008), é patente a intenção de um “re-
preensão ampliada (não restrita aos técnicos)
torno ao campo” de parte da população que
das relações entre os diferentes espaços cotidia-
em décadas passadas foi forçada a migrar para
nos e deles com operações e dinâmicas metro-
os centros urbanos. Evidentemente, essa po-
politanas mais amplas seria essencial à possibi-
pulação, que passou pela experiência urbana,
lidade de maior autonomia coletiva dos habitan-
não se restringirá a reproduzir antigas tradi-
tes da cidade numa articulação metropolitana
ções rurais, mas poderá constituir novos modos
congruente e politicamente expressiva. Em pes-
de vida e, portanto, também novas formas de
quisas de campo nas vilas, favelas e periferias
moradia. Ao mesmo tempo, há na RMBH 519
de Belo Horizonte, realizadas mais recentemen-
grandes propriedades improdutivas passíveis
te com a mesma equipe, vem se tornando cada
de desapropriação, além de inúmeros parcela-
vez mais evidente que boa parte da população
mentos vagos e imensas reservas de terra de
ignora como aqueles espaços se constituem, os
empresas mineradoras que devem ser incluídas
direito que – com todas as limitações – a legis-
no planejamento.­
lação atual lhes confere, bem como a existência
de muitos outros grupos em situações espaciais
semelhantes. A construção de canais de compar-
Uma observação final
tilhamento entre esses grupos a partir de uma
estrutura­capaz de criar conexões pertinentes –
a tipologia é uma proposta nesse sentido, mas
Nos estudos para o PDDI, baseamos na tipo-
haverá outras – pode criar uma base comum
logia acima resumida as ações da “Política
de informações acerca do território e uma ba-
metropolitana integrada de direito ao espaço
se comum de acesso a essas informações no
cotiadiano: moradia e ambiente urbano”, que
território, favorecendo tanto as atuações das
constituiu o produto final do trabalho da equi-
prefeituras, quanto as atuações de associações
pe. Entre outras coisas, essa proposta de polí-
de moradores e entidades afins, inclusive para
tica incluiu: um acordo metropolitano de regu-
discutir com elas (as prefeituras) e em outros fó-
lamentação de instrumentos urbanísticos, que
runs quais serão os rumos da cidades. Grupos
poderiam ser estruturados conforme os tipos
locais poderiam decidir diretamente sobre a
em questão; um programa de apoio à gestão
utilização dos espaços­públicos, as intervenções­
dos espaços cotidianos, também estruturado
de melhoria­ numa vizinhança, os padrões
480
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
urbanísticos,­etc., na pequena escala e poderiam
rumo a um direito mais concre­to­à cidade e rom-
se inserir em processos mais abrangentes ten-
per a inércia de uma tradição que, por ora, não
do maior conhecimento e clareza na defesa de
incorporou esse direito nas suas­práticas e roti-
seus interesses. Mesmo que (ainda)­não haja ne-
nas, mesmo que muitos de seus agentes o tenha
nhuma revolução, poderíamos alcançar­ganhos­
incorporado em suas intenções.
Silke Kapp
Arquiteta e doutora em Filosofia. Professora associada da Escola de Arquitetura da Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Nomes dos membros da subequipe envolvida com a área temática, bem como os nomes dos
coordenadores gerais do PDDI-RMBH e alguns dados sobre seu contexto institucional, serão
inseridos posteriormente, dependendo do parecer. O material apresentado deste ponto em
diante é fruto do trabalho conjunto da equipe, mas eventuais inconsistências ou lacunas da
interpretação e do formato dados ao material neste artigo se devem exclusivamente à autora
(incorporei trechos de textos dos estudos do PDDI-RMBH, desde que redigidos de próprio
punho já naquela ocasião). Os estudos da temática habitacional para o PDDI-RMBH abrangeram
também outras questões que não são discutidas aqui, tais como: redução da vacância,
regularização fundiária, tratamento de Zonas Especiais de Interesse Social, áreas de risco e áreas
centrais, etc.
(2) Além das fontes documentais, as informações foram obtidas mediante entrevistas em todas as
prefeituras municipais e oficinas participativas. As entrevistas foram realizadas entre março e
maio de 2010, sempre com técnicos responsáveis pela política urbana e habitacional. As oficinas
participativas foram conduzidas pela subequipe de Mobilização Social do PDDI-RMBH, não
sendo especificamente dedicadas aos temas habitação e espaço cotidiano. Mas elas fornecerem
dados adicionais, permitiram conhecer posturas de outros atores institucionais e reforçaram
muitos dos relatos obtidos nas entrevistas.
(3) No campo da arquitetura e do urbanismo, o conceito de tipologia é comumente aplicado a
edificações – e até erroneamente confundido com a noção de modelo –, enquanto a descrição
de ambientes urbanos se faz por morfologia, isto é, uma classificação das formas urbanas
(cf. Cataldi et al., 2002). Contudo, a tipologia proposta contempla também processos e
características que não se refletem necessariamente nas formas físicas, como taxa de vacância
das edificações, arranjos produtivos ou irregularidade fundiária.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
481
Silke Kapp
Referências
AGAMBEN, G. (2010). “O que é um povo?” In: DIAS, B. e NEVES, J. (org.). A política dos muitos. Povo,
Classes e Multidão. Lisboa, Tinta da China.
ARANTES, P. e FIX, M. (2009). Pacote habitacional de Lula é a privatização da política urbana. Correio
da Cidadania, 29/7/2009.
ARNSTEIN, S. (1969). A ladder of citizen participation. Journal of the Institute of American Planners,
v. 34 (4), pp. 216-224.
AZEVEDO, S. de (2008). Estratégias de gestão. MCidades, Secretaria Nacional de Habitação. Política
Habitacional e a Integração de Assentamentos Precários. Parâmetros conceituais, técnicos e
metodológicos. Brasília.
BONDUKI, N. (2009). “Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas
perspectivas no governo Lula”. Brasil em Desenvolvimento. Estado, Planejamento e Políticas
Públicas. Brasília, IPEA.
BONDUKI, N. e KOURY, A. P. (2010). Das reformas de base ao BNH. As propostas do Seminário de
Habitação e Reforma Urbana. Arquitextos, São Paulo, 10.120, Vitruvius.
CARDOSO, A. L. (2008). Contextualização/Caracterização. MCidades, Secretaria Nacional de Habitação.
Política habitacional e integração urbana de assentamentos precários. Parâmetros conceituais,
técnicos e metodológicos. Brasília.
CARDOSO, A. L. e SILVEIRA, M. C. (2011). “O Plano Diretor e a Política de Habitação”. In: SANTOS JÚNIOR,
O. e MONTANDON, D. (org.) Planos Diretores Municipais Pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico
e perspectivas. Rio de Janeiro, Letra Capital, Observatório das Cidades, IPPUR/UFRJ.
CATALDI, G.; MAFFEI, G. L. e VACCARO, P. (2002). Saverio Muratori and the Italian school of planning
typology. Urban Morphology, 6 (1), pp. 3-14.
DAVIS, M. (2006). Planeta Favela. São Paulo, Boitempo.
FERNANDES, E. (2007). Constructing the ‘right to the city’ in Brazil. Social Legal Studies, v. 16 (2),
pp. 201-210.
FRANK, B. (2000). “New right/new left: an alternative experiment in freedom”. In: HUGHER, J. e
SADLER, S. (org.). Non-plan: essays on freedom, participation and change in modern architecture
and urbanism. Oxford, Architectural Press.
FROMM, E. (1958). Entrevista a Mike Wallace. Disponível em: http://www.hrc.utexas.edu/
multimedia/video/2008/wallace/fromm_erich_t.html. Acesso em: 30/9/2011.
HARVEY, D. (2008). The right to the city. New Left Review, n. 53, s.p. Disponível em: www.
newleftreview.org/?view=2740. Acesso em: 20/1/2010.
______ (2012). Rebel cities. From the right to the city to the urban revolution. Londres/Nova York,
Verso.
LEVEBRE, H. (1989). Quand la ville se perd dans une métamorphose planétaire. Le monde
diplomatique, n. 422, pp. 16-17.
______ (1991). The production of space. Oxford, Blackwell.
482
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
LEVEBRE, H. (2001 [1968]). O direito à cidade. São Paulo, Centauro.
______ (2002). Critique of everyday life. Londres, Verso.
MARICATO, E. (2011). O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis, Vozes.
MCIDADES, Secretaria Nacional de Habitação (2009). Curso à distância: planos locais de habitação de
interesse social. Brasília.
MERRIFIELD, A. (2011). The right to the city and beyond: notes on a Lefebvrian re-conceptualization.
City, v. 15, n. 3-4, pp. 468-476.
MITCHELL, D. (2003). The right to the city. Social justice and the fight for public space. Nova York/
Londres, Guilford.
MONTE-MÓR, R. L. de M. (2001). Gênese e estrutura da cidade mineradora. Cedeplar/Faculdade de
Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
PURCELL, M. (2002). Excavating Lefebvre: the right to the city and its urban politics of the inhabitant.
GeoJournal, n. 58, pp. 99-108.
______ (2006). Urban democracy and the local trap. Urban Studies, v. 43, n. 11, pp. 1921-1941.
ROLNIK, R.; CYMBALISTA, R. e NAKANO, K. (s.d). Solo urbano e habitação de interesse social: a questão
fundiária na política habitacional e urbana do país. Disponível em: http://www.usp.br/srhousing/
rr/docs/solo_urbano_e_habitacao_de_interesse_social.pdf. Acesso em: 5/10/2011.
RONNEBERGER, K. (2008). “Henri Lefebvre and urban everyday life: in search of the possible”. In:
GOONEWARDENA, K. et al. (org.). Space, difference, everyday life: reading Henri Lefebvre. Nova
York/Londres, Routledge.
SCHUMACHER, E. F. (1981). O negócio é ser pequeno. Rio de Janeiro, Zahar.
SILVA, A. A. da (1991). Reforma urbana e o direito à cidade. São Paulo, Pólis.
SILVA, C. E. M. (2008). Dinâmica dos projetos de Assentamento de Reforma Agrária na Região
Metropolitana de Belo Horizonte. Programa de pós-graduação em Geografia, Instituto de
Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
SOUZA, M. L. de (2001). Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos.
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
______ (2006). A Prisão e a Ágora: reflexões em torno da democratização do planejamento e da
gestão das cidades. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
______ (2010). Which right to which city? In defence of political-strategic clarity. Interface, v. 2(1),
pp. 315-333.
TURNER, J. F.C. (1976). Housing by people. Nova York, Marion Boyars.
TUSHNET, M. (1984). An essay on rights. Texas Law Review, n. 62, pp. 1363-1412.
Texto recebido em 7/out/2011
Texto aprovado em 22/abr/2012
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
483
Download

Direito ao espaço cotidiano