17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis “Supondo que nossos olhos são sãos e nunca vêm nem de menos nem de mais...” Irene Tourinho, Professora Titular, FAV-UFG Resumo: Este trabalho centra-se nas respostas de dois grupos de alunos sobre uma vídeo-performance intitulada ‘O Jantar’, da artista goiana Selma Parreira. O objetivo é discutir as diferentes interpretações que o trabalho suscita e apontar possibilidades para analisar e expandir significados de narrativas sobre o visual na prática docente. As temáticas que sobressaíram das respostas orientam esta reflexão que visa reforçar a necessidade de incorporar vozes e experiências de alunos nos processos educativos. As formas de olhar e as narrativas que as problematizam constituem ‘um mundo’ de subjetividades que podem ser exploradas no trabalho pedagógico. Palavras-chave: narrativas, artes visuais, trabalho pedagógico Abstract: This text focuses on the answers of two groups of students about a videoperformance entitled ‘The Dinner’, by the artist Selma Parreira. It aims to discuss different interpretations that the work stimulates and to point possibilities to analyze and extend narrative meanings about the visual in the teaching practice. The themes that stand out from the answers direct this discussion that aims to reinforce the necessity to incorporate voices and experiences of students in educational processes. The ways of looking and the narratives which question them constitute ‘a subjective world’ that can be explored in pedagogical work. Keywords: narratives, visual arts, pedagogical work A porta de entrada para este trabalho é a expressão “Ubuntu”, ditado africano que significa “eu sou porque nós somos”. Esta moldura epistemológica descreve a experiência e sistemas de conhecimento fora do paradigma dominante que afirma “penso, logo existo”. Na afirmação de Descartes, a mente individual é a origem do conhecimento e da existência. O ditado africano, por sua vez, afirma que a existência individual e o conhecimento são contingências de inter-relações com outros (Ladson-Billings, 2003). É a partir desta posição epistemológica que me aproximo das narrativas que este texto analisa. Uso parte de uma frase de Saramago no título - anotada de um de seus livros, não me lembro qual – porque ela marcou meu pensamento pela clareza com que sintetiza um sentimento geral de tensão, de atração e repulsa, que tem colorizado nossas relações com imagens, a ponto de criar reações comuns quando um grupo de pessoas ouve alguém dizer ‘as imagens mentem’. Se realmente as três dimensões fundamentais que nos caracterizam como humanos são as experiências, as histórias de vida e nossos projetos de futuro - e assim 1119 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis acredito - reagir de maneira semelhante diante desse enunciado (‘as imagens mentem’) significa pertencimento, estar vinculado, construir-se em conjunção com outros. A frase completa de Saramago, “Vivemos dentro de uma possibilidade de ver que é nossa, supondo que nossos olhos são olhos sãos que não vêm nem de menos nem de mais”, abre vias de investigação que podem dar visibilidade às possibilidades de ver que são nossas, tanto como indivíduos quanto coletivamente. Começo citando Zygmunt Bauman (2006) que analisa nossa experiência coletiva na contemporaneidade ‘líquida’ e diz: “nós sofremos incertezas, medos, pesadelos, que emanam de processos sobre os quais não temos controle, sobre os quais temos apenas um conhecimento bem parcial e que certamente somos, nós tememos, muito fracos para dominar” (p.30). Busco também as palavras do filósofo Antonio Marina (2004) que diz ser antiquado chamar nossa época de ‘era da informação’. Para ele, “entramos, irremediavelmente, na era da avaliação das informações” (p.23). Ele descreve a contemporaneidade e questiona suas ambições, afirmando que: “Há uma certa perplexidade no ambiente, um generalizado não saber a que se ater”. E indaga, analisando vestígios: “De onde nos vem este sentimento?” (p.23). Marina continua: Nunca tivemos tanta informação ao alcance da mão. Pela minha mesa de trabalho passa meio mundo. E se conecto a Internet, o outro meio. Mas esta saturação informativa me proporciona mais problemas que claridades porque resulta muito difícil reconhecer o que é relevante (p.23). Bauman fala de nossas inseguranças e limitações. Marina expõe o ‘nãosaber’, a ausência de lugares onde nos segurar. A necessidade de avaliar as informações que nos atropelam cotidianamente é motivo de ansiedade, pois, além de colocar o desafio de “distinguir o trivial do importante”, nos faz “navegar através de correntezas de bytes que nos deixam inundados de dados, mas famintos de instrumentos e procedimentos que possam dar significado a eles” (Wurman, 2000, p.1). Estes e outros autores (Goodson, 2007; Veiga-Neto, 2002; Said, 2007) esmiúçam, sob diferentes perspectivas, as rápidas transformações nas formas de viver, defendendo a importância de uma aprendizagem narrativa que permita “aprender sobre si mesmo como pessoa e definir um projeto identitário” (Goodson, 1120 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis 2007, p.250). Defendem também uma epistemologia social – “necessariamente provisória e humilde em suas pretensões” (Veiga-Neto, 2002, p.35), assumindo o humanismo como uma prática que visa “tornar mais coisas acessíveis ao escrutínio crítico como o produto do trabalho humano” (Said, 2007, p.42). Defendem, a meu ver, a perspectiva “Ubuntu” e a consciência social que ela privilegia, merecendo repeti-la aqui: “eu sou porque nós somos”. Além dessas inspirações, este trabalho carrega a visão de que a docência se faz na junção de fragmentos do cotidiano, na costura de pedaços de vivências dentro e fora da sala de aula e na projeção de experiências que nos levem a compartilhar – alunos e professores – reflexões e significados sobre aquilo que vivemos e que sonhamos. Como e porque me envolvi neste processo O trabalho artístico que gerou estas reflexões é uma instalação denominada ‘O Jantar’, concebida em 2007 pela artista e professora Selma Parreira. Criada a referida instalação, o projeto desencadeou a realização da vídeo-performance (8’) com o mesmo títuloi que pode acompanhar, ou não, a instalação. Paralelamente à elaboração coletiva do vídeo, Selma e eu pensávamos em utilizar o vídeo como gancho de atenção para discutir, com alunos, formas de construção de sentidos e interpretação. Pensávamos em estimular possibilidades de relações entre eles e o vídeo buscando criar pontes que permitissem transitar entre questões internas, subjetivas, e realidades externas, do cotidiano e da vida vivida. ‘O Jantar’ foi exibido para os dois grupos, sem que a eles fosse oferecido informações prévias sobre o trabalho. Primeiramente mostramos o vídeo para uma turma de alunos do Curso de Licenciatura em Artes Visuaisii e, depois, para um grupo de professores da Universidade Federal do Amapá e artistas de Macapá, durante uma oficina que Selma Parreira ofereceu naquela cidade, à convite da FUNARTE. Para o grupo de alunos da UFG, Selma Parreira é uma artista conhecida já que é professora da Faculdade, tem extensa produção, participação em salões e vários prêmios locais, regionais e nacionais. O grupo de Macapá, provavelmente, tinha pouco acesso aos trabalhos da artista e teve seu primeiro 1121 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis contato com ela naquela oficina. Os grupos receberam quatro questões antes de assistir ao vídeo, porém, o primeiro teve uma semana para responder enquanto o segundo respondeu em seguida a apresentação do vídeo. Os alunos podiam responder três das quatro questões, conforme escolha de cada um. Buscar visibilidade para aquele “terreno de imagens, formas de conhecimento e investimentos afetivos que definem as bases para se dar oportunidade à “voz” de cada um, dentro de uma experiência pedagógica” (GIROUX e SIMON, 1995 p.105) foi a motivação principal para colocar este processo em marcha. Discutir a necessidade de experimentações educativas que colocassem no centro da cena pedagógica a vida, a voz e vivências dos estudantes também era forte motivação. Giroux e Simon defendem esta necessidade e criticam posturas liberais da escolarização, argumentando que elas “legitimam formas de pedagogia que negam as vozes, experiências e histórias pelas quais os alunos dão sentido ao mundo e, assim procedendo, costumam reduzir a aprendizagem à dinâmica da transmissão e da imposição” (p.95). Como educadora-investigadora, minha curiosidade, assim como a da artista, dirigia-se para as formas de interação e interpretação que o trabalho poderia suscitar e, sobretudo, para a idéia que Grün e Costa (2002) sustentam 1122 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis enfaticamente: “quando olhamos uma obra de arte não estamos interrogando um objeto, mas estamos sendo, nós próprios, colocados em questão” (p.95). Ciente de que “todo conhecimento humano é uma interpretação” (Kincheloe e Berry, 2007, p. 106) também me movia a curiosidade pela “natureza inacabada e nãoresolvida das construções da realidade multidimensionais e em perpétua mudança” (p. 109) que constituem nossas experiências com as imagens. Neste sentido, através de perguntas previamente elaboradas, a relação dos alunos com o vídeo permitiria que realidades externas e transitórias de suas vidas entrassem na sala de aula, criassem diálogos e fortalecessem alternativas de pertencimento, comunicação e interação. Questões, agitos e reformulações que as respostas nos oferecem As respostas dos alunos dão uma dimensão da experiência de ver “O Jantar” e podem falar para e por nós. Considerando as limitações deste texto, concentro minhas reflexões nas respostas e menos nos possíveis desdobramentos pedagógicos que elas podem sugerir. As questões apresentadas aos alunos foram: (1) Que experiências O Jantar faz você lembrar?; (2) Como você vê a experiência do tempo vivido em O Jantar? (3) Que assuntos pensa que foram tratados durante O Jantar?, e (4) Para quem e como você prepararia um jantar? O primeiro grupo, com dezesseis alunos, tem entre 21 e 44 anos. Sete responderam todas as questões sendo que as menos respondidas foram a dois e a quatro. A idade do segundo grupo, com 11 alunos, varia entre 18 e 54 anos. As questões menos respondidas foram a dois e a três. Apenas um terço dos alunos dos dois grupos responderam a questão dois (Como você vê a experiência do tempo vivido em O Jantar?). A pergunta solicita uma reflexão sobre o conceito de tempo e demanda não apenas um trabalho da memória (lembranças de experiência) e da imaginação (assuntos e convidados para jantar), mas, além deles, um trabalho interpretativo, uma construção de perspectiva poética e dialogada interconectando recepção e produção de sentidos. Esta talvez possa ser uma das razões pelas quais a pergunta dois foi a mais descartada nos dois grupos. A pressa para responder também pode explicar 1123 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis porque é menos escolhida uma pergunta que desloca o ‘inter-ator’ de sua condição individual (vivida, compartida e inventada), exigindo, talvez, maior tempo de concentração na questão. O desperdício de tempo é tema que aparece em uma das respostas à questão dois. O aluno pensa que “talvez o desperdício de tempo com coisas pequenas da vida tirem o nosso foco do valor de outras coisas, também pequenas, porém eficazes, como um jantar para quem se ama”. Questões axiológicas estão implicadas na experiência do ver. Vemos dentro das nossas possibilidades e estas se organizam a partir do valor que damos às coisas, aos eventos, às expectativas que criamos. O desejo de controlar e de usar ‘eficazmente’ o tempo tem nos acompanhado agora de maneira talvez mais perturbadora e determinante do que antes. A preocupação com o tempo não diz respeito apenas aos nossos relacionamentos com os outros e com as coisas, mas com nós mesmos. Um aluno fala disso respondendo à questão 4 (Para quem e como você prepararia um jantar?), condicionando a oferta do jantar à condição de não ter pressa. Este aluno escreve que prepararia um jantar “somente para mim”, “para comer só”, “sem pressa”. Outras considerações acerca do tempo aparecem nas respostas às demais perguntas conforme veremos mais adiante. A diversidade e complexidade que encontro no conjunto de respostas orienta minha atenção para uma discussão onde eu posso deter-me em temas representativos das perspectivas que os alunos apresentaram sobre ‘O Jantar’. Dentre estes temas selecionei três que me pareceram suficientemente abrangentes para apreender sentidos que emergiram da relação entre ver o vídeo, o conjunto de respostas e seus fragmentos: (1) experiência vivida e auto-imagem; (2) desejos, e (3) relações de alteridade. Sei que estes temas não esgotam as idéias que o vídeo incita, nem a variedade de conteúdo das respostas. Também não tenho a pretensão de que estes sejam os temas mais adequados para lidar com a narrativa que o vídeo-instalação propõe ou com as respostas coletadas. Compreendo que “a dimensão aberta e criativa da interpretação” (Kincheloe e Berry, p. 115) me permite considerar “a situação mais mundana” (...) “como 1124 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis misteriosa e repleta de possibilidades para a vida”. Através desta experiência de interpretar as respostas quero ressaltar uma idéia cara ao trabalho docente e que Veiga-Neto (2002) coloca com clareza: “é o olhar que botamos sobre as coisas que, de certa maneira, as constitui. São os olhares que colocamos sobre as coisas que criam os problemas do mundo” (p.30). O tema - experiência vivida e auto-imagem - além de reunir muitas das respostas dadas à primeira questão (Que experiências O Jantar faz você lembrar?) encontra várias referências em outras respostas. Essa predominância ou cruzamento de respostas acontece em relação aos três temas. Não vou tratálos separadamente, mas costurar as idéias na tentativa de que os temas apareçam guardando vínculos entre si. Nesta interpretação que construo, destacar uma ou outra resposta é um jogo em que minha própria escolha ganha e perde relevância revelando alguns vícios de olhar ou minha cegueira. A dramaticidade de algumas respostas certamente influiu na escolha. Um exemplo disso vem de uma experiência narrada por uma aluna que conta sua frustração ao encontrar, no dia de seu casamento, realizado após alguns anos de “estar amigada”, a capela vazia. Não havia ninguém além do pastor e dos padrinhos. Ela se pergunta: “Onde estão todos?”, e relata a experiência com um profundo sentimento de vazio, de solidão que desconcerta, “que foi muito ruim”, como ela descreve. Outro aluno recupera sua história contando que ‘O Jantar’ lhe faz lembrar “uma experiência muito boa que levei juntamente com a mãe de meus filhos, quando constituímos família, mas que foi interrompida com a nossa separação, após 23 anos”. A experiência vivida por este aluno deixa sobressair uma relação entre permanência e mudança quando ele diz: “hoje ao voltar a morar com os meus pais, tudo voltou não como antes, mas do mesmo jeito”. Neste comentário, permanência e mudança não são contraditórias, mas se confundem, se fundem. É como se as coisas pudessem não voltar a ser como antes e, ao mesmo tempo, permanecer do mesmo jeito. Segundo a artista, O Jantar trabalha fundamentalmente com dois conceitos: isolamento e solidão. A ausência de sedução diante de certos prazeres, no caso o 1125 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis prazer da celebração, é temática que o vídeo traz para reflexão. Os olhares dos alunos (re)constituíram experiências e agregaram a elas fortes sentimentos e idéias problematizadoras em relação às transformações que vivenciamos, não apenas em torno do ato de comer. Experiências não vividas em volta de uma mesa também são relatadas como ausências que compõem nossas histórias e preenchem nossas lembranças. Um aluno interpreta que “por ser um jantar um tanto pobre me traz à mente experiências da minha infância, uma família que nunca teve o costume de sentar à mesa para uma refeição”. Outro imagina, recorda e avalia: “Fico imaginando a casa de meus pais, como ela deve estar hoje. Éramos nove, meu pai, minha mãe e sete irmãos. Penso que minha mãe vive atormentada com as lembranças das festas de final de ano”. Às vezes, é a vontade de retorno que motiva a lembrança, como no caso de uma resposta na qual a experiência vivida encontra-se com a saudade: ‘quando eu era criança e adolescente e a mamãe preparava as refeições para nós. Sinto falta desse tempo’. A auto-imagem intensifica relatos que subjetivam a experiência e motivam um aluno a dizer: “Eu me senti em casa já que aqui em minha casa vivemos em constante confronto e existe muito ódio e disputa”. Em outros relatos, a lembrança da casa dos avós ou bisavós, de “uma mesa gigantesca em que aconteciam as refeições da família” ou, como escreve outro aluno, “de situações em que deixei de ser feliz e vivenciar momentos que talvez não voltarão, por puro medo de me arriscar” são expressões contundentes que reavivam possibilidades de discussão sobre rituais familiares, comida, fome, brechas e rupturas nos espaços de convivência diária. Não ter o costume de sentar-se à mesa para uma refeição é fato que Fischler (apud Duarte Junior, 2002) comenta ao chamar atenção para os processos de “Industrialização, racionalização, funcionalização crescentes: desde o final do século XIX essa tripla dimensão aparece, sem qualquer dúvida, de maneira ofuscante nas modificações que perturbaram nossa alimentação” (p. 9293). Não se sentar à mesa para uma refeição ou sentar-se a uma mesa gigantesca com a família são experiências marcadas cada vez mais, 1126 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis principalmente, por distinções sociais e econômicas, mas, também, por transformações de hábitos e sensibilidade das pessoas em relação a estas práticas. Conforme Duarte Júnior (2002), a velocidade industrial imprimida à vida destes nossos dias veio nos afastando quase completamente dessas celebrações da mesa, restritas cada vez mais a uma ínfima minoria que dispõe não só do tempo e do dinheiro necessários para tanto, como também da sensibilidade por elas solicitadas (p.92). Celebrações da mesa, prazeres em torno da comida e o sentido de integração e conversação que estas ocasiões estimulam fazem aflorar imagens que enlaçam recordações e desejos, além de projetar futuros. Porém, a sensação de perda e esvaziamento, de saudade de tempos em que os fast-foods ainda não faziam parte do cotidiano, também está presente. Esta sensação é expressa num relato que diz: “parece que a união e a harmonia que havia enquanto éramos crianças e estávamos todos juntos nunca mais voltará”. Mas não são apenas os prazeres da conversa, da degustação, dos cheiros e dos sabores que acompanham essas narrativas. O trabalho de Selma Parreira também incentiva um olhar para os desgostos, o sofrimento de “sentir a ausência do outro mesmo estando lado a lado”, como registra uma das respostas ou, conforme aparece em outra, da lembrança das “festas comemorativas, em que muitos parentes são convidados, mas pouco comparecem”. É sobre a ausência de desejos, de convidados e até de expectativas que os objetos embrulhados e amarrados ou os corpos não aquecidos pelo vinho também nos falam. Entretanto, ausência e presença de desejos são temas que se integram em várias respostas. Retomando a questão do tempo, uma delas queixa-se sobre a falta de “tempo para a vida e coisas gostosas como preparar um jantar” enquanto outra afirma a presença do “desejo do prazer oral ocasionado pela ausência do alimento”. Ao mesmo tempo em que o trabalho atiça e congela desejos, presença e ausência se fundem no olhar. Um relato projeta a cena de um jantar dizendo: “Eu prepararia este jantar para minha mãe e irmãos, embora acredite que, como no filme, ninguém aparecerá”. A ausência-presença de desejos ativa considerações que tornam possíveis as reformulações de nossas concepções cotidianas de tempo, espaço, modos de 1127 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis viver, aprender, agir, engajar-se, sentir. A interrelação entre ausência-presença é significativa na resposta de uma aluna que diz: “Em algum momento na vida poderemos ter o conflito com o íntimo pessoal pela decepção de algo que não aconteceu (um abstrato tirado do concreto)”. Estas reformulações provocam reviravoltas na nossa afetividade, sensualidade, nas crenças que acalentamos e nas emoções que nos assanham. Conforme nos conta Bauman, seus jovens colegas de hoje acham graça daquilo que para ele, há 50 anos atrás, era um foco necessário e possível: construir, alimentar um projeto de vida. Ele pergunta: “Quem hoje está planejando pelo resto da vida?” (p.33), e continua refletindo: Nós nos movemos de um projeto para outro. Cada projeto é de curto prazo, nenhum garante sucesso para a vida. Os pesquisadores das condições de trabalho contemporâneo advertem “você é tão bom quanto seu último projeto”. A memória do seu último projeto ou seu último sucesso não dura muito. Realizações não acumulam. Você precisa continuar movendo-se de um projeto para outro. A vida é recortada por uma série de episódios ‘não-sequenciais’ que são apenas pobremente conectados (p.34). Os desejos de fazer um jantar para alguém aparecem carregados de minúcias, de formas diferenciadas de se relacionar com o tempo e com os espaços, como se nossos sonhos idílicos, românticos, duradouros e suaves pudessem estancar, ao menos em parte, a injustiça, imediaticidade, medo e insegurança que nos atropelam e consomem. Numa longa resposta, o jantar seria servido “a crianças carentes (...), com bastante suco, doces, pudins” (...), “as crianças são livres de rancores e de tristezas” (...), “são cheias de esperança, alegria infinita”. E o relato continua, descrevendo o ambiente e emoções, até chegar numa outra órbita de vivência: “Haveria luz de velas, toalha decorada com bastante flores; cardápio simples, mas cheio de afetos e eu gostaria de estar lá para servi-las uma a uma; depois faríamos uma grande roda girando, girando, como se o tempo não parasse”. Embora relatos deste tipo sejam freqüentes – “jantar num jardim à luz de lampiões”; “jantar para uma pessoa que me fizesse feliz em tudo que acredito fazer parte de um relacionamento a dois” – outros tipos também aparecem, evidenciando conflito, sofrimento e melancolia, tomando ‘O Jantar’ como 1128 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis possibilidade de falar sobre relações de alteridade. Uma resposta registra o desejo de fazer um “jantar para meus demônios internos” e outra fala que “o tempo estava paralisado tamanha a angústia vivida” pelo casal. A relação com a alteridade reúne mãe, amigos, irmãos e até “alguma pessoa que faça parte da família cósmica”. A angústia e solidão vividas no filme compele relatos de situações reais e imaginadas nas quais certas características ditas femininas e masculinas também ganham ênfase. Uma pessoa fala que desejaria fazer um jantar com “pratos que agradariam aos dois, porém, provavelmente, mais a ele”. Outra se incomoda com a “espera da mulher pelo companheiro” e outra, ainda, “da submissão da mulher ao cuidar do preparo especial para receber o homem”. Um comentário é mais explícito na distinção entre comportamentos ditos femininos e masculinos: talvez eles tentaram “discutir a relação culminando com a já óbvia fuga da parte masculina” e complementa dizendo que “a mulher não foi surpreendida apenas “amargou” mais uma decepção” (grifos no original). Os relatos que ressaltei dão uma visão de possibilidades de interpretação que podem nos encaminhar para estender as discussões de cada um dos temas apresentados. Há diversos outros olhares – sobre os objetos, a disposição deles na mesa, a luz, o movimento, sons, figurino e gestos dos atores – que, apesar do interesse, não cabem nos limites deste texto. Antes de finalizar, conto que os objetos embrulhados e amarrados que aparecem no vídeo estavam guardados desde os anos 80 e eram parte do estoque de um antigo armazém de secos e molhados, propriedade da família da artista. Até 2001, estes objetos foram mantidos no porão de uma casa na cidade de Anápolis, Goiás, quando a artista os recebeu da família. Com eles, vários trabalhos – fotografias, instalações – foram realizados, e O Jantar pertence a esta série. Os relatos dos alunos reforçam o pensamento de Veiga-Neto, autor que me inspirou no início deste trabalho e que me inspira agora, ao terminá-lo: O que dizemos sobre as coisas nem são as próprias coisas (como imagina o pensamento mágico), nem são uma representação das coisas (como imagina o pensamento moderno); ao falarmos sobre as coisas, nós as constituímos. Em outras palavras, os 1129 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis enunciados fazem mais do que uma representação do mundo; eles produzem o mundo (p.31). ... Um mundo onde as relações com os outros, os desejos e a experiência vivida nos faz escolher o ditado africano – “Eu sou porque nós somos” – como premissa para construir pedagogias e práticas de pesquisa transformadoras. i Proposta desenvolvida como parte da disciplina “Tópicos especiais em imagem e tecnologia: imagem em movimento“ do mestrado em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, sob a responsabilidade da Profa. Dra. Rosa Berardo. ii Da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG). Referências BAUMAN, Z. New Frontiers and Universal Values. Barcelona: Centre de Cultura Contemporânia, 2006. GIROUX, H. e SIMON, R. Cultura Popular e Pedagogia Crítica: A Vida Cotidiana como Base para o Conhecimento Curricular. In: (Antonio F. Moreira e Tomaz Tadeu da Silva, Orgs.) Currículo, Cultura e Pedagogia. São Paulo: Cortez Editora, 1995. GOODSON, I. Currículo, Narrativa e o Futuro Social. In: Revista Brasileira de Educação. 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Irene Tourinho é Professora Titular da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, Pós-Doutora pela Universidade de Barcelona (Espanha), Doutora pela Universidade de Wisconsin-Madison, (EUA) e Mestre pela Universidade de Iowa (EUA). Foi professora visitante na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona. 1130