17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
“Supondo que nossos olhos são sãos
e nunca vêm nem de menos nem de mais...”
Irene Tourinho, Professora Titular, FAV-UFG
Resumo: Este trabalho centra-se nas respostas de dois grupos de alunos sobre uma
vídeo-performance intitulada ‘O Jantar’, da artista goiana Selma Parreira. O objetivo é
discutir as diferentes interpretações que o trabalho suscita e apontar possibilidades para
analisar e expandir significados de narrativas sobre o visual na prática docente. As
temáticas que sobressaíram das respostas orientam esta reflexão que visa reforçar a
necessidade de incorporar vozes e experiências de alunos nos processos educativos. As
formas de olhar e as narrativas que as problematizam constituem ‘um mundo’ de
subjetividades que podem ser exploradas no trabalho pedagógico.
Palavras-chave: narrativas, artes visuais, trabalho pedagógico
Abstract: This text focuses on the answers of two groups of students about a videoperformance entitled ‘The Dinner’, by the artist Selma Parreira. It aims to discuss different
interpretations that the work stimulates and to point possibilities to analyze and extend
narrative meanings about the visual in the teaching practice. The themes that stand out
from the answers direct this discussion that aims to reinforce the necessity to incorporate
voices and experiences of students in educational processes. The ways of looking and the
narratives which question them constitute ‘a subjective world’ that can be explored in
pedagogical work.
Keywords: narratives, visual arts, pedagogical work
A porta de entrada para este trabalho é a expressão “Ubuntu”, ditado
africano que significa “eu sou porque nós somos”. Esta moldura epistemológica
descreve a experiência e sistemas de conhecimento fora do paradigma dominante
que afirma “penso, logo existo”. Na afirmação de Descartes, a mente individual é a
origem do conhecimento e da existência. O ditado africano, por sua vez, afirma
que a existência individual e o conhecimento são contingências de inter-relações
com outros (Ladson-Billings, 2003). É a partir desta posição epistemológica que
me aproximo das narrativas que este texto analisa.
Uso parte de uma frase de Saramago no título - anotada de um de seus
livros, não me lembro qual – porque ela marcou meu pensamento pela clareza
com que sintetiza um sentimento geral de tensão, de atração e repulsa, que tem
colorizado nossas relações com imagens, a ponto de criar reações comuns
quando um grupo de pessoas ouve alguém dizer ‘as imagens mentem’. Se
realmente as três dimensões fundamentais que nos caracterizam como humanos
são as experiências, as histórias de vida e nossos projetos de futuro - e assim
1119
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
acredito - reagir de maneira semelhante diante desse enunciado (‘as imagens
mentem’) significa pertencimento, estar vinculado, construir-se em conjunção com
outros. A frase completa de Saramago, “Vivemos dentro de uma possibilidade de
ver que é nossa, supondo que nossos olhos são olhos sãos que não vêm nem de
menos nem de mais”, abre vias de investigação que podem dar visibilidade às
possibilidades
de
ver
que
são
nossas,
tanto
como
indivíduos
quanto
coletivamente.
Começo citando Zygmunt Bauman (2006) que analisa nossa experiência
coletiva na contemporaneidade ‘líquida’ e diz: “nós sofremos incertezas, medos,
pesadelos, que emanam de processos sobre os quais não temos controle, sobre
os quais temos apenas um conhecimento bem parcial e que certamente somos,
nós tememos, muito fracos para dominar” (p.30). Busco também as palavras do
filósofo Antonio Marina (2004) que diz ser antiquado chamar nossa época de ‘era
da informação’. Para ele, “entramos, irremediavelmente, na era da avaliação das
informações” (p.23). Ele descreve a contemporaneidade e questiona suas
ambições, afirmando que: “Há uma certa perplexidade no ambiente, um
generalizado não saber a que se ater”. E indaga, analisando vestígios: “De onde
nos vem este sentimento?” (p.23). Marina continua:
Nunca tivemos tanta informação ao alcance da mão. Pela minha
mesa de trabalho passa meio mundo. E se conecto a Internet, o
outro meio. Mas esta saturação informativa me proporciona mais
problemas que claridades porque resulta muito difícil reconhecer o
que é relevante (p.23).
Bauman fala de nossas inseguranças e limitações. Marina expõe o ‘nãosaber’, a ausência de lugares onde nos segurar. A necessidade de avaliar as
informações que nos atropelam cotidianamente é motivo de ansiedade, pois, além
de colocar o desafio de “distinguir o trivial do importante”, nos faz “navegar através
de correntezas de bytes que nos deixam inundados de dados, mas famintos de
instrumentos e procedimentos que possam dar significado a eles” (Wurman, 2000,
p.1). Estes e outros autores (Goodson, 2007; Veiga-Neto, 2002; Said, 2007)
esmiúçam, sob diferentes perspectivas, as rápidas transformações nas formas de
viver, defendendo a importância de uma aprendizagem narrativa que permita
“aprender sobre si mesmo como pessoa e definir um projeto identitário” (Goodson,
1120
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
2007, p.250). Defendem também uma epistemologia social – “necessariamente
provisória e humilde em suas pretensões” (Veiga-Neto, 2002, p.35), assumindo o
humanismo como uma prática que visa “tornar mais coisas acessíveis ao
escrutínio crítico como o produto do trabalho humano” (Said, 2007, p.42).
Defendem, a meu ver, a perspectiva “Ubuntu” e a consciência social que ela
privilegia, merecendo repeti-la aqui: “eu sou porque nós somos”.
Além dessas inspirações, este trabalho carrega a visão de que a docência
se faz na junção de fragmentos do cotidiano, na costura de pedaços de vivências
dentro e fora da sala de aula e na projeção de experiências que nos levem a
compartilhar – alunos e professores – reflexões e significados sobre aquilo que
vivemos e que sonhamos.
Como e porque me envolvi neste processo
O trabalho artístico que gerou estas reflexões é uma instalação denominada
‘O Jantar’, concebida em 2007 pela artista e professora Selma Parreira. Criada a
referida instalação, o projeto desencadeou a realização da vídeo-performance (8’)
com o mesmo títuloi que pode acompanhar, ou não, a instalação. Paralelamente à
elaboração coletiva do vídeo, Selma e eu pensávamos em utilizar o vídeo como
gancho de atenção para discutir, com alunos, formas de construção de sentidos e
interpretação. Pensávamos em estimular possibilidades de relações entre eles e o
vídeo buscando criar pontes que permitissem transitar entre questões internas,
subjetivas, e realidades externas, do cotidiano e da vida vivida.
‘O Jantar’ foi exibido para os dois grupos, sem que a eles fosse oferecido
informações prévias sobre o trabalho. Primeiramente mostramos o vídeo para uma
turma de alunos do Curso de Licenciatura em Artes Visuaisii e, depois, para um
grupo de professores da Universidade Federal do Amapá e artistas de Macapá,
durante uma oficina que Selma Parreira ofereceu naquela cidade, à convite da
FUNARTE. Para o grupo de alunos da UFG, Selma Parreira é uma artista
conhecida já que é professora da Faculdade, tem extensa produção, participação
em salões e vários prêmios locais, regionais e nacionais. O grupo de Macapá,
provavelmente, tinha pouco acesso aos trabalhos da artista e teve seu primeiro
1121
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
contato com ela naquela oficina. Os grupos receberam quatro questões antes de
assistir ao vídeo, porém, o primeiro teve uma semana para responder enquanto o
segundo respondeu em seguida a apresentação do vídeo. Os alunos podiam
responder três das quatro questões, conforme escolha de cada um.
Buscar
visibilidade
para
aquele
“terreno
de
imagens,
formas
de
conhecimento e investimentos afetivos que definem as bases para se dar
oportunidade à “voz” de cada um, dentro de uma experiência pedagógica”
(GIROUX e SIMON, 1995 p.105) foi a motivação principal para colocar este
processo em marcha. Discutir a necessidade de experimentações educativas que
colocassem no centro da cena pedagógica a vida, a voz e vivências dos
estudantes também era forte motivação. Giroux e Simon defendem esta
necessidade e criticam posturas liberais da escolarização, argumentando que elas
“legitimam formas de pedagogia que negam as vozes, experiências e histórias
pelas quais os alunos dão sentido ao mundo e, assim procedendo, costumam
reduzir a aprendizagem à dinâmica da transmissão e da imposição” (p.95).
Como educadora-investigadora, minha curiosidade, assim como a da
artista, dirigia-se para as formas de interação e interpretação que o trabalho
poderia suscitar e, sobretudo, para a idéia que Grün e Costa (2002) sustentam
1122
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
enfaticamente: “quando olhamos uma obra de arte não estamos interrogando um
objeto, mas estamos sendo, nós próprios, colocados em questão” (p.95). Ciente
de que “todo conhecimento humano é uma interpretação” (Kincheloe e Berry,
2007, p. 106) também me movia a curiosidade pela “natureza inacabada e nãoresolvida das construções da realidade multidimensionais e em perpétua
mudança” (p. 109) que constituem nossas experiências com as imagens. Neste
sentido, através de perguntas previamente elaboradas, a relação dos alunos com
o vídeo permitiria que realidades externas e transitórias de suas vidas entrassem
na sala de aula, criassem diálogos e fortalecessem alternativas de pertencimento,
comunicação e interação.
Questões, agitos e reformulações que as respostas nos oferecem
As respostas dos alunos dão uma dimensão da experiência de ver “O
Jantar” e podem falar para e por nós. Considerando as limitações deste texto,
concentro
minhas
reflexões
nas
respostas
e
menos
nos
possíveis
desdobramentos pedagógicos que elas podem sugerir.
As questões apresentadas aos alunos foram: (1) Que experiências O Jantar
faz você lembrar?; (2) Como você vê a experiência do tempo vivido em O Jantar?
(3) Que assuntos pensa que foram tratados durante O Jantar?, e (4) Para quem e
como você prepararia um jantar? O primeiro grupo, com dezesseis alunos, tem
entre 21 e 44 anos. Sete responderam todas as questões sendo que as menos
respondidas foram a dois e a quatro. A idade do segundo grupo, com 11 alunos,
varia entre 18 e 54 anos. As questões menos respondidas foram a dois e a três.
Apenas um terço dos alunos dos dois grupos responderam a questão dois
(Como você vê a experiência do tempo vivido em O Jantar?). A pergunta solicita
uma reflexão sobre o conceito de tempo e demanda não apenas um trabalho da
memória (lembranças de experiência) e da imaginação (assuntos e convidados
para jantar), mas, além deles, um trabalho interpretativo, uma construção de
perspectiva poética e dialogada interconectando recepção e produção de sentidos.
Esta talvez possa ser uma das razões pelas quais a pergunta dois foi a mais
descartada nos dois grupos. A pressa para responder também pode explicar
1123
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
porque é menos escolhida uma pergunta que desloca o ‘inter-ator’ de sua
condição individual (vivida, compartida e inventada), exigindo, talvez, maior tempo
de concentração na questão.
O desperdício de tempo é tema que aparece em uma das respostas à
questão dois. O aluno pensa que “talvez o desperdício de tempo com coisas
pequenas da vida tirem o nosso foco do valor de outras coisas, também
pequenas, porém eficazes, como um jantar para quem se ama”. Questões
axiológicas estão implicadas na experiência do ver. Vemos dentro das nossas
possibilidades e estas se organizam a partir do valor que damos às coisas, aos
eventos, às expectativas que criamos. O desejo de controlar e de usar
‘eficazmente’ o tempo tem nos acompanhado agora de maneira talvez mais
perturbadora e determinante do que antes.
A preocupação com o tempo não diz respeito apenas aos nossos
relacionamentos com os outros e com as coisas, mas com nós mesmos. Um aluno
fala disso respondendo à questão 4 (Para quem e como você prepararia um
jantar?), condicionando a oferta do jantar à condição de não ter pressa. Este aluno
escreve que prepararia um jantar “somente para mim”, “para comer só”, “sem
pressa”. Outras considerações acerca do tempo aparecem nas respostas às
demais perguntas conforme veremos mais adiante.
A diversidade e complexidade que encontro no conjunto de respostas
orienta minha atenção para uma discussão onde eu posso deter-me em temas
representativos das perspectivas que os alunos apresentaram sobre ‘O Jantar’.
Dentre estes temas selecionei três que me pareceram suficientemente
abrangentes para apreender sentidos que emergiram da relação entre ver o vídeo,
o conjunto de respostas e seus fragmentos: (1) experiência vivida e auto-imagem;
(2) desejos, e (3) relações de alteridade. Sei que estes temas não esgotam as
idéias que o vídeo incita, nem a variedade de conteúdo das respostas. Também
não tenho a pretensão de que estes sejam os temas mais adequados para lidar
com a narrativa que o vídeo-instalação propõe ou com as respostas coletadas.
Compreendo que “a dimensão aberta e criativa da interpretação” (Kincheloe e
Berry, p. 115) me permite considerar “a situação mais mundana” (...) “como
1124
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
misteriosa e repleta de possibilidades para a vida”. Através desta experiência de
interpretar as respostas quero ressaltar uma idéia cara ao trabalho docente e que
Veiga-Neto (2002) coloca com clareza: “é o olhar que botamos sobre as coisas
que, de certa maneira, as constitui. São os olhares que colocamos sobre as coisas
que criam os problemas do mundo” (p.30).
O tema - experiência vivida e auto-imagem - além de reunir muitas das
respostas dadas à primeira questão (Que experiências O Jantar faz você
lembrar?) encontra várias referências em outras respostas. Essa predominância
ou cruzamento de respostas acontece em relação aos três temas. Não vou tratálos separadamente, mas costurar as idéias na tentativa de que os temas
apareçam guardando vínculos entre si.
Nesta interpretação que construo, destacar uma ou outra resposta é um
jogo em que minha própria escolha ganha e perde relevância revelando alguns
vícios de olhar ou minha cegueira. A dramaticidade de algumas respostas
certamente influiu na escolha. Um exemplo disso vem de uma experiência narrada
por uma aluna que conta sua frustração ao encontrar, no dia de seu casamento,
realizado após alguns anos de “estar amigada”, a capela vazia. Não havia
ninguém além do pastor e dos padrinhos. Ela se pergunta: “Onde estão todos?”, e
relata a experiência com um profundo sentimento de vazio, de solidão que
desconcerta, “que foi muito ruim”, como ela descreve.
Outro aluno recupera sua história contando que ‘O Jantar’ lhe faz lembrar
“uma experiência muito boa que levei juntamente com a mãe de meus filhos,
quando constituímos família, mas que foi interrompida com a nossa separação,
após 23 anos”. A experiência vivida por este aluno deixa sobressair uma relação
entre permanência e mudança quando ele diz: “hoje ao voltar a morar com os
meus pais, tudo voltou não como antes, mas do mesmo jeito”. Neste comentário,
permanência e mudança não são contraditórias, mas se confundem, se fundem. É
como se as coisas pudessem não voltar a ser como antes e, ao mesmo tempo,
permanecer do mesmo jeito.
Segundo a artista, O Jantar trabalha fundamentalmente com dois conceitos:
isolamento e solidão. A ausência de sedução diante de certos prazeres, no caso o
1125
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
prazer da celebração, é temática que o vídeo traz para reflexão. Os olhares dos
alunos (re)constituíram experiências e agregaram a elas fortes sentimentos e
idéias problematizadoras em relação às transformações que vivenciamos, não
apenas em torno do ato de comer.
Experiências não vividas em volta de uma mesa também são relatadas
como ausências que compõem nossas histórias e preenchem nossas lembranças.
Um aluno interpreta que “por ser um jantar um tanto pobre me traz à mente
experiências da minha infância, uma família que nunca teve o costume de sentar à
mesa para uma refeição”. Outro imagina, recorda e avalia: “Fico imaginando a
casa de meus pais, como ela deve estar hoje. Éramos nove, meu pai, minha mãe
e sete irmãos. Penso que minha mãe vive atormentada com as lembranças das
festas de final de ano”. Às vezes, é a vontade de retorno que motiva a lembrança,
como no caso de uma resposta na qual a experiência vivida encontra-se com a
saudade: ‘quando eu era criança e adolescente e a mamãe preparava as refeições
para nós. Sinto falta desse tempo’.
A auto-imagem intensifica relatos que subjetivam a experiência e motivam
um aluno a dizer: “Eu me senti em casa já que aqui em minha casa vivemos em
constante confronto e existe muito ódio e disputa”. Em outros relatos, a lembrança
da casa dos avós ou bisavós, de “uma mesa gigantesca em que aconteciam as
refeições da família” ou, como escreve outro aluno, “de situações em que deixei
de ser feliz e vivenciar momentos que talvez não voltarão, por puro medo de me
arriscar” são expressões contundentes que reavivam possibilidades de discussão
sobre rituais familiares, comida, fome, brechas e rupturas nos espaços de
convivência diária.
Não ter o costume de sentar-se à mesa para uma refeição é fato que
Fischler (apud Duarte Junior, 2002) comenta ao chamar atenção para os
processos de “Industrialização, racionalização, funcionalização crescentes: desde
o final do século XIX essa tripla dimensão aparece, sem qualquer dúvida, de
maneira ofuscante nas modificações que perturbaram nossa alimentação” (p. 9293). Não se sentar à mesa para uma refeição ou sentar-se a uma mesa
gigantesca com a família são experiências marcadas cada vez mais,
1126
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
principalmente, por distinções sociais e econômicas, mas, também, por
transformações de hábitos e sensibilidade das pessoas em relação a estas
práticas. Conforme Duarte Júnior (2002),
a velocidade industrial imprimida à vida destes nossos dias veio
nos afastando quase completamente dessas celebrações da
mesa, restritas cada vez mais a uma ínfima minoria que dispõe
não só do tempo e do dinheiro necessários para tanto, como
também da sensibilidade por elas solicitadas (p.92).
Celebrações da mesa, prazeres em torno da comida e o sentido de
integração e conversação que estas ocasiões estimulam fazem aflorar imagens
que enlaçam recordações e desejos, além de projetar futuros. Porém, a sensação
de perda e esvaziamento, de saudade de tempos em que os fast-foods ainda não
faziam parte do cotidiano, também está presente. Esta sensação é expressa num
relato que diz: “parece que a união e a harmonia que havia enquanto éramos
crianças e estávamos todos juntos nunca mais voltará”. Mas não são apenas os
prazeres da conversa, da degustação, dos cheiros e dos sabores que
acompanham essas narrativas. O trabalho de Selma Parreira também incentiva
um olhar para os desgostos, o sofrimento de “sentir a ausência do outro mesmo
estando lado a lado”, como registra uma das respostas ou, conforme aparece em
outra, da lembrança das “festas comemorativas, em que muitos parentes são
convidados, mas pouco comparecem”.
É sobre a ausência de desejos, de convidados e até de expectativas que os
objetos embrulhados e amarrados ou os corpos não aquecidos pelo vinho também
nos falam. Entretanto, ausência e presença de desejos são temas que se integram
em várias respostas. Retomando a questão do tempo, uma delas queixa-se sobre
a falta de “tempo para a vida e coisas gostosas como preparar um jantar”
enquanto outra afirma a presença do “desejo do prazer oral ocasionado pela
ausência do alimento”. Ao mesmo tempo em que o trabalho atiça e congela
desejos, presença e ausência se fundem no olhar. Um relato projeta a cena de um
jantar dizendo: “Eu prepararia este jantar para minha mãe e irmãos, embora
acredite que, como no filme, ninguém aparecerá”.
A ausência-presença de desejos ativa considerações que tornam possíveis
as reformulações de nossas concepções cotidianas de tempo, espaço, modos de
1127
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
viver, aprender, agir, engajar-se, sentir. A interrelação entre ausência-presença é
significativa na resposta de uma aluna que diz: “Em algum momento na vida
poderemos ter o conflito com o íntimo pessoal pela decepção de algo que não
aconteceu (um abstrato tirado do concreto)”. Estas reformulações provocam
reviravoltas na nossa afetividade, sensualidade, nas crenças que acalentamos e
nas emoções que nos assanham. Conforme nos conta Bauman, seus jovens
colegas de hoje acham graça daquilo que para ele, há 50 anos atrás, era um foco
necessário e possível: construir, alimentar um projeto de vida. Ele pergunta:
“Quem hoje está planejando pelo resto da vida?” (p.33), e continua refletindo:
Nós nos movemos de um projeto para outro. Cada projeto é de
curto prazo, nenhum garante sucesso para a vida. Os
pesquisadores das condições de trabalho contemporâneo
advertem “você é tão bom quanto seu último projeto”. A memória
do seu último projeto ou seu último sucesso não dura muito.
Realizações não acumulam. Você precisa continuar movendo-se
de um projeto para outro. A vida é recortada por uma série de
episódios ‘não-sequenciais’ que são apenas pobremente
conectados (p.34).
Os desejos de fazer um jantar para alguém aparecem carregados de
minúcias, de formas diferenciadas de se relacionar com o tempo e com os
espaços, como se nossos sonhos idílicos, românticos, duradouros e suaves
pudessem estancar, ao menos em parte, a injustiça, imediaticidade, medo e
insegurança que nos atropelam e consomem. Numa longa resposta, o jantar seria
servido “a crianças carentes (...), com bastante suco, doces, pudins” (...), “as
crianças são livres de rancores e de tristezas” (...), “são cheias de esperança,
alegria infinita”. E o relato continua, descrevendo o ambiente e emoções, até
chegar numa outra órbita de vivência: “Haveria luz de velas, toalha decorada com
bastante flores; cardápio simples, mas cheio de afetos e eu gostaria de estar lá
para servi-las uma a uma; depois faríamos uma grande roda girando, girando,
como se o tempo não parasse”.
Embora relatos deste tipo sejam freqüentes – “jantar num jardim à luz de
lampiões”; “jantar para uma pessoa que me fizesse feliz em tudo que acredito
fazer parte de um relacionamento a dois” – outros tipos também aparecem,
evidenciando conflito, sofrimento e melancolia, tomando ‘O Jantar’ como
1128
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
possibilidade de falar sobre relações de alteridade. Uma resposta registra o desejo
de fazer um “jantar para meus demônios internos” e outra fala que “o tempo
estava paralisado tamanha a angústia vivida” pelo casal. A relação com a
alteridade reúne mãe, amigos, irmãos e até “alguma pessoa que faça parte da
família cósmica”.
A angústia e solidão vividas no filme compele relatos de situações reais e
imaginadas nas quais certas características ditas femininas e masculinas também
ganham ênfase. Uma pessoa fala que desejaria fazer um jantar com “pratos que
agradariam aos dois, porém, provavelmente, mais a ele”. Outra se incomoda com
a “espera da mulher pelo companheiro” e outra, ainda, “da submissão da mulher
ao cuidar do preparo especial para receber o homem”. Um comentário é mais
explícito na distinção entre comportamentos ditos femininos e masculinos: talvez
eles tentaram “discutir a relação culminando com a já óbvia fuga da parte
masculina” e complementa dizendo que “a mulher não foi surpreendida apenas
“amargou” mais uma decepção” (grifos no original).
Os relatos que ressaltei dão uma visão de possibilidades de interpretação
que podem nos encaminhar para estender as discussões de cada um dos temas
apresentados. Há diversos outros olhares – sobre os objetos, a disposição deles
na mesa, a luz, o movimento, sons, figurino e gestos dos atores – que, apesar do
interesse, não cabem nos limites deste texto. Antes de finalizar, conto que os
objetos embrulhados e amarrados que aparecem no vídeo estavam guardados
desde os anos 80 e eram parte do estoque de um antigo armazém de secos e
molhados, propriedade da família da artista. Até 2001, estes objetos foram
mantidos no porão de uma casa na cidade de Anápolis, Goiás, quando a artista os
recebeu da família. Com eles, vários trabalhos – fotografias, instalações – foram
realizados, e O Jantar pertence a esta série.
Os relatos dos alunos reforçam o pensamento de Veiga-Neto, autor que me
inspirou no início deste trabalho e que me inspira agora, ao terminá-lo:
O que dizemos sobre as coisas nem são as próprias coisas (como
imagina o pensamento mágico), nem são uma representação das
coisas (como imagina o pensamento moderno); ao falarmos sobre
as coisas, nós as constituímos. Em outras palavras, os
1129
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
enunciados fazem mais do que uma representação do mundo;
eles produzem o mundo (p.31).
... Um mundo onde as relações com os outros, os desejos e a experiência
vivida nos faz escolher o ditado africano – “Eu sou porque nós somos” – como
premissa para construir pedagogias e práticas de pesquisa transformadoras.
i
Proposta desenvolvida como parte da disciplina “Tópicos especiais em imagem e tecnologia:
imagem em movimento“ do mestrado em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade
Federal de Goiás, sob a responsabilidade da Profa. Dra. Rosa Berardo.
ii
Da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG).
Referências
BAUMAN, Z. New Frontiers and Universal Values. Barcelona: Centre de Cultura
Contemporânia, 2006.
GIROUX, H. e SIMON, R. Cultura Popular e Pedagogia Crítica: A Vida Cotidiana como
Base para o Conhecimento Curricular. In: (Antonio F. Moreira e Tomaz Tadeu da Silva,
Orgs.) Currículo, Cultura e Pedagogia. São Paulo: Cortez Editora, 1995.
GOODSON, I. Currículo, Narrativa e o Futuro Social. In: Revista Brasileira de
Educação. V.12, n.35, maio/agosto, 2007, p.241-252.
GRÜN, M. e COSTA, M. A aventura de retomar a conversação – Hermenêutica e
Pesquisa Social. In: (Marisa Vorraber Costa, Org.) Caminhos Investigativos – Novos
Olhares na Pesquisa em Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p.85-104.
KINCHELOE, J. e BERRY, K. Pesquisa em Educação – Conceituando a bricolagem.
Porto Alegre: Artmed, 2007.
LADSON-BILLINGS, G. Racialized Discourses and Ethnic Epistemologies. In: (Norman K.
Denzin & Yvonna S. Lincoln, editors) The Landscape of Qualitative Research –
Theories and Issues. London: Sage Publications, 2003, p.398-432.
MARINA, J. M. Crônicas de la Ultramodernidad. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004.
SAID. E. Humanismo e Crítica Democrática. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
VEIGA-NETO, A. Olhares... In: (Marisa Vorraber Costa, Org.) Caminhos Investigativos –
Novos Olhares na Pesquisa em Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p.23-38.
WURMAN, R. S. Information Anxiety. Indiana: QUE, 2000.
Irene Tourinho é Professora Titular da Faculdade de Artes Visuais da
Universidade Federal de Goiás, Pós-Doutora pela Universidade de Barcelona
(Espanha), Doutora pela Universidade de Wisconsin-Madison, (EUA) e Mestre
pela Universidade de Iowa (EUA). Foi professora visitante na Faculdade de Belas
Artes da Universidade de Barcelona.
1130
Download

“Supondo que nossos olhos são sãos e nunca vêm nem de