REFLEXÕES SOBRE O ENSINO RELIGIOSO Prof. Márcio Antônio Sousa da Silva(Org.) Brasília - DF Nos últimos anos, o ensino religioso no Brasil tem sido alvo de debate, não mais como nos períodos correspondentes ao processo constituinte e á elaboração das leis ordinárias consequentes das décadas 30 a 60, mas quanto a compreensão de sua natureza e papel na escola, como disciplina regular do currículo. Se naqueles períodos esse ensino foi considerado um elemento eclesial na escola, pelo tipo de tratamento que lhe foi dado na segunda metade dos anos 80 até o momento, o esforço tem sido envidado no sentido de assegurá-lo como elemento normal do sistema escolar. Para isso não deve ser entendido como ensino de uma religião ou das religiões na escola, mas sim uma disciplina centrada nas diferentes ciências que estudam o fenômeno religioso. Hoje, as concepções que permanecem num imaginário de muitos setores, consideram o ensino religioso ainda como elemento eclesiástico na escola e não como disciplina regular, integrante do sistema escolar. Até a segunda metade do século xx, predominou no Brasil o ensino religioso na concepção de reeligere,entendimento do reescolher, com a finalidade de fazer seguidores. Nesse contexto ele se caracterizava como evangelização, aula de religião, catequese, ensino bíblico.O conhecimento veiculado era o da informação sobre elementos da religião,e a LDB n° 4.024/61 refletiu bem essa concepção. A segunda concepção, religare, significa religar as pessoas a si mesmas, aos outros, à natureza e a Deus, visou torná-las mais religiosas. Nesse contexto, o ensino religioso caracterizou-se como pastoral, aula de ética e valores, e o conhecimento veiculado foi a formação antropológica da religiosidade, pelo saber em relação ( em relação a si próprio, aos outros, ao mundo, à natureza e a Deus). Esta concepção desenvolveu-se a partir dos anos 80 e está refletida na LDB n° 5.692/71. Desde a instalação do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (1995) está-se fazendo a transição – a passagem para uma nova concepção de ensino religioso, a partir do entendimento do relegere – que significa, o fenômeno religioso no contexto da realidade sociocultural, que a nova redação do art. 33 da LDBEN n° 9.394/96 expressa.(cf. Lei 9.475/97). Nesse contexto, o ensino religioso, entendido como área do conhecimento da base nacional comum ( cf. Parecer 04/98 e resolução 02/98 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação), tem como objetivo de estudo o fenômeno religioso, e o conhecimento veiculado é o entendimento dos fundamentos desse fenômeno que o educando constata a partir do convívio social. Esta concepção do ensino religioso, na visão do relegere, responde às exigências da educação para o século XXI. A disciplina ensino religioso tem como objetivo de estudo o fenômeno religioso. Por fenômeno religioso entende-se o processo de busca que o ser humano realiza na procura de transcendência, desde a experiência pessoal do transcendente até a experiência religiosa na partilha de grupo; desde a vivência em comunidade até a institucionalização pelas tradições religiosas. Como em qualquer área, o ensino religioso veicula em conhecimento específico e um objetivo a ser perseguido. Esse conhecimento visa subsidiar o educando no entendimento que ele tem a respeito do fenômeno religioso que experimenta e observa em seu contexto. Por isso é um conhecimento que gera o “saber de sí”, superando as concepções conteúdistas de uma escola tradicional, de doutrinação religiosa ou ensino religião. Dessa forma há uma interação entre educando(sujeito) fenômeno religioso (objeto) e conhecimento (objetivo): o fenômeno religioso se estrutura na bipolarização: cultura e tradição religiosa, visto que toda cultura tem em seu substrato a presença do religioso e que toda tradição religiosa constitui-se no bojo de uma cultura, num processo simultâneo, interativo. Na escola, perante a pluralidade de culturas e tradições religiosas em que o educando se insere, o ensino religioso, pelo estudo do fenômeno religioso, desencadeia o diálogo e a reverência. Pode-se dizer que estas são as grandes finalidades dessa disciplina na escola: diálogo e reverência. Diálogo é a realidade que se estabelece a partir da palavra de diferente, de opostos. Na homogeneidade não há diálogo, somente repetição.O diálogo como meta do ensino religioso é possivel pela diversidade cultural-religiosa do Brasil, presente no convívio social. Diálogo como processo de construção do conhecimento, de modo que possa contribuir para a formação de identidades afirmativas, persistentes e capazes de protagonizar ações solidárias e autônomas de constituições de valores indispensáveis à vida cidadã (parecer n.04/98 da CEB- Conselho Nacional de Educação) Reverência – significa acatamento às coisas sagradas, ao que é digno de respeito, veneração, mesura, cortesia, genuflexão. Quando se usa o termo reverência ( ao transcendente no outro) no ensino religioso, quer-se ir mais longe, além do simples entendimento encontrado no senso comum, vai do respeito à tolerância para com o diferente. Usa-se o termo com o sentido da consciência do direito que cada um tem a essa diferença ditada pela constituição brasileira. Diálogo construído a partir do diferente ( o outro) e reverência ao mesmo transcendente( Deus) presente no outro de modo diferente, na certeza de que Deus é um e mais. O erro mais trágico e persistente do pensamento humano é o conceito de que as idéias são mutuamente exclusivas. Esse engano fatal em todos os tempos frustra o ideal de fraternidade universal. Em cada indivíduo, em cada povo, em cada cultura existe algo que é relevante para os demais, por mais diferentes que sejam entre si. Enquanto cada grupo pretender ser o dono exclusivo da verdade, enquanto perdurar essa estreiteza de visão, a paz mundial permanecerá um sonho inatingível. Básico para a construção da paz na sociedade é a humildade para reconhecer que a verdade não é monopólio da própria fé religiosa ou política. E , no ensino religioso, pelo espírito de reverência às crenças alheias ( e não só pela tolerância), desencadeia-se o profundo respeito mútuo que pode conduzir a paz. Lamentavelmente, o que predomina no mundo é o fanatismo que se propaga nas mais diversas esferas, agindo e apelando sempre para o transcendente, a fé, a história e a justiça universal, a fim de legitimar seus direitos irrestritos e a supressão dos direitos do outro. Portanto, o não reconhecimento do outro sustenta a atitude de fanáticos e idealistas. O ensino religioso necessita cultivar a reverência, ressaltando pela alteridade que todos são irmãos. Só então a sociedade irá se conscientizando de que atingirá seus objetivos desarmando o espirito e se empenhando, com determinação, pelo entendimento mútuo. Nessa perspectiva, o ensino religioso é uma reflexão crítica sobre a práxis que estabelece significados, já que a dimensão religiosa passa a ser compreendida como compromisso histórico diante da vida e do transcendente. E contribui para o estabelecimento de novas relações do ser humano com a natureza a partir do progresso da ciência e da técnica. Como na sociedade democrática todos necessitam da escola para ter acesso à parcela de conhecimento histórico acumulado pela humanidade, através dos conteúdos escolares, o conhecimento religioso enquanto patrimônio da humanidade necessita estar à disposição na escola. É preciso, portanto, prover os educandos de oportunidades de se tornarem capazes de entender os momentos específicos das diversas culturas, cujo substrato religioso colabora no aprofundamento para autentica cidadania. Criar oportunidade de ter o ensino religioso de forma sistematizada permite uma compreesão mais crítica do cidadão. O ensino religioso, valorizando o pluralismo e a diversidade cultural presente na sociedade brasileira, facilita a compreensão das formas que exprimem o transcendente na superação da finitude humana e que determinam, subjacentemente, o processo histórico da humanidade. Por isso necessita: 1- proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas percebidas no contexto do educando; 2-subsidiar o educando na formulação do questionamento existencial, em profundidade, para dar sua resposta devidamente informado; 3-analisar o papel das tradições religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e manifestações socioculturais; 4-facilitar a compreensão do significado das afirmações e verdades de fé das tradições religiosas; 5- refletir o sentido da atitude moral, como consequência do fenômeno religioso e expressão da consciência e da resposta pessoal e comunitária do ser humano; 6- possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de estruturas religiosas que tem na liberdade o seu valor inalienável. Segundo o doutor em teologia Francisco Catão ( professor do Instituto São Pio XI, em São Paulo) , a clarividência do legislador, ao regulamentar o ensino religioso escolar como matéria obrigatória para a escola, embora de frequência facultativa, levou a excluir todo proselitismo, na forma de ministrar a disciplina. Repudia-se qualquer sorte de doutrinamento, sem querer dizer, entretanto, que a disciplina se deva limitar à pura transmissão de conhecimentos, pois isso seria pedagogicamente pouco recomendável. Se há matéria que não possa ser ensinada como simples desenrolar de fatos histórico-culturais é exatamente o estudo do fenômeno religioso. Rejeitando o proselitismo, o legislador pressupõe portanto, que o ensino religioso se faça numa perspectiva crítica, levando assim os alunos a perceber a significação real da linguagem simbólica nas diversas tradições religiosas. A educação leiga precisa deixar de tratar a religião com desconfiança, como se estivesse fundada num poder julgado ficticio, porque transhistórico. A tradição laica por sua vez, precisa compreender, na prática, que o reconhecimento da vocação transcendente de ser humano não traz nem um prejuízo à neutralidade do Estado, que deve ser mantida a todo custo na cultura, na escola e na saúde. Considerar a religião como integrante da cidadania é cada dia mais uma exigência básica dos direitos humanos. Felizmente, a grande novidade cultural das últimas décadas, que parece surgir como signo distintivo do novo milênio, é a idéia de uma cidadania universal, fundada no simples fato de que o ser humano é humano, sujeito de direitos e deveres para com todos os outros seres humanos. Concebe-se o ser humano como cidadão do mundo, independente de todas as diferenças que nos separam uns dos outros. Essa cidadania, anterior a todo estado ou religião, é princípio de entendimento entre toda a humanidade, em vista da paz. Não se sustenta, portanto, senão em referência a algo ou alguém que transcende o ser humano, que é fundamento de toda religião, qualquer que seja o nome que receba ou a imagem através da qual é concebido. A cidadania universal, expressa nas várias declarações dos direitos humanos e que constitui a fonte verdadeira e perene da paz, só pode ser realmente reconhecida, valorizada e alimentada por algo ou alguém que está acima de todas as particularidades humanas, constituindo os alicerces mesmos da comunidade humana. A religião como base, portanto, no referencial além – humano como sempre em todas as culturas e sociedades, é a expressão e o instrumento da realização derradeira do ser humano, social e pessoal. O clima de choque entre as cidadanias temporal e espiritual, que marcou a história, parece estar sendo ultrapassado, nesse início de milênio. Há sinais inequívocos de que as religiões estão rapidamente deixando de se confrontar como inimigas entre si e voltando-se para a construção de um mundo de paz, cimentando uma verdadeira e autêntica cidadania universal, com base no ser humano e na sua vocação à transcendência. Por isso, acreditamos que a disciplina ensino religioso desempenha hoje papel indispensável na educação para a cidadania universal. É preciso que a religião deixe de significar opressão e se torne fonte cada fez mais pura da constituição de uma humanidade cidadã, em que todos abracemos, num amplo e profundo abraço de paz. Referências bibliográficas DIÁLOGO, Revista do Ensino Religioso nº 30, p.14-17. São Paulo:Paulinas, maio/2003. FÓRUM Nacional Permanente de Ensino Religioso. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso. 3. ed. São Paulo, SP: Ave Maria, 1998. p.11-31. FÓRUM Nacional Permanente de Ensino Religioso. Caderno Temático nº 1, 2000. p. 9-16.