A transferência e o desligamento em um laço que se refaz1 Com a indagação em suspenso sobre o que pode ser um trabalho de desligamento na clínica psicanalítica, penso em tramar alguns fios que talvez digam algo sobre isso que não é um fim de análise, mas também não é a interrupção do tratamento. O termo desligamento permite pensar em um tempo, no qual pode-se, a partir da transferência, manter instituído o lugar do SsS, na condição de que ele seja renomeado. Por se tratar de um desligamento, entende-se que por alguma causa objetivável, o tratamento não pode seguir com o mesmo analista, ainda que o tempo transferencial não tenha se esgotado. E é justamente porque ele não se esgotou que podemos pensar em desligamento. Desligamento de um laço que foi estabelecido com um determinado analista e que permitiu a construção de um SsS em uma transferência endereçada, sustentada e nomeada. Nestas condições, um sujeito em análise poderá refazer o laço transferencial com outro analista sem perder a dimensão do SsS. Refazer este laço não depende apenas do desligamento, mas de um trabalho concomitante ao desligamento que é o de encaminhamento. E neste contexto temos que considerar o que Freud chamou de contratransferência, ou seja, não é somente o sujeito que está em análise que deve ser escutado neste processo, mas também aquele que escuta. Considerando que em uma análise a construção de um sujeito suposto saber (SsS) garante que o que seja concernente à análise decorra deste sujeito e não da singularidade do sujeito analista ou do sujeito analisante, portanto não são dois sujeitos, mas aquele que se constrói na esfera da transferência. Deste modo, não são as questões de dois sujeitos que determinam seu curso, mas sim, que o que se passa em uma análise afeta os que nela estão envolvidos pelo laço transferencial. Nestes termos, também o analista deve poder escutar de que forma é afetado pelo desligamento, para que não fique a deriva de seu desejo inconsciente e com isso mantenha o sujeito da análise preso em um laço de amor transferencial irresolúvel. Para que o analisante não fique preso neste laço, o analista também terá que fazer um luto e este será em relação ao lugar que ocupa no amor que lhe é endereçado. Conforme Lacan esse amor apenas circunda o campo do ser e o “analista, este só pode pensar que qualquer objeto pode preenchê-lo. Aí está onde nós, analistas, somos levados a vacilar, nesse limite onde se coloca a questão do que vale qualquer objeto que entre no campo do desejo. Não há objeto que tenha maior preço que um outro – aqui está o luto em torno do qual está centrado o desejo do analista”2. Entende-se com isso que o analista sempre terá um luto a fazer, mas no caso em que se faz necessário o desligamento, este luto talvez aconteça em um tempo antecipado. Por isso é importante que o analista também trabalhe em si o sentido que isso possa ter para ele. Do contrário correrá um risco de vacilar. O vacilo do analista pode ter um efeito de inversão da demanda, considerando que o que vacila seja um resto narcísico não declinado suficientemente em sua própria análise. E assim chegamos em um ponto bastante sensível em relação ao analista, que é seu narcisismo. Considerando que em uma circunstância como esta que estamos mencionando, o analista tenha que se transcender narcisicamente autorizando um outro a seguir no trabalho clínico com o analisando em questão. 1 Tania Maria de Souza é membro do Espaço Psicanalítico de Ijuí e mestre em Educação nas Ciências – UNIJUI. 2 Lacan, Jacques. O seminário. A transferência. RJ: Jorge Zahar, 1992. Lv. 8. p. 381. No processo de encaminhamento está presente uma certa função de refundação da demanda, uma vez que, o que autoriza o analista atual a reconduzir o analisante a sua análise, agora com outro analista, é a posição enunciativa do sujeito da análise. Quando digo sujeito da análise, me refiro àquele que só poderá advir de um laço transferencial. Nestes termos estão dadas as condições para a renomeação do laço transferencial. Embora entendendo que a autorização para a escuta e recondução do trabalho clínico, só poderá ser compreendida pelo analista que acolhe o encaminhamento e sem o compromisso de uma continuidade. Isso porque, não se trata mesmo de uma continuidade, mas sim de uma nova experiência de análise. Dito isso, gostaria de poder remeter estas questões ao cotidiano da clínica escola, na qual o desligamento acontece a cada encerramento do período de estágio. Isso faz uma restrição importante ao trabalho clínico, uma vez que o encerramento do tempo do estágio determina o tempo da transferência de uma maneira geral, em todos os tratamentos psicológicos que o estagiário vem conduzindo, o que coloca em questão o melindre do desligamento. Melindre porque é um momento em que o estagiário também se desliga da instituição, da equipe e de todos aqueles que vinham sendo escutados no trabalho de psicoterapia. O luto do qual me referia anteriormente, não é relativo apenas à transferência, mas abrange uma dimensão maior, pois terá que ser considerado também em relação aos demais aspectos. Trabalhado o desligamento, temos que considerar a importância de trabalhar o encaminhamento, ou seja, o sujeito em tratamento poderá seguir em atendimento psicológico na Instituição, desde que ele seja escutado e reconduzido em direção a sua demanda para poder ele mesmo decidir sobre seu tratamento. No entanto, ele não poderá fazer isso sozinho, precisará do suporte da transferência e da indicação dada por aquele que sustenta o saber suposto. A indicação não serve de garantia para que o próximo atendimento tenha êxito, portanto para nada serve preocupar-se em encaminhar para aquele que se imagina o melhor, a indicação é importante por exercer uma certa função de autorização que será útil a todos os envolvidos no processo que vai desde o desligamento, passando pelo encaminhamento até o acolhimento. Todos deverão sentir-se autorizados a exercer suas funções. O acolhimento parece ser a última etapa e, portanto fica em uma certa dependência de como foram conduzidas clinicamente as outras duas. É o momento em que o sujeito reafirma seu pedido de tratamento, mas é também um momento em que aquele que acolhe, em muitos casos, está ele mesmo sendo acolhido pela Instituição e por isso num tempo inaugural de sua prática clínica. E como todo início de uma prática, o sujeito ainda está demasiadamente banhado em seu narcisismo com a preocupação de não errar. Mas essa é uma contingência inerente a todo processo de formação e como ressaltava antes, a eficácia do acolhimento depende em muito daquele que encaminha. E esse, por seu percurso, já pode estar mais desprendido de seu narcisismo para poder intervir no desligamento e encaminhamento. Devido a tais considerações, em uma clínica escola, estas três etapas devem ser consideradas separadamente e cuidadosamente escutadas pela Instituição, através das supervisões e dos momentos em que a equipe toda se reúne para falar de suas questões. O estagiário encontrará suporte na instituição para lidar com suas limitações o que permitirá que esta experiência seja parte fundamental de sua formação. E finalmente gostaria de sublinhar o efeito deste movimento para o sujeito em tratamento clínico. O que temos observado, é que por ter que reafirmar constantemente seu pedido de tratamento e, portanto ter de refundar sua demanda, corremos um risco menor de mantê-los enredados em um laço que os institucionalize.