O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ÓRGÃO
JURÍDICO (NÃO POLÍTICO)
Renata Elaine Silva*
*Professora de Direito Tributário da Universidade São Judas Tadeu – USJT, Professora e Coordenadora do Curso de
Pós-Graduação “lato sensu” da Escola
Paulista de Direito – EPD, Doutora e Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo –
PUC e Advogada.
Resumo
Diante de inúmeras discussões acadêmicas sobre a natureza do Supremo Tribunal Federal como órgão político
e jurídico, o referido texto pretende, com bases científicas, listar os motivos que revelam ser o STF um órgão de
natureza jurídica cujas decisões têm como objetivo garantir segurança jurídica às relações sociais.1
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ma jurídico constitucional e adotar critérios objetivos dissociados de qualquer subjetivismo mediante o emprego da forma
estabelecida pelo sistema para julgar (relatório, fundamentação e dispositivo). Essas são uma das razões que nos levam
defender a natureza jurídica do Supremo Tribunal Federal.
O STF não é órgão autônomo com função legislativa, o Poder Legislativo, sim, pode ser considerado órgão político,
pois sua função é de representante do povo. Seus membros representam um ideal político–partidário. A função
legiferante do Poder Legislativo é considerada fonte do
direito, vez que introduz no ordenamento jurídico normas
introdutoras e introduzidas.
C
omumente encontramos discussões calorosas nos
núcleos acadêmico-jurídicos sobre a natureza do
Supremo Tribunal Federal. Argumentos não faltam
àqueles que defendem a natureza política, assim como razão assistem àqueles que defendem a natureza jurídica,
muitas vezes levados pelos efeitos das decisões preferidas
ou pela forma e composição do órgão.
Traçaremos ao longo do texto os argumentos de que o Supremo Tribunal Federal é um órgão de natureza jurídica,
conforme veremos:
O Poder Legislativo, com toda sua “falta de técnica jurídica”
(porque na maioria das vezes os seus membros não são operadores do direito), é o responsável pela dinâmica do direito,
alimentando o sistema jurídico com o ingresso de normas
formalmente válidas no sistema (desde que tenha competência e tenha respeitado o procedimento estabelecido para
a função). Normas que possuem presunção de validade em
decorrência do dogma do “legislador racional”.2
O primeiro é o mais forte argumento que utilizaremos para
iniciar nosso texto encontra-se na sua localização dentro da
divisão de poderes do sistema federativo, ou seja, o Supremo Tribunal Federal é um órgão especial de última instância
que compõe o Poder Judiciário.
Diferentemente do que ocorre com o legislador, o ministro
do Supremo Tribunal Federal não está vinculado a interesses políticos partidários, além de ser detentor de “notório
saber jurídico”. Suas decisões, por mais que tenham signos
do sistema político (na linguagem luhmanniana, código político governo-oposição, código econômico ter-não ter) são
sempre jurídicas.
Sendo a Suprema Corte órgão do Poder Judiciário, suas decisões devem empregar técnica jurídica, observar todo o siste-
Um argumento para aqueles que defendem a natureza
política do Supremo Tribunal Federal encontra-se no
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modelo eleito pela República Federativa do Brasil para
a nomeação dos Ministros. Segundo o Texto Constitucional3, a nomeação dos ministros que compõem a Suprema
Corte deve ser realizada pelo Presidente da República,
chefe do Executivo, após sabatina do Senado. Poderia
ser este elemento um fator para se pensar que o Supremo é um órgão político.
Porém não se pode esquecer que os ministros do Supremo
possuem independência funcional em relação aos poderes
Executivo e Legislativo, vitaliciedade, inamovibilidade, ou
seja, prerrogativas inerentes a qualquer magistrado, além
das virtudes judiciais, denominadas por HART, que são: imparcialidade e neutralidade ao examinar os conflitos.
A confusão muitas vezes decorre da própria Constituição
Federal que é instrumento multitemático que “deve abarcar
conteúdos políticos, econômicos e sociais, constituindo-se
o reflexo da realidade4”. As matérias delimitadas na Constituição, uma vez sejam objeto de decisão pelo Supremo
Tribunal Federal, tornam-se jurisdicizadas.
As decisões podem até repercutir nos sistemas políticos,
econômicos e sociais, pois em se tratando de matéria tributária, sempre haverá interesses políticos e econômicos
envolvidos no litígio entre contribuintes e Poder Público
(União, Estados, Municípios, Distrito Federal). Todavia, o
processo de decisão terá que respeitar o ordenamento jurídico, os limites impostos pela norma (moldura), tendo em
vista a textura aberta das normas.
decisões com reflexos políticos, assim como fez a Constituição de 1934, em seu art. 68. Apesar disso um Juiz não
pode ignorar as regras jurídicas estabelecidas pelo ordenamento quando estiver decidindo e passar a decidir com
base no sistema político.
A Constituição para o sistema político é um instrumento
político, tanto da política instrumental quanto da política
simbólica, e para o sistema jurídico é uma lei fundamental.
Segundo LUHMANN5, a Constituição é uma reação à diferenciação entre direito e política.
Isso porque não se pode esquecer que matérias de cunho
político também são submetidas à apreciação do Supremo
Tribunal Federal, pois este é “guardião” da Constituição. A
Constituição, por sua vez, é a lei máxima que regrará os
dois sistemas: político e jurídico, pois questões políticas,
divisão de poderes, atuação dos partidos políticos etc.,
mesmo assim, quando enfrenta matéria política, sua função
é dar uma solução jurídica.
O raciocínio percorrido por ANDRÉ RAMOS TAVARES6 demonstra-se oportuno para argumentos deste trabalho: “...
falar sobre psicopata não transforma ninguém num doente
mental...”
Decidir matéria que apresenta contornos políticos não
transforma a atividade de jurisdicional em política, da
mesma forma que falar sobre um psicopata não transforma ninguém num doente mental. Não se quer dizer que se
trate de decisões formalmente jurídicas e materialmente
No Texto Constitucional de 1988 não existe disposição expressa de que o Supremo Tribunal Federal não possa dar
políticas. A decisão constitucional é de cunho jurídico em
todos os sentidos.
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E mais, “mesmo que na motivação da decisão entrem elementos extrajurídicos, o que é inevitável, ainda assim está-se perante uma decisão judicial.” 7
semelhante à que disciplina pela norma em relação à qual
se pretende a extensão, não há campo para chegar-se ao
implemento respectivo. Conclusão diversa implicaria não
o acionamento da analogia, mas a atuação do Supremo
Com base mais uma vez na teoria de HART, vê-se que linguagem política não pode ser usada pra justificar “linguagem jurídica” por serem regras diferentes e se situarem em
diferentes contextos, são os chamados “jogos de linguagem”, v.g., fundamentação de decisões da contribuição
previdenciária de inativos que usava como argumento o
prejuízo ao Erário, aumentando o déficit previdenciário (código econômico-ter não ter).8
como se legislador fosse e pudesse empreender, sem a
atuação do Congresso Nacional, na ordem jurídica, dispositivo viabilizador da limitação de eficácia do julgado, pouco importando a existência pretérita de lei dispondo em
certo sentido.
Busquem a razão de ser do artigo 27 da Lei nº. 9.868/99.
Outra senão a presunção de legitimidade do ato normativo, a gerar a confiança dos cidadãos em geral no que nele
Interessante comentar passagem do voto de vista do ministro Marco Aurélio de Melo (relator) do Recurso Extraordinário (RE) 370682 na questão de ordem sobre a modulação
dos efeitos da decisão em ação subjetiva estendendo-se os
efeitos do art. 27 da Lei nº. 9.868/99:
previsto. […] O preceito que se quer aplicar por analogia,
mesmo ausente a lacuna quanto ao direito questionado e
objeto de decisão, pressupõe, sempre e sempre, pronunciamento no sentido da constitucionalidade de lei ou ato
normativo, reconhecendo do conflito do que disciplinado
com a Constituição Federal, e, neste caso, tem-se, sem
Na espécie, em momento algum, declarou-se a inconsti-
o questionamento sequer de lei específica – inimaginável,
tucionalidade de lei ou ato normativo. Jamais figurou, no
portanto, o envolvimento de declaração de inconstitucio-
ordenamento jurídico pátrio, o creditamento, pela alíquota
nalidade […].
final, de valor que o contribuinte não recolheu a título de
imposto sobre produtos industrializados em operação anterior isenta, não tributada ou sujeita à alíquota zero. Até
aqui o que se tem é o pronunciamento do Plenário do Supremo sobre a inexistência do direito ao crédito, e isso se
fez a partir de interpretação conferida, como já consignado,
Em complemento ao raciocínio seguem dois parágrafos finais do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, único voto
vencido na questão de ordem dos efeitos prospectivos, que
após fundamentar seu voto de maneira bem justificada juridicamente assim diz:
a Constituição Federal, mais precisamente ao artigo 153, §
3º, inciso II, nela contido, que a União sempre aponta como
Por essas razões entendo que convém emprestar-se efei-
infringido.
tos prospectivos às decisões em tela, sob pena de impor-se
pesados ônus aos contribuintes que se fiaram na tendência
Em síntese, pressupondo a aplicação analógica moldura
jurisprudencial indicada nas decisões anteriores desta Cor-
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te sobre o tema, com todas as conseqüências negativas
que isso acarretará nos planos econômicos e social.
precípua de decidir, certamente o faz (e se não faz deveria
fazer) dentro do sistema jurídico, mesmo que as questões
impostas sejam de ordem constitucionalmente política.
Assim, Senhora Presidente, ante as peculiaridades do
caso, e em homenagem não apenas ao princípio da segurança jurídica, mas também aos postulados da lealdade,
da boa-fé e da confiança legítima, sobre os quais se assen-
A função do Legislativo é colocar normas no ordenamento
jurídico, a função do Judiciário é aplicar as normas jurídicas
e assim garantir a segurança jurídica nas relações.
ta o próprio Estado Democrático de Direito, proponho que
se confira efeitos ex nunc as decisões proferidas nos REs
353.657 e 370.682.
Não se pode negar que os reflexos econômicos e sociais
estão sempre envolvidos quando estamos tratando de matéria tributária. Os valores arrecadados pela cobrança dos
créditos tributários compõem a receita dos entes federativos e serão utilizados em suas necessidades públicas, mas
o princípio da supremacia do interesse público não pode
ser utilizado como justificativa distorção e decisões que, em
nome do interesse público, possa ignorar o sistema jurídico
tributário positivado. Com base nessas premissas vemos
que a decisão proferida pelo Ministro Celso de Melo traduz
o sistema jurídico positivo e o papel do Supremo Tribunal
Federal, enquanto o trecho da decisão do Ministro Lewandowski demonstra uma decisão com bases em justificativas
de outro sistema, quais sejam, o econômico e político.
As decisões proferidas pela Suprema Corte não têm função
legislativa e nem poderiam ter, pois este órgão é apenas
aplicador e guardião do texto constitucional. A Constituição
brasileira convive de forma bem ordenada com questões
política e jurídica: todas as suas disposições são feitas de
forma abstrata, contendo uma textura aberta necessária, de
modo a servir às gerações futuras. Contudo, na sua função
O princípio da segurança jurídica é encontrado quando da
análise de todos os valores explícitos do ordenamento jurídico. Como órgão de composição de conflitos, o papel do
Supremo Tribunal Federal é resguardar os valores embutidos na Constituição Federal; agindo desse modo estará gerando um sentimento de segurança. Assim como descreve
PAULO DE BARROS CARVALHO9:
Sendo assim, de nada adiantam direitos e garantias individuais, placidamente inscritos na Lei Magna, se os órgãos
a quem compete efetivá-los não o fizerem das maneiras
que o bom uso jurídico requer. Não haverá respeito ao sobreprincípio da segurança jurídica sempre que as diretrizes
que o realizem venham a ser concretamente desrespeitadas e tais situações infringentes se perpetuem no tempo,
consolidando-se.
Por fim, diante de todos os argumentos acima articulados é
que concluímos que o Supremo Tribunal Federal é órgão de
natureza jurídica e toda e qualquer decisão por ele proferida deve necessariamente respeitar o ordenamento jurídico,
seus comandos e suas regras, pois só assim atingirá seu
objetivo que é dar segurança jurídica, isto é conferir estabilidade, previsibilidade às relações intersubjetivas. É o que
queremos por à reflexão.
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MENDES. Sonia Maria Broglia. A validade juridica pré e
pós-giro linguistico. São Paulo: Noeses, 2007.
REFERÊNCIAS
CARVALHO. Paulo de Barros. Crédito prêmio de IPI: estudos e pareceres III. Barueri – SP: Minha Editora, 2005.
FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003
LUHMANN, Niklas. A Constituição como Aquisição Evolutiva. Trad. Prof. Menelick de Carvalho Neto. [Orig. ZAGREBELSKY, Gustavo; PORTINARO, Píer Paolo; LUTHER, Jorg
(orgs.). La constituzione come acquisizione evolutiva. In: II
futuro della constituzione. Torino: Einaudi, 1996).
OLIVEIRA. Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 2 ed.ver e atual. São Paulo. Revistas dos Tribunais. 2008.
TAVARES. André Ramos. Tribunal e Jurisdição constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998.
D
Notas
1. Esse artigo é resumo da teoria desenvolvida no livro “Decisões em Matéria Tributária: Jurisprudência e Dogmática do Supremo Tribunal Federal em
Controle de Constitucionalidade”. São Paulo: Saraiva, 2009.
2. O legislador racional segundo SAMPAIO, Tércio. Introdução ao Estudo do Direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 280-281, “Trata-se de uma construção dogmática que não se confunde com o legislador normativo, nem com legislador real. É uma figura intermediária, que funciona como um terceiro
metalingüístico, em face da língua normativa (LN) e da língua realidade (LR)”. O Autor resume as propriedades com base em Santiago Nino, quais são: trata-se de uma figura singular, permanente, único, consciente, finalista, omnisciente, justo, coerente, omnicompreensivo, econômico, operativo e preciso.
3. Art. 101 da CF de 1988: “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos
de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”. Parágrafo único. O Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal”.
4. OLIVEIRA, R., 2008, p. 25.
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5. LUHMANN, Niklas. A Constituição como Aquisição Evolutiva. Trad. Prof. Menelick de Carvalho Neto. [Orig. ZAGREBELSKY, Gustavo; PORTINARO,
Píer Paolo; LUTHER, Jorg (orgs.). La constituzione come acquisizione evolutiva. In: II futuro della constituzione. Torino: Einaudi, 1996), p. 3.
6. TAVARES, 1998, p. 42.
7. TAVARES, 1998, p. 46.
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8. Nesse sentido, concorda MENDES, S., (2007, p. 190), em nota de rodapé 539 “Ministro da Previdência alerta STF sobre inativos – “O ministro Amir
Lando (Previdência) disse ontem ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, que a derrubada da contribuição previdenciária de servidores inativos e pensionistas impediria o governo de arrecadar cerca de R$ 1,9 bilhão por ano” (Silvana de Freitas, Folha de S. Paulo, 28/05/2004).”
9. CARVALHO, P., 2005, p. 32.
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