Ler Portugal no Século XIX ... - Luna Ler Portugal no Século XIX: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna ) – UPE Resumo: Neste artigo se busca comentar acerca dos principais escritores de romances em Portugal do Século XIX. Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco representando cada um, uma vertente narrativa do Romantismo, ao passo que Eça de Queirós, realista, nos apresenta uma quarta possibilidade narrativa. Os aspectos históricos, sociais e culturais de Portugal estão presentes em cada um dos romancistas citados, porém, com especificidades no tratamento que dão aos mesmos aspectos. Palavras-chave: Literatura Portuguesa, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós. Abstract: In this article we seek comment on the main writers of novels of the nineteenth century in Portugal. Almeida Garrett, Alexandre Herculano and Camilo Castelo Branco each representing one of Romanticism narrative aspect, while Eca de Queiroz, realistic, presents us with a fourth possibility narrative. The historical, social and cultural features of Portugal are present in each of their novelists, however, with specific in their treatment of the same features. Keywords: Portuguese literature, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Eca de Queiroz. 1. Introdução O Século XIX em Portugal é um século que muitas transformações políticas, sociais,econômicas e culturais em Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 55 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna Portugal. No âmbito da Literatura compreende a passagem do Neoclássico para o Romantismo, e na sua segunda metade, notadamente a partir da década de 70, é o momento em que se apresenta a escola Realista. Não falaremos nessa aula das características peculiares de cada escola, mas destacaremos quatro escritores, três românticos e um realista, que produziram um conjunto de obras em que o tema a se destacar é a visão que tinham desse Portugal em transformação. No início do século, Portugal, como toda a Europa, sofreu os efeitos do período Napoleônico, a ida da família real para o Brasil, muito mais que uma fuga apressada, foi a transposição para a colônia de toda a corte portuguesa, inclusive, com a ajuda de vários navios ingleses. O reino unido de Brasil e Portugal, com capital no Rio de Janeiro, que perdurou até 1815, quando da queda de Napoleão em Waterloo, foi o ponto inicial que marca o processo de separação da sua principal colônia do domínio da metrópole portuguesa. A solicitação da volta do príncipe Dom Pedro para Lisboa e a recusa deste, levando ao processo de independência do Brasil, causou em Portugal profundas transformações econômicas que se somaram ao período caótico da dominação francesa. Portugal entra assim no chamado período romântico em grande crise de identidade e com um sentimento de desesperança quanto ao futuro do império lusitano. O sistema Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 56 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna sócio-econômico baseado na simples exploração das riquezas coloniais estava em franca decadência, e as colônias africanas restantes, além duns parcos territórios na Ásia não poderiam sustentar as necessidades da aristocracia lusitana, num país que deixava passar o período de industrialização na Europa praticamente em branco. 2. Almeida Garret É nesse panorama que Almeida Garret vai se destacar como o autor que apresenta obras cujo tema é a discussão acerca da identidade da nação portuguesa e da busca dessa identidade na análise dum passado tido glorioso e do entendimento das causas da perda dessa grandiosidade. Assim é que costuma-se destacar duas obras, o drama em três atos, Frei Luís de Sousa e o romance Viagens na Minha Terra. No primeiro, o passado de Portugal parece ser uma espécie de fantasma que a todo momento ameaça ruir a frágil estrutura do presente, principalmente na figura de Dom João de Portugal. O mito sebastianista também vai sendo apresentado na obra, na contextualização dos momentos posteriores à batalha Alcácer Qibir e na eminência do domínio espanhol. O casamento em segundas núpcias de Madalena e Manuel Coutinho, e a filha do casal, Maria de Noronha, constroem assim Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 57 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna uma família cuja base está no desaparecimento de D. João de Portugal. Este, análogo ao mito sebastianista, retornará para ocupar o seu lugar, fazendo com que os amantes resolvam adotar o hábito religioso como forma de expiação e a filha que morre diante da situação trágica de destruição de sua família. Espécie de metáfora de um Portugal que ao tempo de Almeida Garrett parece desacreditar na possibilidade de recuperação de seu passado. Em Viagens na Minha Terra, romance cuja estrutura de capítulos e a forma como se conecta a parte ficcional com a narrativa romanceada da viagem executada por Garrett e amigos de Lisboa ao interior de Portugal, passando por monumentos e paisagens históricas de Portugal, dão à obra um aspecto de romance de invenção, de experimentalismo. O drama inserido – a parte ficcional, digamos assim – gira em torno do romance de Joaninha e Carlos. Essa espécie de bom vivant e conquistador, que se vê dividido entre o amor de Joaninha, os amores ingleses e a luta na revolução portuguesa (1828-1834), tendo como causa a disputa da coroa portuguesa entre os dois filhos de Dom João VI, Dom Pedro (I do Brasil e IV de Portugal) e Dom Miguel, que culminou com o regresso de Dona Maria II ao trono – conforme era a intenção dos liberais de Pedro IV, e o exílio de Miguel na Alemanha. O auxílio dos ingleses foi fundamental para a vitória de Pedro. Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 58 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna Dom Dinis, é o personagem nessa obra que tem um passado a esconder, qual seja, o de ser o pai de Carlos. A revelação da origem de Carlos é também a revelação do passado esquecido de Portugal. È o encontro com sua verdadeira origem e as viagens de Carlos à Inglaterra representam também o modo como Portugal se associava ao império britânico, tornando-se, nesse sentido, dependente dos ingleses para solução de seus problemas internos. Por outro lado, os capítulos em que Garrett faz a narrativa da viagem que efetivamente fizera pelo interior de Portugal, em companhia de amigos, vão se compondo com a descrição de monumentos e cenários da história de Portugal, recuperando aqui e ali, elementos – não raras vezes – lendários e heróicos, como o túmulo de Pedro Álvares Cabral, a história de Santa Iria, a descrição de Santarém. Viagens na Minha Terra fornece por meio das personagens do drama amoroso uma visão simbólica de Portugal em que se busca dialogar acerca das causas da decadência do império português. Assim, o instável Carlos, que não consegue decidir-se acerca das suas relações amorosas, é o personagem que podemos ligar às características biográficas do próprio autor. Georgina, a namorada inglesa de Carlos, apresenta-nos uma visão de ingenuidade e altruísmo como caracteres de uma mulher estrangeira que acaba por não querer envolver-se por questões Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 59 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna sentimentais ao drama histórico de Portugal, fazendo de sua reclusão religiosa a justificativa para não participar dos dilemas e conflitos históricos que motivaram sua decepção amorosa. É a fleugma britânica. Joaninha, a amada de Carlos, singela e terna, nascida e vivendo no vale de Santarém, a “menina dos rouxinóis” simboliza uma visão ingênua de Portugal, quase folclórica, que não se sustenta diante das condições históricas. A velha cega Francisca, avó de Joaninha, mostra-nos a imprudência e a falta de planejamento com que Portugal se colocava no governo dos liberalistas, levando a nação à decadência. Por fim, Frei Dinis é a própria tradição calcada num passado histórico glorioso, que no entanto, não é mais capaz de justificar-se sem uma revisão de valores e de perspectivas. O final do drama, que culmina na morte de Joaninha e na fuga de Carlos para tornar-se barão, representa a própria crise de valores em que o apego à materialidade e ao imediatismo acaba por fechar um ciclo de mutações de caráter duvidoso e instável. 2.1. O Arco de Sant’Anna – volume I Uma outra obra, que não é muito lembrada na questão de como Garrett analisa Portugal, é O Arco de Sant’Anna. Romance publicado em dois volumes, com um espaçamento de mais de dez anos entre a publicação do primeiro e do segundo volume. Haja Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 60 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna vista que poucos têm sido os leitores atualmente desse romance, resolvo aqui fazer um breve resumo do enredo da obra: Do Volume I (por Oliveira Marreca): “É no Porto. Reina D. Pedro Cru. É senhor temporal e espiritual do burgo o bispo D. Egídio (se a crônica lhe acerta com o nome). E este bispo, esquecido de sua esposa em Cristo, gosta de mulheres casadas, e das solteiras também. Aninhas, uma rapariga que mora no Arco de Sant’Ana, e tem ausente o marido, é requestada por ordem do prelado por Pero Cão, o mordomo ostensivo e mercúrio secreto de sua reverendíssima. Resiste; e como resiste, numa noite é raptada. Uma vizinha e amiga sua íntima, ao levantarse de manhã seguinte, descobre o rapto, e, atinando com a origem dele, fez amotinar o povo. O povo amotinado corre em tumultos aos paços episcopais, vociferando palavras de indignação. O Bispo, paramentado para sair na procissão de S. Marcos, apresenta-se ao torpel dos populares com aspecto composto e imperturbável. Estes titubeiam. Mas depois de uns tropos momentâneos, renasce mais tremenda a sua irritação. Aparece então Paio Guterres, um clérigo muito benquisto e respeitado, e à sua voz persuasiva é dissipado o tumulto. Contudo o rapto não ficara por vingar; por que se o grande reparador não se mostra ainda, já se adivinha. El Rei já está nas vizinhanças do Porto; vem punir o atentado do Bispo, por aviso que lhe deram. Levou-lho a instigações da amiga de Aninhas, um D. Vasco, estudante e (afilhado?) do Bispo. O segundo volume o dirá...” Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 61 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna (em: Teófilo Braga: “Elaboração do ‘Arco de Sant’Ana”, O Arco de Sant’Ana de Almeida Garrett. Rio de Janeiro, Ediouro, 1966, p. 17) 2. 2. Do Volume II: Vasco vai conversar com a “bruxa de Gaia”, mulher marginalizada e temida na cidade do Porto, que só não fora para a fogueira, como queria o bispo, por intercessão de Paio Guterres que a defendia das intenções inquisitoriais do bispo. Guiomar, diz ela se chamar, e conta a Vasco a história de sua vida, que este de algum tempo a conhecera e sobre ele exercia uma certa proteção. Conta, em prantos, o seu passado, que era filha de um judeu muito influente na política local, Abraão Zacuto, que era um grande físico (alquimista) ombreando com Avicena. Certa feita, um cavaleiro fora acolhido na casa desse Abraão por estar muito ferido de uma batalha. Quando já se recuperava, o cavaleiro, numa noite, aproveitando a ausência de Abraão Zacuto, violenta sua filha que o cuidara durante toda sua recuperação. Tendo vergonha de contar o acontecido, a filha foge de casa. Pouco tempo depois, sem encontrar a filha, Abraão Zacuto e sua mulher Sara morrem. A filha, que até se chamava Éster é recolhida pela família de Paio Guterres, que ainda muito jovem, dedica-se a cuidar da moça até que nasce seu filho. Guiomar, conta para Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 62 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna Vasco que ela é Éster e que seu filho é ele, Vasco. Vasco pergunta sobre a identidade de seu pai, esse cavaleiro que desonrara sua mãe. Guiomar (Éster) nega-se a revelar sua identidade. Vasco volta para a cidade, onde é nomeado caudilho da revolta contra o domínio do Bispo pelos populares chefiados por Rui Vaz sob o Arco de Sant’Ana numa investidura semelhante à dos cavaleiros medievais, com o toque da espada sobre a cabeça. Vasco, Rui Vaz e os populares planejam os passos da revolta e conseguem a aprovação do “Senatus Populusque” que lhe concede o estandarte da cidade. Enquanto isso, o Bispo em sua fortaleza episcopal, bem guarnecida, tentava nos labirintos subterrâneos violentar Aninhas, esta consegue safar-se no momento derradeiro por intermédio da ajuda de Paio Guterres. A revolta popular se aproxima da fortaleza, inicia-se luta acirrada, com muitas mortes. Num momento decisivo, quando Vasco está prestes a vencer o Bispo, este usando de artimanhas, consegue um armistício até à meia-noite. Era uma cilada, para ganhar tempo, e numa rápida manobra recupera o domínio da situação. Porém, chega para recuperar seu poder, o rei D. Pedro o Cru, que domina o bispo e retira-lhe do bispado. Surgem nessa cena final, a mãe de Vasco que revela a identidade do pai do jovem caudilho, é o próprio bispo; Aninhas que é ovacionada pelo povo e Gertrudes, a amiga de Aninhas e amada de Vasco. Vasco pede pela vida do bispo. O Rei poupa a vida do Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 63 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna desonesto bispo, mas lança-o ao exílio em Bruges. Vasco e Gertrudes se casam numa cerimônia sob o arco de Sant’Ana e Paio Guterres é nomeado o novo bispo que batiza Éster. Pero Cão surge enforcado numa figueira, ao que parece, num ato final, imitando o gesto de Judas. 2.3. Comentários ao Arco de Sant’Anna Em um artigo que publiquei no livro Caderno de Anotações, fiz um estudo da obra “Almeida Garrett – O Arco de Sant’Anna: anotações esparsas para uma análise formalista” em que, entre outras coisas, faço a enumeração das personagens do romance comparando-as com os elementos que constituem a bandeira portuguesa do reinado de D. Pedro o Cru, personagem heróico na obra. De fato, é possível fazer a comparação, ligando cada personagem a um elemento da bandeira, criando assim uma analogia, cujo fim é destacar a importância de Dom Pedro para a solução do impasse que envolvia os personagens principais da obra, o bispo, Aninhas, Gertrudes, Guiomar e Vasco. E com a revelação de que o bispo era o pai de Vasco, retoma-se a noção do passado esquecido que guarda segredos sobre a origem e a causa de problemas de identidade e de reconhecimento da nacionalidade portuguesa. Garrett soube assim utilizar a questão do reconhecimento, característica de romances românticos, como elemento para a discussão acerca da nacionalidade portuguesa. Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 64 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna 3. Alexandre Herculano – Eurico e as Batalhas Medievais da resistência à invasão árabe. Alexandre Herculano, escritor cuja formação de historiador, permitiu que construísse obras em que o elemento histórico se sobressaísse, escreveu entre outros, os romances Eurico, o Presbítero – sua obra mais lida e conhecida – e O Bobo. Em Eurico, o Presbítero – Herculano nos apresenta o contexto histórico da formação dos reinos espanhóis na sua luta contra o domínio árabe logo após a invasão do reino visigodo. Eurico, o personagem principal, dividido entre o amor carnal por Hermengarda, rompido por imposição do pai da heroína e a carreira religiosa, acaba por se tornar também o enigmático cavaleiro negro que luta ao lado da resistência nas Astúrias contra a dominação árabe. No romance, se destaca a descrição pormenorizada de duas batalhas. A batalha de Crissus e a de Auseba. Na primeira os árabes vencem o visigodo Roderico e instalam o domínio árabe sobre a península ibérica, na segunda inicia-se a reconquista lenta e paulatina dos territórios pelos nascentes reinos espanhóis, tendo a frente a liderança de Pelágio. No desenlance da trama do romance, Eurico – agora revelando sua identidade de cavaleiro Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 65 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna negro, salvador de Hermengarda, prisioneira dos árabes, opta martírio ao se atirar solitário contra as tropas árabes, morrendo, não sem antes matar dois personagens traidores de Roderico e que estavam agora ao lado dos invasores. Em um artigo “O Jogo de xadrez e as batalhas medievais de Eurico, o Presbítero de Alexandre Herculano”, também publicado no livro Caderno de Anotações, artigo escrito com base em apresentação que fiz na SBPC de 2003, faço uma analogia entre a descrição das duas batalhas e o jogo de xadrez – que é efetivamente a representação de uma batalha medieval. Podemos notar na analogia que os personagens envolvidos na descrição das batalhas na obra de Herculano – quer sejam os históricos quanto os ficcionais, compõem um panorama que se ajusta efetivamente a uma partida de xadrez, de tal modo que Eurico, é ao mesmo tempo duas peças: o bispo e o cavalo. E ao optar pela posição de cavalo no jogo de xadrez, está em posição que logo após ganhar o cavalo adversário – que representa o traidor Juliano, encontra-se diante do bispo adversário Muguite, que o mata, recuperando assim sua condição de presbítero. 3.1. O Bobo e a Corte Portuguesa Em “O Bobo”, romance menos conhecido de Herculano, a história se desenvolve no período da independência do condado portucalense. Nessa obra ficcional, Herculano consegue nos Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 66 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna apresentar toda a trama de corte que envolveu o processo de independência do condado portucalense dos reinos espanhóis. Ao colocar, como personagem principal, o bobo da corte, Herculano vai nos colocando a par de todas as intrigas palacianas, uma vez que o bobo, por sua condição e natureza, tinha ampla liberdade de passear pelos corredores, ouvir segredos e inclusive fazer glosa e anedotas com as condições de cada um. Ao que nos parece, as referidas obras de Almeida Garrett e Herculano recuperam elementos da história de Portugal, discutem o seu processo de formação. Garrett nos parece mais crítico e mais definido em sua posição política, ao inserir o sebastianismo como elemento de suas obras e ao mesmo tempo ao propor a discussão acerca da necessidade de recuperação da história portuguesa como forma de repensar o presente. Por outro lado, Herculano, vai apresentando seus conhecimentos da história da formação de Portugal e da Espanha, e nessa apresentação, vai busca retirar do olvido a natureza e a identidade da península ibérica. A história toda se passa no castelo de Guimarães ou nos seus arredores. O período é o da independência de Portugal e gira em torno dos antecedentes e dos acontecimentos da batalha de Aljubarrota (1136). A trama se sustenta sobre personagens históricos: D. Tareja está recebendo em seu castelo a Fernando Peres, conde de Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 67 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna Trava, com quem deve contrair matrimônio, porém, o filho, D. Afonso Henriques é contra a presença de Fernando Peres por considerá-lo um usurpador e um tirano. Dom Bibas é um bobo da corte que vive no castelo de Guimarães. Dulce, uma das sobrinhas de D. Tareja tem uma paixão secreta por Egas Moniz, cavaleiro pobre que luta ao lado de Afonso Henriques. No castelo existe um temor de que se desenrole uma batalha envolvendo o conde de Trava, que tem a seu dispor maiores e melhores tropas e Afonso Henriques, que tem o apoio de uns poucos nobres portugueses. O Conde de Trava incentiva um jovem cavaleiro, Garcia Bermudez, a tentar desposar Dulce. Conta-se no castelo que a paixão do jovem cavaleiro pela moça é notória, porém, a moça não dá esperanças aos apelos do cavaleiro. Dom Bibas é repreendido por ouvir conversas entre o Conde de Trava e o cavaleiro Garcia Bermudez, Dom Bibas, inclusive, caçoa com seus versos o nobre. O bobo é mandado ser açoitado e jura vingança. Após esse fato, ficamos sabendo que D. Bibas conhece uma passagem secreta que dá para fora do castelo de Guimarães, por meio dela, manda avisar a Afonso Henriques do que se desenrola no castelo. O Lidador, Gonçalo Mendes de Maia, está do lado de Afonso Henriques e planeja uma forma de ajudar o desafiante ao poder do Conde de Trava. Egaz Moniz, Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 68 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna que estava com a tropa de Afonso Henriques vindo em direção do castelo de Guimarães trazendo uma mensagem de paz. Porém, o Conde de Trava ignora o pedido de paz e prende o emissário. Dulce ao saber da prisão do amado, consegue falar-lhe, porém, conta que para que o cavaleiro amado ficasse vivo fora obrigada a se casar com Garcia Bermudez. Egas Moniz não aceita a explicação e se considera traído no amor. Dom Bibas faz ver a Egaz Moniz - este desejoso de vingança - que seria melhor fugir pela passagem secreta e depois da batalha poderia vingar-se de Garcia Bermudez. Não existe propriamente a narração da batalha no romance. A narrativa retoma já depois de ocorrida a batalha entre Afonso Henriques e Fernando Peres. Explica-nos o narrador que a vitória fora de Afonso Henriques e que nessa batalha Egaz Moniz matara Garcia Bermudez. Dulce, porém, não aprova a violência daquela morte, por entender que Egaz Moniz se tornara um homem violento e desejoso de vingança e então a jovem se mata. Egaz Moniz, depois, retira-se levando vestindo-se com as roupas de um frade. Dias depois, Egas Moniz aparece morto, vestido de frade sobre o túmulo de Dulce. Dom Bibas viverá no castelo de Guimarães na corte de Afonso Henriques dias de tranqüilidade, uma vez que um dos grandes trunfos na batalha, fora a entrada secreta pela qual vários soldados de Afonso Henriques puderam passar. Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 69 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna As personagens do drama amoroso (Egas Moniz, Dulce e Garcia Bermudez) bem como o próprio Dom Bibas são personagens ficcionais. Um outro personagem que aparece na história é o jovem cavaleiro Tructesindo, que embora tenha um papel secundário, será relembrado por Eça de Queirós em A Ilustre Casa de Ramires. Outro personagem secundário é o Frei Hilarião, que morre de tanto comer. 4. Camilo Castelo Branco e o romance de folhetim Camilo Castelo Branco, romancista muito conhecido por suas novelas de tramas amorosas trágicas como Amor de Perdição e Amor de Salvação. Em Amor de Perdição, num contexto de pessimismo romântico, todos os que amam tem final trágico, inclusive o par Simão e Teresa, num final característico de melodrama. Em Amor de Salvação, o conformismo se apresenta como solução para os desencontros amorosos. De certo modo, nessas novelas, o autor faz a crítica das classes burguesas e aristocráticas portuguesas que guardavam costumes de natureza medieval, como os casamentos arranjados, os dotes, a observação da sujeição da mulher aos princípios e às determinações da sustentação do clã familiar, a dominação da igreja e a falta de vocação para a carreira religiosa, além da questão da moralidade e dos costumes. Muito dessas características podem ser Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 70 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna observadas numa outra obra menos lida, como Eusébio Macário, em que o padre Justino usufrui da companhia de uma amante, Felícia, mas que depois de abandonado por ela, encontra outra, a modista Eufémia. Nessa obra o casamento por interesse também se apresenta, o casamento de Custódia com Bento, o comendador e irmão de Felícia. Num contexto também de crítica dos costumes da sociedade portuguesa se insere A Brasileira de Prazins, em que a personagem Marta, tem como um de seus pretendentes o velho José Feliciano, que chega do Brasil um homem rico. Em Coração, Cabeça e Estômago, Camilo narra as peripécias de Silvestre, de como primeiramente guiado pelo coração ama sete mulheres, depois de como desiludido no amor, deixa-se guiar pela razão (cabeça) para alcançar sucesso profissional e político, e por fim, de como acaba por casar-se e engordar (estômago), morrendo, porém, endividado pelo gosto que desenvolve pelo jogo. Por essas críticas que Camilo vai tecendo acerca da sociedade portuguesa, levanta-se a questão acerca do quanto ele foi um novelista romântico ou se já se apresenta em sua obra elementos suficientes para considerá-lo realista. De fato, as tramas amorosas, os desencontros, as cenas com característica exagerada no sentimentalismo, são tipicamente românticas, mas também o modo como vários de seus personagens são Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 71 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna apresentados, representantes de comportamentos caricaturais encontrados por Camilo na sociedade portuguesa, que aliás, a vida do autor é já uma complexa novela em que não faltaram traições, duelos e prisões. 5. Eça de Queirós e a crítica realista Eça de Queirós, um dos mais lidos autores portugueses e também dos autores que mais teve obras adaptadas para o cinema e a televisão. Realista propriamente, apresenta uma leitura de Portugal, em que a recuperação da identidade portuguesa se mostra presente em várias de suas obras. Em Os Maias, a saga de três gerações do clã familiar vai nos apresentando o processo de passagem do domínio político da aristocracia para a burguesia. Os Maias, publicado em 1888, é a mais acabada realização de Eça de Queirós. O romance se desenvolve em duas linhas de ação: a primeira, em torno dos amores incestuosos de Carlos da maia; a segunda, em torno da vida da alta burguesia lisboeta. A narrativa inicia-se com Pedro da Maia, filho de Afonso da Maia, educado, conforme enfatiza o narrador, de acordo com padrões românticos. Pedro da Maia casa-se com Maria Monforte, filha de um traficante de escravos. Dessa união nascem dois filhos: Maria Eduarda Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 72 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna e Carlos. O casal se separa logo depois. A menina fica com a mãe, e o menino com o pai, que se suicida. Educado pelo avô, segundo padrões britânicos, Carlos da Maia forma-se em Medicina. Como médico, vai exercendo sua profissão apenas de forma eventual, isto é, por diletantismo; também na vida seu procedimento é o mesmo, pois, em decorrência de uma sociedade desprovida de motivações científicas e culturais, não se fixa em nada. A adesão afetiva do narrado é maior quando fala de João da Ega, caracterizado como um revolucionário inofensivo. Essa visão simpática também aparece em outras personagens, como Afonso da Maia e Craft, modelo da fleuma britânica. Em sentido oposto, o narrador apresenta Damaso Salcede, pretenso sedutor de mulheres, de forma sarcástica e ainda Eusebiozinho Silveira, produto da debilidade moral e física do Romantismo. O filho de Pedro da Maia, após alguns encontros amorosos com a condessa Gouvarinho, conhece madame Castro Gomes (Maria Eduarda) e apaixona-se por ela. A amada rompe com Castro Gomes, com quem não era casada, e vai viver com Carlos da Maia. Considerase oficialmente sua “noiva”: ambos aguardam apenas a morte do avô Afonso para poderem se casar. Entretanto, um jornalista idoso, Joaquim Guimarães, entrega a João da Ega uma caixa de documentos a ele confiada por Maria Monforte em Paris, para que ele a encaminhasse a Carlos e à “irmã”. Carlos julgava que a irmã, como a mãe, estivesse morta há muito tempo. Ega lê os documentos e, aterrorizado, vai mostrá-los a Carlos: ele e sua amada, Maria Eduarda, eram irmãos. Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 73 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna Carlos da Maia, desnorteado, volta a encontrar-se com a irmã, numa atitude de incesto consciente. Surpreendido com o reaparecimento da neta, que surgia como amante do irmão, Afonso da Maia falece. A situação entre os irmãos só é solucionada após o funeral: Maria Eduarda, com a identidade esclarecida, vai para Paris e lá se casa; Carlos viaja para a América e o Japão, em companhia de Ega. Mais tarde, Carlos acaba fixando residência também em Paris, onde alia a ociosidade ao diletantismo. A Cidade e as Serras, é um exemplo de obra em que Eça nos apresenta a oposição entre o progresso urbano e vida simples do campo, mas ao mesmo tempo, nos mostra a gratuidade do progresso sem outra preocupação que a ostentação e a moda e o conhecimento da origem de Portugal. Assim, a volta do personagem a sua vila de nascimento é também o reencontro de Portugal com seu passado. A Ilustre Casa de Ramires vai fundo na discussão do passado de Portugal, em que o personagem Gonçalo Ramires ao se dedicar ao estudo de seu antepassado, o cavaleiro Tructesindo, vai também reaprendendo acerca dos valores que deveriam determinar a nação portuguesa e assim, o personagem, antes envolto em problemas aparentemente insolúveis vai aos poucos resolvendo-os, agora pela influência dos valores apreendidos com o antepassado. Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 74 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna Em O Crime do Padre Amaro, Eça de Queirós apresentanos um contexto de desregramento moral da igreja provinciana em Portugal, bem como discute a questão da vocação religiosa e a busca de status a partir do prestígio que o clero ostenta na sociedade portuguesa. O Primo Basílio, obra que já virou filme, minissérie de televisão...o drama amoroso dos amantes Luísa e Basílio é também o desencontro entre o espírito romântico da heroína e o espírito bom vivant e aproveitador de Basílio. A morte de Luísa e a tentativa de aproveitar-se indevidamente da situação da empregada Joana, vai também apresentando ao leitor os conflitos de classes bem como as questões que envolvem a moral e os costumes na sociedade de caráter vitoriano em Portugal. Neste sentido, os quatro autores aqui citados e brevemente comentados, nos permitem ver um Portugal no século XIX em que a decadência do império marítimo chega ao ponto de apresentar elementos que em pouco tempo causarão a queda monarquia e o início de uma república turbulenta e contraditória. Referências BRANCO, Camilo Castelo. Amor de Perdição. São Paulo, Ática, 1988. _________. Amor de Perdição. São Paulo, Ática, 1988. Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 75 Ler Portugal no Século XIX ... - Luna _________. A Brasileira de Prazins. São Paulo, Martin Claret, 2003. _________. Coração, Cabeça, Estômago. São Paulo, Martins, 2003. GARRETT, Almeida. Viagens Na Minha Terra. São Paulo, Melhoramentos, 2010. ________. O Arco de Sant’Ana. Rio de Janeiro, Ediouro, 1966 HERCULANO, Alexandre. Eurico, O Presbítero. São Paulo, Ática, 1989. _________. O Bobo. São Paulo, Melhoramentos, 1979. LUNA, Jayro. “O Jogo de Xadrez e as batalhas medievais de Eurico, o Presbítero: Anotações esparsas para uma análise formalista” em: LUNA, Jayro. Caderno de Anotações. São Paulo, Opportuno, 2005. p. 27-36. QUEIRÓS, Eça de. Os Maias. São Paulo, Saraiva, 2010. _________. A Ilustre Casa de Ramires. Martim Claret, 2006. _________. A Cidade e as Serras. Lisboa, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1989. _________. Literatura Comentada. São Paulo, Abril Cultural, 1979. Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 76