A CRÔNICA NOS PERIÓDICOS SULINOS NO SÉCULO XIX Rosa Cristina Hood Gautério1 Quando se trata da historiografia literária, a produção escrita em um determinado período vem a ser o objeto de relevância de investigação. Nesse intento, a circulação dos periódicos pela cidade do Rio Grande e Pelotas, no Rio Grande do Sul em meados do século XIX, preenchem páginas da história da crônica no Brasil, quando de sua relevância em textos narrativos entrelaçados com cenas e episódios da vida cotidiana que, apontando um caráter literário, perpassaram pelas sensações e emoções humanas naquele século. A busca que envolveu a pesquisa, “A crônica nos periódicos sulinos no século XIX”, assinalou um recorte temporal tomando a segunda metade daquele século com publicações que se configuraram, num estilo literário, na aproximação entre imprensa e literatura. As folhas que circulavam seguiam as tendências dos jornais da então capital brasileira atendendo ao universo de leituras, nas suas especificidades, o perfil do leitor daquele período. No primeiro momento, utilizou-se como suporte do material de pesquisa o acervo coletado a partir de dois projetos: “Dicionário de Autores de Rio Grande no século XIX”2, coordenado pelo professor Artur Emilio Vaz da FURG e “Literatura, jornal e cultura”: Autores pelotenses – 1851/1889, coordenado pelo professor Rildo Cosson, então da UFPEL. Compondo ainda o material analisado, o corpus disponível na Biblioteca Rio-Grandense. No item do material examinado, os jornais pesquisados compreenderam a região Pelotas e Rio Grande num período entre 1850 até 1882. São eles: na cidade de Pelotas: O Pelotense (1852 a 1854); Álbum Literário (1881 e 1882); Diário de Pelotas ( 1881 e 1882); na cidade do Rio Grande: Diário do Rio Grande ( 1 Mestranda em História da Literatura da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). O presente projeto tem por interesse aumentar o corpus de trabalho, reunindo, organizando e divulgando dados existentes sobre autores que ajudaram na formação e consolidação do sistema literário da cidade do Rio Grande ao longo do século XIX. 2 ISBN: 978-85-7395-211-7 1850, 1851, 1854 e 1857); O Rio-Grandense ( 1851 e 1854) ;O Echo do Sul (1859); e Maruí ( 1880). Nesses periódicos as crônicas se sustentavam em colunas específicas, ocupandose de assuntos econômicos, culturais, políticos e de interesses gerais, assinalando as tendências dos jornais do centro político do país, principalmente do Rio de Janeiro. Com isso, a pequena elite rio-grandense buscava sofisticar seus hábitos numa prática que se constituiu consumidora de cultura, principalmente pelas seções folhetinescas. O “folhetim” foi a grande sensação no jornalismo do século XIX. Composto de variedades, a seção tomou as páginas dos jornais do país, não sendo diferente nos periódicos sulinos. Tais variedades se multiplicaram em colunas como “Notas de Arte”; “Fatos diversos”; “Balanço literário”; “Revista Semanal”; “A semana”; “Comentários da Semana” entre múltiplas titulações que correspondiam a curiosidade de uma faixa de leitores que glosavam a vendagem dos jornais. O folhetim, então, constituía-se num “espaço vazio”, lembrando a concepção a que lhe dá a professora Marlyse Meyer que justifica o vazio enquanto espaço sem fronteiras “aberto a qualquer recheio (...) livre o conteúdo, como é livre e sem impostação da linguagem que o expressa”. (MEYER, 1992, p.105) Mas falemos de crônica ou folhetim? Sob o foco das “variedades”, o folhetim se transformou em coluna de sucesso em que o acontecimento era dotado aos serviços de artigos de consumo na forma de “assuntar” o cotidiano em tempo livre. Tais assuntos moviam-se entre críticas teatrais e literárias, também política que traziam notícias partidárias e, principalmente, o mundanismo social; mundanismo esse não concorrendo ao sentido pejorativo que conhecemos hoje, mas na época destinavam-se as seções sob as movimentações sociais como os concertos, festas, baile, reuniões em casas de cidadãos ilustres da sociedade, etc.. A esse etcétera refiro-me a variedade de textos que perpassavam por um território livre deflagrando a miudeza do cotidiano abrangendo um misto de assuntos destinados a oferecer um olhar breve ao leitor acostumado a deter-se em notícias “sérias” que ocupavam grande parte do periódico. Nos folhetins as crônicas eram sinônimas de “fragmentos do cotidiano” narrados por escritores que lidavam com memórias e circunstâncias diárias numa forma de pensar a sociedade onde viviam; fragmentos esses que assumiram formas características e definiram o surgimento da crônica como estilo literário no Brasil. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 310 Lidar com fragmentos é pensar nos periódicos rio-grandenses buscando na memória das páginas folhetinescas a crônica no seu movimento original permitindo atualizar o discurso da historiografia literária. Nesse modo, a imprensa registrava a vida urbana incorporado pela linguagem coloquial que apontava uma cumplicidade entre leitor e jornalista relatando a vida naquelas pequenas sociedades do século XIX. Nesse contexto, na cidade de Pelotas, o primeiro a circular foi o jornal O Pelotense. Um periódico “Comercial e Político e de Notícias”, com edições as terças, quintas e sábados tendo como editores Candido Augusto de Mello e José Antônio da Silva. O periódico assegurava colunas de informação e entretenimento para os seus leitores. Assim, a crônica estava também presente às folhas publicadas, mas não com a mesma freqüência dos jornais da capital. Das edições examinadas, de 1852 a 1854, em 1853 datada em 22 de março consta uma crônica, na forma de uma reflexão, sobre o casamento, na coluna “Litteratura” sob o título: “A escolha de uma boa esposa” e assinada por A.J.C.S.J: Um dos negócios mais importantes para bem estar e felicidade do homem, é a boa e acertada escolha d’aquella que vai contribuir para perpetua companhia de sua vida.Portanto nada há mais importante, e digo de meditação. (...) Enfim com quem casarei? Com moça? Podera não ser me conveniente. Com viúva? Que há de aturar modo senhoril? (...) Com rica? Não há cousa mais insuportável! Com pobre? Essa não me pode ajudar.(...) Não é de certo assim que devemos discursar, pois que assim fala bem mostra, que tem mais tendência para o celibato (...) que seja pia, pudica (...) ou boa. E quem achar uma neste caso, não desprese o conselho, ponha-a a bom recado, e bem diga a sua sorte. Depois, em 07 de dezembro de 1854, a crônica apresentou-se sob forma de divulgação de um espetáculo, típico da gênese francesa, feito pela companhia Lyrica, chamado “Ernani”. O jornal homenageia João Caetano dos Santos pela reentrada nos palcos, segundo o folhetim, aplaudiu de pé pelo público. Cobrindo a importância do espetáculo, o jornal apresenta ainda, todas as manifestações de homenagens transcorridas durante o evento como o soneto e uma ode que foram recitados em homenagem ao ator. Outro divulgador da imprensa foi o Álbum Literário que se instituía “Periódico de Recreio e Instrução” e era de propriedade de Virgilino Rodrigues de Azevedo. Em 1º 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 311 de março de 1875 fazia alusão ao corte das crônicas devido ao crescimento do número de colaboradores, entretanto até a edição de 31 de maio daquele ano, continuava a coluna que se chamava “Litteratura” com a publicação das mesmas. Lê-se em 03 de maio: Palavras de um louco Ri!ri, turba insensata, que julgas que o mundo é um Éden!... Ri! Emquanto que eu sabendo bem equilibras as peripécias mundanas nellas não acredito!... Pobres tolos!varios são elles! Já tive amores, crenças, fé e bastante resignação para supportar os vaivens da vida! Mas Ella, a ingrata G...matou-me o cérebro, e fez do meu espírito o seu brinco de criança. Ah!G..hoje te agradeço!Ah!G..hoje te abençôo e bemdigo!... Agora vejo o mundo e as creaturas debaixo de um só prisma!!...(...) Triste humanidade!... Não compreende a vida!(...) Sabeis o que é felicidade?!(...) Oh! Insensatos, não vêem que meus lábios secam-se por falta de vinho?!...(...) Com a taça cheia, não há dores que se não esqueça!(...) Entrepida é toda a vida que não se circunscreve no circulo extenso de goso, do prazer e do deboche!!... O texto trata de um lamento de quem não tem mais os valores de outrora quando observa que o mundo não está tão bom como antes de amar “G”: “já tive amores, crenças, fé e bastante resignação para suportar os vai-vens da vida!Mas Ella, a ingrata G matou-me o cérebro”. Geralmente as crônicas não tinham autoria e se apresentavam num tom bastante poético: “Sabeis o que é felicidade?! Oh! Insensatos (...) Entrepida é toda a vida que não se circunscreve no circulo extenso do gosto, do prazer e do deboche!!!”; havendo, quase sempre, uma representação muito particular sobre o fato, aproximando-se bastante das crônicas encontradas nos jornais do centro do país. Mais um jornal atuante na sociedade foi o Diário de Pelotas que, desde o início das atividades, apresentou vários proprietários. No período pesquisado, entre 1881 a 1882, consta então o proprietário Ernesto Augusto Gernsgross. O periódico apresenta em 20 de março de 1881, nas seção folhetim em página 1, a crônica “Um aleijão social” assinada por Hugo Leal que discorre sobre as condições sociais dos mendigos. No dia 2 de abril, na mesma seção, apresenta a crônica “reflexões sobre o casamento” assinada 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 312 por Rock Júnior. Em 07 de abril, a crônica registra sobre a vida do autor Victor Hugo, assinada de novo, por Hugo Leal. Em maio, o folhetim apresenta o programa para concerto oferecido à Biblioteca Pública. Depois somente no mês de agosto reaparecem os folhetins. Data de 11, desse mês, uma crônica assinada por Manuel Roussado e no dia 17 uma crônica que versa sobre óperas, por Nahil. No ano seguinte, em 1882, em 22 de maio, o folhetim apresenta a crônica “Remorso vivo” que comenta a morte de um escravo assassinado na cidade. Na cidade de Rio Grande, os cronistas se punham a serviço da imprensa que se destacou tanto pela qualidade, quanto pela quantidade do número de periódicos. Foi uma das primeiras cidades gaúchas a possuir jornais, sendo superada por Porto Alegre e seguida pela cidade de Pelotas. Era o ano de 1859 e o jornal O Echo do Sul que circulava de terça a domingo, contava com quatro folhas e tinha como redator Pedro Bernardino de Moura. A partir de 15 de maio daquele ano, encontrava-se uma coluna ocupando a seção dos folhetins, página 1, denominada “Revista Semanal” e, às vezes intitulava-se “Revista Teatral”. Mantendo o tom ameno e a preocupação de chamar a atenção de leitores tão heterogêneos ”Lince”, o autor, escreve em crônica de 29 de maio sobre a responsabilidade de assinar um gênero ainda pouco conhecido: Nós porem aqui ainda vacilhamos se o nosso folhetim corresponde as exigências (...) estamos perplexos entre o riso, e a seriedade.(...) Vamos assumir um caráter sizudo, glacial e austero para que o mundo visionário imagine que nós possuímos a inicial costella britannica!(...) A tarefa em escrever no Rio Grande uma análise crítica ás ocorrências que surgem no decorrer dos dias da semana, senão é ardia, pelo menos, não é fácil!(...) Raciocinemos: No Rio de janeiro aonde se aspira mais força vital, aonde a vida borbulha incandescente nos seres orgânicos, e inorgânicos, há opportunidades em que as Revistas Semanaes parecem terem sido traçadas com o pé no estribo. No Rio Grande, mal desponta na imprensa um escripto, passa-se um mero golpe de vista pelos soldados nas pelejas do jornalismo, e por fim (...) O certo é que a esterilidade do acontecimento poderá produzir a desharmonia entre a epigraphe e a matéria dos folhetins.(...) E a semana, e a semana?! Interrogatório ingênuo que alguns caros leitores se dignarão fazer-nos. Perdão, minhas senhoras, o cavaco do principio do folhetim, é o transumpto da esterilidade das o corrências hebdomadárias. Disse nos o que nos era mister para completar o folhetim, porque tinha-nos forçosamente que dizer alguma cousa. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 313 A relação íntima com o leitor “interrogatório ingênuo que alguns caros leitores se dignarão fazer-nos”, ajuda a compor ao que parece o aborrecimento do escritor na busca da árdua tarefa; tarefa em que “ a esterilidade do acontecimento poderá produzir a desharmonia”, pois para acompanhar “os dias da semana (...) porque tinha-nos forçosamente dizer alguma coisa” seriam muito mais fáceis na cidade do Rio de Janeiro onde “aspira mais força vital” que certamente compõe-se sempre de muitas novidades sociais a serem prestigiadas pelos cronistas. Escrever em folhetins era ainda um caminho desconhecido: “Nós porem aqui ainda vacilhamos se o nosso folhetim corresponde as exigências... estamos perplexos entre o riso, e a seriedade” e acima de tudo, os escritores que deveriam cumprir a função de historiadores da semana era uma “ tarefa de escrever no Rio Grande uma análise crítica às ocorrências que surgem no decorrer dos dias...senão é ardia, pelo menos não é fácil”. A seção dos folhetins era editada somente aos domingos até 19 de junho sempre assinada pelo mesmo autor, quando se torna irregular tanto do dia , quanto da sua publicação ou não, mas a coluna é editada só até 7 de agosto em que o escritor queixa-se do desprestígio dos homem das letras que é visto como um “rabiscador”: (...) No baile, se é que nesta terra se convida os cultores das letras para baile, é significativamente indicado como no centro das praças, ou no perpassar das ruas.(..) Nem pode mostrar a perna fina nas cortezias d’uma contradança, porque ,se a mostra, immediatamente surge d’um ângulo da sala o pai da moça, que lhe dá o braço, e os ouvidos desta lhe diz com tom imperioso, “_ escolha melhor os seus pares” e dito isto muitas vezes é a conseqüência da cara metade deste ter-lhe dito energicamente :_” Repara: a nossa filha está dançando com um litherato, um poeta, um rabiscador de jornaes em fim!”(...) A arte é nobre, é grande, mas a arte do século é somente aquella que converte o fumo da glória em pilhas de metal (...) A alma e o coração educam-se. Houve já que nos dissesse que as pessoas, que tiveram a aventura de ser educadas com esmero, eram românticos. (...) Mas se alguns dos nossos leitores, os menos piíssimos entendem que é um princípio de loucura escrever sobre matérias abstratas, não pensem que depomos a Penna e aberrando do stylo quase romântico, por effeito da esperesa da censura vamos descer até ao limbo escuro das trivialidades. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 314 O cronista-folhetinista queixava-se do comportamento da sociedade que via o literato “apenas um rabiscador de jornaes” que talvez não fosse papel de jornalista, pois ao homem das letras cabia a “loucura de escrever sobre matérias abstratas”. Mas, alertava o escritor: “não pensem que depomos da Pena (...) por effeito da esperesa da censura vamos até ao limbo escuro das trivialidades”. Jornalista ao seu tempo, o cronista estava atento a narrar às singularidades sociais fazendo da observação o modo de pensar a sociedade em que pertencia: “A arte é nobre, é grande, mas a arte do século é somente aquella que converte o fumo da glória em pilhas de metal”. O Maruí, “Periódico Ilustrado, Satírico e Recreativo”, foi mais um jornal de destaque em Rio Grande e, em 1880, tinha quatro folhas e circulava uma vez por semana. Em 4 de Janeiro, o jornal apresentava uma coluna chamada “Chronica”, mantendo o fito da prosa na qual um autor denominado “Dr. Bristol”, explica o propósito do “novo gênero” e o fato de tornar-se folhetinista, já que era um químico: Esta não acontece ao diabo, com licença de Exas. Pois eu o mais celebrado autor de panacéias o chimico transcendente, cuja reputação esta acima, muito acima das affamadas cebolas do Egypto, a escrever semanas!!!! Horror, trez vezes horror! (...) Hoje só não escreve para o publico quem tem demaziado juízo. Há por aqui muitos folhetinistas que não se fizeram nasceram feitos. O gênero é novo e a tolerância de VV.EExs. hão de me animar.(...) Vamos entrar em scena. A semana não tem corrido tão inútil como disse.Foi uma figura de rhetorica que V.V. EExs. Desculparão. Pelo contrário, tem havido o diabo a quatro com licença de VV.EExs. Bailes, espetáculos, passeios, retratos, preces, festas de natal(...) Então a terminar as festas e breve voltaremos ao nosso antigo estado d pasmaceira e incipidez. Ah! Exmas! Que saudosas épocas de regosijos íntimos, de enthusiasmos francos e alegres expansões. Parece-me que ainda estou a saborear aquellas ceias delicadas e abundantes, regadas de bons vinhos, na convivência de nossa família ou na companhia de bons amigos, alegres, espirituosos e tagarelas!(...) Que VV. EExs. Gosassem as mesmas alegrias é o que lhes desejo... A palavra escrita tem o tom de “rabiscadela”, isto é, a linguagem espontânea de quem escreve por acaso: “Esta não acontece ao diabo...vamos entrar em cena” misturase, no mesmo tempo, ao tom da informalidade com que dirige-se ao leitor “..o chimico transcendente, cuja reputação está acima das affamadas cebolas do Egyto, a escrever 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 315 semanas!!!” . Com isso, todo o movimento de ação da palavra passa por um processo de quem escreve “à toa”, pois ali é uma tarefa de folhetinista e não de um químico. Entretanto, tenta fortalecer o laço com seu leitor “O gênero é novo e a tolerância de VV.EExs. hão de me animar”. A mesma autoria assina todas as demais crônicas encontradas nos dias de Janeiro, 11, 18 e 25, mas os meses a que se seguem até dezembro, não mais aparece. Nos dias 23 e 30 de janeiro de 1881, uma seção sem autoria, intitulada: “Chronique” lança mão de comentários sobre acontecimentos sociais, caracterizada em pequenas crônicas; contudo, desaparece nos meses seguintes. Em novembro, o folhetim apresenta nova coluna sob o título “Arabescos”, cuja autoria intitula-se Machbet, provavelmente um pseudônimo inspirado nas histórias shakespereanas. Na primeira página, pequenas e múltiplas crônicas distraem e informam os leitores desse periódico e em 20 de novembro, o autor buscava a consciência um problema social da época: a escravidão. Ao mesmo tempo, apresentava a velha preocupação sobre a responsabilidade e sua “espinhosa tarefa” em assinar uma coluna diária. Fato comum nas seções que dividiam espaço com vários assuntos. Lê-se: Caríssimos Leitores: Convidado por differentes vezes pelo nosso patrão Thadeo, para rabiscar alguma cousa, sempre me tenho esquivado, porque, não só falta-me o tempo para isso, como também arreceio-me muito, quando penso, que vou escrever para vós, amáveis e idolatrados leitores (de ambos os sexos). Mas hoje, fiz das tripas coração, e ponho de parte as razões imperiosas que me tem obstado do patrão da casa, vou aceitar esta modesta, mas espinhosa tarefa (...). Dito isto, entro no exercício de minhas funções, com vossa licença. A’um dos dias da semana passada vi em alguns jornaes da terra que o Sr. Louzada, tinha generosamente concedido carta de liberdade, sem ônus a um seu escravo, maior de 60 annos. Achei graça na notícia e na apreciação, mas, ao mesmo tempo, repugnou-me ver profanada a palavra generosidade , applicada a um procedimento que, não só nada tem de generoso como também nos prova a mesquinhez daquelle que, depois de ter recebido os serviços de uma creatura humana durante o tempo que Ella tinha forças para lho prestar e agora que se acha na decrepitude, falta de forças, e por conseqüência impossibilitada de presentar mais serviços, dá-lhe a liberdade, para aumentar as fileiras, já numerosas, dos mendigos que infestão as ruas da cidade diariamente. Não conheço o Sr. Louzada, nem desejo conhecimento, e por isso, esta minha apreciação é baseada apenas no que ai nos jornaes da terra. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 316 Num primeiro momento, observa-se um jornalista que, como tal, estava intimidado com o convite em assinar uma coluna e, de certa forma, não se sentia preparado: “arreceio-me muito, quando penso, que vou escrever para vós”. Há de se verificar a fragilidade entre este e outros autores no trato com o novo gênero, pois de certa forma era uma responsabilidade que fugia ao ofício de um jornalista. Em princípio, o fato de se aventurar a circular entre assuntos variados mantendo uma linguagem leve e informal “fiz das tripas coração”, era um desafio constante para profissional. Desafio, sobretudo de cativar um leitor ávido e aberto a novidades. Apresentando um eu comprometido com o fato em que narra a alforria de um escravo velho e doente, Machbet propõe certa crítica sobre a palavra “generosidade”, que era o tom que lhe cabia a crônica “no exercício de minhas funções”. Essas eram o tom que as distinguia, pois enquanto umas tratavam de um registro mais crítico e reflexivo, outras cabiam a ironia e o humor. A coluna continuou a ser escrita durante o mês de dezembro e na seção do dia 25, Machbet expõe aos seus leitores a necessidade de superar a si mesmo no ato da criação tendo que circular entre os acontecimentos e as peripécias da vida. São elas os objetos de criação de uma crônica, assomando ao texto informal, ficcional ou não que se utiliza de todos os recursos de linguagem numa “porção determinada de palavras gramaticalmente arrumadas”, que registra, num espaço conhecido, o testemunho da miudeza da vida e a “obrigação” de partilhar e fortalecer laços com o leitor. Assim ele escreve: A mais árdua, a mais difficil tarefa, a mais espinhosa, a mais insipita, a mais exquisita, a mais tola das tarefas, é a de escrever para vós leitores, é a de dar-vos, semanalmente, uma porção determinada de palavras, grammaticalmente arrumadas, representando idéias, pensamentos, censuras, elogios, commmentarios ou apreciações. (...)porque entã,o temos que lançar mão da imaginação para podermos desquitar-nos do nosso compromisso. A imaginação!... A imaginação, quando não é Alexandre Dumas, Poson, Verne, Montepin, Castello Branco e outros d’este quilate, é fraco ou quase sempre cahimos nos logares communs do insipidez, semsaborias ou totima. Estas reflexões foram-me suppridas, n’este momento o ver-me a braços, com a difficuldade de achar assumpto para encher o espaço que o patrão Thadeo concede ao seu Marui, ao humilde Machbet, que semanalmente vos importuna com os seus arabescos. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 317 Em 1882, os “Arabescos” então na página 4, continuavam circulando esporadicamente pelos acontecimentos do dia. Em 5 de março, o autor, após introduzir com um “Amigos leitores”, comenta que “Há bastante tempo que não tenho a honra de conversar com S.S e, para fallar a verdade tenho tido minhas saudades, porque como sabem, o ‘costume faz a lei’ ou o hábito é a segunda natureza”. Machbet considera escrever nos Arabescos “a mais exquisita das tarefas”, pois conjuga o lirismo como uma “invenção desnecessária” que obriga ao compromisso da “Imaginação!... A imaginação”, fazendo queixumes ao leitor: “porque então, temos que lançar mão da imaginação para podermos desquitar-nos do nosso compromisso” referindo-se ao compromisso um jornalista. Depois dessa data a coluna não aparece mais. Para concluir essa pequena pesquisa, ainda que tenha se limitado a um número reduzido de jornais, procurou-se fazer um recorte ao longo de três décadas do século XIX, motivo pelo qual com o desenvolvimento da imprensa começaram a aparecer nos jornais do Brasil textos muito parecidos com os praticados nos folhetins franceses. Dos jornais pesquisados, o Diário do Rio Grande e O Rio- Grandense, nas respectivas datas examinadas, não havia uma seção de comentários definia como a crônica que se produzia na época. Faz-se importante compreender o conceito de literatura nesse período, pois os jornais que se enunciavam “literário”, “Científico”, “Recreativo”, “Instrução”, “Satírico” ou “Político”, o termo “literatura”, explícito ou não, era sinônimo de cultura englobando um conjunto amplo de escritos. Portanto, independentemente de ser um jornal político, científico ou qualquer outro preceito, literatura vinha sempre associada ao caráter informativo, recreativo, humanístico, etc. que era característica própria do jornal, configurando-se assim, uma aproximação entre imprensa e literatura. O periodismo que por diferentes épocas atenta para a complexa relação entre literatura e sociedade construídas pela história do jornalismo, toma para si o autêntico papel que, oferecendo condições materiais, foi testemunho legítimo como essência pragmática na vida social brasileira, não só como porta-voz desta, mas também como responsável pela afirmação de um público leitor de literatura. Nas páginas diárias, o cronista representou um fenômeno de aceitação popular e foi ele o elo de junção entre o jornalismo e a literatura que definiu posteriormente a ratificação da crônica como estilo 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 318 literário particularmente brasileiro que se consolidou num dos gêneros mais lidos na atualidade. Mais do que a pretensão de comprovar a participação dos periódicos do sul na formação e consolidação da crônica, resgatando textos considerados importantes por serem documentos fundadores de um gênero literário dentro da História da literatura brasileira, a pesquisa registrou, através das crônicas, o aspecto social de uma época reconstruída dia-a-dia. Com isso, observou-se a formação de um público leitor cativo de uma coluna que trazia o testemunho de um tempo; o tempo do século XIX nas sociedades do sul do Brasil. RESUMO A presente pesquisa visa promover o resgate de crônicas nos periódicos do século XIX, por meio da análise de jornais de Pelotas e Rio Grande, num período que se estende entre 1850 até 1880, assinalando o papel relevante dos jornais sulinos no momento de fomentação do gênero. Configurando-se na estreita ligação entre imprensa e literatura, os jornais e folhetins que circulavam na região seguiam as tendências dos jornais da então capital brasileira. Mais do que a pretensão de comprovar a participação dos periódicos do sul na formação e consolidação da crônica, resgatando textos importantes por serem documentos fundadores de um estilo literário brasileiro, a pesquisa registrou, através das crônicas, o aspecto social de uma época reconstruída dia-a-dia. Com isso, observou-se a formação de um público leitor cativo de uma coluna folhetinesca que trazia o testemunho de um tempo; o tempo do século XIX nas sociedades do sul do Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Crônica. Periódicos sulinos. Século XIX. ABSTRACT The present research it seeks to promote the ransom of chronicles in the newspaper of the century XIX through analyses of newspapers to Pelotas and Rio Grande City in a period that extends among 1850 to 1880 marking the importance paper of the newspapers of the south in the moment of fomentation of the gender. Being configured in the narrow connection between the press e literatures, the newspapers and pamphlets that circulated in the area it fallowed the tendencies of the Brazilian captain’s newspapers. Plus than the pretension of proving the participation of the newspapers in the South in the formation and consolidation of the chronicles, rescuing important texts of they be documents of Brazilian literary style, the research registered the social aspect of a time built day by day. Than it was observed an reader captive public of the newspaper that brought the testimony of a time, the time of the century XIX in the society of the South of the Brazil. KEYWORDS: Chronicles. Newspapers oh the South. Century XIX. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 319 REFERÊNCIAS ALVES, Francisco das Neves. A pequena imprensa rio-grandina no século XIX. Rio Grande: FURG, 1999. BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. CESAR, Guilhermino. Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul 1605-1801.Porto Alegre, edições da faculdade de filosofia da UFRGS,1969. COUTINHO, Afrânio. Crítica e Teoria Literária. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. GALVANI, Walter. Crônica: o vôo da palavra. Porto Alegre: Meditação, 2006. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MOISÉS, Massaud. A crônica. In: MOISÉS, Massaud. A criação Literária. Prosa. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 245-258. MARTINS, Dileta A. P. Silveira. 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