UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO LICENCIATURA PLENA EM MÚSICA DUANA CASTRO SOARES ENSAIO SOBRE METODOLOGIAS DE ANÁLISE DE “FILMES MUSICAIS PSEUDO-BIOGRÁFICOS” RIBEIRÃO PRETO 2014 DUANA CASTRO SOARES ENSAIO SOBRE METODOLOGIAS DE ANÁLISE DE “FILMES MUSICAIS PSEUDO-BIOGRÁFICOS” Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade de Ribeirão Preto UNAERP, como requisito para a obtenção do título de Licenciado em Música. Orientador: Prof. Dr. Érico Artioli Firmino RIBEIRÃO PRETO 2014 Ficha catalográfica preparada pelo Centro de Processamento Técnico da Biblioteca Central da UNAERP - Universidade de Ribeirão Preto S676e Soares, Duana Castro, 1987Ensaio sobre metodologias de análise de "Filmes Musicais Pseudo-Biográficos" / Duana Castro Soares. - - Ribeirão Preto, 2014. 22 f. Orientador: Prof. Dr. Érico Artioli Firmino. Monografia (graduação) - Universidade de Ribeirão Preto, UNAERP, Licenciatura Plena em Música. Ribeirão Preto, 2014. 1. Filmes musicais. 2. Análise cinematográfica. 3. Trilha sonora. I. Título. CDD 780 Ao meu pai e à minha mãe. AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Professor Dr. Érico, pelo ensinamento, pela amizade e pela generosidade com que conduziu esse trabalho. Aos professores e aos funcionários da instituição pela disponibilidade que sempre se colocaram. Aos amigos que fiz no curso e levo pra vida, Guilherme, Gabriel Codo e Bia, em especial, ao Moisés pelo apoio e pela paciência. Ao meu irmão Huriel e aos meus pais, João e Célia, responsáveis por qualquer êxito e vitória da minha vida. “Cuidado para que suas palavras sejam melhores que o silêncio”. Provérbio indiano RESUMO É frequente no contexto cinematográfico abordarem a temática musical como os casos dos filmes Os Desafinados, New York, New York e tantos outros. Este ensaio teve como objetivo levantar e estudar metodologias para análise de filmes que tratem de artistas ou bandas criadas por uma narrativa cinematográfica, mas com aspectos históricos. A presente pesquisa propôs uma classificação para esse gênero específico: “Filmes Musicais Pseudo-Biográficos”. Foram levantados os sistemas conceituais e as metodologias que aproximam as áreas cinema e história, música e história, e música e cinema, para enfim, chegar a um protocolo sistemático próprio para análise de “Filmes Musicais Pseudo-Biográficos” a partir de quatro eixos: análise do contexto histórico do filme, no filme, fílmica e da trilha musical. Palavras-chave: Filmes musicais; Análise cinematográfica; Trilha sonora. ABSTRACT It is frequent in the cinematic context one addressing the musical issue, such as the cases of the films Os Desafinados, New York, New York, and many others. This essay aimed to rise and study methodologies for analysis of films dealing with artists or bands created by a cinematic narrative, but with historical aspects. This research proposed a classification for this particular genre: "Pseudo-Biographic Musical Films." Conceptual systems and methodologies which draw near the areas Cinema and History, Music and History, and Music and Cinema were risen in order to finally arrive at a systematic protocol proper to analysis of such "Pseudo-Biographic Musical Films," from four axes: analysis of the historical context of and in the film, filmic, and of soundtrack. Keywords: Musical films; Cinematic analysis; Soundtrack. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10 1. APROXIMAÇÕES ENTRE ÁREAS ............................................... 12 1.1 HISTÓRIA E CINEMA ................................................................................. 13 1.2 MÚSICA E HISTÓRIA .................................................................................. 15 1.3 MÚSICA E CINEMA ..................................................................................... 15 2. PROPOSTA METODOLÓGICA DE ANÁLISE DE “FILMES MUSICAIS PSEUDO-BIOGRÁFICOS” .................................................................................. 18 2.1 COLETA E ARQUIVOS .................................................................................. 18 2.2 ABORDAGENS .............................................................................................. 19 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 22 INTRODUÇÃO É frequente no contexto cinematográfico abordarem a temática musical. É o caso do filme Os Desafinados (Walter Lima Jr., Brasil, 2008)1 que narra a história da Bossa Nova pela perspectiva dos músicos Joaquim (Rodrigo Santoro), Davi (Ângelo Paes Leme), PC (André Moraes) e o cineasta Dico (Selton Mello). Os jovens formam um grupo musical chamado Os Desafinados e partem para Nova York em busca de sucesso. Embora os músicos e o grupo não tenham existido, o contexto em que a narrativa está inserida tem aspecto histórico. Além disso, as músicas compostas especialmente para o filme por Branca Lima e Jair Oliveira se apropriam de clichês do estilo da bossa nova dos anos 1950 – 1960. Seguindo a mesma linha, New York, New York (Martin Scorsese, Estados Unidos, 1977) narra a história das big bands no período pós-guerra do ponto de vista dos personagens Jimmy Doyle (Robert de Niro), saxofonista, e da cantora Francine Evans (Liza Minelli). O casal se conhece no dia em que acaba a Segunda Guerra Mundial e depois de algumas tentativas de Jimmy, os dois ficam juntos. A partir deste momento, o roteiro desenvolve acompanhando os altos e baixos da carreira musical e da vida pessoal do casal. A contextualização da trama representa bem a época em que se passa a narrativa, da ascensão dos espetáculos musicais e das big bands, período de festas no pós-guerra, até seu declínio. Dentre outros filmes no mesmo estilo estão Orfeu Negro (Marcel Camus, Brasil, 1959), Poucas e Boas (Sweet and Lowdown, Woody Allen, Estados Unidos, 1999), A Might Wind (Christopher Guest, Estados Unidos, 2003), Isto é Spinal Tap (This is Spinal Tap, Rob Reiner, Estados Unidos, 1984) e Quase Famosos (Almost Famous, Cameron Crowe, Estados Unidos, 2000). Exemplos de filmes como esses são conhecidos popularmente como um tipo de filme musical. Filme Musical é uma classificação abrangente para filmes que tenham a narrativa conduzida por canções. Segundo Souza et al (2014, site RUA), “filme musical é um gênero de filme, no qual a narrativa se apoia sobre uma sequência de músicas coreografadas, utilizando música, canções e coreografia como forma de narrativa, predominante ou exclusivamente”. A partir de 1927, foi lançada comercialmente a película cinematográfica com som acoplado e sincronizado. A partir daí, surgiram as primeiras produções do gênero, adaptadas das peças teatrais da 1 Sobre os títulos de filmes, será sempre apresentado o título da versão brasileira, seguido do título original, nome do diretor, país de origem e ano de lançamento. Broadway nos Estados Unidos e do teatro de revista no Brasil. O gênero Filme Musical não implica, necessariamente, em se ter uma temática musical. No caso de Cantando na Chuva (Singing in the Rain, Stanley Donen e Gene Kelly, Estados Unidos, 1952), a história se passa nos bastidores dos estúdios de Hollywood no período de passagem do cinema mudo para o cinema falado. Moulin Rouge – amor em vermelho (Braz Luhrmann, Austrália e Estados Unidos, 2001) conta a história da casa de espetáculo parisiense - título do filme - no início do século XX. Além de tantos outros do gênero musical, estão Os Miseráveis (Les Miserables, Tom Hooper, Reino Unido, 2013), Chicago (Rod Marshall, Estados Unidos, 2003), Flashdance (Adrian Lyne, Estados Unidos, 1981). Ainda no que diz respeito ao estilo em que os filmes são apresentados, têm-se também as formas de outros gêneros cinematográficos diferentes do musical, como comédia, drama, ou documentário, como no caso do filme This is Spinal Tap: O filme apresenta-se como documentário só para revelar-se uma fabricação ou a simulação de um documentário. Se levarmos a sério essa autodescrição, acreditaremos que Spinal Tap é uma banda de rock de verdade. Como uma banda tinha de ser criada para o filme, exatamente como uma “bruxa de Blair” teve de ser criada para o filme, não estamos errados. O que talvez não percebamos é que nem a banda de rock nem a bruxa existiam antes da produção desses filmes. Tais obras passaram a ser chamadas de mockumentaries (falsos documentários) ou “pseudodocumentários'” (NICHOLS, 2005, p. 50).2 A importância deste tipo de filme está mais no que não é dito, mas está implícito, e menos no que está representado. “A ironia implica não dizer o que se quer dizer, ou dizer o oposto do que se quer dizer. Assim como o uso irônico das convenções jornalísticas da televisão dá uma pista importante de que This is Spinal Tap é um pseudodocumentário (…)” (NICHOLS, 2005, p. 87). Este tipo de filme se apropria de diferentes clichês, tanto de aspectos musicais para criar uma banda com as mesmas características de uma existente, quanto dos próprios clichês cinematográficos para criar uma obra fílmica próxima ao gênero que se deseja imitar. É possível também classificar esse tipo de cinema de filmes históricos, já que retratam uma época determinada com aspecto geral da historiografia. Segundo Napolitano (2010, p. 246), “trata-se de um outro olhar sobre o cinema, como fonte e veículo de disseminação de uma cultura histórica, com todas as implicações 2 O termo cunhado por Nichols é anterior a reforma gramatical e, portanto, “pseudodocumentário” se escrevia junto, hoje seria escrito “pseudo-documentário'. ideológicas e culturais que isso representa”. Ou podem ser entendidos ainda como filmes biográficos visto que este tipo de produção se preocupa em tratar da história particular de um personagem. Estes dois gêneros históricos e biográficos geralmente se confundem e se misturam. Todavia, a classificação de gêneros cinematográficos não delimita a temática do filme. O presente trabalho sugere a classificação de gênero aliado a temática. Foi estabelecido o recorte de filmes que tratem de temática ligada à história de períodos musicais, apresentados por artistas ou bandas fictícios. A partir deste recorte, sugere-se a classificação “Filmes Musicais Pseudo-Biográficos”. Tal classificação foi estudada ao longo desse trabalho e foi verificada se é aplicável ou não. Para tanto, este ensaio objetivou levantar e estudar metodologias para análise de filmes levando-se em consideração sua temática específica, “Filmes Musicais Pseudo-Biográfico”. 1. APROXIMAÇÕES ENTRE ÁREAS A presente pesquisa investiga as aproximações entre as áreas: história e cinema, música e história e música e cinema. Mais especificamente, a partir da combinação história e cinema, esta pesquisa propõe investigar metodologias de análise do contexto histórico do filme e metodologias de análise do contexto histórico no filme. A partir das combinações música e história, bem como música e cinema, esta pesquisa propõe investigar metodologias de análise fílmica e de análise da trilha musical. Não se pretende julgar a qualidade dos filmes ou das músicas usadas no filme. A questão centra-se na busca de procedimentos de análise do filme e da música pela perspectiva histórica. Além de entretenimento, os filmes são fontes de pesquisa e informação. E é nestes últimos aspectos que esta pesquisa enfoca a fim de contribuir para estudos da história da música popular a partir de um novo objeto, o filme de ficção, visto que mesmo um filme que trata de personagens fictícios apresenta algum aspecto histórico. 1.1 HISTÓRIA E CINEMA O historiador Le Goff (2003) diferencia as abordagens possíveis da disciplina de História. A este estudo interessa duas delas: as ações realizadas pelos homens e a narração desses acontecimentos. Tais aspectos aproximam a história do cinema. O autor desenvolve ainda conceitos de documento e monumento que são pertinentes para reiterar a posição da mídia e sua importância na constituição de lugar de memória. O autor afirma que, para conservar traços do passado, criam-se documentos/monumentos: De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores (2003, p. 525). O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação voluntária ou involuntária, já o documento é um produto da sociedade que o fabricou, segundo as relações de forças que aí detinham o poder. A intervenção do historiador que escolhe o documento, não é uma posição neutra. Existe aí, um juízo de valor para atribuir, eleger ou omitir informações, que pode ser feito de forma consciente ou inconsciente. Pode ser feito um paralelo entre cinema e documento, e história e narrativa. O cinema é um documento, visto que há uma intencionalidade na sua construção, mas também pode tornar-se um monumento, já que é um material onde se perpetua uma recordação. A partir deste conceito, pode-se indagar: qual história, no caso proposto, dos Filmes Musicais Pseudo-Biográficos e, portanto, qual conceito de história está sendo selecionado para ser representado pelo cinema. Marc Ferro é um dos responsáveis por incorporar o cinema ao fazer histórico. O professor Eduardo Morettin (2003, p. 12) explica que “para Ferro, o cinema é um testemunho singular de seu tempo, pois está fora do controle de qualquer instância de produção, principalmente o Estado. Mesmo a censura não consegue dominá-lo”. De acordo com Marc Ferro (2010), o cinema é agente e fonte da história. O cinema se baseia nos acontecimentos para criar suas ações, mas ao mesmo tempo seu conteúdo pode intervir diretamente na sociedade, como no caso de filmes de propaganda, filmes políticos, etc. Ferro (2010) propõe que a pesquisa deva analisar os seguintes eixos: o cinema como agente da história; os modos de ação da linguagem cinematográfica; sociedade que produz sociedade que recebe; e leitura cinematográfica da história, leitura histórica do cinema. O autor exemplifica com os estudos de caso do cinema na União Soviética e no anti-nazismo americano. No Brasil dos anos 1960, por exemplo, a influência dos “The Beatles” e outras bandas do gênero influenciaram a música feita no país na formação dos músicos Jovem Guarda. Os discos e aparelhos de áudio eram artigos de custo elevado na época. E o cinema tinha um apelo mais popular. Portanto, é possível que as músicas do cinema tenham sido mais influentes do que os próprios discos. A música popular é feita de influências, referências e hibridações de estilos musicais. A partir do momento que determinado gênero musical específico é retratado pelo cinema, este gênero pode repercutir em outros contextos sociais e até geográficos e pode até, influenciar outros gêneros de outros lugares. É o que Marc Ferro definiu como “agente e fonte da história””, nesse sentido, cabem outras investigações sobre a relação entre Filmes Musicais Pseudo-Biográficos e a produção musical na época em que o filme foi lançado. Qual o impacto que esse tipo de produção causa no meio. As relações de cinema e história variam em três aspectos distintos: “o cinema na História; a história no cinema e a História do cinema” (NAPOLITANO, 2010, p. 240). O primeiro diz respeito a localizar o cinema dentro de uma investigação historiográfica, a importância de se entender o contexto sócio-histórico em que o filme está inserido. O segundo aborda o discurso fílmico. E o terceiro aponta para a linguagem específica do meio cinematográfico. Apesar de todo o interesse na história, o cinema não está preso aos acontecimentos como a história, sendo a ele permitido criar, fantasiar. O filme está fora do controle de historiadores. O filme mostra o que não pertence ao passado. O filme cria um mundo histórico com o qual os livros não podem competir, pelo menos em popularidade. O filme é um símbolo perturbador de um mundo cada vez mais pós-literato (em que as pessoas podem ler, mas não o farão) (Tradução do autor). Film is out of the control of historians. Film shows we do not own the past. Film Creates a historical world with which books cannot compete, at least for popularity. Film is a disturbing symbol of an increasingly postliterate world (in which people can read but won’t) (ROSENSTONE, 2001, p. 50). Rosenstone se preocupa em demonstrar como diferentes discursos sobre o passado criam versões alternativas sobre a história. Para o autor a história é múltipla, cada discurso sobre o passado contribui com uma versão. O Filme Musical Pseudo-Biográfico não se preocupa em retratar fielmente a historiografia, mas, conforme teoria exposta de Rosenstone ele é um discurso diferente sobre a história. 1.2 MÚSICA E HISTÓRIA Os estudos de música que se relacionam a história podem ser divididos, de maneira geral “em três grandes áreas: a Musicologia histórica, a Etnomusicologia e um terceiro campo, ainda confuso, que poderíamos chamar de 'Estudos em música popular” (NAPOLITANO, 2010, p. 254). As duas primeiras áreas possuem tradição acadêmica mais consolidada. A musicologia histórica preocupa-se em estudar a vida e a obra dos compositores e das formas eruditas. A etnomusicologia concentra-se no estudo de manifestações musicais de grupos e nichos específicos. Embora ambas tenham caráter histórico, não estão tão diluídas e integradas aos suportes audiovisuais como a área da música popular. Os estudos de música popular ainda são recentes quando comparados às outras áreas. A chamada “música popular” é difundida, em grande parte, pela indústria fonográfica e audiovisual, diferença fundamental às outras áreas. Os filmes musicais das décadas de 1940 e 1950, o advento da televisão na década de 1950, o videoclipe no final da década de 1980 contribuíram para que a música popular não fosse produzida simplesmente para ser ouvida e dançada, mas principalmente para ser vista. Neste sentido, o estudo de Filmes Musicais Pseudo-Biográficos oferece também uma contribuição à área música popular. 1.3 MÚSICA E CINEMA A música acompanha o cinema desde seu início. As primeiras projeções dos irmãos Lumiére, no ano de 1895, no Grand Café em Paris, já foram acompanhadas por músicos. Na realidade, o que se chamava de “cinema mudo” é um equívoco. O cinema nunca foi completamente mudo visto que a música sempre esteve presente nas exibições dos filmes, seja por uma orquestra, ou simplesmente um pianista. Se por um lado, a produção da música nas salas de exibição era algo que fugia totalmente do controle dos realizadores de cinema, por outro, a variedade de músicos e músicas para cada filme permitiu uma experimentação vasta e variada das relações entre música e imagem (…). Assim, o filme exibido em duas salas diferentes já não era mais o mesmo (CARRASCO, 2003, p. 76-7) A música tocada nos cinemas dessa época era usada para manter as pessoas concentradas nos filmes, ela ajudava a “criar o clima” do filme. “Além do piano na sala, que serve, sobretudo para acompanhar a canção ilustrada, existe muitas vezes um segundo piano, automático, que é colocado logo na entrada do cinema para atrair o público” (ALTMAN, 1995, p. 43). Não existia intenção de se usar a música para conseguir reações específicas, por isso, a princípio não importava qual a música que estava sendo tocada, desde que se houvesse música. Contudo, alguns músicos preocupavam-se em combinar a música com o que se passava nas telas, e logo passaram a compor músicas para essa finalidade. Assim, surgiram composições para acompanhar gêneros diferentes, por exemplo, uma música para acompanhar uma cena de terror. O que deu origem ao que conhecemos hoje como composição da trilha sonora. Os problemas de gravação sonora e sincronia foram resolvidos em 1927, quando conseguiu se produzir um filme com fala sincronizada satisfatoriamente, The Jazz Singer (O Cantor de Jazz, Alan Crosland, Estados Unidos, 1927). O filme, O Cantor de Jazz, com o ator e cantor Al Jolson tem poucos diálogos, mas muitas canções agradaram o público e animou os produtores (CARRASCO, 2003). Toda a produção do filme, inclusive o próprio roteiro, foi pensada de forma a privilegiar a novidade: o primeiro filme a sincronizar fala, ruído e música. A sincronia é revelada aos poucos, aumentando a expectativa do espectador. O sucesso do musical mudou o cinema do dia para a noite. O filme mudo foi perdendo espaço rapidamente. Dentro de um filme, a música pode assumir diferentes funções, dependendo do objetivo desejado. Em geral, muito se fala na música ligada a emoção do filme, mas ela também pode ter funções bem específicas como transmitir informações sobre o lugar ou o tempo em que se passa a ação, descrever uma personagem, um movimento, geralmente este em função cômica, revelar um sentimento ou ação não presente na cena. Ainda pode se atingir dramaticidade pela não-utilização de trilha. Mesmo sendo guiada pelo diretor e pelo contexto fílmico, a música composta carrega características de seu compositor. Os primeiros compositores da música de cinema seguiam a tradição do romantismo com forte influência de Wagner, Brahms, Strauss, Verdi, por isso, alguns escritores se referiram a esta música como “música wagneriana”. Os primeiros compositores da música de cinema tinham como referência a música do período do romantismo. O cinema segue a construção dramática próxima à construção de óperas e operetas, com personagens e conflitos que se desenrolam ao longo da trama. Um dos recursos incorporados foi o leitmotiv (leia: “laitmotif”, do alemão, “motivo condutor”). O leitmotiv é um tema que acompanha toda a obra. Por exemplo, têm-se as duas notas em intervalo de segunda menor que se repetem – musicalmente a repetição de um tema chama-se ostinato - do filme Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, Estados Unidos, 1975). Esse é o leitmotiv do filme. O tema está associado à figura do tubarão. Na primeira parte do filme, a presença do tubarão é associada ao ostinato. O espectador, inconscientemente, associa a música ao personagem. Na segunda parte, o compositor brinca com o leitmotiv a fim de conduzir expectativas e emoções do espectador. Mas também, a música pode estar ligada a outros elementos do contexto fílmico como transmitir informações sobre o lugar ou o tempo em que se passa a ação. É o caso de Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, Brasil, 1997) que conta a história do cinegrafista amador Benjamim Abrahão em busca de imagens do bando de Lampião. A trama se desenrola no estado de Pernambuco. As músicas de estilo mangue-beat, compostas pelo grupo musical Nação Zumbi que acompanha a história ajuda a criar o clima árido pernambucano. A área de estudos acadêmicos Film Music se preocupa com o uso da música em produções audiovisuais. Essa área se preocupa com questões de como a música está inserida na narrativa dramática do filme. Se a música é justificada por uma fonte sonora, quando o personagem escuta um rádio ou assiste a um show, por exemplo, é classificada por Michel Chion (2011) como som in ou pela classificação de Claudia Gorbman (1987) música diegética. Se a música é um recurso que não está justificado na trama, ela é classificada por Gorbman (1987) como não-diegética. Neste último caso, Chion (2011) distingue dois aspectos: quando o personagem “ouve” a música, mas a fonte sonora não é representada, a música é som out ou fora do quadro. E quando é um recurso da construção da narrativa, mas não envolve a miseen-scéne, ela é classificada como som off. Outras questões da área são no sentido do tipo de música usada em determinado filme, em que contribui o filme, como ela está inserida, entre outras. É também uma preocupação deste trabalho investigar sobre a música usada em Filmes Musicais Pseudo-Bibliográficos. Se a temática do filme está ligada a música usada na trilha do filme, ela (a música) ganha um tratamento diferenciado nas demais produções ou não. Qual sua função nesse tipo de filme. 2. PROPOSTA METODOLÓGICA DE ANÁLISE DE “FILMES MUSICAIS PSEUDOBIOGRÁFICOS” 2.1 COLETA E ARQUIVOS No Brasil, as iniciativas para se preservar a documentação audiovisual são relativamente recentes. E ainda se preocupam mais com a documentação de épocas históricas mais remotas e esquecem-se da preservação da documentação recente. Com a facilidade de acessos a dispositivos tecnológicos como câmeras filmadoras, computador, a produção audiovisual cresceu consideravelmente nos últimos anos. As produções não-profissionais contribuíram para esse aumento. Porém, essa produção não se preocupa em ser preservada, muitas vezes é disponibilizada na Internet sem qualquer outra cópia em material físico e é facilmente retirada de veiculação, o que resulta na perda total do material. A Cinemateca Brasileira, nos anos 1940, foi o primeiro passo no sentido de coletar, catalogar, preservar e disponibilizar para pesquisa material fílmico e de parte da documentação escrita na área de cinema. Outra instituição com a mesma finalidade é a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O Museu Lasar Segall de São Paulo também se preocupa em preservar, sobretudo material crítico e informativo publicado na imprensa, desde os anos 1970. Em 1965, o MIS-RJ, Museu de Imagem e Som do Rio de Janeiro, foi criado durante o governo de Carlos Lacerda em comemoração ao aniversário da cidade. O projeto inspirou outros governos a copiarem a iniciativa em MIS regionais. Atualmente, existem por volta de 23 museus pelo Brasil. Além de se preocupar com a área audiovisual, os MISs atuam na área de fotografia, artes gráficas e registros sonoros de depoimentos, entrevistas, debates e palestras. Além de oferecer uma programação com atividades culturais para o público. Com o advento tecnológico, a internet se apresenta como uma ferramenta de pesquisa, de coleta e de preservação dos acervos audiovisuais. É preciso discernimento para distinguir as fontes de origem e referência mais confiáveis. Contudo, a ferramenta é útil no levantamento de fontes e para conferir informações. A maioria dos artistas conta com seu website onde reúnem material informativo, canções, vídeos, obras, etc. Alguns filmes também lançam sua página oficial com informações relevantes sobre a produção. Há ainda sites especializados, revistas acadêmicas que migram do papel para o computador ou que mantém as duas vias como possíveis. 2.2 ABORDAGENS Como ponto de partida, a presente pesquisa propõe uma metodologia de análise de Filmes Musicais Pseudo-Bibliográficos a partir de quatro eixos (ou abordagens): 1. análise do contexto histórico do filme; 2. análise do contexto histórico no filme; 3. análise fílmica; e 4. análise da trilha musical. Através do primeiro eixo, a pesquisa procura entender o contexto em que o filme foi feito, quais as motivações da realização da obra, por que em determinada o(s) realizador (es) do filme resolveram retomar determinada época. A partir do segundo eixo, a pesquisa procura entender o que o filme retrata, quais aspectos históricos foram abordados, quais foram deixados de lado, qual a importância da época, e por que ela está sendo remontada. A partir do terceiro eixo, a pesquisa procura examinar o filme pela construção da obra, isto é, dos aspectos do roteiro, da direção, da fotografia, das cores, da montagem e de outros aspectos estéticos que possam revelar ou ampliar o entendimento do conteúdo. E, finalmente, a partir do quarto eixo, a pesquisa investiga o tratamento musical dado ao filme, se ao tratar de um filme com temática musical o mesmo tema é construído na sua trilha ou não, quais clichês são apropriados, aspectos de sonoridade e timbre e outros estruturaismusicais como harmonia, melodia, instrumentação, modulações, etc., da mesma forma que os elementos visuais possam revelar ou ampliar o entendimento do conteúdo do filme. “O mais importante é entender o porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas num filme” (NAPOLITANO, 2010, p. 237). É preciso articular os códigos internos das linguagens específicas do meio, de natureza técnico-estética do conteúdo narrativo, de natureza representacional. A elaboração da metodologia específica apresentada abaixo foi baseada no método elaborado por Napolitano (2010), mesclando conceitos das áreas de música e cinema e criando outros, para enfim, chegar a um protocolo sistemático próprio de análise de “Filmes Musicais Pseudo-Biográficos”, a saber: 1. delimitar o corpo documental, localizá-lo e organizar uma ficha técnica das fontes, identificando: gênero, suporte, origem, data, autoria, conteúdo referente acervo; 2. assistir sistemática e repetidamente aos filmes escolhidos, buscando articular análise fragmentada (decupagem dos elementos de linguagem e momentos musicais) e síntese; 3. buscar os elementos narrativos: “o que um filme diz e como o diz”; 4. analisar letra, estrutura musical, sonoridades vocais e instrumentais, performances musicais (a música fora do contexto do filme); 5. buscar, em seguida, o sentido da música no contexto fílmico, na rearticulação desses elementos, junto às cenas e depois ao conjunto do filme; 6. produzir um “fichamento” sobre o filme com as conexões das imagens, linguagens, estratégias de abordagem do tema do filme; e 7. articular o filme analisado com outros documentos, discursos históricos e materiais artísticos de mesmo tema, identificar pontos de convergência, divergência e possíveis diálogos. Em suma, este ensaio buscou levantar e estudar sistemas conceituais e metodologias das áreas de história, cinema e música. A classificação proposta de Filmes Musicais Pseudo-Biográficos se mostrou pertinente às três áreas citadas e às suas formas de interações apresentadas. O protocolo sistemático elaborado buscou integrar as áreas em quatro eixos que foram percebidos como comuns a tais áreas, a saber: análise do contexto histórico do filme e análise do contexto histórico no filme, análise fílmica e análise da trilha musical. Por fim, este ensaio recomenda a aplicação das metodologias apresentadas, e, mais particularmente, dos eixos de abordagens e do próprio protocolo sistemático a pesquisas posteriores acerca de produções cinematográficas dentro do gênero classificado por esse trabalho como Filmes Musicais Pseudo-Biográficos. REFERÊNCIAS ALTMAN, Rick. Nascimento da recepção clássica: a campanha para padronizar o som. In: Imagens, nº 5, Ago / Dez 1995. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995. CARRASCO, Ney. Sygkhronos: a formação da poética musical do cinema. São Paulo: Via Latera, Fapesp, 2003. CHION, Michel. La audiovision: introducción a un análisis conjunto de la imagem y el sonido. Tradução de Antonio López Ruiz. Buenos Aires: Paidós, 2011. FERRO, Marc. Cinema e história. São Paulo: Paz e Terra, 2010. GORBMAN, Claudia. Unheard melodies. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 1987. LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990. MORETTIN, Eduardo. “O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro”. In: História: questões e debates, n. 38. Curitiba: Editora UFPR, p. 11-42. NAPOLITANO, Marcos. “Fontes audiovisuais: a história depois do papel”. In: Fontes Históricas. PINSKY, C. São Paulo: Contexto, 2010. NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Tradução de Mônica Saddy Martins. Campinas, SP: Papirus, 2005. 5ª ed, 2010. ROSENSTONES, Robert. “The historical film: looking at the past in a postliterate age”. In: The historical film: history and memory in media. New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press, 2001, pp. 50-66. SOUZA, Amanda; et al. A Retomada do Gênero Musical. São Carlos, SP: 2011. Disponível em: <http://www.rua.ufscar.br/site/?p=3728>. Acesso em 23 mai. 2014.