A RECONSTRUÇÃO DE FORMAS LEXICAIS E GRAMATICAIS DO PROTO-APURINÃ-PIRO-IÑAPARI Ana Paula Barros Brandão Departamento de Língua e Literatura Vernáculas, Universidade Federal do Pará. A autora foi bolsista do Programa de Iniciação Científica da UFPA – Brasil CEP: Belém-PA tel.: 32018016, { HYPERLINK "mailto:[email protected]" } RESUMO As línguas Apurinã, Piro e Iñapari, membros da família lingüística aruák, são comparadas através do método histórico-comparativo com fins de reconstruir informações sobre o léxico, a proto-cultura e pré-história desses povos. Novos dados são apresentados para a reconstrução fonológica do Proto-Apurinã-Piro-Iñapari, e a reconstrução de itens lexicais permite fazer algumas inferências preliminares sobre o passado desses povos. ABSTRACT The Apurinã, Piro and Iñapari languages, members of the Arawak linguistic family, are compared using the historical comparative method in an attempt to reconstruct information on the lexicon, proto-culture and pre-history of these people. New data are presented for the phonological reconstruction of Proto-Apurinã-Piro-Iñapari. As a result, the reconstruction of certain lexical meanings allows for preliminary inferences about the past of these people. INTRODUÇÃO A presente pesquisa apresenta um estudo histórico-comparativo no qual examinamos dados de 3 línguas da família aruák: Apurinã, Piro e Iñapari, utilizando os métodos da lingüística histórica, com o objetivo de fazer inferências sobre o passado (pré-) histórico dessas línguas. Apresentamos resultados obtidos a partir da organização e análise de dados coletados em publicações e nas pesquisas de campo que foram realizadas em aldeias Apurinã e Manchineri (Piro) no Brasil. Os dados de Iñapari provêm de fontes publicadas. A seguir mostramos no mapa a localização geográfica dos povos que falam as línguas estudadas e de outras línguas que pertencem à família Aruák: Comparamos as línguas Apurinã, Piro e Iñapari. A língua Apurinã é falada pelo povo com a mesma denominação e que está localizado nos Estados do Amazonas e Acre. A população apurinã é de aproximadamente 2.000 pessoas, das quais menos de 30% falam a língua. O Piro é uma língua falada por um povo subdividido em dois grupos, um que vive no Peru que possuía uma população de 1263 pessoas (sendo que o censo incluía todos aqueles que falavam a língua) em 1981 e outro subgrupo chamado de Manchineri (sobre o qual não temos dados populacionais). Segundo Santos [1], os Yine (nome que significa ‘gente’, autodenominação dos Manchineri) é um povo que ocupa a região sul do estado do Acre (Amazônia Ocidental) no Brasil, Peru e Bolívia. A língua Iñapari é falada por um povo localizado no sudeste do Peru no rio Piedras e contava com apenas quatro falantes da língua no final do último século [2]. Entre os principais trabalhos com línguas Aruák estão os de Payne (1991), Aikhenvald (1999) e Ramirez (2001) que tratam da reconstrução do Proto-Aruák e da classificação interna da família. Payne foi quem primeiro apontou o possível subagrupamento envolvendo as línguas Apurinã, Piro e Iñapari. Trabalhos de Facundes (2000; 2002a) trazem uma comparação preliminar entre essas línguas. Nosso objetivo geral é reconstruir formas lexicais para o Proto Apurinã-Piro-Iñapari (P-API) objetivando fazer inferências sobre a proto-cultura e pré-história Aruák. As formas lexicais apresentadas são em sua maioria termos para a fauna e flora, pois tais conceitos podem fornecer informações sobre o cultivo, geografia e rotas de migração dos antepassados desses povos. Além disso, temos dados das outras categorias semânticas, como elementos da natureza e termos de parentesco, que podem oferecer também informações úteis sobre o inventário sócio-cultural do povo falante da P-API. Entre os objetivos específicos estavam: identificar o maior número possível de cognatos a partir da comparação dos vocabulários dessas línguas (54 séries de cognatos completas além de cognatos entre pares das línguas); observar as retenções e as inovações compartilhadas entre as línguas Apurinã, Piro e Iñapari (API) no âmbito do léxico, atentando principalmente para as inovações que, se compartilhadas, podem comprovar a existência do subagrupamento; contribuir para a reconstrução do P-API, nesse caso a reconstrução tanto fonológica como lexical; e apontar as implicações dessa reconstrução para o conhecimento sobre a classificação interna e sobre a proto-cultura e pré-história Aruák. DADOS E METODOLOGIA O estudo utiliza-se do método histórico-comparativo, paleolingüístico e de línguas de contato. Para realizar a pesquisa foram usados, como fontes de dados, os trabalhos com as línguas Apurinã [3], [4], Piro [5], [6] e Iñapari [2]. Além de dados coletados em pesquisa de campo em Julho de 2006 nas comunidades Apurinã e Manchineri (Piro). Estas viagens foram possíveis devido ao apoio do CNPQ/PADCT, CIMI/ Lábrea, MAPKAHA (Organização do povo Manchineri) e SEPI (Secretaria dos povos Indígenas do Acre). Seguindo o método comparativo, procedemos inicialmente com a busca de cognatos nas três línguas. Começamos a busca por cognatos através da semântica, verificando qual era o nome de um animal ou planta nas línguas Apurinã, Piro e Iñapari. Tendo por base a reconstrução fonológica do Proto-Apurinã-Iñapari feita por Facundes [3], [7], traduzida para o Português na Tabela abaixo, também passamos a inferir, a partir da forma em Apurinã, por exemplo, como poderia ser a forma em Piro e Iñapari para iniciar a procura (sabíamos que formas iniciadas com k em Apurinã têm como reflexo o k em Piro e ø em Iñapari devido à correspondência k>k> ø). Inicialmente, como o número de dados em Apurinã e Piro é maior, decidimos restringir o número de itens para os quais seriam procurados cognatos nas três línguas aos dados presentes no vocabulário Iñapari, organizado por Parker, com 122 palavras para fauna e flora. Então, organizamos uma lista, no programa computacional Excel e no Toolbox, atualmente com as seguintes 54 séries robustas de cognatos para as três línguas. Tabela 1: Séries Completas de Cognatos da Fauna e Flora 1. 2. Significado Reconstruído tipo de morcego Apurinã Piro/ Manchineri Iñapari ʃiju (kɨ) 'morcego pequeno' ʃjo/ iʃu hijúxɯ aína 'mono coto' guariba kiɲa kina 'coto' 3. macaco prego tʃikutɨ tʃko-tɨ tiʔutʃí 4. queixada irarɨ hijalɨ hirári 5. caititu meritɨ mritʃi merítʃi 6. rato kutʃi kotʃi otí 7. cutia pekiri peçri Pehirí 8. paca kajatɨ kajatɨ ajátʃi 9. cuandu kɨmɨtsɨru kãmɨtsɨ-rɨ hamátɯrɯ 10. quatipuru jùpitiri jupitʃıri jopítʃiri 11. preguiça real iju 'Preguiça real (de 2 dedos)' jawu jaú 12. tamanduá bandeira eʃiwa, iʃuwa sɨwa hɯwá 13. quati kapiʃi kapʃi apíí 14. anta kema çema hamá 15. mambira kãĩrɨ kçĩri aíri 16. tipo de pato upaj ‘Pato do mato’ hopʃi hupaí 17. tipo de coruja musa ‘Coruja orelhuda’ mosa moa 18. jacamim ititi hi΄tʃitʃi hitʃitʃí 19. urubu majulɨ ‘urubu’ majuri ‘buitre blanco (abutre do Egito)’ 20. japó majurɨ ‘ Urubu cabeça preta ‘ jũpiri jopiçri jupíri 21. mutum ireka hijeka hiréha 22. jacu 23. tartaruga tutɨ totɨm(ta) 24. cobra 25. sɨ˜pɨrɨ ‘ tartaruga’ tutʃí sɨprɨ hiprɯ ‘ tartaruga, jabuti’ ɨmɨnɨ himnɨ himení jibóia mapajuru ‘jibóia’ mapyolo ‘jibóia’ (ji)mapajúro ‘mantona (espécie de boa) 26. rã patʃirɨ ‘perereca’ pwatʃıri patɯɾɯ́(tʃa) 27. lagarto 28. peixe kajukɨrɨ ´jacaré´ kʃijojrɨ ´lagarto´ ajúhɯrɯ ´lagarto´ himá 29. piranha huma homá 30. tambaqui 31. tipo de peixe 32. gafanhoto 33. ʃimakɨ uma amakɨri ʃima hamaçire humáhɯre mamurɨ mamalu tʃitʃiri tsetse ‘grilo’ borboleta katatɨ katatu atʃatú 34. caba saúva sãnɨ sanɨ haní 35. katʃitʃi atítʃi 36. flor hɨ̃wɨ hwi ~ howɨ aáwɯrɯ 37. cipó ãa-pɨtsa haha-pitsa haá-pita 38. tabaco awirɨ jiiri hairí 39. árvore, árvore (genérico) aa-mɨna hahmɨna haámɯna 40. tronco de árvore (1) -mɨna mɨna -mína 41. galho purɨ plɨ porí 42. planta ØãØã- ‘planta’ haha haØá- ‘planta’ 43. cacau kanaka kanka ‘cacau’ anahápa 44. açaí tsaperɨkɨ ~ tsapɨrɨ { HYPERLINK "file:///C:\\Documents%20and%2 0Settings\\usuario\\Meus%20doc umentos\\Ana%20Paula\\Cópia% 20de%20Dados%20Aruák%2024 0206.xls" \l "RANGE!_ftn5#RANGE!_ftn5" } hupéri 45. algodão mapua waph ɨ mepɯ 46. goiaba tʃupata ‘goiaba, araçá’ tspata tupátʃa 47. murumuru kunakɨ kuna una 48. tipo de palmeira kitʃiti ʃitʃitʃi hititʃí 49. urucum 50. castanha ãpɨkɨɾɨ 51. folha da coca katʃitɨ hapiʃıɽɨ mamɯri tɯtri hapísíɾi makɨ mɨʃi (mãʃi) mɯhɯ́ katsuparɨ katsupalɨ atuparí 52. canoa kanawa ‘canoa’ kanawa ‘canoa’ anawá 53. rio (API) lago wenɨ wenɨ hi-pow-há iwáná 54. ɨpuwã hipu Também organizamos no programa Toolbox (Figura 1) esses cognatos para que pudéssemos colocar mais informações tais como a glosa das palavras em cada língua, e a numeração referente às séries de correspondências (que estão em outro arquivo, Figura 2) e que podem ser visualizadas a partir do jump path (função que remete ao outro arquivo). A partir da série de correspondências, podemos visualizar através do jump path os exemplos que as contêm no arquivo dos cognatos. Figura 1: Exemplo de séries de cognatos (no arquivo de cognatos) no programa Toolbox Figura 2: Exemplo de série de correspondências no Toolbox (no arquivo com as séries de correspondências) O corpus utilizado para a coleta de cognatos em nossa pesquisa foi relativamente maior em Apurinã, pois esta língua conta não apenas com uma gramática preliminar, mas também com um dicionário ilustrado da fauna e flora com mais de 700 entradas e com um dicionário geral conta com quase 2.000 entradas. Quanto a Piro, utilizamos o trabalho de Matteson que apresenta gramática, vocabulário e textos; utilizamos ainda um dicionário organizado por Joyce Nies com aproximadamente mais de 7.000 vocábulos. O vocabulário apresentado por Parker, Dados de la Lengua Iñapari, possui um pouco mais de 1.000 vocábulos ao todo, sendo que apenas 122 são referentes a fauna e flora. Em um segundo momento, organizamos uma lista adicional com mais nomes de fauna e flora na língua Piro, tentando identificar novos cognatos entre as línguas Apurinã e Piro. Consideramos também os cognatos identificados somente entre Apurinã e Iñapari, Iñapari e Piro. Trabalhamos com um informante da língua Apurinã para perguntar se ele conhecia formas semelhantes em Apurinã àquelas coletadas nas línguas Iñapari e Piro. Obtivemos as seguintes porcentagens de conjuntos de cognatos, mostradas no Gráfico 01, onde podemos ver que quase 50% dos cognatos são entre as línguas Apurinã e Piro de um total de 194 palavras. Como oberva Facundes [7], fato de Apurinã e Piro compartilharem um grande número de retenções lexicais não permite ainda comprovar a inexistência de Apurinã-Piro como um ramo dentro da família. Somente se inovações compartilhadas forem mostradas entre Apurinã e Piro (mas não em Iñapari) e se o Proto-Apurinã-Piro (P-AP) puder ser reconstruído, será possível falar em um subagrupamento dentro de Aruák envolvendo essas três línguas. Gráfico 1: Porcentagem de Cognatos Porcentagem referente ao número de cognatos 60 50 APU-PIRO 40 APU-PIRO-IÑAP 30 APU-IÑAP 20 PIRO-IÑAP 10 0 1 Além disso, especificamos qual era a forma não-cognata para as séries onde não tínhamos cognatos para uma ou duas das línguas (ver Tabela 2). Neste caso, postulamos que (não havendo evidências de empréstimos) ou a forma não-cognata é inovação, ou que é a forma antiga a ser reconstruída no P-API. Como exemplo de inovação, temos o item 1 da Tabela 2, no qual a forma não-cognata para o conceito ‘água’ em Apurinã é inovação (pois não aparece em outras línguas aruák, cf. Tabela 3). No exemplo 2, a forma não-cognata é a forma antiga (pois é encontrada em outras línguas aruák) e podemos dizer que as outras duas formas cognatas são, provavelmente, inovações lexicais compartilhadas por Piro e Iñapari. Tabela 2: Lista Parcial com Não-Cognatos e Lacunas Conceito Apurinã Piro Iñapari 01. água {ĩpurãa, ĩparãa, ãpurãa} juní 02. arara 03. milho {kasãtu} kemi honɯ pamlo 04. preguiça de bentinho (de 3 dedos) 05. tipo de papagaio makara {çipaloxi} ma/ára wawatu ‘papagaioverdadeiro’ wawato {toéro} kuʃiti koʃitʃi (ave) {haʔáxe} ‘ koterɯ xotéri 06. tucano de bico-verde 07. veado 08. macaco-de-cheiro ipte 09. cupim 10. ariá kamara kɨparɨ ʃiçi pamáro hísi hipɯtí kamla çipa-lɯ Quando não encontramos formas cognatas, deixamos lacunas que podem indicar que a forma existia no P-API e foi perdida, ou que não existia e as duas formas cognatas nas outras línguas são inovações. No item 09, ‘cupim’, da Tabela 2, podemos dizer que a forma existia no P-API e pode ter sido perdida em Iñapari (por exemplo, quando há cognatos para esse termo em outras línguas aruák). Uma terceira possibilidade é de que a forma não-cognata seja empréstimo de outra língua. A verificação desta possibilidade, contudo, requer pesquisa mais ampla envolvendo dados de outras línguas da região. Como exemplo de possível empréstimo de línguas Arawá, temos a forma reconstruída em Proto-Arawá *kimi ‘milho’ [8], com cognato apenas em Apurinã. Nas outras duas línguas estudadas as formas são cognatas entre si, mas diferentes desta. Trabalhamos ainda com dados de outras línguas Aruák retirados de Payne [9], Aikhenvald [10], Ati’o et al [11] e Huber & Reed [12]. Estes dados ajudaram a verificar o status dos cognatos e das séries de correspondências, além de auxiliar na identificação dos casos de inovações. A partir dessas formas, podemos observar o status dos cognatos e das correspondências, a exemplo do termo para ‘piolho’ (ver Tabela 03). Observamos que Payne não considera a forma em Piro como cognato em sua reconstrução do Proto-Aruák. Ele reconstrói o proto-fonema *n que teria como reflexo o ɲ na forma em Apurinã. Em nenhuma outra língua há uma correspondência ʃ. Além disso, só há esse exemplo da série de correspondência ɲ> ʃ>h. Então, até o momento não podemos considerar esse conjunto como cognatos, apesar da semelhança entre as formas. O mesmo se aplica para a possível série de cognatos para o conceito ‘mandioca’ na qual temos a correspondência m>n>n que conta apenas com este exemplo. Esta correspondência é atestada em duas línguas: Garífuna e Lokono, mas necessitamos de mais dados para confirmar o status da série de cognatos. Tabela 3: Exemplos de Cognatos em Outras Línguas Aruák Português água tartaruga tipo de formiga cupim piolho Apurinã {ĩpurã} sɨ̃pɨɾɨ maɲì: ‘tucandeira’ manahi kamara ɲipatʃi kamla ʃeptʃi Piro Iñapari honɯ huní Asheninca Amuesha nihaa ony Chamikuro uníhsa Parecis Waurá óne sɨpɽɨ hipɯ́ɾɯ syeNpiri Ignaciano une sipu Machiguenga Wapishana nia Guajiro Resígaro nyâti inók -iɲe ne- manihi mazi wɨn -uni ye(-ti) ĩe *manihi oniabo *monirɨ wɨɨn hooní Achagua Curripaco Piapoco uuni ooni úni Tariana Yucuna Yavitero uúni húuni wéni Cabiyari níhpa nirítsati -neetse sopír Palikur Garífuna Lokono neníhpa ʃempʸore unɨ úne in Terêna Baure hapatí manii mane kamaʒa ʃipánuli tʃipànilu ipú sihúli mɨʃitʃi kamaadu netetshíʔó nii kamara kamala *mane *mane kamara kamara ínehi maneɬi Uma outra etapa foi a organização das séries de correspondências, pois para serem consideradas realmente cognatas, as formas devem mostrar correspondências fonológicas sistemáticas, isto é, que sejam exemplificadas por várias séries de cognatos. Organizamos séries completas e incompletas, o que foi útil ao compararmos à reconstrução fonológica proposta por Facundes [3], [7]. Adiante abordaremos a reconstrução fonológica. RECONSTRUÇÃO FONOLÓGICA Uma outra parte da pesquisa está relacionada à reconstrução fonológica, para com esta podermos seguir adiante na reconstrução das formas lexicais. Como a reconstrução fonológica não foi o foco desta pesquisa, mostraremos aqui apenas resultados preliminares. Para revisar a reconstrução proposta por Facundes, procedemos verificando em quais ambientes os reflexos ocorrem e se mais de uma correspondência poderia ser ligada a um proto-fonema. Notamos, por exemplo, que o proto-fonema *k tem como reflexo em Iñapari ø em início de palavra e ʔ em ambientes entre vogais, exceto entre e_i onde se realiza como h. Essas correspondências já haviam sido apontadas por Facundes; neste trabalho encontramos novos ambientes de ocorrência. Novas correspondências encontradas tais como k> ʃ > h e k> ç> s têm apenas um exemplo. Observando as correspondências incompletas a fim de saber se é comum correspondências a exemplo de ʃ > h em Piro e Iñapari e em quais ambientes, verificamos que ocorre a correspondência s>h, sendo o s diante de e, o, ɨ. Enquanto nos ambientes diante de i ocorre a palatalização do s em ʃ. Já a correspondência ç>s ocorre em ʃiçi > hisi ‘milho’. A seguir apresentamos as séries completas que apresentam quatro ou mais exemplos de séries de cognatos, e os reflexos do *k: Tabela 4: Correspondências Mais Robustas k k ø k ç h k k h ø h ø ø h h m m m n n n ɲ n n ɾ ɾ ɾ ɾ l ɾ t t tʃ t tç tʃ p p p tʃ tʃ t h h ø Tabela 05: Lista com proto-fonema* k e as séries de correspondências k k ø / #_ rato kutʃi kotʃi ‘pig, rat, mouse’ utí paca kaiatɨ kajatɯ ajátʃi borboleta katatɨ katato atʃatú cacau kanaka kanka ‘chocolate’ anahápa murumuru kunakɨ j kona ‘palm sp. Long black thorns’ úna k / C_ ʔ / {o_u, u_o, a_a, i_u} tipo de pomba putukuku motkoko motoʔúʔo Cacau kanaka kanka anahá(pa) Macaco cebus Tʃikutɨ k tʃko-tɯ tiʔutʃí h / {#_, e_i} Anta kema ç / _{e, ɽ , n} çema Cutia pekiri k peçri k / _m pehirí h / #_ Cuandu kɨmɨtsɨru k kmɯtsɯrɯ ‘hedgehog’ hamátɯrɯ h /#_ kitʃiti k ʃitʃitʃi ãpɨkɨɾɨ hapiçɽɯ tipo de palmeira Urucum ʃ /#_i ç /_ ɽ hamá hititʃí s / i_i hapísíɾi Até agora trabalhamos com as consoantes, pois o trabalho com as vogais é mais complexo em virtude de maior instabilidades dessas em Arawak. Em geral ocorreu de encontrarmos novos ambientes para correspondências já identificadas e as novas correspondências encontradas possuem apenas um único exemplo. A seguir mostramos parte de uma lista com o número de séries de correspondências, para visualizarmos melhor quais são as retenções e possíveis inovações mais freqüentes. Tabela 06: Lista parcial com número de ocorrência das séries de correspondências Apurinã k Piro k k k k k ç k ʃ ʃ s ʃ ʃ ɲ ø ø ø m m m n n Iñapari no. de ocorrências ʔ ø h h h 2 7 2 1 h ʃ ç ø h h ø h ø ʃ m n w n ø h m n m n n 3 1 1 1 5 10 1 9 1 1 7 1 Também comparamos a reconstrução revisada com a reconstrução do Proto-Aruák proposta por Payne e observarmos que quase todos os reflexos já identificados por Payne, para Apurinã e Piro, são retenções. Apenas a inovação r>l foi apontada por Payne, que também apontou a inovação t>c, não atestada na última visita ao campo (não identificamos o fonema c). A RECONSTRUÇÃO SEMÂNTICA Após a organização dos dados, passamos à reconstrução semântica dos termos no Proto API. Observando os significados de cada cognato nas línguas, verificamos se ocorreram mudanças dentro de um mesmo domínio semântico ou se houve manutenção de significados. Para fazermos a reconstrução de significado de cada conjunto de cognatos, procedemos da seguinte forma: tomamos por base o significado dado nos materiais consultados para cada cognato e comparamos os significados para inferir o provável significado da proto-forma. Essa etapa do trabalho permitiu a investigação de informações que possam nos ajudar a inferir sobre a migração dos povos. Investigamos se os conceitos para os termos reconstruídos existiam no lugar de origem dos falantes; se determinada planta era plantada no lugar de origem e não é mais; quais os nomes para rios, lagos e igarapés, e as histórias de contato entre os povos. Essas são informações em geral dadas pelos mais idosos. Conseguimos algumas das informações consultando os falantes nas aldeias visitadas e nas cidades de Lábrea e Rio Branco. Coletamos ainda palavras para conceitos báicos na Língua Manchineri – os quais dificilmente são emprestados entre línguas e, por conseguinte, tendem a fazer parte da evolução da língua independentemente dos contatos de seus falantes com outras línguas. Para reconstruir o significado das proto-formas, verificamos as glosas dos cognatos. Em alguns casos foi necessário procurar a identificação das espécies nas línguas Piro e Iñapari pelo nome científico ou através das descrições para saber exatamente se se tratavam da mesma espécie, já que apenas o dicionário de Apurinã traz informações mais detalhadas em suas glosas. Além disso, houve um cuidado em verificar as traduções das palavras nessas línguas, já que consultamos os vocabulários: Piro-English, Piro-Español e Iñapari-Español. Um exemplo de aplicação da reconstrução semântica é o item 3 da Tabela 01 , em que a forma reconstruída para a proto-forma API foi 'macaco prego'. Essa foi a reconstrução possível ao tomarmos os significados ‘macaco prego’ em Apurinã e em Piro apesar de em Iñapari ser ‘mono-machín (trad. para o português: cairara)’. Acreditamos que ou houve extensão de sentido e a palavra se refira as duas espécies nessa língua, ou que não havia a espécie macaco-prego naquela região e por isso o nome designa a espécie ‘cairara’, que também é da família cebidae. Esta última hipótese equivaleria ao que ocorre com o nome taia que em Apurinã para ‘pirarara’, e que em Piro se refere a um tipo de ‘pacu com serras’, semelhante à pirarara, pois não há pirarara naquela região do rio Yaco. A série de cognatos do item 6 também é interessante para nossos estudos sobre préhistória. A palavra que em Apurinã significa tanto ‘aricuri’ como um tipo de rato, apenas significa rato nas outras línguas. Isto porque não havia aricuri na região dos Piro, o aricuri é próprio da região do alto Purus. Como no Brasil há esta árvore, a palavra para aricuri é encontrada em Manchineri é kɨsamɨ. Podemos lançar a seguinte hipótese: de que a forma reconstruída significa ‘rato’ e houve um caso de extensão semântica em Apurinã, pois o rato chamado kutʃi come o coco do aricuri que, por isso, também recebe o mesmo nome. Seria um caso semelhante ao forma kaiaty ‘paca; jaci’, que não ocorre em Manchineri, pois não há a árvore chamada jaci naquela região. Outra forma reconstruída, que pode nos informar algo sobre o passado, é a forma para um tipo de preguiça (item 11) cujo cognato em Piro desconheciamos antes da pesquisa de campo entre os falantes dessa língua. Consultando os falantes, verificamos que os Piro apenas conhecem um tipo de preguiça, que seria a ‘real (de dois dedos)’. Então, o significado da forma no P-API só pode ser ‘preguiça real’ e podemos inferir que no lugar de origem desses povos não havia a outra espécie, que possui nome em Apurinã. Encontramos mais um caso interessante no item 23, que mostra a existência de dois sentidos para hiprɯ em Iñapari, que pode ser tanto a ‘tartaruga’ como o ‘jaboti’. O significado é ‘tracajá’ em Manchineri, e ‘tartaruga’ em Apurinã e nas demais línguas Aruák (como em Baure e Asheninca). Assim, podemos dizer que diacronicamente a proto-forma sofreu uma extensão de sentido, isto é, tinha o significado ‘tartaruga’ e teve o sentido expandido na língua Iñapari para denominar uma espécie semelhante. Já no caso de Manchineri, eles têm um nome semelhante para tartaruga tsrɨ sɨprɨ ‘bicho de casco grande, porém na região onde eles moram (rio Yaco) não há tartarugas. Dessa forma, a reconstrução de vocabulários pode fornecer informações sobre o inventário cultural do povo falante da proto-língua. Com a ajuda da paleontologia, ao descobrirmos as distribuições de plantas e animais (cujos termos foram reconstruídos) no período em que foi falada a proto-língua, podemos traçar um mapa e verificar os indícios do ponto de origem/dispersão da mesma. Esta é uma de nossas finalidades ao reconstruir o vocabulário da fauna e flora Aruák, mas que ainda é uma pesquisa em desenvolvimento, embora já com alguns dados histórico-lingüísticos importantes. Para isso, na última viagem ao campo às aldeias Apurinã e Manchineri, procuramos informações tais como distribuição no passado de plantas e animais, além da migração dos povos. Verificamos que a maioria dos conceitos, cujas formas foram reconstruídas, é encontrada nas regiões (ou era encontrada no lugar de origem). Entre as formas reconstruídas temos: queixada, caititu, anta, paca, cutia, macaco, que nos dão uma idéia sobre o tipo de caça desses povos aruák. É interessante quando sabemos que determinada planta é encontrada em um lugar e não em outro, como é o caso do aricuri, visto acima, e do cacau da várzea, que é encontrado apenas na beira do rio (por isso não é encontrado em uma das comunidades chamadas km 45, localizada nas margens de um rodovia). Podemos, por exemplo, concluir a partir da reconstrução da forma para ‘cacau da várzea’, que os povos viviam em um lugar na beira do rio. Temos informações sobre a migração dos povos apurinã que reforça esta hipótese em parte, pois a maioria dos apurinã veio do médio-alto rio Purus. Uma questão muito discutida é sobre a dispersão Aruák ainda bastante incerta. Heckenberger [13] afirma que “Archaeology suggests that after the Arawak began to split up, probably sometime before 3000 B.P. according to linguistics (Noble 1965;Payne 1991), early pioneer groups moved rapidly throughout floodplain areas of the Orinoco (by C. 1000B.C) and, from there, up and down the Amazon (…)” . Assim, a maior parte das evidências aponta para o noroeste amazônico, em áreas nas margens de rios, entre o Solimões (no Brasil) e o médio Orinoco (na Venezuela). A hipótese é reforçada pelos poucos termos até então reconstruídos para proto-Aruák (e.g. mandioca, batata-doce e jacaré). A presença de jacaré é normalmente associada a grandes rios. No caso dos povos Apurinã, Piro, Peter Gow [14] lança a hipótese de que “at a later date, the ancestral Piro-Apurinã moved out of northern Bolivia, north toward the Purús River, where they began the process of differentiation that led to the contemporary difference between Piro and Apurinã. Some of the ancestral Piro people moved west into the Purús headwaters and thence (…) into the Yuruá, Manú, and Urubamba rivers”. A outra hipótese seria a de Urban, segundo a qual “The Matsiguenga, Asháninka-Campa and Piro would have remained close to their geographical origin, and the Apurinã would have penetrated into the lowlands of the Purús”. É possível, a partir da reconstrução de Payne e da apresentada aqui para o Proto-API de itens tais como açaí, piranha, anta, castanha, tambaqui que são específicos da Amazônia inferir que os povos descendem de um povo pré-histórico que vivia na Amazônia, o que é compatível com a hipótese de Gow. Assim, Piro teria se afastado dos outros dois, já que Apurinã se localiza no meio da Amazônia e Iñapari na fronteira, mas ainda na Amazônia. Outro dado histórico interessante que encontramos é sobre a semelhança entre as confecções de roupas e redes dos Manchineri e dos bolivianos em relatos (apud [15]) segundos os quais os Manchineri “tecem o algodão para confecção de roupas e redes muito semelhantes as usadas pelos bolivianos que descem o Madeira”. Isto pode ser mais um indício de que eles vieram da Bolívia em direção ao rio Purus. Historicamente, segundo Batista e Roquete Pinto (apud [15]), “Os índios Catiana ou Maneteneris formam uma horda da tribo dos Ipurinás, habitantes da bacia do alto Purus”. Gonçalves fala ainda que os Manchineri habitavam as margens do rio Purus num ponto entre as bocas dos rios Hyacú e Aracá, até a foz do rio Curinahá. Segundo Santos (s/d), “a notícia dos povos Panos e Aruak habitando a região dos rios Juruá e Purus é conhecida desde 1640, quando estes desceram o Ucayali, fugindo da perseguição espanhola”. A tabela de cognatos fornece outras informações úteis para a descrição da língua Apurinã, pois indica, por exemplo, qual forma é a mais antiga nos casos de sinonímia. Durante a elaboração do dicionário, foram detectados casos de sinonímia na língua Apurinã em razão da variação geográfica e por causa da variação que denominamos de “geracional”, isto é, existiriam duas formas cujo uso está associado a diferentes gerações. Encontramos, por exemplo, dois nomes para cutia: kypytyna e pekiri, sendo esta última dada como forma mais antiga, o que vem a ser confirmado através dos cognatos disponível nas outras línguas, como podemos ver no item 6 da Tabela 02. Posteriormente, verificaremos se existem cognatos para os dados coletados na viagem de campo feita em setembro de 2005, pois coletamos muitas formas em Apurinã dadas como mais antigas. Portanto, este estudo diacrônico mostra qual a forma mais antiga entre os sinônimos encontrados nas diferentes comunidades. Assim, foram dadas três formas para ‘jibóia’: kamututsupãata, mapaiuru e katatypi, e segundo o conjunto de cognatos no item 25 da Tabela 01 a forma mais antiga é mapaiuru. CONCLUSÃO: O trabalho comparativo com as três línguas da família Aruák contribuiu para um maior conhecimento sobre as relações internas nessa família, pois os dados aqui descritos apresentam evidências importantes sobre a existência do subagrupamento Apurinã-PiroIñapari, e também relevantes para a reconstrução do Proto-Aruák. Finalmente, algumas inferências podem ser feitas a partir dos significados lexicais reconstruídos sobre a préhistória desses povos, tais como, por exemplo, o lugar de origem --- o que é comparável às informações dadas por arqueólogos e antropólogos. PALAVRAS CHAVES Aruák, Apurinã, Piro, Iñapari, Lingüística Histórica AGRADECIMENTOS Agradeço ao Prof. Dr. Sidi Facundes pela orientação recebida durante a pesquisa sobre a qual trata este artigo, e aos vários membros das comunidades apurinã e mantinéri com quem tive a honra de interagir durante pesquisa de campo e que tanto me ensinaram sobre suas línguas, entre eles: Raimundo Nonato Apurinã, Agostinho Mulato, João Baiano, Inácio, Francisca Araújo Apurinã, Manoel, Regina, Mirá, Isaura, Corina, Luiza Manxinéri, Rosa Manxineri, Luiz Antônio Brasil, Sebastião Manxinéri, Jaime Manxinéri e Waldemar Manxinéri. Agradeço ainda a Tóia Manxinéri e a sua esposa Graça, e a Antônio Apurinã pelo apoio que deram ao meu trabalho durante as viagens. Ficam também os agradecimentos a todos que direta e indiretamente contribuíram para a pesquisa. REFERÊNCIAS [ 1] SANTOS, Iza. Parte da revisão do componente indígena da BR 317. s/d. [2] PARKER, Steve G. Datos de la Lengua Iñapari. Perú: Ministério de Educacion, Instituto Lingüístico de Verano, 1995. [3] FACUNDES, Sidney da Silva . 2000. The language of the Apurinã People of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo: University of New York. [4] BRANDÃO, Ana Paula; FACUNDES, Sidney (orgs). Dicionário da fauna e flora apurinã. 2005. ms [5] MATTESON, E. The Piro (Arawakan) Language. Berkeley: University of California Press, 1965. [6 ] NIES, Joyce (org.) Dicionario Piro. Perú: Ministério de Educacion, Instituto Lingüístico de Verano, 1986. [7] FACUNDES, Sidney da Silva. Historical Linguistics and Its Contribution to Improving the Knowledge of Arawak, in Comparative Arawakan Histories, edited by Jonathan Hill and Fernando Granero. Illinois: University of Illinois Press, 2002a. [8] DIXON, Robert M. W.. Proto-Arawá Phonology. In Anthropological Linguistics, vol. 46, 1. Indiana University, Bloomington, Indiana: 2004. [9] PAYNE, David L. Classification of Maipuran (Arawakan) Languages Based on Shared Lexical Retentious. In Handbook of Amazonian Languages, vol. 3, pp.355-499, edited by D. C. Derbyshire and G. K. Pullum, 1991. [10] AIKHENVALD, Alexandra Y. Dicionário Tariana-Português e Português-Tariana. In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Série Antropologia. Belém: MCT/ Museu Goeldi, 2001. v. 17 (1). [11] ATI’O, Tominpainao; PARADAN, Wapichan; Na’iki, Parada-karu; KADUZU, Paradauzo-Karu. Scholar’s dictionary and grammar of the Wapishana Language. Porto Velho: SIL International, 2000. [12] HUBER, Randall; REED, Robert. Comparative vocabulary: selected words in indigenous languages of Colombia. Colombia: Instituto Lingüístico de Verano, 1992. [13] HECKENBERGER, Michael. Rethinking the Arawakan Diaspora: Hierarchy, Regionality, and the Amazonian Formative. In: SANTOS GRANERO, Fernando; HILL, Jonathan. Comparative Arawakan Histories: Rethinking Language Family and Culture Area in Amazonia. Urbana: University of Illinois Press, 2002. [14] GOW, Peter. In: SANTOS GRANERO, Fernando; HILL, Jonathan. Comparative Arawakan Histories: Rethinking Language Family and Culture Area in Amazonia. Urbana: University of Illinois Press, 2002. [15] GONÇALVES, Marco Antônio org. Acre História e Etnologia. Rio de Janeiro: Núcleo de Etnologia Indígena/Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1991, p. 180 a 182.