PLENARIUM
4
5
8
APRESENTAÇÃO
SUMÁRIO
EDITORIAL
ENTREVISTA
Dom Paulo Evaristo Arns
EM FOCO - Poder Legislativo & Democracia Contemporânea
26
41
57
78
98
112
115
123
142
152
1. A Reforma do Poder Legislativo no Brasil - Fabiano Santos
2. Modelos de Legislativo: O Legislativo Brasileiro em Perspectiva - Fernando
Limongi / Argelina Cheibud Figueiredo
3. Representação e Democracia no Cone Sul - Carlos Ranulfo Melo / Fátima Anastasia
4. Parlamento Transnacinal e Integração: A Experiência do Parlamento Europeu e as Ligações que a América Latina tem para o Mercosul - Susanne Gratius / Delfet Nolte
5. Fragilidade da Democracia no Parlamento Contemporâneo - Bonifácio de Andrada
6. Processos de Integração dos Legislativos no Mercosul - Gustavo Fruet
7. Política, Parlamento, Democracia - Mauro Santayana
8. O Impacto da Reforma Política sobre a Câmara Federal - David Fleischer
9. A Câmara dos Deputados e a Democracia Brasileira no Séc. XXI - João Paulo Cunha
10.Sobre a Reforma Política - Arlindo Chinaglia / Athos Pereira
OLHAR EXTERNO
162
1. A Segunda Década da América do Norte - Robert A. Pastor
T
PENSAR
174
180
188
210
215
1. A Armadilha do DLSP/PIB - Antonio Delfim Netto
2. O Desafio da Geração de Trabalho - Ariosto Holanda
IDÉIAS & LEIS
1. Estatudo do Idoso - Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.
2. Vida Nova para os Idosos - Paulo Paim
3. O Acesso do Idoso ao Judiciário - Fátima Nancy Andrighi
PALAVRAS E HISTÓRIA
220
1. Os Profetas do Amanhã - Discurso de Abertura da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 - Ulysses Guimarães
228
2. Receita Tropicalista de Constituição pelo Mestre Constituinte Ulysses Silveira
Guimarães - Luiz Gutemberg
IMAGEM HISTÓRICA
236
240
248
250
256
Foto de Arsênio da Silva por PedroVasques
PERFIL - Carlota Pereira de Queirós, por Ricardo Oriá
CHARGE - Bordalo Pinheiro, por Paulo Caruso
FOLCLORE POLíTICO - Sebastião Nery
LEITURAS - Alca: O Gigante e os Anões, por Paulo Roberto de Almeida
PLENARIUM
MESA DA CÂMARA
SECOM
PRESIDENTE
DIRETOR
CONSELHO EDITORIAL
Humberto Martins
Márcio Marques de Araújo
Jorge Henrique Cartaxo
Ricardo Oriá
Paulo Roberto Almeida
Carlos Henrique Cardim
Fabiano Santos
David Fleischer
Athos Pereira
Valter Costa Porto
Luiz Alberto Moniz Bandeira
3º SECRETÁRIO
TV CÂMARA
DIRETOR
Nilton Capixaba
Sueli Navarro
4º SECRETÁRIO
AGÊNCIA CÂMARA
Jorge Henrique Cartaxo
(61) 216 1803
Paulo César Santos
APOIO
João Paulo Cunha
1º VICE PRESIDENTE
Inocêncio Oliveira
2º VICE PRESIDENTE
Márcio Marques de Araújo
DIVULGAÇÃO
Mauro Di Deus
Luiz Piauhylino
RELAÇÕES PÚBLICAS
1º SECRETÁRIO
Sílvia Mergulhão
Geddel Vieira Lima
2º SECRETÁRIO
Severino Cavalcanti
Ciro Nogueira
SUPLENTES
RÁDIO CÂMARA
Gonzaga Patriota
Wilson Santos
Confúcio Moura e João Caldas
COORDENADOR DE JORNALISMO
PROCURADORIA PARLAMENTAR
Roberto Seabra
Luiz Antônio Fleury
Cid Queiroz
JORNAL DA CÂMARA
OUVIDORIA PARLAMENTAR
Heloísa Pinheiro
(61) 216 1805
Thaís Alves de Lima
(61) 216 1805
DIAGRAMAÇÃO/ILUSTRAÇÃO
Luciano Zica
Jonatas Bonach / Wagner Castro
DIRETOR GERAL
TRADUÇÕES
Sérgio Sampaio Contreiras de
Almeida
SECRETÁRIO-GERAL DA MESA
Mozart Vianna de Paiva
Sérgio Bath
CAPA
Ely Borges - Sedes do Poder
Legislativo no Brasil
FOTO E ARTE SOBRE FOTO
Edy Ferreira / Agência Estado
REVISÃO
Mônica Mulser Parada
ENDEREÇO ELETRÔNICO
[email protected]
Câmara dos Deputados, Secretaria de Comunicão, Praça do Três Poderes / Brasília - DF - CEP: 70.160-900
TELEFONE
(61) 216 1803 / 216 1810
APRESENTAÇÃO
ENTREVISTA
Talvez o maior desafio de uma política de comunicação para a Câmara dos Deputados
seja equacionar a dissintonia entre a crescente importância do Poder Legislativo brasileiro
na estabilidade institucional e na legitimação de políticas públicas governamentais, e a
não percepção desse valor, de forma explícita e contínua, pelo conjunto da sociedade
brasileira.
Um olhar mais exigente poderá observar que esse problema, de certa forma, se dá
na maioria dos países ocidentais, consideradas as nuances políticas, culturais, jurídicas
e conjunturais de cada nação. Essa aparente ausência de identidade dos Parlamentos é,
certamente, uma das conseqüências da crise do estado-nação contemporâneo, em que a
globalização constitui sua expressão jornalística mais bem acabada.
Daí o conjunto de reformas estruturais que se verificam em todos os continentes,
sugerindo, inclusive, uma releitura do papel dos legislativos nacionais. Instrumentos
jurídicos consagrados no século XX são hoje revistos e readaptados aos desafios sociais,
tecnológicos e econômicos contemporâneos. Se na Europa, existe o Parlamento Europeu,
na América Latina, apesar das institucionalidades distintas, foram criados o Parlamento
Latino-Americano (Parlatino), o Parlamento Centro-Americano (Parlandino), e já surgem
algumas discussões em torno de um futuro Parlamento do Mercosul.
É com essa percepção que temos procurado estimular o trabalho dos nossos veículos de
comunicação na Secom – televisão, rádio, jornal e agência - e foi com essa inspiração que
percebemos a necessidade de se ter, na Casa, uma publicação de referência. A PLENARIUM,
em boa hora, vem se somar aos nossos instrumentos de comunicação, agregando à nossa
tarefa uma atribuição a mais: a de trazer, de forma sistemática e orgânica, a reflexão da
academia, dos pesquisadores e da inteligência nacionais para os debates que a sociedade
brasileira, por meio dos seus representantes, remete para a Câmara dos Deputados. E, claro, é
importante sublinhar, PLENARIUM será, sobretudo, mais um espaço para os parlamentares
e servidores da Casa contribuírem para esse instigante desafio do nosso tempo que é o debate
para a construção do futuro.
Certamente, não será nessa publicação que iremos equacionar e documentar os
desafios que nos despertam, a cada dia, esses tempos de grandes transformações. Mas
estamos seguros de que oferecemos ao Poder Legislativo e ao País uma publicação que será
uma referência no mercado editorial brasileiro, estimulando a participação e a presença dos
centros de excelência brasileiros nos temas que animam as atribuições e responsabilidades
institucionais e constitucionais da Câmara dos Deputados.
Márcio Marques de Araújo
Diretor da SECOM
EDITORIAL
DOM PAULO EVARISTO ARNS
Dotar a Secretaria de Comunicação da Câmara dos Deputados de uma publicação
periódica de referência. De forma objetiva, foi essa a tarefa que o Diretor da SECOM, Márcio
Araújo, me confiou ao convidar-me para integrar sua equipe, no início de 2003.
Para definir e conceber esse projeto editorial, considerando as especificidades da
nossa instituição, trabalhamos com o seguinte conceito: PLENARIUM terá como objetivo
central divulgar, documentar e estimular a reflexão sobre os desafios contemporâneos
que a sociedade brasileira remete ao Poder Legislativo. Dessa forma, a nova publicação
abrigaria textos e ensaios, não apenas dos parlamentares, dos técnicos e consultores do Poder
Legislativo, mas, sobretudo, dos pesquisadores da academia e dos centros de excelências de
todo o País.
Diante da profusão de assuntos que integram a pauta do Congresso Nacional,
prevaleceu o entendimento de que cada edição abordaria um tema dominante, que se
buscaria aprofundar com os textos e reflexões de vários especialistas. Nesse primeiro número
tratamos, em dez ensaios, do Poder Legislativo na Democracia Contemporânea. Além da
reforma política que está sendo discutida no Congresso Nacional, a globalização e a criação
dos blocos regionais estão impondo uma redefinição do papel dos estados nacionais, com
grande repercussão nas atribuições e funções dos legislativos em todo o mundo.
A definição desse conceito nos remeteu a uma outra reflexão: PLENARIUM precisava
ter uma singularidade, uma identidade própria, algo que fosse a marca da sua origem.
Seria insuficiente, ainda que plenamente justificável, uma publicação apenas temática. A
reprodução difusa das experiências – muitas, extraordinárias –, das publicações regulares
existentes em vários departamentos universitários, não acolheria a dimensão que um
periódico de referência, editado pela Câmara dos Deputados, necessariamente deve ter.
Assim, além do tema principal, acrescentamos uma série de seções com o objetivo
de construir a identidade que buscamos. A primeira seção constará de uma entrevista.
Mas não a entrevista clássica, jornalística e conjuntural. Inspiramo-nos na experiência da
Documentation Française, que sempre convida uma figura importante da história da França
para uma reunião com jornalistas e estudiosos da vida e/ou da época do entrevistado,
para juntos fazerem uma reflexão sobre o personagem e sua obra. Esse primeiro número da
PLENARIUM traz a figura extraordinária de Dom Paulo Evaristo Arns.
Com o objetivo de não engessar o espaço editorial da revista, subordinando todos os
ensaios ao tema central, percebemos que seria importante uma outra seção que acolhesse
também textos com temas livres. O relator de um projeto importante, o líder de uma bancada,
o presidente de uma Comissão, um pesquisador, um servidor do Congresso, enfim, qualquer
personalidade que se interesse em dividir com a Casa a complexidade de determinado tema
será plenamente atendido nesse espaço de expressão, ainda que seu texto não se enquadre
no tema central da edição. Nesse primeiro número publicamos ensaios dos deputados Defim
Netto e Ariosto Holanda.
Incluímos, também, a publicação de um texto de um pesquisador estrangeiro, inédito
ou não, cujo tema de alguma forma enriqueça o nosso debate. Esse espaço deve acolher,
ainda, as reflexões dos brasileiros que estão no exterior, a estudo ou a trabalho. A experiência
e o olhar dessas pessoas, nesse momento de grandes e rápidas transformações no cenário
brasileiro, constituem-se numa importante contribuição aos que dele fazem parte. Nessa
primeira edição, apresentamos um texto do professor americano Robert Pastor.
Como a Câmara dos Deputados é sobretudo a “Casa das Leis”, achamos ainda que
seria interessante a publicação comentada de uma lei, em cada edição da PLENARIUM.
Dessa vez, trazemos o Estatuto do Idoso, com as observações do senador Paulo Paim, autor
do projeto, e da ministra do STJ, Fátima Nancy Andrighi. Da mesma forma, pretendemos
publicar e comentar o Estatuto do Desarmamento, a Lei de Falências, o novo Código das
Águas, entre outros.
Como dispomos de um acervo extraordinário de documentos e imagens, onde estão
guardadas todas as falas importantes da história do nosso Parlamento e, de certa forma,
da história política do Brasil e, ainda, podemos e devemos estabelecer uma conexão com
os demais acervos do País, percebemos aqui uma rica oportunidade de se contribuir para
o resgate do papel de grandes atores e momentos específicos da construção da Nação
brasileira. Com esse objetivo, foram criadas outras cinco seções na PLENARIUM.
A primeira delas resgatará os grandes pronunciamentos da nossa história, devidamente
comentados por personalidades à altura do desafio. Nessa edição, publicamos o discurso
do ex-deputado Ulysses Guimarães na solenidade de instalação da Assembléia Nacional
Constituinte de 1987-88. A fala do emblemático parlamentar paulista é analisada pelo
jornalista Luiz Gutemberg. Com o mesmo objetivo, traremos sempre o perfil de um
personagem destacado da história brasileira. Nesse número, o historiador Ricardo Oriá nos
fala da vida e da obra da primeira deputada da América Latina, Carlota Pereira de Queirós.
A seção Imagem e História trará sempre uma fotografia histórica, acompanhada de uma
apresentação. Essa edição apresenta a foto do Largo do Paço Imperial no dia do casamento
da princesa Isabel, com o texto do colecionador Pedro Karp Vasques. Nas duas seções
seguintes, traremos sempre uma charge escolhida e comentada pelo Paulo Caruso e as
saborosas histórias do jornalista Sebastião Nery, com seu Folclore Político.
Para terminar, teremos o espaço para as resenhas, onde nossos colaboradores poderão
dar conta das últimas publicações, no Brasil e no mundo, que correspondam ao nosso
universo de interesses. Dessa edição, consta um comentário do diplomata Paulo Roberto
Almeida.
Não poderíamos encerrar esse editorial sem agradecer a todos aqueles que acreditaram
no projeto enviando seus trabalhos e textos, ao apoio e confiança da administração da
Câmara dos Deputados mas, sobretudo, àqueles que participaram da construção dessa
publicação, com suas idéias, trabalho e sugestões, desde a elaboração do seu projeto
editorial, até o encaminhamento para a gráfica.
São eles: os professores Carlos Henrique Cardim, Fabiano Santos, David Fleischer,
Mauro Santayana, Wanderley Guilherme dos Santos, Costa Porto, Ricardo Oriá, Mônica
Mulser Parada, Paulo Motta e Paulo Roberto Almeida. Os colegas da SECOM, Márcio
Araújo, Tarcísio Holanda, Mauro Di Deus, Flávio Elias, Alexandre Rios, Frederico Campos,
Sueli Navarro, Pedro Noleto, Ademir Malavazzi, Gentil Sbarddelloto, Raquel Mello, Heloísa
Pinheiro, Thaís Alves Lima e Ely Borges.
O protocolar agradecimento à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, nesse projeto
representada pelo presidente João Paulo Cunha, se reveste de uma satisfação toda especial. O
entusiasmo e apoio do presidente João Paulo à revista Plenarium, desde o início da discussão
do projeto, se fez acompanhar de uma notável elegância e percepção intelectual dignas de
referência nesse momento.
Boa Leitura!
Jorge Henrique Cartaxo
Diretor da Plenarium
ENTREVISTA
DOM PAULO EVARISTO ARNS
“Meus amigos, a teologia da
libertação me fez sofrer, mas eu
ainda acredito nela, e acho que
ela é que vai salvar a América
Latina e – quem sabe? – também
a Europa dessa crise terrível em
que está entrando”.
Momentos, Críticas e História
D
om Paulo Evaristo Arns não é um homem comum. Sua presença na história
contemporânea brasileira redimensiona valores e conceitos que se traduzem nas
palavras bondade, generosidade, coragem e virtude. Símbolo da luta pelos direitos humanos
no Brasil, esse filho de colonos do interior de Santa Catarina enfrentou, com sobriedade e
destemor, subordinados, oficiais, generais e presidentes que trouxeram o horror da tortura
para a vida política brasileira, sobretudo no período sombrio do governo Médici (1970/73).
Nessa entrevista para o primeiro número da revista PLENARIUM, Dom Paulo fala da sua
formação religiosa, dos seus embates contra a ditadura militar (1964/1984), da sua relação
com Paulo VI e do seu encontro com o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter.
Ainda nessa reunião, que teve lugar no Convento São Francisco, em São Paulo, e contou com
a participação do Monsenhor Dário Bevilacqua, do vice-prefeito de São Paulo, ex-deputado
e ex-Procurador Hélio Bicudo, do Padre Beozzo, do jornalista Mauro Santayana e do diretor
da PLENARIUM, jornalista Jorge Henrique Cartaxo, Dom Paulo recomendou ao presidente
Lula “ uma reforma completa na política” e explicou como a Igreja deve se posicionar frente
à complexa e polêmica evolução da engenharia genética.
8
DOM PAULO EVARISTO ARNS
Padre Beozzo – Dom Paulo, pensei na sua formação. O senhor nasceu
em Forquilinha, em Santa Catarina. Seus
pais, Gabriel e Helena, constituíram uma
família grande com muitos filhos e filhas.
Quais valores desse mundo familiar o
senhor trouxe para a vida pública? Depois,
o senhor transformou-se em franciscano.
Frei Leonardo Boff me pediu que eu lhe
perguntasse como essa figura seminal de
São Francisco inspirou sua vida e sua ação
pastoral.
Depois, o senhor estudou patrística
e letras clássicas na Sorbonne. O senhor
gosta de ser um bom escritor, é caprichoso no estilo. O senhor escreveu sobre
Clemente de Roma, Inácio de Antioquia,
Ambrósio de Milão, freqüentou muito
São Jerônimo, estudou a técnica do livro
naquela época, e o senhor foi professor de
patrística. Como os padres da Igreja, que
enfrentaram o poder político com audácia
e firmeza, também acabaram inspirando o
senhor na sua luta contra a opressão e a
ditadura?
Como o senhor explica esse mundo de
formação em sua casa, como franciscano,
e como encara a sua experiência na
patrística para a sua vida pública?
Dom Paulo Evaristo Arns - Para responder, rapidamente, deveria dizer que
decidi seguir a carreira literária, que culminou com o doutorado na Sorbonne, em
Paris, na França, onde fiquei cinco anos
como aluno, incentivado por carta de meu
irmão. Um pouco mais idoso do que eu,
ao se formar ele me escreveu uma carta em
que me incentivava a continuar os estudos
e, em particular, os estudos clássicos.
Ele assim dizia: “Você gosta de
latim, já tem seis anos de latim; você pode
agora passar a vida inteira estudando latim
e publicando as obras daqueles padres dos
cinco ou seis primeiros séculos, que são um
tesouro escondido, que não é conhecido
no Brasil nem na Europa. Você sabe grego.
Então, estude mais grego, arranje um bom
professor, e você vai poder publicar obras
importantes para a história da cultura cristã
da Antiguidade”.
No mesmo dia, eu fui procurar o
Prof. Frei Tito, que, aliás, trabalhou em
São Paulo também, por algum tempo, e
lhe disse que gostaria de ler um livro da
Antiguidade, começando pelo latim. Ele
me respondeu: “A obra mais bonita que
conheço em toda a literatura cristã, em
latim, são as cartas de São Jerônimo para
suas amigas e seus amigos, em todo o
mundo. Se você quiser, vou buscá-la na
biblioteca”.
Fomos juntos à biblioteca, eu trouxe
o livrinho, e daí em diante posso dizer
que nunca mais deixei de cultivar o
latim, o grego e, sobretudo, a história da
Antiguidade para poder produzir qualquer
coisa. Infelizmente, como você bem o disse,
só tive ocasião de publicar meia dúzia de
livros e de artigos a esse respeito, mas
não cheguei nunca a exprimir aquilo que
estava no meu coração – ou seja, como, a
partir do Cristo, o cristianismo se expandiu
e conquistou as almas mais generosas
daquele tempo. Infelizmente, não fiz
aquilo que desejava, porque me nomearam
Bispo, Arcebispo e Cardeal... E como,
envolvido por tantas responsabilidades, eu
teria tempo para me dedicar aos estudos e
a outras coisas que queria fazer?
Monsenhor Dário Bevilacqua – O
senhor foi nomeado Bispo, Dom Paulo,
em momento muito vivo da vida da Igreja.
Estávamos vivendo o Concílio Vaticano II,
as grandes reformas que o Papa João XXIII
tinha promovido para a Igreja, que devia
estar em dia com o mundo, e o senhor
9
ENTREVISTA
foi nomeado Arcebispo de São Paulo, no
começo da década de 70, permanecendo
nesse cargo por 25 anos.
A formação cultural que o senhor
construiu na base fundamentou as grandes
opções pastorais pelas quais o senhor foi o
grande responsável em São Paulo, como,
por exemplo, a opção pelos pobres, pelos
trabalhadores e pelos direitos humanos.
condição de Bispo-Auxiliar e, depois, de
Arcebispo na Arquidiocese de São Paulo,
que começou realmente no Brasil a luta
pelos direitos humanos. O senhor, quando
criou a Comissão Justiça e Paz, num
primeiro momento enfrentou a ditadura
militar, as torturas, as eliminações físicas,
as prisões ilegais. O senhor ia pessoalmente
aos responsáveis por esses fatos, por
essas violações, e os interpelava.
Muitas vezes, o senhor conseguiu
fazer com que as coisas não
os
caminhassem como a ditadura
militar gostaria.
os jor-
Dom Paulo Evaristo Arns - Não
há dúvida nenhuma, Monsenhor
Dário. Posso dizer que, desde
“Com
o começo, desde a hora em
estudantes,
que cheguei a São Paulo,
Lembro-me da sua
nalistas e os operários,
interessei-me por todas
atuação
quando da morte
as lutas que havia em
essas três classes, podemos
do operário Manoel
torno dos direitos e da
dizer
que
os
intelectuais
de
Fiel Filho, do jornalista
dignidade da pessoa
humana. Logo que
São Paulo demonstraram que Vladimir Herzog e de
todos os presos que
assumi, eu fui visitar os
eles constituem, realmente, corriam à Cúria de
presos políticos, fui me
uma elite mundial capaz de São Paulo em busca de
informar sobre o que
fazia o regime militar,
enfrentar a força do Exército seu socorro, que era
fundamental para todos
como procediam os juízes
sem
derramar
sangue
e
nós, cristãos ou não, para
e como procediam aqueles
que não houvesse violação
a quem se confiavam os
sem prejudicar pessoa
dos
direitos humanos
presos.
alguma”.
durante todo esse período.
A minha vida, ao menos
Portanto, o senhor encarna
pela metade, foi ocupada em
a marca inicial, no Brasil, pela
socorrer aqueles a quem eu podia
defesa
dos direitos humanos.
dar uma pequena ajuda. Eu fui BispoAuxiliar, de 1966 a 1970; foi uma ajuda
Dom Paulo Evaristo Arns - Acredito
pequenina, depois ela foi crescendo em
que o senhor está atribuindo a mim o que
dimensão, até eu chegar a debater com os
compete ao senhor (risos dos presentes).
Presidentes da República sobre a maneira
Isso é muito interessante, porque o senhor
de proceder com o povo no Brasil.
escreveu contra o Governo e protestou
contra a prática das torturas. E não pôde
Hélio Bicudo - Dom Paulo, lembropublicar um livro. Então me perguntou:
me de que, no início da década de 70,
“Como é que vamos publicar esse livro”?
quando o senhor assumiu a Arquidiocese
Consegui que esse livro fosse lançado e
de São Paulo, recebi uma carta sua – o
tivesse o condão de acordar as consciências,
senhor mal me conhecia – sobre a luta
ao menos daquelas pessoas que confiavam
que eu estava tendo com o Esquadrão da
em nossa ação e que sabiam que devíamos
Morte. Acredito que foi com o senhor, na
10
DOM PAULO EVARISTO ARNS
agir quando tivéssemos um incentivo e
uma obrigação para tanto. E o senhor
nos obrigou a entrar nessa luta decisiva e
importante.
por esse caminho, quando se renovou a
democracia mais ou menos vacilante. Em
todo caso, há democracia, em vez de se
derramar o sangue de irmãos.
Com os estudantes, os jornalistas e
os operários, essas três classes, podemos
dizer que os intelectuais de São Paulo
demonstraram que eles constituem,
realmente, uma elite mundial capaz de
enfrentar a força do Exército sem derramar
sangue e sem prejudicar pessoa alguma.
O senhor é quem começou o movimento
e me lançou para ele. Aceitei-o de muito
bom grado. Era minha obrigação como
pastor da Igreja e era esta, também, a
vontade do povo a quem eu servia.
Mauro Santayana - Eu me permitiria
fazer apenas outra pergunta ao senhor.
Estamos hoje diante de um problema muito
grave. Procura-se criar uma falsa guerra
santa entre o islamismo e o cristianismo.
Isso se desenvolve de maneira muito
difícil e perigosa. Na Alemanha, vimos o
problema da proibição do uso de crucifixos.
Na França, há o problema do impedimento de as meninas muçulmanas irem
à escola com o véu. Hoje, em um artigo
que publico, afirmo que se dá a impressão
de que os petroleiros do Texas querem
colocar Cristo em sua folha de pagamento
com o fundamentalismo protestante da
Igreja Batista de Bush.
Mauro Santayana - Dom Paulo,
minha pergunta é simples. O senhor está
satisfeito com sua presença no Brasil, no
século e no mundo de hoje?
Dom Paula Evaristo Arns - Santayana,
você é um filósofo, que pensa muito a
respeito da vida. Aliás, escreveu uma
pequena biografia da minha pessoa e
revelou-se conhecedor profundo da alma
humana. Nunca estamos satisfeitos com
o que realizamos. O meu desejo era
promover, em São Paulo, uma verdadeira
evolução dos estudos para compor toda
a história e relatar o trabalho das missões
para o futuro. Isso era fundamental para
mim. Não consegui quase nada do que
pretendia. Os livros publicados, os artigos
lançados pelos jornais, as alocuções e
as grandes reuniões do povo, imensas e
grandes reuniões, deixaram claro que o
povo conscientizou-se de que deve tomar
a história na mão e caminhar com os que
sabem que é possível abrir um caminho.
Qual é o caminho? O senhor foi um
dos que nos ajudou a buscar o caminho
que deveríamos seguir. O povo acabou,
com muito custo e trabalho, nos seguindo
Dom Paulo Evaristo Arns - Santayana,
há dois anos fui nomeado Conselheiro da
Universidade do Estado de São Paulo, USP.
Propus, logo como primeiro tema, o entendimento entre as religiões. Participei, quatro vezes, de grandes reuniões. Chegamos
a 39 religiões, que se juntaram para falar
sobre a paz no Oriente, em Jerusalém,
sobre a fome e a má distribuição das riquezas na Terra. O primeiro artigo que propus
foi: as religiões devem unir-se para criar
um só e grande ideal – o ideal da paz e da
solidariedade. E, tudo o mais, cada religião
cultiva por si mesma para chegar à meta
que o fundador propôs ou que ela mesma
propunha.
Padre Beozzo - Dom Paulo, o Papa
Pio XI afirmou que o grande drama da
Igreja foi ter perdido a classe operária.
Muitos intelectuais também se afastaram
da Igreja no Brasil. Por exemplo, a geração
de 1870, formada na Faculdade de Direito
de São Paulo, dos quais os mais conhecidos
11
ENTREVISTA
foram Rui Barbosa e Joaquim Nabuco,
todos se afastaram da Igreja, praticamente
houve uma ruptura. O senhor acabou de
dizer que foi convidado para entrar no
Conselho da USP.
pertencer a uma outra classe: a classe
dos estudiosos”. Ele era colono, não tinha
nem um ano de estudo. Aprendeu a ler e
a escrever. Tornou-se até um intelectual
a partir de esforço próprio. Ele me disse:
“Parta para as maiores escolas do mundo,
mas não esqueça uma coisa: você é filho
de colono. Nunca negue que é filho de
trabalhador. Sempre defenda os trabalhadores”.
O senhor viveu momento de grande
aproximação com o mundo intelectual,
quando o Governo fechou as portas das
Universidades públicas para a realização
da reunião da SBPC (Sociedade BrasiEssas palavras vieram-me à
leira para o Progresso da Ciência),
mente no exato instante em que
o senhor abriu as portas da
me entregaram o diploma na
PUC (Pontifícia Universida“Quantas
Sorbonne com a maior disde Católica de São Paulo).
vezes eu tive de
tinção, ao mesmo tempo
Quando desejou fazer um
entrar pessoalmente?
em que me felicitaram.
estudo mais abrangente
Eu disse aos professores:
sobre São Paulo, foi proEu colocava todas as ves“Sou filho de um colono”.
curar o CEBRAP, o Fertimentas de um Cardeal,
Mandei um telegrama
nando Henrique Cardoaparecia lá como alguém para o meu pai em que
so e outros intelectuais
para escrever trabalho
estranho a esse mundo (risos) dizia: “O filho do colono foi hoje agraciado
intitulado “São Paulo:
e
subia,
ia
diretamente
ao
com o maior diploma
Crescimento e Pobreza”. Posteriormente,
gabinete do diretor, sem pedir da Universidade mais
o senhor fez da PUC
licença a ninguém, abrindo eu célebre do momento
na Europa. Não leve a
um espaço aberto para
mesmo as portas, entrando e mal, porque continuaacolher Florestan Ferrei a ser filho de um
nandes, Otávio Iani, os
dizendo: “Senhor Diretor,
colono”. Por isso, qualprofessores então cassavenho aqui reclamar por quer luta que haja entre
dos. Desejo que o senhor
causa da tortura deste,
operários e a sociedade,
fale do encontro entre a
sempre,
em primeiro lugar,
classe operária e a classe
deste e deste opeacho que devo tomar posiintelectual, no trabalho que
rário
”.
ção em favor do mais fraco,
o senhor teve oportunidade de
daquele que enfrenta dificuldade
realizar em São Paulo.
para obter os meios de defesa, tanto
Dom Paulo Evaristo Arns na
imprensa
quanto em outros setores da
Você formulou uma pergunta sumamente
vida social.
importante para o futuro, não só da Igreja,
mas também da humanidade. Devemos
nos entender com os operários. “Quando
sai de casa, meu pai me disse: “Você
agora pode estudar. Só que, a partir de
agora, vai pensar diferente de nós e vai
12
Uma coisa destaco: quando o
operário tem razão em suas reivindicações e reconhecemos isso – para tanto,
Monsenhor Dário pode dar uma prova
– temos o Conselho de Presbíteros.
DOM PAULO EVARISTO ARNS
Perguntava eu, ao Conselho, se deveria
entrar ou não nas lutas, e sempre me
aconselhavam a ir com Dom Cláudio e
os operários Lula e companhia no ABC.
Posteriormente, São Paulo inteiro entrou
na luta e levou caminhões de comida para
as famílias não desanimarem. Levamos
tudo o que pudemos, sobretudo o apoio
jurídico – o Dr. Hélio Bicudo sabe do
apoio que demos à classe operária, naquele momento. Sempre que colocavam um
chefe na cadeia, íamos lá, pessoalmente,
reclamar e o tirávamos de lá.
Quantas vezes eu tive de entrar pessoalmente? Eu colocava todas as vestimentas de um Cardeal, aparecia lá como
alguém estranho a esse mundo (risos) e
subia, ia diretamente ao gabinete do diretor, sem pedir licença a ninguém, abrindo
eu mesmo as portas, entrando e dizendo:
“Senhor Diretor, venho aqui reclamar por
causa da tortura deste, deste e deste operário”. Eu tinha a lista na mão e a mostrava
para ele. Portanto, essa luta com os operários foi, de fato, imprescindível – e essa
luta assim será até o fim do mundo. Temos
de lutar para que todos sejam operários,
operários de coração, ajudando uns aos
outros, uns talvez mais pelo pensamento,
outros talvez mais pelas mãos, outros,
ainda, descobrindo novos métodos para o
futuro.
Já com os intelectuais, a coisa era
mais difícil. Quando precisei recorrer à
nossa Associação de Defesa dos Direitos
Humanos, Dr. Hélio, o senhor me desculpe,
eu tive de falar com onze pessoas e
oferecer-lhes um almoço, para então pedir
que fizessem uma equipe de defesa de
toda a população de São Paulo e imaginar
um novo Brasil, um Brasil diferente, um
Brasil que todo mundo quisesse. Não deu
certo. Ninguém aceitou.
Afinal, Dalmo Dallari, que em criança foi um boy de rua e que conhecia todas
as entradas de São Paulo, veio e sentou-se
à minha mesa. Quando eu expus-lhe a
minha agonia de estar sozinho no meio de
uma luta gigantesca, ele disse: “Eu aceito,
só que não tenho prestígio para aglomerar
toda essa gente que o senhor quer. Mas
vou ajudá-lo. Muita gente vai ajudá-lo”.
Muitos padres ajudaram-me, sobretudo
Monsenhor Dário (Bevilacqua).
Posso dizer então que conseguimos,
aos poucos, uma equipe que poderia
enfrentar qualquer outra equipe na Europa
ou no mundo, tão bem-preparada estava,
tanto para escrever, para falar, quanto para
entrar em um processo já iniciado. Vale
a pena e, quando fiz a última reunião,
dela participaram 51 intelectuais, entre
os maiores que conheci no Brasil, na
Europa ou em qualquer lugar do mundo.
E fico muito satisfeito em dizer: “Essa
gente descobriu a Igreja pela luta operária,
pela igualdade e dignidade de todos os
homens”.
Para dizer também sobre como os
jovens se comportavam, devo confessar que
diversas vezes tive de entrar diretamente na
luta. Um exemplo ilustrativo disso foi uma
revolta, ocorrida em 1973, na USP, em
que mataram um estudante de Sorocaba,
Vanucchi Leme, que teve de ser levado à
Catedral. Eles queriam que o levassem lá
na escolinha deles para ter uma satisfação.
Eu disse: “Não, não. É uma coisa que
precisa penetrar no Brasil. Nós precisamos
ir para o centro de São Paulo e, se vocês
todos vierem e se animarem, vamos levar
essa idéia de insatisfação a todo o Brasil”.
E não demorou para a Polícia invadir
a nossa PUC, e os estudantes de todo o
Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, em
1968, realizarem aquele forte movimento.
13
ENTREVISTA
Eles ajuntaram-se e de fato produziram
uma reação formidável. Assim, podemos
dizer que a conquista se faz através
de um objetivo claro, que convença o
homem de sua responsabilidade perante
a humanidade, sobretudo diante dos
temas mais delicados: a liberdade e a
responsabilidade.
atravessando o Rio de Janeiro, olhando
todas as partes, mas muito mais para dentro
de si e respondendo às minhas perguntas
sobre a responsabilidade dos Estados
Unidos. Eu lhe disse que, para haver uma
nação pacífica, esta não poderia proceder
a guerras, como estiveram fazendo agora
com o Iraque. Isso é uma loucura. É
simplesmente contra o próprio espírito
Dário Bevilacqua - Os resultados da
americano. Eles devem ir ajudar, como
luta em que o senhor se empenhou foram
povo pacífico, a todos aqueles que de
reconhecidos internacionalmente, não
fato precisam, contribuindo para o
só pelos milhares de títulos Doutor
bem-estar da humanidade, e não
Honoris Causa que recebeu – e
“Precisamos
apenas em prol do interesse
que não saberia dizer quantos
de
justiça,
de
do próprio país.
são...
solidariedade. Temos
Padre Beozzo - Dom
Paulo,
vou lembrar um
de construir a história de
pouco sobre a luta dos
forma totalmente diferente:
direitos humanos. O
Dário Bevilacqua sem
fuzis
na
mão,
sem
militasenhor não só recebeu
Mas também por organismos internacionais
res exercendo seu ofício, mas, o reconhecimento universal de seu trabalho
de grande prestígio.
sim, com homens que sabem em prol dos direitos
Uma vez o senhor
levar o povo de novo a crer em humanos no Brasil e
recebeu do presidente da República dos
si, em Deus e na igualdade de no mundo, como também um prêmio que,
Estados Unidos, Jimmy
todos
os
homens.
Só
dessa
para mim, equivale ao
Carter, uma condecoraPrêmio Nobel da Paz, o
ção. Qual foi essa conmaneira chegaremos a venPrêmio Niwano da Paz.
decoração?
cer o terrorismo, e nunca
Gostaria que o senhor nos
Dom Paulo Evaristo
por meio de uma
dissesse
alguma coisa sobre
Arns - Foi a de Doutor
como foi a recepção desse
guerra”.
Honoris Causa e, naquele
Dom Paulo Evaristo
Arns - Uns vinte e poucos
(risos)...
momento, ele levou aquilo tão
a sério que me prometeu, como
novo Presidente dos Estados Unidos, que
estaria daí a um ano no Brasil para examinar as questões e também impor toda a
força dos Estados Unidos contra a tortura.
Provavelmente, ela passou dos Estados
Unidos para o Brasil – e que ela seja, também, eliminada nos Estados Unidos.
O presidente Jimmy Carter veio e
ficou comigo no carro, durante uma hora
14
prêmio e que destino o senhor
deu a ele, em decorrência de sua
luta pelos direitos humanos.
Dom Paulo Evaristo Arns - De fato,
no Japão, eles abriram uma espécie de
paralelo ao prêmio Nobel. Portanto, a cada
ano, eles dão 250 mil dólares, pagam-nos
todas as despesas de viagem, durante uma
dúzia de dias naquele país, e tratam-nos
com uma dignidade e uma fineza que são
bem raras no mundo.
DOM PAULO EVARISTO ARNS
Eu recebi, de repente, o convite: “O
senhor está convidado a receber o prêmio e para isso perguntamos se o senhor
o aceita”. No começo, pensei: nunca fiz
nada de especial para o Japão, e como se
lembraram do meu nome? Mas respondilhes: “Se for para a paz, estou disposto a
tudo”. Eles responderam : “É para a paz.
É uma organização de cinco milhões de
japoneses que treinam em escolas fechadas, durante a semana, para saberem tratar-se mutuamente com respeito e também
progredir juntos com a comunidade”.
Estudei a Constituição do país e
disse: “Sim, eu vou”. Fui lá e fiz uma
conferência para cinco mil budistas. Todos
tinham tradução simultânea em japonês e
me entenderam imediatamente. Sempre
respondiam com muito entusiasmo a tudo
quanto eu dizia. Naquela oportunidade,
eu lhes disse: “Amai os vossos inimigos;
rezai por aqueles que vos perseguem e
vos caluniam; fazei o bem a todos, assim
como quer que façam a você”.
Quando conclui a conferência, o
presidente levantou-se e perguntou, à frente
da estátua de Buda: “Podemos publicar
essas palavras de Jesus para todo o mundo
ou é reservada”? Respondi que a palavra
de Jesus é para ser difundida o máximo
possível. Ele então respondeu que garantia
que a palavra de Jesus seria reimpressa, ao
menos cinco milhões de vezes no Japão,
das maneiras mais diversas. Depois que
voltei para casa, pensei nos 250 mil dólares
que tinha ganhado. Como franciscano não
preciso de nenhum dólar para viver, porque
me dão comida, vestimenta e locomoção
de um lugar para o outro. O que iria fazer
com 250 mil dólares?
Era dia de Natal. Que Natal! Ia
começar a Santa Missa, à meia noite, na
Catedral de São Paulo, repleta de pessoas
pobres. Fui entrando e, quando cheguei
perto do altar, estavam nos degraus todos
os pobres e todos aqueles que tinham
bebido cachaça durante o dia, que tinham
feito suas poesias, composto seus cantos.
Estavam deitados, roncando, cantando ou
falando entre si.
Mas, quando chegou a hora do
sermão, todos se calaram. Eu disse que
tinha decidido dar o prêmio de 250 mil
dólares que ganhei no Japão para as pessoas
da rua e, para isso, nomeava o Padre
Júlio Lancelotti para fazer uma consulta
sobre o que queriam fazer com aquele
dinheiro, que significava muito em relação
à moeda brasileira. Todos se assustaram,
bateram palmas e disseram: “Opa, um
padre oferecendo dinheiro!” (Risos).
O Padre Júlio Lancelotti consultou
todos os pobres que podia e indagou o
que queriam. Responderam que queriam
uma catedral. Mas, além de já termos
uma catedral, não se constrói uma obra
daquela envergadura com esse dinheiro.
Eles disseram que a catedral seria de
madeira, construída em um lugar bem
central, perto da igreja São Cristóvão. Teria
embaixo uma parte onde eles poderiam
tomar banho, mudar de roupa, fazer a barba
e se enfeitarem, no caso das mulheres.
Depois, poderiam subir as escadas para
fazer as reuniões, pensar sobre a vida,
discutir sobre o que se fez e o que farão
no futuro.
Em poucos meses, a Cúria
Metropolitana cedeu o terreno e construímos aqueles dois andares da catedral
dos homens da rua, que está lá para visita
constante dos pobres que vêm para, em
primeiro lugar, limpar-se e aparecer como
gente, depois aparecer como filho de Deus
e dizer que veneram o Cristo pobre. O
Cristo sempre está pronto para encontrar-se
15
ENTREVISTA
com o Pai, com o coração todo voltado
para Deus e com o corpo preparado para
encontrar seus irmãos. Isso acontece desde
que a catedral foi inaugurada até os dias de
hoje, e está funcionando sob a direção do
Padre Júlio Lancelotti.
presente, mas também pelo passado e pelo
futuro da humanidade.
Precisamos de justiça, de solidariedade. Temos de construir a história de
forma totalmente diferente: sem fuzis na
mão, sem militares exercendo seu ofício,
mas, sim, com homens que sabem levar o
povo de novo a crer em si, em Deus e na
igualdade de todos os homens. Só dessa
maneira chegaremos a vencer o terrorismo,
e nunca por meio de uma guerra.
Mauro Santayana - Dom Paulo, falamos há poucos instantes sobre o problema do cristianismo. Temos um problema
importante, hoje, a discutir, que é o terrorismo, que passou a equivaler a uma
execração. Entre os grandes atos
Dário Bevilacqua - Durante
de terrorismo do século XX, o
muitos anos, conforme seu
“Como
senhor incluiria o bombardeio
relato, o senhor trabalhou,
a mulher é
de Hiroshima? Lembrei-me
como Arcebispo de São
desse fato quando o senhor
forte! Como a mulher
Paulo, com uma equipe de
falou do Japão.
bispos. O senhor tinha o
nos surpreende muitas
Dom Paulo Evaristo
seu grupo do colégio episvezes! Como ela merece copal. A idéia era consArns - Evidentemente. O
bombardeio de Hiroshima
louvor todo especial tam- truir um governo diferenfoi um ato terrível, embo- bém no campo da ciência,
te para a diocese de São
ra não se pudesse medir
Paulo, em que houvesse
da
pesquisa
e
no
do
incenas suas conseqüências,
dioceses interdependennaquele tempo, porque foi
tes,
de tal modo que cada
tivo para a juventude
a primeira experiência com
região episcopal tivesse um
encontrar seu camia bomba atômica. Assim
nível de responsabilidade
nho”.
mesmo, foi um ato impere atuação. Essa experiência
doável. A história nunca vai
valeu a pena, Dom Paulo?
esquecer disso. Quando estava
Dom Paulo Evaristo Arns no Japão, referi-me a esse ato, com
Valeu a pena. Só lastimo que o senhor
grande respeito diante do povo japonês.
atribua o mérito e mim. O mérito é de
Os americanos, que também estavam prePaulo VI, o Papa. Quando fui visitá-lo pela
sentes, causaram esse drama para a humaprimeira vez, em 1973, na qualidade de
nidade. Acho terrível.
Arcebispo, para expor a situação de São
Há outra coisa, Santayana: terrorismo
não se combate com guerra. Foi um erro o
fato de o presidente americano George
Bush convidar a Espanha, a Inglaterra e
outros países a participarem da guerra
contra o Iraque. Foi um crime contra a
humanidade, semelhante ao de Hiroshima
e a outros crimes que não esquecemos.
Todos somos responsáveis, não só pelo
16
Paulo, ele me disse: “Precisamos mudar
completamente a ação da Igreja nas grandes cidades. Então vou pedir um grande
favor ao senhor. O senhor agora vai visitar as
grandes cidades, e quando tiver visitado 3
ou 4 cidades, o senhor volta e me conta
como cada uma delas está procedendo,
porque precisamos fazer uma divisão nas
cidades, mas também precisamos levar
DOM PAULO EVARISTO ARNS
todas as pessoas a assumirem as suas responsabilidades de cristãos, quer dizer, de
propagar o cristianismo e de fazer o Cristo
conhecido e amado. Então, Deus será
conhecido e amado, e os homens serão
respeitados, porque são filhos adotivos de
Deus”.
Eu viajei por muitas cidades. Fui
até São Francisco, nos Estados Unidos,
fui à Irlanda, fui à Polônia, que estava
sob regime comunista. E lá fiquei durante
duas semanas, pregando em alemão para
os poloneses comunistas. Depois, fui ao
Japão, à Austrália, a muitos lugares. Foram
trinta e tantos países, sempre com a idéia
de que o Papa Paulo VI queria mudar
a pastoral das grandes cidades, queria
conhecer todos os modelos e todas as
experiências já realizadas.
E ele estava confiando-me aquela
tarefa. Assim, anotava todas as coisas que
os bispos, os padres e os leigos de diversas
organizações me comunicavam. Levava
essas informações sempre que ia a Roma.
Eu ia três ou quatro vezes por ano a Roma,
e levava sempre essas novidades ao Papa,
que se interessava muito por elas. Certa
vez, ele me disse: “Elabore um sistema
que seja mais ou menos o resultado de sua
pesquisa. Então, você volta e me diz como
devemos fazer”.
O Papa Paulo VI tinha realmente um
grande coração. E quando falei com ele
pela última vez, em 1976, ele já não podia
mais conversar. Então, o seu Secretário me
disse: “O Papa não pode mais conversar por
muito tempo. O senhor fique cinco minutos com ele, dê-lhe um abraço, conforto, e
diga que estamos rezando por ele. Depois,
o senhor se retire”. Aí, eu entrei e disse ao
Papa: “Já que temos pouco tempo, voulhe dar tudo por escrito. Depois, o senhor
manda ler, ou lê quando puder”. O Papa
disse: “Quem é que manda no Vaticano? É
o senhor e eu”. (Risos). “Então, nós vamos
nos levantar daqui e vamos para o fundo
da sala, atrás dos livros da biblioteca, e
vamos ficar lá para o Secretário não nos
descobrir e chamar outra pessoa aqui para
dentro”.
E fomos para lá, ficamos por 55
minutos discutindo como é que deveria
ser o nosso trabalho em São Paulo. (Risos).
Combinamos todas as coisas e elaboramos
um plano inteiro, que, infelizmente,
não pôde ser executado por causa das
circunstâncias e da morte do Papa, em
1978, logo depois que isso aconteceu.
Padre Beozzo - Dom Paulo, quando
estava aqui em São Paulo, o senhor viveu
um momento de grandes mudanças na
teologia. A teologia era a base da formação
dos padres, dos clérigos. E a sua faculdade
se abriu para os leigos, para as mulheres,
admitindo, inclusive, professoras mulheres,
como a Ana Flora e outras. O senhor
promoveu uma grande mudança, o senhor
assistiu o nascer de uma teologia pensada
em função da libertação e do mundo, e
não apenas em função da Igreja. E, depois,
teve grandes problemas. O senhor, em um
momento de crise, com Leonardo Boff, foi
até Roma.
Gostaria que o senhor falasse dessa
função da teologia, da liberdade e da
pesquisa. Além disso, falamos dos operários
intelectuais que tiveram uma crise com
a Igreja. E o risco, hoje, o da crise das
mulheres com a Igreja. Assim, gostaria
que o senhor falasse sobre a teologia
feminista, a Teologia da Libertação.
Dom Paulo Evaristo Arns - Vamos
começar, então, com a questão das mulheres.
Em primeiro lugar, a Universidade Católica
nunca tinha colocado uma mulher como
reitora. Então, eu perguntei quais eram as
mulheres que mais se distinguiam, para
17
ENTREVISTA
que eu tivesse condições de propor aquela
idéia a Roma. Mas seria muito difícil,
porque não existia universidade pontifícia
– quer dizer, que depende diretamente
do Papa e do Arcebispo, mas do Papa
sobretudo – e todos os professores eram
confirmados em Roma. Então, eles me
disseram que a Dra. Kfouri era indicada
para isso, porque ela era solteira, não tinha
se casado.
nos surpreende muitas vezes! Como ela
merece louvor todo especial também no
campo da ciência, da pesquisa e no do
incentivo para a juventude encontrar seu
caminho.
Logo na fase seguinte, já havia a
possibilidade de eleições para reitor –
que, aliás, eu introduzi nas universidades
católicas. Depois, esse sistema foi
introduzido em todas as universidades.
Eram feitas eleições por meio de
professores, alunos e funcionários, cada
qual com um peso diferente, é claro.
Mas o fato é que a Dra. Kfouri foi reeleita
como reitora da Universidade Católica.
Como a mulher é forte! Como a mulher
nunca contei isso. Foi o Cardeal Danneels,
de Bruxelas, na Bélgica, que me respondeu
em um cartão, dizendo: “Eu o felicito pelo
que o senhor mandou escrever pelos seus
teólogos”. E assinou, em nome de toda a
cidade de Bruxelas, dizendo que a teologia
começa com o pobre, com o pequeno, e
depois vai subindo até o coração daquele
que sabe ser humilde e pequeno, mesmo
sendo sábio, mesmo tendo estudado, mesmo
sendo esse homem de grande projeção.
O senhor fala da teologia em geral.
De fato, eu apanhei muito por causa
da teologia da libertação. Mas o senhor
pode ler na minha autobiografia – que
infelizmente tive de escrever – onde digo
Dessa forma, poderia dedicar-se
que nós mandamos para Roma um
inteiramente à ciência, e também
documento muito bem-elaborado
à sua família, à sua mãe e
pelos teólogos do Ipiranga sobre
...“a fé e a
a toda a sua incumbência
a teologia da libertação,
ciência têm de
na Universidade. Assim
dizendo por que a teologia
evoluir com a humasendo, eu mandei para
da libertação precisa
Roma
simplesmenprocurar na Grécia as
nidade. Cristo nos deu
te a comunicação da
expressões, a metafísica
a
essência
para
tudo,
para
nomeação da Dra.
toda, etc., para dizer,
responder a todas as pergun- em palavras difíceis,
Kfouri como reitora da
Universidade Católica,
tas, mas confiou à inteligência o que Deus, que é
“escolha do Arcebispo
simples e bom, quer
humana a elaboração de todas eliminar para ser
de São Paulo”. Eu penas respostas para cada tempo, amado pelos homens,
sei que ia voltar uma
carta incendiando São
em vez de apenas ser
para cada época e tamPaulo, e dizendo para o
apreciado com palavrões
bém
para
os
momentos
Arcebispo que era hora
que
se
encontram
cruciais da humanide criar juízo. (Risos). Mas
nos dicionários mais
foi o contrário: veio a rescompletos.
dade”.
posta de que ela estava nomeEntão, mandei aquilo
ada, que era a nova reitora da
para Roma e o único que me
Universidade Católica.
respondeu foi o Cardeal Danneels. Eu
18
DOM PAULO EVARISTO ARNS
Danneels me escreveu um cartão tão
bonito que eu o guardo até o dia de hoje.
Meus amigos, a teologia da libertação me
fez sofrer, mas eu ainda acredito nela, e
acho que ela é que vai salvar a América
Latina e – quem sabe? – também a Europa
dessa crise terrível em que está entrando.
Dr. Hélio Bicudo - Dom Paulo, depois
da Comissão de Justiça e Paz, o senhor,
naturalmente, em face da evolução dos
acontecimentos – estávamos no período
do término da ditadura militar – criou,
em São Paulo, o Centro Santo Dias de
Defesa dos Direitos Humanos. Gostaria
que o senhor nos contasse como e por
que foi criada essa Comissão, e como são
os trabalhos que ela vem desenvolvendo a
partir de então na defesa dos direitos dos
mais pobres.
Dom Paulo Evaristo Arns - Essa
proposta de falar sobre o Centro Santo
Dias muito me agrada. Nós, na Argentina,
conseguimos unir 12 grupos interreligiosos. No Uruguai também há outro
grupo, no Paraguai e, depois, no Chile,
no tempo de Pinochet. Fizemos o possível
para descobrir quem era torturado, como
e quando, dizendo qual é a influência do
Brasil na tortura. Levei o resultado daquela
pesquisa para Roma. Era justamente uma
quarta-feira, quando o Papa ia anunciar
sua grande mensagem para o ano santo de
1975. Os jornalistas brasileiros começaram
a brincar comigo, dizendo: “Hoje, o senhor
vai ganhar um pito em público, e nós
estamos aqui para registrá-lo”. Eu respondi
a eles: “Não faz mal, se o pito vem do
Papa ou vem do povo, é Deus que fala”.
O Papa me chamou lá para cima
– eu estava todo de Cardeal – e disse:
“Este é um homem que defende os direitos
humanos até em outros países, como na
Argentina, no Uruguai, etc. Ontem, ele
me entregou um volume em que estão
mais de 500 pessoas indicadas pelo nome,
profissão, pelo lugar onde sofreram torturas
e onde foram enterradas, a data e todas as
coisas juntas. Este homem trabalha pela
humanidade”.
Então, 150 mil pessoas me aplaudiram,
sem saber quem eu era. (Risos). Eu vinha
do Brasil. Coitado, um homem pequenino
em estatura e pequenino também
intelectualmente, como vai aparecer
diante de um público de 150 mil pessoas
e apresentado pelo Papa?
Mas o Centro Santo Dias tem uma
coisa ainda melhor. Ele nasceu do coração
da criança. A criança era perseguida na
Praça da Sé (São Paulo), em todos os
outros lugares, pela polícia e pelas pessoas
que não sabiam respeitar as crianças,
que, muitas vezes, premidas pela fome,
roubavam uma banana, uma laranja,
ou qualquer outra coisa. Depois que se
alimentavam, brincavam na rua. Então,
não sabíamos o que fazer.
O Dr. Hélio (Bicudo), e sua equipe,
me propôs que formássemos uma Comissão
chamada Santo Dias – o operário Santo
Dias é o patrono de todos os operários,
porque ele deu a vida pelos operários.
Então, chamamos de Santo Dias, e essa
associação, de fato, trabalhou dia e noite,
com cinco advogados, às vezes, com três,
o quanto nos permitiam os nossos bens
financeiros para manter essa gente, para
socorrer na hora certa e com a rapidez
necessária.
Os juristas apoiavam sempre a ação
daqueles que trabalhavam no Centro Santo
Dias. Conseguimos defender milhares de
crianças e criamos casas para elas poderem
dormir, lugares para elas poderem ficar
durante o dia. Depois, coisas assim se
19
ENTREVISTA
propagaram pela cidade e, felizmente,
começaram a contagiar a alma do povo.
Hoje, amo as crianças e, Oxalá, confio nas
crianças como o futuro do Brasil.
humana a elaboração de todas as respostas
para cada tempo, para cada época e
também para os momentos cruciais da
humanidade.
Mauro Santayana - Dom Paulo, eu
lamento muito, mas queria chamar o
senhor para as chamadas “obrigações
do dia”. Por exemplo, temos hoje uma
discussão muito séria com relação ao
nosso comportamento com a natureza. Há
o problema, sobretudo, dos transgênicos,
que nos preocupa muito hoje, porque
estamos tocando nas coisas mais profundas
da natureza. Estamos tocando nos códigos
da Criação. O que o senhor diria aos
cristãos, hoje, com relação a isso?
Então, as duas devem continuar
pesquisando. A Igreja precisa se atualizar
em todas as questões físicas, químicas,
etc., onde há elementos morais, éticos,
onde existe a possibilidade de se ferir a
dignidade humana. E os cientistas devem
fazer a mesma coisa. Eles devem respeitar
a humanidade e o futuro da humanidade.
Eles devem respeitar o homem como ele
é hoje, como será amanhã. Eles devem
respeitar, sobretudo, a convivência humana
acreditando na possibilidade de o futuro
ser bem melhor e bem mais pacífico para
toda a humanidade.
Nós devemos, em nome da ciência,
admitir que permaneça essa soberba do
homem, que viola, vamos dizer assim, um
contrato essencial que temos com Deus?
É o contrato da nossa fé. É o contrato que,
com a nossa fé, pedimos a sua proteção.
O senhor acha que nós devemos, neste
momento, ir adiante nessas pesquisas?
Estamos vendo sérios problemas e doenças
novas, como a doença da vaca louca, e
coisas que não sabemos se virão depois
disso.
O que o senhor diria aos cristãos,
que reflexão o senhor recomendaria aos
cristãos diante disso? Nós devemos agir
contra isso ou devemos aceitar?
Portanto, os dois têm de se encontrar
sempre e de novo para andar juntos.
Naturalmente, haverá crises para cá
e para lá. Vai haver Papa que é tido
como conservador, e vai haver Papa
considerado avançado. Mas todos eles
têm a incumbência de atualizar a palavra
de Deus sem mudá-la, ficando com o
fundamento que o Evangelho nos traz, que
a revelação nos transmite, fazendo aquilo
que Deus quer para a humanidade,
mas também sabendo que os homens
podem melhorar a sua situação e devem
melhorá-la.
Dom Paulo Evaristo Arns - Mauro
Santayana, o senhor está tocando em
um problema que será discutido durante
dezenas de anos ainda. Mas já sabemos
mais ou menos o que os católicos devem
fazer. Não é apenas minha opinião, mas
de muitos na Igreja – talvez de toda a
Igreja: a fé e a ciência têm de evoluir
com a humanidade. Cristo nos deu a
essência para tudo, para responder a todas
as perguntas, mas confiou à inteligência
É importante o que fizemos uma vez,
em nome da ONU. Andamos, durante
quatro anos, em todos os continentes para
ver o que se faz a respeito das questões
humanitárias. Andamos por toda parte
– África, Ásia, América e Europa – e
ficávamos 15 dias ou três semanas com
os assessores que lá trabalhavam a vida
inteira. Ouvíamos deles e levávamos para
a ONU aquilo que achávamos que era
contra o costume e a crença daqueles
20
DOM PAULO EVARISTO ARNS
povos, ou contra a possibilidade de eles
executarem as coisas, porque estavam
muito avançados ou eram retrógrados.
Acho que a união da fé e da ciência
é a grande missão da Igreja para o futuro
da humanidade e para o bem de cada um
de nós. Mas ela não se faz de uma hora
para outra e não se faz sem controvérsia.
qualquer palavra que não tenha efeito
político. Político quer dizer que atinge mais
que uma pessoa, atinge muitas pessoas,
pode transformar o ambiente e pode até
criar um novo sistema para orientar a
humanidade em relação ao futuro. Mas,
meus amigos, a política no Brasil foi muito
difícil no tempo da repressão. Eu entrei,
em 1966, justamente quando a repressão
começava a cassar os Governadores.
Quando cassaram Juscelino Kubitschek,
eu pensei: “Meu Deus, agora acabou
tudo. Agora vão cassar todo
mundo e cassaram também...”
“Posso
Padre Beozzo - O senhor falou de
fé e ciência, mas o senhor foi um mestre na sua vida nas questões também
de fé e política. O senhor esteve com muitos Governadores
aqui em São Paulo: Paulo
Padre Beozzo - O
dizer que com os
Maluf, Franco Montoro,
(Carlos)
Lacerda, o (João)
Orestes Quércia, Luiz
políticos, no final, eu
Goulart...
Antônio Fleury, Mário
sempre
me
entendi,
quanCovas, que foi seu
Dom
Paulo
do não eram militares. Os Evaristo Arns - O
grande amigo, Geraldo
Alckmin,
depois
militares não queriam o enten- Lacerda, o Goulart e
com os Prefeitos, os
tanta gente. De maneiPresidentes, de Médici dimento, mas oposição. Eles
ra que pensei que o
a Lula. O senhor conachavam que a Igreja era dos Brasil não teria mais
viveu com essas figusolução. Mas tem. É
pobres, portanto, comunista
ras e sempre teve uma
preciso que todo mundo
e contra o regime. Por isso
palavra para a questão
sempre diga: “Nós vamos
da ética na política, da
de esperança em espeeles não respeitavam
democracia, da cidadarança. Nunca vamos deinossa opinião”.
nia. Gostaria que o senhor
xar morrer a esperança do
comentasse um pouco sobre
brasileiro, que não é homem de
isso.
pegar o fuzil e atirar”. O que está
acontecendo, no que se refere à violência,
O senhor deu atenção especial, em
é totalmente contra o espírito brasileiro, a
São Paulo, ao quarto poder, à imprensa,
mentalidade do povo e a nossa história.
à televisão. O senhor já teve um jornal,
Nunca fomos violentos como estamos
perdeu a Rádio 9 de Julho. O senhor
sendo neste momento. Mas o papel da
mesmo é um jornalista. Gostaria que o
política consiste em conduzir essas quessenhor falasse de sua boa relação com a
tões de tal maneira que sejam favoráveis
imprensa, da questão da política, da ética
ao povo.
e do papel da imprensa.
Dom Paulo Evaristo Arns - Em
primeiro lugar, a política. Eu, de fato, na
minha vida, sempre achei que ninguém
poderia fazer qualquer ação ou expressar
É isso que sempre procurávamos
fazer. Qualquer queixa contra um governador, mesmo Mário Covas... – o Covas era
muito difícil no que se refere ao seu rela21
ENTREVISTA
cionamento, mas fui eu o último que deu
aceitar nossas propostas, feitas em nome,
a mão a ele na hora da morte. E ele ainda
muitas vezes, do Conselho de Presbíteros,
teve forças para me dizer: “Eu tive mil
ao qual pertencia Monsenhor Bevilacqua,
pessoas que me chamavam de amigo, mas
que está ao meu lado, do Colégio dos
uma eu sei que era e é meu amigo, é
Bispos. Fui algumas vezes ao gabinete
Paulo Evaristo Arns”. Eu disse para
de Médici levar a opinião dos bisele: “Deus te abençoe nessa
pos do Estado de São Paulo. Ele
“Todos
caminhada onde iremos nos
me pôs para fora e disse: “O
que estão aqui
encontrar de novo”.
senhor cuide da sacristia que
nesta mesa são grannós cuidamos da ordem
Posso dizer que com
pública”. Eu disse: “Mas
des lutadores pela transos políticos, no final,
a ordem pública está
formação do Brasil, sobretueu sempre me entensendo violada”. E foi a
di, quando não eram
do, para não deixar apagar a
despedida de Médici
militares. Os militares
chama da esperança. Precisamos para sempre.
não queriam o enten-
ter esperança para chegarmos à
dimento, mas oposiJorge Henrique
ção. Eles achavam
utopia que todos desejam. E vai ser Cartaxo - Dom
que a Igreja era dos
realizada em breve, se Deus quiser, Paulo, minha gerapobres, portanto,
ção cresceu sob a
comunista e contra ao contrário do que predizem os
ditadura militar e
o regime. Por isso pessimistas. Somos um povo que
amadureceu
na
eles não respeitavive de esperança. Devemos unir democracia. Os
vam nossa opinião.
problemas fundanossas
forças
num
governo
que
Só a respeitavam em
mentais, aqueles que
aceita ou não, psicologicamente nos animaram a lutar
ocasiões nas quais
isso era muito fácil e
ou politicamente, mas quer o contra a ditaduvisível para o povo.
ra, não foram resolbem do Brasil e vai fazer o
E o povo, no início,
vidos em vinte anos
bem, se Deus quiser, com a de democracia. Ainda
também a c r e d i t a v a
ajuda de todos. O Brasil
na revolução. Quando
que possamos apresenfalávamos na revolução,
tar explicações técnicas e
é responsável por si
o povo reclamava. Aos
históricas para isso, a senmesmo”.
poucos, ele foi entendensação que se passa, no senso
do que a revolução trabalhava
comum, é que essa inviabilidapara uns poucos e não para todos
de permanente é muito incômoos brasileiros. Não trabalhava para o
da. O que V. Excia. tem a dizer sobre
futuro nem para o presente, mas para um
isso?
passado que já deveria ter sido enterrado
Dom Paulo Evaristo Arns - O senhor
há muito tempo.
acha que não temos democracia, não é?
Dizer como era nosso comportamento é uma tarefa difícil, porque cada momento era diferente, cada pessoa tinha seu tipo,
seu caráter, seu modo de nos receber e
22
Temos apenas um arremedo de democracia
ou uma tentativa de fazer o povo participar
por meio das eleições e por mais alguma
coisa. Mas considero muito pouco.
DOM PAULO EVARISTO ARNS
Jorge Henrique Cartaxo - É o que
me parece. Veja, se considerarmos que
democracia significa eleições, participação política e formalidade jurídica, creio
que temos democracia. Entretanto, percebo que o resultado que isso poderia
trazer, em termos de qualidade de vida,
bem-estar e aspiração, parece impossível.
A sensação que se passa é essa.
Dom Paulo Evaristo Arns - Na minha
opinião – eu não costumo dizer em público – o atual presidente da República deve
fazer uma reforma completa na política,
sobretudo em relação aos cargos essenciais que vão orientar a Nação. Assim,
poderemos acreditar em uma verdadeira
democracia, porque o povo vai receber,
da parte daqueles que são mais amigos,
aquilo que se espera.
É preciso dizer sempre ao presidente
da República que o Brasil não é dele. O
Brasil é de todos os brasileiros. E todos eles
são representados por um grupo de pessoas escolhido pelo presidente da República.
Essas pessoas devem ser escolhidas para
servir o povo e não pelo fato de que são
amigas ou foram amigas do presidente em
épocas difíceis.
Mauro Santayana - Dom Paulo, como
V. Excia. tocou nesse assunto, chegamos a
dois graves problemas: a política econômica brasileira e as instituições brasileiras. O
primeiro problema reside na deterioração
paulatina do sistema federativo nacional
com a concentração excessiva do poder
em Brasília. Em conseqüência, a economia
brasileira está nas mãos de três ou quatro
pessoas, que estão em Brasília, que não
conhecem a história do País, a miséria
do povo e não têm compromisso com os
brasileiros.
Essas pessoas estão ditando a política econômica. A meu ver, a melhor
metáfora no cristianismo é a distribuição
do pão e dos peixes – apesar de ser um
pouco diferente, considero-me cristão.
Como podemos agir neste momento para
que a economia realmente sirva ao povo
e não aos interesses do sistema financeiro
internacional aqui representados?
Dom Paulo Evaristo Arns - V. Sª.
mesmo respondeu à sua pergunta, no
início. De fato, enquanto deixarmos esse
grupo, em Brasília – um grupo novo e
inexperiente, em um governo democrático
de um novo presidente da República – agir
sozinho, sem o apoio de cada estado...
Cada estado deve realizar aquilo que é
próprio do povo, porque temos mais de
300 Brasis. Cada estado é um Brasil, porque tem uma mentalidade própria e um
jeito de realizar as coisas e sabe como
fazê-lo. Nosso País é inventivo, com uma
grande capacidade de transformação. Se os
estados começarem a transformar o Brasil
e o Governo Federal aceitar as propostas
de baixo para cima, certamente teremos
um outro Governo, outro sistema e um
resultado bem mais condizente com o que
deseja a maioria do povo brasileiro.
Dr. Hélio Bicudo - Dom Paulo, não
vou fazer uma pergunta, mas uma constatação. Creio que essa entrevista é da maior
importância, pois V. Excia. é bastante
conhecido. Mas suas palavras, na medida
em que voltam ao povo, têm, na realidade,
um retorno excepcional para que o povo
tenha esperança. V. Excia. tem sido, é e vai
ser sempre o bispo de nossa esperança.
Dom Paulo Evaristo Arns - Muito
obrigado, Dr. Hélio. Considero que fizemos um grande esforço. Todos que estão
aqui nesta mesa são grandes lutadores pela
transformação do Brasil, sobretudo para
não deixar apagar a chama da esperança.
Precisamos ter esperança para chegarmos
23
ENTREVISTA
à utopia que todos desejam. E vai ser
realizada em breve, se Deus quiser, ao
contrário do que predizem os pessimistas.
Somos um povo que vive de esperança.
Devemos unir nossas forças num governo
que aceita ou não, psicologicamente ou
politicamente, mas quer o bem do Brasil
e vai fazer o bem, se Deus quiser, com a
ajuda de todos. O Brasil é responsável por
si mesmo.
24
ENSAIO
* FABIANO SANTOS
A Reforma do Poder
Legislativo no Brasil
1) Introdução
O Poder Legislativo é certamente
a instituição governamental que mais
reformas tem feito no sentido de aumentar
a transparência de suas atividades e
ampliar sua capacidade de controle sobre
as ações dos demais poderes. Um primeiro
passo importante foi dado no início da
legislatura passada, com a inauguração
das TV´s Câmara e Senado, por assinatura,
responsáveis pela transmissão de sessões
deliberativas de comissões e plenário. No
final desta mesma legislatura, por iniciativa
do então deputado federal pelo PSDB de
Minas Gerais, Aécio Neves, presidente da
Casa, a Câmara dos Deputados aprovou
emenda constitucional que confere nova
regulamentação ao instituto da medida
provisória, impedindo que estas sejam
reeditadas indefinidamente, ao mesmo
tempo que forçando o pronunciamento
do plenário sobre as que foram enviadas
pelo Executivo, emenda essa que veio a ser
ratificada pelo Senado Federal.
Um efeito claro da medida, já
observado, foi o de diminuir o ímpeto do
Executivo em governar por decreto. Além
disso, foi criada uma Comissão Participativa
destinada a receber projetos formulados
por entidades representativas da sociedade
e fornecer-lhe a devida tramitação. Se
eficaz, tal comissão fornecerá visibilidade
aos projetos que pela Câmara tramitam,
visibilidade que pode significar importante
estímulo a deputados e senadores para que
invistam parcela maior de seu tempo em
* Cientista Político, Professor e Pesquisador do IUPERJ (Instituto Universitário do Rio de Janeiro)
26
FABIANO SANTOS
projetos e emendas do próprio Legislativo,
e diminuam a proporção das energias
parlamentares dedicadas à agenda do
Executivo.
Legislativo no sistema político brasileiro –
este é o objeto da próxima seção, restando
para as duas últimas a discussão conceitual
e as propostas de reforma.
O início da legislatura atual não
modificou o ânimo dos líderes da Câmara
em aprofundar o processo de desenvolvimento institucional do Legislativo. Tanto o
número quanto o formato das comissões
permanentes sofreram alterações, tendo
em vista a necessidade de acompanhar a
estrutura do Poder Executivo – até pouco
tempo, o sistema de comissões contava
com 16 destes órgãos, número que se
elevou para 20 ao final do ano de 2003.
Ademais, estudos estão sendo feitos no
intuito de restringir a criação de comissões especiais e os pedidos de urgência
constitucional, mecanismos que amesquinham o poder das comissões permanentes,
principal instrumento de intervenção dos
representantes no processo decisório e de
implementação de políticas e programas
do governo.
2) O Poder Legislativo no
Presidencialismo de Coalizão
No texto que segue, mostrarei que
estas mudanças institucionais estão no
caminho certo, se o que se deseja é
o fortalecimento do Legislativo. Farei
isto mediante a exposição de alguns
pontos conceituais derivados de avanços
teóricos e empíricos conquistados ao
longo das últimas décadas pela ciência
política, especialmente na área de estudos
legislativos. Além disso, proponho um
conjunto de alterações institucionais, a
meu ver compatíveis com o espírito que
vem animando os legisladores no que
concerne a estas últimas decisões, de
natureza procedimental, e que têm sido
tomadas, principalmente, no âmbito da
Câmara dos Deputados. Antes de prosseguir
nesta direção, é preciso esclarecer algumas
questões relativas à inserção do Poder
Para melhor contextualizar o tema,
faz-se necessário identificar como o debate
em torno da assim chamada reforma do
Poder Legislativo se inscreve no contexto
mais geral das mudanças institucionais
em curso no país. O sistema político
institucional do estado democrático
pode ser entendido como composto
de dois conjuntos de elementos: os
elementos constitucionais e os elementos
procedimentais1.
a) a dimensão constitucional é composta por dois conjuntos de variáveis: as
variáveis relacionadas aos sistemas eleitorais e partidários, vale dizer, às regras
mediante as quais votos são transformados
em cadeiras parlamentares, e as variáveis
referentes ao sistema de governo. Sabe-se
que, no Brasil, adota-se o sistema proporcional de lista aberta e sistema presidencial. Se juntarmos a estas instituições o
federalismo e o bicameralismo, conclui-se
que a democracia brasileira, pelo menos
no que tange a seus elementos constitucionais, é altamente difusora do poder
político, no sentido de que maximiza a
participação do eleitor na configuração
dos loci de exercício do poder.
b) a segunda dimensão, a procedimental, trata dos poderes de agenda do
Governo e da organização interna do
Legislativo, vale dizer, as regras e procedimentos de formulação da agenda parlamentar, os núcleos de elaboração das
políticas, não só propostas, mas também
efetivamente aprovadas, e os agentes de
27
ENSAIO
maior influência nesse processo. Uma
questão central, quando se verifica este
conjunto de elementos, é a capacidade do
Poder Executivo de iniciar e influenciar o
processo legislativo e até que ponto este
poder amesquinha tanto a extensão dos
direitos parlamentares dos deputados sem
postos na burocracia parlamentar, quanto
as prerrogativas de poder das comissões
permanentes do Poder Legislativo. Sabese, por exemplo, que existe uma alta
concentração do poder decisório e de
agenda em mãos do chefe do Executivo
e das lideranças partidárias no interior do
Congresso2.
Para nossos propósitos, o que importa
assinalar é que a conjugação dos elementos
constitucionais do sistema político,
baseada em uma concepção difusora do
poder, com seus elementos procedimentais,
de inspiração concentradora, dá origem a
um modelo institucional cuja essência pode
ser condensada na seguinte expressão:
“presidencialismo de coalizão”, com
amplos poderes de agenda depositados
no Executivo. Tal modelo, complexo em
sua concepção e operação, comporta
certos desequilíbrios no modo pelo qual o
poder político se distribui entre as diversas
instâncias do sistema. Veremos que a
reforma do Poder Legislativo pode cumprir
a importante função de re-equilibrar o
balanço entre os Poderes. Vejamos
porque.
O ponto de partida, portanto, de
toda análise sobre o Legislativo deve
ser o conceito de “presidencialismo
de coalizão”. A combinação de
sistema presidencialista, representação
proporcional de lista aberta e sistema
parlamentar fragmentado leva o chefe do
Executivo, na intenção de implementar sua
agenda de políticas públicas, a distribuir
28
pastas ministeriais entre membros dos
principais partidos, na esperança de obter
em troca o apoio da maioria do Congresso.
O impacto desta prática institucional para
o desempenho do órgão representativo
é significativo, e o exemplo do início
do atual governo ilustra perfeitamente o
sentido deste impacto3.
A tabela abaixo compara o tamanho
da base de apoio ao governo na Câmara dos
Deputados em dois momentos distintos:
logo após o pleito de 2002 e ao fim de 6
meses de governo do presidente Lula4.
Tabela 1
Força Parlamentar da Coalizão
Governista em Dois Períodos Distintos
Lula 1
PT - 0,17
PL - 0,05
PTB - 0,05
PSB - 0,04
PDT - 0,04
PPS - 0,02
PCdoB - 0,02
PV - 0,01
0,40
Lula 2
PT - 0,18
PL - 0,06
PTB - 0,09
PSB - 0,06
PDT - 0,03
PPS - 0,04
PC do B - 0,01
PV - 0,01
PMDB - 0,13
0,62
Fonte: Câmara dos Deputados
O novo governo seguiu a rota
habitual da política brasileira: por um
lado, estimulou a troca de legendas de
partidos originariamente de oposição
em direção a partidos aliados, embora
o PT tenha se preservado desta dança,
e, por outro, convidou o PMDB, grande
partido de centro, para fazer parte da base
formal de apoio ao presidente5. Ao fim de
diversas negociações, envolvendo cargos
na estrutura da liderança do governo
FABIANO SANTOS
no Legislativo, a concessão imediata de
cargos de segundo e terceiro escalão, além
da promessa de postos ministeriais em
futuro próximo, a bancada peemedebista
decide aceitar fazer parte da coalizão
governamental. Com estes movimentos,
o governo Lula, que havia iniciado sua
administração controlando apenas 40%
das cadeiras na Câmara dos Deputados,
termina seus primeiros 6 meses com o
apoio de 62% destas. Qual o significado
político institucional desta mudança de
cenário?
Relevante, neste contexto, é o fato
de o PMDB ter apoiado a candidatura
contra a qual Lula se bateu no segundo
turno das eleições presidenciais, além de
ter sido a agremiação que forneceu a
candidatura a vice-presidente nessa mesma
chapa. Em uma palavra, um dos partidos
que concorreu nas eleições majoritárias
defendendo o governo e em oposição
à candidatura e coligação de partidos
vitoriosos no pleito, depois de 6 meses de
governo, torna-se parceiro da coalizão de
apoio ao novo presidente.
Dois pontos são particularmente
importantes aqui: em primeiro lugar, o
presidente Lula optou por reduzir os custos
de transação no Legislativo montando uma
coalizão de ampla maioria, tornando a
cooperação de partidos como o PSDB
e o PFL desnecessária para definição e
aprovação da agenda governamental;
em segundo, decide enfrentar os custos
políticos de incluir uma agremiação
tida como “excessivamente pragmática”
por amplos setores da opinião pública
e de próprios membros da base aliada.
O trade-off, custos de transação versus
custos políticos, foi resolvido em favor do
primeiro, isto é, sanou-se o primeiro com o
conseqüente agravamento do segundo.
Várias são as implicações desta
decisão, algumas delas já conhecidas.
Opiniões correntes sobre nossa vida
partidária afirmam que esta funciona
razoavelmente bem no interior do
Legislativo, sendo a atividade parlamentar
coordenada pelas lideranças, com taxas
de disciplina relativamente altas e alguma
estabilidade no que concerne ao perfil
das coalizões vencedoras e perdedoras
no plenário. Todavia, grande ceticismo
prevalece quanto à capacidade dos partidos
se comunicarem com os eleitores no sentido
de definirem uma imagem minimamente
distinta das demais agremiações, com base
na defesa de determinados pontos da
agenda pública e a maneira de encaminhálos. A crônica deste início de governo Lula
sugere a proposição de que a opção mais
fácil de montagem de coalizões majoritárias
no parlamento tem também contribuído
para este curto circuito entre partidos
e eleitores, cuja manifestação empírica
vem estampada em taxas de identificação
partidária minimalistas.
A rationale da decisão do governo de
incorporar o PMDB ao governo é bastante
evidente. O cenário, no início da atual
administração, foi o de uma aposta na
viabilidade de um governo de minoria.
A inclusão daquele partido na base
aumentaria a folga numérica no plenário
da Câmara, mas, assim pensava o governo,
poderia gerar desgaste eleitoral por
manter no governo um partido altamente
comprometido com a chapa derrotada
no pleito e com o antigo governo. Além
disso, conceder ministérios a um partido
pragmático como o PMDB traria consigo
o risco de abdicar de determinadas áreas
de políticas públicas sem a garantia da
contrapartida em votos disciplinados em
plenário (lembrar que este partido foi
a agremiação da base de FHC menos
disciplinada em plenário, com média, no
período 2002, de 85%). O que significava,
àquela altura, a aposta de Lula?
29
ENSAIO
Tratar-se-ia de um governo de minoria
e, como tal, não poderia contar somente
com seus próprios votos para aprovar
a agenda de governo. A experiência de
governos minoritários na Europa e nos
EUA indica que a governabilidade neste
tipo de governo pressupõe a montagem de
coalizões tópicas, negociadas caso a caso.
Com freqüência, um pacote de projetos é
negociado ex ante, apoiado por setores da
sociedade e lideranças partidárias nacionais
e sociais que se viabiliza exatamente por
ter sido legitimado em ambiência externa
ao Congresso.
A negociação pode se dar também
no interior da própria instância representativa, ocasião na qual o caráter minoritário assume feições mais nítidas. Neste
contexto, organismos suprapartidários do
Legislativo deverão ser valorizados, tais
como as comissões técnicas, posto que a
participação institucionalizada de membros da oposição no desenho dos projetos
é de fundamental importância. O desafio neste contexto seria o de fortalecer o
Congresso como ator proativo, propositor,
dotado de visão própria sobre os rumos
da agenda governamental. O pressuposto
desta aposta do PT seria a adoção, por
parte dos principais partidos de oposição, aí incluído o PMDB, de uma postura
policy oriented. A pergunta passaria pois a
ser: seria a orientação programática capaz
de vencer a orientação patrimonialista,
presente em boa parte da vida de nossas
agremiações?
Como sabemos, a decisão final do
governo foi a de convidar o PMDB para
fazer parte da base, além de estimular
o troca-troca de legendas em favor dos
partidos aliados. Com isso, encurta-se
o caminho para a obtenção de maioria
parlamentar em apoio à sua agenda. Mas,
30
do ponto de vista do funcionamento do
presidencialismo de coalizão, qual o
ensinamento desta decisão? A primeira e
fundamental lição é a de que os benefícios
de fazer parte do governo são muito
elevados. E em segundo, os custos de
negociar com os grandes partidos em torno
de uma agenda de policies são também
bastante altos.Tratemos de cada uma destas
lições separadamente.
O poder de nomear e demitir,
o poder de reter e liberar recursos
orçamentários, além do enorme poder
de definição do conteúdo e timing da
agenda de decisões governamentais são
os principais instrumentos de atração
dos partidos e representantes para o seio
da coalizão governista no Legislativo
brasileiro. Para um partido qualquer, duas
alternativas se colocam de maneira muito
clara: a primeira consiste em correr o
risco de participar de um governo que
pode eventualmente fracassar e, por
conseguinte, arcar com os custos políticos
de ter alguma responsabilidade no processo;
e a segunda é a de decidir permanecer
do lado de fora da coalizão, assumindo
o papel de opositor. Este pode ser de
natureza construtiva, ou sistemática.
A adoção de um ou outro tipo
dependerá de variáveis como popularidade
do presidente, tamanho e coesão da base
parlamentar do governo, capacidade de
comunicação para os eleitores de um curso
de ação cooperativo, etc. O fato é que, nas
condições atuais da política brasileira, a
atração exercida pelo Poder Executivo
é considerável e isto ficou mais do que
comprovado com a decisão do PMDB de
aderir à coalizão governamental, além da
enxurrada de parlamentares que trocaram
de partidos em direção a agremiações da
base aliada.
FABIANO SANTOS
Os custos de transação para um
governo que precisa negociar uma agenda
com partidos de oposição são altos porque
estes se vêem inteiramente desprovidos
de meios para implementar políticas de
governo. Como qualquer liberação de
recursos orçamentários exige uma decisão
do Executivo, e como fazer políticas
públicas é liberar recursos, então toda
e qualquer política pública no país só
pode ser feita pelo governo. Partidos de
oposição não percebem nenhum ganho
em cooperar com um presidente que irá
“faturar” de forma quase monopólica
os benefícios de implementação de
programas governamentais. Daí a virtual
impossibilidade de se contar com a
cooperação de partidos oposicionistas
e, por conseguinte, de se governar com
minoria no parlamento.
É esta alienação dos partidos parlamentares dos programas de alocação de
recursos orçamentários que torna essencial
para o governo montar coalizões majoritárias, eventualmente supermajoritárias, o
que depende da natureza da agenda e da
disciplina esperada de seus parceiros originais. Em outras palavras, para o presidente, governar com minoria, ou até mesmo
maiorias mínimas, é muito custoso, pois,
do ponto de vista dos partidos de oposição, não há incentivo para cooperar;
por outro lado, participar do governo
é altamente benéfico, pois fora dele não
há como alocar. Contudo, ao decidir pela
incorporação de partidos originalmente de
oposição à base aliada, o governo interfere
na comunicação que estes tentam estabelecer com os eleitores – eis um dos desafios
institucionais de nosso sistema político e
que tem sido enfrentado pelas reformas
institucionais implementadas na Câmara
ao longo dos últimos anos.
Em suma, uma reforma do Poder
Legislativo, com vistas
a uma vida
partidária mais estável, além de uma
distribuição mais equilibrada do poder
em nosso sistema político, deve atacar
os seguintes dois pontos: a) elevar os
custos políticos de fazer parte do governo;
b) aumentar os benefícios de se manter
na oposição. Antes de dar continuidade
à dimensão procedimental do debate, é
importante observar de que maneira a
ciência política, especialmente a área de
estudos legislativos, avalia o desempenho
do Legislativo no Brasil.
3) O Legislativo Brasileiro e os
Estudos Legislativos
Existem duas tradições na área
de estudos legislativos. A primeira, de
extração funcionalista, procura detectar
o papel, ou papéis, que o parlamento
cumpre em determinado país. A segunda,
desenvolvida a partir da abordagem neoinstitucionalista, verifica os objetivos
de carreira dos parlamentares, as regras
sob as quais interagem com os colegas
e demais atores políticos, para então
explicar fenômenos relevantes relativos
à vida parlamentar, tais como disciplina
partidária, produção legislativa, maior ou
menor predominância do Executivo, etc.
Segundo a abordagem funcionalista,
um parlamento pode ser ativo, reativo
ou “carimbador”6. Um legislativo ativo é
aquele que possui a iniciativa do processo
decisório. Além de predominante quanto
à origem dos projetos aprovados, é ator
fundamental também na implementação
dos programas governamentais e alocação
de recursos. Alta complexidade interna,
que se expressa em ampla divisão do
trabalho legislativo em comissões técnicas,
permanentes, altamente especializadas,
31
ENSAIO
é a marca deste tipo de parlamento.
Ademais, é comum observar a prevalência
de carreiras legislativas exclusivas, ou seja,
o alvo principal da ambição dos políticos
é a conquista de cargos na hierarquia
interna do Legislativo, como presidência
de comissões importantes, liderança de
bancada ou postos na mesa diretora.
Um legislativo reativo é aquele
que delega a iniciativa das proposições
legais mais importantes para o Executivo.
A definição da agenda, assim como as
prioridades no que tange à ordem de
apreciação dos projetos, é transferida para o
governo e negociada, posteriormente, com
os parlamentares que lideram o partido
ou coalizão legislativa majoritária. A
atividade fiscalizatória destes parlamentos
é, em geral, bastante bem difundida.
Todavia, a complexidade interna não é tão
desenvolvida, o que torna o parlamento até
certo ponto dependente das informações
processadas por agentes fora do âmbito
legislativo, como a burocracia do Executivo,
o Judiciário, ou grupos de interesse. Além
disso, os políticos não conferem prioridade
à carreira no Legislativo, preferindo, na
medida do possível, concorrer, através do
voto ou nomeação, a postos no governo,
ao nível nacional ou local.
Um legislativo “carimbador” é aquele
que funciona inteiramente a reboque do
governo. As matérias que tramitam no
Legislativo o fazem de modo quase que
inteiramente pro forma, cabendo aos órgãos
internos do parlamento apenas arrematar o
projeto em seus aspectos técnicos. Uma
vez definida uma coalizão legislativa
majoritária, todo o poder decisório e
alocativo é delegado ao governo que passa
a dar o tom dos trabalhos legislativos.
Ocorre uma fusão entre os Poderes
Legislativo e Executivo, sendo o papel do
32
parlamento, enquanto instituição distinta
do governo, socializar os parlamentares
na vida pública e fornecer quadros para
os ministérios e secretarias de governo. A
carreira de um legislador nestes casos é
dedicada ao parlamento até o ponto em
que este consegue a nomeação para um
ministério, este sim, o verdadeiro alvo da
ambição política.
O Legislativo brasileiro é reativo. Em
trabalho recente, Santos e Amorim Neto
(2002) observaram que em um universo de
mais de duas mil leis aprovadas de 1985
a 1999, apenas 336 tiveram a iniciativa
de parlamentares. Além disso, constatouse que, embora relevante para grupos e
setores da sociedade, tais leis não afetam
o status quo econômico e social do país,
sendo mais propriamente intervenções
tópicas em questões pertinentes à
vida do cidadão comum. O processo
orçamentário, ademais, é controlado pelo
Executivo e organizado para favorecer as
prioridades estabelecidas pela coalizão de
partidos que dominam o governo, sendo
a intervenção dos parlamentares apenas
marginal (Figueiredo e Limongi 2002). A
complexidade interna, embora crescente,
como atesta a recente elevação do número
de comissões técnicas da Câmara de 16
para 20, ainda é insuficiente para fazer
frente à máquina de produzir informações
do Executivo. Finalmente, com relação às
carreiras dos legisladores, vários estudos
mostram que estas se caracterizam pelo
perfil “zigue-zague”, freqüentemente tendo
postos eletivos do Executivo ao nível local
como prioridade. (Samuels 2003; Santos
2003b).
Uma vez constatado o perfil reativo
do Legislativo brasileiro, dois pontos
merecem tratamento mais cuidadoso: 1)
se é desejável conferir um perfil mais
FABIANO SANTOS
ativo ao Congresso; e, 2) que medidas
de reforma poderiam contribuir para
avançarmos nesta direção. Antes de atacar
estes pontos, passemos para a abordagem
neo-institucionalista aplicada ao estudo do
Legislativo.
Os estudos nessa área, predominantemente voltados para o Congresso
norte-americano, se subdividem em dois
grandes grupos: existem aqueles que não
vêem relevância na ação dos partidos e os
que consideram os partidos o ator chave
na organização e processo decisório do
Congresso.
A corrente que não considera os
partidos como instituição relevante
se desdobra em duas subcorrentes: a
distributiva e a informacional. A primeira
postula que a organização do Congresso
serve aos interesses de reprodução
eleitoral de seus membros7. Uma vez que a
conquista do voto é função da capacidade
do representante de atender aos interesses
radicados no distrito eleitoral pelo qual
se elegeu, este procurará se especializar
em temas de políticas públicas de grande
impacto neste distrito. É importante lembrar
que o mesmo problema é enfrentado
pelos demais representantes, o que os
leva a desenvolver instituições internas
que permitam aos deputados adquirirem
expertise nas políticas públicas pertinentes
e distribuírem benefícios concentrados em
favor dos eleitores de seu distrito.
O sistema de comissões especializadas, dotadas de amplos poderes de agenda, a regra da antiguidade como mecanismo de acesso a posições de hierarquia
nas mesmas e os instrumentos regimentais
que protegem os projetos, aprovados nas
comissões, de modificações em plenário
seriam mecanismos mediante os quais o
processo decisório atenderia ao esforço
dos representantes em distribuir benesses
localizadas, de visibilidade para os eleitores,
esforço cuja origem remonta à necessidade
de reprodução eleitoral do congressista.
Onde a subcorrente distributiva
observa particularismo, a informacional
vê eficiência coletiva8. A organização
do Congresso em torno de comissões
altamente especializadas seria um meio
de atender às demandas dos congressistas
por expertise – demanda que advém da
tentativa de redução da incerteza que
circunda necessariamente o trabalho de
formulação e implementação de políticas
públicas. Tanto a regra da antiguidade,
quanto as regras de restrição de emendas
às proposições enviadas ao plenário pelas
comissões seriam, na verdade, incentivos
para o desenvolvimento das próprias
comissões. Os riscos de particularismo,
inerentes a um processo decisório
compartimentado em pequenos núcleos
decisórios, ver-se-iam reduzidos na
medida em que as diversas tendências de
opinião existentes no plenário, isto é, sua
heterogeneidade, tivesse correspondência
na composição das próprias comissões.
A corrente partidária discorda
frontalmente com a assertiva, presente na
corrente anterior, de acordo com a qual os
partidos não seriam instituição relevante
de organização e decisão congressual9.
Pelo contrário, segundo os defensores
desta corrente, as instituições do legislativo
expressam os dilemas de ação coletiva e
conflitos internos ao partido ou coalizão
majoritária. Os partidos cumpririam
duas importantes funções: serviriam de
veículo para a tomada de decisão do
eleitor e mecanismo de coordenação do
comportamento dos parlamentares, uma
vez eleitos. Vale dizer, os políticos extraem
benefícios da existência dos partidos,
33
ENSAIO
porque isto facilita sua atuação como
candidato ao sinalizar seu posicionamento
em questões de interesse público, assim
como sua atuação enquanto parlamentar,
ao balizar suas decisões relativamente às
matérias que chegam a voto em plenário.
Contudo, o interesse que subsidia
a emergência e força dos partidos é
um interesse coletivo, ao passo que os
parlamentares também se elegem por conta
de seus esforços individuais no sentido de
atender às demandas de seus eleitores.
O dilema coletivo dos políticos face aos
partidos surge exatamente no momento
em que há o risco da imagem do partido se
desgastar, seja pela falta de investimento
dos parlamentares nos temas e políticas que
conferem a marca coletiva da agremiação,
seja pelo sobre-investimento nas matérias
de alcance meramente paroquial.
A solução clássica para problemas de
ação coletiva é delegar para indivíduo ou
grupo de indivíduos a tarefa de coordenar,
canalizar os esforços individuais na direção
do bem público, vale dizer, dotar este
grupo de indivíduos de poder e concederlhe incentivos para que assuma o ônus de
organizar o comportamento individual e
realizar o interesse coletivo – na vida dos
partidos e parlamentar, este agente atende
pelo nome de lideranças partidárias. O
papel das liderança dos partidos seria,
não propriamente ou unicamente o de
disciplinar a conduta da bancada, mas
o de não permitir que a ação individual
prejudique sobremaneira a imagem
coletiva da agremiação, por um lado,
e, por outro, não permitir que conflitos
de interesse e de opinião no interior da
bancada levem a seu amesquinhamento
eleitoral e político. Em uma palavra, a
função da liderança partidária é a de
compatibilizar os interesses individuais
34
e coletivos de uma mesma coalizão de
congressistas.
A literatura recente sobre o
Congresso brasileiro tem verificado a
coexistência de elementos distributivos e
partidários no comportamento legislativo
de nossos parlamentares10. Indicadores
como pesquisas de opinião, produção
legal, processo orçamentário e disciplina
partidária revelam pelo menos dois
pontos fundamentais: existe amplo
reconhecimento sobre a importância de
se constituir, junto aos eleitores, reputação
pessoal, ou seja, a tarefa da representação
política no Brasil está fortemente ancorada
na figura individual do político; todavia,
o espaço de atuação do parlamentar,
tomado individualmente, é muito reduzido
no parlamento; vale dizer, a atividade
legislativa, sua organização e processo
de decisão, se encontra centralizada na
liderança dos partidos, em particular dos
partidos que formam a base aliada ao
governo.
Ademais, e o que é mais relevante
para fins da presente discussão, é que
também existe amplo consenso de que
faz falta ao Congresso brasileiro, em sua
forma de atuar, regras e procedimentos que
incentivem o desenvolvimento de expertise
e capacitação dos parlamentares para a
formulação e implementação de políticas
públicas. Em uma palavra, o Congresso
ainda está por desenvolver mecanismos
informacionais.
Em resumo, os estudos sobre o
Legislativo brasileiro, e levando-se em
consideração as diversas perspectivas que
avaliam o papel e comportamento do parlamento na democracia contemporânea,
indicam ser esta uma instituição de perfil
reativo que se organiza e toma decisões
mediante uma combinação de elementos
FABIANO SANTOS
partidários e distributivos. Por conseguinte, a discussão sobre possíveis pontos
de reforma deste Poder no Brasil passa,
necessariamente, pela indicação de como
é possível conferir a ele um perfil mais
ativo, além de aumentar sua capacidade
informacional.
4) Conclusão e Proposta de
Reforma
Conferir um perfil mais ativo ao
Poder Legislativo no Brasil, assim como
reforçar os elementos informacionais de
sua estrutura institucional, nos conduz ao
início do texto, em particular à proposição
básica do argumento nele defendido - a
reforma do Poder Legislativo visando ao
seu fortalecimento deve, primordialmente,
desenvolver regras de organização interna
que aumentem os benefícios de se estar
na condição de oposição parlamentar, ou
diminuam os custos de não fazer parte do
conjunto de partidos que possuem cargos
no ministério.
Aumentar os benefícios de ser oposição parlamentar significa multiplicar as
possibilidades de intervenção dos parlamentares, independentemente de sua condição de aliado ao governo, no processo
de formulação de políticas públicas. A
meu ver, três dimensões são de fundamental importância para se avançar nesta
direção: 1) aumentar o poder de alocação
de recursos do Congresso; 2) aumentar
o poder decisório das comissões técnicas permanentes; 3) alterar a estrutura de
oportunidades com a qual se defrontam os
políticos no Brasil.
Quanto ao primeiro aspecto, tratase de discutir a inserção do Congresso
no processo orçamentário brasileiro.
Duas medidas são essenciais: a) tornar
o orçamento, que é aprovado a cada
ano pelo Legislativo, imperativo e não
apenas autorizativo. Retirar o poder de
contingenciar o gasto da União é vital
para conferir maior responsabilidade às
decisões dos congressistas, assim como
para redistribuir o poder político da
burocracia do Ministério da Fazenda em
favor da dimensão representativa do regime
democrático. Por óbvio, não devemos
pensar que se trata de decisão simples
que possa ser tomada imediatamente.
Assim sendo, e mantido o desiderato
da mudança, é relevante a discussão
sobre formas de negociação do próprio
processo de contingenciamento, isto é, ao
Congresso deveria caber papel mais ativo
na definição das prioridades e timing de
liberação de recursos para programas e
atividades governamentais.
b) A segunda medida essencial no
sentido de se aumentar o poder de alocação
do Congresso diz respeito à própria forma
pela qual a peça orçamentária é discutida
e aprovada no Congresso. Atualmente, o
processo é concentrado em uma comissão
mista, sendo de vital importância a figura
do relator do projeto, em geral escolhido
entre os mais confiáveis membros da base
aliada ao governo. Embora importantes
modificações tenham sido introduzidas
nos últimos anos, visando tornar a decisão
sobre o Orçamento mais transparente e
descentralizado (Figueiredo e Limongi
2002), ainda é fato que as comissões
permanentes se encontram praticamente
alijadas do processo.
Uma maneira de contornar esta situação é dividir o projeto orçamentário por
áreas e enviar os diversos subprojetos
para comissões pertinentes, fornecendo a
estas o poder de modificar as estimativas
de receitas e despesas ali contidas11. Uma
vez aprovada a proposta da comissão
35
ENSAIO
temática, esta a envia para a comissão de
orçamento e suas subcomissões, que tratariam de apreciar a proposta de substitutivo
daquela. Relevante ressaltar que tal divisão
de tarefas implica modificar a forma de
tramitação do projeto de Orçamento, que
deixaria de ser unicameral, passando a
tramitar simultaneamente nas duas Casas
do Congresso.
A segunda dimensão relevante
consiste no problema do ritmo e lócus
de tramitação das matérias enviadas às
comissões permanentes. Duas questões
básicas devem ser consideradas: a) a
questão da urgência; e b) a questão das
comissões especiais. Existem dois tipos de
urgência, a constitucional, de prerrogativa
unilateral do chefe do Executivo, e a
regimental, que pode ser solicitada por
parlamentares, segundo vários critérios, mas
cuja aprovação depende da concordância
do plenário. Em comum nos dois casos,
o fato de uma matéria sob tramitação
urgente ter necessariamente de estar em
plenário para votação em 45 dias, tendo
ou não sido apreciada pela comissão de
mérito.
O ponto central é que os principais
projetos de interesse do Executivo, excetuando-se projetos de emenda constitucional, recebem o carimbo de urgentes, seja
mediante pedido do próprio presidente,
utilizando-se de sua prerrogativa constitucional, seja pela via de acordo entre
líderes.
Não é difícil entender que o recurso
sistemático do instrumento do pedido de
urgência, incidindo especialmente sobre
matérias importantes, acaba por enfraquecer o trabalho das comissões permanentes,
diminuindo, por conseguinte, os incentivos para uma participação mais ativa
nestes órgãos.
36
A questão das comissões especiais é
mais um mecanismo de amesquinhamento
das atribuições das comissões permanentes.
Projetos de emenda constitucional e projetos de código não tramitam em comissões
permanentes. Ademais, matérias complexas, apreciadas por mais de 3 comissões
permanentes, podem ser retiradas destas
e enviadas para uma comissão especial,
encarregada unicamente de proferir parecer sobre tais matérias. Uma comissão
especial difere de uma permanente pelo
fato de ser constituída apenas para dar
conta da tarefa especificada no momento
de sua criação, isto é, trata-se de comissão
ad hoc cuja membership é escolhida caso
a caso.
O ponto central é que a composição
das comissões especiais pode ser manipulada pelos líderes, responsáveis pela
indicação de seus membros, independentemente de expertise no tema em apreciação, apenas para dar aquiescência às
finalidades do governo. As decisões de
uma comissão permanente, contudo, para
cuja montagem algum grau de dedicação
e especialização nos temas pertinentes é
pressuposto de seus membros, não são de
fácil manejo por parte das lideranças do
bloco governista.
A facilidade de se pedir urgência
para a tramitação dos projetos de interesse
do governo e a prática de montagem de
comissões especiais diminuem dramaticamente os incentivos para que os parlamentares, governistas ou de oposição,
participem do processo decisório, desprovidos que são de um lócus a partir do qual
sua contribuição possa ser levada em
consideração. Impõe-se, portanto, por
um lado, rediscutir os critérios tanto de
indicação de tramitação especial para projetos, restringindo, por exemplo, o número
FABIANO SANTOS
destes que podem tramitar com urgência em um mesmo intervalo de tempo,
ou o tamanho do apoio necessário para
aprovar a urgência constitucional; e, por
outro, permitir, às comissões permanentes,
a apreciação de projetos de emenda constitucional e de código, além de aumentar
os requisitos de complexidade, tendo em
vista criar uma comissão especial.
Por último, a questão dos incentivos de
carreira. Como vimos nas primeiras seções
deste trabalho, a prática do presidencialismo
de coalizão leva o chefe do Executivo a
compartilhar com vários partidos, e não
apenas o seu, a formação do ministério. A
consolidação da aliança entre partidos se
faz, freqüentemente, mediante a nomeação
de líderes partidários para os postos de
primeiro escalão no Executivo – é comum,
corriqueiro, que parlamentares deixem
sua cadeira no Legislativo para cumprir
funções como ministro. A Constituição
brasileira permite que um deputado ou
senador se licencie do mandato a fim de
exercer cargos no ministério; da mesma
forma, um parlamentar pode concorrer
às eleições municipais, através do mesmo
mecanismo da licença, sem por em risco
sua cadeira no Congresso.
Evidentemente, não se está propondo
pura e simplesmente que os parlamentares
que vierem a aceitar convites para ocupar
postos no Executivo desistam de seus mandatos, mas sim que regras mais restritivas
sejam estabelecidas, tais como, limitar a
quantidade de vezes que um parlamentar poderá se licenciar do exercício do
mandato sem perder a cadeira. Em suma,
o que se pede é a delimitação mais clara
das fronteiras entre o mundo da representação e outros lócus de exercício do poder
político, tornando maior o incentivo para
que políticos que logram obter mandatos
representativos canalizem suas energias,
seu tempo e inteligência no fortalecimento
do Poder Legislativo.
Em suma, ampliação das prerrogativas das comissões permanentes, assim
como o aumento do poder de alocação
do Congresso e a delimitação das carreiras
legislativas devem informar o espírito de
uma eventual mudança institucional no
Poder Legislativo, tendo como desiderato
a configuração de um perfil mais ativo,
assim como o incremento de sua capacidade de gerar, armazenar e distribuir
informações pertinentes ao processo decisório em políticas públicas.
O baixo custo com que os congressistas podem, mediante a disputa eleitoral
ou nomeação, se lançar a experiências
políticas alternativas ao Legislativo reduz
a taxa de permanência dos políticos no
órgão representativo. Menores taxas de
permanência levam a menor investimento
dos membros na própria Casa. Uma Casa
legislativa forte depende de representantes
comprometidos com a tarefa de representar, compromisso que advirá como
decorrência natural do estabelecimento de
critérios mais rígidos de licenciamento do
Legislativo.
37
ENSAIO
NOTAS
1
Nos próximos parágrafos, sigo a análise que consta em Santos, 2000 e 2002.
2
Ver, a respeito, Pessanha, 1997, e Figueiredo e Limongi, 1999.
3
O estudo pioneiro sobre o presidencialismo de coalizão é de Abranches, 1988. Desenvolvimentos recentes podem
ser encontrados em Figueiredo e Limongi, 1999; Amorim Neto, 2000; Meneguelo, 1998 e Santos, 2003b.
O texto que segue é inspirado em Santos, 2003a .
4
A literatura sobre o troca-troca de partidos já é bastante consolidada. Bons exemplos são Lima Jr.,1993, Nicolau
5
1996 e Melo, 2000; Meneguelo, 1998 e Santos, 2003b.
Ver, nesta linha de análise, Polsby, 1968; Packenham, 1970; Loewenberg e Patterson, 1979, Mezey, 1985.
6
7
Os principais trabalhos nesta linha são Mayhew, 1974; Ferejohn, 1974; Fiorina, 1977; Shepsle, 1979; Weingast e
Marshall, 1983; e, Cain, Ferejohn e Fiorina, 1987.
8
Ver Gilligan e Krehbiel, 1987; Krehbiel, 1991; Brady e Volden, 1998.
9
Os trabalhos mais importantes nessa tradição são Kiewiet e McCubbins, 1991; Rohde, 1991; Cox e MacCubbins,
1993; e, Sinclair, 1995.
10
Ver Figueiredo e Limongi, 1999; Pereira e Mueller, 2000; Carvalho, 2003; Amorim Neto e Santos, 2003.
11
Percebam que não se trata apenas de permitir que as comissões proponham emendas, mas de conferir a elas a
prerrogativa de avaliar os programas de receita e despesa existentes e que vierem a ser propostos para todos os
ministérios, segundo a área de especialização de cada comissão.
38
FABIANO SANTOS
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40
* FERNANDO LIMONGI / ** ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO
ENSAIO
Modelos de Legislativo:
o Legislativo Brasileiro
em Perspectiva Comparada
Tipologias são difíceis de construir.
Tão difíceis de construir quanto fáceis de
serem criticadas e rejeitadas. Em geral,
tipologias não conseguem dar conta de
todas as dimensões e variações do objeto sob estudo no interior da teoria que a
informa. A construção de tipologias pede a
identificação de características essenciais
do objeto, características capazes de estruturar e dar sentido à diversidade da realidade observada. Trata-se de organizar o
mundo empírico no interior de um modelo
teórico abrangente. O marco teórico sugere
- quando não determina - a escolha das
características relevantes para distinguir e
classificar os casos.
Por isto mesmo, tipologias são tão
facilmente criticadas, posto que acabam
por evidenciar as limitações e fraquezas
dos modelos teóricos que estão na origem
de sua construção. Na medida em que
precisam abarcar todo o universo de casos
sob consideração, acabam por ser um
desafio para as pretensões das proposições
teóricas ao testarem sua capacidade de
enfrentar os casos difíceis ou limites.
Não faltam tipologias do Poder
Legislativo. Cada uma delas organizadas a
partir de um referencial teórico específico
e, desta forma, enfatizando certas características como distintivas dos modelos ou
* Professor livre docente do CEBRAP / ** Cientista Política CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise a
Planejamento)
41
ENSAIO
tipos de legislativo existentes. Neste artigo,
não pretendemos fazer uma resenha crítica das tipologias disponíveis. Tampouco
proporemos ou defenderemos uma tipologia própria. Nossos objetivos são bem
mais modestos. Pretendemos, tão somente,
resgatar uma das tipologias disponíveis,
possivelmente a mais consagrada e citada,
a saber, aquela proposta por Polsby (1975).
Após discutirmos esta tipologia, mostramos
como propostas mais recentes, como as de
Cox e Morgenstern (2002), se defrontam
com dificuldades similares.
Nosso objetivo não é o de submeter
essas tipologias a um exame detalhado.
Como dissemos, não é difícil criticar tipologias. Nosso objetivo é usar as tipologias propostas para aprendermos algo
relevante sobre modelos de organização dos trabalhos legislativos. Assim,
após reconstituir as tipologias propostas
por Polsby e, com menor atenção, a de
Morgenstein e Cox, mostramos as limitações e as conseqüências de ambas para
nosso entendimento de como funcionam e
que papel desempenham os legislativos no
interior de regimes democráticos.
Nossa discussão, no entanto, a
despeito de se iniciar com estas abordagens
mais abrangentes, será direcionada para o
debate nacional. Isto é, nossa principal
preocupação é derivar deste exercício de
análise comparada algum conhecimento
relevante para o entendimento do nosso –
o brasileiro – modelo de poder legislativo.
Para tanto, será necessário deixar o debate
dos modelos teóricos para examinar sua
prática.
A partir deste exame empírico e com
base nas críticas derivadas das discussões
dos modelos resenhados, passamos a
considerar a forma de organização do
legislativo brasileiro. Argumentaremos
42
que as variáveis chaves para entender a
variação dos legislativos, aqui como nos
países que são tomados como modelos
paradigmáticos, estão ligadas à distribuição
dos direitos e recursos no interior do
legislativo, especialmente, aqueles que
garantem o controle da agenda legislativa.
O essencial é saber quem define o que,
como e quando matérias serão objetos de
deliberação.
As decisões em assembléias legislativas são tomadas de acordo com o princípio
majoritário, isto é, em última instância prevalece a vontade da maioria do plenário.
No entanto, ainda que a vontade soberana
resida no plenário, é raro que as deliberações, no sentido forte do termo, tenham
lugar ali. Em geral, o plenário tão somente
referenda decisões tomadas em uma outra
instância ou instâncias. Nestes termos,
pode-se dizer que o plenário delega o
poder deliberativo, permanecendo com o
poder de intervir e afirmar sua prerrogativa
sempre que a maioria acreditar que sua
vontade esteja sendo contrariada.
De maneira geral os trabalhos legislativos se organizam em torno de duas instituições básicas: as comissões parlamentares e as organizações partidárias. Cada uma
dessas instituições torna possível cumprir
as funções básicas das assembléias legislativas: a representativa e a propriamente
legislativa, isto é, a produção de leis que
vão definir as políticas públicas.
Em tese, a divisão do trabalho por
comissões permitiria maior especialização
e o desenvolvimento de capacidade técnica, visando aumentar a qualidade das
decisões legislativas. A atuação das organizações partidárias, por outro lado, garantiria a correspondência entre as decisões
tomadas e as preferências da sociedade
aí representadas. Em termos ideais, essas
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO
duas instituições se complementariam
para garantir que as decisões tomadas pela
assembléia legislativa sejam as melhores e
as mais representativas.
Em assembléias específicas, porém, o
papel de uma ou outra dessas instituições
tende a preponderar, embora essa preponderância nunca chegue à eliminação
do elo mais fraco. A conhecida tipologia
de Polsby (1975) se ancora, justamente,
na contraposição entre legislativos cujos
trabalhos se baseiam mais fortemente nas
comissões, àqueles em que o elo mais forte
é controlado pelos partidos. Como notado
acima, cabe observar que em ambos os
casos o poder decisório é deslocado do
plenário para uma outra instância, quais
sejam, as comissões ou os partidos. Em
outras palavras, o plenário delegaria a
estas instâncias o poder deliberativo em
sentido forte e funcionaria, em ambos os
casos, apenas como uma instância que
apenas referendaria as decisões tomadas
nos verdadeiros loci de poder.
Como uma parcela considerável
das análises comparativas, a tipologia de
Polsby parte do contraste entre formas de
governo:
ponto de partida é a associação entre
legislativos organizados em torno do
sistema de comissões, com o presidencialismo, e aqueles em que prevalecem as
organizações partidárias, com o parlamentarismo.
Como mostraremos adiante, esta
associação entre modelos de legislativo e
formas de governo é indevida. Pior: carrega consigo expectativas e preconceitos
que enviesam as análises. As conseqüências destes equívocos são evidentes no
caso brasileiro, uma vez que as expectativas geradas pelas concepções subjacentes
à tipologia de Polsby estão na raiz dos
modelos de legislativo que habitam as
mentes e os corações de analistas e atores
políticos. Na realidade, ao aprofundarmos o entendimento destas concepções,
podemos notar suas ambigüidades com
relação ao papel que reservam ao legislativo em um sistema presidencialista. Ao
tempo que se espera um legislativo forte
e independente como uma conseqüência
necessária da separação de poderes, credita-se ao legislativo, sempre que ele afirma
sua independência, o papel de obstáculo
conservador e paralisante às ações do
Executivo.
“Nas democracias modernas, os legislativos variam significativamente de acordo
com as diferentes maneiras que estão
inseridos nos seus sistemas políticos. A
diferença mais óbvia é, naturalmente, a
constitucional, a distinção entre os sistemas parlamentaristas e os sistemas de
separação de poderes”. (Polsby, 1975:
274/275).
Nestes termos, como já salientamos
acima, recorreremos a uma discussão da
tipologia de Polsby para aprofundar o
tratamento que dispensamos ao modelo
brasileiro, buscando assim afastar preconceitos a seu respeito. No entanto, para
demonstrar este ponto, se faz necessário
aprofundar a apresentação dos dois modelos
polares considerados por Polsby.
Como é usual na literatura comparada, os Estados Unidos e a Inglaterra são
tomados como os casos paradigmáticos,
respectivamente, de presidencialismo e
parlamentarismo1. A conseqüência deste
A tipologia proposta por Polsby
combina a distinção das formas de governo
com a variação da influência que forças
externas exercem sobre o corpo legislativo.
O autor acredita que é possível dispor as
43
ENSAIO
legislaturas de governos democráticos em
um contínuo, de acordo com o grau de
influência externa que sofrem.
Em um extremo do espectro se encontrariam os Legislativos Transformativos,
aqueles que:
“Possuem, e exercem com freqüência,
capacidade independente de moldar e
transformar em leis propostas de qualquer
origem. O ato de transformação é crucial
porque ele postula o significado da estrutura interna do legislativo, da sua divisão,
interna de trabalho e das preferências
de políticas dos vários legisladores. Para
explicar a produção legislativa não basta
apenas saber quem propôs o que e quão
imperativamente, mas também quem processou o que no interior do legislativo,
quão entusiasticamente e — quão competentemente”. (Polsby, 1975: 277)
Em oposição a este modelo,
Legislativos Arenas são definidos como
aqueles que:
“Servem como espaços formalizados para
a interação das forças políticas relevantes
na vida de um sistema político; quanto
mais aberto o regime, mais variada, mais
representativa e mais responsivas as forças
que têm entrada nessa arena. Essas forças
têm origem no sistema de estratificação
social ou mesmo, como na idade média,
nos estamentos do reino (...)
A existência de legislativos arenas deixa
sem resposta a questão de onde reside o
poder que de fato se expressa nos atos
legislativos - se no sistema partidário (como
é o caso nos vários sistemas democráticos
modernos), ou no sistema de estratificação,
na burocracia ligada ao rei, nos barões, no
clero, ou em qualquer outro grupo”. (pág
277/278)
Tendo definido estes dois tipos
polares, Polsby passa a caracterizá-los de
forma mais detalhada e completa. Nesta
44
operação, o autor relaciona os traços
distintivos dos parlamentos dos Estados
Unidos e da Inglaterra à sua tipologia.
Por exemplo, quanto aos Legislativos
Transformativos, Polsby nota que “um
sistema efetivo de comissões pode bem
ser um pré-requisito para a independência de um corpo legislativo, uma vez que
por meio dele o legislativo pode colher
os benefícios de uma divisão de trabalho
– por exemplo, continuidade de interesse
e expertise – ao colocar sua marca sobre a
política pública” (278)2.
Os termos empregados nesta passagem – um sistema de comissões efetivo
e independente – pedem comentários adicionais. Um sistema de comissões efetivo é
aquele em que o plenário desempenha um
papel limitado na elaboração legislativa. O
verdadeiro trabalho legislativo, a deliberação em sentido forte, ocorre nas comissões
na medida em que estas controlam a tramitação das matérias sob sua jurisdição. O
plenário tem poderes limitados para avocar
a si uma matéria, retirando-a da comissão
para a qual foi inicialmente distribuída.
Sendo assim, legisladores sabem que
pertencer à Comissão de Agricultura, para
dar um exemplo, é a condição necessária
para ser capaz de influenciar a política
agrícola. A distribuição dos parlamentares
pelas comissões é ditada pelo interesse
eleitoral de cada um, com pequena ou
nenhuma influência dos partidos. Assim,
para continuar com o exemplo, buscam
– e conseguem – fazer parte da Comissão
de Agricultura os parlamentares eleitos por
distritos em que estes interesses são realmente relevantes para seus eleitores. Não
seria de se esperar que um deputado eleito
por um distrito primordialmente urbano,
digamos a cidade de Nova York, queira
fazer parte da Comissão de Agricultura. É
apenas razoável supor que este deputado
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO
hipotético procure entrar na comissão que
trate de assuntos bancários.
Parlamentares, portanto, se distribuem pelas comissões de acordo com
seus interesses eleitorais. Os partidos não
controlam a entrada ou a permanência
dos membros nas comissões. A tendência
é o parlamentar ter uma longa carreira
no interior de uma comissão. Sobretudo
porque o poder no interior das comissões
é distribuído de acordo com o tempo de
permanência nas mesmas. Vale a regra da
seniority.
Combinadas essas duas coisas, o
controle sobre a iniciativa legislativa na
área de sua jurisdição com o incentivo
à permanência dos parlamentares em
uma comissão, entende-se porque as
comissões se tornam os centros de poder.
Parlamentares, ao longo de suas carreiras,
se especializam nas matérias que estão
sob a jurisdição de sua comissão. As
comissões reúnem especialistas e se
tornam depositárias de experiência e
conhecimentos nas suas respectivas áreas
de políticas.
A independência, portanto, por contraste ao caso inglês, se refere às influências externas: aos partidos e à estratificação
social. A elaboração da legislação é questão interna corporis. Mas envolve algo
mais: a independência frente ao Executivo.
Nestes termos entende-se porque Polsby
as vê como condição necessária para a
independência do legislativo vis a vis os
partidos e, sobretudo, o executivo.
Cabe notar que o tipo Legislativo
Transformativo é inteiramente construído
tomando por base o caso norte-americano.
Polsby chega inclusive a discutir detalhes
do papel desempenhado pelos Rules
Committee nos anos sessenta e setenta para
bloquear reformas como as relacionadas
aos direitos civis. Conquanto a discussão
do Legislativo Arena também eleja o
Parlamento inglês como seu tipo mais
acabado, Polsby discute outros casos de
países parlamentaristas europeus, como
Holanda, Suécia, Alemanha, França e
Bélgica. Admite assim que os legislativos
em regimes parlamentaristas podem variar,
afastando-se do caso inglês. É difícil entender
que os casos discutidos possam de fato ser
dispostos em um contínuo como quer nos
fazer ver Polsby. Voltaremos à variação de
legislativos sob parlamentarismo adiante.
No momento, por ser mais relevante para a discussão do Brasil, cabe frisar
que o contínuo imaginado por Polsby seja
habitado apenas por países parlamentaristas.
Na linha que vai da Inglaterra (Legislativo
Arena) aos Estados Unidos (Legislativo
Transformativo) não há casos de países
presidencialistas. A sugestão é clara: o
único modelo possível de legislativo sob
presidencialismo é aquele presente nos
Estados Unidos.
A sugestão é tanto mais forte quando
se atenta para o fato de outros países
presidencialistas não estarem totalmente
ausentes de sua discussão. Polsby faz
apenas algumas poucas referências a
outros países presidencialistas quando
discute o papel de legislativos em regimes
autoritários (em sua tipologia, o termo é
regimes fechados e especializados). Nestes
casos, legislaturas não têm propriamente
um papel a desempenhar na elaboração
das leis, são meras carimbadoras das
decisões tomadas em outras instâncias, em
geral, pelo executivo. São legislativos de
fachada e a grande indagação acaba sendo
entender porque não são simplesmente
abolidos.
Ou seja, o que fica implícito é que
o presidencialismo sob democracia requer
legislativos “institucionalizados”, para
usar um termo caro a Polsby, como o
45
ENSAIO
americano. Se o legislativo não afirmar sua
independência frente ao executivo e aos
partidos, organizando-se, então, de acordo
com o modelo de comissões, este poder não
desempenhará seu papel constitucional.
Esta perspectiva se torna problemática
quando levamos em consideração a
tendência da literatura especializada em
países do terceiro mundo a atribuir ao
poder legislativo um papel conservador.
Legislativos, para usar a linguagem da
época, constituem-se em obstáculos à
mudança social. Isto porque as forças
conservadoras são sobre-representadas no
legislativo. De acordo com Packenham:
“No mundo inteiro, legislativos tendem a
representar interesses mais conservadores
e paroquiais do que os executivos, mesmo
nas sociedades democráticas... Nas sociedades que precisam e querem mudanças
(...) pode não fazer sentido fortalecer o
poder decisório de uma instituição que
provavelmente resistirá mais a mudanças”.
(citado por Mezey, pag 750)
Esta tese, na realidade, é bastante
conhecida no Brasil e figura com destaque
nas explicações para a própria crise
de 1964. O conflito político entre um
Congresso conservador e um Executivo
modernizante e reformador foi considerado
por muitos analistas como um dos motivos
centrais que teria levado à queda do
regime de 1946. Desde então, esta tese
tem sido reformulada e adaptada às mais
diversas contingências.
Nas últimas décadas, no interior do
movimento neo-institucionalista, este argumento perdeu sua tradução social imediata para se transformar em um modelo
de conflito puramente institucional. O
regime presidencialista seria inferior ao
parlamentarista porque não teria formas
institucionais de resolver o conflito entre
o legislativo e o executivo. Sob presiden46
cialismo, o legislativo e o executivo são
eleitos por regras eleitorais específicas, de
onde segue que representam interesses
diversos. Assim, quaisquer sejam estes
interesses, conflitos entre o executivo e o
legislativo são praticamente inevitáveis.
A probabilidade de que o executivo não
encontre apoio para suas iniciativas no
interior do legislativo cresce com a fragmentação partidária. Presidencialismo e
multipartidarismo são uma “combinação
difícil” (Mainwaring, 1993).
Na elaboração da tipologia de legislativos na América Latina, Cox e Morgenstern,
como Polsby, partem dos tipos polares
relacionados aos dois sistemas “puros”
de governo: o parlamentarismo inglês e
o presidencialismo norte-americano. Em
contraste com Posby, no que se refere
ao parlamentarismo, os autores desconsideram suas variações internas. Dada a
presença do voto de confiança e a possibilidade de queda do governo, há, em todo e
qualquer legislativo sob parlamentarismo,
incentivos para que os partidos assegurem
a unidade nas votações em plenário. Para
isso, os líderes dispõem de instrumentos
de controle da agenda no parlamento
– definem quando e quais projetos serão
votados. Ou seja, os partidos da coalizão
majoritária atuam como “coalizões procedimentais” que lhes permitem proteger
os seus membros de votos embaraçosos
e evitar divergências públicas no interior
da coalizão, garantindo, assim, unidade
no plenário. Dessa forma, “os partidos
parlamentares unificam o executivo e
a assembléia, refletindo, de um lado, a
confiança que os parlamentares têm nos
líderes que escolheram (...) e, de outro,
a necessidade de se organizar fortemente
em apoio ao executivo. (...) O executivo,
e não apenas atores legislativos, exercem
o poder de agenda” (Cox e Morgenstern,
2002: 462-64).
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO
Quanto ao presidencialismo, os autores distinguem dois tipos, o dos Estados
Unidos e os da América Latina. Quanto
ao primeiro, haveria completa separação
de poderes e o controle da agenda seria
exercido por atores legislativos no interior
do próprio congresso. Está claro que há
estreita correspondência deste caso com o
legislativo transformativo conforme definido
por Polsby. Da mesma forma, o Legislativo
Arena é generalizado para todos os governos parlamentaristas. Há, tão somente, um
deslocamento do elemento externo, que
em Polsby era o partido e em Cox e
Morgentern é o executivo. Ou seja, nesta
última tipologia, o elemento chave é dado
pela relação entre o legislativo e o executivo. No presidencialismo americano, o
poder de alterar o status quo legal, a capacidade transformativa, estaria nas mãos do
próprio legislativo. No parlamentarismo, o
executivo que deteria esse poder. As características básicas desses sistemas de governo determinam a capacidade de cada um
dos poderes de fazer leis.
A contribuição mais original dos
autores, portanto, estaria na tentativa de
acomodar legislativos da América Latina
a esta tipologia. Isto se faz pela criação de
um terceiro tipo, um tipo intermediário,
os Legislativos Reativos. A característica
distintiva do presidencialismo latinoamericano, em contraposição ao dos
Estados Unidos, é que a separação de
poderes não é total. Nesses países, à
semelhança dos países parlamentaristas,
o executivo participa diretamente do
processo legislativo: tem o poder de propor
e, além disso, pode agir unilateralmente.
Os legislativos latino-americanos,
portanto, reagem ao executivo. Não reagem, porém da mesma forma. Cox e
Morgenstern elaboram quatro subtipos de
legislativos que são classificados de acordo
com a sua disposição em negociar com o
executivo. Temos, dessa forma, os legislativos “recalcitrantes”, “viáveis” (workable),
“venais ou paroquiais” e “subservientes”.
Os autores não esclarecem o que determina essa disposição, mas argumentam
que ela varia em função da composição
partidária do legislativo, mais especificamente, do nível de apoio ao presidente
que, por sua vez, determina as estratégias
do presidente.
Tendo em vista o tamanho de sua
base parlamentar, o presidente antecipa as
reações do legislativo e utiliza, em função
disso, os poderes de que dispõe. Para os
autores, a estratégia ótima do executivo
varia de acordo com os seguintes poderes: 1. autoridade para regulamentar ou
interpretar; 2. autoridade para indicar
ministros, juízes e outros altos postos, em
geral com a aprovação do congresso; 3.
delegação explícita do poder de legislar; 4.
poderes de decreto com força de lei, inclusive para situações de emergência, quando
pode suspender as liberdades civis; 5.
poderes pára-constitucionais de decreto,
“que permitem ao presidente mudar leis
usando a caneta ou a espada” (Cox e
Morgenstern, 2002: 460-1).
Combinando o tipo de presidente
ao tipo de legislativo, formam-se pares
de tipos de executivo-legislativo: 1. “presidente imperial-legislativo recalcitrante”;
2. “presidente nacionalmente orientadolegislativo paroquial”; 3. “presidente de
coalizão-legislativo viável”; e, finalmente,
4. “presidente dominante-legislativo subserviente”. Nos extremos estão presidentes
sem maioria parlamentar ou com ampla
maioria. Os que enfrentam maiorias hostis,
os presidentes imperiais, adotam estratégias de ação unilateral, usando seus poderes “de formas constitucionalmente provocativas”. No outro extremo, presidentes
dominantes, antecipando assembléias subservientes, ditam as regras e as políticas.
47
ENSAIO
Os dois tipos intermediários referemse a presidentes que contam com apoio
médio no legislativo e, por essa razão,
procuram negociar com o legislativo o
curso das políticas. O que diferencia os
dois tipos são as moedas de troca utilizadas na barganha pelo apoio parlamentar.
Estas compreendem: benefícios particularistas (patronagem e pork); posições
ministeriais; concessões sobre políticas
e poderes de agenda. Assembléias compostas por parlamentares clientelistas
delegam ampla autoridade ao executivo
para que este defina políticas nacionais.
Por sua vez, a combinação de “presidente de coalizão” com assembléias
“viáveis” ocorre quando presidentes lideram coalizões que incluem atores legislativos,
buscam implementar políticas de coalizões
por meio de legislação ordinária e desenham
estratégias que visam aprovar leis por meio
de seus aliados no legislativo. O legislativo, deste modo, se envolve no processo de formulação de políticas (Cox e
Morgenstern, 2002: 451-455).
Sendo assim, para esses autores, no
presidencialismo latino-americano não
existe a possibilidade de que uma maioria parlamentar dê seu apoio ao executivo pela simples razão de pertencer ao
mesmo partido e, portanto, ter os mesmos interesses em políticas. Da mesma
forma, poderes institucionais de agenda
não podem ser utilizados por delegação
de uma maioria parlamentar. O uso de
poderes unilaterais, como o poder de
decreto com força de lei, é associado
a governos minoritários, a presidentes
“politicamente fracos” (2002: 450).
Há, portanto, uma dificuldade analítica de se trabalhar com presidencialismos
que se distanciam do caso norte-americano. O suposto é que, sendo os poderes
48
legislativo e executivo poderes distintos,
devem ter vontades políticas distintas. Os
poderes são constitucionalmente separados e deveriam permanecer ou evoluir
nesta direção. Se não o fazem é porque,
ou o poder executivo é demasiadamente
forte, ou o legislativo fraco, ou ambos. A
possibilidade de cooperação ou identificação política entre ambos os poderes,
tomada como natural e óbvia sob parlamentarismo, é concebida como expressão
de uma patologia.
Tome-se como exemplo o recurso
aos poderes de decreto presidencial, como
as Medidas Provisórias no Brasil. Os autores desconsideram a possibilidade do executivo recorrer a esse mecanismo institucional com apoio majoritário, ou quase
majoritário, especialmente em governos
de coalizão. O poder de legislar por decreto pode ser visto como um instrumento útil
para solucionar problemas de “barganhas
horizontais” entre o governo e a maioria
parlamentar que o apóia. Assim, em vez
de se configurar como um mecanismo
institucional para contornar a vontade da
maioria ou subjugar o legislativo, pode ser
um poderoso dispositivo em prol das maiorias governistas, protegendo-as dos efeitos
de medidas impopulares, que afetem bases
eleitorais específicas, e preservando os
acordos políticos entre o governo e a coalizão que o apóia no legislativo. Aliás, é
assim que poderes de agenda em governos
parlamentaristas são tratados por Cox e
Morgentern. Por que maiorias só poderiam
delegar poderes ao executivo em governos
parlamentaristas?
Do ponto de vista normativo, isto é,
dos modelos almejados de poder legislativo, desenha-se, desta forma, uma expectativa ambígua, quando não pura e simplesmente contraditória, quanto ao papel
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO
a ser desempenhado pelo poder legislativo
em regimes presidencialistas. O legislativo
é forte, institucionalizado, independente
quando se constitui em uma força autônoma capaz de se opor ao executivo.
Ao mesmo tempo, considera-se que o
Legislativo é um obstáculo às mudanças, barrando as propostas presidenciais.
Assim é que, quando o legislativo afirma
seu poder e sua independência, rejeitando
propostas do executivo, teríamos o que
normalmente se nomeia como crise de
governabilidade. Se o legislativo aprova
as propostas do executivo, teríamos um
Legislativo subserviente e atrofiado.
O fato é que os juízos sobre o
Legislativo no Brasil são marcados pelas
ambigüidades dos modelos usados como
referência. O Legislativo no Brasil é, por
vezes, rotulado de fraco por não participar
decisivamente da elaboração das leis,
sendo visto como um mero carimbador
das iniciativas do Executivo. Por vezes,
a visão se inverte completamente e o
Legislativo passa a ser visto como um
obstáculo instransponível. Se as “reformas”
não avançam, o problema é a resistência
do Legislativo, quaisquer sejam as reformas
e seu estágio de elaboração. O Legislativo
chega a ser responsabilizado por deter
até mesmo as reformas que nem sequer
são formuladas. A lei da antecipação dos
resultados explicaria tal fato: se o Executivo
antecipa que suas propostas serão barradas
pelo Legislativo, por que apresentá-las?
O ponto, portanto, que estamos procurando deixar tão claro quanto possível é
que há uma ambigüidade no interior dos
modelos com que usualmente se trabalha
ao pensar legislativos em regimes presidencialistas. Ao tomar os Estados Unidos
como paradigma, acredita-se que, sob
presidencialismo, legislativos deveriam ter
capacidade para ser a fonte independente
e autônoma das iniciativas de alteração do
status quo legal. Isto é, se há separação de
poderes, cabe ao legislativo legislar, afirmando assim sua preponderância sobre o
poder executivo. Mas se for assim, e aqui
o outro lado da moeda se revela, o conflito
entre poderes leva a um impasse institucional que não teria solução no interior
do modelo de separação de poderes. Este
conflito será tanto maior quanto maior o
número de partidos com representação no
Congresso e quanto mais as forças conservadoras forem capazes de controlar o
processo decisório. Em sendo as comissões
fortes, tanto maior a capacidade das minorias de barrar as pretensões da maioria.
A previsão, dentro deste quadro, é que o
conflito institucional, sobretudo quando
presidentes são fortes, resolva-se de duas
formas: ou por um golpe de estado ou
pela subordinação do poder legislativo ao
executivo3.
As tipologias resenhadas não usam
as mesmas variáveis quando passam do
parlamentarismo para o presidencialismo,
e quando passam dos Estados Unidos para
a América Latina. A análise do Legislativo
norte-americano toma como relevante a
sua organização interna, a forma como os
direitos legislativos de propor, emendar,
determinar o ritmo da tramitação das matérias e usar a informação são distribuídos de
forma a tornar as comissões os verdadeiros focos de poder. A descentralização
é vista como a resposta ótima de um
Legislativo que se pretende autônomo,
capaz de resistir e se opor ao Executivo.
No caso do parlamentarismo, o foco
se volta, em uma versão, para referências
externas ao legislativo: partidos e classes
sociais. Na outra versão, o poder legislativo se reduz ao poder de manter ou
49
ENSAIO
derrubar o governo. A sua participação
efetiva na elaboração das leis ou a estrutura interna do poder legislativo são desconsideradas. Estes pontos não são discutidos
porque, talvez, se dê como necessário
que sob parlamentarismo o Legislativo
seja necessariamente centralizado, e que
a participação no processo decisório seja
necessariamente indireta4.
como o controle da agenda pelo executivo
trocam de sinais, passam de positivas para
negativas, conforme o caso. A organização
interna do legislativo, a forma como esta se
relaciona com a definição das agendas do
trabalho, o que, quando e como se votam
as matérias é a variável central para entender a variação dos modelos. A forma de
governo é menos importante.
O fato é que legislativos sob parlamentarismo não são todos iguais. Há variações em aspectos fundamentais, mesmo
no que se refere ao direito de introdução
de moções de censura ou confiança pelo
plenário. Da mesma forma, o completo
controle que o Gabinete inglês tem sob
a agenda dos trabalhos não é encontrada em todos os regimes parlamentaristas.
Os casos mais conhecidos de executivos
sem este poder sob parlamentarismo são
Itália do pós-guerra e a Terceira e Quarta
República na França.
Passemos à apresentação dos traços
que caracterizam o Poder Legislativo
no Brasil. Nosso objetivo é mostrar, de
forma tão sucinta quanto possível, como
o processo decisório é organizado e,
com base nesta descrição, apontar para
uma forma de entender a participação
do Legislativo no processo decisório que
escape das ambigüidades notadas acima.
O caso brasileiro não corresponde quer
ao modelo norte-americano, quer ao
modelo inglês. Como discutido acima, o
expediente de classificá-lo como híbrido
ou intermediário de um Legislativo Reativo
deve ser rejeitado. Trata-se simplesmente
de um modelo organizacional diverso.
Já no caso dos legislativos latino-americanos, a caracterização é feita a partir de
sua participação no processo de elaboração de leis. Como em geral a proposição
de leis cabe ao executivo, os legislativos
latino-americanos são definidos como reativos. Varia a forma como reagem ao executivo e esta variação independe de seu
formato organizacional, sendo atribuída
apenas às preferências partidárias e por
tipo de políticas da maioria dos legisladores induzidas pelas leis eleitorais. Ou seja,
a tipologia desconsidera os aspectos internos ao próprio legislativo. Considera apenas o efeito das leis eleitorais para definir o
tipo de reação às propostas do executivo.
Como se vê, as classificações propostas são antes descritivas que analíticas.
Para cada caso, identifica-se a variável
que melhor o descreveria e a tipologia é
adaptada de forma a aproximar o modelo
daquilo que o conhecimento convencional
estabelece sobre os casos. Características
50
Para que o ponto fique claro, é útil
retornar ao momento histórico em que este
modelo se estruturou, o final dos trabalhos
constituintes, quando ganham corpo duas
tendências contraditórias. De um lado, a
Constituição de 1988 procurou fortalecer
o sistema de comissões, dotando-as da
prerrogativa de aprovar legislação “terminativamente”. Pelo chamado “poder
terminativo das comissões”, certas matérias podem ser definitivamente aprovadas
pelas comissões permanentes sem a manifestação explícita do plenário. Ou seja, por
meio deste expediente, o texto constitucional procurou explicitamente descentralizar
o processo decisório, dotando as comissões de poder autônomo.
No entanto, tal tentativa chocou-se
frontalmente com a prática centralizadora que se estabeleceu ao final do próprio
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO
processo constituinte. A agenda de votações passou a ser coordenada pela Mesa
e pelo Colégio de Líderes. O papel de
destaque destas duas instâncias na estruturação do processo decisório foi incorporado pelo Regimento Interno da Câmara dos
Deputados, votado em 1989.
De um lado, portanto, uma tendência à valorização das comissões e de
seu trabalho autônomo, de outro, uma
centralização dos trabalhos legislativos
a partir de uma agenda decisória acordada pelos líderes dos partidos. A questão
é saber qual destas duas tendências
prevaleceu. A reposta é clara: a centralização
dos trabalhos prevaleceu em detrimento
do desenvolvimento das comissões como
instâncias decisórias autônomas.
A preponderância do poder dos líderes partidários sobre as comissões se revela de maneira clara quando se analisa o
papel do Colégio de Líderes e das comissões na tramitação das matérias. Comissões
têm impacto sobre o resultado do processo
legislativo quando se constituem em rota
obrigatória para a aprovação das matérias.
De fato, matérias tramitando em regime
ordinário são remetidas às comissões a
quem, em primeira instância, caberia definir seu destino. A autonomia das comissões é afetada quando as matérias sob sua
jurisdição são avocadas pelo plenário,
por meio da aprovação de um requerimento para tramitação urgente. Aprovado
o requerimento, o projeto é retirado da
comissão e, independente desta ter ou não
iniciado a apreciação da matéria, votado
em poucos dias com fortes restrições à
apresentação de emendas em plenário.
Em geral, os requerimentos de urgência
são acordados em reuniões do Colégio de
Líderes, coordenadas pelo Presidente da
Mesa. Submetidos ao plenário, raramente
são rejeitados.
O fato é que a grande maioria das
matérias transformadas em lei tramita em
regime de urgência. De 1989 a 2001, 50%
das leis aprovadas tramitaram em regime
de urgência do legislativo. Esta proporção
aumenta para 56% se considerarmos apenas os projetos do Executivo. Este faz uso
bem mais comedido da urgência constitucional a que tem direito: apenas 10% das
leis sancionadas tramitaram em regime de
urgência por solicitação do Executivo. A
grande maioria das urgências solicitadas
pelos líderes partidários ocorreu sem que
as comissões tivessem concluído os seus
pareceres. No período de 1989 a 1994,
85% das leis que tramitaram em regime de
urgência foram votadas em plenário sem
que pareceres emitidos pelas comissões
tivessem sido apresentados. Além disto, a
aprovação de um requerimento de urgência corresponde, praticamente, à aprovação da matéria. De outra parte, o poder
terminativo das comissões raramente é
usado. Apenas 10% das leis são aprovadas
por poder terminativo.
Ou seja, o processo legislativo no
Brasil é centralizado na Mesa e no Colégio
de Líderes. O plenário referenda o que é
decidido pelos líderes. A decisão crucial diz
respeito à escolha dos projetos que serão
objeto de um requerimento de urgência.
Neste momento decide-se que matérias
passarão a integrar a pauta dos trabalhos
e quais, portanto, têm chances de serem
aprovadas. Matérias que não recebem
tratamento diferenciado dos líderes têm
chances escassas de se tornar lei. Em uma
palavra: a deliberação, em sentido forte, se
dá no interior destas instâncias decisórias.
No interior da Câmara dos Deputados,
a Presidência da Mesa é, sem dúvida alguma, o cargo politicamente mais importante. O presidente detém quase que exclusivamente a coordenação dos trabalhos
51
ENSAIO
legislativos. As prerrogativas do presidente
da Mesa na coordenação dos trabalhos
legislativos e na direção das sessões plenárias são amplas e extensas, garantindo-lhe
grande influência nos resultados do processo legislativo, pois podem afetar o funcionamento das comissões e o desenrolar
dos trabalhos em plenário.
Duas dessas prerrogativas o presidente da Mesa compartilha com os líderes
de bancadas: a designação dos membros
das comissões e a definição da agenda legislativa. Em realidade, os líderes
partidários controlam a composição das
comissões, uma vez que são responsáveis
pela indicação e substituição, a qualquer
momento da legislatura, dos membros
das comissões permanentes e de todos as
demais comissões temporárias, inclusive
as Comissões Parlamentares de Inquérito.
Nomeiam também os membros da Câmara
e do Senado para a formação das comissões mistas que apreciam as medidas provisórias e o orçamento.
O papel de destaque dos líderes
partidários não depende exclusivamente do Colégio de Líderes. Sua influência
na determinação da pauta dos trabalhos
depende também das vantagens que lhe
são conferidas para efeitos de apresentação de requerimentos, pedidos de destaques, apresentação de emendas etc.
Nestes casos, a manifestação do líder é
tomada como manifestação de sua bancada. Assim, os líderes se encontram em
posição privilegiada para influenciar na
direção dos trabalhos legislativos.
O poder dos líderes se expressa ao
longo de toda a tramitação das matérias.
Por exemplo, votações nominais são
testes cruciais para a unidade das coalizões legislativas. Muitas vezes, membros
de uma coalizão têm que votar medidas
52
que contrariam os interesses diretos e imediatos dos seus eleitores. No entanto, no
caso das matérias em que o regimento não
obriga a ocorrência de votações nominais,
somente os líderes partidários têm condições de apresentar requerimentos forçando a que a decisão seja por voto nominal. Mesmo os líderes não podem fazê-lo
indiscriminadamente. Para que sucessivos
pedidos de votação nominal não sejam
usados para obstruir os trabalhos, em favorecimento à minoria, requerimentos só são
acolhidos uma hora após o encerramento
da última votação nominal. A oposição,
portanto, deve escolher as medidas que
quer ver votadas nominalmente e a situação conta com recursos para se proteger
de votações embaraçosas.
Portanto, os líderes partidários,
incluindo o Presidente da Mesa entre
os líderes partidários, contam com armas
poderosas para definir a agenda dos trabalhos. Com os recursos regimentais com
que contam, são eles que definem o que,
quando e de que forma matérias chegam
e são votadas pelo plenário. Estes poderes
de agenda decorrem da forma como o
Poder Legislativo é organizado. São desta
forma independentes, do ponto de vista
institucional, dos poderes legislativos do
Executivo. Ainda assim, seus efeitos só
podem ser compreendidos quando analisados no interior das relações entre o
Executivo e o Legislativo.
O Executivo brasileiro é institucionalmente forte. A Constituição lhe concede a prerrogativa exclusiva de propor
alterações do status quo legal nas principais matérias, como taxação, orçamentação e alteração da burocracia. E onde
não tem poder exclusivo, o presidente não
está impedido de iniciar legislação. Ou
seja, nas demais matérias, o Executivo e
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO
o Legislativo têm prerrogativa concorrente para propor legislação. Mesmo nestes
casos, o Executivo é dotado de vantagens
adicionais, dadas pela urgência constitucional5 e poder de decreto (as medidas
provisórias).
Portanto, o presidente é de jure o
principal legislador do país, em que pese
este ser um sistema em que os poderes
são separados no que se refere à sua origem e sobrevivência. O direito de propor,
no entanto, não assegura automaticamente sucesso. Matérias são aprovadas pela
maioria dos legisladores e, por extensos
que sejam os poderes legislativos presidenciais, este não pode aprovar legislação sem
a aprovação expressa da maioria.
Nem mesmo a reedição continuada
de MP`s, possível até a promulgação da
Emenda Constitucional 32, em setembro
de 2001, permitia ao presidente ir contra
os interesses da maioria. Pedia o apoio
tácito da maioria, uma vez que esta sempre
poderia rejeitar uma MP. Tal possibilidade
não é uma mera hipótese, uma vez que em
momentos cruciais, como na apreciação
do Plano Collor, o PMDB conseguiu reunir
maiorias dispostas a rejeitar MP`s tidas por
fundamentais pelo governo. O fato é que
nem mesmo o poder de decreto permite
que o Executivo legisle sem o apoio da
maioria.
Os dados relativos à produção legislativa no Brasil falam por si só. O Executivo
é não apenas o principal legislador de jure.
É também o principal legislador de facto.
Desde a promulgação da Constituição
de 1988, a taxa de sucesso do Executivo,
isto é, a proporção de projetos aprovados
sobre o total de enviados, gira em torno
de 90%. Rejeições pelo Legislativo dos
projetos enviados pelo Executivo são fatos
raros: não mais que 10%. Além disto, a
produção legislativa é claramente domi-
nada pelo Executivo: do total de 3043 leis
aprovadas entre 1989 e 2001, 86% foram
propostas pelo Executivo.
Os dados relativos a sucesso e dominância do Executivo em países parlamentaristas não são muito diversos. Isto significa que eles não devem ser lidos como
indicativos de que o Legislativo brasileiro é
meramente reativo ou atrofiado. O sucesso
presidencial depende da sua capacidade
de obter cooperação do Legislativo, de
contar com o apoio da maioria dos legisladores.
Já notamos o papel da Mesa e dos
Líderes na tramitação das matérias. Em
realidade, no mais das vezes o poder de
agenda dos líderes é usado em favor do
Executivo. Isto pode ser visto quando se
nota que a maioria dos projetos aprovados
em tramitação urgente foi proposta pelo
Executivo. A agenda de propostas legislativas do Executivo conta com o poder de
agenda dos líderes para ser aprovada.
O fato dos líderes e do Executivo
contarem com poderes que lhes permite
definir e controlar a agenda dos trabalhos
não lhes permite usurpar o poder da maioria. O Executivo tem sucesso em suas
iniciativas legislativas porque conta com
o apoio da maioria. Empiricamente, este
apoio se traduz em votos de acordo com
a indicação do líder do governo nas votações nominais. Desde a promulgação da
Constituição, deputados filiados a partidos
que fazem parte da base de sustentação do
governo votam com o governo em 90%
das votações. As variações por governo e
partido são pequenas.
A base de sustentação do governo
é formada pelos partidos que recebem
pastas ministeriais. Em outras palavras,
presidentes “formam governo” de maneira
análoga a primeiros ministros em sistemas parlamentaristas pluripartidários. Ao
53
ENSAIO
receber uma pasta ministerial, um partido
passa a participar da definição da política
do governo e, desta forma, enquanto membro do governo deve apoiar estas mesmas
políticas quando elas são votadas pelo
Legislativo.
Nestes termos, a centralização do processo decisório no interior do Legislativo e
os poderes legislativos do presidente são
traços institucionais independentes. No
mais das vezes, funcionam como elementos complementares, fornecendo as bases
institucionais do que em outra oportunidade chamamos de presidencialismo de
coalizão6.
Do ponto de vista do Legislativo, a
centralização dos trabalhos aumenta o seu
poder de barganha. Ao delegar poderes
aos líderes partidários, os membros do
Legislativo estão coordenando suas ações,
canalizando suas demandas de uma forma
centralizada7. Muito provavelmente, negociações caso a caso e levadas a cabo de
maneira descentralizada levariam a soluções inferiores.
O Legislativo brasileiro não se aproxima de qualquer dos modelos clássicos. Comparadas às comissões legislativas
norte-americanas, nossas comissões são
fracas. Estão longe de ser unidades autônomas e responsáveis pela gestação de políticas na área de sua jurisdição. Tampouco
cabe se falar em um modelo em que todo
o poder de propor é monopolizado pelo
executivo, como é o caso do gabinete
inglês.
Como vimos, se alguma coisa, o
modelo brasileiro se aproxima mais do
último caso do que do primeiro. É um
modelo diverso de preponderância do executivo que repousa sobre a centralização
dos trabalhos legislativos. Reconhecer tal
fato não implica em defini-lo como uma
forma deturpada de presidencialismo.
54
Os poderes constitucionais do
Executivo, juntamente com a organização
centralizada do Legislativo, permitem a
ação concertada do Executivo e dos líderes partidários que pertencem à coalizão
de governo. Isto porque os poderes de
agenda, nos dois sentidos apontados por
Cox, ou seja, como “o poder de colocar e
tirar projetos de lei da agenda do plenário”
e como “o poder de proteger esses projetos de emendas” (2000) são controlados
pelo Executivo e pelos líderes partidários.
Com isto, a coalizão governista tem os
meios institucionais necessários à promoção da cooperação entre o Legislativo e o
Executivo, neutralizando o comportamento individualista dos legisladores.
Não há dúvidas de que o sistema
partidário brasileiro é fragmentado e que
a legislação eleitoral cria incentivos para
que os deputados persigam objetivos particularistas. No entanto, tomados individualmente, os legisladores não têm acesso
aos meios necessários para influenciar
legislação e as políticas públicas. Só podem
fazê-lo como membros de partidos que se
reúnem em dois grandes grupos: situação
e oposição.
Tipologias ou modelos de legislativo,
como procuramos mostrar, são fortemente
influenciados pelos casos tidos como
clássicos: Inglaterra e Estados Unidos.
Aspectos normativos confundem-se com
traços descritivos. O que é se confunde
com o que deve ser. O parlamento inglês
é visto como o modelo de legislativo em
governos parlamentaristas. O americano,
com sua forma acabada em sistemas
presidencialistas. Para a maioria dos
analistas, é difícil compreender os casos
que evoluem em direção diversa.
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO
NOTAS
“O contraste entre legislativos transformativos e arenas captura muitas das diferenças que os estudiosos observam
1
na discussão dos dois grandes legislativos que servem de modelo para os legislativos da maioria dos países no
mundo, o britânico e o americano. Sendo os legislativos nos demais países mais frequentemente uma adaptação do
que uma cópia, acho que é útil contemplar esses dois casos clássicos como tendendo a extremos de um continuum
mais do que metades de uma dicotomia como é frequentemente proposto” (Polsby, 1975: 280/281).
Em outra passagem, Polsby afirma: “A existência de um sistema de comissões pode ser uma condição necessária
2
para a independência legislativa” (1975: 279).
3
Alguns autores acreditam ainda que o presidencialismo só será viável onde e quando presidentes forem
constitucionalmente fracos, isto é, dotados de limitados poderes legislativos. Somente sob esta condição presidentes
teriam incentivos para negociar e ou se submeter às vontades do Legislativo. Esta é a posição de Shugart e Carey,
1992.
4
Indireta, porque se dá por meio da ameaça do voto de censura que pode levar à queda do governo. Logo, o
governo, ao propor, deve levar em consideração a vontade da maioria.
5
A urgência constitucional difere da urgência legislativa discutida acima. É uma decisão unilateral do executivo,
que define prazos limites para a apreciação das matérias.
6
Ver o Capítulo 1, “Bases institucionais do presidencialismo de coalizão”, de Figueiredo e Limongi, 1999.
7
O argumento completo sobre as estratégias de cooperação do parlamentar individual e seu interesse em fortalecer
o partido e votar disciplinadamente pode ser encontrado no mesmo capítulo citado acima (Figueiredo e Limongi,
1999: 34-35).
55
ENSAIO
Referências
COX, Gary. 2002. “On the Effects of Legislative Rules”. Legislative Studies Quarterly. 25 (2).
COX, Gary e MORGENSTERN, Scott. 2002. “Epilogue: Latin America’s Reactive Assemblies
and Proactive Presidents” in Scott Morgenstern e Benito Nacif (orgs.), Legislative Politics
in Latin America. Cambridge, Cambridge University Press.
FIGUEIREDO, Argelina C. & LIMONGI, Fernando. 1999. Executivo e Legislativo na nova
ordem constitucional. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.
MEZEY, Michael L. 1983. “The functions of Legislatures in the Third World” in Gerhard
Lowenberg, Samuel C. Patterson e Malcolm E. Jewell (orgs) Handbook of Legislative
Research, Cambridge, Harvard University Press.
POLSBY, Nelson W. 1975. “Legislatures”in Fred I. Greenstein e Nelson W. Polsby. (orgs.)
Handbook of Political Science. Reading, Mass.: Addison-Wesley.
56
* CARLOS RANULFO MELO
/ ** FÁTIMA
ANASTASIA
CARLOS
RANULFO
MELO / FÁTIMA ANASTASIA
ENSAIO
Representação e Democracia
no Cone Sul
Introdução
Este artigo discute a democracia em
quatro países da América do Sul, a saber,
Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, sob
o ângulo da representatividade de seus
arranjos institucionais1. O fato de que as
democracias contemporâneas sejam regimes representativos não nos deve fazer
esquecer que democracia e representação
são fenômenos analiticamente distintos.
No mínimo, como bem chama a atenção
Santos (1998:208), não se pode ignorar a
hipótese “de que existam pelo menos duas
descendências de regimes representativos
– oligárquicos e democráticos – com características e dinâmicas próprias”. Mais ainda,
é possível recorrer ao formato do arranjo
representativo para que, à maneira de
Dahl, possamos estabelecer distinções entre
o grau de poliarquização das democracias
contemporâneas. Se “uma característica
chave da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências dos
cidadãos” (Dahl,1997:25), segue-se que,
quanto maior o grau de inclusividade no
que se refere a atores/conteúdos e formas
de organização de determinado arranjo
representativo, mais democrático poderá
ser considerado o regime.
Neste texto, procuraremos verificar o
quão densamente democrático é o arranjo
representativo nos países em questão. Por
* Cientista Político da UFMG / **Professora do Departamento Político da UFMG (Universidade
Federal de Minas Gerais)
57
ENSAIO
densidade democrática da representação
entendemos “um atributo da democracia
que envolve duas dimensões: a primeira
refere-se ao método de constituição do
órgão decisório e à sua composição
(Sartori, 1994); a segunda relaciona-se aos
instrumentos e procedimentos através dos
quais a representação é exercida. Quanto
maior for a densidade democrática da
representação, mais a ordem política se
aproxima da realização dos princípios
centrais da democracia, a saber: igualdade
política e soberania popular” (Anastasia e
Melo, 2002).
Como se sabe, a ciência política
registra um profícuo debate entre o que
se convencionou chamar de duas visões
de democracia. De um lado, autores
como Schumpeter (1984) e Sartori (1996)
argumentam que os arranjos institucionais
de tipo majoritário, por propiciarem, com
muito mais freqüência que os de tipo
proporcional, governos unipartidários,
legislativos pouco fragmentados e
maior concentração de poderes nas
mãos da maioria vitoriosa, seriam mais
conducentes à estabilidade política e à
eficácia governativa. Lijphart (2003), por
sua vez, sustenta que arranjos conducentes
à dispersão de poderes entre os atores
políticos, como os de tipo consensual, não
necessariamente devem ser vinculados à
ineficácia governativa e à instabilidade,
ainda que seja correto associá-los a regimes
mais representativos ou, como mostra
Powell (2000), a regimes políticos nos quais
o quantum de representação autorizada
presente nas decisões é significativamente
mais expressivo2.
Na visão de Lijphart (2003), a dispersão de poderes entre a pluralidade de
atores que se constituem na dinâmica
societal e se fazem representar na arena
58
política pode ser um objetivo dos arranjos democráticos. Para o autor, a escolha
do arranjo institucional deve levar em
conta as condições sob as quais tais instituições deverão operar. Uma vez que se
trate de processar conflitos em sociedades
complexas, heterogêneas e marcadas por
profundas desigualdades, regimes de tipo
consociativo/consensual seriam recomendáveis, inclusive do ponto de vista da estabilidade. O aparente paradoxo explica-se
uma vez que, em tais tipos de sociedade, a
manutenção da ordem democrática reivindicaria arranjos mais inclusivos e capazes
de incorporar a diversidade e a pluralidade
de interesses e preferências existente.
As democracias sul-americanas
sempre foram mais tendentes à dispersão do que à concentração de poder.
Historicamente prevaleceram a separação
formal de poderes, a representação proporcional, o bicameralismo e os governos de
coalizão. Recentemente, a tendência foi
acentuada com a emergência de sistemas
multipartidários e a introdução de eleições diretas para prefeitos e governadores
em diversos países3. Em conseqüência, a
combinação entre presidencialismo, representação proporcional e multipartidarismo
tornou-se comum, sem que necessariamente se registrassem os efeitos perversos previstos na literatura4.
Neste texto tomamos como ponto de
partida que a estabilidade da democracia
nas complexas sociedades sul-americanas encontra-se associada ao grau de
pluralidade e institucionalização de seus
instrumentos de participação e representação política. Isso implica em assumir a
necessidade de um arranjo representativo
densamente democrático, ou seja, capaz
de distribuir recursos de poder entre os
atores relevantes no processo decisório
– executivo, legislativo e cidadãos.
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
Nas duas próximas seções comparamos a densidade democrática da representação nos países selecionados. Primeiro,
examinamos a extensão em que o mecanismo eleitoral é utilizado para a designação
de governantes e legisladores nos diversos
níveis, bem como o método de constituição dos poderes Executivo e Legislativo
nacional. A seguir, analisamos a relação
existente entre as Câmaras Alta e Baixa e a
maneira como são compostas as comissões
permanentes no Congresso. Na conclusão,
ordenamos os países segundo a densidade
democrática de seus arranjos representativos e, à luz da discussão realizada, tece-
mos um breve comentário sobre a questão
da reforma política no Brasil.
Eleições e constituição dos
órgãos decisórios
O primeiro indicador a ser analisado
refere-se à extensão com que o mecanismo
da eleição direta é utilizado para a escolha
dos tomadores de decisão nos diversos
níveis. Como lembra Manin (1997), um
governo representativo tem como primeiro
princípio que os governantes sejam eleitos
pelos governados. Através da Tabela 1
podemos verificar até que ponto tal princípio
é adotado nos quatro países em questão.
Tabela 1
Sistemas de governo, organização política e poderes de constituição de governantes
Existência de eleições diretas para:
País
Sistema de
governo
Todas
Todas
as
as
Organização
Executivo Executivo Executivo cadeiras cadeiras
política
Nacional Estadual Municipal
na
na
Câmara Câmara
Baixa
Alta
Argentina Presidencial Federalismo
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Brasil
Presidencial Federalismo
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Chile
Presidencial
Unitário
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Uruguai
Presidencial
Unitário
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
59
ENSAIO
Os quatro países em questão são
presidencialistas e possuem um Congresso
bicameral. Enquanto Argentina e Brasil são
federações, Chile e Uruguai são unitários.
Em todos os casos, os presidentes são
eleitos diretamente. Na Argentina, a eleição
direta é recente; até 1989, o presidente era
eleito de forma indireta por um colégio
eleitoral cujos eleitores eram escolhidos
em 24 distritos plurinominais, sob as
mesmas regras vigentes para a Câmara dos
Deputados (Jones, 1997). No que se refere
ao poder Legislativo, o Chile se destaca
por possuir uma Câmara Alta dotada de
baixa legitimidade democrática: são 9
senadores escolhidos de forma indireta
para um mandato de 8 anos, além dos
ex-presidentes que tenham exercido o
cargo por seis anos ininterruptos, estes,
em caráter vitalício. Também quanto a
este aspecto, a Argentina mudou após
a reforma constitucional de 1994. Até
então os senadores eram eleitos de forma
indireta, pelas assembléias provinciais,
para um mandato de nove anos.
Brasil e Argentina têm os seus
executivos estaduais e municipais eleitos
diretamente. Entre os portenhos, merece
destaque a instituição de eleições diretas
para a prefeitura de Buenos Aires, a
partir de 1994. No Uruguai, os governos
departamentais (correspondentes aos
estados brasileiros) são diretamente eleitos
e possuem autoridade sobre os executivos
municipais5. No Chile, a constituição
determina que os governadores são de
exclusiva confiança do Presidente da
República. A não realização de eleições
diretas para governadores e prefeitos, além
de restringir os espaços de disputa política,
concentra poderes nas mãos do Presidente
da República, negando-os aos cidadãos.
As próximas tabelas irão permitir que
iniciemos a análise dos procedimentos
60
que informam a constituição dos poderes
Executivo e Legislativo no plano nacional.
Na Tabela 2 encontram-se organizados
os dados sobre o processo de escolha
do Presidente da República. O primeiro
ponto refere-se à adoção das primárias.
Eleições internas, fechadas ou abertas, para
a escolha de candidatos a presidente, além
de diminuir a concentração de poderes
das mãos das lideranças partidárias – em
especial em países que utilizam a lista
fechada e bloqueada – atuam no sentido
de adensar a representação. A medida
torna mais inclusivo o regime democrático
ao aumentar o número de pessoas com
algum poder na definição das alternativas
colocadas à votação. O caso mais notável
é o do Uruguai onde, desde 1996, a lei
determina que todos os partidos realizem
eleições internas no último domingo do
mês de abril anterior às eleições gerais
(Freidenberg e López, 2002). Na Argentina
o mecanismo chegou a ser aprovado no
Senado, mas teve a efetivação suspensa
no contexto da crise que se seguiu ao fim
do governo De La Rua. No Chile e no
Brasil, a questão não é regulamentada,
mas a Concertacion por la Democracia
tem realizado primárias abertas desde 93,
enquanto no Brasil, o PT costuma utilizar
o mecanismo para definir candidatos
a governador e/ou prefeito. Em 2002 o
partido realizou prévias para definir o
candidato presidencial.
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
Tabela 2
Mecanismo de constituição da Presidência da República
País
Argentina
Mecanismo
de escolha do Mandato
candidato
Internas
abertas
normatizadas
por lei
4 anos
Coincidência Coincidência
com eleições com eleições Reeleição
legislativas subnacionais
Fórmula
2º turno, se
ninguém
alcança
45% dos
válidos
Maioria
absoluta
Não
Não
Sim
Sim
Apenas para
governador
Sim
Brasil
Não há
4 anos
definição legal
Chile
Não há
definição legal
6 anos
Maioria
absoluta
Não
Não
Não
5 anos
Maioria
absoluta
Sim
Não
Não
Uruguai
Internas
abertas
normatizadas
por lei
Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul
Naquela que foi a única modificação
destinada a reduzir a concentração dos
poderes nas mãos do Executivo chileno, a
duração do mandato presidencial diminuiu
de oito para seis anos, após o fim da
ditadura pinochetista. Na Argentina, como
resultado do “Pacto de Olivos”, firmado
entre Raul Alfonsin e Carlos Menem, o
mandato presidencial passou de seis para
quatro após 1994, ao mesmo tempo em
que foi admitida a reeleição do presidente.
No Brasil, as duas medidas não foram
articuladas. O mandato de quatro anos
foi definido por Emenda Constitucional de
Revisão, em 1994, e a reeleição, para todos
os cargos executivos, em 1996, durante o
primeiro mandato de Fernando Henrique
Cardoso. Não obstante a reeleição haver
sido, nos dois países, introduzida de modo
a beneficiar governos em curso, a medida
pode se mostrar benéfica ao sistema
político, uma vez que estimula a operação
de mecanismos de accountability.
Os quatro países utilizam o segundo
turno nas eleições presidenciais. De acordo
com a literatura (Carey e Shugart, 1992;
Mainwaring e Shugart, 1997), eleições em
dois turnos podem diminuir o efeito redutor
da eleição majoritária sobre o número
efetivo de partidos no Congresso. Mas,
por outro lado, a medida contribui para
a representatividade do sistema e confere
maior legitimidade aos eleitos. Chile e
Brasil adotavam a eleição por pluralidade,
no período democrático anterior a
seus respectivos regimes militares. Na
Argentina, o segundo turno foi introduzido
em 1994. No Uruguai, a novidade data de
1996, quando o país alterou o seu sistema
eleitoral, abandonando o chamado “duplo
voto simultâneo”. Até então, o eleitor
escolhia um partido e, no interior deste,
61
ENSAIO
uma das listas apresentadas. As listas
competiam entre si e eram capitaneadas
pelo seu candidato à Presidência da
República, secundado pelos postulantes
ao Senado e à Câmara dos Deputados.
Os votos das diversas listas eram então
somados e computados a seus partidos, de
acordo com a “ley de las lemas”. A disputa
presidencial era vencida pelo partido que
conquistasse a maioria simples dos votos,
depois de feito o somatório das listas
(Nohlen, 1993). O procedimento gerava
distorções acentuadas. Em 1994, a soma
dos votos dados aos candidatos do Partido
Colorado permitiu que Julio Sanguinetti
fosse eleito com 24,7% dos votos, contra
30,6% de Tabaré Váquez, da Frente Ampla.
Após a reforma eleitoral, cada partido
passou a lançar um candidato, escolhido
em eleições internas abertas.
Um último traço institucional que
merece atenção no âmbito das eleições
presidenciais é o calendário eleitoral, que
pode ser organizado de forma a propiciar
a realização de eleições concomitantes
ou não, para diferentes cargos executivos
e/ou legislativos. No Brasil e no Uruguai,
as eleições para Presidente e Congresso
são realizadas no mesmo dia. No primeiro
caso, a coincidência estende-se ainda
às eleições para governadores, de forma
que apenas os pleitos municipais são
realizados em data distinta. No Uruguai,
eleições nacionais e departamentais
foram separadas após 1996. No Chile,
as eleições para os poderes Executivo
e Legislativo coincidem apenas a cada
doze anos, uma vez que a duração dos
mandatos é diferenciada. Na Argentina,
como a renovação do Congresso se realiza
em duas etapas, existe uma coincidência
parcial.
Assim como na questão do segundo
turno, e de acordo com os mesmos autores,
eleições não coincidentes entre os poderes
Executivo e Legislativo nacionais fazem
62
com que a disputa majoritária não tenha
qualquer influência na conformação do
número efetivo de partidos no Congresso.
Por outro lado, um calendário eleitoral
assim organizado permite que os eleitores
maximizem diferentes clivagens e/ou
diferentes identidades em diferentes
pleitos, com impacto positivo sobre a
representatividade.
A não coincidência das eleições
pode ter impacto ainda sobre a formação
e manutenção das coalizões governativas.
Dependendo do desempenho do(s)
partido(s) no governo, eleições solteiras
para o legislativo podem acarretar a perda
da maioria numérica necessária para a
aprovação de sua agenda. Obviamente,
o inverso é também verdadeiro: um
presidente minoritário pode ter sua base
legislativa ampliada via eleições, como
conseqüência do reconhecimento de um
bom governo por parte dos cidadãos.
Novamente, o ponto pode ser lido sob outro
ângulo, que não apenas o da estabilidade.
Como afirmam Santos, Anastasia e Melo
(2004), “eleições intercaladas facultam aos
cidadãos maiores chances de utilizarem as
urnas como mecanismos de accountability
vertical, já que lhes permitem sinalizar
suas avaliações para os representantes no
momento em que alguns mandatos ainda
estão curso, e não apenas quando todos os
cargos estão em disputa. Os governantes
poderão ‘ouvir as urnas’ e, se possível,
fazer as correções de rumos que estão
sendo “demandadas pelos eleitores”.
As Tabelas 3 e 4, a seguir, permitem
introduzir a discussão sobre o método de
constituição das duas casas legislativas.
Tradicionalmente, os quatro países aqui
analisados sempre utilizaram a representação proporcional na sua Câmara baixa,
ficando a diferença para a composição
do Senado. Sob a ditadura militar, o Chile
mudou o sistema eleitoral utilizado para a
Câmara dos Deputados.
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
Tabela 3
Eleições para a Câmara dos Deputados
País
Sistema
eleitoral
Representação
proporcional.
Argentina
Brasil
Chile
Representação
proporcional.
Majoritário
com
mecanismo
de correção
proporcional.
Representação
proporcional.
Uruguai
Tipo de
Estrutura do voto e
circunscrição e
fórmula
magnitude
24 distritos
Lista fechada e
correspondendo
bloqueada (definida
às províncias.
nas províncias).
Magnitude entre 2
D´Hondt.
e 35.
27 distritos
Lista aberta. D’Hondt.
correspondendo aos
estados. Magnitude
entre 8 e 70.
60 distritos
Lista aberta.Lista
binominais.
majoritária obtém 2
cadeiras se conseguir
mais que o dobro de
votos da segunda lista.
19 distritos
Lista fechada e
correspondendo
bloqueada. D’Hondt
aos departamentos.
modificada.
Magnitude entre
2 e 47.
Cláusula de
barreira
3% do
eleitorado na
província.
Quociente
eleitoral
estadual.
Inexistente
Inexistente.
Fonte: Banco de dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul.
Tabela 4
Eleições para o Senado
País
Argentina
Sistema Eleitoral
Majoritário, com
correção proporcional.
Majoritário.
Brasil
Chile
Majoritário com
correção proporcional.
Tipo de circunscrição e
magnitude
Estrutura do voto e
fórmula
3 senadores por
província e 3 por
Buenos Aires.
3 senadores por estado,
com renovação parcial
(dois e um).
Segunda lista recebe a
terceira cadeira.
2 por região + 9
membros nomeados.
Lista majoritária obtém
2 cadeiras se conseguir
mais que o dobro de
votos da segunda lista.
Votação preferencial.
Sem mecanismo de
transferência.
63
ENSAIO
Representação
proporcional.
30 cadeiras em um
distrito nacional.
Uruguai
Lista fechada e
bloqueada por facção
endossada pelos líderes.
Transferência de voto
no âmbito do partido.
D’Hondt modificada.
Fonte: Banco de dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul.
Uruguai e Chile são casos de bicameralismo congruente, ou seja, utilizam
o mesmo método eleitoral para a constituição das duas casas legislativas, representação proporcional no primeiro caso e
majoritário com correção proporcional no
segundo. Em ambos os casos, as circunscrições eleitorais são diferentes para cada
câmara. No caso do Uruguai, os senadores
são eleitos em uma única circunscrição
nacional, enquanto a Câmara Baixa é
constituída a partir de circunscrições territoriais correspondentes aos departamentos. Na constituição do Congresso chileno,
são delimitadas circunscrições – 19 para
o Senado e 60 para a Câmara – que não
correspondem a divisões territoriais.
Os dois países destoam flagrantemente no que diz respeito ao sistema
eleitoral adotado para as duas casas. No
Uruguai temos uma representação quase
perfeitamente proporcional, uma vez que
no complexo processo de distribuição de
cadeiras (Nohlen, 1993) os votos dados aos
partidos são computados nacionalmente
e não existem cláusulas de barreira – o
valor médio do índice de desproporcionalidade (D) para as eleições da Câmara dos
Deputados após a redemocratização é de
apenas 0,766.
O Chile utiliza distritos binominais
com a peculiaridade de que a segunda
cadeira pertence ao segundo partido mais
votado, sempre que este obtiver mais de
64
um terço dos votos. A classificação do
sistema eleitoral chileno é controversa.
Nicolau (1996) prefere tratá-lo como proporcional, apesar de reconhecer o seu viés
majoritário. Autores como Nohlen (1993),
Tavares (1994) e Blais e Massicote (1996)
classificam-no como uma variante dos
sistemas majoritários devido aos distritos
de baixa magnitude, os quais, como se
sabe (Shugart e Taagepera, 1989), tendem a gerar resultados menos proporcionais. De fato, o valor de D nas eleições
para a Câmara dos Deputados chilena,
desde 1989, atinge uma média de 14,2,
valor muito elevado se comparado ao do
Uruguai e superior àqueles encontrados
para o Brasil e a Argentina, no mesmo período – 8,4 e 13,5, respectivamente (Santos,
Anastasia e Melo, 2004).
Optamos por classificar o sistema
eleitoral chileno como majoritário, ainda
que reconhecendo a existência de um
mecanismo de correção proporcional. A
razão para tanto, ademais da pequena
magnitude do distrito, está nos resultados
gerados pelo sistema. Tal como nos regimes distritais puros, onde a magnitude é
igual a 1, o sistema eleitoral chileno induz
a uma estrutura de competição bipolar e à
conformação de uma maioria e uma minoria. A diferença é que, nos primeiros, a conformação dos dois grandes blocos deve-se
à distribuição do eleitorado, enquanto no
caso chileno, graças à existência de duas
cadeiras e ao método de distribuição ado-
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
tado, o espaço para a minoria encontra-se
preservado desde o distrito7.
Brasil e Argentina possuem um
bicameralismo incongruente, sendo o
Senado composto por meio de diferentes
modalidades de majoritarismo. Nos dois
casos, as circunscrições para ambas as
casas são coincidentes e correspondem
aos estados. Os dois países elegem três
senadores por estado e pela capital, mas
os mecanismos são distintos. No Brasil
a renovação do Senado se realiza em
duas etapas, de forma que ora é eleito
um representante por estado, ora são
escolhidos dois. Neste último caso, o
majoritarismo é atenuado, uma vez que a
eleição não se realiza em bloco: embora
cada partido lance dois candidatos, não
há transferência de voto no interior da
legenda, sendo considerados eleitos os
candidatos que individualmente obtiverem
mais votos, independentemente da sigla
partidária. Na Argentina, o sistema admite
um mecanismo de correção proporcional:
das três cadeiras em disputa, duas são
reservadas ao partido que obtenha o maior
número de votos e a terceira cadeira, ao
segundo colocado.
Nos dois países, a proporcionalidade
para a Câmara dos Deputados é restringida
pelo fato de que os cálculos para a
distribuição das cadeiras são realizados
com base nos votos obtidos nos estados,
não sendo prevista uma cota extra que, a
partir da votação nacional dos partidos,
possa compensar as distorções. A Argentina
adota ainda uma cláusula de barreira de
3% no nível das províncias. No Brasil, o
quociente eleitoral estadual – que varia
de 1,4% em São Paulo até 12,5% nos 11
estados de menor magnitude – funciona
como uma cláusula, uma vez que os
partidos que não o tenham alcançado
são excluídos da disputa pelas sobras.
A legislação brasileira permite ainda a
realização de coligações para as eleições
proporcionais, com a peculiaridade de
que as cadeiras conquistadas não são
distribuídas proporcionalmente à votação
de cada membro da coligação – os partidos
coligados contam como uma só legenda e
a transferência de voto é realizada em seu
interior indistintamente, o que permite que
a manifestação do eleitor por um partido
seja computada em benefício de outro8.
Finalmente, cabe mencionar as
diversas modalidades de voto adotadas. O
Uruguai adota a lista fechada e bloqueada,
composta de forma distinta, caso se trate
do Senado ou da Câmara dos Deputados.
Para o primeiro, ainda prevalece a “ley de
las lemas”: os partidos podem apresentar
mais de uma lista, cabendo ao eleitor escolher uma delas. O mecanismo das sublistas foi abolido para a Câmara Baixa9. Na
Argentina, para a Câmara dos Deputados,
a lista é ordenada nas províncias e não
nacionalmente. Utilizando os critérios de
Carey e Shugart (1995), a estrutura do voto
nestes países seria a que menos incentivos forneceria a que os congressistas se
preocupassem com a reputação pessoal
vis a vis a reputação partidária. Os líderes
– nacionais, no caso uruguaio, e regionais,
no caso argentino – possuem completo
controle sobre a lista: ao eleitor é permitido apenas um voto no partido de sua
escolha, e a transferência dos votos é realizada no âmbito do partido, favorecendo
os primeiros colocados na lista.
Chile e Brasil adotam a lista aberta.
Os líderes partidários possuem controle
sobre sua elaboração, mas não a ordenam.
No caso chileno, tanto para o Senado
65
ENSAIO
como para a Câmara, trata-se de uma lista
composta por dois candidatos, cabendo ao
eleitor escolher um dos nomes. A votação
de cada candidato é computada para o
partido e os que conseguirem mais votos
em cada lista serão eleitos – feita a ressalva
de que o nome mais votado da segunda
lista ganha a segunda cadeira, se esta
obtiver mais de um terço dos votos. No
Brasil, as listas são formuladas nos estados
e podem conter tantos nomes quantas
forem as cadeiras em disputa, mais 50%.
O eleitor pode votar no candidato de sua
preferência ou marcar a legenda partidária.
De toda forma, o voto é computado para o
partido para efeito da definição do número
de cadeiras, sendo eleitos os mais votados
em cada lista estadual 10. Dado o grande
número de competidores nas listas – nos
menores estados cada partido pode lançar
até 12 candidatos e em São Paulo, mais de
cem – o sistema brasileiro fornece muito
mais incentivos que o chileno para que o
deputado procure cultivar sua reputação
individual junto aos eleitores.
Relação entre as Câmaras,
comissões e organização interna
do poder legislativo
Como se pode perceber na seção
anterior, os quatro países aqui analisados
revelam diferentes combinações entre
o tipo de divisão política – unitarismo
ou federalismo – e o bicameralismo.
Trata-se, agora, de buscar avaliar quais
são os padrões existentes de interação
entre as duas câmaras e como são
distribuídos atribuições e recursos
entre os parlamentares, explorando-se
tais relações do ponto de vista de seus
possíveis efeitos sobre a distribuição dos
poderes de agenda e de veto entre os atores.
66
Para tanto, serão mobilizados os seguintes
indicadores: a) grau de simetria entre as
duas câmaras; b) caráter congruente ou
incongruente do bicameralismo quanto ao
método de constituição das Casas Legislativas;
c) composição e tamanho dos mandatos das
duas câmaras; d) organização dos sistemas
de comissões.
De acordo com Lijphart (1984,
2002), o bicameralismo pode ser simétrico
ou assimétrico. A condição de simetria
ocorre quando prevalece uma distribuição
equilibrada de poderes e de atribuições
entre as duas casas. Tal equilíbrio, por sua
vez, não pressupõe que sejam conferidas as
mesmas atribuições a ambas as câmaras.
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
Tabela 5
Indicadores de Simetria/Assimetria entre as duas Câmaras
Atribuição
Argentina
Brasil
Chile
Uruguai
Iniciativa Legal
Simétricas
Simétricas
Simétricas
Simétricas
Convocação
de Plebiscito,
Referendo
e Consulta
Popular.
Privativo da
Câmara dos
Deputados.
Prerrogativa das
duas Câmaras
em sessão
conjunta.
A convocação
de plebiscito
é atribuição
exclusiva do
presidente da
República.
Privativo do
Congresso
Nacional.
Autorização para
o presidente
declarar Estado
de Sítio,
Emergência ou
Calamidade
Pública.
Privativo do
Senado.
Prerrogativa das Prerrogativa das
duas Câmaras
duas Câmaras
em sessão
reunidas em
conjunta.
sessão conjunta.
Nomeação e
Destituição de
Autoridades
Públicas.
Compete ao
Senado aprovar
a escolha de
autoridades
públicas.
Compete ao
Senado aprovar
a escolha de
autoridades
públicas.
Autorização para
instauração de
processo contra
Autoridades
Públicas.
Privativo da
Câmara dos
Deputados.
Privativo da
Câmara dos
Deputados.
Privativo da
Câmara dos
Deputados.
Privativo da
Câmara dos
Deputados.
Processo e
julgamento de
Autoridades
Públicas.
Atribuições de
Revisão de
Matérias.
Privativo do
Senado.
Privativo do
Senado.
Privativo do
Senado.
Privativo do
Senado.
Simétricas.
Simétricas.
Comissão Mista
e desequilíbrio a
favor da Senado.
Ambas as
Câmaras, em
Assembléia.
Exame e
Derrubada
do Veto
Presidencial.
Simétricas.
Prerrogativa das
duas Câmaras
reunidas em
sessão conjunta.
Simétricas.
Prerrogativa das
duas Câmaras
reunidas em
assembléia geral*.
Sem informação.
Sem informação. Ambas as Câmaras
em Assembléia.
Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul
* O Art. 38 da Constituição uruguaia diz que “ Cuando um proyeto de ley fuese devuelto por el Poder Ejecutivo[...] se convocará a la
Asamblea General y se estará a lo que decidan los tres quintos de los miembros presentes de cada uma de las Cámaras, quienes podrán
ajustarse a las observaciones o rechazarlas, mantendo el proyeto sancionado”.
67
ENSAIO
Como se pode perceber através da
leitura da Tabela 5, não há variações
quanto ao grau de simetria entre os países
em tela no que se refere ao quesito da iniciativa legal: esta se encontra distribuída
de forma simétrica entre as duas câmaras,
nos quatro países, ainda que em todos os
casos sejam designadas atribuições exclusivas a uma das câmaras, como ocorre,
por exemplo, com a apresentação de leis
tributárias e sobre recrutamento de tropas,
cuja iniciativa é prerrogativa exclusiva da
Câmara dos Deputados, na Argentina e no
Chile, e com as leis sobre anistia e sobre
indultos gerais, que, no Chile, só podem
ter origem no Senado.
do julgamento de autoridades: em todos
os países a autorização para instauração
de processo é competência exclusiva da
Câmara dos Deputados, ao passo que o
processo e o julgamento, propriamente
ditos, são atribuições do Senado.
No que se refere à convocação de
plebiscito, referendo ou consulta popular,
observam-se variações dignas de menção:
na Argentina esta é uma atribuição privativa da Câmara dos Deputados, enquanto
no Brasil e no Uruguai ela envolve necessariamente ambas as câmaras – reunidas
em sessão conjunta, no primeiro caso,
e em Congresso Nacional, no segundo.
O Chile apresenta, neste quesito, uma
peculiaridade que afeta negativamente
o atributo da densidade democrática da
representação, uma vez que apenas o presidente da República detém a prerrogativa
de convocar estes mecanismos de participação direta dos cidadãos, nos interstícios
eleitorais, o que desequilibra sensivelmente a distribuição dos poderes de agenda a
favor do Poder Executivo.
As atribuições de revisão das matérias iniciadas na outra câmara talvez sejam
os mais relevantes indicadores dos graus
de simetria entre as duas casas legislativas.
Na Argentina e no Brasil essas atribuições
são distribuídas de forma equilibrada entre
as duas Câmaras, como se pode constatar
pela leitura do Artigo 78 da Constituição
da Argentina, e dos Artigos 65 e 66 da
Constituição brasileira11. No Uruguai, o
processo é conduzido pelas duas casas,
em Assembléia. Já no Chile verifica-se a
instituição de uma comissão mista, composta de igual número de senadores e de
deputados, que tem a atribuição de propor
soluções para os impasses que possam surgir na tramitação das matérias (conforme
Artigos 67 e 68 da Constituição chilena).
“O Chile, novamente, merece destaque:
lá, a matéria de autoria do presidente que
tiver sido rejeitada pela Câmara de origem
poderá ser enviada à outra Câmara, por
solicitação do presidente, diferentemente
dos demais projetos que, uma vez rejeitados, não poderão ser reapresentados senão
após um ano. Se a Segunda Câmara aprovar o projeto por dois terços de seus mem-
Já o exame dos quesitos relacionados
à nomeação, à instauração de processo, ao
julgamento e à destituição de autoridades
públicas permite constatar graus bastante expressivos de simetria entre as duas
câmaras, nos quatro países, ademais de
padrões similares e/ou idênticos de procedimentos, especialmente quando se trata
68
A Argentina se distingue do Brasil e do
Chile na questão relacionada à autorização
para que o presidente mobilize os poderes
emergenciais previstos nas Constituições
desses países – estado de sítio, emergência
ou calamidade pública. Enquanto na
Argentina tal recurso é privativo do Senado
Federal, no Brasil e no Chile ele pressupõe
a deliberação em reunião conjunta das
duas câmaras.
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
bros presentes, ele voltará à Câmara de origem e este somente será considerado rejeitado se
esta Câmara o reprovar com dois terços dos membros presentes (Artigo 65). Considerando
a peculiar composição do Senado, que conta com nove membros indicados, parece correto
afirmar que tal dispositivo desequilibra os poderes revisionais a favor do Senado sempre que
este constituir a Câmara revisora” (Santos, Anastasia e Melo, 2004).
A Tabela 6 ajuda a caracterizar melhor o bicameralismo em cada um dos países. Nela,
são agregados os dados sobre a composição numérica, os mandatos, o grau de simetria na
distribuição de poderes e congruência ou não dos procedimentos que presidem a constituição
das duas casas.
Tabela 6
Nº de membros, mandato, grau de simetria e congruência entre as casas legislativas
Argentina
257
4 anos
63
6 anos
Distribuição
de poderes
e atribuições
entre as
Câmaras
Simétrica
Brasil
513
4 anos
81
8 anos
Simétrica
Incongruente
Chile
120
4 anos
47
8 anos
Assimétrica
Congruente
Uruguai
99
5 anos
31
5 anos
Simétrica
Congruente
Países
Câmara Baixa
Nº de
Mandato
membros
Câmara Alta
Nº de
Mandato
membros
Método de
constituição
das Câmaras
Incongruente
Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas da América do Sul (IUPERJ/UFMG).
O bicameralismo uruguaio combina
simetria e congruência. No Brasil e na
Argentina verifica-se a presença de um
bicameralismo simétrico e incongruente,
enquanto no Chile as duas câmaras são
congruentes quanto ao método de sua formação e assimétricas quanto à distribuição
de poderes, recursos e atribuições.
Algumas ponderações importantes
merecem ser desenvolvidas quanto às possíveis combinações entre graus de simetria
e a congruência ou incongruência do
método de constituição do órgão decisório. Por um lado, e seguindo os passos de
Lijphart (1984, 2002), parte-se do suposto
de que o bicameralismo simétrico é mais
compatível com arranjos consociativos e
com a distribuição equilibrada de poderes
entre as duas câmaras. Por outro lado, e
discordando de Lijphart (2002:239), considera-se que o arranjo mais conducente
ao incremento da densidade democrática
da representação é o bicameralismo congruente proporcional, por garantir mais e
melhor a expressão plural das preferências
que se organizam em torno de cada uma
das clivagens que se fazem representar em
cada câmara.
Argumenta-se, aqui, que a simetria
de atribuições entre câmaras que sejam
muito incongruentes quanto ao método
de sua formação, que apresentem grandes
discrepâncias numéricas e diferentes circunscrições eleitorais pode, na verdade,
69
ENSAIO
ser indicativa de algum tipo de distorção
que favoreça a expressão de clivagens
e/ou identidades representadas em uma
das câmaras, em detrimento daquelas cuja
expressão institucional se dê através da
outra câmara.
Como afirmam Anastasia e Melo (2002:
26), ao analisar o caso brasileiro, “a Câmara
dos Deputados, considerados o número
de seus membros e sua heterogeneidade,
advinda da eleição via sistema de
representação proporcional, é muito mais
expressiva da diversidade e da complexidade
presentes na sociedade brasileira do que o
Senado Federal, constituído como fórum
de processamento das clivagens regionais.
Portanto, ao conceder ao Senado poderes
revisores equivalentes àqueles concedidos
à Câmara dos Deputados, a Constituição
brasileira permite ao primeiro o poder
de vetar decisões tomadas no âmbito da
segunda, imiscuindo-se desta forma, em
issues que não lhe são pertinentes. Desde
este ponto de vista, seria mais aconselhável
que houvesse uma delimitação mais estrita
das atribuições de revisão entre as duas
Câmaras, especificando-se os assuntos nos
quais seria prudente limitar estes poderes,
tomando-se por parâmetro as características
e as atribuições conferidas pelo texto
constitucional a cada uma delas.”
Enfatiza-se, ademais, que o tipo de
congruência que favorece a representatividade é aquele baseado no método proporcional, situando-se no extremo oposto
o bicameralismo congruente majoritário.
Portanto, pode-se sugerir uma tipologia que
busque classificar os efeitos combinados
do grau de simetria com a observância
ou não de congruência quanto ao método de formação das casas legislativas:
bicameralismo simétrico, congruente
70
proporcional; 2) bicameralismo simétrico,
incongruente; 3) bicameralismo assimétrico e incongruente; 4) bicameralismo assimétrico e congruente majoritário (Santos,
Anastasia e Melo, 2004).
Mais uma vez, o caso chileno revela
maior tendência à concentração de poderes.
À assimetria observada a favor do Senado
– casa que, como já foi dito, admite entre
seus membros um contingente expressivo
de membros não-eleitos – se soma a
operação do método de representação
majoritário com viés proporcional em
ambas as casas, configurando, portanto, o
único caso de bicameralismo assimétrico
e congruente majoritário, arranjo que
afeta negativamente o grau de densidade
democrática da representação. Por
contraste, o Uruguai é o exemplo mais bem
acabado de um bicameralismo conducente
ao incremento da representatividade: ao
mesmo tempo simétrico e congruente
proporcional.
Dando seqüência à análise das
características do bicameralismo em
presença nos quatro países, vale chamar
a atenção para a distribuição das cadeiras
legislativas entre as duas câmaras e para o
tamanho dos mandatos em ambas. Brasil
e Argentina são os países que apresentam
as maiores diferenças no que se refere
ao número de cadeiras existentes em
cada câmara: no primeiro, a Câmara dos
Deputados é seis vezes maior do que o
Senado Federal; no segundo, quatro vezes.
Isso significa, por um lado, que nestes
países, quando as casas deliberam em
sessão conjunta, o peso relativo da Câmara
Alta revela-se menor do que no Uruguai
e no Chile. Por outro lado, significa que
quando os poderes e atribuições são
distribuídos de forma eqüitativa entre as
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
duas câmaras, especialmente os poderes
revisionais, os membros da câmara menor,
em termos do número de cadeiras, acabam
tendo maior peso nas decisões legislativas
do que aqueles da câmara numericamente
maior, o que conduz à suposição da sobrerepresentação dos issues e das clivagens
presentes na primeira, em detrimento
daqueles que se fazem representar na
segunda.
No que se refere ao tamanho do
mandato, pode-se verificar que no Uruguai
há coincidência na duração dos mandatos
de deputados e senadores, mais um fator
a falar a favor da ampliação dos graus de
representatividade em presença. A idéia
aqui é a de que mandatos mais longos em
uma das Casas, e passíveis de renovação
indefinida, favorecem a hipótese da
ocorrência de graus maiores de assimetria
informacional entre senadores e deputados,
o que certamente produz impactos sobre
o comportamento e sobre os resultados
legislativos. Já mandatos coincidentes
entre os membros das duas casas lhes
oferecem chances similares de aquisição
de expertise. Nos outros três países, os
senadores têm mandatos mais estendidos:
no Brasil e no Chile, os mandatos na
Câmara Alta são o dobro daqueles nas
Câmaras Baixas, e na Argentina, uma vez
e meia.
da accountability e da representatividade
no interior do legislativo.
Um sistema de comissões pode estar
estruturado de forma a concentrar ou a
dispersar poderes de veto e de agenda entre
os parlamentares. O exame do método de
constituição das comissões permite verificar
se ele é mais conducente à formação de
comissões heterogêneas – e, portanto,
mais expressivas da pluralidade de
identidades e interesses presentes na Casa
e mais conducentes à influência política
das oposições – ou, alternativamente, mais
homogêneas e, portanto, mais passíveis
de controle pelas maiorias situacionistas.
A possibilidade de que partidos e/ou
coalizões oposicionistas tenham acesso a
recursos de poder no interior do parlamento
é, de acordo com Powell (2000), um
seguro indicador de quão densamente
representativos são os processos decisórios
nos regimes democráticos.
Na Tabela 7, a seguir, com vistas a
identificar as formas de organização do
sistema de comissões, serão examinados o
número e o perfil das comissões legislativas,
com especial atenção para o método
de sua constituição, no que se refere à
observância ou não de algum critério
de proporcionalidade da participação dos
partidos relativamente ao tamanho de sua
bancada na Casa13.
Um último aspecto a ser analisado
nesta seção refere-se ao papel das comissões
que, ao lado dos partidos, são as mais
importantes instâncias a serem consideradas
na análise dos trabalhos legislativos. Ainda
que diferentes modelos de organização
legislativa possam ser concebidos12, as
comissões, na medida em que facilitam – ou
dificultam – a vocalização das preferências
dos diversos atores, uns perante os outros,
contribuem para a afirmação dos atributos
71
ENSAIO
Tabela 7
Comissões Permanentes nas casas legislativas
Nº. de
Constituição*
Comissões
Nº. de
Membros nas
Comissões
Nº Mínimo
de Comissões
por Legislador
Câmara
Nº. de
Membros
Argentina
Alta
Baixa
63
257
47
45
IL
EP ou DP
07 a 21
15 a 45
5
2a3
Brasil
Alta
Baixa
81
513
08
19
IL e DP
IL e DP
17 a 29
25 a 57
1a2
1
Chile
Alta
Baixa
47
120
19
19
EP
EM e EP
05
13
2
2
Uruguai
Alta
Baixa
31
99
16
16
IL e DP
IL e DP
05 a 09
03 a 15
2a3
1
Fonte: Banco de Dados Projeto Instituições Comparadas na América do Sul (IUPERJ/UFMG).
* EP = Eleição pelo Plenário; DP = Designação pelo Presidente; IL = Indicação de Lideranças Partidárias; EM= Eleição pela Mesa.
O primeiro aspecto que merece menção, relativamente ao método de constituição das comissões legislativas, é a
prevalência do critério partidário: na maioria dos países estudados, os regimentos se
referem, de forma mais ou menos explícita, à
necessidade de observância, tanto quanto
possível, na composição das comissões, da
proporcionalidade existente na distribuição das cadeiras da Casa Legislativa entre
as diferentes agremiações partidárias. Tal
ocorre no Senado argentino, em ambas as
Casas, no Brasil e no Uruguai.
Este ponto é relevante porque contribui para conferir às comissões um caráter
mais heterogêneo, permitindo que as mesmas se aproximem mais de uma configuração assemelhada à de “microcosmo do
plenário” e, portanto, mais coerente com
o modelo informacional (Krebhiel, 1990)
e mais condizente à expressão política das
oposições.
Por contraste, ali onde a constituição
das comissões obedece prioritariamente
à influência das lideranças da Casa, via
72
designação pelo presidente ou eleição
pela Mesa, sua composição tenderá a ser
mais expressiva dos setores majoritários
da Casa, o mesmo ocorrendo quando as
comissões forem formadas a partir de eleição pelo plenário, através da mobilização
de regra de maioria relativa ou absoluta.
Nestes casos, conseqüentemente, diminuem as chances de influência das oposições na definição da agenda e no desenvolvimento dos trabalhos das comissões,
como ocorre na Câmara dos Deputados
da Argentina, e em ambas as Câmaras do
Chile.
Conclusão
Nas duas seções anteriores deste artigo, foi possível verificar a extensão com
que Argentina, Brasil, Chile e Uruguai
utilizam o mecanismo da eleição direta
para a escolha dos tomadores de decisão
nos diversos níveis de poder, que métodos utilizam para constituir os poderes
Executivo e Legislativo no plano nacional, como organizam as relações entre as
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
Câmaras Alta e Baixa e, finalmente, como
são compostas as comissões no interior do
Congresso.
A análise dos indicadores utilizados
deixa claro que, do ponto de vista que
aqui nos interessa, qual seja, o da densidade democrática da representação, Uruguai
e Chile podem ser apontados como casos
extremos, ao passo que Argentina e Brasil
situam-se em posição intermediária.
Exceção feita à indicação dos prefeitos, todos os aspectos do arranjo institucional uruguaio aqui analisados são mais
conducentes ao incremento da densidade
democrática da representação. Eleições
diretas são utilizadas para a escolha do
presidente, dos governadores e de todos
os membros do Congresso. Primárias abertas são obrigatórias para a definição dos
candidatos presidenciais. A representação proporcional com lista fechada é
adotada para as duas câmaras que, ademais, são simétricas no que se refere à
distribuição de poderes e atribuições. A
simetria, no caso uruguaio, estende-se até
mesmo ao mandato de seus congressistas
– cinco anos tanto para deputados como
para senadores. Finalmente, no interior do
poder legislativo, o critério para a composição das comissões é proporcional.
No Chile, governadores e parte do
Senado não são diretamente eleitos. As
duas câmaras são constituídas por método
majoritário e a distribuição de poderes
e atribuições é assimétrica, favorecendo
o Senado – a menos representativa das
casas. No que se refere à composição das
comissões, trata-se do único país que em
nenhuma das casas adota o critério proporcional.
Os arranjos institucionais de
Argentina e Brasil geram resultados menos
representativos do que aqueles vigentes
no Uruguai. A razão está não apenas na
adoção de variantes do método majoritário
para o Senado, mas também na existência
de diversos mecanismos, analisados na primeira seção deste artigo, que fazem com
que os resultados obtidos para a Câmara dos
Deputados sejam consideravelmente menos
proporcionais do que no último país.
Finalmente, vale mencionar que, no
caso do Brasil, alguns aspectos do arranjo
institucional encontram-se em discussão
a partir de Projeto de Lei apresentado
ao Congresso pela Comissão Especial de
Reforma Política, em dezembro de 2003.
Dentre as diversas modificações propostas
pelo Projeto, cabe comentar, ainda que
brevemente, aquelas que afetam dispositivos aqui analisados, quais sejam: a) o fim
das coligações nas eleições proporcionais;
b) a revogação do dispositivo que determina que apenas os partidos que atingem o
quociente eleitoral podem concorrer à distribuição das cadeiras; c) a instituição de
uma cláusula nacional de barreira de 2%;
d) a adoção do sistema de lista fechada e
pré-ordenada nos pleitos proporcionais .
Conforme analisado na primeira
seção, as coligações nas eleições proporcionais e a utilização do quociente eleitoral como cláusula de barreira afetam de
forma negativa a representatividade das
eleições para a Câmara dos Deputados.
Mas, caso sejam aprovadas as propostas
referentes aos dois itens acima, o ganho
obtido tende a ser contrabalançado pela
introdução da cláusula de 2%. Vale ressaltar, no entanto, que o “prejuízo” poderia
ser maior: a cláusula agora proposta vem
substituir aquela definida pela Lei. 9.096,
com vigor previsto para 2006, e que definia como requisito para o funcionamento
parlamentar a obtenção de no mínimo 5%
dos votos nacionais.
73
ENSAIO
Finalmente, uma eventual adoção do
voto em lista provocará uma significativa
modificação no sistema político brasileiro.
A medida tende a reforçar os partidos
em um país onde estes são sabidamente
frágeis, e a fornecer poderoso instrumento
disciplinar para as lideranças partidárias
no Congresso. Mas o aspecto que aqui
importa remete à relação entre eleitor e
representante e à possibilidade de que o
primeiro controle o segundo.
Sabe-se que a votação em lista
aberta, como adotada no Brasil, incentiva
a definição do voto com base nas
características do candidato e não do
partido. A partir daí, pode-se supor que
o posterior acompanhamento do trabalho
parlamentar será realizado, quando o for,
de forma personalizada, mais do que em
termos partidários. Dito de outro modo,
a maioria do eleitorado brasileiro faz do
deputado, e não do partido, o seu agente,
supondo que este seja capaz, a partir de seu
desempenho individual, de levar à frente
suas propostas. Mas o eleito, ao chegar à
Câmara depara-se com um cenário no qual
os poderes legislativos estão concentrados
nas mãos do Executivo e dos líderes
partidários (Limongi e Figueiredo, 1999).
Dito de outra forma, o representante eleito
com base em uma relação na qual os
compromissos assumidos com os eleitores
são de ordem pessoal encontrará no
legislativo um contexto institucional que
inibe a perseguição de tais compromissos
ou que, pelo menos, faz com que estes só
possam ser atingidos se compatíveis com as
preferências dos líderes partidários. Podese dizer que, de certa forma, o cenário
parlamentar “corrige” um problema do
cenário eleitoral, ao introduzir com mais
clareza os partidos. Mas a comparação
entre os dois cenários permite chegar à
74
conclusão de que o eleitor acaba sendo
levado a designar o agente errado (Anastasia
e Melo, 2002). Dada a maneira como se
estruturam os órgãos decisórios no Brasil, o
eleitor teria mais facilidade de acompanhar
o processo legislativo se designasse o
partido, e não o candidato individualmente,
como o seu agente. Esta é a principal razão
pela qual a introdução da lista fechada
contribuirá para tornar mais representativa
a democracia no Brasil.
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA
NOTAS
* Professores e pesquisadores do Departamento de Ciência Política da UFMG.
Os dados utilizados neste texto foram extraídos do banco de dados do Projeto Instituições Políticas Comparadas na América
do Sul. Ademais, no presente artigo são reproduzidas alguns trechos do livro (no prelo) que resultou dessa pesquisa. O projeto
foi resultado de convênio firmado entre a Fundação Konrad-Adenauer, o IUPERJ e o DCP-UFMG. A pesquisa foi coordenada
pelos professores Fabiano Santos (IUPERJ), Fátima Anastasia e Carlos Ranulfo (DCP/UFMG). Integraram o grupo de pesquisa os
estudantes Magna Inácio, Cristiane Batista, Éder Assis, Paulo Magalhães Araújo, Luciana Santana, Allan Nuno, Daniela Nunes e
Ricardo Alexandre F. de Lima.
1
Argumenta-se, ademais, que arranjos de tipo majoritário, por apontarem de forma mais clara de quem é a responsabilidade
governativa, tornariam mais fácil ao eleitorado controlar governos eleitos (Powell, 2000).Tampouco há consenso quanto a este
ponto, ou seja, quanto a que a concentração de poderes conduza a ganhos em termos de controle sobre governos eleitos. Sistemas
políticos baseados em mecanismos de checks and balances tendem a potencializar os mecanismos de accountability horizontal.
Como mostra Strom (2000), os mecanismos de controle institucional são muito mais evidentes no presidencialismo do que no
parlamentarismo. Da mesma maneira, em arranjos institucionais nos quais prevalece um maior grau de dispersão de poder, é mais
provável que a oposição atue como um agente da sociedade, criando melhores condições para o exercício da accountability no
plano vertical.
2
Para uma análise da evolução recente dos sistemas partidários na América do Sul, ver Santos, Anastasia, e Melo (2004). A
introdução de eleições subnacionais ocorreu tanto em repúblicas federais, como a Venezuela, como em países unitários, como
Colômbia e Bolívia. Cabe mencionar, no entanto, que iniciativas em sentido contrário também ocorreram, como a supressão do
Senado e a diminuição do número de membros do Congresso, no Peru e Venezuela, ou a introdução de deputados eleitos em
distritos uninominais, neste último país e na Bolívia.
3
De acordo com Mainwaring (1993) tal combinação institucional é conducente à instabilidade. Para uma discussão deste ponto,
à luz da recente evolução dos países sul-americanos, ver o volume organizado por Jorge Lanzaro (2001).
4
Os governos locais no Uruguai são exercidos pelas Juntas Locais. A Constituição uruguaia determina que é função do Intendente
Municipal “Designar los miembros de la Juntas Locales, con anuencia de la Junta Departamental”. Contudo, quando o Governo
Departamental assim decidir, a junta local poderá ser eleita diretamente. Veja-se o art. 288 da Constituição “La ley determinará
las condiciones para la creación de las Juntas Locales y sus atribuciones, pudiendo, por mayoría absoluta de votos del total de
componentes de cada Cámara y por iniciativa del respectivo Gobierno Departamental, ampliar las facultades de gestión de
aquéllas, en las poblaciones que, sin ser capital de departamento, cuenten con más de diez mil habitantes u ofrezcan interés
nacional para el desarrollo del turismo. Podrá también, llenando los mismos requisitos, declarar electivas por el Cuerpo Electoral
respectivo las Juntas Locales Autónomas”.
5
Desproporcionalidade calculada de acordo com o índice proposto por Loosemore e Hanby (1971).
6
Incapazes de alterar o altamente restritivo sistema binominal arquitetado no período ditatorial, os partidos chilenos passaram a
operar como em um sistema bipartidário, articulando-se em torno das duas grandes coalizões que, desde 1989, têm disputado os
rumos do país. Aqueles, como os comunistas, que não quiseram ou não puderam proceder desta maneira, viram-se rapidamente
privados de representação no Congresso Nacional (Santos, Anastasia e Melo, 2004).
7
Um quarto fator compromete a proporcionalidade dos resultados eleitorais no Brasil. Trata-se da migração partidária no interior
do poder legislativo, fenômeno que faz com que a distância entre o que dizem os votos depositados nas urnas e a distribuição das
cadeiras entre os partidos na Câmara dos Deputados continue a aumentar depois de iniciada cada legislatura, com o agravante
de que deixa de existir qualquer interferência do eleitor no processo. Simulações feitas por Melo (2004), para a eleição de 1998,
revelam que as mudanças de partido são o fator que isoladamente mais afetam a proporcionalidade no sistema representativo
brasileiro.
8
O artigo 88 da Constituição uruguaia diz que “la Cámara de Representantes se compondrá de noventa y nueve miembros
elegidos directamente por el pueblo, con arreglo a un sistema de representación proporcional en el que se tomen en cuenta los
votos emitidos a favor de cada lema en todo el país. No podrá efectuarse acumulación por sublemas, ni por identidad de listas de
candidatos”. Já os artigos 95 e 96 determinam que “los Senadores serán elegidos por el sistema de representación proporcional
integral” e que “la distribución de los cargos de Senadores obtenidos por diferentes sublemas dentro del mismo lema partidario,
se hará también proporcionalmente al número de votos emitidos a favor de las respectivas listas”.
9
Carey e Shugart (1995) afirmam que os líderes partidários no Brasil não possuem controle sobre os membros da lista. Mas a
legislação foi alterada em 1998, com o fim do chamado “candidato nato”. Até então, de fato, todo deputado tinha presença
garantida na lista independentemente da vontade de seu partido.
10
“Artigo 65. - O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado
à sanção ou promulgação se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. Parágrafo Único - Sendo o projeto emendado,
voltará à Casa iniciadora. Artigo 66. - A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da
República, que, aquiescendo, o sancionará”.
11
Como se sabe, segundo o modelo distributivista, as comissões devem estar estruturadas de forma a facilitar a obtenção de
“ganhos de troca”, enquanto o modelo informacional enfatiza a possibilidade de consecução de “ganhos de informação”.
12
13
Os parágrafos que se seguem, até a conclusão desta seção, foram reproduzidos de Santos, Anastasia e Melo (2004).
75
ENSAIO
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77
ENSAIO
* SUSANE GRATIUS / ** DELFET NOLTE
Parlamento Transnacional
e Integração: A experiência
do Parlamento Europeu e as
ligações que a América Latina
tem para o Mercosul
“Quando os estados (democráticos)
se empenham em compartilhar e delegar
soberania a instituições supranacionais,
os problemas de representação e responsabilização democrática tendem a adquirir importância. Assim, podemos esperar,
por exemplo, que o tipo e a força das
assembléias parlamentares na ordenação
política internacional se correlacionem
com o grau em que os estados compartilham e delegam soberania. Neste sentido,
o Parlamento Europeu é um “elemento
externo”, porque a Comunidade é um elemento
externo.” (Rittberger 2003: 221).
“Sempre que a capacidade da União
Européia de usar o poder público se amplia
de algum modo, o Parlamento Europeu
é um meio necessário (embora não
necessariamente suficiente) para prevenir
o seu abuso.” (Coombes 1999: 52)
1. O Parlamento Europeu: um
caso único
A União Européia, que desde maio
de 2004 conta com 25 Estados membros, é
uma organização internacional sui generis.
O mesmo pode-se dizer do Parlamento
* ** Colaboradores científicos do Instituto de Hamburgo / Tradução: Sérgio Bath
78
Europeu, já que se trata de um Parlamento supranacional único no mundo no que se refere à
sua legitimidade democrática e ao seu poder de decisão. Dos seus 624 integrantes, eleitos por
voto direto antes mesmo da ampliação da União Européia, o número de deputados deverá
aumentar para 732, representando cerca de 450 milhões de habitantes. Com a inclusão da
Bulgária e da Romênia na União Européia, prevista para 2007, o Parlamento Europeu contará
com 786 parlamentares no fim da atual década.
Número de mandatos por país
(por ordem alfabética do nome de cada país, na respectiva língua oficial)
Bélgica
1999-2004
25
2004-2007
24
2007-2009
24
Bulgária
–
–
18
Chipre
–
6
6
República Checa
–
24
24
Dinamarca
16
14
14
Alemanha
99
99
99
Grécia
25
24
24
Espanha
64
54
54
Estônia
–
6
6
França
87
78
78
Hungria
–
24
24
Irlanda
15
13
13
Itália
87
78
78
Letônia
–
9
9
Lituânia
–
13
13
Luxemburgo
6
6
6
Malta
–
5
5
Países Baixos
31
27
27
Áustria
21
18
18
Polônia
–
54
54
Portugual
25
24
24
Romênia
–
–
36
Eslováquia
–
14
14
Eslovênia
–
7
7
Finlândia
16
14
14
Suécia
22
19
19
Reino Unido
87
78
78
(MAX) TOTAL
626
732
786
Fonte: http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/index_pt.htm.
79
ENSAIO
As características do Parlamento
Europeu tornam muito difícil chegar a conclusões ou extrair lições para instituições do
mesmo tipo (como por exemplo a Comissão
Parlamentar Conjunta do Mercosul) com
base no seu desenvolvimento histórico.
Além disso, as funções e o funcionamento
de um Parlamento dependem do conjunto das instituições de um regime político
nacional ou supranacional. Não existe
hoje no mundo nenhuma união de Estados
soberanos com estruturas supranacionais
tão elaboradas e poderosas como a União
Européia.
Quando comparamos o Parlamento
Europeu com as instituições parlamentares do Mercosul surge outro problema.
Se incluímos a assembléia parlamentar
da Comunidade Européia do Carvão e do
Aço, que se reuniu pela primeira vez em
1952, o Parlamento Europeu é uma instituição “adulta”, já que tem mais de cinqüenta anos1. Ora, a Comissão Parlamentar
Conjunta do MERCOSUL, que se reuniu
pela primeira vez em 1992, é uma instituição “adolescente”, que se encontra ainda
em uma fase de aprendizado e de crescimento institucional.
Não há dúvida de que o Parlamento
Europeu pode servir como estímulo ou
exemplo para a Comissão Parlamentar do
Mercosul, e as duas instituições já fazem
contatos institucionais regulares, que no
futuro poderão ser ainda mais aprofundados. No entanto, as possibilidades de
aprendizagem irão depender do desenvolvimento institucional do Mercosul, em
especial das suas estruturas supranacionais. Em lugar de comparar o Parlamento
Europeu como existe hoje com a Comissão
Parlamentar do Mercosul, pode ser mais
útil adotar como ponto de referência o
Parlamento Europeu de períodos ante80
riores, como por exemplo, o dos anos
1960 e 1970. Complementarmente, pode
ser útil analisar também o desenvolvimento
institucional das assembléias parlamentares
em outros sistemas de integração existentes
na América Latina. Dessa perspectiva, parece útil resumir brevemente os fatos mais
importantes da história do Parlamento
Europeu, como também o desenvolvimento das assembléias parlamentares
da Comunidade Andina e do Mercado
Comum Centroamericano, para depois
chegar a algumas conclusões a respeito
da Comissão Parlamentar Conjunta do
Mercosul.
2. Breve história do Parlamento
Europeu
A Comunidade Européia do Carvão
e do Aço, antecessora da Comunidade
Econômica Européia, tinha uma assembléia
parlamentar planejada como contrapeso
das autoridades executivas supranacionais,
que teve também a função adicional de
corrigir um possível deficit de legitimidade
democrática das novas estruturas de integração econômica (ver Rittberger 2003:
211-3).
De acordo com o Tratado de Roma,
de 1957, o Parlamento Europeu representa “os povos dos Estados reunidos na
Comunidade”. O Parlamento Europeu
(denominação adotada em 1962), dos seis
países fundadores da Comunidade, tinha
142 integrantes, ou seja, mais do dobro
do número atual de integrantes da CPC
do Mercosul (64). Era composto por parlamentares procedentes dos parlamentos
dos Estados-Membros da Comunidade,
nomeados pelos seus pares, e mantidos
seus mandatos nos respectivos parlamentos nacionais.
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
Número de mandatos no Parlamento
Europeu, por país (1957)
País
Alemanha
Bélgica
França
Itália
Luxemburgo
Países Baixos
Mandatos
36
14
36
36
6
14
A princípio, o Parlamento Europeu
era um órgão consultivo do Conselho da
Comunidade, tendo por tarefa principal o
controle da Comissão como principal órgão
comunitário supranacional. O Parlamento
Europeu tinha o direito de debater a respeito
das atividades da Comissão, censurando-a
se necessário (hipótese em que a Comissão
deveria renunciar). Nos anos 1950 e 1960,
na fase de infância e adolescência do
Parlamento Europeu, quase não houve
mudança nas suas atribuições, mas
nos anos e décadas que se seguiram
aumentaram as atribuições legislativas e
de controle exercidas pelo Parlamento
Europeu com respeito à Comissão Européia
e ao Conselho, aumentando também a sua
legitimidade democrática.
Com a assinatura do Tratado de
Luxemburgo, em 1970, foi introduzido
na Comunidade um sistema de recursos
próprios, sendo também ampliados os
poderes orçamentários do Parlamento
Europeu (ver Rittberger 2003: 213-7).
Para evitar conflitos entre as instituições
interessadas e bloqueios no processo
legislativo, em 1975, o Conselho e o
Parlamento Europeu criaram, mediante
declaração conjunta, um sistema de
arbitragem para os casos de divergência
em matérias jurisdicionadas ao Parlamento.
Não obstante, a última palavra cabia
sempre ao Conselho. Em 1980, com base
em uma decisão da Corte Suprema de
Justiça, o Parlamento conquistou um certo
direito de retardar a aplicação da legislação
elaborada pela Comissão, antes da sua
aprovação pelo Conselho.
Um passo muito importante no desenvolvimento institucional do Parlamento
Europeu foi a primeira eleição dos seus
membros por sufrágio universal direto,
em junho de 1979, interpretada como
uma mudança constitucional da maior
envergadura (Corbett et al 2003: 355).
Desde então, a composição do Parlamento
Europeu é renovada a cada cinco anos. É
preciso acrescentar que a eleição direta já
estava prevista no tratado constitutivo que
deu origem à Comunidade, em 1957. Com
a eleição direta, o Parlamento passou a ser
um órgão corporativo de atividade contínua, tendo surgido uma nova classe de
parlamentares transnacionais, cuja carreira
política depende da sua atuação no âmbito europeu. Os parlamentares europeus
se esforçaram por ampliar a infra-estrutura técnica e de apoio administrativo do
Parlamento Europeu.
Os novos deputados europeus, eleitos de forma direta, foram muito mais ativos do que os seus antecessores, em todos
os aspectos da atividade parlamentar2.“Dos
questionamentos parlamentares às audiências públicas; da exploração de procedimentos para pressionar a Comissão
ao exame dos Comissários e seus funcionários; das ações na Corte de Justiça às
nomeações para o Tribunal de Contas; dos
comitês de investigação ao congelamento
de fundos, o Parlamento eleito foi mais
vigoroso, mais sistemático e incisivo do
que o nomeado.” (Corbett 1998: 129). Os
eurodeputados utilizaram o regulamento
do Parlamento Europeu para experimentar e explorar a elasticidade dos tratados
81
ENSAIO
comunitários, ampliando a sua área de atuação, mas só dentro de certos limites, representados pela institucionalidade vigente da Comunidade. Em conseqüência, o Parlamento Europeu
atuava também na promoção das reformas da Comunidade Econômica Européia e, depois da
União Européia, enfatizando uma maior legitimidade parlamentar das decisões tomadas.
O Parlamento Europeu dispõe de três sedes, fato que por vezes complica o trabalho
parlamentar e a interação com os outros órgãos da União Européia. O Protocolo número
8, anexo ao Tratado de Amsterdam, de 1997, precisa: “O Parlamento Europeu tem sede
em Estrasburgo, onde são realizadas as doze sessões plenárias mensais, inclusive a sessão
orçamentária. As sessões plenárias suplementares são realizadas em Bruxelas. As Comissões
do Parlamento Europeu se reúnem também em Bruxelas. A Secretaria-Geral do Parlamento
Europeu e os seus serviços permanecem em Luxemburgo.” O Parlamento Europeu organiza
o seu trabalho com base em 17 comissões parlamentares permanentes e conta atualmente
com sete comissões temporárias.
Os deputados do Parlamento Europeu não se integram em blocos nacionais. A
despeito de predominar um ambiente de cooperação na defesa dos interesses institucionais
e europeus, formaram-se grupos políticos ligados por afinidade ideológica, que reúnem os
principais partidos políticos dos Estados-Membros da União Européia. Esses grupos políticos
do Parlamento Europeu constituem o núcleo e a coluna vertebral dos partidos transnacionais
europeus.
QUADRO: Número de mandatos por grupo político, em 1º de Abril de 2003
Grupo político
Sigla
Partido Popular Europeu (Democrata-Cristão) e
Democratas Europeus
Partido dos Socialistas Europeus
Partido Europeu dos Liberais, Democratas e
Reformistas
Esquerda Unitária Européia / Esquerda Nórdica Verde
Verdes / Aliança Livre Européia
União para a Europa das Nações
Europa das Democracias e das Diferenças
Não-inscritos
TOTAL
PPE-DE
Nº de
mandatos
232
PSE
ELDR
175
52
GUE/NGL
Verdes/ALE
UEN
EDD
NI
49
44
23
18
31
634
Fonte: http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/index_pt.htm
Graças à nova legitimidade
democrática, com a assinatura de cada
novo tratado o Parlamento Europeu viu
ampliada sua competência e o papel
político que lhe cabe na União Européia.
82
Os próprios parlamentares europeus, eleitos
de forma direta, defenderam o aumento
das atribuições do Parlamento Europeu
nas próximas revisões institucionais,
argumentando que a perda de controle
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
dos parlamentos nacionais, no processo
de integração da Europa, deveria ser
compensada pela maior competência
atribuída ao Parlamento Europeu.
A assinatura da Ata Única Européia de
1986, para completar o mercado comum até
o ano de 1992, deu um grande impulso ao
desenvolvimento institucional comunitário.
O Conselho modificou suas normas
internas no relativo ao procedimento de
votação, criando-se pela primeira vez um
mecanismo co-decisório entre o Conselho
e o Parlamento. O impulso dado a essas
duas decisões decorreu da necessidade
de promulgar um grande número de leis
comunitárias (cerca de trezentas) até
1992. Para acelerar o processo de decisão,
os Estados-Membros estavam dispostos
a transferir e a somar suas soberanias,
ampliando cada vez mais a participação
do Parlamento Europeu (ver Rittberger
2003: 217-20). Foi o rumo retomado nos
tratados seguintes: o Tratado da União
Européia (Maastricht, 1992) e o Tratado
de Amsterdam, de 1997, que converteram
o Parlamento Europeu em uma autêntica
assembléia legislativa, com competência
comparável à dos parlamentos nacionais.
No entanto, nem todas as ampliações
das políticas comunitárias levam a uma
maior participação do Parlamento Europeu
que, para dar um exemplo, exerce pouco
controle e influência no campo da Política
Exterior e da Segurança Comum.
Não obstante, depois do Tratado
de Maastricht, as áreas das políticas
comunitárias isentas de ingerência do
Parlamento Europeu diminuíram de 72%
(segundo o Tratado de Roma) para 40%
(Maurer 2002: 132). Com o Tratado de
Amsterdam, de 1997, ganhou força a
posição do Parlamento Europeu frente
à Comissão. O Presidente e os outros
membros da Comissão não podem
ser nomeados sem a aprovação do
Parlamento. Além disso, ampliou-se
novamente o procedimento de decisão
conjunta do Conselho e do Parlamento
Europeu, simplificou-se o processo
legislativo e fortaleceu-se a posição do
Parlamento como contraparte equivalente
do Conselho, abrangendo agora quase
todas as matérias às quais se aplica no
Conselho o critério da maioria qualificada,
como as que aparecem pela primeira vez
no novo Tratado. Por outro lado, o Tratado
de Nice, de 2001, reforçou o papel colegislador do Parlamento Europeu, que
desta forma se converteu, no transcurso
da última década, em legislador conjunto
com o Conselho da União Européia.
A participação do Parlamento
Europeu nas decisões do Conselho, como
órgão máximo da União Européia, abarca
diferentes formas e graus de influência.
Para certas matérias é necessário o
consentimento do Parlamento para
que o Conselho possa decidir. Em caso
de consulta, a Comissão submete uma
proposta ao Parlamento. Se a consulta é
facultativa, a proposta não pode converterse em lei por voto do Conselho, a menos
que o Parlamento tenha emitido um
parecer favorável. Nos casos de co-decisão,
Parlamento e Conselho compartilham o
poder legislativo, e a Comissão envia
sua proposta às duas instituições que,
se não chegam a um acordo, submetem
sua divergência a um “comitê de
conciliação”, integrado por igual número
de representantes do Conselho e do
Parlamento3.
As áreas abrangidas pelo processo
de parecer favorável são: algumas missões
específicas do Banco Central Europeu;
alterações nos estatutos do Sistema Europeu
de Bancos Centrais / Banco Central
Europeu; fundos estruturais e Fundo de
83
ENSAIO
Coesão; processo eleitoral uniforme para
o Parlamento Europeu; alguns acordos
internacionais; adesão de novos Estados
membros.
As áreas abrangidas pelo processo
de consulta são: cooperação policial e
judicial em matéria penal; revisão de
Tratados; discriminação em razão de
sexo, raça ou origem étnica, convicções
religiosas ou políticas, deficiência, idade
ou orientação sexual; cidadania da UE;
agricultura; vistos, asilo, imigração e outras
políticas relacionadas com a liberdade de
circulação de pessoas; transportes (sempre
que haja um significativo impacto em certas
regiões); concorrência; fiscalidade; política
econômica; “cooperação reforçada” - ou
seja, a disposição que permite que um
grupo de Estados-Membros trabalhem
conjuntamente num domínio específico,
mesmo sem a participação dos demais.
As áreas abrangidas pelo processo
de parecer de co-decisão são: não
discriminação com base na nacionalidade;
direito de circulação e residência; liberdade
de circulação de trabalhadores ; seguridade
social para os trabalhadores migrantes;
direito de estabelecimento; transportes;
mercado interno; emprego; cooperação
aduaneira; luta contra a exclusão social;
igualdade de oportunidades e igualdade
de tratamento; decisões executivas
relacionadas com o Fundo Social Europeu;
educação; formação profissional; cultura;
saúde; defesa do consumidor; redes
transeuropéias; decisões executivas
relacionadas com o Fundo Europeu de
Desenvolvimento Regional; investigação;
ambiente; transparência; prevenção e luta
contra a fraude; estatística; instituição
de um órgão consultivo para a proteção
de dados. Fonte: http://europa.eu.int/
institutions/decision-making/index_pt.htm
Ao lado da sua participação no
processo legislativo, o Parlamento
Europeu tem igualmente outras atribuições
tipicamente parlamentares: participa na
elaboração do orçamento da União
84
Européia e pode rejeitá-lo. Além disso,
desempenha funções de controle:
deve aprovar a gestão orçamentária
da Comissão; pode criar comissões
temporárias de investigação. Por outro
lado, seus deputados, grupos ou comissões
parlamentares, podem formular perguntas
à Comissão ou ao Conselho, oralmente ou
por escrito4.
Em resumo, constata-se que, desde
a criação da Comunidade Econômica
Européia, a participação do Parlamento
nas decisões comunitárias se ampliou,
especialmente com base nos Tratados de
Maastricht e Amsterdam, que criaram o
mecanismo de co-decisão. É preciso assim
concordar com as palavras de Richard
Corbett (1998: 367), deputado socialista
do Parlamento Europeu: “Subestimado
por muitos, nos primeiros anos, depois
das eleições diretas o novo Parlamento
de tempo integral, surgido em 1979, tem
sido, de modos nem sempre previstos, um
fator importante na aceleração do ritmo da
integração européia ocorrida a partir de
meados dos anos 1980.”
3. A experiência latinoamericana com parlamentos
regionais e subregionais
Além da Europa, a América Latina
é, em todo o mundo, a única região que
conta com parlamentos transnacionais,
tanto em nível regional como subregional.
Em 2004, a história da América Latina
nesse terreno completa vinte anos. O
Parlamento Latino-Americano (Parlatino),
fundado em 7 de dezembro de 1964,
em Lima, foi o antecessor e um fator
importante para a criação posterior do
Parlamento Andino (Parlandino) e do
Parlamento Centro-Americano (Parlacen),
no quadro dos respectivos processos de
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
integração subregional. O Parlamento
Latino-Americano nasceu há quarenta
anos, durante as comemorações dos 140
anos da batalha de Ayacucho, em memória
das idéias de integração do Libertador
Simón Bolivar. O objetivo principal dessa
primeira assembléia parlamentar regional
foi promover a união política da América
Latina. Nos primeiros anos do Parlatino
foram discutidas e aprovadas propostas
ambiciosas de integração, tais como a
criação de uma bandeira regional comum,
de um passaporte latino-americano e a
abertura de uma universidade regional –
propostas que até hoje não foram levadas
à prática.
A criação do Parlatino, em Lima,
resultou de uma primeira onda de integração
latino-americana com enfoque regional.
Sua meta final era integrar toda a América
Latina, em conformidade com as idéias do
pan-americanismo inspiradas em Simón
Bolivar. A função principal do Parlatino
foi dar um impulso político ao processo
de integração econômica da América
Latina. O Parlatino nasceu em uma época
extremamente difícil do ponto de vista
político, em que muitos países do continente
eram governados por regimes militares. Essa
conjuntura política contrária à integração
dos estados da região reduziu desde o
princípio as repercussões do Parlamento
Latino-Americano, que nunca conseguiu
transformar-se em um foro político de
peso, e atualmente é uma assembléia
parlamentar sem maior transcendência.
Os seus membros se reúnem por alguns
dias, cada dois anos, e o impacto político
da sua atuação se acha consideravelmente
reduzido. O pouco poder do Parlatino está
vinculado estreitamente com a crise do
sistema de partidos políticos na maioria
dos países participantes, e na imagem
negativa dos Congressos nacionais. Por
isso, segundo o Latinobarometro de 2003,
só 14% da população apóia os partidos
políticos, e os Congressos figuram entre as
instituições mais desacreditadas da região
(Latinobarometro 2003, Santiago, Chile).
Não obstante, o Parlatino continua
funcionando. Em duas oportunidades
sua estrutura foi reformada e, em 1992,
foi instalada em São Paulo sua sede
permanente. Em comparação com o
Parlamento Europeu, o Parlatino é, como
instituição, muito mais simples. Seu
órgão principal é a Assembléia Geral.
Há uma pequena secretaria executiva,
um comitê diretivo e sete comissões
parlamentares permanentes. Como
não existe um processo de integração
regional, as funções do Parlamento LatinoAmericano são meramente deliberativas,
inexistindo um instrumento legislativo:
seus principais instrumentos são resoluções
e recomendações não vinculantes.
O segundo poder legislativo
transnacional criado na América Latina
foi o Parlamento Andino (Parlandino),
que surgiu dez anos depois do Pacto
Andino, em 1979. Hoje, o Parlandino é
parte do complexo sistema supranacional
da Comunidade Andina. Assim como o
Parlatino, o Parlandino está composto
por deputados nacionais nomeados pelos
parlamentos de cada país membro. Ao
contrário do Parlatino, o Parlamento
Andino inclui uma cláusula democrática,
que condiciona a participação dos
Estados-Membros ao “exercício efetivo” da
democracia, razão pela qual no passado
a presença do Chile como Observador
foi suspensa. Pouco depois da ratificação
do seu Tratado constitutivo, em 1984, o
Parlandino estabeleceu em Bogotá a sua
sede permanente. Por outro lado, seguindo
o exemplo da União Européia, o então
Pacto Andino preferiu não concentrar os
85
ENSAIO
foros de coordenação na mesma cidade,
mas criou sedes diferentes para todas as
suas instituições: a Secretaria está em
Lima, o Tribunal de Justiça, em Quito, o
Parlandino, em Bogotá e a Corporação
Andina de Fomento, em Caracas. Essa
dispersão representou, desde o início, um
sério obstáculo à coordenação política e
ao próprio processo de integração subregional.
O Parlandino está composto por
cinco representantes nacionais e dez
suplentes, havendo sido criadas cinco
comissões temáticas permanentes. O
Parlamento se reúne uma vez por ano,
podendo, além disso, ser convocadas
sessões extraordinárias, desde que contem
com o apoio de um terço dos EstadosMembros. De acordo com seu avançado
processo de integração (a Comunidade
Andina constitui uma união aduaneira
incompleta), sua abrangência é mais
ambiciosa do que a do Parlatino e, inclui o
prosseguimento do processo de integração,
cooperar com os parlamentos nacionais
para incorporar o direito comunitário
andino e formular propostas de integração.
O Parlandino exerce seu poder através de
recomendações e decisões que entram em
vigor mediante o apoio de dois terços dos
deputados; elege um Presidente e quatro
Vice-Presidentes, que exercem o mandato
durante um ano e representam diferentes
países. É esse grupo de representantes que
nomeia o Secretário Geral, e juntos eles
constituem o foro executivo, ou “Mesa
Redonda” parlamentar.
No quadro do processo de
transformação do Pacto Andino em
Comunidade Andina, o Parlandino foi
reestruturado, autorizando-se a eleição
direta dos seus representantes. Não
obstante, por falta de vontade política
e devido ao atual estancamento do
processo de integração, o projeto ainda
86
não se transformou em realidade.
Há dez anos (o debate teve início em
1994) estão previstas eleições diretas
para o Parlandino, possibilidade que já
estava prevista no Tratado constitutivo
e especificada no Protocolo Adicional,
assinado em 1987. Não obstante, até hoje
só a Venezuela e, há pouco mais de
um ano, o Equador, realizaram eleições
diretas para o Parlamento Andino. Os
outros países receberam um novo prazo,
até 2005, para seguir esse exemplo. Diante
do pouco dinamismo da integração dos
países andinos, a debilidade dos Estados
interessados e os problemas bilaterais
entre Colômbia e Venezuela, surgem sérias
dúvidas sobre a viabilidade do projeto e as
suas perspectivas futuras. Embora o processo
de integração andino tenha criado o quadro
institucional mais amplo e complexo,
baseado em foros supranacionais, devido à
ausência de vontade política dos governos
e a endêmica falta de vigor institucional
dos Estados-Membros, o Parlandino tem
tido pouca visibilidade e efetividade na
sub-região.
O balanço que se pode fazer do
Parlamento Centro-Americano (Parlacen)
está longe de ser melhor. O Parlacen foi
instituído em 1987, no contexto do processo
de paz centroamericano, como parte dos
Acordos de Esquipulas II. Vinicio Cerezo, o
então Presidente da Guatemala, promoveu
essa idéia, em janeiro de 1986, para
criar um clima de paz, consenso político
e democracia na sub-região afligida
por guerras civis, violência e violações
constantes dos direitos humanos. Uma
vez superada a crise centro-americana, o
Parlacen abriu suas portas em 1991, na
Cidade da Guatemala, com a participação
de quatro países: Guatemala, Nicarágua,
El Salvador e Honduras. O Panamá se
integrou alguns anos mais tarde. Costa
Rica foi o único país a formular reservas
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
constitucionais, e nunca chegou a ratificar
o Tratado constitutivo. Havia outros motivos
para retardar a sua participação: o respeito
predominante à soberania nacional e
a situação especial do país, devido à
relativa estabilidade democrática, social e
econômica.
Assim como o Parlandino, o Parlacen
se reúne uma vez por ano, podendo
ser convocadas assembléias plenárias
extraordinárias. Seu órgão executivo é
mais complexo e está composto pelo
Presidente, quatro Vice-Presidentes e cinco
Secretários. O Parlacen adota decisões
por maioria de sete votos, e funciona com
doze Comissões temáticas. Sua estrutura
está muito orientada para o modelo
europeu. Sua estrutura supranacional foi
adotada desde o início prevendo a eleição
direta dos seus representantes, com os
partidos políticos reunidos em diferentes
grupos parlamentares. Procurou-se,
assim, criar uma verdadeira assembléia
parlamentar transnacional, favorecendo
a integração sub-regional em vez do
predomínio dos interesses nacionais.
A importação do modelo europeu de
parlamentarismo transnacional esteve
relacionada estreitamente com o papel
destacado assumido pela Comunidade
Européia na pacificação regional, através
do denominado Processo de San José,
as Conferências entre Europa, América
Central e o Grupo de Contadora (e mais
tarde o Grupo de Apoio ampliado).
Até hoje o Parlacen é o único
parlamento transnacional da região
com deputados eleitos
diretamente
pela população, à semelhança do
Parlamento Europeu. O mandato dos seus
representantes é de cinco anos. Além dos
vinte deputados eleitos diretamente pelos
cidadãos, integram-se automaticamente
no foro os ex-Presidentes e VicePresidentes dos Estados-Membros: uma
fórmula heterodoxa e única que distingue
o Parlacen de qualquer outro parlamento,
nacional ou transnacional. A razão inicial
para a participação de importantes figuras
políticas nacionais foi o fortalecimento
da coordenação política entre o Parlacen
e os Poderes Executivos nacionais. Não
obstante, em vez de aumentar a importância
política do Parlacen na região, essa prática
tem sido seriamente questionada, já que
a integração dos antigos Presidentes e
Vice-Presidentes na assembléia regional
lhes conferiu automaticamente imunidade
perante a Lei.
Hoje, discute-se uma profunda
reforma na estrutura do Parlacen. As
maiores críticas, formuladas por Oscar
Berger, atual Presidente do país que fundou
o foro, são dirigidas contra a cláusula
que prevê a participação de todos os
ex-mandatários nacionais, que se tornou
um aspecto altamente controvertido
desde a incorporação do ex-Presidente
guatemalteco Alfonso Portillo e, antes
disso, com a do ex-Presidente Arnoldo
Alemán, da Nicarágua. No contexto de
uma renovação política na Nicarágua e
na Guatemala, e de um combate mais
intenso às práticas corruptas nos governos
dos países membros, o Parlacen tem uma
imagem particularmente negativa, além
de ter perdido relevância como foro de
integração política. Cabe lembrar, porém,
que durante o processo de pacificação
centroamericana ele cumpriu importante
função simbólica e política. Por outro
lado, também é certo que fracassou como
promotor da integração sub-regional e
como plataforma para promover a
democracia na América Central.
De modo geral, o balanço do
parlamentarismo regional na América
Latina é ambíguo. Todos os parlamentos
transnacionais criados até hoje têm em
comum sua pequena capacidade decisória
87
ENSAIO
e uma influência limitada sobre os
parlamentos nacionais, mantendo funções
puramente deliberativas. Seu único
instrumento para influir nos processos
políticos regionais, bilaterais ou nacionais,
são resoluções ou recomendações que não
têm qualquer impacto concreto porque
não são vinculantes. As funções das três
assembléias regionais são semelhantes:
servem como plataformas políticas
pluralistas e como vínculo entre democracia
e integração. Tanto o Parlatino como o
Parlacen contribuem para promover a
coordenação e o intercâmbio entre os
diferentes partidos políticos nacionais e,
se o processo de integração está mais
avançado, promovem a união política
entre os Estados-Membros. Os casos do
Parlacen e do Parlandino demonstram
que a eleição direta dos integrantes de
poderes legislativos transnacionais (meta
também prevista pelo Mercosul) pode
exigir mudanças na legislação nacional.
Assim, a definição de um período eleitoral
comum exigiu, no caso do Parlandino,
mudanças constitucionais em alguns
Estados-Membros, o que, além da falta de
vontade política, atrasou a implantação do
sistema de eleições diretas.
Refletindo um maior progresso na
integração, a competência do Parlandino
e do Parlacen é mais ampla, e suas
estruturas são mais densas e complexas
do que a do Parlatino. Com respeito a
este último ponto, o Parlacen é o modelo
mais próximo do Parlamento Europeu,
já que, diferentemente do Parlatino e do
Parlandino, o Parlacen dispõe de sede
permanente, seus deputados são eleitos
diretamente, agrupando-se de acordo
com as afinidades políticas, e mantêm
uma relação indireta com o Executivo,
por contar com a participação de exPresidentes e Vice-Presidentes. Ao
88
contrário do Parlamento Europeu, nem o
Parlacen nem o Parlandino optaram pela
distribuição proporcional de representantes
do país, e em ambos prevalece o princípio
da igualdade, independentemente do
tamanho e do peso econômico dos
países-membros. Finalmente, os três foros
analisados são assembléias parlamentares
unicamerais.
Quanto à sua função política,
cabe dizer que sobretudo as reuniões
do Parlatino têm sido, em termos gerais,
um exercício útil para promover um
consenso latino-americano em certos
temas de interesse comum (por exemplo,
a pacificação da América Central e a
solução pacífica de outros conflitos) e para
sustentar, inclusive em épocas adversas, os
princípios democráticos, dentro de espectro
político amplo e representativo das forças
políticas latino-americanas. Neste sentido,
o Parlatino é um dos poucos foros políticos
da América Latina que permitem um
intercâmbio através das fronteiras nacionais
e sub-regionais, entre partidos de diferente
orientação ideológica, procedentes de
todos os países.
Em resumo pode-se dizer que
a
experiência
com
parlamentos
transnacionais na América Latina não é
muito alentadora, pois eles têm sido foros
insignificantes, chegando mesmo a servir
de refúgio seguro a políticos perseguidos
pela corrupção praticada nos seus países,
como no caso do Parlacen.
Desde o início os parlamentos
transnacionais tiveram o apoio da então
Comunidade Européia, que lhes ofereceu
assistência técnica e co-financiamento.
Esses vínculos inter-regionais se refletem
até hoje nas Conferências bienais entre
o Parlamento Europeu e o Parlatino. O
primeiro desses encontros teve lugar
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
em 1974, e o último deles em maio
de 2003, em Bruxelas. Houve também
intercâmbios e reuniões esporádicas entre
o Parlacen e o Parlandino, instituições
com as quais o Parlamento Europeu
assinou também acordos de cooperação.
Embora os resultados desses encontros
entre parlamentares europeus e latinoamericanos sejam modestos e passem
despercebidos, continuam a ser foros
importantes para promover o diálogo
entre as regiões. Ao mesmo tempo, a
influência européia tem sido uma
referência importante para a integração
latino-americana, seguindo muito de perto
o exemplo europeu, enquanto os Estados
Unidos favorecem uma abordagem
estritamente comercial no processo
de integração. De um lado, a forte
orientação para o modelo europeu, por
parte dos três parlamentos transnacionais
da América Latina (precursores de um
possível Parlamento do Mercosul) os
converteu em interlocutores idôneos
do Parlamento Europeu; de outro, esse
eurocentrismo reduziu sua legitimidade e
operacionalidade na América Latina, uma
vez que nenhum dos três parlamentos
transnacionais foi ajustado às circunstâncias
e peculiaridades regionais. Levando em
conta essas experiências, devemos esperar
que o Mercosul não cometa os mesmos
erros, mas que, ao contrário, busque
um caminho próprio, independente e
adaptado às circunstâncias do seu contexto
regional.
4. Institucionalidade e dimensão
parlamentar no Mercosul
O Tratado de Assunção que criou o
Mercosul, em 1991, prevê a criação de
um parlamento supranacional em data não
determinada, estabelecendo, no Artigo 24,
a Comissão Parlamentar Conjunta, primeiro
passo para um futuro poder legislativo
transnacional, sem especificar com muita
clareza suas funções e competência (na
verdade o Tratado constitutivo do Mercosul
é um instrumento bastante sucinto, de
poucas páginas). O Regulamento Interno
da Comissão Parlamentar Conjunta foi
aprovado também em 1991; posteriormente,
o Protocolo de Ouro Preto, de 1994,
especifica a estrutura institucional do
Mercosul, incluindo a competência dos
seus principais foros. Embora a Comissão
Parlamentar Conjunta seja considerada
um órgão principal do Mercosul, assim
como o Foro Consultivo Econômico e
Social, ela não tem qualquer capacidade
decisória nem exerce funções de controle
legislativo. Tanto a Comissão como o
Foro são instituições “deliberativas”,
que podem formular recomendações e
“acompanham” o processo de integração,
sem dele participar diretamente. Além
disso, a Comissão não constitui um
parlamento regional transnacional, mas
continua a ser um foro determinado por
interesses parlamentares nacionais. Assim,
um primeiro passo para promover uma
entidade comum além do âmbito nacional
consistiria em criar grupos parlamentares
integrados por deputados de correntes
políticas similares.
Como não existe propriamente um
“direito do Mercosul”, as funções e a
competência da Comissão Parlamentar
Conjunta se limitam à formulação
de recomendações e decisões não
vinculantes. Entre outras tarefas, cabe
à Comissão encomendar estudos sobre
o processo de integração e organizar
seminários sobre o tema. Além disso, ela
fez um importante trabalho de compilação
de todos os textos legislativos do Mercosul,
89
ENSAIO
que foram publicados em dois volumes.
Por outro lado, a Comissão se incumbe
de acelerar a incorporação das normas
do Mercosul às legislações nacionais,
cooperando estreitamente com os
parlamentos nacionais. Para fortalecer a sua
cooperação com os Congressos nacionais,
em todos estes, nos quatro Estados-Membros
foram criadas Comissões do Mercosul. No
Uruguai, país sede da Secretaria Técnica
do Mercosul, a delegação nacional da
Comissão dispõe de um escritório com
representantes permanentes, situado no
Edifício Mercosul, em Montevidéu.
Atualmente, a Comissão Parlamentar
reúne 64 deputados, 16 de cada um
dos quatro Estados-Membros. Esses 16
representantes e o mesmo número de
suplentes são designados pelos respectivos
parlamentos nacionais, e exercem o seu
mandato por um período mínimo de dois
anos. Como em todos os Estados-Membros
há sistemas bicamerais, os integrantes da
Comissão procedem das duas Câmaras. A
sessão plenária da Comissão se reúne pelo
menos duas vezes por ano, freqüência maior
do que a dos demais órgãos transnacionais
da região. Essas reuniões são presididas
por uma mesa de quatro representantes,
realizando-se normalmente no país que
exerce a Presidência pro tempore do
Mercosul. Todas as decisões são tomadas
pelo consenso das delegações nacionais.
Embora oficialmente não exista uma sede
permanente da Comissão, foi criada em
Montevidéu uma Secretaria Administrativa
Parlamentar Permanente, que coordena
as atividades das quatro seções nacionais
e, além disso, prepara e dá seguimento
ao trabalho parlamentar. Também foi
criado, recentemente, um modesto fundo
orçamentário para financiar esse órgão de
apoio da Comissão.
90
A composição das delegações
nacionais está orientada para os respectivos
regulamentos parlamentares dos EstadosMembros e o Presidente da Comissão
procede do país que exerce a Presidência
pro tempore do Mercosul. Ele é assistido
por um Secretário Geral e um Secretário
Administrativo permanente, residente em
Montevidéu. Para preparar as sessões
plenárias foram criadas onze subcomissões
temáticas. No quadro das relações interinstitucionais entre o Mercosul e a União
Européia, o Parlamento Europeu e a
Comissão Parlamentar Conjunta mantêm
reuniões regulares. Por outro lado,
são mantidas relações estreitas com o
Parlandino e celebradas reuniões menos
feqüentes com o Parlacen.
Assim como acontece com o Parlacen
e o Parlandino, o balanço das atividades
da Comissão Parlamentar Conjunta é
também ambíguo. Em um estudo sobre a
institucionalidade do Mercosul, Roberto
Bouzas e Hernán Stoltz (2004) criticam o
trabalho da Comissão e concluem que esse
órgão “não obteve êxito ao desempenhar
um papel propositivo e de assessoria dos
órgãos técnicos, negociadores e decisórios
(...) A Comissão também não teve muito
êxito em acelerar ou facilitar as tarefas de
internalização das normas do Mercosul,
ou de vencer a última linha de resistência
de interesses particulares afetados por
decisões vinculadas ao processo de
integração.”
Devido às suas limitações estruturais
e características próprias, a Comissão não
responde a nenhuma das três responsabilidades parlamentares: 1) representar a
cidadania; 2) reunir os interesses nacionais favoráveis a um “bem comum” e 3)
supervisionar o processo de integração e
a aplicação de normas e decisões. Uma
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
das causas do seu pequeno impacto no
processo de integração é sua competência
limitada, o caráter de foro de interesses
nacionais e a ausência de capacidade
decisória e de mecanismos de sanção.
A consciência desse deficit fez com que
se considerasse atualmente converter a
Comissão em um genuíno parlamento
regional, para contar com uma instância
de controle democrático das instituições
do Mercosul. Essa idéia foi levantada pelo
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do
Brasil, que declarou:... deveríamos instituir um parlamento do Mercosul, eleito
mediante o voto direto dos eleitores dos
nossos países. Faremos assim com que os
cidadãos participem do processo de integração regional, dando-lhe mais força e
legitimidade.”
fator de legalidade para dar seguimento
ao processo de incorporação de normas
(levando em conta que até hoje não mais
de 35% do “direito do Mercosul” foi
incorporado às legislações nacionais).
O aprofundamento institucional
corresponde ao fato de que o processo
de integração está ganhando densidade
e complexidade, abarcando uma ampla
gama de temas de cooperação. A Comissão
Parlamentar Conjunta está avaliando os
passos necessários para criar um poder
legislativo comum, que no futuro contaria
com deputados eleitos diretamente pelos
cidadãos dos Estados-Membros. Como
no caso do Parlandino e do Parlacen,
o Mercosul decidiu também, mais de
uma década depois da assinatura do
Tratado constitutivo, a futura incorporação
do Poder Legislativo ao processo de
integração. A criação de um Parlamento
do Mercosul poderia cumprir quatro
funções importantes: a) inaugurar, na
integração, uma dimensão democrática,
de caráter partidário; b) estimular a futura
união política como meta ambiciosa
do Mercosul; c) criar um órgão de
controle democrático das instituições da
integração (até aqui predominantemente
intergovernamentais); e d) representar um
No nível técnico, a criação de um
Parlamento do Mercosul exige uma série
de decisões prévias para definir um sistema
eleitoral comum sobre os seguintes pontos:
•
o número de deputados por país,
•
a extensão do seu mandato,
•
a definição da(s) data(s) do sufrágio
universal,
•
a definição
competências,
•
a instalação ou não de uma sede
permanente,
•
sua relação com as outras instituições
do Mercosul e com os parlamentos
nacionais.
das
funções
e
No contexto desse debate, autores
originários de países do Mercosul, como
Gerardo Caetano e Rubén Perina (2003:
318-9), apresentaram propostas concretas
para preparar um parlamento regional
eleito diretamente pelos cidadãos, mediante um futuro Protocolo de Eleições e
Representação. Nessa agenda, esses autores consideram fundamental esclarecer a
“questão delicada” da proporcionalidade
na futura assembléia parlamentar, e a
representatividade dos Estados pequenos.
A solução para esse dilema não será
fácil: o mesmo número de deputados por
país e as decisões tomadas por consenso
representariam uma desvantagem para os
sócios maiores (particularmente o Brasil),
enquanto a proporcionalidade absoluta,
baseada no número de habitantes, provavelmente seria inaceitável para os países
pequenos. Não obstante, como a experiên91
ENSAIO
cia do Parlamento Europeu pôde demonstrar,
existem fórmulas para resolver esses dilemas. Outro desafio será o da representatividade regional no futuro Parlamento
do Mercosul, ou seja, a decisão de adotar
o modelo unicameral ou o bicameral. O
mais lógico seria optar por uma só câmara, seguindo o exemplo de outros parlamentos regionais. Ao reunir-se em uma só
Câmara, e levando em conta que os futuros deputados do Parlamento do Mercosul
seriam eleitos diretamente pelos cidadãos,
pela sua estrutura, essa assembléia subregional atuaria futuramente como um
autêntico foro parlamentar supra-nacional.
Não obstante, para exercer essa função, a
competência do Parlamento do Mercosul
deveria incluir instrumentos eficazes para
supervisionar, controlar e legislar o processo de integração. Sem essa competência,
e sem que haja um verdadeiro “direito
do Mercosul”, esse Parlamento correria o
risco de ser apenas mais um foro de debate
entre parlamentares latino-americanos.
Comissão de Representantes Permanentes,
sediada também em Montevidéu.
A criação de um futuro Parlamento
se enquadra em uma reforma institucional
mais ampla do Mercosul. Diferentemente
de outros processos sub-regionais de integração, o Mercosul criou uma estrutura
institucional “ligeira”, pragmática e intergovernamental. Seus principais órgãos de
coordenação são o Conselho, o Grupo de
Mercado Comum, a Comissão Comercial e
os dois foros deliberativos: CPCD e FCES.
Na medida em que progride a integração entre os Estados-Membros, incluindo
tanto temas comerciais como políticos,
sociais e de segurança, a estrutura do
Mercosul foi sendo ajustada. Após um
longo período de retrocesso e estancamento, o Mercosul foi reativado com a criação
de três órgãos adicionais, com incipientes funções supranacionais: a Secretaria
Técnica, em Montevidéu, o Tribunal de
Apelação Permanente, em Assunção, e a
5. Lições da Europa e da América
Latina para o futuro Parlamento
do Mercosul
92
Cabe lembrar aqui que a experiência
da Comunidade Andina, e também do
Parlamento Europeu, mostra que dispersar
as sedes das instituições, localizando-as
em cidades e países diferentes, não é uma
estratégia muito acertada, pois eleva tanto
os custos logísticos como os problemas
de coordenação. No entanto, tudo indica
que, assim como a Comunidade Andina,
o Mercosul adota também esse modelo.
Assim, a Secretaria Técnica e o Comitê
de Representantes Permanentes estão
situados em Montevidéu; o futuro Tribunal
de Apelação estará sediado em Assunção;
e os demais órgãos não dispõem de sede
permanente, reunindo-se em diferentes
lugares. Para reduzir os custos financeiros
e
logísticos,
seria
recomendável
centralizar as instituições no mesmo lugar,
preferentemente em um país pequeno,
com estabilidade institucional e política.
Antes de criar um Parlamento do
Mercosul, seria fundamental iniciar um
debate sobre outras experiências com
parlamentos regionais ou sub-regionais. A
referência mais importante é, sem dúvida, o
Parlamento Europeu, mas será igualmente
interessante aprender com os poderes
legislativos transnacionais já existentes na
região.
A experiência latino-americana
mostra uma série de erros e de riscos que
deveriam ser evitados pelo Mercosul:
•
Se não houver uma vigorosa vontade
política de todos os participantes
no processo de integração, um
parlamento regional pode converterse em foro totalmente irrelevante.
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
•
A debilidade institucional inerente
dos Estados-Membros estará refletida
também em uma assembléia parlamentar conjunta. Um parlamento
transnacional não pode compensar
as deficiências institucionais dos parlamentos nacionais. A qualidade da
democracia e o poder parlamentar,
no âmbito transnacional, dependem
da qualidade da democracia e dos
poderes parlamentares no âmbito
nacional (ver Combes 1999: 18-19).
•
Um parlamento regional só pode
existir em conjunto com outros órgãos
supranacionais ou semi-supranacionais de integração.
•
Para serem efetivos e para poder
influenciar o processo de integração,
os poderes legislativos transnacionais
requerem funções de controle sobre
outros órgãos de integração e sobre
os parlamentos nacionais. Quando
só podem adotar Resoluções não
vinculantes, mal terão um impacto
perceptível.
A despeito das peculiaridades do
desenvolvimento institucional da União
Européia e do Parlamento Europeu, é possível chegar a algumas conclusões aplicáveis a um futuro Parlamento do Mercosul:
•
O processo da ampliação das atribuições do Parlamento Europeu não
resultou de um plano original; com
efeito, o Parlamento Europeu foi inicialmente idealizado como um órgão
consultivo (ver Maurer 1999: 18).
Não obstante, com a passagem do
tempo, suas funções foram ampliadas e os seus representantes conquistaram maior legitimação democrática. Neste sentido pode-se constatar
que: “Um traço característico do
Parlamento Europeu é o fato de que
ele não se considera como parte
acabada de um sistema institucional
perfeito, mas como um elemento de
composição que exige uma evolução
ou até mesmo a sua transformação
em algo diferente” (Corbett 1998:
368). Desta perspectiva, a futura
evolução institucional da Comissão
Parlamentar do Mercosul deve ser
vista como um processo em aberto.
É preciso recordar que o Parlamento
Europeu começou também como
uma assembléia legislativa nomeada pelos parlamentos dos EstadosMembros, e que os representantes
indicados para o Parlamento Europeu
guardavam suas funções nos respectivos parlamentos nacionais.
•
Levando em conta as diferentes
funções ou atividades atribuídas ao
Parlamento Europeu ao longo da
sua história – como foro de debate,
as funções legislativa e de governo e as de co-participação e influência na tomada de decisões dos
órgãos executivos de União Européia
(ver Schmuck 1989) – atualmente
a Comissão Parlamentar Conjunta
desempenha, no máximo, a função
de foro de debate.
•
O Parlamento Europeu é parte de
toda uma estrutura supranacional, e
o seu desenvolvimento institucional
foi estimulado e governado pelos
progressos ocorridos no processo de
integração econômica e política: pela
cobertura cada vez mais ampla do
direito comunitário e do reforço das
estruturas supranacionais no âmbito
de governo da União Européia (por
exemplo, a tomada de decisões por
maioria qualificada, no Conselho).
Desta forma, o desenvolvimento
institucional do Parlamento Europeu
93
ENSAIO
se realizou cada vez mais em um
caminho já prefigurado pelas decisões adotadas no âmbito dos governos.
•
Os progressos com respeito às atribuições do Parlamento Europeu se
deram no contexto de uma interação triangular entre a Comissão, o
Conselho e o próprio Parlamento.
Como instituição supranacional,
a Comissão foi muitas vezes uma
aliada do Parlamento Europeu, funcionando ademais como mediadora
entre o Parlamento e o Conselho. No
Mercosul, com as instituições hoje
existentes, um parlamento supranacional entraria em confronto direto
com os órgãos intergovernamentais.
•
A necessidade de uma maior legitimação dos procedimentos das decisões comunitárias depende da cobertura do direito comunitário. Uma
associação basicamente econômica como é o Mercosul não precisa
necessariamente de ter uma legitimação processual, podendo bastar uma
legitimação por rendimento (outputoriented legitimacy)5.
•
A ampliação das atribuições do
Parlamento Europeu foi influenciada
pela delegação de soberania a instituições supranacionais, o que provocou (conforme a percepção de uma
parte importante das elites políticas
nacionais), um deficit de legitimação
democrática (ver Rittberger 2003).
Esse foi o ponto de partida para
uma ampliação das atribuições do
Parlamento Europeu, como também
para uma mudança nos mecanismos
adotados para a eleição dos deputados (de eleição indireta para direta).
É necessário salientar que, no caso
do desenvolvimento institucional
do Parlamento Europeu, foi muito
importante a atitude assumida pelas
94
elites políticas a favor de uma maior
legitimação democrática. Por outro
lado, os parlamentos nacionais não
se opuseram à criação e fortalecimento de uma assembléia parlamentar supranacional. Teria sido igualmente possível defender um caminho alternativo, reforçando o papel
dos parlamentos nacionais como
órgãos de controle das instituições
supranacionais (ou dos representantes nacionais nessas instituições). No
caso do Mercosul será preciso comprovar que os Congressos nacionais
estão realmente dispostos a criar e
ceder competência a um Parlamento
supranacional.
•
Qualquer progresso na integração
econômica e política do Mercosul
que amplie o papel de um parlamento
supranacional precisaria definir
igualmente a função dos parlamentos
nacionais na estrutura institucional da
associação regional. Assim como na
União Européia, os cidadãos devem
identificar-se primordialmente com o
seu próprio país, antes do Mercosul,
e a política receberá sua legitimação
processual principalmente no
âmbito nacional. Com uma estrutura
de decisão mais diferenciada e
complexa, o Mercosul enfrentaria
os mesmos desafios propostos por
“um parlamentarismo de múltiplos
níveis”, que desde os anos noventa
vem sendo objeto de discussão na
União Européia.
•
Parece pouco provável que o desenvolvimento institucional da Comissão
Parlamentar Conjunta se aproxime,
no futuro imediato, da trajetória institucional do Parlamento Europeu,
já que no Mercosul existem apenas
estruturas supranacionais com independência e poder de decisão, as
quais tornariam necessária a criação
de algum órgão de controle parla-
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
mentar supranacional. No momento,
as decisões dos órgãos do Mercosul
são tomadas no âmbito dos governos,
e ratificadas pelos parlamentos nacionais. Nesse quadro institucional é
suficiente um órgão consultivo como
a Comissão Parlamentar Conjunta,
que poderia funcionar como correia
de transmissão entre os governos que
se reúnem no Conselho do Mercosul
e os parlamentos nacionais. Desta
forma, os integrantes da Comissão
podem acelerar os processos legislativos nos Estados Partes, para a pronta
entrada em vigor das normas emanadas dos vários órgãos do Mercosul.
Ao mesmo tempo, podem remeter
as recomendações dos parlamentos nacionais para o Conselho do
Mercado Comum, por intermédio do
Grupo Mercado Comum.
Tomando como base o desenvolvimento institucional do Parlamento
Europeu, quais poderiam ser os cenários
futuros para a criação de um Parlamento
do Mercosul? Poderíamos imaginar um
Parlamento eleito por sufrágio universal
direto, que contaria com maior legitimidade democrática, aumentando a identificação dos cidadãos com o processo de integração regional. O desenvolvimento institucional ocorrido no Parlamento Europeu,
depois da eleição direta, demonstra que
um parlamento supranacional com uma
base própria de legitimação poderia promover sua identidade institucional. Como
o Parlamento Europeu, um Parlamento do
Mercosul poderia aproveitar ao máximo
a institucionalidade vigente. Mas os progressos possíveis dependem desse quadro
institucional vigente. Seria possível instituir uma classe parlamentar transnacional,
impulsionando os presidentes dos países-membros do Mercosul e os ministros
empenhados nos diferentes órgãos do
Mercosul a avançarem no processo de
integração e a ampliarem as atribuições do
Parlamento do Mercosul, mas esse cenário
só será viável se houver vontade política
de progredir na integração econômica e
política por parte dos países-membros, o
que implicaria ceder soberania a órgãos
supranacionais. Não teria sentido criar um
parlamento adicional despido de funções
reais. Atualmente, os parlamentos nacionais são avaliados muito negativamente
nas pesquisas de opinião pública realizadas na América Latina. Qualquer parlamento supranacional teria que enfrentar
um grande ceticismo por parte da cidadania, que tenderia a vê-lo como mais um
mecanismo inventado pelos políticos para
enriquecerem à custa dos seus eleitores.
Em um cenário ainda pior, o Parlamento
do Mercosul poderia ser confrontado pelo
desinteresse geral; como acontece com o
Parlamento Europeu, que apesar da sua
legitimidade democrática direta e das suas
atribuições ampliadas é mal percebido
pela opinião pública e não é apreciado
pelos cidadãos europeus.
Em suma, tudo indica que falta ainda
um longo caminho para que o Mercosul
possa por em funcionamento um poder
legislativo transnacional que sirva de vínculo entre democracia e integração. Vale
lembrar que a instalação do Parlacen
tomou também mais de cinco anos, da
formulação da idéia até a sua implementação. No caso do Mercosul, foi o Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, que em
janeiro de 2003, no princípio do seu mandato, sugeriu a criação de um Parlamento
do Mercosul para aumentar a participação
dos cidadãos no processo de integração.
Cabe esperar que essa idéia seja levada à
prática com a possível brevidade, e que o
futuro Parlamento do Mercosul não seja
demasiado ambicioso e, por outro lado,
não se torne desde o princípio um foro
irrelevante.
95
ENSAIO
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96
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
Nota biográfica:
Susanne Gratius: Cientista política, responsável pela América Latina no Stiftung
Wissenschaft und Politik (SWP) (Instituto Alemão de Política Internacional e Segurança).
E-mail: [email protected]; homepage: http://www.swp-berlin.org/forscher/
forscherprofil.php?id=1344&PHPSESSID=32c67472ae315f6bbf3a191664a6560d
Delfet Nolte: Cientista político, Subdiretor do Instituto de Estudos Ibero-Americanos de
Hamburgo; professor na área de estudos latino-americanos e de ciência política na Universidade de Hamburgo. Áreas de investigação sobre a América Latina: reforma do Estado;
descentralização; sistemas políticos; parlamentos; direitos humanos; eleições; relações
internacionais (Alemanha-América Latina; União Européia- América Latina); relações cívicomilitares. E-mail: [email protected]; homepage: http://www.duei.de/iik/show.php/de/content/
mitarbeiter/nolte.html
NOTAS
Para comemorar esse aniversário foi publicado um número especial da revista Journal of Common Market Studies, intitulado
“The European Parliament at Fifty“ (vol. 41 (2003), n. 2
2
Assim, por exemplo, nos anos 1970, o Parlamento Europeu apresentou em média menos de mil questões escritas e menos de
500 orais, por ano. Depois da eleição direta, nos anos 1980, foram apresentadas em média 2250 questões escritas e cerca de
1000 orais, anualmente. Além disso, as audiências públicas das comissões parlamentares permanentes aumentaram de duas por
ano, entre 1974 e 1979, a vinte por ano no período 1980-1989 (Corbett 1998: 124-5).
3
Até julho de 2002, foram submetidas ao Parlamento Europeu 602 propostas legislativas, no quadro do procedimento de codecisão; destas, 417 concluíram a tramitação legislativa. Em 65 casos, o Conselho não conseguiu por-se de acordo, e cinco
propostas foram finalmente rejeitadas pelo Parlamento. 348 das propostas legislativas resultaram em decisões conjuntas do
Conselho e do Parlamento: em 236 casos sem entrar em processo de conciliação, e em 112 com base em proposta do Comitê de
Conciliação. Além disso, o Parlamento Europeu participou em 2.566 procedimentos de consulta, em 163 casos de consentimento
e 448 procedimentos de cooperação – mecanismo que deixou de existir (Maurer 2003:232-4).
4
Cada ano mais de cinco mil dessas perguntas são apresentadas por escrito pelos deputados ou grupos parlamentares.
5
Com relação à diferença entre “procedural legitimacy“ e “output-oriented legitimacy“ ver Scharpf (1999).
1
97
ENSAIO
* BONIFÁCIO DE ANDRADA
Fragilidade da Democracia
do Parlamento
Contemporâneo
Os avanços tecnológicos e os
novos patamares sócio-econômicos que
importantes camadas populacionais do
primeiro mundo estão atingindo vêm
provocando generalizadas repercussões
na sociedade e, sobretudo, nas instituições
políticas.
* Deputado Federal
98
Uma das áreas em que a sociedade
projeta suas maiores preocupações, através
dos seus setores mais expressivos, se
localiza nos mecanismos da democracia,
que precisam alcançar eficiências maiores
para conter demandas sociais, as mais
diversificadas, que resultam dos novos
aparatos tecnológicos de que dispõe o
homem moderno.
planetárias que se desdobram no cenário
em que vivemos.
Mas, se esses avanços tecnológicos
estão presentes em vários países
desenvolvidos, exigindo mudanças e
urgentes adaptações, a maior parte do
mundo, vítima das investidas negativas
da globalização, começa a ser cada vez
mais inserida em processos políticos
governamentais de forte tendência
autocrática ou mesmo ditatorial.
Todavia, a problemática há de ser
enfrentada com uma procura teórica
capacitada para viver e sentir os dados
pouco conhecidos que, surgidos em nossos
dias e compondo novas circunstâncias,
pouco são entendidos e apreendidos
pelas principais lideranças responsáveis
pelas soluções desta ordem social, tão
efervescente no cenário hodierno.
O quadro do mundo, portanto, oferece
alguns ângulos sombrios para a democracia,
pois que a tecnologia da globalização
exige dos países desenvolvidos novas
instrumentalizações democráticas para
direitos e garantias de bem-estar do
povo, enquanto que, em grandes parcelas
populacionais do planeta, os mesmos
indicativos globalizantes provocam sérias
deficiências para as técnicas governativas
que se baseiam nas liberdades públicas.
Cremos que, inicialmente, há que
se compreender os termos abstratos da
essência da democracia que possui, no
âmago da sua mensagem, valores bíblicos
a que se refere o ensinamento notável de
Bergson, mas que se completa nos seus
condicionamentos práticos com a visão
de Lincoln e de Duguit, quando aquele
define a democracia como o governo do
povo, pelo povo e para o povo, ou como
governo dos governados, exercido pela
representação dos governantes, segundo
aquele outro.
A democracia, portanto, precisa
ser reconstruída e, logicamente, a sua
instituição básica, o Parlamento, há de
ser reestruturado dentro dos postulados e
mecânicas novas que possam colocá-lo
sob inovadores imperativos de respostas
políticas adequadas ao nosso tempo.
A representação popular – que os
romanos de certa forma forjaram em seus
primeiros lances e que as instituições
inglesas, na metade do milênio, vão
promover com artifícios eficazes de
que se valerá a Revolução Francesa nas
suas alternativas democráticas, com
o constitucionalismo do século XIX –
exige, em nossa época, uma busca de
modelos institucionais que correspondam
à complexidade, ao pluralismo, à
heterogeneidade, ao participacionismo
e às conscientizações ecológicas e
Respeito total ao ser humano e
exercícios predominantes dos homens como
governados, delegando a alguns desses a
responsabilidade de governo: parece-nos
que nesse núcleo de entendimento se
situa a essência política da democracia.
E, partindo dos termos desta nucleação
da essência democrática é que devemos
repensar a democracia diante da fragilidade
que as forças sociais lhe impuseram no
tempo atual, repercutindo na sua principal
instituição que é o Parlamento, hoje tão
enfraquecido diante de elementos redutores
da sua plenitude.
Na realidade, em todo o mundo,
os impulsores da tecnologia alteraram de
maneira espetacular o ambiente psicossocial, onde os processos televisivos e a
99
ENSAIO
celeridade das informações computatoriais
criam, produzem, impõem às inteligências
outras formas de realidades, que, muitas
vezes virtuais, suplantam a realidade existencial.
As TV´s tendem a fomentar a presença de situações bem distantes das realidades sociais e, geralmente dominadas pelos
núcleos econômicos, enfraquecem e inferiorizam a consciência política, de acordo
com os interesses diretos e indiretos da
lucratividade.
Os grupos econômicos querem soluções rápidas para os seus pleitos e, quando
podem, atropelam ferozmente as instâncias político-sociais.
O Parlamento, que em outros
momentos históricos e em diversas nações
constituía o foco principal de poder, o
centro maior, a simbologia institucional
com significação elevada, hoje está abatido e atingido na sua expressão singular
por esses produtos acabados de uma mídia
poderosa, que lança sobre toda a sociedade verdadeiros “nevoeiros” informativos,
que dominam o ambiente absorvendo
(porque não dizê-lo?) mentes e corações. E
este espetáculo de desinstitucionalização
democrática através de implementações
provocadoras de alienação, com anestesias psicossociais que atingem o cérebro,
somente poderá ser superado e vencido
com a criatividade poderosa capaz de
defender a democracia, e dentro deste
desiderato, principalmente o Parlamento.
Neste quadro de fragilidades institucionais, há uma tendência natural histórica
de ocupação de espaço pelos elementos
representativos dos governantes que as
Constituições modernas intitulam de Poder
executivo, cujos agentes crescem e se
expandem, discriminando e comprimindo
100
- para não dizer, colocando em situação
acuada – os governados que constituem,
de fato, o povo, nos seus direitos de viver e
de participar de alguma forma nas magnas
decisões que dizem respeito à comunidade em que se integram.
E o crescimento e a presença imponente do poder executivo passam a ser
a solução simplificada que a tecnologia
moderna sustenta no seu vocacionamento
de celeridade e de busca da lucratividade
econômica.
Verifica-se assim, em vários países,
inclusive nas democracias mais clássicas
como a norte-americana, a inglesa e a
francesa, entre outras, a influência cada
vez mais intempestiva e cotidiana dos
respectivos governantes executivos, deixando enfraquecidas, de certa forma, em
maior ou menor tonalidade, as instituições
parlamentares que não conseguem mais a
audiência prioritária dos seus debates, das
suas críticas, das suas formulações, porque
tudo não alcança a área parlamentar com
os elevados patamares da predominância
dos agentes do poder executivo.
É que, de um lado, os grupos econômicos voltados para a lucratividade
influem no cenário informativo, e, de outro
lado, o processamento governamental do
executivo impõe, por meio dos segmentos
administrativos fiscais, creditícios, judiciários e policiais, toda a processualística
das informações e dos fornecimentos de
dados sobre a realidade, alterando a sua
retratação segundo os propósitos que tem
em vista.
Espremida nesse ambiente, a fragilidade do Parlamento não possui mais o
socorro dos Partidos Políticos que, também abatidos dentro deste “nevoeiro
midiológico”, dia-a-dia se submetem a
uma consistente infiltração de propagan-
BONIFÁCIO DE ANDRADA
das bem armadas contra os titulares da
vida pública, os políticos, considerados
deturpadores e dificultadores do processo
de desenvolvimento segundo o tecnocracismo dominante e agressivo.
Há também, no meio dessa mencionada complexibilidade, atores novos
que passam a assumir lugares de destaque nesse ambiente dos nossos dias, que
são as entidades transnacionais, supernacionais, formalizadas ou não, ou que
pressionam sob construção globalizante
as diversas nações, geralmente ferindo
elites ou classes políticas, quando aquelas
impõem roteiros perturbadores da estabilidade social de qualquer país.
Também nessas situações, estranhamente, o Parlamento e os Partidos Políticos
constituem objeto de maior crítica e rejeição por parte dos titulares tecnocráticos do
governo.
Outro elemento a se considerar nesse
cenário planetário de problemas, em relação ao Parlamento e aos partidos políticos,
encontrar-se-á na sistemática de governo
adotada pela nação. Indiscutivelmente, o
regime parlamentarista de Governo é um
auxiliar influente para a vivência democrática, enquanto que o presidencialismo
contém dentro de si, a todo instante, uma
vocação autocrática, sempre voltada para
as exceções institucionais em que se ferem
as liberdades públicas.
Nos países mais civilizados, de um
modo geral, prevalece o parlamentarismo,
mas nas Américas e nas áreas mais atrasadas do mundo, logicamente, há prioridades
para o presidencialismo, que comumente
é deturpado por governantes de exercício
ditatorial.
As Américas, sobretudo os países
do Caribe e do Continente Sul, vivem nestes últimos anos, agora alimentados pela
tecnologia e pela globalização, situações
expressivamente autoritárias, em que as
Constituições contém técnicas excepcionais de decisões autocráticas que passam
a ser utilizadas no dia-a-dia, como ocorre no Brasil com as chamadas “Medidas
Provisórias”. Há de se incluir, neste mesmo
quadro, a projeção de chefes de Estado
que, pela sua vocação autoritária, passam
a dominar o mundo político em detrimento das representações democráticas, como
de certa maneira ocorre com o atual presidente norte-americano.
Concomitantemente com esses diversificados condicionamentos, há ainda, em
muitos países, outras formas de predominância dos governantes em detrimento dos
governados, devido ao excesso de centralização político-administrativa em favor
das prerrogativas do poder executivo, com
reflexos nos mecanismos da Democracia,
que necessitam fortalecer os governados
quando estes, esquecidos e ignorados,
ficam longe dos centros de decisões institucionais.
Quando temos diante de todos nós
essas questões acima, verifica-se, logicamente, que o fortalecimento da democracia, do Parlamento e mesmo dos partidos
políticos que sustentam tal sistema encontrará o seu encaminhamento eficiente se
partirmos de um novo raciocínio, de um
repensar descritivo referencial da democracia, focalizando, primeiramente, os
seus dados básicos acima indicados.
Democracia são os valores evangélicos na filosofia bergsoniana, que identifica tal regime político com os ensinamentos do cristianismo. Democracia é governo
101
ENSAIO
que se envolve e se submete às dinâmicas
do povo na pregação lincolniana; e democracia também há de ser um esquema
prático em que se deve institucionalizar a
predominância dos governados, o povo,
em relação aos governantes no modelo
político visualizado por Duguit.
De início, portanto, a reedificação da
Democracia, segundo o postulado evangélico, resultará no combate ao crime e
às infrações pecaminosas que, em nossos
dias, são momentos cruéis como o terrorismo, a corrupção, o tráfico de drogas,
além das violências e da miséria no seio
de parcelas territoriais do planeta. Mas
há que se edificar instrumentos para que
se possa ouvir melhor e dialogar com
mais desenvoltura com o povo, fora do
imaginário doutrinário atualmente existente. Nas comunidades maiores, cidades,
bairros e vizinhanças impõe-se a criação
de inovadoras técnicas de fortalecimento
dos governados, sobretudo por intermédio
dos partidos políticos e, em especial, do
Parlamento, com processos psicossociais e
tecnológicos capazes de anular a neblina
ou nevoeiro midiológico, impedindo-se a
alienação e a anestesia política generalizada em favor de grupos de poder e de
atores novos da globalização.
Não se pode, pois, isolar do conceito
de democracia o Parlamento, que continua sendo o núcleo e o coração da vida
democrática para corresponder às exigências do regime de liberdade.
A sociedade precisa valorizar, para
viver sob o regime dos povos livres, o
plenário parlamentar, em que as grandes
questões são conhecidas e esclarecidas,
tendo em vista o apoio às prerrogativas populares e impugnação às infrações
tormentosas de desrespeito ao decálogo
102
evangélico, o qual constitui um permanente modo de pensar, conjunto de elencos do
subconsciente humano, um dado natural e
perene para o comportamento em todos os
momentos históricos.
Mas, além deste posicionamento de
reação contra os males sociais e políticos,
a sociedade, no Parlamento, encontra um
campo de debates e de discussões das
questões concretas que lhe dizem respeito,
diante das escolhas políticas e administrativas, em face das encruzilhadas com que
a comunidade se depara, para a solução
da problemática sócio-governativa que lhe
afeta.
Ao lado disso, o Parlamento, psicossocialmente falando, é a transmissão, a presença, o comparecimento dos reclames e
reivindicações populares, enfim, a voz
do povo por delegação deste, o que, em
nossos dias, não ocorre como no passado,
o que evidencia os seus aspectos deficitários que o impregnam de fragilidade, pois
não mais corresponde ao engajamento, às
exigências, tendências, apelos, inquietações, reclames, preocupações maiores e
menores, ditames de toda espécie que a
população, como povo, vive e incorpora
no seu dia-a-dia, no seu cotidiano.
É nesse ângulo lincolniano de instrumentação do regime através da técnica
institucional parlamentar, que os nossos
dias revelam falhas de inépcia na entidade legislativa, com reflexos negativos
para o modelo de liberdade política. E, na
medida em que esta dinâmica lincolniana
se enfraquece na sociedade, há reflexos
perigosos na ordem social, pois que a
visão de Duguit começa a perder o seu
sentido, afastando-se os governados, isto é,
o povo, dos centros de decisão, emergindo
cada vez mais fortes as ações autoritárias
BONIFÁCIO DE ANDRADA
dos governantes no que desregulamenta o
ambiente da democracia, enfraquecendo
o seu conteúdo e permitindo a expansão
dos agentes governantes sob clara vocação
autocrática.
Não se pode raciocinar, portanto,
sobre a problemática do Parlamento e de
sua fragilidade sem valer-se das conceituações de Bergson, Lincoln e Duguit, três
pensadores que alimentam elevados patamares do saber na filosofia, na prática política e no direito público clássico e, ainda,
sem se utilizar de uma visão de inspirações
fenomenológicas, partindo da realidade
viva da democracia atual nas diversas
comunidades nacionais do nosso tempo,
e abstraindo os principais dados da sua
essência para repensá-la e, sob retificações
concretas, reconstrui-la com apropriadas
condições existenciais para o século XXI.
De fato, os três pensadores nos revelam, como acima nos referimos, três ângulos essenciais da composição democrática,
da sua substância, para construir, partindo
de suas referências básicas, as instituições
necessárias e correspondentes às nossas
aspirações, todavia, reaparelhadas, reativadas e repreparadas para confrontarem-se
com as incertezas, incoerências, disparidades e marcas enigmáticas que dominam o
nosso presente e mais ainda o futuro.
O Parlamento, para acudir a democracia em nossa época, precisa edificar-se
sob rigorosas formas que venham a superar suas acrescidas fragilidades, para ser o
plenário dos debates informativos da vida
governamental, apontando erros, deficiências, corrupções, irregularidades, defeitos,
vícios e deturpações, sobre uma arena
em que os gladiadores da representação
popular possam lutar contra tais demônios
sociais que invadem o seu solo, com
o fim de anular os delegados do povo,
procurando imobilizá-los e desmoralizálos.
Outro problema básico é o da formulação de técnicas eleitorais capazes de
purificar a representação parlamentar, não
só nos aspectos éticos de seus integrantes,
contudo, ainda, nos ângulos de eficiência
e conhecimentos da coisa pública que prejudicam a eficiente ação política e administrativa.
Mas não basta, porém, a existência
de uma arena plenarial com bons gladiadores para combater as feras da corrupção,
da prevaricação, da ineficiência e da incapacidade. Impõe-se, ainda, que a arena
parlamentar tenha ressonância no seio do
povo para que esse possa ocupar as galerias maiores e expansivas, e venha a se
integrar, vendo e acompanhando, aplaudindo ou não, porém com pleno conhecimento das atitudes e do comportamento
dos representantes do povo, em face das
maiores questões nacionais e das menores,
de interesse comunitário.
E esta é outra problemática, pois a
tecnologia dos veículos de comunicação e
das informações conduz os acontecimentos em desfavor, comumente, do verdadeiro noticiário democrático.
Se as tecnologias das informações se
submeterem aos interesses da tecnocracia
pública ou empresarial, de vocação autocrática, através dos nevoeiros midiológicos
impedirá o povo de acompanhar, de observar e analisar as atitudes parlamentares e
os debates decorrentes do convívio destes
na representação popular. Também aí a
fragilidade do Parlamento pode resultar na
sua anulação sob reflexos antidemocráticos perigosos, em que o predomínio da
tecnocracia pública e empresarial, de nível
103
ENSAIO
nacional ou internacional, deturpará os alicerces do regime de liberdade, reduzindo
a capacidade do Parlamento em favor de
interesses pouco confessáveis.
Não haverá, assim, a dinâmica lincolniana, criadora da substância concreta
da democracia, em detrimento da influência da população no encaminhamento
das coisas públicas. Por outro lado, a
democracia é governo dos governados,
onde há predominância do povo. Ora, se
o povo não tem condições de se articular
com o Parlamento em virtude das distorções das tecnologias de informação, se ele
não pode estar presente, através de seus
delegados, na participação decisória das
grandes tomadas de posição do governo, dificilmente haverá a predominância
democrática da sua presença e do seu
comparecimento para influir e pesar na
escolha de diretrizes do governo, caindo,
assim, a titularidade dos governados a um
plano de insignificância política.
Tudo isso nos obriga a repensar institucionalmente a democracia através do
Parlamento, para que se possa, com urgência, superar estas complexidades que dificultam a instituição e o regime.
Verifica-se, para tanto, que a sistemática de escolha dos representantes do povo
e a formação dos partidos devem obedecer
regras atualizadas, que venham a fortalecer
estes e permitir a melhor escolha daqueles, em favor de delegados populares, de
comportamento ético, vinculação com a
comunidade e preparação intelectual que
satisfaça o enfrentamento dos obstáculos
comunitários e nacionais de nossa época.
Há que se anularem as possibilidades de nevoeiro midiológico, que resulta
em pleitos presidenciais do tipo Collor,
permitindo-se um entendimento informa104
tivo maior para o povo, o que os partidos
realmente com bases populares e núcleos
políticos locais poderão alcançar através
de lideranças básicas e de engajamento
com o povo.
Mas, ao lado destes influentes condicionamentos, novos modelos ao lado do
Parlamento precisam ser instituídos para
que a presença do povo se transforme em
fator real de manutenção democrática, em
que o cidadão possa fazer valer os seus
direitos diante de uma burocracia insuportável, que arma fiscais do fisco com
apetrechos violentos e agressivos contra
os pequenos comerciantes e correlatos
segmentos sociais, enfraquecendo, ainda,
a cidadania, diante dos outros tipos de
agentes públicos sanguinolentos da área
da previdência, do policiamento geral e
especializado, da área de vários serviços
públicos, que se alinham no desfavor e
no desrespeito revoltante aos direitos dos
integrantes da população, muitos de condições humildes, e poucos alfabetizados,
de variadas regiões.
Estas medidas institucionais, todavia,
só podem ser concretizadas se lideranças
capazes, partidos reestruturados, sem as
esdrúxulas limitações de leis conflitantes
da Carta Magna, possam de fato atuar com
eficiência.
Se mergulharmos na realidade concreta de diversos países, sobretudo na
América Latina, no mundo africano e
asiático, localizaremos estas deturpações
que fortalecem os governantes, no caso
ibero-americano com largas tendências
à ressurreição da caudilhagem. Nestas
nações, as fragilidades acima se desdobram em lamentáveis peculiaridades, em
que a vocação autoritária do passado se
alimenta diante da fraqueza de parlamen-
BONIFÁCIO DE ANDRADA
tos pouco integrados ou engajados nas
reivindicações populares.
No caso do Brasil, a fragilidade do
Parlamento decorre de vários fatores, quais
sejam aqueles de ordem constitucional, o
do enfraquecimento dos partidos no atual
sistema eleitoral, as práticas administrativas negadoras das próprias leis vigentes, a
perigosa situação social da população discriminada, além do atual nevoeiro midiológico, que tende, em termos genéricos,
a fortalecer o Poder Executivo, apesar
do problemático quadro político-governamental em que nos encontramos.
A Constituição de nosso país foi
discutida e votada numa época desajustada, pois que a representação constituinte,
ao contrário de se voltar para o futuro
e preparar o País para as conquistas do
amanhã, voltou-se em termos obsessivos
para as práticas dos governos militares que
se impuseram à nação, a partir de 1964,
procurando promover medidas que impedissem a repetição daquelas, mas, curiosamente, por razões pouco decifráveis, mantendo e alargando técnicas constitucionais
e legais perigosas e impróprias para um
país na busca da democracia.
por terem ligações com as autoridades
estaduais, a se filiarem às bases políticas
parlamentares do Governo Federal, aumentando, assim, a fragilidade do Parlamento
Brasileiro, limitando as suas manifestações
legislativas.
E essa fragilidade do Parlamento em
nosso país é acrescida de uma forma
estranha e exagerada, quando analisamos, amparados em Loewenstein, os Três
Poderes da República, o funcionamento
de cada um deles e as suas relações institucionais. O Poder Legislativo do Brasil de
hoje é o mais fraco de toda nossa história
constitucional, deixando de lado a sua inexistência durante a ditadura Vargas, quando estava fechado, e as limitações drásticas
que lhe impuseram os Atos Institucionais
nos governos militares, embora permitindo
o seu distorcido funcionamento.
A forma de Estado adotada inspirouse muito mais nas engrenagens de governos militares do que nas melhores tradições do Federalismo brasileiro, mantendo
os excessos do poder central com todas
as atribuições que foram dadas à União, e
enfraquecendo as unidades federadas em
termos discriminatórios.
Mas, se analisarmos a Constituição
de 1988, atualmente em vigor, e a Carta
de 1967, temos hoje um Parlamento mais
frágil diante de um Poder Executivo que
agora é mais autocrático que o daquela época. O chamado “Decreto-Lei” de
1967 é menos autoritário que as “Medidas
Provisórias” de 1988, e as atribuições
legislativas do Executivo, na atualidade,
são superiores em índices autocráticos
aos daquela Carta Magna, fruto do hiato
constitucional do período militar. Os
próprios partidos políticos, embora sob as
malhas estranhas de uma legislação que os
tornava matéria de Direito Público, viviam
debates e confrontos de melhor validade
democrática do que em nossos dias.
No imenso país como o Brasil, não
há Federação, mas um poder central que,
pela sua fortaleza, domina politicamente
os governadores e as unidades federadas,
obrigando indiretamente todos os Partidos,
A estrutura econômica-financeira
instituída em 1988 nos trouxe falhas de tal
gravidade que já foi modificada com mais
de trinta Emendas Constitucionais, e o sistema constitucional tende a enfraquecer,
105
ENSAIO
neste particular, nossa democracia, porque
dá ao Poder Executivo excepcionais competências no campo econômico-financeiro para anular o Orçamento por meios
indiretos e oblíquos. Também as abusivas
atribuições que confere aos agentes fiscais e previdenciários, para extorquir da
população tributos e contribuições, permitem, ilegalmente, o predomínio de normas
regulamentares em detrimento da lei e da
Constituição.
Há de se acrescentar, além de tudo
isso, que a fragilidade do Parlamento no
Brasil também é alimentada pelo poderio
do Executivo na área das informações e
da notícia política, impondo às empresas
detentoras dos veículos de comunicação
as principais diretrizes do noticiário político, capazes de construir os perigosos
nevoeiros midiológicos alienadores da
população.
A Constituição de 1988 contém uma
técnica sem precedentes e desconhecida
do mundo ocidental no relacionamento do
poder legislativo com o poder judiciário,
fragilizando também o Parlamento. No seu
texto foi criada uma expressa tutela judiciária sobre o Legislativo, enfraquecendoo por um complexo controle da constitucionalidade das leis, que se concretiza
de forma dupla, utilizando-se ao mesmo
tempo a técnica da Corte norte-americana
e, ainda, a dos Tribunais Europeus, o que
deteriora a capacidade de produzir a lei e,
especialmente, a sua vigência. Não contente com tais acúmulos de meios revogadores de lei por inconstitucionalidade, a
Carta Magna institui uma tutela judiciária
maior, dando praticamente ao Supremo
Tribunal Federal a competência de declarar nulas as Emendas Constitucionais, pois
o constituinte de 1988 alargou os itens
106
das cláusulas pétreas, permitindo assim
este novo tipo de declaração de “super
inconstitucionalidade”. Não fosse o equilíbrio e a prudência dos ministros do
STF, graves conflitos ocorreriam entre os
Poderes, o que no futuro poderá, infelizmente, se concretizar.
Perigoso mal que fere as fontes da
legislação, enfraquecedor do Parlamento,
constitui, diante de nós, o processo de produção de normas regulamentares, detrator
do Poder Legislativo ao se desrespeitar
generalizadamente as leis, substituindo-as
por regras infralegais ou subleis advindas da tecnocracia atuante e eficiente do
Poder Executivo.
Na prática, a lei votada pelo Congresso
perde sua vigência, substituída pela norma
administrativa do Poder Executivo, nas
práticas do dia-a-dia da Administração.
O fenômeno da subnormatividade
legal entre nós vem, desde os governos
militares, assumindo uma situação que
implementa, em termos permanentes, a
deformidade da ordem jurídica, enfraquecendo a força da lei e a eficiência jurídica da legislação votada pelo Congresso
Nacional.
É uma curiosa mas triste ocorrência,
nestes últimos 30 anos, que a Constituição
de 88 não soube corrigir e os governos sob
a vigência da Carta Magna atual não tiveram a capacidade de retificar. Os governos
militares, antes da Constituição de 1967,
criaram novos tipos de normas legais,
como os Atos Institucionais, em nível de lei
constitucional, os Atos Complementares,
em nível de leis complementares e os
Decretos-Lei, em nível de lei ordinária,
mas prestigiaram muito os Decretos, que
são elementos normativos de nível regulamentar, e iniciaram, juntamente com este
BONIFÁCIO DE ANDRADA
algumas técnicas infra-regulamentares com
certa força jurídica, como as Resoluções,
as Portarias, as Instruções e outros mecanismos reguladores que, estranhamente,
ganharam maior projeção após 1988.
De fato, esta área nos governos militares pouco a pouco deu força aos burocratas que, de assessores, se transformaram
em técnicos burocratas e, especialmente
no setor econômico-financeiro, assumiram
as principais manifestações administrativas do governo. Cresceu, assim, no País o
seguimento tecnocrático que, no silêncio,
se transformou na principal força política de influências político-administrativas
dentro do poder público, com uma linguagem ultra-racionalista que coincidia
com o falar e o modo de entender dos
militares. Esse seguimento tecnocrático,
indiscutivelmente detentor de significativas informações de interesse público, vai
predominar, embora com menos ênfase,
no hiato constitucional de 67.
Todavia reaparece, poderosíssimo,
após o golpe de Estado de 1969, com a
chamada Emenda Constitucional nº 1,
daquele ano, mas, o que é estranho, deverá se fortalecer mais ainda após o evento constitucional de 1988, e, graças ao
texto analítico e expansivo da Constituição
deste ano, consegue se manter assim dentro do governo central até os dias presentes. Influem nas decisões maiores do País
e encaminham soluções sob esta visão
ultra-racionalista, alienada da sociedade,
dispondo também de Medidas Provisórias,
frutos de seus escritos em diversas áreas,
especialmente no campo tributário, fiscal, previdenciário, e de certa maneira,
no educacional e da saúde, conseguindo implantar “subnormas legais” sob as
denominações conhecidas de portarias,
resoluções, etc., que na maioria das vezes
conflitam com as leis ou substituem estas
de forma abusiva, e, em certos casos, até
suprimem ou complementam as cláusulas
constitucionais.
O fenômeno antijurídico é estranho,
mas há exemplo de contorno patológico
de teor atraente para o cientista político.
Vejamos: o fiscal ou o agente público
chega diante de um contribuinte ou cidadão qualquer e lhe apresenta uma portaria
ou resolução que contraria frontalmente
a lei e a Constituição, exigindo-lhe algo
e ameaçando-o com multas ou penalidades perigosas e até mesmo com a prisão.
O cidadão se revolta contra a portaria
ministerial ou departamental, cheia de
irregularidades e, de imediato, o agente do
poder público o pune com multas e outras
arbitrariedades.
O cidadão recorre dentro dos trâmites administrativos, mas as autoridades
superiores não recebem o recurso e até
“debocham” do “pobre coitado”. O cidadão contribuinte indignado dá entrada no
Judiciário com uma providência enquadrada plenamente na lei para se defender,
com boas bases jurídicas e bom advogado,
mas o Judiciário vai demorar de 5 a 10
anos para atendê-lo. E assim, na prática,
a subnorma ilegal e arbitrária do fiscal
da previdência ou tributário, ou de outro
setor do governo, prevalece e predomina,
anulando o texto constitucional ou o texto
da lei e criando, desta forma, uma volumosa e expressiva atividade em detrimento
das leis, isto é, em detrimento da produção legislativa do Congresso Nacional,
provocando uma sinistra fragilidade na
ordem jurídica, de efeitos graves contra o
Parlamento.
Há em nosso país, ao lado desses
ângulos de deficiência, um sistema eleitoral que através do chamado voto uni107
ENSAIO
nominal deturpa e dificulta o processo
de escolha dos representantes do povo,
permitindo o predomínio dos meios corruptivos e da força financeira nas eleições
de toda espécie ocorridas entre nós.
Pelo voto uninominal o eleitor, na
prática, vota diretamente no candidato
a deputado federal ou estadual, ficando
esquecida e ignorada de todos a importância do partido no processo eleitoral,
porque ele se torna, fatidicamente, um
inexpressivo artifício da lei.
Quando os partidos eram fortes,
antes de 1964, com a UDN, PSD, PTB,
etc., o eleitor identificava o candidato com
a agremiação partidária, e o pessedista, o
udenista e outros comportavam-se partindo da fidelidade à sua agremiação, para
depois escolherem o candidato. Depois
de 64, os partidos deixaram de ser um
fenômeno político para se transformarem
numa instituição jurídica, e isto em tais
termos que o Judiciário intervinha e participava do funcionamento partidário, submetido a uma técnica de estratégia política
dos militares que procuravam disciplinar
as tendências – subterrâneas, mas, ainda
vivas – das antigas agremiações (UDN,
PSD, etc.) que pretendiam anular, inclusive, com providências paulatinas como
a criação das chamadas sublegendas que
funcionavam dentro da ARENA e MDB,
instituídas pelos governos militares.
Com o natural enfraquecimento
desses partidos políticos artificiais, germinou por todo o País o descrédito que
hoje persiste em relação às agremiações
partidárias, substituídas silenciosamente,
em muitas áreas, por “forças políticas”
informais como o seguimento tecnocrático
e outras manifestações como os agrupamentos religiosos, etc.
108
Nesta crise de patologia políticopartidária, o voto uninominal dentro do
sistema proporcional se transforma num
fenômeno de forte realidade sócio-política, porém, ao mesmo tempo, assume
aspectos de grave deturpação antidemocrática. De fato, no passado, este sistema
era válido e teve seu sentido, mas agora
se transformou numa amarga experiência
para a democracia.
Entre os aspectos deprimentes da sua
presença como instituto eleitoral, basta a
descrição dos custos da campanha eleitoral e dos votos necessários para se eleger
um candidato, dados estes que são evidentes ao observador.
Atualmente, em Minas Gerais, um
candidato, para ter a sua eleição garantida, de um modo geral, necessita de 100
mil votos, o mesmo acontecendo no Rio
Grande do Sul, mas em São Paulo ele
necessita de mais ou menos 200 mil votos.
Ora, um candidato, para se eleger em pleitos deste tipo, há de organizar, seis meses
antes do pleito, uma verdadeira empresa eleitoral para cuidar das providências
jurídico-eleitorais, promover dezenas de
comícios com shows e outros espetáculos,
implantar outdoors em diversos locais, editar milhões de cartazes pequenos e grandes. Deverá, ainda, reunir equipes administrativas dos respectivos trabalhos, para
deslocá-las com veículos e outros meios
visitando, no mínimo, 50, 70 localidades.
Pessoalmente o candidato deverá
alcançar rápida mobilidade de sua presença em muitas áreas de ação para, em dezenas de cidades e centenas de lugares, fazer
reuniões, realizar pesquisas que possam
orientá-lo no comportamento de busca de
votos, cuidar, inclusive, de sua segurança
e da mesma em relação a comícios e
reuniões, além de organizar uma eficiente
BONIFÁCIO DE ANDRADA
equipe de gerenciamento de tudo isso. Esse
espetáculo, que é logicamente de elevadíssimo custo financeiro, dificilmente será
acessível a um político de classe média,
pois é inviável para as melhores vocações
que não tenham atrás de si adequados
recursos financeiros próprios ou de grupos
econômicos que, por razões específicas,
desejam eleger um candidato.
É verdade que há exceções, mas
dentro do processo do voto uninominal
elas tendem a desaparecer para cair numa
regra geral em que as Assembléias e a
Câmara Federal tornar-se-ão um plenário
inacessível e inviável para aquela grande
maioria de profissionais da classe média,
isto é, aquele tipo de homem público com
bom índice de capacidade e inteligência
pessoal que povoou o Congresso Nacional
até a década de 80, e com o brilho dos
melhores debates parlamentares de nossa
vida republicana.
Esse problema é da maior seriedade
e a proposta da chamada “Lista Fechada”,
ainda sob o sistema proporcional em que
o eleitor votará no Partido e este, internamente, escolherá a lista de seus candidatos
preferidos, politicamente falando constitui a solução encontrada e praticada no
mundo europeu, como também em países
das Américas, com êxito democrático bem
salutar.
Verifica-se, assim, que hoje no Brasil
também o sistema eleitoral é um dos fatores de fragilidade do Parlamento que, diaa-dia, tende a ser ocupado por milionários,
por representantes de grupos econômicos,
por representantes de seguimentos sociais
financeiramente influentes e por comparecimento episódico de alguns, comumente
frutos do estrelismo da mídia ou das pregações religiosas, havendo, logicamente,
algumas exceções que não irão perdurar.
Em face destas questões, urge que a
criatividade do pensamento político e a
capacidade de novas lideranças saibam,
em nosso país, promover o revigoramento
de nossa democracia e, em decorrência
disto, do Parlamento, formulando modelos
capazes de exigentes adaptações nas quais
devam predominar os governados através
de seus representantes, anulando as manifestações autoritárias da tecnocracia, superando o “nevoeiro midiológico” que aliena
o povo, criando formas de maior intercomunicação e integração com a população,
mas, principalmente, afastando e punindo
a corrupção, as colocações terroristas, a
chamada advocacia administrativa e impedindo a influência de seguimentos empresariais inescrupulosos que preponderam
na feitura do Orçamento e na sua própria
execução em face das necessidades do
País.
Se tais questões são formuladas e
objetos de reflexão diante do quadro brasileiro, o que ocorre em outros países,
mesmo no mundo ocidental, pelos temas
e pelas dificuldades sócio-políticas que
atravessam, tudo nos revela perigosamente
que estamos diante de um novo século,
investido de graves complexidades, de
incertezas, de incoerências, de enigmas,
de frustrações que infelizmente a Ciência
e a Tecnologia, ao contrário de nos socorrer, abrem novas arestas e, até porque não
dizê-lo, novos universos de preocupantes
indefinições.
É, sob certa forma, curioso o que
ocorreu com as gerações pretéritas de
nossos avós do princípio do século XX em
relação ao convívio daqueles que habitam
o presente. Havia muito mais, naqueles
atores antigos, uma certeza, uma confiança, uma visão esperançosa com o porvir e
com o futuro em todos os aspectos da vida,
109
ENSAIO
do que hoje quando faltam esperanças à
atual geração, que é a nossa, tão cheia
de temores com o presente e mais ainda
com o futuro. Aliás, a tecnologia, além de
tudo, aumenta enfaticamente a separação
do mundo dos muito ricos, aliás, pouco
povoado, e o mundo dos mais pobres, sob
excesso de população, que por razões múltiplas, inclusive psicopatológicas, tende a
erigir e revigorar as lideranças agressivas,
reivindicantes e quase sempre contestatórias.
A democracia e o Parlamento portanto, aquela como regime político e sob
certo aspecto “forma de vida”, e esse outro
como sua principal alavanca, confrontamse com esse cenário de sombras tecnológicas do futuro, com tantas suposições
de riquezas mecânicas e virtuais, mas sob
tantas formulações imaginárias negativas
ou nuvens cinzentas de perigos.
O homem e
o líder moderno,
o governante e o
estadista coetâneo
necessitam alcançar
informações
cada vez mais claras
dentro desta complexidade e possuir
uma inteligência
ativa, mas treinada para enfrentar
esta problemática
complexa que diaa-dia cresce diante de todos, avoluma-se com riscos
e obstáculos que
não bastam apenas
a intelectualidade
humana resolver,
porque necessita, e
110
muito, da fé em Deus e da presença dos
ensinamentos evangélicos que aprimoram
o espírito humano.
A democracia precisa preexistir, continuar ao lado da sua âncora principal que
é o Parlamento, como obra fundamental
para o convívio humano. Todavia, há de
revestir-se de vestuário eficaz e modernizante, utilizando as novas ferramentas da
tecnologia de modo que possa reconstruir-se sob as indicações da sua essência
decorrentes dos valores bíblicos, do envolvimento participativo do povo e da predominância da vontade dos governados
através dos seus representantes.
Esta é a mensagem que nos deixam
os pensadores maiores e a vivência política da experiência humana.
BONIFÁCIO DE ANDRADA
BIBLIOGRAFIA
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TOFFLER, Alvin. Powershift. As Mudanças do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1990.
111
ENSAIO
* GUSTAVO FRUET
Processo de Integração dos
Legislativos no Mercosul
Em 25 de setembro de 2003, na
cidade de Montevidéu, aconteceu o
Encontro de Presidentes de Câmaras dos
Poderes Legislativos dos Estados Partes
do Mercosul. A organização do evento
esteve a cargo da Presidência Pro Tempore
do Uruguai, da Comissão Parlamentar
Conjunta e com apoio técnico de sua
Secretaria Permanente e da Secretaria do
Mercosul. A coordenação científica foi
de responsabilidade do CEDI – Centro de
Estudos de Direito Internacional. Tratou-se
de iniciativa importante e indispensável
* Deputado Federal
112
na consecução do projeto sul-americano
de integração, particularmente neste
momento histórico em que os legislativos
têm a responsabilidade de interagir e
debater com seus co-irmãos os rumos das
negociações da Área de Livre Comércio
das Américas (ALCA).
Do ponto de vista político, a interação
dos Legislativos está em harmonia com
as ações do Executivo, especialmente o
brasileiro, que tem tido na pessoa do
Presidente Lula um incansável protagonista
do processo de integração, em face do
desafio-benefício que o processo representa
do ponto de vista histórico, econômico e
social, sem ignorar o trabalho diplomático
realizado no governo anterior e os ganhos
auferidos com a reconhecida inserção
do país como importante ator no cenário
internacional.
Se de um lado registra-se o
entusiasmo pela realização do evento,
preocupa que as discussões de um futuro
Parlamento do Mercosul não estejam sendo
acompanhadas de necessárias reflexões no
que concerne às adaptações (modificações)
constitucionais indispensáveis, que nos
permitam ingressar no processo de igual
para igual, em especial, à necessidade de
haver, expressa na Constituição, autorização
para que o Brasil possa submeter-se a
um regime de supranacionalidade. Em
outras palavras, é premente a existência
de norma constitucional autorizativa que
preveja a possibilidade de o país aderir a
tratados que venham a criar instâncias (ou
instituições) supranacionais.
O Paraguai, em 1992, e a Argentina,
em 1994, cuidaram de imprimir as reformas
necessárias ao objetivo integracionista, o
que ainda não ocorreu entre nós e nem
no Uruguai. A reconhecida assimetria
constitucional existente entre os Estados
Partes não é apenas uma questão
acadêmica. É, induvidosamente, muito
mais do que isso, na medida em que o
Tratado de Assunção estabelece, em seu
artigo 2º, que o Mercado Comum estará
fundado na reciprocidade de direitos e
obrigações.
Além disso, quando a Constituição
da República Argentina trata do tema
supranacionalidade – vale dizer, quando
autoriza que o Estado argentino subscreva
tratados que deleguem competência e
jurisdição a organizações supra-estatais,
o faz na premissa de que haja dos seus
parceiros condição de reciprocidade (inciso
24 do artigo 75 da referida Constituição).
É importante avançar no tema da
criação do Parlamento para o Mercosul.
Todavia, antes que venhamos a assumir
compromissos internacionais cujo mérito
é importante, não podemos nos deixar
levar pelo entusiasmo ingênuo da palavra.
Eventual proposta nesse sentido deve-se
fazer acompanhar de providências internas,
legais e constitucionais, sem as quais não
se poderá atender adequadamente ao
que preceitua o Tratado de Assunção e a
vocação integracionista de que cuida o
parágrafo único do artigo 4º da Constituição
brasileira.
Na oportunidade, saliente-se que
a experiência européia não prescindiu
de exigir dos países-membros que se
preparassem constitucionalmente para a
almejada integração. É verdade que existem
diferenças marcantes entre o Mercosul e a
União Européia. A começar, por exemplo,
com o registro de que lá o mercado comum
nasceu com o Tratado de Roma, de 1957,
enquanto aqui o mercado comum é um
objetivo a ser alcançado, após vencermos
a consolidação da união aduaneira.
Na União Européia convencionouse a criação imediata de instituições
supranacionais, ao passo que no
Mercosul seguimos o modelo clássico de
instituições intergovernamentais, com
decisões tomadas por consenso e por
unanimidade.
O sistema de solução de controvérsias
na União Européia é permanente, com
delegação de competência ao Tribunal
de Justiça para deliberar soberanamente
sobre o direito comunitário, originário ou
derivado (regulamentos e diretivas). No
Mercosul não se tem, ainda, um sistema
113
ENSAIO
permanente, valendo-se da arbitragem ad
hoc, nos termos do Protocolo de Brasília,
re-ratificado pelo de Olivos, que criou
uma instância permanente de revisão, cuja
configuração é objeto de muitas críticas.
As normas comunitárias, vale
dizer, as normas geradas no âmbito do
Conselho e da Comissão Européia, têm
aplicabilidade direta e imediata nos
Estados Partes, enquanto que no Mercosul
as normas editadas pelas suas instituições
demandam processo de incorporação aos
ordenamentos jurídicos nacionais, com
o inconveniente de que, tanto no Brasil
quanto no Uruguai, não se têm norma que
discipline o conflito entre tratado e norma
interna, o que não se compadece com a
desejada segurança jurídica.
Diante desse quadro, vê-se com certa
perplexidade essa onda que antecede a
discussão de um futuro Parlamento para o
Mercosul. Como congressista, convencido
de que os parlamentos constituem o seio
próprio de discussões da cidadania, sendo
o regime de representatividade um dos
pilares da democracia, os debates para
criação de um Parlamento para o Mercosul
ainda são prematuros, na medida em
que se tem de fazer, primeiramente,
o dever de casa e dotar a Constituição
e o ordenamento jurídico brasileiro de
normas que dêem substância e amparo às
negociações internacionais.
Destaque-se o exemplo europeu,
mais uma vez, para assinalar que, passados
quase 50 anos do Tratado de Roma, com
todos os avanços que se seguiram até
a união monetária européia, ainda hoje
o Parlamento Europeu é uma figura
secundária e coadjuvante no processo
de integração, à míngua de poderes
efetivos para revelar os verdadeiros
interesses dos cidadãos lá representados.
Na consideração de que o Mercosul
114
recém completou sua primeira década,
e, ainda, de que historicamente nosso
projeto de integração pautou-se pela
intergovernabilidade, pergunta-se a que se
propõe o Parlamento do Mercosul? Quais
serão suas atribuições? Sua composição
e divisão de cadeiras observará quais
critérios: território e população?
No sistema constitucional atual,
sobretudo no Brasil e no Uruguai, é possível
imaginar que uma norma aprovada pelo
eventual e futuro Parlamento do Mercosul
produza efeitos imediatos e diretos nos
Estados Partes?
Diante da nossa Constituição Federal
(artigo 17) e da legislação eleitoral, podese imaginar a existência de partidos
supranacionais? Ou ainda, é possível
imaginar a formação de grupos políticos
– à semelhança do que ocorre na União
Européia – diante da proibição legal de
que os partidos recebam doação em
dinheiro, ou estimável, de entidades ou
governo estrangeiro? E como fica, por
exemplo, a questão do fundo partidário
brasileiro, o acesso dos partidos ao rádio
e à televisão e o sistema de financiamento
de campanhas?
Registre-se que se deve acreditar
nos bons propósitos do projeto, com a
realização de diversos seminários e ciclos
de conferências sobre temas instigantes,
como a imunidade de jurisdição.
Espera-se, entretanto, que as
autoridades envolvidas neste processo
estejam cientes dos obstáculos de natureza
constitucional e legal que envolvem a
criação de um parlamento para o Mercosul,
a fim de que não se crie mais uma bolha
de expectativa que frustre o esforço que
vem sendo feito em prol da integração do
continente sul-americano.
MAURO SANTAYANA*
ENSAIO
Política, Parlamento,
Democracia
Um dos mais antigos discursos
políticos é a Oração pelos Primeiros Caídos
na Guerra do Peloponeso, pronunciado em
431 AC, por Péricles, o grande estadista de
Atenas.
Nesse discurso, que serve de modelo
para todos os pronunciamentos políticos
posteriores, Péricles diz que a pólis, ou,
seja, a comunidade, é formada somente por
aqueles que se interessam pelos assuntos
públicos. Esses, diz o discurso, merecem o
respeito de todos. Os que assim não agem
devem ser desprezados.
Cícero, o grande político, jurista e
orador de Roma Antiga, em seu livro sobre
a República, diz que o povo é constituído
pelos que se interessam pela coisa pública.
Em sua visão, os desinteressados não faziam
parte do povo, e constituíam apenas a
plebe.
Cícero faz essa distinção entre “povo”
e “plebe”, embora até então, a plebe fosse
vista como parte do “populum” romano, e
só se distinguisse dos patrícios, ou seja, da
nobreza. A expressão “plebe”, em termos
políticos, tinha significação respeitosa,
* JORNALISTA
115
ENSAIO
uma vez que os plebeus, quando queriam,
participavam da política, e contavam com
seus representantes junto ao poder, os
tribunos.
Para Cícero, o povo romano era
constituído dos patrícios e daquela parte
da plebe que se interessava pela política.
A outra parte era simplesmente a turba, ou
seja, o conjunto de indivíduos sem preocupação com a vida coletiva.
A distinção entre os que são cidadãos
e os indiferentes à política é importante
quando, entre outras coisas, se discute o
problema do voto facultativo. Definido o
que seja povo, como detentor do poder, é
possível estudar a evolução da política do
homem.
Os seres humanos começam a distinguir-se na natureza no mesmo momento
– e um momento, em termos históricos,
pode durar dezenas e dezenas de milhares
de anos – em que começam a comunicar-se uns com os outros, e aprendem a
trabalhar juntos. Essa é uma etapa importante, porque, nela, o ser humano também
se descobre e, nos limites da sua mente em
formação, pergunta-se sobre si mesmo.
Sem entender – e continuamos a não
entender – a razão de estar no mundo,
o homem primitivo inventa os deuses.
Inventar é um bom vocábulo, porque
inventar não só significa criar alguma
coisa, mas, sobretudo, descobrir alguma
coisa. Toda criação é uma descoberta.
Naquele momento, o homem passa
a ser protegido pela idéia de Deus. Isso
significa, também, estabelecer uma certa
ética, que se funda na obrigação de manter
a vida como uma concessão divina. Essa
ética se revela, em primeiro lugar, na condução da vida familiar: o macho deve proteger sua mulher e os seus descendentes.
116
Quando ele se associa aos seus
vizinhos e parentes, para a segurança
comum, essa ética passa a ser da convivência e da cooperação entre todos. É
nesse momento que nasce a consciência
de grupo, que irá evoluir até a idéia de
nação.
Embora não tenhamos registros históricos daquele tempo, não é difícil reconstituir a vida pré-histórica. Na verdade, o
mundo atual vive, contemporaneamente,
todas as suas idades.
Há, ainda, sociedades muito primitivas. Embora elas se reduzam rapidamente, certas tribos autóctones, como a dos
ianomâni, no Brasil, permitem estudos
antropológicos que nos dão a idéia de
como todos os seres humanos viviam na
Pré-História.
É assim que podemos entender o
surgimento da política, do Estado e do
Parlamento. Como sempre, é bom trabalhar pensando na linguagem. Política,
como grande parte dos vocábulos de todas
as línguas européias, é uma palavra grega.
Ela vem de “polis”, que quer dizer comunidade citadina.
Não é simplesmente “cidade”; é mais
do que isso. É o conjunto das pessoas que
se interessam pela comunidade, ou seja, o
conjunto dos cidadãos. A palavra “polis”,
no léxico político grego, pressupõe a ordem
social baseada na fraternidade.
Por isso mesmo, a palavra “politeía”,
ou, seja, república, ou ação política, que
significavam a mesma coisa, era definida por Aristóteles como “amizade entre
vizinhos”.
Nas sociedades primitivas, ainda que
ela não se manifeste de forma muito clara,
a primeira autoridade é a dos deuses. Em
sua grande obra, que influenciou Hegel,
MAURO SANTAYANA
Marx e outros pensadores modernos, o
historiador italiano Gianbattista Vico dividiu a História em três fases, na sua obra
“Scienza Nuova”, publicada em 1725. A
primeira fase da História é a “Idade dos
Deuses”, a segunda, a “Idade dos Heróis”,
e a terceira, a “Idade dos Homens”. A
autoridade do chefe nas tribos está sempre
sujeita à autoridade dos sacerdotes, vistos
como os portadores da vontade divina.
Mas os antropólogos concluem que, sobre
as duas autoridades, sempre prevalece a
vontade do conjunto, que se manifesta no
consentimento.
Os membros do grupo devem consentir em aceitar a conduta imposta como
sendo da vontade de Deus e, em primeiro
lugar, aceitar que Deus exista e exerça esta
autoridade.
Essa vontade, que muda com as
circunstâncias do tempo e do ambiente, aceitando ou rejeitando a autoridade,
surge, naturalmente, das conversas entre
os indivíduos e das reuniões dos conselhos
comunitários, constituídos quase sempre
de homens mais experientes.
Parlamentar é conversar. É certo que
a expressão “parlamento”, para designar
as instituições que conhecemos, surgiu há
pouco mais de 700 anos, o que é recente,
em termos históricos.
Tal como “parlamento”, a expressão
“estado” é também recente. Aliás, mais
recente do que “parlamento”. Antes,
os estados eram conhecidos como “reinos”, ou como “repúblicas”, ainda que,
fossem também estados monárquicos. A
palavra “Estado”, ou “Stato”, surgiu no
Renascimento italiano, e significava, em
sua origem, o grupo que cercava o governante, fosse ele um príncipe dinástico, ou
fosse um mandatário eleito, como ocorria
nas repúblicas italianas, como a República
de Veneza. O corpo eleitoral pode ser mais
amplo ou mais restrito, mas o que define
uma república moderna é a temporariedade dos mandatos e o processo de escolha
por algum tipo de eleitores. As repúblicas
podem ser democráticas ou oligárquicas.
A República de Veneza, por exemplo, era
oligárquica: as 500 famílias mais importantes constituíam o “Grande Conselho”, e o
“Grande Conselho”, que era o parlamento
aristocrático, elegia o doge, o detentor do
Poder Executivo.
O vocábulo “Estado” definia, no
Renascimento, o governo ou a corte, e não
o conjunto das instituições permanentes,
como entendemos hoje. Rapidamente, a
expressão ganhou nova acepção e universalidade. Para o raciocínio moderno, Estado
é toda organização política soberana, ou
seja, governada de acordo com princípios
próprios e com o consentimento de seus
cidadãos, ou seja, de todos aqueles que,
com a sua vontade e ação, participam das
decisões da comunidade.
O que é ser soberano? A melhor definição, encontrada em muitos autores, de
uma forma ou de outra, é a de que soberano é aquele que não obedece a ninguém.
Um homem pode ser soberano sobre os
seus atos, mas, na realidade, nenhum
homem, isoladamente, pode ser soberano
sobre o Estado. O Estado, sim, como ser
coletivo, deve dispor da “summa potestas”, ou seja, de todo o poder que possa ser
exercido dentro dos seus limites territoriais.
Os acordos internacionais, que limitem
essa soberania, só são entendidos quando
se baseiam no princípio da reciprocidade:
isto é, quando os estados contratantes
não exijam mais do que concedam, nem
concedam mais do que exijam. Em suma,
que sejam vistos com idênticos poderes e
direitos na convenção estabelecida.
117
ENSAIO
Em todos os Estados, sempre tem
existido alguma coisa semelhante a parlamento. Nas monarquias absolutas, com
os conselhos da Coroa. Nas monarquias
constitucionais, com a representação eleita
pelos cidadãos, ou por uma parcela dos
cidadãos. Nas repúblicas, com a representação daquela parcela de indivíduos
que constitua o eleitorado e que se faça
representar. Como já vimos, o eleitorado
pode ser universal, nas democracias, e
reduzido, nos governos oligárquicos. E
até mesmo resumido aos militares, como
ocorria no sistema espartano e no início
da República Romana e como ocorreu em
nosso próprio país, quando o Presidente
da República era escolhido pelos oficiais
generais das Três Armas, mas tendo, no
Exército, como a força mais numerosa,
o único grupo que oferecia os candidatos. Isso nos obriga a lembrar que um
Estado pode ser monárquico e democrático, como pode ser nominalmente republicano, e ditatorial. Nominalmente, tanto
a Alemanha de Hitler, quanto Portugal,
de Salazar, eram repúblicas, mas nada
tiveram de democráticas. E, enquanto a
Itália e a Inglaterra eram nominalmente
monarquias, durante os anos 20 e 30, a
Itália estava sob a ditadura de Mussolini,
enquanto a Grã Bretanha constituía, para o
seu próprio povo, uma das mais avançadas
democracias do mundo.
A evolução política se faz na
universalização do poder, ou seja, na
participação cada vez maior dos indivíduos
na sociedade política. Isso significa a
transformação dos indivíduos em cidadãos.
Por isso mesmo, a democracia pode ser
vista como o processo permanente de
adesão dos indivíduos à responsabilidade
coletiva, ou seja, a transformação da
turba em plebe e da plebe em povo.
Entendamos que, no sentido político,
118
um indivíduo pode ser o mais sábio dos
homens, mas não pertencerá ao povo,
como o povo foi definido por Cícero,
se não se interessar pela política. Outro
pode ser o mais rico, ou o mais idolatrado
pelos seus dotes artísticos – mas não será
cidadão. Não merecerá o reconhecimento
da comunidade, dentro da visão grega
da política. O camponês analfabeto ou o
trabalhador modesto, que procuram influir
em favor de sua comunidade – mesmo nas
comunidades menores, como a associação
de moradores, ou o grupo de plantadores
de feijão – são cidadãos. O empresário
rico, que só se interessa em proteger os
seus próprios negócios, e não participa da
vida da comunidade como um todo, não
é cidadão, mesmo que, por oportunismo,
financie campanhas eleitorais.
Sendo assim, a evolução do
parlamento se faz em dois sentidos: o
da legitimidade e o da ampliação de
seu poder. Um parlamento é tanto mais
legítimo quanto mais ele se aproxime da
vontade nacional. E o seu poder será tanto
mais efetivo, quanto mais ele puder impor
essa vontade nacional aos outros poderes
do Estado.
Como em tudo mais, temos que
recorrer aos gregos. Os setecentos anos
que antecedem a era cristã e os dois primeiros séculos de nossa era são vistos
como a “idade axial” do homem. Sem
remontar a períodos mais antigos, sobre os
quais a documentação é ainda escassa, foi
nesse período – a Idade dos Heróis, segundo Gianbattista Vico – que, com a difusão
da linguagem escrita e a especulação filosófica, o Estado encontrou, no Ocidente,
os seus fundamentos modernos. Foi um
período de lutas, de paixão pelo poder, de
afirmação do homem. Nesse período, os
deuses e os heróis começam a ceder lugar
MAURO SANTAYANA
ao cidadão. O grande cronista dessa mutação histórica é Homero, o poeta grego,
com seus dois grandes poemas épicos: a
Odisséia e a Ilíada. As duas obras são mais
do que o relato de hipotéticas gestas, mas
a metáfora profética do futuro.
As ilhas e a península gregas eram,
naquele tempo, um conjunto de pequenos
estados. Cada cidade, que compreendia
a zona rural, exercia seu próprio poder,
e a disputa entre elas crescia na mesma
medida em que cresciam o comércio e
o interesse econômico. Sobre todas essas
cidades, duas se tornaram maiores e mais
fortes: Esparta e Atenas. Em ambas, o
governo era exercido por duas instâncias:
uma, a dos reis, em Esparta, e a dos tiranos,
em Atenas – e a outra, a das instituições
parlamentares. É preciso esclarecer que
tirano, em grego, não tinha o significado
moderno, de ditadura cruel, mas sim, o
do governante com grandes poderes. Em
Esparta havia uma espécie de Senado,
constituído de 30 membros. Em Atenas
funcionava o Areópago. Esparta era um
estado militarizado, de fundamentalismo
estrito, e que serviu de modelo ideológico
a algumas das piores ditaduras modernas.
O Areópago ateniense era instituição
aristocrática. Dele só podiam participar os
“eupatridoi”, ou, seja, os bem nascidos.
O nome Areópago deriva de sua situação
geográfica. Os seus membros se reuniam
no monte ateniense dedicado a Ares, ou
seja, ao deus da guerra, que tomou o nome
latino de Marte. Pagos, em grego, significa
a parte mais elevada, monte, colina. O
Areópago tinha dupla função: a de legislar e a de julgar os casos de homicídio.
Reformas sucessivas lhes foram tirando o
poder. A constituição de um parlamento
popular, composto de 400 membros, a
Boule, retirou do Areópago todas as suas
funções, menos a de tribunal. É curioso
registrar a origem da palavra problema, hoje usada para identificar alguma
questão complicada. Problema vem do
grego “proboulema” (pro-boulema), ou,
seja, uma questão encaminhada à boule,
Boule, enfim, um projeto de lei. Essas
questões podiam ser encaminhadas pelo
governo, ou pelas assembléias populares,
que se reuniam na praça do mercado, a
ágora. Outra das significações de “proboulema” é “desenho”. Na linguagem
legislativa moderna italiana, o projeto
enviado pelo governo ao Parlamento é
chamado de “disegno de legge”. A própria
palavra “boule” significava, originalmente, “vontade”, ímpeto, lançamento – era,
assim, a assembléia que aferia a vontade
geral.
A “Boule” e todas as instituições políticas gregas são tratadas cientificamente
por Aristóteles e Platão em seus livros políticos, nos quais eles partem da práxis, da
experiência das diversas constituições, para
examinar as questões da “polis”, ou seja, da
comunidade política.
Constituição, na linguagem política
clássica, é o conjunto de normas e ritos,
que podem ser escritos, ou não. É a forma
pela qual o Estado se encontra formado,
ou constituído.
Os tratados de política e de ética,
tanto de Platão como de Aristóteles, formam as idéias básicas sobre o Estado no
pensamento ocidental. Mesmo sabendose que Aristóteles foi discípulo de Platão,
os pensadores modernos consideram sua
obra mais sistematizada, mais “científica”,
vamos assim dizer. Provavelmente porque
Platão se situou mais no terreno das
idéias, criando até mesmo a primeira utopia política com seu livro “A República”.
Aristóteles, por sua vez, se atém mais à
119
ENSAIO
realidade, à prática, à situação da politeía,
ou seja, da república, nos tempos imediatamente anteriores a ele. Ele não parte de
uma doutrina própria do poder, mas, examinando a realidade política de seu tempo
e dos tempos anteriores, propõe uma teoria, no exato sentido grego da palavra.
Em grego, teoria significa contemplação,
exame, ou, melhor ainda, constatação.
De qualquer forma, ambos foram orientadores políticos da mais alta expressão.
Platão esteve aconselhando os tiranos de
Siracusa e Aristóteles foi preceptor de
Alexandre, o Grande.
Durante alguns anos, não muitos,
Atenas foi o exemplo da sociedade democrática. Como, apesar da advertência de
Péricles, de que todos os cidadãos deveriam participar das atividades políticas,
nem todos queriam fazê-lo,foi instituído
o pagamento para todos os que comparecessem às assembléias políticas, uma
espécie de indenização pelo tempo gasto.
Também nessa época surgiu a remuneração para os que se dedicassem integralmente ao serviço público. No alvorecer
do sistema democrático, os membros da
direção política do Estado eram sorteados,
e muitos cidadãos pobres tinham dificuldade em manter as suas famílias, deixando
de trabalhar como artesãos ou pequenos
comerciantes, enquanto serviam à cidade.
Por isso, Péricles instituiu o costume de os
indenizar com uma quantia aproximada à
que ganhavam em suas atividades profissionais. Foi assim que surgiu a remuneração pelos serviços que os cidadãos, eleitos
ou nomeados, prestam à comunidade.
Durante o governo de Péricles praticou-se, em Atenas e em algumas outras
cidades gregas, a democracia direta. As
assembléias exerciam o poder político
principal. A “Boule” se encarregava de dar
120
formato legal e constitucional às decisões
populares. De uma certa forma, Péricles
foi um precursor do estado de bem-estar
social, tal como o conhecemos no século
XX. Os persas haviam invadido e destruído
Atenas, e a miséria dominava a cidade.
Péricles, usando os recursos do Tesouro,
reconstruiu a cidade, criando empregos
para os pobres. E até mesmo fez uma obra
suntuosa, como símbolo da auto-afirmação
dos gregos, a Acrópole, com seus grandes
templos, cujos restos ainda impressionam
o mundo. Ao mesmo tempo, no porto de
Pireu, mandou construir o primeiro conjunto de casas populares de que se tem
notícia, para uso dos marinheiros da frota
ateniense.
A grandeza do sistema ateniense foi a
sua perdição, porque a ambição de potência levou-a ao imperialismo, à guerra do
Peloponeso, à derrota diante de Esparta e
à paulatina decadência. A Confederação
de Delos, sob a direção de Atenas, surgira
como aliança defensiva contra os persas,
mas logo se tornou um sistema de expropriação das outras cidades do arquipélago.
A decadência de Atenas tem sido
apontada, pelos historiadores, como advertência importante: ninguém pode explorar
os outros, em nome de suas virtudes, nem
pretender exportar as suas virtudes para
os outros. As virtudes podem ser imitadas,
mas, nunca impostas ou vendidas.
Contra o imperialismo ateniense se
revoltaram Esparta e outras cidades, que
derrotaram a metrópole, iniciando-se o
processo de declínio. Antes que isso ocorresse, Atenas forneceu a Roma, e pelo
exemplo, os seus princípios constitucionais. Conforme fontes romanas, a “Lex
XII (dodici) Tabularum”, ou a Lei das 12 ,
escrita da República Romana, inspirou-se
MAURO SANTAYANA
na legislação ateniense da primeira metade
do século V antes de Cristo. A lei foi adotada em Roma, depois de ser ajustada por um
grupo de estudiosos, em 450 a.C.
Em Roma, desde o seu início sob
influência remanescente da Grécia, que
colonizara grande parte do território
italiano, prosperava o sistema republicano.
A República se instalou por volta de 509
antes de Cristo, depois da expulsão de
Tarquínio, o Soberbo, o último rei de Roma.
Mas, mesmo sob Tarquínio, que foi um
déspota, havia um Senado funcionando.
A palavra Senado deriva de “sene”, que
significa “velho”. O rei detinha dois poderes
principais – o de supremo sacerdote da
religião romana, e o poder militar. Com
o fim da monarquia, o Senado continuou
existindo, com seus poderes ampliados, e
se instituiu a eleição de dois cônsules. Um
deles se dedicava às questões externas – a
defesa e a expansão militar – e o outro, à
administração interna.
Mas o poder estava nas mãos dos
patrícios e dos chefes militares. Só havia
duas formas de acesso ao Parlamento, ou
seja, ao Senado: pelo nascimento ou pela
bravura militar. A instituição do consulado
não modificou a situação: os cônsules eram
eleitos pelas centúrias militares. Poucos
anos depois de instalada a República, a
plebe se revoltou, exigindo participação
no poder. Como Roma se encontrava
sob ameaça de seus vizinhos, o Senado
concordou em dividir nominalmente o
poder, e foi criado o Tribunato da Plebe.
Dois tribunos, eleitos pelos pobres (mas
geralmente procedentes da oligarquia)
podiam representá-los junto ao poder.
Pouco a pouco, a plebe foi obtendo
maiores poderes, mas nunca chegou a
ter um parlamento próprio, uma Câmara
de Deputados, o que só ocorreria muitos
séculos depois, na Inglaterra.
O sistema republicano romano
começou a corromper-se quando o poder
militar se uniu ao poder econômico e ao
poder político, no primeiro triunvirato.
César, Pompeu e Crasso eram, ao mesmo
tempo, chefes militares, chefes políticos e
grandes empresários. O enriquecimento
de Roma não beneficiara todos os seus
habitantes, e os escravos, que eram a principal força produtiva, se haviam revoltado
sob o comando de Spartacus, alguns anos
antes. A crise era latente. Com a morte de
Crassus, e, logo em seguida, a morte de
Júlia, a filha de César casada com Pompeu,
o “triumvirato” se desfez naturalmente. Os
dois homens, que eram muito semelhantes
em suas qualidades e em seus defeitos, mas
sobretudo em sua ambição, defrontaramse em seguida, na Grande Guerra Civil.
Podemos, novamente, citar Gianbattista
Vico, em uma frase enigmática sobre os
dois. Ele disse que “César e Pompeu eram
muito parecidos, especialmente Pompeu”.
Vitorioso, com a morte de Pompeu,
César se fez cônsul e, em seguida, ditador
vitalício. Menos de um mês depois de ter
sido eleito ditador, foi assassinado aos pés
da estátua de Pompeu, antes de se iniciar
uma sessão do Senado. Com ele, morria a
República Romana e se iniciava o período
monárquico, com Augusto e os imperadores sucessivos, e começava a lenta agonia
do Parlamento. Ele só será restabelecido, na
forma que havia alcançado no período
áureo da República Romana, mais de um
milênio depois, na Inglaterra.
Um dos documentos políticos mais
citados nos tempos modernos é a Magna
Carta, de 1215, que o Rei João Sem Terra,
da Inglaterra, foi obrigado a assinar, sob
a pressão dos senhores feudais. Como
todas as grandes mudanças institucionais,
a outorga da Great Charter foi exigida
121
ENSAIO
pelas circunstâncias econômicas internas.
A Coroa estava endividada, uma vez que
tivera que gastar grandes somas para o
pagamento do resgate de Ricardo Coração
de Leão, aprisionado quando regressava
da Terra Santa, em 1194. Esmagados pela
tributação excessiva, os barões ingleses
exigiram do Rei certas concessões, entre
elas a de que os impostos fossem arbitrados pelos próprios contribuintes, mediante uma representação política. A Magna
Carta inicia o processo de representação
parlamentar na Inglaterra, com o Conselho
dos 25 Barões.
Esse Conselho evoluirá para tornar-se
a Câmara dos Lordes. No século seguinte,
os comuns, ou seja os não portadores de
títulos de nobreza mas, de alguma forma
poderosos, como os grandes mercadores, passaram a eleger representantes ao
Parlamento – e as duas casas se separaram.
A partir do Século 17, quando a Câmara
dos Comuns se rebelou contra Carlos I,
seus direitos cresceram e, embora formalmente a Câmara dos Lordes detenha, até
hoje, seu poder de veto, a realidade política confere aos comuns todo o poder político na Inglaterra moderna, e tem servido de
modelo para a representação parlamentar
no Ocidente.
A expressão parlamento para designar
essas assembléias de representação política
surgiu, como tantas outras, do vocabulário
litúrgico. Chamava-se parlamento a reunião dos frades beneditinos, depois do jantar, para falar sobre teologia e os assuntos
atinentes à administração dos mosteiros.
Em 1239, Matthew Paris, superior da abadia beneditina de Saint Albans – situada a
30 quilômetros de Londres – decidiu abrir
estas reuniões e convocar bispos, condes e
barões, para discutir assuntos de interesse
geral. Seis anos depois, em 1245, a fim
122
de obter a aprovação para o ato em que
excomungara o Imperador Frederico II, do
Sacro Império, Inocente IV convocou uma
grande reunião dos poderosos em Lyon – e
lhe deu o nome de Parlamento.
O Parlamento é, assim, ou assim
deveria ser, o espaço para a discussão dos
grandes problemas (ou pro-boulemas) e
para a criação de leis e processos que possam resolvê-los.
DAVID FLEISCHER*
ENSAIO
O Impacto da Reforma
Política Sobre a
Câmara Federal
A reforma política sempre esteve na
agenda do Congresso Nacional desde a
redemocratização em 1946, com destaque
para: representação proporcional com lista
aberta, cassação do Partido Comunista,
eleições majoritárias por maioria simples,
recadastramentos de eleitores, a introdução da cédula única e um breve parlamentarismo (Lima Sobrinho). Com a implantação do período militar (1964-1985), o
Brasil passou por uma seqüência sem fim
de casuísmos que modificaram as regras
políticas para produzir maiorias para o
governo no Congresso, como: as cassações
de mandatos políticos, dois remanejamentos do sistema partidário (1966 e 1980),
proibição de coligações, eleições indiretas
para presidente e governadores via colégio
eleitoral, o voto vinculado, a fidelidade
partidária, os senadores “biônicos”, sublegendas e a tentativa de implantar o voto
“misto” distrital-proporcional (Fleischer,
* Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
123
ENSAIO
1994). Na nova fase de redemocratização,
a partir de 1985, novas modificações nas
normas políticas foram adotadas – abertura para novos partidos políticos, o retorno
dos partidos comunistas, novos recadastramentos de eleitores, a redução facultativa
da idade eleitoral de 18 para 16 anos, o critério da maioria absoluta e a reeleição para
cargos executivos, cotas para candidatas
nas eleições proporcionais, votos brancos
contados como inválidos e a implantação
da urna eletrônica (Trindade, 1992).
Porém, quatro pontos com grande
potencial de impacto sobre a Câmara dos
Deputados ficaram de fora destes quase
60 anos de “reformas”, embora tivessem
sido debatidos durante a ANC (Assembléia
Nacional Constituinte) em 1987-1988:
1) a fidelidade partidária; 2) financiamento de campanhas eleitorais; 3) sistema
de eleição proporcional; e 4) coligações
partidárias (Fleischer, 1987a e 1987b).
Em 1995, o então Presidente do
Senado, Sen. José Sarney (PMDB-AP)
constituiu uma Comissão Especial para
estudar a “Reforma Político Partidária” que
apresentou o seu relatório final em 1998
(Machado; Fleischer, 1998). Os quatro
pontos acima mencionados foram incluídos nos 14 itens votados pelo Senado, mas
nunca entraram na pauta da Câmara dos
Deputados. Inusitadamente, em 2000,
líderes do PT e PFL conseguiram elaborar
várias medidas para uma reforma política
em comum acordo, mas esta iniciativa
também não produziu nenhum resultado.
No início de 2003, a Câmara dos
Deputados constituiu uma Comissão especial destinada a efetuar estudo em relação às matérias em tramitação na Casa,
cujo tema abrangia a Reforma Política
(Benevides et al.). Após vários meses de
estudos e debates, esta Comissão votou o
124
parecer do Relator Dep. Ronaldo Caiado
(PFL-GO), em 3 de dezembro de 2003
(Quadro 2). Uma semana depois, este
PL-2679/2003 foi transmitido para a
Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania (CCJC) para acertar uma versão
final antes de ser apreciado pelo Plenário
da Casa (Cintra).
Pretendo, nesta breve análise, avaliar
os quatro pontos contidos neste Projeto
de Lei e seus possíveis efeitos e impactos
sobre a Câmara dos Deputados.
Sistema Eleitoral
O Brasil usa o sistema de representação proporcional de lista aberta para
eleger deputados e vereadores desde a
Constituição de 1946. Durante o período militar, este mesmo sistema eleitoral
continuava em vigor, embora o fosse com
apenas dois partidos (ARENA e MDB). A
partir de 1985, voltou o sistema de coligações sem sublegenda que vigorava antes
de 1964.
Apenas em duas ocasiões houve tentativas de mudança do sistema eleitoral
proporcional: 1) no fim de 1965, logo
depois do AI-2 que extinguiu o então sistema pluri-partidário, quando o Pres. Castelo
Branco quis implantar o sistema majoritário uninominal (distrital), mas foi dissuadido deste intento por líderes da ex-UDN;
e 2) com a Emenda Constitucional nº 22
(de junho de 1982), que implantou o voto
“misto” distrital-proporcional, semelhante
ao sistema utilizado na Alemanha, que
teria vigorado para a próxima eleição, em
1986. Porém, em 1983-1984, o Congresso
Nacional não regulamentou este esquema,
e em maio de 1985 esta disposição foi
revogada. Mesmo assim, esta proposta
despertou debates entre políticos e acadêmicos, o que ensejou uma edição especial
DAVID FLEISCHER
da Revista de Informação Legislativa, nº 78
(1983).
Desde então, prosperou um debate sobre mudanças no sistema eleitoral
– algumas poucas propostas para um sistema distrital e várias sugestões em favor do
chamado “sistema misto” (Pinheiro Filho;
Fleischer, 1992)
Finalmente, em dezembro de 2003,
a Comissão Especial aprovou uma mudança substancial no sistema de representação
proporcional (RP), a lista fechada. No
sistema atual, cada partido ou coligação apresenta a lista dos seus candidatos
a deputado ou vereador, mas sem uma
ordem prévia. Na eleição, o eleitor vota
ou na legenda (partido) preferida ou no
nome de um candidato individual. Quase
toda a campanha gira em torno de nomes
individuais, com propaganda maciça destacando o nome, foto e número de identificação do candidato, com pouca ou
nenhuma informação sobre sua filiação
partidária. As pesquisas de opinião mostram que, seis meses após o pleito, menos
da metade dos eleitores lembra o nome do
candidato em que votou, e muito menos
ainda consegue lembrar o partido. Por
esta e outras razões, o sistema de lista
aberta é muito raro entre os países que
usam a representação proporcional (pura).
Apenas o Brasil e a Finlândia usam este
sistema. No resto do mundo, a (RP) utiliza
a lista fechada (Gallagher; Lijphart, 1991;
Nicolau, 1993; Shepsle).
No sistema de lista fechada, cada
partido ou coligação apresentará à Justiça
Eleitoral uma lista de candidatos pré-ordenada – ou seja, desde o primeiro nome da
lista até o número 30º ou 45º , por exemplo. Ao eleitor cabe apenas escolher qual
partido ou coligação votar. Apurados os
votos, se o Partido “A” receber votos equi-
valentes a, por exemplo, onze coeficientes
eleitorais, os primeiros onze nomes na lista
fechada estarão eleitos, e o 12º na lista
seria o primeiro suplente.
Esta mudança causaria um grande
impacto sobre o sistema eleitoral brasileiro. Ao invés dos gastos individuais
de cada candidato para conseguir votos
suficientes para se eleger e não cair na
suplência, no sistema de lista fechada os
fatores determinantes para a eleição de um
candidato a deputado serão: 1) o seu partido ou coligação ter um apelo suficiente
para angariar um grande número de votos;
e 2) o candidato ter sido colocado numa
posição alta o bastante na lista para estar
entre os eleitos.
Mas, como que os partidos (coligações) vão confeccionar as suas listas
fechadas? A não ser que na subseqüente
tramitação do PL-2679/2003 as normas
para a confecção da lista sejam mais
detalhadas, em cada estado, cada partido/
coligação basicamente teria três alternativas: 1) a comissão executiva ou diretório
estadual elaboraria a lista com a ordem
predefinida; 2) a lista seria elaborada por
uma convenção estadual do partido; ou
3) cada partido teria um mecanismo de
receber pré-candidaturas a deputado e a
inclusão (ou não) destes (e em qual ordem)
seria determinada por uma votação prévia
de todos os filiados no estado. Além de
mais participativa, esta terceira alternativa
poderia funcionar como uma “pré-campanha” de divulgação do partido junto aos
eleitores e serviria como estímulo a novas
filiações. O Projeto de Lei prevê que a
lista e a ordem dos candidatos sejam definidas em convenção partidária. Assim, as
“opções” 1) e 2) seriam operadas “informalmente” e teriam que ser referendadas
via convenção partidária.
125
ENSAIO
A partir de 2010, cada partido ou
“federação” definiria, através de convenção, os candidatos e a sua ordem em lista
única. Porém, a eleição em 2006 teria
“regras de transição” para acomodar os
atuais parlamentares (eleitos em 2002).
Estes parlamentares seriam colocados nas
primeiras posições das listas, seguindo
a ordem de prioridade de acordo com o
número de votos obtidos em 2002:
1º – Candidatos eleitos em 2002;
2º – Suplentes efetivados;
3º – Suplentes que exerceram mandato
por pelo menos seis meses; e
4º – Candidatos eleitos que trocaram de
legenda após a eleição de 2002.
Esta regra de transição seria prejudicial aos deputados que trocaram de
legenda após as eleições de outubro de
2002, com maior impacto sobre os dois
partidos que receberam o maior número
de “migrantes” (PTB e PL).
É claro que o partido/federação que
tiver a melhor imagem entre os eleitores,
o programa ou proposta mais atraente,
e escolhido os seus candidatos de uma
maneira mais participativa, levaria mais
vantagem na eleição proporcional. Para
os partidos/federações que não conseguissem atender estes três quesitos, o sistema
de lista fechada não renderia muitas vantagens.
No sistema de lista fechada, os mandatos dos deputados pertencem ao partido
e não mais aos próprios deputados. Assim,
o partido teria mais controle sobre os seus
eleitos, e a “migração” [“troca-troca”] dos
deputados de uma legenda para outra
durante o mandato não existiria mais. As
bancadas seriam mais coesas e o trabalho
parlamentar se tornaria mais eficaz e efi126
ciente. A articulação do Poder Executivo
seria diretamente com os partidos e não
mais “um-a-um” com cada parlamentar.
Por este raciocínio, os partidos seriam fortalecidos, o que, em grande parte, poderia
aperfeiçoar a prática da democracia no
Brasil.
Este sistema de (RP) com lista fechada
acumularia outras vantagens: 1) o embate
eleitoral seria entre partidos e não mais
entre “companheiros” da mesma chapa,
e o debate na TV seria sobre programas
e propostas e não mais de candidatos
individuais – 8 segundos de “vote em eu”;
2) o financiamento das campanhas seria
muito mais fácil para a Justiça Eleitoral
monitorar com a movimentação financeira
concentrada nos partidos e não mais nos
candidatos individuais; e 3) as cotas para
mulheres candidatas pelos partidos/coligações seriam mais fáceis de operacionalizar,
como na “Ley de Cupos”, na Argentina,
onde obrigatoriamente as candidatas têm
que constar pelo menos nas 3ª, 4ª e 5ª
posições nas listas (Araújo; Jones). Na eleição logo depois da implantação da “Ley
de Cupos”, a proporção de deputadas na
Câmara Baixa argentina subiu de 5% para
21%.
O sistema de lista fechada também
serviria para tolher os efeitos de “locomotivas eleitorais”, candidatos “endinheirados”
e os apoiados por certas organizações
ou “segmentos” – como Enéas Carneiro,
do PRONA, que em 2002 recebeu 1,5
milhões de votos para deputado federal em São Paulo, e “puxou”/”elegeu”
outros 5 candidatos com poucas centenas
de votos; ou candidatos ligados a segmentos coletivos que têm grande número
de eleitores “fiéis”, filiados ou seguidores
– como igrejas, sindicatos e certos grupos
funcionais (como funcionários públicos,
DAVID FLEISCHER
policiais militares, etc.). Estes grupos não
mais poderiam concentrar os “seus” votos
em candidatos destacados em diversos
partidos, mas teriam que escolher um só
partido/confederação para “despejar” os
seus votos.
Para as eleições de 2006, os atuais
deputados (eleitos em outubro de 2002)
terão que tomar uma decisão que pode
ser bastante draconiana. Até 2 de outubro
de 2005, terão que decidir a sua migração
partidária “final” – a legenda pela qual
disputarão a eleição em outubro de 2006
– um ano antes, sem saber exatamente
qual federação o “seu” partido vai entrar
e nem como ficaria a sua posição na
ordem pré-determinada dos candidatos.
Possivelmente, vários deputados “migrantes”, percebendo que não teriam grandes
chances no seu então partido, optarão
para um outro partido “nanico”, justamente para ter mais poder de barganha para
“acertar” a sua posição na composição
da lista fechada da confederação que, por
ventura, o seu “novo” partido venha a
integrar.
Federação de Partidos
Há muito tempo que o uso de coligações (sem sublegenda) nas eleições proporcionais é criticado no Brasil. Supostamente,
este mecanismo contribui para o fato da
maioria do eleitorado não conseguir lembrar o nome do candidato e muito menos
o partido em que votou. Também, estimula a “migração” de deputados eleitos por
uma coligação para outros partidos que
nem participavam da coligação que elegeu o deputado. Em 2003, mesmo antes
da posse (em 1 de fevereiro) dos novos
parlamentares eleitos em outubro de 2002,
uns 40 deputados trocaram de legenda
(Quadro 1). O relator desta reforma, Dep.
Ronaldo Caiado (PFL-GO), afirma que até
os meados de março de 2004, 125 deputados já trocaram de partido (Freitas). Sem
o mecanismo da sublegenda [sublemas, na
Argentina e Uruguai], os partidos coligados
perdem a sua identidade perante o eleitorado e contribuem para o enfraquecimento
das legendas. Em muitos casos, as micro
ou pequenas legendas não teriam chances
de eleger um só deputado sem o artifício
das coligações (Ames; Cintra; Fleischer,
2004; Melo; Nicolau, 1997; Nogueira).
Já apareceram várias propostas para
corrigir estas anomalias e atenuar os efeitos das coligações – desde proibir as
coligações totalmente [o fim dos partidos
“históricos”, como o PPS e o PCdoB], a
adoção de sublegendas [onde cada partido participante teria a sua própria sublista
dentro da coligação], até a adoção de uma
“cláusula de exclusão” ou barreira (de 2%,
3% ou 5% dos votos válidos), como na
Alemanha, para excluir os partidos “nanicos”1. Para 2006, esta nova proposta prevê
uma “barreira” de 2% dos votos para a
Câmara dos Deputados, nacionalmente
distribuídos em 1/3 das unidades da federação, e eleição de um deputado em pelo
menos 5 destas unidades – para que os
partidos ou federações possam ter direito
a funcionamento parlamentar. Portanto,
a “barreira” brasileira continuaria menos
rígida que a da Alemanha.
Assim, a proposta de uma “federação de partidos”, ao invés de coligação,
chega a ser uma mudança inovadora.
Continuaria o mecanismo de uma aliança
eleitoral entre partidos para as eleições
proporcionais, mas com a lista fechada. A
grande diferença é que esta “federação”
teria que permanecer em funcionamento
obrigatoriamente por três anos. Assim,
não teria mais “troca-troca” de legenda
127
ENSAIO
durante este período e a “federação” funcionaria como um “bloco parlamentar”.
Na linguagem dos jovens, a tradicional
aliança eleitoral via coligação é uma relação de “ficar” (até a abertura das urnas), e
a “federação de partidos” seria então uma
“união estável” durante três anos. Caso a
“federação de partidos” se dissolver antes
de completar o prazo de três anos, os partidos que a compõem perderiam o direito
ao funcionamento parlamentar.
Fidelidade Partidária
O conceito da “fidelidade” do parlamentar para com a sua legenda não seria
tão rígido quanto a norma que vigorava
durante o período militar, mas seria fortemente inibitivo de “migrações” após as
eleições – por causa da lista fechada e
a operação das “federações partidárias”.
Não está muito certo que a “infidelidade”
do parlamentar durante o seu mandato
poderia implicar na perda do mandato,
mas com certeza as lideranças partidárias
teriam mais controle sobre o comportamento dos seus liderados. De acordo com
L.M. Rodrigues, o eleitor não se incomoda com a infidelidade dos parlamentares
migrantes que, em última instância, ajudam os governos a constituirem maiorias
no Congresso após cada eleição. Foi
assim com o Presidente Cardoso, em 1995
e 1999, e também com o Presidente Lula,
em 2003.
Financiamento de Campanhas
Depois do mecanismo da lista fechada, a segunda grande mudança no sistema
eleitoral seriam as alterações nas regras
para o financiamento dos partidos e as suas
campanhas eleitorais em 2006. Tido como
um grande entrave na democracia representativa no Brasil, o resultado parece ser:
quanto mais dinheiro o candidato tenha
disponível para a sua campanha, mais
128
votos receberia e maiores chances teria
de ser eleito (Fleischer, 2000; Samuels,
2001a, 2001b, 2003; Sirkis).
Usualmente, a contabilidade do
dinheiro gasto na campanha (via a chamada “caixa um”) apresentada à Justiça
Eleitoral não chega a um décimo do total
realmente gasto e, portanto, fora do esquema de monitoramento dos TRE`s (Fleischer
e Whitaker). A grande parte destes recursos
vem da chamada “caixa dois” de empresas e outras organizações interessadas em
poder contar com deputados dispostos a
defender seus interesses. O Prof. Cândido
Mendes estima que foram gastos algo em
torno de R$ 10 bilhões nas campanhas de
2002 (Mendes).
A nova proposta prevê financiamento exclusivamente público das eleições, através de dotação orçamentária no
valor de R$ 7,00 multiplicado pelo número de eleitores cadastrados no ano anterior
à eleição (dezembro de 2005) e veda
totalmente as contribuições de pessoas
físicas e jurídicas às campanhas eleitorais.
Resta saber se o Congresso Nacional dotaria a Justiça Eleitoral com poderes fortes o
bastante para realmente impedir estas contribuições – a partidos e federações de partidos, em 2006. No entanto, não seriam
vedadas estas contribuições para o Fundo
Partidário. Este continuaria constituído por
dotações orçamentárias anuais no valor
de R$ 0,35 por eleitor cadastrado no ano
anterior às eleições – mas, somente nos
anos ímpares (quando não há eleições).
No caso do montante de recursos públicos para financiar as eleições,
para 2006, estima-se que o total disponível poderia chegar a R$ 966 milhões
(138.000.000 eleitores x R$ 7,00) – ou
seja, aproximadamente US$ 333 milhões.
Este montante seria distribuído entre os
partidos da seguinte forma:
DAVID FLEISCHER
1) 1%, igualitariamente, entre todos
os partidos registrados no TSE;
1% de R$ 966 milhões = R$ 9,66
milhões
2) 14%, igualitariamente, entre os
partidos com representação na Câmara;
14% de R$ 966 milhões = R$
135,24 milhões
3) e 85%, proporcionalmente às
bancadas de deputados federais de cada
partido, eleitas no pleito anterior [outubro
de 2002].
85% de R$ 966 milhões = R$
821,1 milhões
Este mecanismo penalizaria os
pequenos partidos e, principalmente, os
“médios”, como o PTB e o PL que quase
dobraram as suas bancadas com “migrações” após o pleito de 2002 (Quadro 1).
Como exemplo desta distribuição
em 2006, apresentamos os cálculos para
um “grande” [91 deputados] e um “micropartido” [4 deputados] – assim, os recursos
disponíveis para o “grande” seriam dez
vezes maiores que os disponíveis para o
“pequeno”:
PSD (elegeu 4 deputados federais em
2002)
1) 1/30 de R$
9,66 milhões = R$ 322.000,00
2) 1/15 de R$ 135,24 milhões = R$ 9.016.000,00
3) 4/513 de R$ 821,10 milhões = R$ 6.402.000,00
TOTAL
= R$ 15.740.000,00
PT (elegeu 91 deputados em 2002)
1) 1/30 de R$ 9,66 milhões = R$ 322.000,00
2) 1/15 de R$135,24 milhões = R$ 9.016.000,00
3) 91/513 de R$ 821,10 milhões = R$ 145.653.000,00
TOTAL = R$ 154.911.000,00
Para o partido que em 2002 não
elegeu nenhum deputado federal e não
tem representação na Câmara, o total de
financiamento público seria apenas de
R$ 322.000,00.
Num ano de eleições federais (como
em 2006), a divisão destes recursos
alocados para cada partido ficaria assim:
•
30% para a administração nacional do
partido, quando o partido/coligação
tiver candidato à Presidência;
•
20% para a administração nacional do
partido, quando o partido/coligação
não tiver candidato à Presidência;
•
do restante, 70% ou 80%, para as
administrações estaduais do partido,
sendo que, 50% proporcionalmente
ao número de eleitores, e 50%
proporcionalmente às bancadas
estaduais de cada partido na
Câmara.
Desta maneira, ou 70% ou 80%
destes recursos ficariam para custear as
27 campanhas estaduais (governador,
senador e deputados federais e estaduais)
de cada partido, conforme o “tamanho”
do respectivo partido em cada estado.
Aparentemente, não há previsão para as
eleições com duas vagas para senador,
como em 2010, por exemplo. Nos casos
de coligações (presidente, governador e
senador) e de federações (deputado federal
e estadual), os partidos participantes teriam
que acertar a distribuição da soma dos
seus recursos.
Tramitação
O Projeto de Lei nº 2679/2003
tramitou na Comissão Especial durante 26
sessões e 7 audiências públicas, até que
o parecer final do Dep. Ronaldo Caiado
(PFL-GO) foi aprovado em 3 de dezembro
129
ENSAIO
de 2003. De 3 a 5 de junho de 2003, a
Comissão Especial promoveu, junto com
a ABCP (Associação Brasileira de Ciência
Política), um seminário para debater esta
Reforma Política – ver:
www.camara.gov.br/internet/Eventos/
Sem_conf_realizados/2003/Sem_reforma_
politica.asp
Os trabalhos apresentados neste
seminário estão para ser publicados em um
volume, ainda em 2004. No mês seguinte, em 1º de julho, a Fundação Perseu
Abramo lançou na Câmara dos Deputados
(com a presença do Presidente Lula) uma
coletânea de estudos sobre a reforma política (Benevides et al.) – resultado de uma
seqüência de três seminários realizados a
partir de 2001 sobre esta “mãe de todas
as reformas”. Mesmo assim, esta reforma
ficou fora da pauta da sessão extraordinária daquele mês (Cruvinel, 2003a). No
mesmo mês de julho, começaram a aparecer os primeiros sinais de que a chamada
“bancada evangélica” se posicionara contra esta reforma (Braga; Cruvinel, 2003b).
Finalmente, em 3 de dezembro de
2003, a Comissão Especial aprovou o
parecer do relator por 26 votos contra
11, com um ausente – mas esta decisão
deixou a base do governo Lula dividida
(Franco, 2003). Assim, ficou patente que
a tramitação na CCJ em 2004 não seria
fácil. O PMDB e o PFL tiveram um voto
contra cada, mas o “bloco dos partidos
médios” fechou questão contra a reforma
política (Quadro 2). Todos os 9 deputados
representando o PTB, PL e PP na Comissão
votaram contra. Todos os 5 deputados do
PSDB votaram a favor e, dos 6 deputados
do PFL, apenas um votou contra. Estes
dois partidos (aliados no Governo F.H.
Cardoso) tradicionalmente trabalhavam
130
em favor da reforma política e sempre tiveram um aliado velado (PT). Mas o partido
de Lula nunca assumia publicamente estas
teses, como o fim das coligações nas eleições proporcionais, para não desagradar
seus aliados. Porém, com o PT no poder,
em 2003, estes aliados (PPS, PCdoB e PSB)
votaram a favor da reforma na Comissão
Especial, principalmente porque o mecanismo da “federação de partidos” era um
artifício melhor do que a simples proibição
das coligações nos pleitos proporcionais
– que teria sido a “sentença de morte” para
estes partidos.
Interessantemente, o então vice-líder
do PL, Dep. “Bispo” Rodrigues (RJ), avisou
os petistas que se fosse aprovada a votação
em lista (pelo Congresso), seu partido seria
obrigado a lançar candidato à Presidência
da República em 2006. O raciocínio
do “Bispo” era que o eleitor sempre dá
preferência [na eleição proporcional] às
legendas que têm candidato a presidente.
Por esta mesma razão, o PTB e o PP se
posicionaram contrários ao voto em lista
(Franco, 2003).
Depois da divulgação, em 13 de
fevereiro de 2004, do vídeo onde o
então Chefe da Assessoria Parlamentar
do Governo Lula, Waldomiro Diniz, pede
contribuições tipo “caixa dois” ao bicheiro Carlos Ramos [Carlinhos Cachoeira],
em março de 2002, no início da sessão
ordinária, o Presidente da Câmara dos
Deputados, Dep. João Paulo Cunha (PTSP), tentou acelerar a tramitação do PL nº
2679/2003 no primeiro semestre, justamente por causa do financiamento público
exclusivo das eleições. Nisso, até o então
Líder do Governo, Dep. Miro Teixeira (sem
partido-RJ), ficou contra – para não parecer um “casuísmo”, decorrente do “caso
Waldomiro”, ou parte de uma “agenda
positiva” (Franco, 2004).
DAVID FLEISCHER
Por outro lado, o cientista político
Jairo Nicolau lembrou que “o financiamento público, com fiscalização e punições, é
a melhor opção para reduzir escândalos”
(Nicolau, 2004). Na contra mão, o Prof.
Wanderley Guilherme dos Santos se posicionou radicalmente contra esta reforma,
no que concerne à lista fechada que, em
seu modo de ver, tolheria a “liberdade” do
eleitor de “escolher” o seu candidato:
tidas as eleições diretas para a Câmara”
(Franco 2004).
O voto em lista fechada encarcera o
eleitor, o qual, hoje, pode votar na lista
partidária (a legenda do partido) ou em
candidatos individuais. A proposta impede
o eleitor de escolher o seu representante,
incumbindo a usurpadores a tarefa de
decidir a quem seu voto irá eleger. Dizem
que isto elevará o padrão moral da
democracia brasileira (Santos, 2004).
Por volta de 2000 e 2001, após a
aprovação de vários pontos do “Relatório
Sérgio Machado” pelo Senado Federal e
vendo a impossibilidade da Câmara tramitar estas propostas de reforma política,
inusitadamente, lideranças do PFL e do PT
conseguiram elaborar vários pontos em
comum para mudanças no sistema político-eleitoral brasileiro – mas não houve
tempo hábil para aprová-los antes do
decurso de prazo para o pleito de 2002.
No dia 4 de março de 2004, os líderes do PTB, PL, PP e PDT se recusaram a
assinar o pedido de urgência para votar
a reforma política (Lima). Diante destas
pressões (que incluíram ameaças do PTB,
PL e PP de obstruir todas as propostas do
governo na Câmara), em 9 de março o PT
retirou o regime de urgência da reforma
política (Seabra, Braga e Caetano).
A
urgência até que tinha apoios suficientes
para a sua aprovação (com o apoio do
PSDB e PFL), mas deixaria a base do governo rachada – coisa inoportuna, justamente
num momento quando o Governo Lula
mais precisava de união das suas forças
políticas. Às vésperas do Carnaval, dois
experientes deputados do PSDB afirmaram
que o financiamento público exclusivo
é incompatível com o atual sistema de
voto em listas abertas (Ferreira e Almeida).
Lembrando os senadores “biônicos” eleitos em 1978, o Líder Miro Teixeira bradou:
“O projeto cria o deputado biônico. Vou
para as ruas reivindicar que sejam man-
O último lance deste embate na
Câmara foi a substituição do Líder do
Governo (Miro Teixeira) pelo Dep. Prof.
Luizinho (PT-SP), em 1º de abril. Ao mesmo
tempo, Miro se filiou ao PPS (partido fortemente a favor da reforma).
Conclusões
Como vimos acima, novamente estes
dois partidos, em lados opostos do jogo
político em 2003-2004, ainda conservam a
mesma comunhão de idéias quanto a esta
reforma. Quando o Presidente da Câmara
insistiu em aprovar a urgência para votar
e aprovar esta reforma, ainda no primeiro
semestre de 2004, os partidos médios que
supostamente seriam lesados (PTB, PL e
PP) invocaram o “Caso Waldomiro” para
imperrar a tramitação. Por outro lado,
muitos deputados estavam pressionando
para a “liberação” das suas emendas [orçamentárias] para reforçar as campanhas de
aliados no pleito municipal deste ano.
Para quase todos os observadores,
a combinação entre a votação em lista
fechada com o financiamento exclusivo
das campanhas (especialmente as proporcionais) é inseparável. A solução “minerva” [ou “mineira”] dada pelo mecanis131
ENSAIO
mo da “federação de partidos”, ao invés
das tradicionais coligações nas eleições
proporcionais, operou para “preservar” a
identidade (e sobrevivência) dos pequenos
partidos, foi inovadora.
estas três legendas se sintam ameaçadas
no próximo pleito proporcional, caso a
reforma seja aprovada da maneira como
saiu da Comissão Especial. Resta saber se,
re-estabelecida a sua liderança equilibrada
na Câmara no primeiro semestre de 2004,
o Governo Lula teria tempo hábil para
aprovar esta reforma. Ou se não seria
melhor deixar a poeira do pleito municipal
baixar, para em 2005 empreender uma
tentativa final, incluídas mais negociações
políticas na CCJ em relação aos pontos
mais polêmicos.
Infelizmente, a visão política e a
modus operandi dos partidos médios
(PTB, PL e PP) em eleger deputados via
financiamentos maciços de pessoas físicas
e jurídicas, apoios de certos grupos e
segmentos do eleitorado a “nomes” a estes
ligados, e o uso político da “migração” de
deputados para “engrossar” as suas legendas
(e a “chantagem fisiológica”) faz com que
QUADRO 1 – Migração Partidária na Câmara dos Deputados, 2002-2004
Partido
PT
2002
Out.*
2
Fev.
0
0
3
2004
Junho
Ago.
Out.
Abril**
91
91
93
93
94
90
–
–
68
78
78
78
PTB
26
41
48
52
53
52
PL
26
33
33
40
42
45
PSB
22
28
29
16
16
20
PDT
21
18
15
14
12
–
PPS
15
21
19
19
21
22
PDdoB
12
12
11
11
11
09
PPB/PP
–
–
47
48
48
54
Outros
15
08
07
07
06
09
Governo
218
252
370
378
381
379
%
57.5
50.9
29.9
26.3
25.7
26.1
TOTAL
513
513
513
513
513
513
PFL
84
76
72
68
66
63
PSDB
70
63
63
55
52
50
PMDB
132
DAVID FLEISCHER
PMDB
75
70
–
–
–
–
PRONA
06
06
06
06
06
02
PPB/PP
49
44
–
–
–
–
-
–
–
–
–
13
Outros
03
02
02
06
08
06
Oposição
285
261
143
135
132
134
%
57.5
50.9
29.9
26.3
25.7
26.1
TOTAL
513
513
513
513
513
513
PDT
* - Eleitos em outubro de 2002.
** - Em 7 de abril de 2004.
QUADRO 2 – Votação do Parecer da Comissão Especial da Reforma Política* (em
3 de dezembro de 2003).
Partido
A Favor
Contra
Ausente
PT
7
0
0
PMDB
4
1
0
PSB
2
0
0
PPS
0
0
1
PCdoB
1
0
0
PV
1
0
0
PP
0
3
0
PL
0
3
0
PTB
0
3
0
PDT
1
0
0
PFL
5
1
0
PSDB
5
0
0
TOTAL
26
11
1
* - Câmara (2003).
133
ENSAIO
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NOTAS
Um mecanismo de cláusula de barreira estaria vigorando para as eleições proporcionais em 2006, mas não tão rígido como na
Alemanha onde os partidos assim excluídos não elegem ninguém.
1
141
ENSAIO
* JOÃO PAULO CUNHA
A Câmara dos Deputados e a
Democracia Brasileira no
Século XXI
Em 2003, Câmara e Senado comemoraram 180 anos de presença do Poder
Legislativo no Brasil. Foi o parlamento instalado no ano de 1823, logo após o grito
de independência. Pouco tempo antes,
em 1821, a Metrópole portuguesa dera os
primeiros passos em direção ao regime de
monarquia constitucional, que superaria
o absolutismo. Dera-se início em Lisboa,
na seqüência da vitoriosa Revolução
Constitucionalista do Porto, às atividades das “Cortes Gerais, Extraordinárias e
Constituintes da Nação Portuguesa”, às
quais o Brasil, então Reino Unido, enviara seus delegados. Estes, porém, de lá
regressaram convencidos da necessidade
de a monarquia tropical também se constitucionalizar, mas com independência de
Portugal.
Declarada esta, convocaram-se eleições para a Assembléia Geral, Constituinte
e Legislativa do Império do Brasil, a qual
se reuniu, pela primeira vez, em sessão
preparatória, no dia 17 de abril de 1823
e, em sessão inaugural solene, no dia 3 de
maio do mesmo ano. A história de nosso
* Deputado Federal / Presidente da Câmara dos Deputados
142
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE
Legislativo se confunde, pois, com a história do Brasil independente.
Não nos cabe recapitular as vicissitudes pelas quais passou a legislatura entre
nós, ao longo de sua história. Ela sobreviveu aos percalços, sobretudo durante os
retrocessos ditatoriais. Apesar de tolhida
em suas funções, nela nunca deixaram
de fazer-se ouvir as vozes de oposição ao
arbítrio e de defesa das liberdades e do
estado de direito. Que se rememore terem
as lideranças parlamentares desempenhado, no processo de abertura, que finalizou
o último ciclo autoritário pelo qual passamos, decisivo papel, como intermediadoras eficazes nas negociações entre o
governo e os grupos da sociedade civil.
Depois de levada a bom termo a
abertura política e a retomada da democracia, o Congresso tem desempenhado
um relevante papel na consolidação e no
aperfeiçoamento do regime. Que não se
esqueça, por exemplo, a condução equilibrada do processo de impeachment de um
Presidente da República, certamente uma
das provas mais difíceis pelas quais pode
passar o sistema presidencialista.
Apesar do protagonismo do nosso
Legislativo, não raro encontra eco entre
nós uma expectativa resignada, até cética,
quanto à função desse poder no mundo
contemporâneo. Aliás, não é de hoje essa
visão pessimista. Já no século XIX, autores
como Walter Bagehot e Stuart Mill olhavam com temor a crescente ampliação do
eleitorado na Grã-Bretanha. Segundo eles,
esse fenômeno iria alterar a composição
do parlamento, transformando os homens
até então independentes, componentes da
chamada classe política, em uma minoria
sem poder.
Essas preocupações só fizeram crescer ao longo daquele século, repercutindo
em autores como Ostrogorski, Lowell e
Bryce, que olhavam também com suspeição o aparecimento das massas e dos partidos políticos organizados que as representavam.
Essas entidades, na feição assumida
com o suceder das eleições, serviam para
agregar as demandas do crescente eleitorado. Ao fazê-lo, retiravam da classe política
a liberdade de ação de que antes tinha
gozado. A atuação parlamentar passou a
ser cada vez mais partidária, em vez de
individual.
Ao mesmo tempo, os novos grupos sociais que entravam na vida política aumentavam suas reivindicações. Para
atendê-las, o Estado teve de expandir-se
como entidade prestadora de serviços e
reguladora de atividades, num vasto espectro de políticas governamentais, deixando
para trás a imagem do Estado do “laissez
faire, laissez passer”.
Nesse contexto, os partidos não
foram apenas os portadores passivos dos
pleitos do eleitorado, mas tornaram-se,
também, agentes da transferência de poder
do Parlamento para o Executivo, a qual foi
gradualmente ocorrendo. A assembléia aos
poucos cedeu lugar à burocracia pública,
comandada, nos regimes parlamentares,
por gabinetes que as maiorias partidárias
constituíam e que, gradualmente, foram
relegando a assembléia a funções relativamente ancilares na determinação da
política pública.
Nos meados do século passado, o
eixo das decisões deslocou-se ainda mais
para fora do parlamento, quando as grandes centrais sindicais e patronais, em con143
ENSAIO
jugação com o próprio governo, passaram
a constituir foros para decisões de políticas
governamentais, sobretudo as macroeconômicas, mediante os chamados arranjos
neocorporativistas, até hoje vigentes em
alguns países.
Como conseqüência dessas mudanças, teríamos, no mundo contemporâneo,
a substituição, no debate político, do parlamento pelos partidos, órgãos de classe
e meios de comunicação de massa, e a
perda de algumas de suas funções-chave
para os arranjos neocorporativistas.
Contudo, devemos cotejar essa
verificação pessimista sobre o papel do
Legislativo no mundo contemporâneo com
fatos e tendências que apontam em outra
direção. Se não, vejamos.
A quem acompanhou as grandes
transformações do final do século recémterminado, não pode ter passado despercebida a instalação dos parlamentos nos
países que saíram de regimes ditatoriais,
ou sua revitalização e renovação, quando
não tinham sido extirpados, mas tinham
sobrevivido precariamente, privados de
poderes. Hoje, um país não ter um parlamento funcionando com razoável desenvoltura, em cujo seio se abrigue uma oposição, pode tomar-se, sem medo de errar,
como indicador da presença de um regime
ditatorial.
Mas constituiria essa revivescência
dos parlamentos apenas homenagem ritual
a uma velha instituição, vista, desde Locke
e Montesquieu, como apanágio dos governos constitucionais e, posteriormente, com
a participação popular ampliada, também aceita como núcleo da própria idéia
democrática? Ou brotaria tal fenômeno de
impulsos mais profundos?
144
Inúmeros estudiosos que se têm
debruçado sobre os parlamentos discordam do diagnóstico pessimista. Esse diagnóstico é, na verdade, em boa parte, uma
reação conservadora dos que vêem na
expansão democrática apenas prenúncio
de inelutável declínio das instituições. Os
Legislativos modernos têm-se mostrado, ao
contrário, insubstituíveis no desempenho
de tarefas básicas da política democrática,
as quais dificilmente poderiam levar-se a
cabo fora do parlamento.
Tomemos um ingrediente inarredável
da democracia, ou seja, a competição política, a disputa de grupos e classes sociais
para conquistar o poder e, assim, ter seus
interesses tomados em devida conta e
efetivamente promovidos. Não se trata de
competição desregrada, um vale-tudo. Ao
contrário, tem de desdobrar-se sob a égide
de regras do jogo mutuamente consentidas, para que seu desfecho seja acatado.
Ora, o parlamento é essencial para
que a competição política se dê sob esse
marco regulatório estável, antes e depois
do momento eleitoral. O parlamento é,
precisamente, a instituição, aperfeiçoada
sobretudo ao longo dos últimos duzentos
anos, cujas regras e procedimentos permitem, na entressafra eleitoral, que a luta
política transcorra civilizadamente, e que
a solução dos conflitos siga uma forma
pactuada, para que todos os competidores
aceitem as decisões, em vez de se engalfinharem em combates sem trégua.
Esse papel de foro institucional para
a competição política entre governo e
oposição tem sido sobremodo importante
na evolução das democracias, inclusive a
nossa, pela capacidade que a legislatura
tem demonstrado de incorporar novos
SUSANNE GRATIUS
JOÃO /PAULO
DELFETCUNHA
NOLTE
grupos à representação política. Ela o
faz por via de partidos que expressam as
reivindicações de setores antes privados
da cidadania. Dentro da assembléia, no
plenário e nas comissões, habilitam-se tais
grupos a usar dos meios institucionais para
fazer que sua perspectiva seja levada em
conta. Sem a instituição parlamentar, aqui
e em outras partes, a luta política seria
uma confrontação contínua, via luta armada. A força, não o direito, iria prevalecer.
Quando esse é o caminho tomado, dificilmente há desfecho democrático.
Ao contrário, sabemos que, mesmo
nos sistemas políticos de participação limitada – assim se configuravam politicamente as sociedades européias que primeiro se
liberalizaram –, quando os estratos populares adentraram a vida política, já encontraram à sua disposição, em funcionamento,
um conjunto de mecanismos para a solução de conflitos e a tomada de decisões,
de que também puderam valer-se na defesa de seus interesses. Jogando o jogo sob
as regras preestabelecidas, descobriram
que, aumentando a cada eleição seu peso
parlamentar, ganhavam poder e conseguiam prevalecer em muitas negociações
e decisões, até, finalmente, conquistarem
o governo. Em suma, o parlamento mostrou-se um dos lugares institucionais por
excelência para, quer no parlamentarismo, quer no presidencialismo, a oposição
democrática ter voz e voto, e preparar-se
para assumir o poder.
Que dizer dos arranjos neocorporativos? Apesar das críticas que a eles foram
dirigidas – e que entre nós se repetiram,
quando o Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva criou o Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social – de que até estariam usurpando funções do parlamento,
a verdade é, ao contrário, ser bastante
circunscrito seu papel. Há áreas da política pública que lhe escapam, porque não
é ele o foro adequado para decidi-las.
Maurizio Cotta lembra, por exemplo, não
se poder pensar em fazer a política externa
por acordos neocorporativistas. E, sendo o
governo um dos parceiros nas negociações
tripartites, entabuladas mediante os arranjos neocorporativos, se ele quer continuar
como um governo democrático, sua política tem de ter o próprio parlamento como
partícipe decisivo. Na forte expressão de
Cotta, um Executivo sem contrapartida de
um Legislativo capaz de oferecer espaço
político à oposição degeneraria em um
órgão autocrático.1
Uma outra tendência contemporânea merece comentário, sem embargo das
ponderações anteriores sobre a continuada relevância da instituição parlamentar na democracia contemporânea. Temos
em mente a assunção, pelos Executivos,
de acrescidos poderes legislativos, entre
outros aspectos pela faculdade de legislar
por decretos, fenômeno acentuado nas
últimas décadas do século passado.
Guillermo O’Donnel tentou singularizá-lo para democracias como a brasileira,
a argentina e outras, saídas de regimes que
ele intitulou “burocrático–autoritários”.
Tratar-se-ia da “democracia delegativa”.2
Para O’Donnel, ganhou corpo, com
a nova onda de democratização, um “subtipo de democracia”, constituído de regimes que não parecem prestes a regredir para o autoritarismo, mas, tampouco,
parecem caminhar para uma “representatividade institucionalizada” maior. Neles,
o Congresso e o Judiciário aparecem como
incômodos que se têm de aceitar para o
145
ENSAIO
país poder usufruir as vantagens internas
e externas de ter “um presidente democraticamente eleito”. A obrigatoriedade de
prestar contas (accountability) a outras instituições seria ainda relutantemente aceita.
A “democracia delegativa” pode até ser,
em virtude de seu lado plebiscitário, mais
democrática do que a democracia representativa clássica, mas certamente, observa O’Donnel, é menos liberal que esta.
Os novos regimes tenderiam a insular
politicamente decisões básicas, confiandoas aos tecnocratas, sobretudo nos assuntos
econômicos, e a relegar e descartar as
resistências do legislativo, dos partidos ou
das associações às medidas por eles propostas.
As democracias delegativas parecem,
assim, estar conservando traços dos regimes burocrático–autoritários a que sucederam, o que tentam justificar por se estarem
debatendo com sérias crises econômicas
e sociais, exigentes de medidas de urgência e alta necessidade. A diferença com
relação ao regime anterior é que, agora, o
Congresso e os partidos podem criticar as
políticas do governo; os tribunais podem
impedir medidas flagrantemente inconstitucionais, e os sindicatos e associações
patronais não são impedidos de reclamar e
combater as políticas de que discordarem.
Esses elementos democráticos seriam
reais na democracia delegativa, mas, comparada com as democracias consolidadas,
os poderes do Executivo não são devidamente contrabalançados por outras instituições relativamente autônomas, com
capacidade de "questionar e eventualmente punir maneiras 'impróprias' de o
ocupante do cargo(...) cumprir suas responsabilidades".
146
O'Donnel se mostra particularmente
alérgico à gestão econômica da "democracia delegativa", a qual contrastaria em
extremo com a tomada de decisões própria da democracia representativa. Nesta,
as medidas passam pelo crivo de vários
poderes, cada um com poder de veto.
As decisões surgem de processos lentos,
passo a passo, mas a implementação delas
é mais segura e os erros, cuja responsabilidade é compartilhada por muitos, podem
ser detectados antes que seja tarde. Com o
"decretismo" da democracia delegativa, as
decisões são rápidas, mas não evitam erros
grosseiros e sua implementação é incerta.
Sem dúvida, a democracia delegativa
de O'Donnel descreve muitas características dos nossos regimes pós-autoritários.
Seu ensaio data do auge dos pacotes econômicos e das medidas de choque, aqui e
em outros países.
Entretanto, esse conceito, muito colado a uma certa conjuntura latino-americana, parece apenas extremar tendências
presentes nas próprias democracias consolidadas a que O’Donnel se refere. O
predomínio do Executivo sobre os demais
poderes extrapola de muito o subconjunto
das democracias delegativas. Que se lembre a força dos gabinetes britânicos, que
reduzem o parlamento, como assembléia,
a foro de debates, ou o “decisionismo”
que vai e volta na Itália, pátria, aliás,
das medidas provisórias, inclusive de sua
reedição. O semipresidencialismo francês
dota o gabinete de extraordinária força,
sobretudo nos períodos em que presidente
e primeiro-ministro pertencem à mesma
maioria partidária. Por toda parte, no continente europeu, fala-se de “parlamentarismo racionalizado”, ou seja, sistemas não
SUSANNE GRATIUS
JOÃO /PAULO
DELFETCUNHA
NOLTE
sujeitos à paralisia de decisões, porque é
dada ao Executivo a capacidade de ver
seus projetos aprovados com celeridade
e praticamente não emendados. E, na
democracia norte-americana, o uso, pelo
presidente, de seu poder de decreto – as
ordens executivas – tem sido freqüente e
sua abrangência é cada vez maior.
Ao examinarmos a nova realidade,
é preciso, primeiramente, deixar de ver
a democracia como um regime pronto
e acabado, que possa permanecer imutável quando o mundo ao redor está em
constante transformação. O mundo globalizado exige uma presteza de resposta
governamental desconhecida em outros
tempos. Por mais bem organizado que seja
o Poder Legislativo, por mais centralizados
que sejam seus mecanismos de decisão,
trata-se sempre de um grande colegiado,
cuja lógica de funcionamento não é, nem
pode ser, a mesma do Executivo. Por isso,
é errôneo, como freqüentemente se vê,
encarar o uso do “poder de decreto” pelos
governos como constituindo sempre uma
usurpação e, da perspectiva da assembléia, uma abdicação de competência.
A tendência generalizada de recurso
ao “decretismo” revela haver causas mais
profundas em operação do que a simples
volúpia de poder de governantes, em cumplicidade com parlamentares pouco identificados com sua missão e pouco ciosos
de sua competência legislativa.
Estamos diante de um dos problemas
magnos da democracia de hoje, no que
diz respeito a uma redefinição dos papéis
dos dois poderes, num mundo em que
as decisões têm de ser céleres e as crises
externamente geradas se sucedem a curtos
intervalos.
Por outra parte, instrumentos como
as “medidas provisórias”, ainda que necessários – como o próprio constituinte de 88
reconheceu, apesar do estado de espírito
por todas as razões avesso, à época, à
preponderância do Executivo, vista como
parte do entulho autoritário – devem
conhecer limites, como não cessam de
alertar expoentes de nossos meios jurídicos. Não se pode ignorar os grandes
problemas de segurança jurídica que um
arcabouço legal construído com recurso
tão abundante como as MP´s traz. Afinal,
normas criadas por MP´s podem também
se modificar por novas MP´s, o que não é
muito tranqüilizador diante da necessidade de normas estáveis.
A Emenda Constitucional nº 32/2001
sem dúvida aperfeiçoou a sistemática das
Medidas Provisórias, em particular por
delimitar com clareza as matérias que lhe
são vedadas e limitar-lhes a reedição. Com
essas vedações, diminuiu-se a irrestrita
delegação de antes. Contudo, na prática, a
nova mecânica tem trazido problemas ao
funcionamento do Legislativo, sobretudo
pelo “trancamento de pauta” que provoca,
quando também outras matérias relevantes
precisam de deliberação. Ainda temos de
obter um melhor ajuste entre os dois poderes no uso do instituto emergencial, que
deve ser mais parcimonioso por parte do
Poder Executivo.
Os que estudam o indiscutível predomínio do Executivo, por toda parte, na iniciativa legislativa, quando não na própria
legiferação – pois, com os decretos com
força de lei, a lei já vem pronta do próprio
governo – têm apontado, todavia, para
diferenças entre as legislaturas dos países
democráticos. Algumas logram exercer um
papel mais decisivo na produção legal do
que outras.
147
ENSAIO
Esse papel decisivo já não é de
exclusividade na legiferação, mas significa não ser o Legislativo apenas foro de
debates, senão também instituição com
capacidade de afetar a própria legiferação. O Legislativo exerce, também, função
transformativa, ao trabalhar e aprimorar os
projetos que recebe, ou ao processar os de
sua própria iniciativa.
O que distingue os parlamentos mais
efetivos, com maior capacidade transformativa, dos demais, é sua própria organização interna, sua institucionalização,
sobretudo quando contam com um forte e
complexo sistema de comissões.
Nossa Câmara dos Deputados dispõe
de comissões permanentes, com jurisdições regimentalmente definidas. Ainda
não chegamos, porém, a institucionalização satisfatória nesse particular. Ainda não
preenchemos algumas condições importantes para lográ-la. Vejamos alguns dos
problemas pendentes.
Para as comissões desempenharem
em plenitude o papel que delas se espera,
deveria haver incentivos para a especialização dos parlamentares nos assuntos
sobre os quais cada uma tem jurisdição.
A especialização advém não apenas da
formação profissional, do setor de atividade social e econômica a que o deputado
está vinculado, enfim, de sua experiência
prévia, mas, também, do investimento de
seu tempo nos assuntos de que o colegiado trata. Esses incentivos são limitados,
porém, exceto no caso dos presidentes da
comissão e de seus relatores.
Diferentemente de outras legislaturas
– sobretudo o Congresso norte-americano,
exemplo mais relevante para nós, por se
tratar de um sistema presidencial –, nossa
148
Câmara não constitui, para numerosos
parlamentares, o horizonte de sua “carreira” política. É apenas um estádio numa
carreira em geral orientada para postos no
Executivo, sobretudo os de nível infranacional (prefeituras e secretarias de estado).
A maioria dos representantes norte-americanos, ao contrário, pensa na carreira
legislativa como horizonte de longo prazo,
uma opção de vida. Nela os deputados
investem seu tempo, esforços e ambição.
E a comissão é o lugar fundamental para
desenvolver a carreira parlamentar bemsucedida.
Entre nós, não existe um sólido princípio de antigüidade, de tempo de serviço
do parlamentar na instituição, ao contrário
do que se dá no Congresso norte-americano, em que a chamada seniority é
respeitada. Seniority significa recompensa
ao tempo de serviço. Quando existe, o
deputado é estimulado a investir no trabalho de comissão, a nela permanecer
por longo tempo, pois, quanto mais nela
permanecer, quanto mais dominar seu
campo temático, tanto maior o seu poder
parlamentar. Na House of Representatives
norte-americana, os presidentes de comissões e subcomissões são os parlamentares
que nela vêm servindo ao longo de vários
mandatos.
No Brasil, praticamente proibimos
regimentalmente a carreira no âmbito da
comissão, pois seus cargos de comando
devem renovar-se anualmente, além de
haver grande rotatividade entre os próprios membros das comissões. Haveria
que repensar o problema, sem, entretanto, ignorar a complexidade de reforçar o
sistema de comissões e ao mesmo tempo
buscarmos solidificar os partidos políticos.
As partes de um sistema político se inter-
SUSANNE GRATIUS
JOÃO /PAULO
DELFETCUNHA
NOLTE
relacionam. Comissões fortes, compostas
por parlamentares especializados e com
extensa folha de serviços em suas atividades, não existirão no vazio. Ao contrário,
podem entrar em choque com partidos
mais coesos e disciplinados, que procurarão controlar a produção da comissão.
A busca do equilíbrio entre os dois desideratos constitui um desafio sem solução
fácil, que temos, porém, de enfrentar. E os
estudiosos da Ciência Política, os publicistas e os próprios parlamentares estão
desde já convocados a ajudar a Câmara
dos Deputados com suas sugestões sobre
como encará-lo.
dução de seus estudos. Chamo a atenção,
também, para a disponibilidade, em nossa
página na Internet, dos Anais da Câmara,
desde os do ano de 1826. O acesso a essa
rica fonte é fácil, não havendo, doravante,
desculpa para não se pesquisar a instituição por dificuldade na obtenção dos
dados. Igualmente, o acompanhamento
dos projetos aqui em tramitação é simples, podendo-se obter o texto integral das
proposições e dos pareceres em todas as
fases.
Devo assinalar os notáveis progressos que as modernas tecnologias de
informação nos têm propiciado, e delas
nos temos valido, para o aperfeiçoamento
do trabalho parlamentar e, também, da
transparência deste perante a sociedade.
Quem entrar em nossa página da Internet
terá pleno e rápido acesso às informações
relevantes sobre a atividade legislativa.
Muitas vezes se infere, da observação externa, ser o papel da Casa mais
passivo na legiferação, menos transformador, pela preponderância do Executivo na
iniciativa legislativa. A despeito, porém,
de todas as deficiências que ainda existem
e da grande premência de tempo sob as
quais o órgão tem muitas vezes de deliberar, as proposições que aqui tramitam
passam por cuidadoso escrutínio, negociação, inclusive com o outro Poder, e aprimoramento. Rara a proposição que aqui
deixa de sofrer mudanças, via emendas. A
votação nominal, cujo dado fica registrado
e tem sido objeto de estudos acadêmicos,
é apenas a culminância de uma complexa
tramitação em que, em vez de simples
delegação ao Executivo ou abdicação de
poderes, a Câmara desempenha a função
que lhe é própria no sistema de separação
de Poderes.
A imprensa pode ter amplo conhecimento de nossas lides, e a comunidade acadêmica brasileira que se dedica
aos estudos do Legislativo tem podido,
nos últimos anos, ter acesso à abundante
massa de dados para tratar, com metodologia científica, o que a Casa faz. Mediante
análise de nossas votações nominais, por
exemplo, têm-se feito numerosas inferências sobre o papel do Legislativo na Nova
República, sobre a força dos partidos na
atividade parlamentar e sobre o relacionamento entre os Poderes. Neste primeiro
número de Plenarium, publicam-se alguns
textos de cientistas políticos, os quais se
têm valido do acesso rápido e confiável
aos dados da atividade legislativa na pro-
Enfim, a Câmara é uma instituição
responsável e transparente, como deve
ser.
Para preencher essa função de modo
mais satisfatório, a Câmara dos Deputados
tem, ao longo dos últimos anos, investido em assessoramento especializado.
Comparada com outras legislaturas presi149
ENSAIO
dencialistas, podemos dizer estarmos bastante adiantados no assunto. De modo
geral, as matérias sobre as quais temos de
deliberar podem ser tratadas com competência técnica, dentro obviamente das
limitações de tempo sob as quais temos
freqüentemente de funcionar, sobretudo,
como assinalado antes, com uma pauta
de decisões em boa parte gerada pelo
Executivo, e sob regime de urgência.
Outro ponto a realçar é a produtividade da Casa. Dos Poderes da República,
nenhum mais exposto do que o Legislativo.
É fácil passar ao público uma imagem
deturpada, como se a Câmara fosse órgão
desidioso. Focaliza-se o plenário vazio
fora do horário das discussões e deliberações da “ordem do dia”, e tira-se fácil,
mas deturpada, conclusão. É que, nesses
momentos captados pela mídia, podem,
por exemplo, estar funcionando, a pleno
vapor, as comissões, e isso não é mostrado.
Podem estar os parlamentares em entrevistas com autoridades do Executivo, veiculando os pleitos de seus eleitores e regiões,
e acompanhando-lhes o atendimento, ou
recebendo líderes de seus Estados e simples
cidadãos, ou trabalhando em seu gabinete
na redação de um complexo parecer ou
pronunciamento. Todas essas atividades
fazem parte de seu papel, apesar de serem
menos visíveis.
Basta olharmos o que foi por nós
votado nos últimos anos para vermos que
a Câmara nada fica a dever às assembléias
mais operativas. Aqui, expresso minha
estranheza diante de uma visão quantitativista, que julga nossa produção pelo número de projetos apresentados, sem olharlhes o teor e a relevância. O importante é
deliberar sobre proposições significativas.
Nesse particular, não nos saímos mal. À
150
guisa de exemplo, para não recuar muito
no tempo, citem-se, nesta Legislatura, entre
vários exemplos, a complementação da
reforma da previdência social, a reforma
tributária ou o Estatuto do Desarmamento
(Lei nº 10.826/2003), e, em legislaturas
recentes, a Lei de Responsabilidade Fiscal,
acoplada com a de Crimes Fiscais, a Lei
dos Partidos Políticos, a Lei das Eleições,
a Lei do Refis, a Lei Complementar que
acabou com o sigilo das instituições financeiras, as Emendas Constitucionais de
Desvinculação das Receitas da União,
de criação da CIDE – combustíveis, das
Reformas Administrativa e Previdenciária,
entre muitas outras peças legislativas fundamentais.
Para concluir estas notas sobre a
Câmara dos Deputados, recordemos ter
passado nossa democracia, com as eleições
de 2002, pelo prova crucial do regime, ou
seja, a transferência do poder à oposição,
com total respeito às regras do jogo e num
clima de inteira normalidade institucional.
Não se tratou, como em vezes anteriores,
de um simples rodízio de grupos das elites
governantes, extraídos das camadas altas
e médias que tradicionalmente exerceram
o poder entre nós, mas sim da chegada à
presidência de um líder popular vindo da
classe operária.
No novo patamar de nossa política,
neste século que se inicia, o papel da
Câmara dos Deputados será, mais do que
nunca, decisivo. Ela não vai desempenhar
somente um papel reativo na elaboração
das reformas de que o País necessita, mas
será, sobretudo, a oficina de um árduo trabalho proativo, resultante dos embates, dos
acordos e das negociações entre as forças
políticas que, no seu interior, representam
o diversificado eleitorado nacional. Nosso
SUSANNE GRATIUS
JOÃO /PAULO
DELFETCUNHA
NOLTE
Legislativo não se omitirá da missão que
dele espera o povo brasileiro nesta quadra
tão rica de nossa história.
Que a revista Plenarium, agora lançada, seja, entre outras coisas, um foro
fecundo de debate político, um lugar de
difusão e discussão de conhecimentos
sobre o Poder Legislativo e de estreita
colaboração da pesquisa acadêmica com
o fazer parlamentar. Sobretudo, que constitua mais um dos laços que unem esta Casa
à opinião pública, contribuindo, assim,
para o reforço da democracia brasileira
nesse aspecto fundamental, que é a abertura e a transparência das instituições em
relação à sociedade.
NOTAS
(Footnotes)
1
Maurizio Cotta, verbete “parlamento”, em Norberto Bobbio, Nicola Mateucci e Giafranco Pasquino, org. Dicionário de Política, Brasília:
Editora UnB, 1986.
2
Guillermo O’ Donnel, “Democracia Delegativa?”, Novos Estudos/CEBRAP, 1991.
151
ENSAIO
*ARLINDO CHINAGLIA / **ATHOS PEREIRA
Sobre a Reforma
Política
I – Diagnóstico
Ninguém ignora que, desde que o
povo foi às ruas, clamando por eleições
livres e diretas, o sistema político e eleitoral brasileiro passou por transformações
democráticas significativas. O país foi
constitucionalizado, aquilo que se convencionou chamar de entulho autoritário foi removido; estabeleceram-se, desde
então, eleições diretas em todos os níveis;
foi instituída a liberdade partidária e
realizaram-se avanços até em campos
onde as expectativas eram mais modestas,
como é o caso do sistema eletrônico de
votação e apuração de votos. Nesta área
construiu-se um sistema que está, sem
dúvida, na vanguarda mundial. E, se não é
imune à fraude, certamente levanta sólidas
barreiras contra essa condenável prática
secular. Mas nem por isso o sistema político brasileiro deixa de padecer de sérias
limitações. Aqui algumas delas:
No Brasil, o financiamento privado
de campanhas é escandaloso. Ele assegura
uma desigualdade absoluta, não só entre
os partidos, mas até dentro dos partidos,
* Deputado Federal / ** Chefe de Gabinete da Liderança do PT
152
de um candidato com relação ao outro, de
uma fração partidária com relação à outra.
E provoca, de quebra, as condições para a
prática do abuso do poder econômico de
forma que, freqüentemente, a vontade do
eleitorado sai deformada da urna, independentemente das virtudes do sistema
eletrônico de votação.
A ausência de regras destinadas a
assegurar um mínimo de fidelidade partidária faz com que, quase sempre, as
siglas partidárias funcionem como meras
franquias e confere aos eleitos uma liberdade absoluta para trocar de sigla, sem a
menor preocupação em dar explicações
à sociedade ou, pelo menos, a seu eleitorado. Essa permissividade certamente
não contribui para fortalecer os partidos
e, por conseqüência, serve para fragilizar
a democracia já que, sem partidos fortes
e representativos, o sistema democrático
tende a perder terreno. Ressalto que não
se trata de impor uma fidelidade partidária
rígida, assegurada por leis draconianas,
inclusive porque isso feriria a liberdade de
organização partidária. Além disso, nossa
experiência na construção do PT ensina
que é possível se obter um alto grau de
fidelidade partidária, independentemente
das leis, desde que se pratique a democracia interna no partido. Mas, tal como
está hoje, a legislação favorece o individualismo e a corrupção, em detrimento da
construção de projetos que contem com o
apoio consciente e consentido de frações
da sociedade.
A inexistência de listas faz com que
as naturais disputas internas nos partidos, entre tendências e personalidades, se
transfiram para a sociedade, o que fragiliza
os partidos. Isso reduz a força do apelo
programático e despolitiza as disputas,
reduzindo-as a brigas entre caciques ou
entre grupos. A despolitização não contribui em nada para a educação política do
povo. As disputas proporcionais se transformam numa balbúrdia em que o que
menos conta são os programas defendidos
pelos candidatos. As vitórias são conquistadas na base do poder econômico ou, na
melhor das hipóteses, pela articulação das
corporações e, só raramente, pelo chamado voto de opinião.
É correto considerar que as coligações são próprias dos sistemas democráticos. Mas também é correto considerar que
as coligações proporcionais mereceriam
uma normatização mais rígida. Se no
passado era aceitável que algumas correntes políticas perseguidas pela ditadura se
abrigassem sob o guarda chuva do MDB,
hoje, quando todas podem se apresentar livremente à opinião pública, melhor
seria que cada uma se mostrasse com seu
próprio programa. Isso contribuiria para a
politização da sociedade e até para a montagem equânime de possíveis governos de
coalizão. Já que, na inexistência de coligações proporcionais, seria possível aferir
com precisão a força real de cada partido.
Além disso, um dos efeitos de tirar o guarda-chuva de certos partidos seria permitir-lhes se desenvolver sem a bengala dos
mais fortes. Andar sem bengalas fortalece
os músculos. O PT cresceu sem usar guarda-chuva nem bengala, fazendo alianças
parcimoniosas, quase sempre mostrando
sua própria cara ao eleitorado. Acho que
nossa experiência poderia ser tomada em
consideração.
Nenhum democrata pode ser um
entusiasta de cláusulas de barreira. Mas
mesmo as democracias mais sólidas estabelecem regras de representatividade para
que os partidos consigam assentos em seus
parlamentos. A Constituição alemã, por
153
ENSAIO
exemplo, contém esse tipo de dispositivo
e o Partido Verde alemão já esteve excluído do Parlamento por não ter alcançado
um número mínimo de votos. Quando
os verdes se viram excluídos, ninguém
acusou o sistema alemão de ser ditatorial.
Tampouco o PV alemão foi para os cantos do Parlamento choramingar por um
jeitinho. Pelo contrário, foi para a sociedade debater suas propostas, exercitar seus
músculos. Hoje voltou ao Parlamento e
participa do governo em aliança com a
social-democracia.
É verdade que a lei não deve
prejudicar partidos que, mesmo pequenos,
tenham programas consistentes, história e
um certo grau de inserção na sociedade.
Tampouco é correto que a lei seja objeto
permanente de burla, abrindo uma avenida
para a constituição de siglas cartoriais,
de aluguel, que quase sempre servem a
interesses pouco confessáveis.
No Brasil, a representação do povo
na Câmara dos Deputados padece de
severas deformações. Neste capítulo, a
Constituição de 1988 foi um retrocesso.
Antes dela, a legislação eleitoral estava
mais próxima de assegurar o princípio
democrático de que a cada eleitor deve
corresponder um voto. Quando estabeleceu
que a cada unidade da federação cabia
eleger no mínimo oito deputados federais
e no máximo setenta, a Constituição de
1988 provocou uma enorme deformação,
através da qual discrimina quem mora no
Centro-Sul, particularmente em São Paulo,
e assegura uma sobre-representação,
particularmente para os Estados do Norte
e do Centro-Oeste.
A título de ilustração, temos um
exemplo extremo: em Roraima, nas
últimas eleições, tinham direito a voto
197.346 pessoas. No Estado de São Paulo,
154
nas mesmas eleições, 26.425.954 pessoas
tinham direito a voto. Isto significa que o
quociente eleitoral em Roraima é 197.346
dividido por 8, que é igual a 24.668. Ou
seja, um deputado federal em Roraima
representa 24.668 eleitores. Já o quociente
eleitoral no estado de São Paulo é obtido
pela divisão de 26.425.954 por 70, que é
igual a 377.513. Isto que significa que um
deputado federal por São Paulo representa
377.513 eleitores. A divisão do quociente
eleitoral de São Paulo pelo quociente de
Roraima mostra que o peso do eleitor de
Roraima é 15 vezes maior que o peso do
eleitor de São Paulo na composição da
Câmara dos Deputados.
Esperamos que ninguém veja neste
exercício algum tipo de bairrismo. Quando
falamos de eleitores de São Paulo, estamos
falando com igual respeito para com todos
os que moram em São Paulo e exercem seu
direito de voto naquele estado. Quando
usamos Roraima como exemplo não nos
move nenhuma má vontade para com os
habitantes daquela unidade da federação.
Utilizamos o exemplo apenas para ilustrar
um caso evidente de distorção que,
seguramente, não é da responsabilidade
dos eleitores de Roraima.
Aos que porventura alegassem que
esta distorção serve para dar equilíbrio
político à nossa federação economicamente
desequilibrada, eu lembraria que o
equilíbrio político da federação é dado
pelo Senado, onde a representação de
cada unidade federada é igual. Cada uma
tem três senadores e o Senado funciona
como Casa revisora, por lá tramitam todas
as matérias que tramitam na Câmara, o
que também me parece questionável, mas
este assunto não está em pauta.
ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA
O quadro a seguir mostra como é a representação atual do povo, distribuído pelos
estados, na Câmara dos Deputados, e como seria se fosse aplicado o princípio democrático
de que a cada eleitor deve corresponder um voto:
UF
ELEITORES
DEPS_atual
%/BR
DEPS_IDEAL
AC
371.764
8
0,32%
2
AL
1.648.391
9
1,40%
7
AM
1.578.389
8
1,34%
7
AP
310.912
8
0,26%
1
BA
8.593.106
39
7,30%
37
CE
4.928.660
22
4,19%
21
DF
1.530.451
8
1,30%
7
ES
2.166.648
10
1,84%
9
GO
3.498.544
17
2,97%
15
MA
3.517.123
18
2,99%
15
MG
12.963.562
53
11,01%
56
MS
1.441.607
8
1,22%
6
MT
1.770.653
8
1,50%
8
PA
3.758.711
17
3,19%
16
PB
2.361.184
12
2,01%
10
PE
5.510.895
25
4,68%
24
PI
1.876.289
10
1,59%
8
PR
6.684.573
30
5,68%
29
RJ
10.432.531
46
8,86%
45
RN
1.960.717
8
1,67%
9
RO
917.657
8
0,78%
4
RR
197.346
8
0,17%
1
RS
7.412.691
31
6,30%
32
SC
3.879.940
16
3,30%
17
SE
1.183.607
8
1,01%
5
SP
26.425.954
70
22,45%
115
TO
801.184
8
0,68%
3
117.723.089
513
TOTAL
509
155
ENSAIO
Naturalmente a mediação está na
essência da política. Por isso, não seria
surpresa se numa negociação sobre esta
matéria surgissem propostas no sentido de
não se aplicar rigidamente o princípio de
que a cada eleitor deve corresponder um
voto, mas visando a, pelo menos, reduzir
as deformações atualmente existentes.
Há ainda quem discuta a questão do
sistema de governo. Existem partidos que
são programaticamente parlamentaristas.
Nós somos presidencialistas e consideramos que esta é uma cláusula pétrea da
Constituição, consagrada em dois plebiscitos pela vontade expressa da esmagadora
maioria da população. Consideramos, portanto, que não há espaço para discussão
desta matéria. Recusamos também a idéia
do voto distrital, sobretudo a idéia do voto
distrital puro, porque esta é uma forma
antidemocrática que exclui as minorias.
Teoricamente, neste sistema, uma minoria
expressiva pode ser completamente afastada do parlamento mesmo que conquiste
49,9% dos votos em todos os distritos. Na
Inglaterra, nas eleições de 1979, o Partido
Conservador obteve 43,9% dos votos, com
isto conquistou 53,4% das cadeiras do parlamento. Os trabalhistas, com 36,9% dos
votos, ficaram com 42,2% das cadeiras; já
o Partido Liberal, tendo alcançado 13,8%
dos votos obteve apenas 1,7% das cadeiras
do parlamento. Esta é uma evidente distorção. E o sistema distrital misto apenas
atenua esta deformação evidente.
Finalmente, vale lembrar episódio
recente, quando dois tribunais superiores
decidiram baixar regras mais rígidas sobre
a composição das câmaras municipais.
Inegavelmente, as decisões adotadas pelo
STF e pelo TSE têm um cunho moralizador.
No entanto, revelam uma surpreendente
vocação legiferante das duas cortes, o que
156
foi confirmado também pela decisão de
verticalizar as alianças eleitorais, tomada
pelo TSE durante a campanha eleitoral de
2002. Possivelmente, a decisão de verticalizar tem seus méritos, mas foi tomada
no lugar errado. Temos esperança de que
a Câmara dos Deputados aprove uma PEC
que está tramitando nas comissões com o
objetivo de estabelecer regras precisas
sobre o número de vereadores de cada
município e que, nesse movimento, detenha a vocação legiferante de certos tribunais, mas incorpore as tendências moralizantes reveladas pelas cortes. O episódio
serve também para lembrar ao Legislativo
o dever da celeridade. É inegável que
o Legislativo dormiu sobre esta matéria.
Tivesse sido mais ágil, os tribunais não
teriam tido espaço para legislar.
Também caberia regular de forma
mais precisa a questão da mídia, tanto no
que diz respeito à distribuição dos espaços entre as diferentes correntes políticas,
como no que diz respeito à propriedade
de meios de comunicação que, freqüentemente, são utilizados de maneira arbitrária
por oligarquias locais.
II – Uma reforma ampla
Uma reforma política é assunto que
concerne mais a filósofos e escritores como
Platão, Aristóteles e Thomas Morus do que
a nós, militantes da política. De forma
alguma queremos menosprezar a contribuição desses autores; todos eles deixaram
grandes contribuições. Platão não somente
foi o principal responsável pela preservação da memória de Sócrates, precursor de
toda a filosofia ocidental e que não escrevia, como foi um grande pensador em
todos os campos em que atuou, inclusive
na teoria política. Na prática política, que
é espinhosa, aceitou ser assessor do tirano
de Siracusa e não se deu bem.
ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA
Aristóteles pode ter deixado um legado de atraso para seus discípulos em matéria de ciências naturais. Seus sucessores
são culpados de transformar os ensinamentos do mestre em dogmas tão rígidos que,
ainda na Renascença, serviram para levar
Galileu Galilei a renegar, para se subtrair à
fogueira da Inquisição, sua correta compreensão de um sistema solar em que a Terra
gira em torno do Sol. Giordano Bruno não
teve a mesma sorte: por razões semelhantes ardeu nas labaredas inquisitoriais. Mas,
em ciências humanas, Aristóteles ainda
hoje é referência.
propostas de reforma política que tramitam
na Casa e reuni-las num projeto capaz
de congregar o maior apoio possível nas
diferentes bancadas partidárias da Casa.
Thomas Morus escreveu a Utopia,
uma cidade ficcional perfeitamente justa.
Morreu decapitado na torre de Londres.
Mas seu sacrifício e seus escritos sempre
representarão uma tentativa de contribuir
para melhorar o mundo.
O objetivo expresso na justificação
do projeto, produzido pela Comissão em
questão, é enfrentar os seguintes problemas
do sistema político brasileiro:
Fizemos esta divagação para mostrar que considero justos os esforços teóricos para compreender e para transformar a
sociedade, melhorando-a. Mas chegamos
a um momento da vida em que damos
preferência a objetivos menos ambiciosos,
mais exeqüíveis. Por isso, à luz da correlação de forças presente, estamos lutando
para colocar em pauta uma proposta de
reforma política pouco ambiciosa, mas que
melhoraria substancialmente nosso sistema,
aprofundando seu caráter democrático e
conferindo-lhe maior transparência.
III – A reforma possível
Ano passado, o deputado João Paulo
Cunha(PT-SP), Presidente da Câmara dos
Deputados, criou uma Comissão Especial
destinada a produzir uma proposta de
reforma política. Presidida pelo deputado
Alexandre Cardoso (PSB-RJ) e relatada
pelo deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO),
a tarefa desta comissão era estudar diversas
A tarefa foi levada a cabo. O projeto
produzido não obteve a unanimidade dos
membros da Comissão, mas alcançou o
apoio de mais de dois terços dos deputados
que a compunham, o que não é desprezível.
Esse placar foi alcançado porque houve o
esforço de todos para que se obtivesse um
mínimo divisor comum. Tal maioria foi
construída, portanto, com concessões de
todos os lados.
a)
a deturpação do sistema eleitoral
causada pelas coligações partidárias
nas eleições proporcionais;
b)
a extrema personalização do voto
nas eleições proporcionais, da qual
resulta o enfraquecimento das agremiações partidárias;
c)
os crescentes custos das campanhas
eleitorais, que tornam o seu financiamento dependente do poder econômico;
d)
a excessiva fragmentação do quadro
partidário;
e)
as intensas migrações entre legendas,
cujas bancadas no Legislativo oscilam substancialmente ao longo das
legislaturas.
Para fazer face à deturpação provocada pelas coligações proporcionais
oportunistas, episódicas e desprovidas de
lastro programático, que contribuem para
uma permanente instabilidade do quadro
político, a maioria da Comissão propõe
157
ENSAIO
a proibição das coligações proporcionais.
Mas adota a idéia de permitir a criação de
federações partidárias. Com isso, o projeto
mostra que quer preservar os pequenos
partidos que têm história e programa,
desde que eles aceitem fazer parte de uma
federação permanente.
Ou, na expressão da justificação assinada pelo deputado Alexandre Cardoso:
“Com o fim das coligações, a fórmula das
federações, sobre a qual dispõe o projeto,
permitirá aos pequenos partidos contornar
o obstáculo do quociente eleitoral, desde
que haja o compromisso, legalmente estabelecido, de estabilidade da aliança pelo
período mínimo de três anos, pois funcionarão eles como um só partido.” Assim,
o legislador mostra-se disposto a criar um
quadro mais lógico para coligações partidárias, ao mesmo tempo em que cria as
condições para atenuar as exigências da
cláusula de barreira prevista para entrar
em vigor em 2006, desde que os partidos
se disponham a trabalhar por alianças mais
estáveis no seio de uma federação, o que
garantiria ao eleitor a compreensão do
sentido programático de seu voto. Já que
as federações seriam entre partidos que
têm objetivos programáticos que se assemelham e estariam dispostos a fazer alianças duráveis, o que seria uma garantia de
estabilidade política e, por conseqüência,
administrativa.
Com o objetivo de fortalecer as instituições político-partidárias e para colocar
um freio ao individualismo exacerbado
das campanhas proporcionais, a Comissão
resolveu propor a adoção do voto em
lista fechada pré-ordenada pelos partidos.
Desta forma, o eleitor votará no partido e
não mais em indivíduos. É assim que funciona em quase todas as democracias do
planeta.
158
Dada nossa cultura política, é de se
esperar uma forte reação a esta proposta
que tem vários méritos. Alguns alegarão
inconstitucionalidade da iniciativa porque
a Constituição assegura o voto direto e o
voto em lista seria indireto. Essa alegação
procura ignorar que o voto de legenda, há
muito admitido no Brasil, é uma espécie
de voto em lista, e sua constitucionalidade
nunca foi questionada. Por outro lado, a
Constituição reconhece a utilidade dos
partidos e seu papel de organizador da
vontade coletiva. Não poderia ser de outra
forma, a democracia direta dos gregos é
inexeqüível nos dias de hoje, pela simples
razão de que vivemos numa sociedade
de massas, o que requer a existência de
partidos fortes e bem organizados, capazes
de organizar a expressão da vontade de
multidões.
Outros alegarão que a lista fechada
atribui muito poder a partidos que podem
ser dominados por oligarquias ou por
caciques que, por definição, são impermeáveis aos valores da democracia. Há que
se reconhecer que esta objeção procede.
Mas viver é muito perigoso, ensinava
Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo.
Registrando que quem fala em risco e
perigo, fala também em oportunidade,
podemos supor que, com as listas, os
partidos tradicionais terão a oportunidade
de adotar práticas mais democráticas de
administração interna. Já se disse aqui que
o PT, independentemente de leis, conseguiu se construir praticando a democracia,
e dentro de regras precisas. Nada impede,
portanto, que os partidos tradicionais
venham a adotar práticas democráticas,
se mais não fosse, porque numa sociedade
que respira democracia, a insistência em
práticas autoritárias certamente levaria ao
esvaziamento dessas siglas. Quem primei-
ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA
ro perceberia isso seriam os próprios caciques tradicionais.
Portanto, a adoção da lista fechada
poderia criar a oportunidade dos partidos
tradicionais adotarem práticas típicas do
PT, como a realização de debates exaustivos em todos os níveis; realizar prévias
envolvendo o conjunto dos filiados de um
determinado estado, ou de um determinado município, para escolher quem será
o candidato a governador ou a prefeito;
escolher a direção nacional do partido
em eleições envolvendo o conjunto dos
filiados em todo o país, ou até decidir
sobre questões políticas relevantes, como
fez o PT, quando, através de plebiscito nacional decidiu, em 1985, que não
compareceria ao Colégio Eleitoral que
elegeu o Presidente Tancredo Neves e, em
1993, também em plebiscito nacional, a
militância se pronunciou pelo sistema presidencialista de governo, contra a maioria
do diretório nacional do partido, que era
parlamentarista. Desnecessário dizer que,
em todos esses episódios, quem ganhou
levou. Todos se submeteram à vontade da
maioria.
Desnecessário dizer que, se apesar
dos argumentos acima alinhavados, não
for possível realizar um acordo, nada
impede que se busque mediações em
torno de uma proposta de lista através da
qual se elegeria somente a metade dos parlamentares, enquanto a outra metade seria
eleita de forma proporcional. Este é um
método que é utilizado em alguns países
e que tem a virtude de permitir que o eleitor corrija possíveis erros praticados pelas
direções partidárias na formatação das listas. Ademais, nada impede que se aprove
leis obrigando os partidos a funcionarem
de forma democrática.
A proposta da Comissão Especial
prevê a adoção do financiamento público
exclusivo das campanhas eleitorais. Tal
proposta visa estabelecer igualdade de
condições entre os partidos envolvidos na
disputa, facilitar a fiscalização das prestações de conta por parte da Justiça Eleitoral,
baratear as campanhas e coibir a corrupção, a utilização da máquina do Estado e o
abuso do poder econômico, sobretudo por
parte dos candidatos preferidos pelos grandes grupos empresariais, naturalmente os
mais propensos a esta prática condenável.
Muitos, baseando-se na má imagem
dos políticos, podem objetar que é absurda a idéia do financiamento público de
campanha. Já que os políticos desfrutam
de tão grande má fama por que caberia
ao Estado financiar suas campanhas? A
resposta é simples. O Estado, com a adoção da lista fechada, não financiaria as
campanhas individuais dos políticos, mas
a campanha dos partidos, cuja fiscalização
seria relativamente simples. Por outro lado,
é ilusório pensar que atualmente muitas
das campanhas não são financiadas, de
maneira desregrada, pelo Estado. Todos
deviam saber que muito do dinheiro privado gasto em campanhas eleitorais depois
é ressarcido, via corrupção, aos doadores
originais. Desta forma, através do financiamento público, teríamos campanhas mais
curtas, mais baratas e mais educativas,
conduzidas pelas instituições partidárias
e sob um controle mais rígido da Justiça
Eleitoral. Portanto a adoção da lista partidária, acompanhada do financiamento
público, seria um poderoso fator de politização do debate eleitoral e de moralização das disputas. Contribuiria muito para
o avanço da democracia.
A proposta de reforma elaborada
pela Comissão Especial preserva a cota
159
ENSAIO
destinada às mulheres nas listas partidárias. E vai adiante quando destina trinta
por cento dos recursos do fundo partidário
ao estímulo e crescimento da participação política das mulheres e reserva, pelo
menos, vinte por cento do horário gratuito
nos meios de comunicação destinado a
cada partido à difusão da propaganda de
candidatas do sexo feminino. Com isso
procura-se ampliar no Brasil a aplicação
de experiências bem sucedidas que mostram que, com estímulo, cresce a participação das mulheres na vida política, o
que quase sempre é um fator de equilíbrio
e de paz.
No tocante às pesquisas eleitorais, o
projeto da Comissão procura estabelecer
regras mais precisas com o objetivo de
coibir manipulações que freqüentemente
servem a objetivos obscuros. Com essas
novas regras, os institutos de pesquisas
terão suas responsabilidades aumentadas
e terão reduzidas suas possibilidades de
intervir indevidamente nos processos eleitorais, como lamentavelmente é a prática
de alguns deles, pelo menos nas regiões
mais afastadas do país.
Como subentendido acima, a proposta de reforma política elaborada pela
Comissão Especial pode não ser perfeita,
nem é essa sua pretensão. Ela é, no entanto,
a proposta possível para esse momento da
vida nacional. Sua aprovação pela Câmara
dos Deputados e, posteriormente, pelo
Senado Federal, representaria um grande
passo no aperfeiçoamento de nosso sistema democrático e seria motivo de orgulho
para os parlamentares da atual legislatura,
porque serviria aos interesses da maioria
do povo e consolidaria a democracia em
nosso país.
160
Olhar
Externo
Salvador Dali
• Robert A. Pastor
161
OLHAR EXTERNO
* ROBERT A. PASTOR
A Segunda Década da
América do Norte**
UM PRIMEIRO RASCUNHO
O Acordo de Livre Comércio da
América do Norte (em inglês North
American Free Trade Agreement, NAFTA)
entrou em vigor em primeiro de janeiro
de 1994, em meio a temores de perda de
empregos nos Estados Unidos e de gritos
revolucionários no sul do México. No
entanto, em uma só década, as três nações
da América do Norte construíram um mercado maior do que o das quinze nações da
União Européia, e quase tão integrado. O
comércio e o investimento chegaram perto
de triplicar; Estados Unidos, México e
Canadá experimentaram um grau sem precedente de integração social e econômica.
Pela primeira vez “América do Norte” é
mais do que uma simples expressão geográfica.
Em 2000, as vitórias eleitorais de
George W. Bush, Vicente Fox e Jean
Chrétien aumentaram ainda mais a esperança de que a promessa de uma parceria
trilateral poderia ser cumprida. No entan-
* Professor da Universidade da Geórgia, em Atlanta / USA. Texto publicado na Foreign Affairs, Fev/2004.
Tradução: Sérgio Bath
162
to, quatro anos depois, houve uma deterioração nas relações entre os três governos.
Nenhum líder se refere à “América do
Norte” do modo como os europeus falam
do seu continente. Com efeito, nos Estados
Unidos voltaram a surgir críticas e acusações à NAFTA nos debates entre os candidatos presidenciais. Passados dez anos,
chegou a hora de avaliar o que a NAFTA
realizou e onde ela falhou, para determinar o caminho que deve seguir daqui em
diante. Quais devem ser as metas para a
segunda década da América do Norte, e o
que os líderes norte-americanos precisam
fazer para atingi-las?
Na verdade, a NAFTA foi apenas o
primeiro rascunho de uma constituição
econômica para a América do Norte:
um documento deliberadamente sucinto,
destinado apenas a desmantelar barreiras
ao comércio e ao investimento. Os seus
arquitetos não fizeram planos, nem para o
seu êxito, nem para as crises que confrontariam. Embora a NAFTA tenha fornecido
combustível para o trem da integração
continental, não cedeu maquinistas para
guiá-lo. O resultado é que dois contratempos, a crise do peso mexicano de 1995 e
os ataques terroristas de 11 de setembro de
2001, ameaçaram descarrilar essa experiência de integração.
A crise do peso foi um golpe à economia mexicana, assim como à confiança
dos americanos e canadenses na integração. Os autores da NAFTA haviam presumido que, graças à mágica do mercado, a
eliminação das restrições ao movimento
de capital e mercadorias conduziria a uma
grande prosperidade. No acordo não havia
nenhuma cláusula criando um mecanismo
para prever falhas do mercado ou para responder a elas. Enquanto a União Européia
criou um excesso de instituições onipre-
sentes, a América do Norte cometeu o erro
oposto: quase não as criou.
O segundo choque recebido pelo
ente político norte-americano aconteceu
em 11 de setembro de 2001. Se houvesse uma parceria genuína, os líderes dos
Estados Unidos, do México e do Canadá
se teriam reunido em Washington, nos dias
que sucederam a tragédia, para declarar
que o ataque tinha atingido toda a América
do Norte, e afirmar que responderiam em
uníssono. Em vez disso, dada à ausência
de instituições comuns, os governos reverteram a seus velhos hábitos. Agindo de
forma unilateral, Washington virtualmente
fechou suas fronteiras; os líderes mexicano
e canadense responderam de forma ambivalente, temendo a forma como poderia
reagir a superpotência zangada.
Esses dois eventos foram oportunidades perdidas, e a criação do Departamento
de Segurança Interna nos Estados Unidos
leva a América de Norte outra vez a uma
encruzilhada. Uma posição (a mais provável) consistiria em reforçar o controle
fronteiriço e impedir a movimentação,
mesmo de amigos. O comércio e o investimento declinariam, as tensões subiriam,
e a miríade de vantagens da integração
começariam a ceder terreno.
Em um rumo alternativo, contudo, os temores na área de segurança
serviriam como catalizadores para uma
integração mais profunda, o que exigiria
novas estruturas para garantir a segurança
recíproca, promover o comércio e trazer
o México para mais perto das economias
de primeiro mundo dos seus vizinhos. Só
pode haver progresso com uma liderança
verdadeira, novas instituições cooperativas e uma redefinição de segurança que
coloque os Estados Unidos, o México e o
Canadá dentro de um perímetro continental, trabalhando juntos como parceiros.
163
OLHAR EXTERNO
AVALIAÇÃO DA NAFTA
Desde o princípio, a NAFTA foi submetida a críticas candentes, baseadas muitas vezes em previsões bizarras. Nos Estados
Unidos, o candidato presidencial Ross
Perot preveniu a nação, mencionando um
“ruído gigantesco de sucção”, provocado
pelos empregos migrando dos Estados
Unidos para o México. Enquanto isso,
mexicanos e canadenses temeram que
as suas economias
fossem apropriadas
por empresas americanas. Os opositores
previram que o livre
comércio iria erodir
os padrões ambientais e trabalhistas
dos Estados Unidos
e do Canadá.
Dessas profecias, poucas se
transformaram em
realidade. De fato,
nos Estados Unidos,
os anos 1990 testemunharam a maior
expansão de emprego da sua história.
Embora tanto o México como o Canadá
tenham atraído um volume considerável
de novos investimentos americanos (pois
a NAFTA lhes dava acesso privilegiado
ao mercado dos EUA), a porcentagem
de empresas de propriedade americana
existentes nesses países não aumentou. Na
verdade, os investimentos canadenses nos
Estados Unidos aumentaram ainda mais
depressa do que os investimentos americanos no Canadá.
No México, a disparidade de renda
se ampliou, mas isso aconteceu porque as
164
regiões que não comerciam com os Estados
Unidos passaram a crescer muito menos
do que as outras: na verdade o problema
não era a NAFTA, mas a sua ausência. No
México, os padrões ambientais melhoraram mais depressa do que os do Canadá
e dos Estados Unidos, e as eleições mexicanas de 2000 foram saudadas universalmente como livres e justas. Por outro lado,
embora o México e o Canadá se tenham
tornado mais dependentes do mercado
americano, como os
opositores
haviam
prevenido, o inverso
também ocorreu: o
comércio dos Estados
Unidos com os seus
vizinhos cresceu cerca
de duas vezes mais
depressa do que o
comércio com o resto
do mundo. De fato,
em 2000, os Estados
Unidos importaram
36 por cento da sua
energia dos parceiros
mais importantes, o
Canadá e o México,
e as exportações para
esses dois vizinhos
foram 350 por cento
maiores do que as exportações para o
Japão e a China, e 75 por cento maiores do que as exportações para a União
Européia.
Tanta coisa tem sido atribuída à
NAFTA que é fácil esquecer que ela não
passava de um simples acordo para desmantelar a maior parte das restrições ao
comércio e ao investimento, ao longo de
dez anos. Com algumas notáveis exceções
(o tráfego de caminhões, madeiras e açúcar), onde os interesses econômicos americanos bloquearam um acordo, em grande
ROBERT A. PASTOR
parte a NAFTA teve êxito no que pretendeu
fazer: barreiras foram eliminadas, houve
um grande crescimento do comércio e dos
investimentos.
Nos anos 1990, as exportações americanas para o México aumentaram quatro
vezes, passando de 28 bilhões de dólares
para 111 bilhões, e as exportações para o
Canadá mais do que dobraram, aumentando de 84 bilhões de dólares para 179. Os
fluxos anuais de investimento direto dos
Estados Unidos para o México subiram de
1,3 bilhões de dólares, em 1992, para 15
bilhões em 2001. O investimento americano no Canadá aumentou de 2 bilhões
de dólares, em 1994, para 16 bilhões em
2000, enquanto o fluxo de investimento
canadense para os Estados Unidos cresceu, no mesmo período, de 4,6 para 27
bilhões de dólares.
As viagens e a migração entre os
três países também aumentaram dramaticamente. Só em 2000, as duas fronteiras
foram cruzadas 500 milhões de vezes.
Naturalmente, o impacto mais profundo
foi o das pessoas que cruzaram fronteiras e permaneceram no país visitado. O
censo de 2000 estimava existirem, nos
Estados Unidos, 22 milhões de indivíduos
de origem mexicana, dos quais cerca de
5 milhões eram trabalhadores não documentados. Quase dois terços deles chegaram aos Estados Unidos nas duas últimas
décadas.
A América do Norte é maior do que
a Europa em população e território, e o
seu produto bruto é de 11,4 trilhões de
dólares, quantia que supera a da União
Européia (e continuará superando, mesmo
depois que a U.E. se expandir para 25
nações, em maio de 2004): representa
um terço da renda mundial. Consideradas
como porcentagem das exportações totais
do mundo, as exportações intra-regionais
cresceram de cerca de 30 por cento, em
1982, para 56 por cento em 2001 (comparado com 61 por cento para a União
Européia). Como acontece na indústria
automobilística, que representa quase 40
por cento do comércio norte-americano,
boa parte desse intercâmbio é extra-indústria ou extrafirma. Tanto as indústrias como
as empresas se tornaram verdadeiramente
norte-americanas.
No entanto, embora a NAFTA tenha
conseguido aumentar o comércio e o
investimento, deixou de enfrentar alguns
dos principais desafios do processo de
integração. Falha que não só prejudicou
os três países interessados como abalou
seriamente o apoio ao Acordo, impedindo
assim que fossem aproveitadas todas as
oportunidades para o seu progresso ulterior.
Em primeiro lugar, a NAFTA não se
voltou para o hiato de desenvolvimento entre o México e seus dois vizinhos
setentrionais, diferença que na verdade
aumentou. Em segundo lugar, a NAFTA
não planejou o próprio sucesso: infraestrutura e estradas inadequadas não conseguem suportar o aumento do tráfego,
e os atrasos resultantes elevaram o custo
das transações no comércio regional mais
do que a redução causada pelas tarifas
eliminadas. Em terceiro lugar, a NAFTA
não se preocupou com a imigração, e nos
anos noventa o número de trabalhadores
não documentados nos Estados Unidos
aumentou de 3 para 9 milhões (55 por
cento deles, mexicanos).
Em quarto lugar, as questões relativas
à energia não foram abordadas, falha dramatizada pelo “apagão” catastrófico ocorrido no Canadá e na região norte-ocidental
dos Estados Unidos, em agosto passado. Em
165
OLHAR EXTERNO
quinto lugar, não houve qualquer tentativa
de coordenar a política macro-econômica,
deixando os três governos sem um instrumento para prevenir desastres como a crise
do peso mexicano. Finalmente, a NAFTA
nada fez no campo da segurança, e por
isso as conseqüências do 11 de setembro
ameaçam agora prejudicar a integração
norte-americana.
LIÇÕES ANTIGAS DA NOVA
EUROPA
O vínculo que une essas falhas é a
falta de uma autêntica cooperação trilateral. Em vez de criar uma parceria continental, o processo de integração assumiu
quase sempre a forma de um duplo bilateralismo: EUA-México e EUA-Canadá.
A recente negociação de acordos sobre
“fronteiras inteligentes”, depois do 11 de
setembro, é um bom exemplo: em vez
de criar um padrão uniforme norte-americano, o governo de Washington assinou
com os seus vizinhos tratados separados,
embora quase idênticos. Em grande parte,
a não adoção de instituições multilaterais
tem sido deliberada. Muitas vezes os
canadenses pensam que sozinhos podem
obter melhor resultado ao negociar com os
Estados Unidos (nada prova essa hipótese).
E como atualmente Washington não está
com disposição multilateral, o México tem
sido o advogado solitário da cooperação
trilateral. No entanto, uma integração bem
sucedida exige uma nova forma de governança na América do Norte, baseada em
regras e reciprocidade. A experiência européia com integração tem muito a ensinar
aos formuladores de políticas norte-americanos, desde que sejam compreendidas
as claras diferenças existentes entre os
respectivos modelos.
A unidade européia foi o fruto de
duas guerras cataclísmicas, e os seus mem166
bros mais importantes são comparáveis
em termos de população e poder. O PNB
per capita da nação mais rica da Europa
(Alemanha) é aproximadamente o dobro
da mais pobre (Grécia), enquanto o PNB
per capita dos Estados Unidos é quase seis
vezes o do México. O modelo norte-americano consta de um único Estado dominante, e foi sempre movido pelo mercado;
é mais resistente à burocracia, mas mais
respeitoso da autonomia nacional do que
acontece na Europa. São elementos que
irão sempre diferenciar os dois casos.
No entanto, a despeito dessas diferenças, cinqüenta anos de integração européia são suficientes para ensinar aos norteamericanos que eles precisam enfrentar as
falhas e externalidades de um mercado em
integração, sejam elas crises monetárias,
degradação ambiental, ameaças terroristas, impedimentos infra-estruturais ou hiatos de desenvolvimento.
No princípio dos governos Fox e
Bush, houve um momento em que os líderes da América do Norte pareciam aceitar
esse ponto. Em fevereiro de 2001, Fox e
Bush endossaram em conjunto a Proposta
de Guanajuato, que dizia: “Depois de
consultas com nossos parceiros canadenses, faremos um esforço para consolidar
uma comunidade econômica norte-americana cujos benefícios se estendam às
áreas menos desenvolvidas da região e
aos grupos sociais mais vulneráveis dos
nossos países”. Infelizmente, esse sentimento nunca chegou a ser traduzido em
termos políticos (com exceção dos quarenta milhões de dólares da Parceria para
a Prosperidade, um programa simbólico,
mas substantivamente trivial).
Os três governos compartilham a
culpa por esse insucesso. O principal objetivo de Bush era abrir o setor do petróleo
ROBERT A. PASTOR
no México para investidores americanos,
enquanto Chretien não demonstrou qualquer interesse em cooperar com os mexicanos. De seu lado, Fox propôs uma agenda excessivamente ambiciosa, com ênfase
exagerada em uma reforma radical da
política de imigração dos Estados Unidos.
Sua proposta preconizava o aumento do
número de trabalhadores temporários
legais, e a legalização de milhões de não
documentados.
A resposta inicial
de Bush foi polida, mas
ele não tardou a perceber que não podia
aceitar essa proposta
(consta que, em parte,
porque seu conselheiro
Karl Rove lembrou-o de
que de cada três mexicanos naturalizados,
dois votavam no Partido
Democrático). A questão da imigração ilegal
continua sem solução.
Em última análise, ela
é mais um sintoma do
que, uma causa: a única
forma de reduzir a imigração ilegal é fazer
com que a economia
do México cresça mais
depressa do que a americana.
CUIDADO COM O HIATO
Para a segunda década norte-americana não há maior prioridade do que reduzir o divisor econômico existente entre o
México e o resto da NAFTA. Simplesmente
não pode haver uma parceria verdadeira
quando os habitantes de um país ganham,
em média, um sexto do que ganham os
indivíduos do outro lado da fronteira.
O subdesenvolvimento mexicano é uma
ameaça à sua estabilidade, a seus vizinhos
e ao futuro da integração.
Neste particular, a experiência da
União Européia também é instrutiva. Entre
1986 e 1999, o PNB per capita dos quatro países mais pobres da União Européia
cresceu de 65 para 78 por cento da média
de todos os Estados-Membros, graças ao
livre comércio, ao investimento estrangeiro e a uma assistência
generosa (0,45 por cento
do PNB da União, anualmente). Boas políticas
por parte dos recipientes
dessa ajuda, e o fato de
que a assistência estava condicionada a essas
boas políticas, fizeram
também uma diferença
importante.
Claramente,
nem todos os recursos
assistenciais da União
Européia foram bem
gastos, e a América do
Norte pode aprender
com essas falhas, bem
como com os sucessos. Assim, a burocracia excessiva deve ser
evitada, e a assistência
deve concentrar-se em setores tais como
infra-estrutura e educação pós-secundária, que têm um forte efeito multiplicador
sobre o resto da economia. Mas há duas
lições que são básicas: o crescimento em
um país beneficia os outros, e a imposição
de limites à volatilidade dos mais pobres é
uma ajuda prestada a todos.
O México precisa de uma nova estratégia de desenvolvimento, financiada, em
parte, pelos seus parceiros norte-america167
OLHAR EXTERNO
nos. Para reduzir o hiato de desenvolvimento com os Estados Unidos em 20 por
cento, nos próximos dez anos, o México
precisará sustentar uma taxa anual de
crescimento de 6 por cento. Mesmo com
essa taxa, superar completamente o hiato
levará décadas, mas uma estratégia sustentável que resulte em pequenas reduções
anuais terá importante efeito econômico e
psicológico. E esse crescimento vai exigir
uma nova estratégia, baseada em investimentos públicos significativos e intensivos
de trabalho.
Embora em conjunto o México se
tenha beneficiado com a NAFTA, o livre
comércio e o maior investimento estrangeiro distorceram o desenvolvimento e
exacerbaram as
desigualdades existentes
dentro do país.
Noventa
por
cento dos novos
investimentos se
concentraram
em quatro estados, três deles
no norte. Esses
estados fronteiriços têm crescido
dez vezes mais
depressa do que os do sul, atuando como
um magneto para migrantes dessas regiões
pobres.
A região fronteiriça pareceria ter uma
desvantagem na atração dos investidores
estrangeiros: o custo do trabalho é três
vezes maior do que no sul, a reposição
anual da força de trabalho é de cem por
cento, a poluição e o congestionamento
são crônicos. Mas as estradas da fronteira
para o sul estão em péssimas condições,
e outros aspectos da infra-estrutura são
168
ainda piores. O Banco Mundial estima que
o México precisará gastar vinte bilhões de
dólares por ano, nos próximos dez anos,
para superar esse deficit na infra-estrutura.
Para corrigir tal disparidade, os três
governos deveriam criar um Fundo de
Investimento Norte-Americano e investir
duzentos bilhões de dólares em infra-estrutura, durante a próxima década. Washington
daria 9 bilhões por ano, o Canadá 1 bilhão,
mas só com a condição de que o México
igualasse o montante global, elevando
gradualmente a receita tributária de 11
para 16 por cento do PNB. No passado,
Fox tentou,sem êxito, uma reforma fiscal,
mas a oferta dos países vizinhos poderia
ajudá-lo a persuadir o Congresso a aceitar esta e outras
reformas.
A
contribuição
dos EstadosUnidos seria
menor do que
a assistência
européia dada
aos
Estados
Membros mais
pobres, correspondendo
à metade da
ajuda do governo Bush ao Iraque.
Por outro lado, o retorno do investimento no México beneficiaria a economia dos Estrados Unidos mais do que
qualquer outro programa assistencial da
história. Não seria necessário criar uma
nova agência: O Banco Mundial ou o
Banco Interamericano poderiam administrar os fundos. Em última análise, melhores
estradas e melhor infra-estrutura atrairiam
investidores para o centro e o sul do país,
diminuindo assim a migração e as dispa-
ROBERT A. PASTOR
ridades de renda. As reformas tornariam
também o México mais competitivo com
a China.
PLANOS PARA A AMÉRICA DO
NORTE
A NAFTA não tem criado uma parceria porque os três governos não mudaram o modo como se relacionam entre
si. O duplo bilateralismo, alimentado
pelo poder dos Estados-Unidos, continua
a governar e a provocar irritação. O
acréscimo de uma terceira parte às disputas bilaterais aumenta muito a possibilidade de que os problemas venham a ser
resolvidos por regras, não pelo poder. Essa
abordagem trilateral deveria ser institucionalizada em uma nova Comissão NorteAmericana. Diferentemente da Comissão
Européia, esparramada e intrometida, a
Norte-Americana seria restrita, de natureza
consultiva, composta por apenas quinze
personalidades eminentes, cinco de cada
país. Seu objetivo principal seria preparar uma agenda norte-americana a ser
considerada pelos líderes nacionais em
reuniões de cúpula bianuais, e monitorar a
implementação dos acordos resultantes.
Deveria, também, avaliar as formas
de facilitar a integração econômica, fazendo propostas específicas sobre temas de
interesse continental, tais como a harmonização dos padrões ambientais e trabalhistas
e a adoção de uma política sobre a competição. O Congresso dos Estados Unidos
deveria também fundir os grupos interparlamentares EUA-México e EUA-Canadá em
um único Grupo Interparlamentar NorteAmericano. Isso estimularia os legisladores
a deixar de lançar denúncias, através das
fronteiras, para começarem a negociar
buscando resolver problemas comuns.
Uma terceira instituição seria uma
Corte Permanente sobre Comércio e
Investimento. A NAFTA criou “panels” para
tratar de conflitos numa base “ad hoc”, mas
tem sido cada vez mais difícil encontrar
expertos que não estejam envolvidos em
conflitos de interesse e, portanto, possam
arbitrar disputas. Um tribunal permanente
permitiria a acumulação de precedentes e
fixaria as bases do direito comercial norteamericano. Impediria também a erosão
dos padrões ambientais e tornaria o processamento mais transparente.
O Canadá e o México há muito
organizaram o seu governo para dar prioridade às relações bilaterais com os Estados
Unidos. Só Washington está mal organizada
para abordar os temas relativos à América
do Norte. O Presidente Bush precisa levar
em conta a medida em que os interesses
internos dos Estados Unidos colidem com
os dos seus vizinhos, designando, na Casa
Branca, um Conselheiro para Assuntos
Norte-Americanos, que trataria de forma
inclusiva os temas da segurança geral,
segurança nacional e os conselhos de
política interna, presidindo um grupotarefa sobre a América do Norte, no nível
do Gabinete, com a presença de todos os
órgãos interessados. Nenhum presidente
pode adotar uma política coerente com
respeito à América do Norte sem essa
reorganização maciça.
O ataque de 11 de setembro e a subseqüente resposta americana acentuaram
um dilema básico da integração: como
facilitar os fluxos legítimos de pessoas e
mercadorias e, ao mesmo tempo, impedir
a ação de terroristas ou contrabandistas. Quando Washington virtualmente
fechou suas fronteiras, depois do ataque,
do lado do Canadá formou-se uma fila de
caminhões de quase quarenta quilômetros.
169
OLHAR EXTERNO
Empresas que trabalhavam com o sistema
“just-in-time” começaram a fechar suas
fábricas.
A nova estratégia, exemplificada
pelos acordos sobre “fronteiras inteligentes”, que já estava sendo discutida antes
do ataque, consiste em concentrar as inspeções no tráfego de alto risco e usar uma
tecnologia mais eficiente para tratar com
rapidez o trânsito de pessoas e mercadorias de baixo risco. Esta abordagem, no
entanto, é muito limitada para resolver um
problema tão fundamental. Agora, a criação
do Departamento de Segurança Interna, o
“Department of Homeland Security”, sem
querer, é outra ameaça à integração.
Superar a tensão entre segurança e
intercâmbio exige uma abordagem mais
corajosa à integração continental: uma
união aduaneira norte-americana com
tarifa externa comum, que reduziria de
forma significativa as inspeções na fronteira e eliminaria as incômodas regras
sobre a origem dos produtos, destinadas
a negar, às mercadorias procedentes de
fora da NAFTA, o mesmo livre acesso. Os
três governos precisam também repensar o
perímetro continental.
Juntamente com a tarifa externa
comum, deveriam criar uma Força NorteAmericana Alfandegária e de Imigração,
composta por funcionários treinados em
conjunto em uma única escola profissional, e formular procedimentos para
agilizar a documentação apresentada ao
cruzar as fronteiras. Ainda mais importante, o Departamento de Segurança Interna
deveria ampliar sua missão para incluir a
segurança continental, o que será melhor
executado se incorporar pessoal e perspectivas do México e do Canadá nas etapas de
planejamento e operação.
Mas os obstáculos de segurança
constituem só o princípio dos proble170
mas de transporte na América do Norte.
Conforme a conclusão de um relatório
de membro do Parlamento canadense, de
maio de 2000: “Na realidade, atravessar
a fronteira tornou-se mais difícil nos últimos cinco anos ... Enquanto o comércio
continental se expandiu enormemente, o
mesmo não aconteceu com a infra-estrutura física que permite o deslocamento
dessas mercadorias.”
As barreiras burocráticas à travessia
de fronteiras tornam os problemas de infraestrutura “comparativamente menores”.
Washington tem sido criticado por impor
aos caminhões mexicanos seus próprios
padrões de segurança, mas a verdade é
ainda mais embaraçosa: há 64 diferentes
conjuntos de regulamentos de segurança,
51 deles nos Estados Unidos. Uma subcomissão da NAFTA lutou para definir um
padrão uniforme, tendo concluído que
“não há perspectiva” de se chegar a isso.
A Comissão Nacional da América do
Norte deveria desenvolver um plano continental integrado de transporte e infra-estrutura, que inclua novas rodovias norte-americanas e corredores ferroviários de alta
velocidade. Os Estados Unidos e o Canadá
devem desenvolver padrões nacionais de
peso, segurança e configuração dos caminhões, e depois negociar com o México
para estabelecer um único conjunto de
padrões.
Além disso, Estados Unidos e Canadá
deviam começar a fundir suas políticas de
imigração e de tratamento dos refugiados.
Vai ser impossível incluir o México nesse
processo até que o hiato de desenvolvimento diminua. Entrementes, os três
governos deveriam desenvolver um passaporte norte-americano, disponível sucessivamente, cada ano, a um grupo maior de
cidadãos.
ROBERT A. PASTOR
Finalmente, os governos norte-americanos podem aprender com os esforços
desenvolvidos pela União Européia para
criar nos Estados-Membros centros educacionais e de pesquisa. Centros de estudos
norte-americanos nos Estados Unidos, no
Canadá e no México ajudariam cidadãos
dos três países a entender os problemas
e o potencial de uma América do Norte
integrada, assim
como a se considerarem norteamericanos.
Naturalmente,
até que uma
nova consciência da promessa
da América do
Norte crie raízes,
muitas dessas
propostas estarão
fora do alcance
dos formuladores de políticas
públicas.
VELHOSARGUMENTOS,
NOVAS VISÕES
Os opositores da integração muitas
vezes atacam propostas como estas como
se fossem ameaças à soberania nacional. No entanto, o conceito de soberania
não é imutável. No passado, o Canadá
recorreu à soberania para manter afastadas as empresas petrolíferas dos Estados
Unidos; o México a usou para impedir o
monitoramento externo das suas eleições;
os Estados Unidos, como desculpa para
privilegiar os “direitos dos Estados”, em
confronto com os direitos humanos. Em
cada caso, a soberania foi empregada para
defender políticas errôneas. Os países se
beneficiaram ao mudar essas políticas, e a
evidência sugere que os norte-americanos
estão prontos para um novo relacionamento, que torna
obsoleta essa
definição antiga de soberania.
Nos últimos vinte anos,
vários estudos
demonstraram
a convergência de valores,
sobre
temas
pessoais e familiares, assim
como
sobre
políticas públicas. Os cidadãos de cada
país tendem a
ter uma idéia
positiva dos
seus vizinhos,
e o resultado é
um apoio líquido modesto dado à NAFTA. E há também
um consenso: cada nação concorda em
que as outras duas se beneficiaram mais do
que elas próprias. 58% dos canadenses e
69 % dos americanos sentem uma “forte”
ligação com a América do Norte. E, o que
é mais surpreendente, 34% dos mexicanos se consideram também “norte-americanos”, embora, em espanhol o termo
se refira especificamente aos cidadãos
dos Estados Unidos. Algumas pesquisas
171
OLHAR EXTERNO
chegam a indicar que, em sua maioria, o
público estaria preparado para aceitar uma
“nação norte-americana”, se acreditasse
que isso iria melhorar o seu padrão de vida
sem ameaçar a sua cultura.
México deveria demonstrar como poderia
utilizar um Fundo de Investimento NorteAmericano para dobrar sua taxa de crescimento e começar a reduzir o hiato de
desenvolvimento.
Uma pesquisa feita em outubro de
2003, realizada nos três países pela Ekos,
uma firma canadense, revelou que uma
clara maioria acredita que, nos próximos
dez anos, será instituída uma união econômica norte-americana. Segundo a mesma
pesquisa, uma maioria esmagadora é favorável a políticas mais integradas a respeito
do ambiente, do transporte e da defesa, e
uma maioria mais modesta é favorável a
políticas comuns no concernente à energia
e ao sistema bancário. Por outro lado, nos
Estados Unidos e no Canadá, 75 por cento
das pessoas apoiam o desenvolvimento de
um perímetro norte-americano de segurança; e dois terços dos mexicanos pensam da
mesma forma.
Finalmente, os Estados Unidos devem
redefinir a sua liderança para o século 21,
de modo a inspirar apoio em lugar de
medo e ressentimento. Se Washington
puder ajustar seus interesses de forma a
alinhá-los com os dos vizinhos, o mundo
verá os Estados Unidos de uma maneira
diferente. Esses três desafios constituem
uma agenda de grande importância para a
América do Norte, na sua segunda década.
O sucesso não só trará nova energia para
o continente, mas proporcionará um
modelo a ser seguido por outras regiões
do mundo.
Os governos dos Estados Unidos,
do México e do Canadá continuam a
defender zelosamente uma concepção de
soberania ultrapassada, embora os cidadãos desses países estejam prontos para
aceitar uma nova abordagem. A liderança
de cada país tem acentuado as diferenças
existentes entre eles, e não os seus interesses comuns. A América do Norte precisa
de líderes que possam articular e perseguir
uma visão mais ampla.
A segunda década da América do
Norte coloca um desafio diferente para
cada governo. Em primeiro lugar, o novo
Primeiro Ministro do Canadá, Paul Martin,
deveria tomar a dianteira para substituir o
duplo bilateralismo do passado por instituições norte-americanas fundamentadas
em regras. Se fizer isso, terá o apoio do
México, e os Estados Unidos não tardarão a seguir o exemplo. De seu lado, o
172
PENSAR
ROBERT A. PASTOR
O Pensador - Auguste Rodin
• Antonio Delfim Netto
• Ariosto Holanda
PENSAR
* ANTONIO DELFIM NETTO
No Brasil, o “mercado”, ajudado pelo
FMI, estabeleceu um limite para a Dívida
Líquida do Setor Público (DLSP) com relação ao Produto Interno Bruto (PIB). Da
mesma forma que existe a constante universal de Newton, a hipótese de Einstein
de um limite constante para a velocidade
da luz (agora contestada pelo físico português João Magueijo), e a constante de ação
de Planck no mundo quântico, existiria,
para o Brasil, um limite natural para a relação DLSP/PIB.
Esse limite, primeiro intuído pelo
“mercado” e depois “descoberto” pela
tarometria dos economistas que se supõem
portadores de uma “ciência dura”, seria o
misterioso número 0,56. Utilizando sofisticados métodos econométricos para equações não lineares, alguns economistas
(nacionais e estrangeiros) “provaram”
que 0,56 é mesmo uma espécie de
* Deputado Federal
174
limite: quando a relação ameaça crescer
além dele, todo o sistema econômico s e
inquieta...
Da mesma forma que as constantes
universais são “super-humanas” e estabelecem os alicerces da realidade física, o limite
da relação DLSP/PIB = 0,56 constituiria o
alicerce da credibilidade, no mundo, da
economia brasileira. É ocioso insistir que
talvez seja lícito suspeitar que o resultado
encontrado foi, insuspeitadamente, introduzido pelas crenças dos próprios pesquisadores...
Mas isso é rigorosamente irrelevante!
Um país profundamente endividado como
o Brasil não pode simplesmente ignorar
as “crenças” dos seus credores (internos e
externos). Se quiser continuar funcionando, tem de reconhecê-las como restrição
aos graus de liberdade da sua política econômica.
Na Dívida Líquida Total do Setor Público estão incluídas as dívidas internas e externas
dos três níveis da administração pública e as respectivas empresas estatais. No nível federal
inclui-se, obviamente, a dívida do Banco Central do Brasil, da qual se excluem as reservas
internacionais. Nos últimos três anos o comportamento dessa dívida foi o revelado na tabela
abaixo:
(em bilhões R$)
2001
2002
2003
1. DLSP
660,9
881,1
913,1
Interna
530,1
654,3
726,7
Externa
130,8
226,8
186,4
2. PIB
1.258,4
1.576,5
1.590,0
0,525
0,559
0,582
3. DLSP/PIB
Fonte: Banco Central do Brasil.
A sociedade tem suportado um aumento permanente de carga tributária bruta
revelada no gráfico abaixo, onde se registra também a DLSP/PIB. Esta vinha crescendo de
forma preocupante e depois de algumas flutuações (produzidas pelo ruído eleitoral de 2002),
ela parece estabilizar-se. Os números mostram o fantástico aumento da carga tributária ao
longo do governo Fernando Henrique Cardoso (de 26% em 1994 para 37%, em 2002).
Gráfico nº 1
175
PENSAR
O primeiro mandato de FHC (1995/98) foi um desastre fiscal, com as despesas de
custeio crescendo muito mais do que o PIB. Depois de um superavit primário de 5,21% do
PIB, no último ano do governo Itamar, que chegou a reduzir a relação DLSP/PIB, o resultado
primário desandou. Só no segundo mandato, sob a pressão do FMI, é que se produziram
superavits primários, como registra o gráfico nº 2.
Gráfico nº 2
O Governo costumava defender-se dizendo que o aumento da dívida se devia à
“absorção dos esqueletos”, isto é, às dívidas já feitas mas não reconhecidas, hipótese
facilmente refutada pelo quadro abaixo:
Evolução da DLSP (1995-2002) (em bilhões R$)
1. DLSP em 31/12/1994
153,2
2. DLSP em 31/12/2002
881,1
3. Acréscimo da DLSP no governo FHC
727,9
4. Juros nominais pagos
561,7
5. Superávits primários
(-) 158,8
6. Ajuste cambial
291,8
7. Esqueletos
8. Venda do patrimônio (Privatização)
9. Dívida externa (pequenos ajustes)
10. Total
176
402,9
97,4
(-) 64,6
32,8
0,4
727,9
ANTONIO DELFIM NETTO
Vemos que, descontada a venda do
patrimônio público, isto é, as privatizações, o reconhecimento dos “esqueletos”
não chega a 5% do valor da dívida acumulada no período.
Em dezembro de 1994, a relação
DLSP/PIB era da ordem de 30%. Em
dezembro de 2002 ela atingiu 56%. Isso
a despeito de um aumento sufocante da
carga tributária bruta que, certamente, foi
um dos maiores inibidores de um desenvolvimento econômico mais robusto.
O ano de 2002 foi atípico, porque o
processo eleitoral acrescentou uma enorme volatilidade à taxa cambial. O resultado final foi que o Brasil pagou, no ano,
14,5% do PIB como juro da sua dívida e,
depois de ter feito um superavit primário
de 4%, acumulou um deficit nominal de
10,5% do PIB.
O “mercado” utiliza e o FMI e alguns
tarometristas confirmam que a relação
Dívida Líquida do Setor Público/PIB é um
dos indicadores fundamentais para julgar
as condições de resistência da economia
brasileira aos naturais choques externos
que estão permanentemente se abatendo
sobre ela. Não importa a veracidade da
proposição.
O que importa é a “crença” de que
se aquela relação for maior do que 0,56
(ou seja, a Dívida Líquida do Setor Público
é maior do que 56% do PIB), o Brasil
terá maiores dificuldades de honrar a sua
dívida. Isso eleva os “spreads” externos
e a taxa de juros capaz de sustentar o
refinanciamento da dívida e seu eventual
aumento.
Nessas condições, o Tesouro (ou o
Banco Central) não consegue renovar a
dívida à taxa de juros vigente, e é forçado
a aumentá-la, agravando ainda mais o
problema. O mesmo acontece quando se
cria dúvida sobre a capacidade de renovar
a dívida externa (incluída na DLSP), o que
produz aumento do “spread externo” e
uma diminuição do financiamento externo, elevando a taxa de câmbio nominal.
Outra vez o movimento é no sentido de
agravar o desequilíbrio, pois o aumento
da taxa de juros aumenta a desconfiança
externa sobre a solvabilidade da dívida.
A dramaticidade do problema é
que um fator que poderia aliviar o crescimento da relação DLSP/PIB seria um
robusto aumento do PIB, freqüentemente
inibido pelo próprio comportamento da
taxa de juros. É essa a armadilha em que
nos encontramos há algum tempo.
Quais os fatores que controlam a
relação DLSP/PIB? O numerador (DLSP)
depende, basicamente, da relação já existente no ano anterior, da taxa de juro real e
da taxa de câmbio real, enquanto o denominador (PIB) depende da taxa de crescimento real do produto. Qual é a condição
“desejada” pelo “mercado”, pelo FMI e
confirmada pelos tarometristas?
É que a relação DLSP/PIB se estabilize em 56% e, a partir daí, revele um
decréscimo monotônico. Esse foi o objetivo do ministro Palocci quando, no início
de 2003, afirmou (logo depois confirmado
pelo próprio presidente Lula) que “faríamos o superavit primário necessário para
estabilizar a relação DLSP/PIB” e, unilateralmente, aumentou o objetivo do superavit para 4,25%.
O superavit primário não depende,
pois, da “vontade” do ministro, das “dúvidas internas do Governo” ou de “truques”.
Ele depende da taxa de juro real, da taxa
de câmbio real e do crescimento real. Se
em 2003 tivéssemos crescido em termos
reais 3% (em lugar de -0,2%), a relação
177
PENSAR
teria sido menor do que foi, dando um
sinal positivo para os credores internos
e externos. Por outro lado, sabemos que
existe uma relação negativa entre taxa de
crescimento real e taxa de juro real.
A taxa de câmbio real de hoje parece
próxima do equilíbrio em conta-corrente
(com um crescimento do PIB da ordem de
4 ou 5%). Existem, portanto, as condições
objetivas para dar início a uma redução
consistente da relação DLSP/PIB, iniciando
um movimento mais virtuoso do que o que
temos vivido.
A aceleração das exportações em
2003 já melhorou outros importantes indicadores: 1º) a relação Dívida Externa/PIB e
2º) Amortizações + Juros/PIB, o que confirma a possibilidade de termos uma imagem externa mais adequada das condições
objetivas que reduzem o “risco” Brasil.
É preciso estimular ainda mais as
exportações, aproveitar a oportunidade de
reduzir a taxa de juro real e tomar medidas para expandir o PIB, para reduzir a
relação DLSP/PIB e diminuir o pagamento
de juros, abrindo espaço para algum investimento público. Há um evidente cansaço
da sociedade com o pagamento de juros,
que em 2003 atingiu 145,2 bilhões de
reais e é percebido como um exagero.
Isso tende a estimular a imaginação de
alguns economistas a procurar soluções
mais rápidas (e em geral, erradas) para a
volta ao crescimento.
O Brasil começou 2004 numa situação econômica ligeiramente melhor do
que à do ano de 2003 e é por isso que não
se justifica a gritaria para mudar a política
econômica do ministro Pallocci. Esperamos
todos, agora, que com a estabilidade conquistada, o País assista ao “espetáculo do
178
crescimento”, modestamente fixado no
nível de aumento do PIB em 3,5%.
Todos sabemos que o “crescimento”
é feito pelo setor privado quando, dentro de quadros institucionais adequados
(inclusive o absoluto respeito à propriedade privada), o Governo “cria” os estímulos
para o funcionamento desembaraçado do
“mercado”, para a apropriação de parte
dos ganhos de produtividade pelos trabalhadores e incentiva os empresários.
É o comportamento do Governo que
reduz, para o agente privado, as incertezas
que o futuro sempre esconde. É ele que dá
certeza de que a demanda efetiva vai crescer, o que, combinado com a redução do
custo do capital e a expansão de crédito,
despertará o “espírito animal” dos empresários. Quando estes se dispõem a tomar o
“risco” dos novos investimentos, o crescimento simultâneo da oferta e da demanda
globais põe em marcha um processo virtuoso de expansão. Mais dia menos dia, ele
atinge o nível de emprego e, depois, com
a redução do desemprego, acaba proporcionando o aumento do salário real que é
a forma de participação do trabalhador no
crescimento.
Isso mostra que nem o tamanho do
bolo de 2004 nem a sua qualidade estão
determinados. Ele vai depender dos ingredientes que o setor privado vai mobilizar
em resposta à “receita” que o Governo for
capaz de imaginar. Lula sabia disso em
1978 quando, numa reunião de ex-quase
intelectuais, na qual era o único trabalhador, em lugar de “teorizar” disse:
“Quando fui convidado para debater
o tema ‘Brasil depois de novembro’ tentei
até encontrar uma bola de cristal para me
dizer o que será o Brasil em janeiro de
ANTONIO DELFIM NETTO
1979. Mas acho que o Brasil de janeiro de
1979 será o Brasil que a sociedade brasileira quiser, será aquele Brasil que a sociedade sem medo, sem apavoramento, possa
exigir que os atuais governantes não concedam, mas cedam para nós, o Brasil para
os brasileiros” (Painéis da Crise, 1979).
Hoje o governo é ele, Lula! Quando
insiste simultaneamente no “espetáculo do
crescimento” e no “ano da microeconomia”, acende uma grande esperança. O
“ano da microeconomia” não será, apenas, o da redução da taxa de juros real, por
mais importante que ela seja!
Será o ano do desembaraço máximo do funcionamento dos mercados, da
redução drástica dos impedimentos burocráticos, da racionalização dos impostos
combinada com a redução da carga pela
ampliação da base imponível com a incorporação do setor informal, da redução da
extravagante legislação prudencial imposta ao sistema bancário, da redução dos
custos do trabalho, da mobilização das
agências financeiras do Governo para o
desenvolvimento, da criação do crédito
para as pequenas e médias empresas, com
sistemas que reduzam o poder de monopólio do sistema bancário e do estímulo à
concorrência nos setores onde houve uma
enorme concentração (industrial e comercial) nos últimos 10 anos?
privado e as instituições de pesquisa e
desenvolvimento.
O “ano da microeconomia” não será
menor do que uma década! Inicialmente,
as grandes transformações certamente não
serão visíveis a olho nu. Como o velho
Schumpeter mostrou, há quase um século,
o aumento da produtividade e do crescimento numa economia de mercado é o
resultado da realocação de recursos e da
reestruturação das empresas dentro e entre
os vários setores.
Trata-se de um mecanismo relativamente lento, mas permanente, que ao
mesmo tempo em que constrói o novo
vai destruindo o velho. Por isso é às vezes
chamado de “creative destruction”. Foi
isso que os “nouveaux économistes” tentaram através da “désinflation compétitive”.
Infelizmente colheram apenas “destruction”!
O “ano da microeconomia” só pode
ser o da criação de incentivos para reduzir
o custo do capital, para a reorganização
da atividade produtiva, para a escolha de
novas tecnologias, para a aceleração da
depreciação dos equipamentos velhos e
sua substituição por novos, que incorporam tecnologias mais eficientes e o ano
do aumento da integração entre o setor
179
PENSAR
* ARIOSTO HOLANDA
Introdução
Pretendemos nesse ensaio apontar
uma política de geração de trabalho a
partir dos mecanismos de capacitação tecnológica da população, que tenham como
base a educação profissional, a extensão
tecnológica e a informação.
Entendemos que na realidade atual,
com a economia globalizada e com as
freqüentes inovações tecnológicas, não
podemos falar em trabalho sem colocar
como carro-chefe o conhecimento, que
deve ser perseguido em todos os níveis
da educação.
A geração de trabalho torna-se complexa porque temos pela frente um avanço
tecnológico crescente e uma grave questão social traduzida pela pobreza, analfabetismo e concentração de renda.
1. Sobre as Disparidades Inter-Regionais
EXPECTATIVA
DE VIDA
(anos)
TAXA DE
ALFABETIZAÇÃO
(%)
MORTALIDADE
INFANTIL
(p/mil)
POBREZA
ABSOLUTA
(%)
DH
(0 a 1)
Sul
70,1
87,5
61,8
20,6
0,872
Sudeste
67,1
88,2
74,5
14,8
0,852
Nordeste
58,8
63,5
121,4
51,2
0,575
Norte
68,2
88,1
72,3
24,6
0,780
Centro-Oeste
BRASIL
68,4
64,9
83,1
81,1
70,3
87,9
24,7
26,2
0,818
0,794
REGIÃO
*IDH - Índice de desenvolvimento humano: medido numa escala de 0 a 1, leva em conta a renda per capita, a expectativa
de vida e a taxa de alfabetização.
Fonte: Relatório da Comissão Especial do Congresso que estudou as causas do desequilíbrio econômico inter-regional
- ANO 1998.
*Deputado Federal
180
Os números apontados pela Comissão Especial do Congresso Nacional que estudou
as causas dos desequilíbrios econômicos inter-regionais em 1993, (tabela anterior) e os do
Relatório do IPEA – ano 2000 (a seguir), comprovam muito bem a gravidade desse quadro.
Observe no gráfico acima, do Relatório IPEA – Ano 2000, que o coeficiente Ginni, que
mede a concentração da renda vem se mantendo ao longo dos últimos 20 anos no patamar
0,6. Nos países onde existe uma boa distribuição de renda, esse número fica em torno de 0,25.
O gráfico acima, do Relatório IPEA – Ano 2000, mostra que 50% da renda está
concentrada em 10% da população, enquanto 50% da população detém somente 10% da
renda.
181
PENSAR
O gráfico acima, do Relatório IPEA
– Ano 2000, mostra a evolução do número
de Pobres e Indigentes no período de
1979 a 2000. Estima-se que hoje exista
uma população aproximada de 17 milhões
de analfabetos, 50 milhões de pobres e
22 milhões de pessoas sem qualificação
profissional.
Como o trabalho é a única forma
digna de combater a miséria, devemos
com urgência encontrar respostas para os
seguintes questionamentos:
palmente nesse momento em que a
explosão tecnológica que ocorre no
mundo está a exigir cada vez mais
das pessoas atualização permanente
de seus conhecimentos?
•
Como superar as desigualdades
regionais, quando se tem a consciência de que elas aumentam com a
concentração do conhecimento?
•
Como fazer ingressar num sistema
produtivo eficiente essa quantidade
de analfabetos, que hoje chega a ser
da ordem de 17 milhões de brasileiros?
•
O que fazer com milhões de trabalhadores cuja força de trabalho
é cada vez menos exigida, ou nem
mais o é?
Fala-se muito em cluster, em empreendedorismo, em cadeia produtiva, em
empresa de base tecnológica, em incubadoras de empresa como formas de
desenvolvimento, mas não se fala em
acabar com o analfabetismo tecnológico
da população, das pequenas empresas e
dos pequenos negócios. Por isso, torna-se
urgente uma ação de massa voltada para
apoio tecnológico às micro e pequenas
empresas e para implantação de um amplo
programa de ensino tecnológico baseado,
sobretudo, nas vocações das regiões.
•
Como distribuir renda com pessoas
sem qualificação profissional, princi-
O discurso do crescimento econômico como fórmula de geração de trabalho,
182
ARIOSTO HOLANDA
diante dessa massa de excluídos, torna-se
inócuo,porque poderemos ter aumento significativo do PIB sem que isso implique em
geração de um grande número de empregos. Isso porque as empresas, dentro da
atual lógica de crescimento, e não podem
fugir dela, serão cada vez mais intensivas em capital e menos mão-de-obra. O
modelo que temos de discutir é o que
esteja pautado numa visão de crescimento
sócio-econômico, ou melhor dizendo, que
esteja baseado numa economia que leve
em conta as pessoas. Apresentar, apenas,
como indicadores de desenvolvimento,
índices frios, sem considerar por trás de
tudo isso o homem: oportunidade para
uma vida melhor, justiça social, saúde,
habitação, educação, alimentação e salários dignos constitui uma visão parcial do
que entendo por desenvolvimento.
2.1. Relacionados com a Cadeia do
Conhecimento
Se analisarmos a figura anterior
constataremos que a cadeia do conhecimento em nosso país encontra-se, senão
degradada, no mínimo, enfraquecida. São
pontos que merecem a nossa atenção:
•
Analfabetismo – esse deve ser zerado.
•
Ensino fundamental e médio, como
foi constatado pelo recente diagnóstico do MEC, precisa urgentemente
ser melhorado, tendo como ponto
de partida a formação, o aperfeiçoamento e a atualização profissional
dos professores. Atualmente, existe
um grande deficit de professores de
matemática, física, química, biologia e português. A escola precisa ser
assistida com os meios interativos
proporcionados pela internet, ensino à distância e biblioteca multimídia.
•
Ensino Profissionalizante - A LDB (Lei
de Diretrizes e Bases), na área do
ensino profissionalizante, contempla
3 formações: básica, técnica e tecnológica. A formação básica diz respeito a cursos de curta duração, não
legalizados, na sua maioria patrocinado pelo FAT (fundo de apoio ao
trabalhador); a formação técnica inerente às escolas técnicas, de número
reduzido; e a formação tecnológica,
de responsabilidade dos centros de
ensino tecnológico superior, ainda
em fase de implantação no país.
Diante desse quadro, constata-se
que existe um fosso entre o ensino
fundamental e médio e a graduação, evidenciado pela ausência de
escolas técnicas profissionalizantes.
Nos países desenvolvidos existe uma
Vamos aprofundar essa discussão
apresentando alguns cenários para reflexão.
2. A Nova Realidade do Trabalho
e Exigência de Mão-de-Obra
– Cenários para Reflexão
183
PENSAR
relação considerada ótima, de um
técnico de nível superior para cinco
técnicos de nível médio. Essa relação
no Brasil está invertida. Dados da CPI
do atraso tecnológico (1993) revelou
que tínhamos dois técnicos de nível
superior para um de nível médio,
como média nacional. Nas regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, essa
relação é de quatro técnicos de nível
superior para um de nível médio.
2.2. Relacionados com a Tecnologia
•
Ensino tecnológico - deverá ser
ministrado com forte embasamento em ciências e domínio das linguagens: matemática, Informática,
português e inglês.
Esse avanço tecnológico, conclui o
professor, vai resultar no aprofundamento
do conhecimento de poucos e no aumento
da ignorância de muitos.
•
Graduação - deve ser fortalecida
com o aumento do número de mestres e doutores. O país precisa formar
120.000 doutores. Hoje, só dispõe
de 35.000
•
P (pós-graduação e pesquisa), D
(desenvolvimento tecnológico) e E
(extensão e engenharia) – essas atividades precisam ser implantadas
ou fortalecidas nas universidades e
instituições de pesquisa.
•
•
Extensão – os trabalhos de extensão
das universidades e institutos de tecnologia precisam ser massificados no
sentido de levar novos conhecimentos para a população.
Infovias do conhecimento - formadas por redes eletrônicas interligando
os centros de ensino tecnológico e as
universidades, deverão ser implantadas em todo país como suporte aos
programas de ensino à distância e
das bibliotecas multimídias, encurtando assim a distância do conhecimento.
184
O século XXI vai se caracterizar por
mudanças rápidas na área tecnológica,
onde a única certeza vai ser a incerteza.
Como diz o professor Wladimir P. Longo:
“Estamos todos nos deslocando sobre uma
esteira rolante que se move em sentido
contrário, a velocidades crescentes, trazendo novos conhecimentos; temos que
correr para ficar, pelo menos no mesmo
lugar”.
São consideradas áreas estratégicas
do conhecimento frente às inovações: ciências biológicas, biotecnologia, engenharia
genética, química fina, energia, telecomunicações, informática, novos materiais,
microeletrônica, mecânica fina, robótica e
mecatrônica.
As grandes aplicações desses
conhecimentos se darão nas indústrias
de: telemática, bélica, transporte, robótica, bens de consumo, aeroespacial, na
agricultura voltada para genética animal,
genética vegetal, doenças e pragas, e
nos serviços relacionados com automação,
informação, educação, lazer e saúde.
2.3. Relacionados com o Trabalho
Estudos mostram que, num futuro
próximo, a indústria e a agricultura serão
cada vez mais intensivas em capital e
menos em mão-de-obra. A automação
industrial e o avanço da mecanização
agrícola com certeza vão acelerar esse
processo. As fábricas sem operários e as
empresas virtuais surgirão cada vez mais,
dia a dia.
ARIOSTO HOLANDA
Estima-se que, em 10 anos, nos
países desenvolvidos, somente 10% dos
trabalhadores estarão nos setores primário
e secundário, e que a terceirização, ou
seja, a área de serviços será a grande
demandadora de mão-de-obra. Não mais
existirão as profissões tradicionais de pai
para filho; nessa terceira via, devido às
inovações tecnológicas, surgirá um número
muito grande de profissões nascendo e
morrendo, e que somente a porta do saber
permitirá o acesso a elas.
Apesar de se apontar a área de
serviços como a grande empregadora, no
entanto, a atual transição da sociedade
industrial rumo à sociedade de serviços
ou à sociedade informatizada, mostra que
no atual setor terciário, o potencial de
racionalização é enorme. Estima-se que
poder-se-ia economizar 51% dos empregos
no comércio e até 61% na administração
pública e nos bancos. Do ponto de vista
social e da ameaça do desemprego, isso é
extremamente grave.
Novos campos profissionais surgirão
com o desenvolvimento tecnológico. As
atividades a eles inerentes beneficiarão apenas
uma pequena elite global e virtual.
Vamos nos deparar com situações
onde teremos, de um lado pessoas
procurando emprego e, na contramão,
trabalho procurando profissional.
Profissões vão surgir e em curto
tempo desaparecer; do mesmo modo que
postos de trabalho vão exigir habilidades
e conhecimentos que em pouco tempo
serão substituídos. O profissional, para
subsistir, terá que ser um eterno estudante.
3. Conclusão
Há, diante desse quadro, uma urgência de criarmos mecanismos, ágeis e fle-
xíveis, de transferência de conhecimentos
para a população, como verdadeiros atalhos que avancem sobre os procedimentos tradicionais da educação.
Existe uma grande massa de
trabalhadores sem esperança de emprego, por total desqualificação profissional.
Hoje, se houvesse um reaquecimento
da economia, com novos investimentos
em áreas de alta tecnologia, esses trabalhadores não entrariam no mercado de
trabalho.
Temos que adotar, de imediato, medidas voltadas para o aprimoramento do
ensino profissionalizante. Os indicadores
sociais que acabamos de ver estão a exigir,
das instituições que detém o conhecimento, ações que venham a contribuir de
modo decisivo no processo de educação
para o trabalho, em todos os níveis.
Certamente, a geração de emprego e
a distribuição de renda só se darão quando investirmos no capital humano e procedermos a uma profunda transformação na
lógica do desenvolvimento. Por sua vez,
o investimento no capital humano deve
ser feito através de um sistema educativo
eficiente, de qualidade, e que envolva toda
sociedade. Só assim daremos o salto de
qualidade.
Temos que ousar e partir para um
processo de interação com a sociedade
do tipo Educar Trabalhando e Trabalhar
Educando.
A lógica do processo de educação,
incluindo as várias etapas do conhecimento, deve ser capaz de responder a questões
do tipo:
“Como e por que os produtos e serviços
são feitos dessa ou daquela maneira, e
como podem ser melhorados”?
185
PENSAR
Ao lado do mecanismo educacional,
deve ser perseguida a implantação de um
amplo sistema de informação tecnológica,
no sentido de proporcionar aos pequenos
segmentos produtivos, hoje mergulhados
num verdadeiro analfabetismo tecnológico, condições de conhecer e de apropriarse de novas tecnologias.
As ações a serem desencadeadas
devem ser tais que integrem todos os segmentos da sociedade; elas não podem ser
estanques e isoladas, e devem ter como
objetivo o homem no seu estágio atual de
conhecimento e no seu contexto social.
O analfabeto fora da escola, o analfabeto tecnológico dentro da escola, a escola
fora da realidade atual, a universidade
sem interagir com os problemas do meio,
o setor produtivo isolado dos problemas
educacionais e tecnológicos são verdadeiros desafios para qualquer governo que
queira promover uma revolução social,
educacional, científica e tecnológica.
Por tudo isso, defendemos um novo
modelo de desenvolvimento que tenha
como alvo, não o crescimento econômico
em si, mas o desenvolvimento sócio- econômico que leve em conta as pessoas, que
saia da lógica do desenvolvimento com
base no mercado para a lógica da social
democracia, onde o Estado deve exercer o
papel regulador do processo de desenvolvimento, e que tenha na educação, ciência
e tecnologia o suporte basilar para o seu
desenvolvimento. Que seja um Estado que
massifique as ações da extensão tecnológica via universidades, centros de ensino
tecnológico e instituições de tecnologia.
Que abra o mercado, na área de serviços
e de produtos, para os pequenos negócios,
tipo compra e serviços governamentais. O
que o governo (municipal, estadual e fede186
ral) compra ou contrata que pode ser feito
pelo pequeno? Há que se definir programas de geração de trabalho voltados para
essa massa de trabalhadores desempregados. Programa, como o de produção do
biodiesel, poderia se constituir no maior
programa de reforma agrária do país. Para
finalizar, torna-se oportuno transcrever a
entrevista com o camponês Cícero dos
Santos no livro “A Questão Política da
Educação”:
“O senhor diz que até poderia ser
diferente, não é assim? Que não é só para
ensinar aquele ensinozinho apressado,
para ver se velho aprende o que menino
não aprendeu. Então podia ser tipo de
educação até fora da escola, da sala. Que
fosse assim dum jeito misturado com o
de todo dia da vida da gente daqui. Que
podia ser um modo desses de juntar saber
e clarear os assuntos, que a gente sente
mas não sabe. Então era bom. O povo
vinha”?
Idéias
Leis
&
O Pai do Artista - Paul Cézanne
Estatuto do Idoso
• Senador Paulo Paim
• Ministra Fátima Nancy
187
IDÉIAS E LEIS
ESTATUTO DO IDOSO
Mulher com a Mania de Jogo - Théodore Géricault
Estatuto do Idoso
LEI Nº 10.741, DE 1º DE OUTUBRO
DE 2003.
Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá
outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço
saber que o Congresso Nacional decreta e
eu sanciono a seguinte Lei:
TÍTULO I
Disposições Preliminares
Art. 1º É instituído o Estatuto do Idoso,
destinado a regular os direitos
188
assegurados às pessoas com idade
igual ou superior a 60 (sessenta)
anos.
Art. 2º
O idoso goza de todos os
direitos fundamentais inerentes
à pessoa humana, sem prejuízo
da proteção integral de que
trata esta Lei, assegurandose-lhe, por lei ou por outros
meios, todas as oportunidades
e facilidades, para preservação
de sua saúde física e mental
e seu aperfeiçoamento moral,
intelectual, espiritual e social,
em condições de liberdade e
dignidade.
Art. 3º
É obrigação da família, da
comunidade, da sociedade e
do Poder Público assegurar ao
idoso, com absoluta prioridade,
a efetivação do direito à vida,
à saúde, à alimentação, à
educação, à cultura, ao esporte,
ao lazer, ao trabalho, à cidadania,
à liberdade, à dignidade, ao
respeito e à convivência familiar
e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
I – atendimento preferencial imediato
e individualizado junto aos órgãos públicos
e privados prestadores de serviços à população;
II – preferência na formulação e na
execução de políticas sociais públicas específicas;
VIII – garantia de acesso à rede de
serviços de saúde e de assistência social
locais.
Art. 4º
§ 1º É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso.
§ 2º As obrigações previstas nesta Lei
não excluem da prevenção outras decorrentes dos princípios por ela adotados.
Art. 5º
A inobservância das normas
de prevenção importará em
responsabilidade à pessoa física
ou jurídica nos termos da lei.
Art. 6º
Todo cidadão tem o dever
de comunicar à autoridade
competente qualquer forma de
violação a esta Lei que tenha
testemunhado ou de que tenha
conhecimento.
Art. 7º
Os Conselhos Nacional,
Estaduais, do Distrito Federal e
Municipais do Idoso, previstos
na Lei nº 8.842, de 4 de
janeiro de 1994, zelarão pelo
cumprimento dos direitos do
idoso, definidos nesta Lei.
III – destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a
proteção ao idoso;
IV – viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio
do idoso com as demais gerações;
V – priorização do atendimento do
idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que
não a possuam ou careçam de condições
de manutenção da própria sobrevivência;
VI – capacitação e reciclagem dos
recursos humanos nas áreas de geriatria e
gerontologia e na prestação de serviços aos
idosos;
VII – estabelecimento de mecanismos
que favoreçam a divulgação de informações de caráter educativo sobre os aspectos
biopsicossociais de envelhecimento;
Nenhum idoso será objeto de
qualquer tipo de negligência,
discriminação,
violência,
crueldade ou opressão, e todo
atentado aos seus direitos, por
ação ou omissão, será punido
na forma da lei.
TÍTULO II
Dos Direitos Fundamentais
CAPÍTULO I
Do Direito à Vida
Art. 8º
O
envelhecimento
é
um
189
IDÉIAS & LEIS
direito personalíssimo e a sua
proteção, um direito social,
nos termos desta Lei e da
legislação vigente.
Art. 9º
É obrigação do Estado, garantir
à pessoa idosa a proteção
à vida e à saúde, mediante
efetivação de políticas sociais
públicas que permitam um
envelhecimento saudável e
em condições de dignidade.
§ 2º O direito ao respeito consiste na
inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação
da imagem, da identidade, da autonomia,
de valores, idéias e crenças, dos espaços e
dos objetos pessoais.
§ 3º É dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de
qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
CAPÍTULO III
CAPÍTULO II
Dos Alimentos
Do Direito à Liberdade, ao
Respeito e à Dignidade
Art. 11.
Os alimentos serão prestados
ao idoso na forma da lei civil.
Art. 12.
A obrigação alimentar é
solidária, podendo o idoso
optar entre os prestadores.
Art. 13.
As
transações
relativas
a alimentos poderão ser
celebradas perante o Promotor
de Justiça, que as referendará,
e passarão a ter efeito de título
executivo extrajudicial nos
termos da lei processual civil.
Art. 14.
Se o idoso ou seus familiares
não possuírem condições
econômicas de prover o seu
sustento, impõe-se ao Poder
Público esse provimento, no
âmbito da assistência social.
Art. 10.
É obrigação do Estado e da
sociedade, assegurar à pessoa
idosa a liberdade, o respeito
e a dignidade, como pessoa
humana e sujeito de direitos
civis, políticos, individuais
e sociais, garantidos na
Constituição e nas leis.
§ 1º O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos:
I – faculdade de ir, vir e estar nos
logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
II – opinião e expressão;
III – crença e culto religioso;
IV – prática de esportes e de diversões;
V – participação na vida familiar e
comunitária;
VI – participação na vida política, na
forma da lei;
VII – faculdade de buscar refúgio,
auxílio e orientação.
190
CAPÍTULO IV
Do Direito à Saúde
Art. 15.
É assegurada a atenção
integral à saúde do idoso, por
intermédio do Sistema Único
de Saúde – SUS, garantindo-lhe
o acesso universal e igualitário,
em conjunto articulado e
ESTATUTO DO IDOSO
contínuo das ações e serviços,
para a prevenção, promoção,
proteção e recuperação da
saúde, incluindo a atenção
especial às doenças que afetam
preferencialmente os idosos.
§ 1º A prevenção e a manutenção
da saúde do idoso serão efetivadas por
meio de:
I – cadastramento da população idosa
em base territorial;
II – atendimento geriátrico e gerontológico em ambulatórios;
III – unidades geriátricas de referência, com pessoal especializado nas áreas
de geriatria e gerontologia social;
Art. 16.
Ao idoso internado ou em
observação é assegurado
o direito a acompanhante,
devendo o órgão de saúde
proporcionar as condições
adequadas
para
a
sua
permanência em tempo integral,
segundo o critério médico.
Parágrafo único. Caberá ao profissional de saúde responsável pelo tratamento conceder autorização para o acompanhamento do idoso ou, no caso de
impossibilidade, justificá-la por escrito.
Art. 17.
Ao idoso que esteja no domínio
de suas faculdades mentais é
assegurado o direito de optar
pelo tratamento de saúde
que lhe for reputado mais
favorável.
IV – atendimento domiciliar, incluindo a internação, para a população que
dele necessitar e esteja impossibilitada de
se locomover, inclusive para idosos abrigados e acolhidos por instituições públicas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e
eventualmente conveniadas com o Poder
Público, nos meios urbano e rural;
Parágrafo único. Não estando o
idoso em condições de proceder à opção,
esta será feita:
V – reabilitação orientada pela geriatria e gerontologia, para redução das
seqüelas decorrentes do agravo da saúde.
II – pelos familiares, quando o idoso
não tiver curador ou este não puder ser
contactado em tempo hábil;
§ 2º Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros
recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.
III – pelo médico, quando ocorrer
iminente risco de vida e não houver tempo
hábil para consulta a curador ou familiar;
§ 3º É vedada a discriminação do
idoso nos planos de saúde pela cobrança
de valores diferenciados em razão da
idade.
§ 4º Os idosos portadores de deficiência ou com limitação incapacitante
terão atendimento especializado, nos termos da lei.
I – pelo curador, quando o idoso for
interditado;
IV – pelo próprio médico, quando
não houver curador ou familiar conhecido,
caso em que deverá comunicar o fato ao
Ministério Público.
Art. 18.
As instituições de saúde
devem atender aos critérios
mínimos para o atendimento
às necessidades do idoso,
promovendo o treinamento e a
capacitação dos profissionais,
assim como orientação a
191
IDÉIAS & LEIS
cuidadores familiares e grupos
de auto-ajuda.
Art. 19.
Os casos de suspeita ou
confirmação
de
maustratos contra idoso serão
obrigatoriamente comunicados
pelos profissionais de saúde
a quaisquer dos seguintes
órgãos:
I – autoridade policial;
Art. 22.
Nos currículos mínimos dos
diversos níveis de ensino formal
serão inseridos conteúdos
voltados ao processo de
envelhecimento, ao respeito
e à valorização do idoso, de
forma a eliminar o preconceito
e a produzir conhecimentos
sobre a matéria.
Art. 23.
A participação dos idosos em
atividades culturais e de lazer
será proporcionada mediante
descontos de pelo menos
50% (cinqüenta por cento)
nos ingressos para eventos
artísticos, culturais, esportivos
e de lazer, bem como o acesso
preferencial aos respectivos
locais.
Art. 24.
Os meios de comunicação
manterão espaços ou horários
especiais voltados aos idosos,
com finalidade informativa,
educativa, artística e cultural, e
ao público sobre o processo de
envelhecimento.
Art. 25.
O Poder Público apoiará
a criação de universidade
aberta para as pessoas idosas
e incentivará a publicação de
livros e periódicos, de conteúdo
e padrão editorial adequados
ao idoso, que facilitem a leitura,
considerada a natural redução
da capacidade visual.
II – Ministério Público;
III – Conselho Municipal do Idoso;
IV – Conselho Estadual do Idoso;
V – Conselho Nacional do Idoso.
CAPÍTULO V
Da Educação, Cultura, Esporte e
Lazer
Art. 20.
O idoso tem direito a educação,
cultura, esporte, lazer, diversões,
espetáculos, produtos e serviços
que respeitem sua peculiar
condição de idade.
Art. 21.
O Poder Público criará
oportunidades de acesso do
idoso à educação, adequando
currículos, metodologias e
material didático aos programas
educacionais a ele destinados.
§ 1º Os cursos especiais para idosos
incluirão conteúdo relativo às técnicas
de comunicação, computação e demais
avanços tecnológicos, para sua integração
à vida moderna.
§ 2º Os idosos participarão das
comemorações de caráter cívico ou cultural, para transmissão de conhecimentos
e vivências às demais gerações, no sentido
da preservação da memória e da identidade culturais.
192
CAPÍTULO VI
Da Profissionalização e do
Trabalho
Art. 26.
O idoso tem direito ao exercício
de atividade profissional,
respeitadas suas condições
físicas, intelectuais e psíquicas.
ESTATUTO DO IDOSO
Art. 27.
Na admissão do idoso em
qualquer trabalho ou emprego,
é vedada a discriminação e a
fixação de limite máximo de
idade, inclusive para concursos,
ressalvados os casos em que a
natureza do cargo o exigir.
mento, com base em percentual definido
em regulamento, observados os critérios
estabelecidos pela Lei nº 8.213, de 24 de
julho de 1991.
Art. 30.
Parágrafo único. O primeiro critério
de desempate em concurso público será a
idade, dando-se preferência ao de idade
mais elevada.
Art. 28.
O Poder Público criará e
estimulará programas de:
I – profissionalização especializada
para os idosos, aproveitando seus potenciais e habilidades para atividades regulares
e remuneradas;
II – preparação dos trabalhadores
para a aposentadoria, com antecedência mínima de 1 (um) ano, por meio de
estímulo a novos projetos sociais, conforme seus interesses, e de esclarecimento
sobre os direitos sociais e de cidadania;
Parágrafo único. O cálculo do valor
do benefício previsto no caput observará
o disposto no caput e 2º do art. 3º da Lei
nº 9.876, de 26 de novembro de 1999,
ou, não havendo salários-de-contribuição
recolhidos a partir da competência de
julho de 1994, o disposto no art. 35 da Lei
nº 8.213, de 1991.
Art. 31.
O pagamento de parcelas
relativas a benefícios, efetuado
com atraso por responsabilidade
da Previdência Social, será
atualizado pelo mesmo índice
utilizado para os reajustamentos
dos benefícios do Regime Geral
de Previdência Social, verificado
no período compreendido entre
o mês que deveria ter sido pago
e o mês do efetivo pagamento.
Art. 32.
O Dia Mundial do Trabalho,
1º de Maio, é a data-base dos
aposentados e pensionistas.
III – estímulo às empresas privadas
para admissão de idosos ao trabalho.
CAPÍTULO VII
Da Previdência Social
Art. 29.
Os benefícios de aposentadoria
e pensão do Regime Geral da
Previdência Social observarão,
na sua concessão, critérios de
cálculo que preservem o valor
real dos salários sobre os quais
incidiram contribuição, nos
termos da legislação vigente.
Parágrafo único. Os valores dos benefícios em manutenção serão reajustados na
mesma data de reajuste do salário-mínimo,
pro rata, de acordo com suas respectivas
datas de início ou do seu último reajusta-
A
perda
da
condição
de
segurado
não
será
considerada para a concessão
da aposentadoria por idade,
desde que a pessoa conte
com, no mínimo, o tempo de
contribuição correspondente ao
exigido para efeito de carência
na data de requerimento do
benefício.
CAPÍTULO VIII
Da Assistência Social
Art. 33.
A assistência social aos
idosos será prestada, de
forma articulada, conforme os
193
IDÉIAS & LEIS
princípios e diretrizes previstos
na Lei Orgânica da Assistência
Social, na Política Nacional
do Idoso, no Sistema Único
de Saúde e demais normas
pertinentes.
Art. 34.
Aos idosos, a partir de 65
(sessenta e cinco) anos, que
não possuam meios para prover
sua subsistência, nem de têla provida por sua família, é
assegurado o benefício mensal
de 1 (um) salário-mínimo, nos
termos da Lei Orgânica da
Assistência Social – Loas.
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos
termos do caput não será computado para
os fins do cálculo da renda familiar per
capita a que se refere a Loas.
Art. 35.
Todas as entidades de longa
permanência, ou casa-lar, são
obrigadas a firmar contrato de
prestação de serviços com a
pessoa idosa abrigada.
§ 1º No caso de entidades filantrópicas, ou casa-lar, é facultada a cobrança
de participação do idoso no custeio da
entidade.
§ 2º O Conselho Municipal do Idoso
ou o Conselho Municipal da Assistência
Social estabelecerá a forma de participação
prevista no § 1º, que não poderá exceder
a 70% (setenta por cento) de qualquer
benefício previdenciário ou de assistência
social percebido pelo idoso.
§ 3º Se a pessoa idosa for incapaz,
caberá a seu representante legal firmar
o contrato a que se refere o caput deste
artigo.
194
Art. 36.
O acolhimento de idosos em
situação de risco social, por
adulto ou núcleo familiar,
caracteriza a dependência
econômica, para os efeitos
legais.
CAPÍTULO IX
Da Habitação
Art. 37.
O idoso tem direito a moradia
digna, no seio da família
natural ou substituta, ou
desacompanhado de seus
familiares, quando assim o
desejar, ou, ainda, em instituição
pública ou privada.
§ 1º A assistência integral na
modalidade de entidade de longa
permanência será prestada quando
verificada inexistência de grupo familiar,
casa-lar, abandono ou carência de recursos
financeiros próprios ou da família.
§ 2º Toda instituição dedicada ao
atendimento ao idoso fica obrigada a
manter identificação externa visível, sob
pena de interdição, além de atender toda
a legislação pertinente.
§ 3º As instituições que abrigarem
idosos são obrigadas a manter padrões
de habitação compatíveis com as
necessidades deles, bem como provêlos com alimentação regular e higiene
indispensáveis às normas sanitárias e com
estas condizentes, sob as penas da lei.
Art. 38.
Nos programas habitacionais,
públicos ou subsidiados com
recursos públicos, o idoso goza
de prioridade na aquisição de
imóvel para moradia própria,
observado o seguinte:
ESTATUTO DO IDOSO
I – reserva de 3% (três por cento) das
unidades residenciais para atendimento
aos idosos;
II – implantação de equipamentos
urbanos comunitários voltados ao idoso;
III – eliminação de barreiras
arquitetônicas e urbanísticas, para garantia
de acessibilidade ao idoso;
IV – critérios de financiamento
compatíveis com os rendimentos de
aposentadoria e pensão.
CAPÍTULO X
Do Transporte
Art. 39.
Aos maiores de 65 (sessenta
e cinco) anos fica assegurada
a gratuidade dos transportes
coletivos públicos urbanos
e semi-urbanos, exceto nos
serviços seletivos e especiais,
quando prestados paralelamente
aos serviços regulares.
§ 1º Para ter acesso à gratuidade,
basta que o idoso apresente qualquer
documento pessoal que faça prova de sua
idade.
§ 2º Nos veículos de transporte coletivo
de que trata este artigo, serão reservados
10% (dez por cento) dos assentos para os
idosos, devidamente identificados com a
placa de reservado preferencialmente para
idosos.
§ 3º No caso das pessoas
compreendidas na faixa etária entre 60
(sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará
a critério da legislação local dispor sobre
as condições para exercício da gratuidade
nos meios de transporte previstos no caput
deste artigo.
Art. 40.
No sistema de transporte
coletivo interestadual observarse-á, nos termos da legislação
específica:
I – a reserva de 2 (duas) vagas gratuitas
por veículo para idosos com renda igual
ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos;
II – desconto de 50% (cinqüenta por
cento), no mínimo, no valor das passagens,
para os idosos que excederem as vagas
gratuitas, com renda igual ou inferior a 2
(dois) salários-mínimos.
Parágrafo único. Caberá aos órgãos
competentes definir os mecanismos e
os critérios para o exercício dos direitos
previstos nos incisos I e II.
Art. 41.
É assegurada a reserva, para
os idosos, nos termos da lei
local, de 5% (cinco por cento)
das vagas nos estacionamentos
públicos e privados, as quais
deverão ser posicionadas de
forma a garantir a melhor
comodidade ao idoso.
Art. 42.
É assegurada a prioridade do
idoso no embarque no sistema
de transporte coletivo.
TÍTULO III
Das Medidas de Proteção
CAPÍTULO I
Das Disposições Gerais
Art. 43.
As medidas de proteção ao
idoso são aplicáveis sempre
que os direitos reconhecidos
nesta Lei forem ameaçados ou
violados:
195
IDÉIAS & LEIS
I – por ação ou omissão da sociedade
ou do Estado;
II – por falta, omissão ou abuso
da família, curador ou entidade de
atendimento;
III – em razão de sua condição
pessoal.
CAPÍTULO II
Das Medidas Específicas de
Proteção
Art. 44.
Art. 45.
As medidas de proteção ao
idoso previstas nesta Lei
poderão ser aplicadas, isolada
ou cumulativamente, e levarão
em conta os fins sociais a que
se destinam e o fortalecimento
dos vínculos familiares e
comunitários.
Verificada
qualquer
das
hipóteses previstas no art. 43, o
Ministério Público ou o Poder
Judiciário, a requerimento
daquele, poderá determinar,
dentre outras, as seguintes
medidas:
I – encaminhamento à família ou
curador, mediante termo de responsabilidade;
II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
II – requisição para tratamento de sua
saúde, em regime ambulatorial, hospitalar
ou domiciliar;
IV – inclusão em programa oficial ou
comunitário de auxílio, orientação e tratamento a usuários dependentes de drogas
lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou à
pessoa de sua convivência que lhe cause
perturbação;
196
V – abrigo em entidade;
VI – abrigo temporário.
TÍTULO IV
Da Política de Atendimento ao
Idoso
CAPÍTULO I
Disposições Gerais
Art. 46.
A política de atendimento
ao idoso far-se-á por meio
do conjunto articulado de
ações governamentais e nãogovernamentais da União, dos
Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios.
Art. 47.
São linhas de ação da política
de atendimento:
I – políticas sociais básicas, previstas
na Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994;
II – políticas e programas de assistência
social, em caráter supletivo, para aqueles
que necessitarem;
III – serviços especiais de prevenção
e atendimento às vítimas de negligência,
maus-tratos, exploração, abuso, crueldade
e opressão;
IV – serviço de identificação e
localização de parentes ou responsáveis
por idosos abandonados em hospitais e
instituições de longa permanência;
V – proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos dos idosos;
VI – mobilização da opinião pública
no sentido da participação dos diversos
segmentos da sociedade no atendimento
do idoso.
ESTATUTO DO IDOSO
CAPÍTULO II
Das Entidades de Atendimento ao
Idoso
Art. 48.
As entidades de atendimento
são
responsáveis
pela
manutenção das próprias
unidades, observadas as normas
de planejamento e execução
emanadas do órgão competente
da Política Nacional do Idoso,
conforme a Lei nº 8.842, de
1994.
Parágrafo único. As entidades
governamentais e não-governamentais
de assistência ao idoso ficam sujeitas à
inscrição de seus programas, junto ao
órgão competente da Vigilância Sanitária e
Conselho Municipal da Pessoa Idosa, e em
sua falta, junto ao Conselho Estadual ou
Nacional da Pessoa Idosa, especificando
os regimes de atendimento, observados os
seguintes requisitos:
I – oferecer instalações físicas em
condições adequadas de habitabilidade,
higiene, salubridade e segurança;
II – apresentar objetivos estatutários
e plano de trabalho compatíveis com os
princípios desta Lei;
III – estar regularmente constituída;
III – manutenção do idoso na mesma
instituição, salvo em caso de força maior;
IV – participação do idoso nas atividades comunitárias, de caráter interno e
externo;
V – observância dos direitos e garantias dos idosos;
VI – preservação da identidade do
idoso e oferecimento de ambiente de respeito e dignidade.
Parágrafo único. O dirigente de instituição prestadora de atendimento ao idoso
responderá civil e criminalmente pelos
atos que praticar em detrimento do idoso,
sem prejuízo das sanções administrativas.
Art. 50.
Constituem obrigações das
entidades de atendimento:
I – celebrar contrato escrito de prestação de serviço com o idoso, especificando
o tipo de atendimento, as obrigações da
entidade e prestações decorrentes do contrato, com os respectivos preços, se for o
caso;
II – observar os direitos e as garantias
de que são titulares os idosos;
III – fornecer vestuário adequado, se
for pública, e alimentação suficiente;
IV – oferecer instalações físicas em
condições adequadas de habitabilidade;
IV – demonstrar a idoneidade de seus
dirigentes.
V – oferecer atendimento personalizado;
Art. 49.
As
entidades
que
desenvolvam programas de
institucionalização de longa
permanência adotarão os
seguintes princípios:
VI – diligenciar no sentido da preservação dos vínculos idados à saúde, conforme a necessidade do idoso;
I – preservação dos vínculos famili-
X – propiciar assistência religiosa
àqueles que desejarem, de acordo com
suas crenças;
ares;
II – atendimento personalizado e em
pequenos grupos;
IX – promover atividades educacionais, esportivas, culturais e de lazer;
197
IDÉIAS & LEIS
XI – proceder a estudo social e pessoal de cada caso;
XII – comunicar à autoridade competente de saúde toda ocorrência de idoso
portador de doenças infecto-contagiosas;
XIII – providenciar ou solicitar que o
Ministério Público requisite os documentos necessários ao exercício da cidadania
àqueles que não os tiverem, na forma da
lei;
do Idoso, Ministério Público,
Vigilância Sanitária e outros
previstos em lei.
Art. 53.
O art. 7º da Lei nº 8.842, de
1994, passa a vigorar com a
seguinte redação:
“Art. 7º
Compete
aos
Conselhos
de que trata o art. 6º
desta Lei a supervisão,
o
acompanhamento,
a
fiscalização e a avaliação
da política nacional do
idoso,
no
âmbito
das
respectivas instâncias políticoadministrativas.”
Art. 54.
Será dada publicidade das
prestações de contas dos
recursos públicos e privados
recebidos pelas entidades de
atendimento.
Art. 55.
As entidades de atendimento
que
descumprirem
as
determinações desta Lei ficarão
sujeitas, sem prejuízo da
responsabilidade civil e criminal
de seus dirigentes ou prepostos,
às seguintes penalidades,
observado o devido processo
legal:
XIV – fornecer comprovante de
depósito dos bens móveis que receberem
dos idosos;
XV – manter arquivo de anotações
onde constem data e circunstâncias do
atendimento, nome do idoso, responsável,
parentes, endereços, cidade, relação de
seus pertences, bem como o valor de contribuições, e suas alterações, se houver, e
demais dados que possibilitem sua identificação e a individualização do atendimento;
XVI – comunicar ao Ministério
Público, para as providências cabíveis, a
situação de abandono moral ou material
por parte dos familiares;
XVII – manter no quadro de pessoal
profissionais com formação específica.
Art. 51.
As instituições filantrópicas ou
sem fins lucrativos prestadoras
de serviço ao idoso terão direito
à assistência judiciária gratuita.
CAPÍTULO III
Da Fiscalização das Entidades de
Atendimento
Art. 52.
198
As entidades governamentais
e não-governamentais de
atendimento ao idoso serão
fiscalizadas pelos Conselhos
I - as entidades governamentais:
a) advertência;
b) afastamento provisório de seus
dirigentes;
c) afastamento definitivo de seus dirigentes;
d) fechamento de unidade ou interdição de programa;
II – as entidades não-governamentais:
a) advertência;
b) multa;
ESTATUTO DO IDOSO
c) suspensão parcial ou total do
repasse de verbas públicas;
d) interdição de unidade ou suspensão de programa;
e) proibição de atendimento a idosos
a bem do interesse público.
§ 1º Havendo danos aos idosos
abrigados ou qualquer tipo de fraude em
relação ao programa, caberá o afastamento provisório dos dirigentes ou a interdição
da unidade e a suspensão do programa.
o fato não for caracterizado como crime,
podendo haver a interdição do estabelecimento até que sejam cumpridas as exigências legais.
Parágrafo único. No caso de interdição do estabelecimento de longa permanência, os idosos abrigados serão transferidos para outra instituição, às expensas
do estabelecimento interditado, enquanto
durar a interdição.
Art. 57.
§ 2º A suspensão parcial ou total do
repasse de verbas públicas ocorrerá quando verificada a má aplicação ou desvio de
finalidade dos recursos.
§ 3º Na ocorrência de infração por
entidade de atendimento, que coloque
em risco os direitos assegurados nesta
Lei, será o fato comunicado ao Ministério
Público, para as providências cabíveis,
inclusive para promover a suspensão das
atividades ou dissolução da entidade, com
a proibição de atendimento a idosos a
bem do interesse público, sem prejuízo
das providências a serem tomadas pela
Vigilância Sanitária.
§ 4º Na aplicação das penalidades,
serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que
dela provierem para o idoso, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes da entidade.
CAPÍTULO IV
Das Infrações Administrativas
Art. 56.
Deixar a entidade de atendimento de cumprir as determinações do art. 50 desta Lei:
Pena – multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais), se
Deixar o profissional de
saúde ou o responsável por
estabelecimento de saúde
ou instituição de longa
permanência de comunicar à
autoridade competente os casos
de crimes contra idoso de que
tiver conhecimento:
Pena – multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais), aplicada em dobro no caso de reincidência.
Art. 58.
Deixar
de
cumprir
as
determinações desta Lei sobre
a prioridade no atendimento ao
idoso:
Pena – multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 1.000,00 (um mil reais) e
multa civil a ser estipulada pelo juiz, conforme o dano sofrido pelo idoso.
CAPÍTULO V
Da Apuração Administrativa de
Infração às Normas de Proteção
ao Idoso
Art.59.
Os valores monetários expressos no Capítulo IV serão atualizados anualmente, na forma da
lei.
Art. 60.
O procedimento para a
imposição de penalidade
administrativa por infração às
normas de proteção ao idoso
199
IDÉIAS & LEIS
terá início com requisição do
Ministério Público ou auto de
infração elaborado por servidor
efetivo e assinado, se possível,
por duas testemunhas.
§ 1º No procedimento iniciado com
o auto de infração poderão ser usadas
fórmulas impressas, especificando-se a
natureza e as circunstâncias da infração.
§ 2º Sempre que possível, à verificação da infração seguir-se-á a lavratura do
auto, ou este será lavrado dentro de 24
(vinte e quatro) horas, por motivo justificado.
Art. 61.
O autuado terá prazo de 10
(dez) dias para a apresentação
da defesa, contado da data da
intimação, que será feita:
Público ou pelas demais
instituições legitimadas para a
fiscalização.
CAPÍTULO VI
Da Apuração Judicial de
Irregularidades em Entidade de
Atendimento
Art. 64.
Aplicam-se, subsidiariamente,
ao procedimento administrativo
de que trata este Capítulo, as
disposições das Leis nº 6.437,
de 20 de agosto de 1977, e
9.784, de 29 de janeiro de
1999.
Art. 65.
O procedimento de apuração
de irregularidade em entidade
governamental
e
nãogovernamental de atendimento
ao idoso terá início mediante
petição fundamentada de
pessoa interessada ou iniciativa
do Ministério Público.
I – pelo autuante, no instrumento de
autuação, quando for lavrado na presença
do infrator;
II – por via postal, com aviso de recebimento.
Art. 62.
Havendo risco para a vida ou
à saúde do idoso, a autoridade
competente aplicará à entidade
de atendimento as sanções
regulamentares, sem prejuízo
da iniciativa e das providências
que vierem a ser adotadas pelo
Ministério Público ou pelas
demais instituições legitimadas
para a fiscalização.
Art. 66.
Havendo motivo grave, poderá
a autoridade judiciária, ouvido
o Ministério Público, decretar
liminarmente o afastamento
provisório do dirigente da
entidade ou outras medidas
que julgar adequadas, para
evitar lesão aos direitos do
idoso, mediante decisão
fundamentada.
Art. 63.
Nos casos em que não houver
risco para a vida ou a saúde
da pessoa idosa abrigada, a
autoridade competente aplicará
à entidade de atendimento
as sanções regulamentares,
sem prejuízo da iniciativa e
das providências que vierem
a ser adotadas pelo Ministério
Art. 67.
O dirigente da entidade será
citado para, no prazo de 10 (dez)
dias, oferecer resposta escrita,
podendo juntar documentos e
indicar as provas a produzir.
Art. 68.
Apresentada a defesa, o juiz
procederá na conformidade do
art. 69 ou, se necessário, desig-
200
ESTATUTO DO IDOSO
nará audiência de instrução e
julgamento, deliberando sobre
a necessidade de produção de
outras provas.
§ 1º Salvo manifestação em audiência, as partes e o Ministério Público terão 5
(cinco) dias para oferecer alegações finais,
decidindo a autoridade judiciária em igual
prazo.
§ 2º Em se tratando de afastamento provisório ou definitivo de dirigente
de entidade governamental, a autoridade
judiciária oficiará a autoridade administrativa imediatamente superior ao afastado,
fixando-lhe prazo de 24 (vinte e quatro)
horas para proceder à substituição.
§ 3º Antes de aplicar qualquer das
medidas, a autoridade judiciária poderá
fixar prazo para a remoção das irregularidades verificadas. Satisfeitas as exigências,
o processo será extinto, sem julgamento
do mérito.
§ 4º A multa e a advertência serão
impostas ao dirigente da entidade ou ao
responsável pelo programa de atendimento.
TÍTULO V
Do Acesso à Justiça
CAPÍTULO I
Disposições Gerais
Art. 69.
Art. 70.
Aplica-se, subsidiariamente, às
disposições deste Capítulo, o
procedimento sumário previsto
no Código de Processo Civil,
naquilo que não contrarie os
prazos previstos nesta Lei.
O Poder Público poderá
criar varas especializadas e
exclusivas do idoso.
Art. 71.
É assegurada prioridade na
tramitação dos processos e
procedimentos e na execução
dos atos e diligências judiciais
em que figure como parte ou
interveniente pessoa com idade
igual ou superior a 60 (sessenta)
anos, em qualquer instância.
§ 1º O interessado na obtenção da
prioridade a que alude este artigo, fazendo
prova de sua idade, requererá o benefício à autoridade judiciária competente
para decidir o feito, que determinará as
providências a serem cumpridas, anotando-se essa circunstância em local visível
nos autos do processo.
§ 2º A prioridade não cessará com a
morte do beneficiado, estendendo-se em
favor do cônjuge supérstite, companheiro
ou companheira, com união estável, maior
de 60 (sessenta) anos.
§ 3º A prioridade se estende aos processos e procedimentos na Administração
Pública, empresas prestadoras de serviços
públicos e instituições financeiras, ao atendimento preferencial junto à Defensoria
Publica da União, dos Estados e do
Distrito Federal em relação aos Serviços
de Assistência Judiciária.
§ 4º Para o atendimento prioritário será garantido ao idoso o fácil acesso
aos assentos e caixas, identificados com
a destinação a idosos em local visível e
caracteres legíveis.
CAPÍTULO II
Do Ministério Público
Art. 72.
(VETADO)
Art. 73.
As funções do Ministério
Público, previstas nesta Lei,
serão exercidas nos termos da
respectiva Lei Orgânica.
201
IDÉIAS & LEIS
Art. 74.
Compete ao Ministério Público:
I – instaurar o inquérito civil e a ação
civil pública para a proteção dos direitos e
interesses difusos ou coletivos, individuais
indisponíveis e individuais homogêneos do
idoso;
II – promover e acompanhar as ações
de alimentos, de interdição total ou parcial,
de designação de curador especial, em
circunstâncias que justifiquem a medida, e
oficiar em todos os feitos em que se discutam os direitos de idosos em condições de
risco;
III – atuar como substituto processual
do idoso em situação de risco, conforme o
disposto no art. 43 desta Lei;
IV – promover a revogação de instrumento procuratório do idoso, nas hipóteses previstas no art. 43 desta Lei, quando
necessário ou o interesse público justificar;
V – instaurar procedimento administrativo e, para instrui-lo:
a) expedir notificações, colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de
não comparecimento injustificado da pessoa notificada, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar;
b) requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração
direta e indireta, bem como promover
inspeções e diligências investigatórias;
c) requisitar informações e documentos particulares de instituições privadas;
VI – instaurar sindicâncias, requisitar
diligências investigatórias e a instauração
de inquérito policial, para a apuração de
ilícitos ou infrações às normas de proteção
ao idoso;
202
VII – zelar pelo efetivo respeito aos
direitos e garantias legais assegurados ao
idoso, promovendo as medidas judiciais e
extrajudiciais cabíveis;
VIII – inspecionar as entidades públicas e particulares de atendimento e os
programas de que trata esta Lei, adotando
de pronto as medidas administrativas ou
judiciais necessárias à remoção de irregularidades porventura verificadas;
IX – requisitar força policial, bem
como a colaboração dos serviços de saúde,
educacionais e de assistência social, públicos, para o desempenho de suas atribuições;
X – referendar transações envolvendo
interesses e direitos dos idosos previstos
nesta Lei.
§ 1º A legitimação do Ministério
Público para as ações cíveis previstas neste
artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo dispuser a lei.
§ 2º As atribuições constantes deste
artigo não excluem outras, desde que compatíveis com a finalidade e atribuições do
Ministério Público.
§ 3º O representante do Ministério
Público, no exercício de suas funções, terá
livre acesso a toda entidade de atendimento ao idoso.
Art. 75.
Nos processos e procedimentos
em que não for parte, atuará
obrigatoriamente o Ministério
Público na defesa dos direitos
e interesses de que cuida esta
Lei, hipóteses em que terá vista
dos autos depois das partes,
podendo juntar documentos,
requerer diligências e produção
de outras provas, usando os
recursos cabíveis.
ESTATUTO DO IDOSO
Art. 76.
A intimação do Ministério
Público, em qualquer caso,
será feita pessoalmente.
Art. 77.
A falta de intervenção do
Ministério Público acarreta
a nulidade do feito, que será
declarada de ofício pelo juiz
ou a requerimento de qualquer
interessado.
Art. 80.
As ações previstas neste
Capítulo serão propostas no
foro do domicílio do idoso, cujo
juízo terá competência absoluta
para processar a causa, ressalvadas as competências da Justiça
Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores.
Art. 81.
Para as ações cíveis fundadas
em interesses difusos, coletivos,
individuais indisponíveis ou
homogêneos, consideram-se
legitimados, concorrentemente:
CAPÍTULO III
Da Proteção Judicial dos
Interesses Difusos, Coletivos
e Individuais Indisponíveis ou
Homogêneos
Art. 78.
Art. 79.
As manifestações processuais
do
representante
do
Ministério Público deverão ser
fundamentadas.
Regem-se pelas disposições
desta Lei as ações de
responsabilidade por ofensa
aos direitos assegurados ao
idoso, referentes à omissão ou
ao oferecimento insatisfatório
de:
I – acesso às ações e serviços de
saúde;
II – atendimento especializado ao
idoso portador de deficiência ou com limitação incapacitante;
III – atendimento especializado ao
idoso portador de doença infecto-contagiosa;
IV – serviço de assistência social
visando ao amparo do idoso.
Parágrafo único. As hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção
judicial outros interesses difusos, coletivos,
individuais indisponíveis ou homogêneos,
próprios do idoso, protegidos em lei.
I – o Ministério Público;
II – a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios;
III – a Ordem dos Advogados do
Brasil;
IV – as associações legalmente
constituídas há pelo menos 1 (um)
ano e que incluam entre os fins institucionais a defesa dos interesses e direitos da
pessoa idosa, dispensada a autorização da
assembléia, se houver prévia autorização
estatutária.
§ 1º Admitir-se-á litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União
e dos Estados na defesa dos interesses e
direitos de que cuida esta Lei.
§ 2º Em caso de desistência ou abandono da ação por associação legitimada,
o Ministério Público ou outro legitimado
deverá assumir a titularidade ativa.
Art. 82.
Para defesa dos interesses e
direitos protegidos por esta Lei,
são admissíveis todas as espécies
de ação pertinentes.
Parágrafo único. Contra atos ilegais ou
abusivos de autoridade pública ou agente de
pessoa jurídica no exercício de atribuições
203
IDÉIAS & LEIS
de Poder Público, que lesem direito líquido
e certo previsto nesta Lei, caberá ação mandamental, que se regerá pelas normas da lei
do mandado de segurança.
Art. 83.
§ 2º O juiz poderá, na hipótese do
§ 1º ou na sentença, impor multa diária
ao réu, independentemente do pedido do
autor, se for suficiente ou compatível com
a obrigação, fixando prazo razoável para o
cumprimento do preceito.
§ 3º A multa só será exigível do réu
após o trânsito em julgado da sentença
favorável ao autor, mas será devida desde
o dia em que se houver configurado.
Os valores das multas previstas
nesta Lei reverterão ao Fundo
do Idoso, onde houver, ou na
falta deste, ao Fundo Municipal
de Assistência Social, ficando
vinculados ao atendimento ao
idoso.
Parágrafo único. As multas não
recolhidas até 30 (trinta) dias após o
trânsito em julgado da decisão serão exigidas por meio de execução promovida pelo
Ministério Público, nos mesmos autos,
facultada igual iniciativa aos demais legitimados em caso de inércia daquele.
204
O juiz poderá conferir efeito
suspensivo aos recursos, para
evitar dano irreparável à parte.
Art. 86.
Transitada
em
julgado
a sentença que impuser
condenação ao Poder Público,
o juiz determinará a remessa
de peças à autoridade
competente, para apuração
da responsabilidade civil e
administrativa do agente a que
se atribua a ação ou omissão.
Art. 87.
Decorridos 60 (sessenta) dias do
trânsito em julgado da sentença
condenatória favorável ao idoso
sem que o autor lhe promova
a execução, deverá fazê-lo o
Ministério Público, facultada,
igual iniciativa aos demais
legitimados, como assistentes
ou assumindo o pólo ativo, em
caso de inércia desse órgão.
Art. 88.
Nas ações de que trata
este Capítulo, não haverá
adiantamento
de
custas,
emolumentos,
honorários
periciais e quaisquer outras
despesas.
Na ação que tenha por objeto
o cumprimento de obrigação
de fazer ou não-fazer, o juiz
concederá a tutela específica
da obrigação ou determinará
providências que assegurem o
resultado prático equivalente
ao adimplemento.
§ 1º Sendo relevante o fundamento
da demanda e havendo justificado receio
de ineficácia do provimento final, é lícito
ao juiz conceder a tutela liminarmente ou
após justificação prévia, na forma do art.
273 do Código de Processo Civil.
Art. 84.
Art. 85.
Parágrafo único. Não se imporá
sucumbência ao Ministério Público.
Art. 89.
Qualquer pessoa poderá, e
o servidor deverá, provocar
a iniciativa do Ministério
Público,
prestando-lhe
informações sobre os fatos que
constituam objeto de ação civil
e indicando-lhe os elementos
de convicção.
Art. 90.
Os agentes públicos em
geral, os juízes e tribunais,
no exercício de suas funções,
quando tiverem conhecimento
ESTATUTO DO IDOSO
de fatos que possam configurar
crime de ação pública contra
idoso ou ensejar a propositura
de ação para sua defesa,
devem encaminhar as peças
pertinentes ao Ministério
Público, para as providências
cabíveis.
Art. 91.
Art. 92.
Para instruir a petição inicial,
o interessado poderá requerer
às autoridades competentes as
certidões e informações que
julgar necessárias, que serão
fornecidas no prazo de 10 (dez)
dias.
O Ministério Público poderá
instaurar, sob sua presidência,
inquérito civil, ou requisitar,
de qualquer pessoa, organismo
público ou particular, certidões,
informações, exames ou
perícias, no prazo que assinalar,
o qual não poderá ser inferior a
10 (dez) dias.
madas poderão apresentar razões escritas
ou documentos, que serão juntados ou
anexados às peças de informação.
§ 4º Deixando o Conselho Superior
ou a Câmara de Coordenação e Revisão
do Ministério Público de homologar a promoção de arquivamento, será designado
outro membro do Ministério Público para
o ajuizamento da ação.
TÍTULO VI
Dos Crimes
CAPÍTULO I
Disposições Gerais
Art. 93.
Aplicam-se subsidiariamente,
no que couber, as disposições
da Lei nº 7.347, de 24 de julho
de 1985.
Art. 94.
Aos crimes previstos nesta Lei,
cuja pena máxima privativa
de liberdade não ultrapasse
4 (quatro) anos, aplica-se o
procedimento previsto na Lei
nº 9.099, de 26 de setembro de
1995, e, subsidiariamente, no
que couber, as disposições do
Código Penal e do Código de
Processo Penal.
§ 1º Se o órgão do Ministério Público,
esgotadas todas as diligências, se convencer da inexistência de fundamento para
a propositura da ação civil ou de peças
informativas, determinará o seu arquivamento, fazendo-o fundamentadamente.
§ 2º Os autos do inquérito civil ou
as peças de informação arquivados serão
remetidos, sob pena de se incorrer em
falta grave, no prazo de 3 (três) dias, ao
Conselho Superior do Ministério Público
ou à Câmara de Coordenação e Revisão
do Ministério Público.
§ 3º Até que seja homologado ou
rejeitado o arquivamento, pelo Conselho
Superior do Ministério Público ou por
Câmara de Coordenação e Revisão do
Ministério Público, as associações legiti-
CAPÍTULO II
Dos Crimes em Espécie
Art. 95.
Os crimes definidos nesta Lei
são de ação penal pública
incondicionada, não se lhes
aplicando os arts. 181 e 182 do
Código Penal.
Art. 96.
Discriminar pessoa idosa,
impedindo ou dificultando seu
acesso a operações bancárias,
205
IDÉIAS & LEIS
aos meios de transporte, ao
direito de contratar ou por
qualquer outro meio ou
instrumento necessário ao
exercício da cidadania, por
motivo de idade:
Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1
(um) ano e multa.
§ 1º Na mesma pena incorre quem
desdenhar, humilhar, menosprezar ou discriminar pessoa idosa, por qualquer motivo.
§ 2º A pena será aumentada de 1/3
(um terço) se a vítima se encontrar sob os
cuidados ou responsabilidade do agente.
Art. 97.
condições desumanas ou
degradantes ou privandoo de alimentos e cuidados
indispensáveis,
quando
obrigado a fazê-lo, ou
sujeitando-o
a
trabalho
excessivo ou inadequado:
Pena – detenção de 2 (dois) meses a
1 (um) ano e multa.
§ 1º Se do fato resulta lesão corporal
de natureza grave:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro)
anos.
§ 2º Se resulta a morte:
Deixar de prestar assistência ao
idoso, quando possível fazê-lo
sem risco pessoal, em situação
de iminente perigo, ou recusar,
retardar ou dificultar sua
assistência à saúde, sem justa
causa, ou não pedir, nesses
casos, o socorro de autoridade
pública:
Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12
(doze) anos.
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1
(um) ano e multa.
II – negar a alguém, por motivo de
idade, emprego ou trabalho;
Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se
resulta a morte.
III – recusar, retardar ou dificultar
atendimento ou deixar de prestar assistência à saúde, sem justa causa, a pessoa
idosa;
Art. 98.
IV – deixar de cumprir, retardar ou
frustrar, sem justo motivo, a execução de
ordem judicial expedida na ação civil a
que alude esta Lei;
Abandonar o idoso em hospitais,
casas de saúde, entidades
de longa permanência, ou
congêneres, ou não prover suas
necessidades básicas, quando
obrigado por lei ou mandado:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 3
(três) anos e multa.
Art. 99.
206
Expor a perigo a integridade
e a saúde, física ou psíquica,
do idoso, submetendo-o a
Art. 100. Constitui crime punível com
reclusão de 6 (seis) meses a 1
(um) ano e multa:
I – obstar o acesso de alguém a
qualquer cargo público por motivo de
idade;
V – recusar, retardar ou omitir dados
técnicos indispensáveis à propositura da
ação civil objeto desta Lei, quando requisitados pelo Ministério Público.
Art. 101. Deixar de cumprir, retardar ou
frustrar, sem justo motivo, a
execução de ordem judicial
ESTATUTO DO IDOSO
expedida nas ações em que for
parte ou interveniente o idoso:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1
(um) ano e multa.
Art. 102. Apropriar-se de ou desviar bens,
proventos, pensão ou qualquer
outro rendimento do idoso,
dando-lhes aplicação diversa
da de sua finalidade:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro)
anos e multa.
Art. 103. Negar o acolhimento ou a
permanência do idoso, como
abrigado, por recusa deste em
outorgar procuração à entidade
de atendimento:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1
(um) ano e multa.
Art. 104. Reter o cartão magnético
de conta bancária relativa a benefícios,
proventos ou pensão do idoso, bem como
qualquer outro documento com objetivo
de assegurar recebimento ou ressarcimento de dívida:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2
(dois) anos e multa.
Art. 107. Coagir, de qualquer modo, o
idoso a doar, contratar, testar
ou outorgar procuração:
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5
(cinco) anos.
Art. 108. Lavrar ato notarial que envolva
pessoa idosa sem discernimento
de seus atos, sem a devida
representação legal:
Pena – reclusão de 2 (dois) a 4
(quatro) anos.
TÍTULO VII
Disposições Finais e Transitórias
Art. 109. Impedir ou embaraçar ato do
representante do Ministério
Público ou de qualquer outro
agente fiscalizador:
Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1
(um) ano e multa.
Art. 110. O Decreto-Lei nº 2.848, de 7
de dezembro de 1940, Código
Penal, passa a vigorar com as
seguintes alterações:
“Art. 61. ....................................................
II - .....................................................
Art. 105. Exibir ou veicular, por qualquer
meio
de
comunicação,
informações ou imagens
depreciativas ou injuriosas à
pessoa do idoso:
h) contra criança, maior de 60
(sessenta) anos, enfermo ou mulher
grávida;
Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três)
anos e multa.
“Art. 121. ..................................................
Art. 106. Induzir pessoa idosa sem
discernimento de seus atos a
outorgar procuração para fins
de administração de bens ou
deles dispor livremente:
Pena – reclusão de 2 (dois) a 4
(quatro) anos.
.................................................................”
§ 4º No homicídio culposo, a pena
é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime
resulta de inobservância de regra técnica
de profissão, arte ou ofício, ou se o agente
deixa de prestar imediato socorro à vítima,
não procura diminuir as conseqüências
do seu ato, ou foge para evitar prisão em
flagrante. Sendo doloso o homicídio, a
207
IDÉIAS & LEIS
pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o
crime é praticado contra pessoa menor de
14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta)
anos.
...................................................................
“Art. 133. ..................................................
§ 3º ...................................................
III – se a vítima é maior de 60
(sessenta) anos.”
“Art. 140. .........................................
§ 3º Se a injúria consiste na utilização
de elementos referentes a raça, cor, etnia,
religião, origem ou a condição de pessoa
idosa ou portadora de deficiência:
“Art. 244. Deixar, sem justa causa,
de prover a subsistência do
cônjuge, ou de filho menor
de 18 (dezoito) anos ou
inapto para o trabalho, ou de
ascendente inválido ou maior
de 60 (sessenta) anos, não lhes
proporcionando os recursos
necessários
ou
faltando
ao pagamento de pensão
alimentícia
judicialmente
acordada, fixada ou majorada;
deixar, sem justa causa, de
socorrer descendente ou
ascendente,
gravemente
enfermo:
..................................................................
......................................................” ;
“Art. 141. .........................................
IV – contra pessoa maior de 60
(sessenta) anos ou portadora de deficiência,
exceto no caso de injúria.
Art. 111. O art. 21 do Decreto-Lei nº
3.688, de 3 de outubro de 1941,
Lei das Contravenções Penais,
passa a vigorar acrescido do
seguinte parágrafo único:
..........................................................
“Art. 21.............................................
“Art. 148. .........................................
§ 1º...................................................
I – se a vítima é ascendente,
descendente, cônjuge do agente ou maior
de 60 (sessenta) anos.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena
de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima
é maior de 60 (sessenta) anos.” (NR)
..................................................................
Art. 112. O inciso II do § 4º do art.
1º da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997,
passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 159...........................................
“Art. 1º .............................................
§ 1º Se o seqüestro dura mais de 24
(vinte e quatro) horas, se o seqüestrado
é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60
(sessenta) anos, ou se o crime é cometido
por bando ou quadrilha.
§ 4º ..................................................
II – se o crime é cometido contra
criança, gestante, portador de deficiência,
adolescente ou maior de 60 (sessenta)
anos;
..........................................................
......................................................” ;
“Art. 183...........................................
Art. 113. O inciso III do art. 18 da Lei
nº 6.368, de 21 de outubro de
1976, passa a vigorar com a
seguinte redação:
III – se o crime é praticado contra
pessoa com idade igual ou superior a 60
(sessenta) anos.” (NR)
208
ESTATUTO DO IDOSO
“Art. 18.............................................
III – se qualquer deles decorrer de
associação ou visar a menores de 21 (vinte
e um) anos ou a pessoa com idade igual
ou superior a 60 (sessenta) anos ou a quem
tenha, por qualquer causa, diminuída ou
suprimida a capacidade de discernimento
ou de autodeterminação:
......................................................” ;
Art. 114.
O art. 1º da Lei nº
10.048, de 8 de novembro de 2000, passa
a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 1º
As pessoas portadoras de
deficiência, os idosos com idade
igual ou superior a 60 (sessenta)
anos, as gestantes, as lactantes
e as pessoas acompanhadas
por crianças de colo terão
atendimento prioritário, nos
termos desta Lei”.(NR)
Art. 115. O Orçamento da Seguridade
Social destinará ao Fundo
Nacional de Assistência Social,
até que o Fundo Nacional do
Idoso seja criado, os recursos
necessários, em cada exercício
financeiro, para aplicação em
programas e ações relativos ao
idoso.
de desenvolvimento sócioeconômico alcançado pelo
País.
Art. 118. Esta Lei entra em vigor
decorridos 90 (noventa) dias
da sua publicação, ressalvado
o disposto no caput do art. 36,
que vigorará a partir de 1º de
janeiro de 2004.
Brasília, 1º de outubro de 2003; 182º
da Independência e 115º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Márcio Thomaz Bastos
Antonio Palocci Filho
Rubem Fonseca Filho
Humberto Sérgio Costa Lima
Guido Mantega
Ricardo José Ribeiro Berzoini
Benedita Souza da Silva Sampaio
Álvaro Augusto Ribeiro Costa
Art. 116. Serão incluídos nos censos
demográficos dados relativos à
população idosa do País.
Art. 117. O Poder Executivo encaminhará
ao Congresso Nacional projeto
de lei revendo os critérios de
concessão do Benefício de
Prestação Continuada previsto
na Lei Orgânica da Assistência
Social, de forma a garantir
que o acesso ao direito seja
condizente com o estágio
209
IDÉIAS E LEIS
* PAULO PAIM
Jó e suas filhas - William Blake
Vida Nova para os Idosos
A mudança do perfil demográfico
atualmente observado na população brasileira, que aos poucos vai fazendo o Brasil
perder aquela marca que o caracterizava
como um “país de jovens” e nos inserindo entre aquelas nações desenvolvidas,
que já a partir do século 19 começaram
a aumentar a expectativa de vida de suas
populações – pelo desenvolvimento tecnológico, pela melhoria da qualidade de
vida, das condições sanitárias, de trabalho,
de moradia, pelo avanço da medicina, uso
de vacinas e medicamentos e uma nutrição mais adequada – de certa forma nos
motiva como povo, mas seguramente não
chega a nos orgulhar como cidadãos.
Durante todo o século passado, a
expectativa de vida da população brasileira saltou de pouco mais de 33 anos para
até 70 anos de idade para as mulheres e
próximo de 65 anos para os homens. Esse
rápido envelhecimento da nossa população, além de ser uma novidade, pegou a
sociedade como um todo de surpresa, e o
mais grave, completamente despreparada
para se relacionar com as pessoas mais
idosas. O resultado desse despreparo vem
sendo estampado quase diariamente em
nossos meios de comunicação, ao registrar
a crescente violência a que vêm sendo
submetidos nossos idosos.
(*) O Senador Paulo Paim é o autor do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003).
210
O Brasil é um país onde a marginalização dos idosos tem raízes antigas e estão se
aprofundado com o passar do tempo. No
mercado de trabalho, eles são prematuramente excluídos, estão abalados em sua
auto-imagem e sobrevivência pelo descaso do governo e muitas vezes carecem
do amparo da família. Lamentavelmente,
é preciso reconhecer que em nosso país
o idoso está sendo marginalizado. Ele é
despedido, abandonado, excluído, rejeitado, roubado, violentado e morto. Pobre
ou rico, dotado de cultura ou ignorante,
o idoso é vítima e pouco reclama da violência que sofre. Não denuncia os maustratos porque, na maioria dos casos, divide
com seus algozes o mesmo teto. Não raro
sua própria renda lhe é subtraída pelos
próprios filhos, netos ou sobrinhos, que
estabelecem uma verdadeira rotina de
violência sob a proteção dos laços familiares.
Isso torna “invisível” a agressão contra o idoso, que tem medo de denunciar e
ser mandado para um asilo, ou procura a
todo custo evitar que o assunto ultrapasse
os limites do lar. Por medo ou até mesmo
por amor aos seus descendentes, os idosos
guardam em segredo a violência de que
são vítimas.
As estatísticas das entidades que
atendem pessoas da terceira idade indicam
que, no ano passado, cerca de 15 mil brasileiros e brasileiras com mais de 60 anos
foram vítimas de espancamentos, torturas,
abusos sexuais e, em muitos casos, induzidos ao suicídio. Nos hospitais públicos,
32% dos idosos atendidos foram vítimas
de algum tipo de agressão, praticada, em
90% dos casos, dentro de casa, pelos seus
próprios parentes.
A busca de solução para esses
problemas nos inspirou a propor ao
Congresso Nacional o Estatuto do Idoso,
projeto de nossa iniciativa apresentado em
1997, quando do exercício do mandato
de deputado federal, e transformado pelo
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lei
nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, em
vigor desde 1º de janeiro de 2004.
De uma proposta original de cerca
de 40 artigos, o projeto mereceu a criação
de uma Comissão Especial do Estatuto
do Idoso, onde recebeu e teve aprovado
o brilhante substitutivo do relator Silas
Brasileiro, de 123 artigos.
A Comissão Especial do Idoso viajou
muito por este País para ouvir a sociedade
e também os idosos, de forma individual.
Seu trabalho nos proporcionou momentos
de tristeza e alegria.
De tristeza, ao perceber que o abandono, as agressões, as apropriações dos
bens dos idosos são alarmantes. Um dado
que nos deixou ainda mais perplexos é
que a agressão, em 90% dos casos, vem da
própria família.
Mas tivemos também momentos de
alegria, ao ver o brilho no olhar, nos cabelos prateados de homens e mulheres, o
brilho da esperança, do otimismo, não
se deixando derrotar pelos pessimistas ou
pelo medo da realidade em que vivem.
O texto final do Estatuto é fruto dos
trabalhos dessa Comissão, de seminários e
de um trabalho conjunto de parlamentares, especialistas, profissionais das áreas
de saúde, do direito e da assistência social,
e de entidades e organizações não-governamentais voltadas para a defesa dos direitos e da proteção aos idosos. Ele se propõe
a alterar esse quadro atual da situação do
idoso, em que se destacam a negligência,
o descaso e a violência a que são submetidos.
211
IDÉIAS E LEIS
Sua elaboração foi imaginada como
um recurso pleno para os idosos, aposentados ou não. O Estatuto define o idoso
brasileiro como aquele que alcançou os
60 anos de idade. Estabelece como dever
da família, da comunidade, da sociedade
em geral, e do Poder Público assegurar ao
idoso, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à alimentação, à cultura, ao esporte, ao
lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Considera a velhice um direito personalíssimo e a sua proteção, uma obrigação
social. Garante ao idoso a proteção à vida
e à saúde, mediante efetivação de políticas
sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de
dignidade.
O Estatuto assegura ao idoso a liberdade, o respeito e a dignidade como pessoa humana. A obrigação de alimentar
o idoso deve ser solidária e as transações
relativas a alimentos poderão ser celebradas
perante o Promotor de Justiça e passarão a
ter efeito de título executivo extrajudicial
nos termos da Lei de Processo Civil.
O documento prevê o respeito à
inserção do idoso no mercado de trabalho
e à profissionalização, tendo em vista suas
condições físicas, intelectuais e psíquicas,
pois eles podem e devem contribuir com
a sua experiência para o crescimento do
País. O acesso à cultura, ao esporte e ao
lazer está presente com propostas e programas voltados para esta fase da vida.
Estão também asseguradas políticas de
prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde do idoso.
O Estatuto estabelece o direito à
saúde integral do idoso, que prevê: programas de assistência médica e odontológica;
212
atenção às doenças específicas dos idosos;
vacinas para prevenção; cadastramento
da população idosa; atendimento domiciliar, quando necessário; fornecimento
gratuito de medicamentos (inclusive próteses, habilitação ou reabilitação); vedação
da cobrança diferenciada nos planos de
saúde, em razão da idade; assistência imediata e prioritária onde está assegurada a
atenção integral, bem como políticas de
prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde do idoso.
No capítulo reservado à Previdência
Social, prevê-se a vinculação das aposentadorias e pensões ao salário-mínimo; a
garantia de um salário-mínimo para todo
o idoso que a renda mensal per capita da
família não ultrapasse o piso salarial (hoje
é 1/4 do salário-mínimo); a garantia de
que o aposentado receba sempre o mesmo
número de salários-mínimos que recebia
na época em que se aposentou. Estabelece
o Dia Internacional do Trabalho – 1º de
maio – como data-base dos aposentados e
pensionistas.
O Estatuto garante ao idoso, a partir
dos 65 anos de idade, que não possua
meios para prover sua subsistência, nem
de tê-la provida por sua família, o benefício
mensal de um salário-mínimo. Assegura o
direito à moradia digna, no seio da família
natural ou substituta, ou desacompanhado
de seus familiares, quando assim o desejar, ou, ainda, em instituição pública ou
privada.
O Estatuto do Idoso também garante
aos maiores de 65 anos de idade a gratuidade nos transportes coletivos públicos,
urbanos e semi-urbanos. Para acesso a essa
gratuidade, é suficiente a apresentação de
documento de prova de identidade.
O Estatuto do Idoso amplia os direitos presentes na Lei nº 8.842/94 - Política
PAULO PAIM
Nacional do Idoso. Esta Lei é fundamental,
mas o novo diploma a amplia, quando
tipifica os crimes e define as penas para
todos os que desrespeitarem o idoso. No
novo diploma, a política de atendimento
ao idoso será feita por meio do conjunto
articulado de ações governamentais e nãogovernamentais, da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios.
Poderíamos destacar todos os artigos
desse Estatuto como sendo fundamentais,
pois cada um é o resultado de uma grande reflexão e observação da realidade em
que vive o idoso brasileiro. É também uma
proposta ousada que amplia direitos e leva
para o futuro melhores condições de vida
à terceira idade.
Segundo o IBGE, entre 1991 e 2000,
o contingente de pessoas com 60 anos
ou mais subiu de 10,7 milhões para 14,5
milhões,um aumento de 35,5% em uma
década. Nos próximos 20 anos, os idosos brasileiros poderão ultrapassar os 30
milhões de pessoas e deverão representar
quase 13% da população. Trata-se da
maior massa de idosos de uma geração
de brasileiros. A proporção de idosos está
crescendo mais rapidamente que a de
crianças. Em 1980, existiam cerca de
16 idosos para cada 100 crianças. Em
2000, essa relação praticamente dobrou,
passando para quase 30 idosos por 100
crianças. O quadro é similar para toda a
América Latina. Hoje, aproximadamente
41 milhões de pessoas têm mais de 60
anos no continente. Elas serão 98 milhões,
em 2025, e 184 milhões, em 2050.
Pesquisa recente do Ipea aponta a
crescente importância dos idosos brasileiros no sustento de suas famílias. Resultado
do progressivo desemprego de filhos e
netos, são os avós que cada vez mais, com
suas pensões, mantêm o resto da família.
Há menos idosos abaixo da linha de pobreza do que em qualquer outra faixa etária.
Em apenas 4% dos domicílios do país,
eles vivem como dependentes. Em 22%,
chefiam a casa, muitas vezes, repleta de
descendentes. Em 70% dos domicílios de
idosos foi verificada a presença de filhos.
Pesquisa conduzida por Paulo Saad, do
Programa de Envelhecimento da Divisão
de População das Nações Unidas, mostrou
que, em Fortaleza, 52% dos idosos entrevistados ajudavam os filhos financeiramente.
Esses números ratificam o levantamento Perfil dos Idosos Responsáveis pelos
Domicílios no Brasil - elaborado pelo IBGE
a partir dos dados do Censo de 2000. O
levantamento conclui que a população
com mais de 60 anos conquistou, na
última década, uma maior importância
econômica. Em 2000, 62,4% desse contingente mantinha a condição de chefe de
família, no Brasil. Em 1991, esse percentual se limitava a 60,4%.
Um estudo de Vânia Cristina Liberato,
da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), mostra que, em 1978, 26% dos
aposentados e 13% das aposentadas moradores de regiões urbanas continuavam
com algum tipo de ocupação. Em 1999,
essas taxas subiram para 33% e 21%,
respectivamente. O trabalho mostra que a
atividade do aposentado aumenta com seu
grau de escolaridade.
O Brasil é um país que envelhece a
passos largos. Entretanto, a infra-estrutura
para responder às demandas da população
de idosos em termos de instalações, programas e mesmo adequação urbana das
cidades, está muito aquém do desejável.
A região Sudeste concentra a maior
parte da população de idosos. Segundo o
mapa elaborado pelo censo 2000, 6,37%
da população residente no Sudeste é com213
IDÉIAS E LEIS
posta por pessoas com 65 anos ou mais.
Seguido pela região Sul (6,22%), Nordeste
(5,85%), Centro-Oeste (4,27%) e Norte
(3,64%). No entanto, a região CentroOeste se destaca pelo maior crescimento
relativo (30,58%) na proporção, nessa
faixa etária.
da população, deve baixar para 24,3%. A
taxa de fertilidade feminina também deve
acompanhar a queda, declinando de 4,7%
para 2,3%. Em contrapartida, a expectativa
é de que a população de idosos aumente.
Hoje, os idosos correspondem a 5% dos
habitantes. Em 2015, deverão ser 7,3%.
Mas o Sul tem a maior proporção de
idosos. As cidades campeãs são Colinas
e Santa Tereza, ambas no Rio Grande do
Sul. A primeira tem 15,60% da população
com idade igual ou superior a 65 anos.
Na segunda, o percentual é de 15,21%.
No pólo extremo estão dois municípios
do Mato Grosso. União do Sul e Sapezal
têm a menor proporção de pessoas
com idade avançada: 0,64% e 0,98%,
respectivamente.
Esses números falam por si e nos
apresentam o grande desafio que é a
questão do idoso. Será que os jovens têm
plena consciência de que serão os idosos
de amanhã? Será que entendem que a
forma de tratamento que dispensam hoje
aos mais velhos é a mesma que lhes está
reservada no futuro? Tenho dito que se
não aprendermos a respeitar nosso pai,
nosso avô, nosso bisavô, não mereceremos
respeito no futuro.
Um país com população concentrada
nas cidades e número cada vez maior
de idosos. Esse será o retrato do Brasil,
em 2015, traçado a partir do Relatório
do Desenvolvimento Humano 2001, que
projetou as tendências do crescimento
demográfico do país.
A vida, na sua sabedoria, nos ensina
que os mais velhos são os mais sábios. A
sabedoria milenar diz que “a vida é fruto
da energia do Universo”.
A taxa de crescimento anual
da população brasileira (1,1%) deverá
acompanhar a média mundial, estimada
em 1,2% para o período de 1999 a 2015.
É um percentual três vezes maior que o
dos países com elevado percentual de
desenvolvimento humano, que se situa
em 0,4%. A população do Brasil, que tem
170 milhões de habitantes, deve alcançar
os 201,4 milhões em 2015.
O crescimento da população
urbana, tendência mundial, também
se acentuará no Brasil. O percentual de
80,7% da população que hoje vive em
centros urbanos brasileiros deve subir para
86,5%. No mundo, a estimativa é mais
modesta: de 46,5% para 53,2%.
O número de brasileiros de até 15
anos, que em 1999 correspondiam a 29,3%
214
Essa energia acompanha a Lei de
Causa e Efeito. O caminho que precisamos
construir é o da generosidade. É o da
solidariedade entre as gerações. Até
porque, o jovem de hoje será o idoso de
amanhã.O Estatuto do Idoso tem o sentido
de dar cidadania plena à nossa velhice.
É esta população que passa a ser
assistida com a transformação em lei do
Estatuto do Idoso. Uma população que
muitas vezes deveria já estar descansando,
mas que ainda participa da promoção do
nosso desenvolvimento.
E que nem por isso é compreendida.
Na verdade, é agredida nos seus direitos
mais básicos. Até pelo despreparo de uma
sociedade que não soube conviver com o
rápido envelhecimento de sua população,
mas que agora, com o Estatuto do Idoso,
terá de rever atos, comportamentos, e
mudar o seu trato com os mais velhos.
* FÁTIMA NANCY ANDRIGHI
DAVID FLEISCHER*
IDÉIAS E LEIS
A Morte de Fogo - Paul Klee
O Acesso do Idoso ao
Judiciário
Somente após o país completar quinhentos anos, vem a lume uma Lei que
ampara os idosos brasileiros, denominada
Estatuto do Idoso, materializado pela Lei
nº 10.741/03, a qual possui uma similitude com aquela que instituiu os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais, qual seja,
tramitou por mais de sete anos na Casa
Legislativa.
O Estatuto do Idoso ingressa no ordenamento jurídico nacional com o compromisso de traçar uma linha divisória
no comportamento de todos os cidadãos,
agentes públicos e privados em face aos
idosos. A nova Lei explicita as regras
programáticas constantes no art. 230 da
Constituição, dispondo, nos termos do art.
2º, que devem ser assegurados aos idosos
*Ministra do Superior Tribunal de justiça.
215
IDÉIAS E LEIS
“todas as oportunidades e facilidades, para
preservação de sua saúde física e mental
e seu aperfeiçoamento moral, intelectual,
espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”; o art. 3º explicita a quem
incumbe garantir com absoluta prioridade,
referidos deveres: à família, à comunidade,
à sociedade e ao Poder Público.
A Lei que dispõe sobre o Estatuto
do Idoso está estruturada em sete Títulos
a saber: Título I – Das Disposições
Preliminares; Título II – Dos Direitos
Fundamentais, este composto de dez
Capítulos; Título III – Das Medidas de
Proteção, subdividido em dois Capítulos;
Título IV – Da Política de Atendimento
ao Idoso, com seis Capítulos; Título V
– Do Acesso à Justiça, disciplinado em três
Capítulos; Título VI – Dos Crimes, com dois
Capítulos; e Título VII – Das Disposições
Finais e Transitórias, enfeixando 118
artigos.
cientificamente, decorrentes da aflição e
da angústia geradas durante a infindável
espera na definição da pendenga judicial.
Urge reconhecer que o idoso
brasileiro passa por inumeráveis
dificuldades e impedimentos quando busca
exercer seus direitos por meio do processo
judicial. O tormento principia pelas
dificuldades mais elementares que são a
busca e a obtenção de orientação jurídica
segura e adequada. O ajuizamento de
um processo exige condições econômicas
para custeá-lo, caso contrário dependerá
da assistência judiciária gratuita, cujo
trabalho será feito pelas Defensorias
Públicas estaduais.
O dever de facilitar ao idoso o acesso
ao Poder Judiciário mereceu destaque em
Título específico, “Do acesso à Justiça”,
porque, sem dúvida, é uma das questões
relevantes na vida de todos os cidadãos
e, com muito mais ênfase, na de nossos
idosos.
Não se pode ignorar a insegurança
e também o sentimento de inferioridade
que transpassam o coração de um idoso
quando depende da assistência judiciária
gratuita para ajuizar ação ou se defender
em juízo. Muito embora se reconheça
o esforço hercúleo despendido pelos
Defensores Públicos no exercício da suas
funções, é sabido que não conseguem
atender satisfatoriamente a avalanche de
demandas a que são submetidos. Essa
ineficiência se deve à precariedade das
instalações, à falta de instrumentos de
trabalho e, principalmente, ao insuficiente
número de defensores. Sobre esse órgão,
tão importante para a concretização do
direito de acesso à Justiça, é importante
frisar que a instalação e a manutenção
são incumbências exclusivas do Poder
Público, deveres até agora não cumpridos
satisfatoriamente.
Os obstáculos enfrentados para
solucionar problemas de natureza jurídica,
bem como a demora na tramitação e
julgamento dos processos, podem causar
males psicossomáticos à saúde dos
litigantes, conseqüência comprovada
Ainda a propósito do papel das
Defensorias Públicas, é preciso fazer
um intenso e eficiente trabalho de
esclarecimento à população em geral e,
no caso, especialmente aos idosos que
não puderem custear um processo, de que
Este singelo ensaio tem a finalidade
de planear, sem pretensão de oferecer
soluções, e, apenas a título de sugestão,
apontar as imprescindíveis providências
a serem tomadas pelas administrações
de todos os tribunais com o objetivo de
cumprir a contento o Título V do Estatuto
do Idoso, que garante o acesso à Justiça.
216
FÁTIMA NANCY ANDRIGHI
sempre dependerão das providências, do
trabalho prévio dos Defensores Públicos.
É preciso continuamente avisar todo idoso
que os juízes só podem agir no sentido
de dar-lhe proteção e tomar providências
em defesa dos seus direitos, a partir do
momento em que forem provocados por
meio de requerimentos dos Defensores
Públicos ou Advogados.
pensamos que a aplicação na forma subsidiária subtrairá inúmeros benefícios à celeridade. Carreando apenas um exemplo,
indicamos o proveito do pedido contraposto a ser formulado na contestação, evitando um segundo processo para alcançar
eventual direito do réu em face do autor.
Na verdade, o Estatuto do Idoso, em
matéria processual, não instituiu nenhuma
norma singular que agilize o processo
De todo o exposto, ficam para
e o procedimento, apenas repetinnós a reflexão e o questionamendo, no art. 71, a prioridade na
to acerca da possibilidade de
“Não se
tramitação e cumprimento de
ser cumprido satisfatoriamente
pode ignorar
diligências judiciais em que
o Título V do Estatuto, porfigure como parte ou interquanto os idosos dependerão
a insegurança e
veniente pessoa com idade
do indispensável trabalho
também
o
sentimenigual ou superior a sessenta
prévio de outros segmentos
jurídicos para fazer chegar
to de inferioridade que anos, em qualquer instânDesse benefício, ressalàs mãos do juiz uma petitranspassam o coração cia.
te-se, os idosos já desfrutam
ção inicial, uma resposta
de um idoso quando há algum tempo, mas, recoou um pedido de providência acautelatória.
depende da assistên- nhecidamente, ele se mostra insuficiente para alcanRestrito o nosso exame
cia judiciária gratuita çar o objetivo da aceleração
apenas às questões jurídicas
necessária à marcha propara ajuizar ação
no campo cível, observa-se,
cessual.
no art. 69 do Estatuto do Idoso,
ou se defender
É justificado o receio
a opção do legislador em não
em juízo”.
porque sequer se garantiu, por
adotar o procedimento sumário
exemplo, o cumprimento de uma
como rito obrigatório para todos os
sentença condenatória com a exigênlitígios que envolverem partes ou tercia prévia de depósito do valor devido
ceiros idosos, indicando sua aplicação em
ou com a antecedente entrega da coisa
caráter subsidiário, de forma meramente
como condição “sine qua non” para que
residual, ou no vácuo de norma específica,
a parte vencida possa interpor recurso,
acrescida a ressalva de inaplicabilidade
tampouco se eliminou o efeito suspensivo
quando contrariar os prazos previstos na
dos mesmos. Essas são apenas duas regras
referida Lei.
processuais que, se adotadas, provocariam
Considerando que o procedimento
uma verdadeira revolução na proteção dos
sumário se caracteriza pela concentradireitos dos idosos litigantes, sem esquecer
ção de atos processuais embutidos numa
o caráter didático que produziria na intermesma fase do processo, visando asseguposição de recursos.
rar-lhe celeridade sem omitir nenhum ato
processual, o que viria a ferir o princípio
constitucional do devido processo legal,
Impõe-se, porém, louvar a proficiente disciplina direcionada às ações referen217
IDÉIAS E LEIS
tes aos interesses difusos, coletivos e individuais, indisponíveis ou homogêneos,
por ter ampliado sobremaneira a legitimidade para a propositura de tais ações,
providência que fortalecerá a defesa
do direito dos idosos, salientandose o expressivo aumento do alcance do
trabalho preventivo a ser implementado
pelos membros do Ministério Público.
O Estatuto do Idoso depositou nas mãos
do Ministério Público a esperança de
concretização da tutela de seus direitos,
valendo para os dignos integrantes dessa
instituição as mesmas considerações feitas
às iniciativas que deverão ser tomadas
pelos Defensores Públicos. Temos a certeza de que eventuais omissões advindas
das dificuldades de operacionalização das
Defensorias Públicas poderão, a contento,
ser supridas pelos ilustres membros do
Ministério Público.
Enriquece o Estatuto do Idoso a disposição contida no art. 70, que permite
ao Poder Público “criar varas especializadas e exclusivas do idoso”, porque essa
providência poderá atenuar os efeitos da
ausência de regras processuais adequadas
para a necessária agilização dos processos.
Todavia, verifica-se que a criação das varas
especializadas é, pela Lei, facultativa, o
que causa inevitável inquietação, porque
a decisão sempre dependerá da política de
administração de cada tribunal.
Como se vê, destas singelas observações, muitas dúvidas, carências, dificuldades e falhas tendem a minar o impostergável cumprimento do Estatuto do Idoso,
mas, humildemente, reconhecemos não
ter a resposta que produza o efeito desejado para tamanha esperança plantada no
coração dos nossos idosos. Vale ressaltar,
para nossa meditação, que muitas vezes
não é necessária uma nova Lei para que
os direitos sejam garantidos; é muito mais
218
eficiente uma união de esforços, nos planos espiritual e material, o que requer uma
mudança na mente e no coração.
Não queremos com esse atino, com
esse discernimento, até porque foram feitas apenas algumas observações na área
cível, produzir arrefecimento no ânimo
de trabalhar vigorosamente em comunhão
com todos os segmentos jurídicos exigidos
para a eficaz salvaguarda dos direitos dos
idosos. O que se pretende é a remoção de
eventuais obstáculos, a fim de distanciar
o Estatuto do Idoso da linha conceitual de
uma Lei programática para ser, efetivamente, uma Lei pragmática.
Para nós, juízes, fica, mais uma vez,
a crucial incumbência de, mesmo com instrumento processual obsoleto, não permitir
que a espera de obtenção do direito de
todos os idosos ultrapasse o plano da vida
terrena, rogando ao Alto que sempre nos
inspire para o despertar da parcela de justiça divina que, tenho certeza, está ínsita no
coração de cada juiz brasileiro.
Palavras
&
História
Acervo - Câmara dos Deputados
Discurso do Deputado Ulysses Guimarães na instalação da Assembléia Nacional
Constituinte, em 2 de fevereiro de 1987, e o comentário de Luiz Gutemberg
219
OS PROFETAS DO AMANHÃ
ULYSSES GUIMARÃES
Ulysses Guimarães, ao lado do Dep. Paes de Andrade, na tarde
da instalação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987.
(Acervo - Câmara dos Deputados)
Prudente de Morais, meu conterrâneo e convizinho, pois o meu Rio Claro
é coirmão de sua Piracicaba, assumia
a Presidência da Assembléia Nacional
Constituinte em 21 de novembro de 1890,
no Palácio de São Cristóvão, no Rio de
Janeiro.
A 2 de fevereiro eu a assumo, em
Brasília, como mandamento da Assembléia
Nacional Constituinte de 1987.
Rogo a Deus que meu ofício de coordenador isento da elaboração constituinte
seja modelado na austeridade e na competência do exemplar republicano.
220
Sou-lhes muito obrigado por me trazerem, do povo brasileiro, esta nova
tarefa. Irei cumpri-la, como tantas outras
com que fui encarregado, com os haveres
de minha experiência e o ânimo de todas
as horas.
O homem público é o cidadão de
tempo inteiro, de quem as circunstâncias
exigem o sacrifício da liberdade pessoal, mas a quem o destino oferece a mais
confortadora das recompensas: a de servir
à Nação em sua grandeza e projeção na
eternidade.
Srs. Constituintes, esta assembléia
reúne o melhor do povo brasileiro. Muitos
de nós voltamos a Brasília com o mandato parlamentar reafirmado; outros, em
número maior, chegam ao Congresso pela
primeira vez.
Aos velhos amigos, companheiros de
tantas jornadas de resistência democrática,
o meu abraço de reencontro. Aos que se
juntam a nós, trazendo o vigor da Nação
rejuvenescida pela esperança, quero saudar o grande futuro que o Brasil entremostra nesta soleira do século XXI.
É um parlamento de costas para o
passado, este que se inaugura hoje para
decidir o destino constitucional do País.
Temos nele uma vigorosa bancada
de grupos sociais emergentes, o que lhe
confere nova legitimidade na representação do povo brasileiro.
Quero manifestar minha particular
alegria de ver aqui tantas mulheres. Sua
participação na vida política dá à democracia a sua verdadeira dimensão. O
reconhecimento de igualdade de direitos
e de deveres entre homens e mulheres
constitui a grande revolução dos tempos
modernos. Iguais na inteligência e na
capacidade de fazer, as mulheres superam
muitas vezes os homens na sensibilidade
diante do sofrimento do povo e na dedicação aos marginalizados pela sociedade.
Esta bancada feminina é a maior
de nossa história parlamentar, mas muito
pequena ainda. Espero que as mulheres
assumam a sua responsabilidade política e
ocupem, cada vez mais, o espaço que é de
seu direito e dever ocupar.
Noto, também, e com a mesma
alegria, a presença de constituintes bem
jovens. Sou dos que confiam na inteligência e no trabalho dos moços. A história
parlamentar brasileira guarda a memória
de um jovem deputado que, na opinião
de muitos brasileiros, foi o maior pensador
político do Império: Aureliano Cândido
de Tavares Bastos, que chegou à Câmara
aos vinte e um anos e nos deixou estudos
econômicos e políticos de surpreendente
atualidade.
Srs. Constituintes, esta assembléia
reúne-se sob um mandato imperativo: o de
promover a grande mudança exigida pelo
nosso povo. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a
Nação deve mudar, a Nação vai mudar.
Estes meses vividos pelo povo brasileiro, desde que nos reunimos em Goiânia
e em Curitiba a fim de exigir eleições
diretas para a Presidência da República,
demonstraram que o Brasil não cabe mais
nos limites históricos que os exploradores
de sempre querem impor. Nosso povo
cresceu, assumiu o seu destino, juntouse em multidões, reclamou a restauração
democrática, a justiça social e a dignidade
do Estado.
Estamos aqui para dar a essa vontade indomável o sacramento da lei. A
Constituição deve ser - e será - o instrumento jurídico para o exercício da liberdade e da plena realização do homem
brasileiro.
Do homem brasileiro como ser concreto, e não do homem abstrato, ente
imaginário que habita as estatísticas e
os compêndios acadêmicos. Do homem
homem, acossado pela miséria, que cumpre extinguir, e com toda a sua potencialidade interior, que deve receber o estímulo
da sociedade, para realizar-se na alegria
do fazer e na recompensa do bem-estar.
O homem, qualquer homem, é portador do universo inteiro na irrepetível e
singular experiência da vida.
221
OS PROFETAS DO AMANHÃ
Por isso, de todos deviam ser os bens
da natureza e a oportunidade de deixar,
na memória do mundo, a marca de sua
passagem, com a obra das mãos e da inteligência.
Toda a história política tem sido a da
luta do homem para realizar, na Terra,
o grande ideal de igualdade e fraternidade.
na campanha das diretas. Ela resulta da
primeira manifestação eleitoral ampla do
nosso povo depois daquele movimento,
excetuando-se as eleições municipais, de
interesse localizado, que se deram em
1985.
A ampla maioria de que dispomos nesta Casa constitui garantia
bastante de que faremos uma
Constituição para a liberdahomem
de, para a justiça e para a
soberania nacional.
como ser
Vencer as injustiças
“Do
sem violar a liberdade
brasileiro
pode parecer programa
para as sociedades da
A liberdade não
concreto, e não do homem
utopia, como tantos
pode ser mero apelo
abstrato, ente imaginário que
sonhadores escreveda retórica política.
ram, antes e depois
Ela deve exercerhabita as estatísticas e os comde Morus, mas na
se dentro daqueles
pêndios acadêmicos. Do homem
realidade é um provelhos princípios
homem, acossado pela miséria, que impõem como
jeto inseparável da
existência humana
que cumpre extinguir, e com toda único limite à
e que se cumpre a
liberdade de cada
a sua potencialidade interior, que homem o mesmo
cada dia que passa.
Os momentos deve receber o estímulo da socie- direito à liberdade
dos outros homens.
de despotismo, com
dade, para realizar-se na alegria do Assim vemos a
todo o assanho dos
fazer e na recompensa do bem- ação reguladora do
tiranos, são eclípEstado na atividade
ticos. Prevalece a
estar.
econômica. A livre
incessante expedição
iniciativa,
necessária
O homem, qualquer
da humanidade para a
ao desenvolvimento
realização do reino de
homem, é portador do unido
País, deverá exerDeus entre os homens,
cer-se sem o sacrifício
verso inteiro na irrepetível
conforme a grande
dos
trabalhadores, e a
esperança cristã.
e singular experiência
riqueza não poderá acuConduzir essa camida vida”.
mular-se, ao mesmo tempo
nhada é tarefa da política. Sem
em que aumentam a miséria e
esse ideal maior, a política desce
a fome, em benefício dos privilede sua grandeza à superfície das disgiados.
putas menores, do jogo ridículo do poder
A liberdade é também uma questão
pessoal, da acanhada busca de glórias
de
justiça.
Ela não pode continuar sendo,
pálidas e efêmeras.
como as outras coisas, um bem de mercaSrs. Constituintes, a grande maioria
do. Em nossa sociedade injusta só pode ter
desta Casa representa a incontível reivinliberdade aquele que dispõe de dinheiro
dicação de coragem reformadora, exposta
para comprá-la.
222
ULYSSES GUIMARÃES
A justiça para os que trabalham deve
começar pelo salário. Não existe no mundo
de hoje, salvo em alguns países emergentes da África, sociedade que seja tão cruel
com os trabalhadores.
Salários justos exigem uma política
que combine o desenvolvimento econômico com a estabilidade monetária. A
inflação, sendo fonte de injustiça – uma
vez que os assalariados são os mais indefesos diante dos seus efeitos perversos – é
também dela conseqüência.
Todos os nossos problemas procedem
da injustiça. O privilégio foi o estigma deixado pelas circunstâncias do povoamento
e da colonização, e de sua perversidade
não nos livraremos sem a mobilização da
consciência nacional.
O privilégio começa na posse da
terra, no início repartida, pelos favores
reais, entre as oligarquias imigradas. Essas
mesmas oligarquias acostumaram-se ao
trabalho escravo e dele não querem abrir
mão. Como bem nos apontou mestre
Afonso Arinos de Melo Franco, as senzalas
do século passado estão hoje nas favelas.
Nas favelas e nos subúrbios que amontoam os trabalhadores modernos, brancos,
pretos, mestiços - mas todos legatários da
condenação de servir e sofrer.
Não é só a injustiça interna que dá
origem aos nossos dramáticos desafios. É
também a espoliação externa, com a insânia dos centros financeiros internacionais
e os impostos que devemos recolher ao
império, mediante a unilateral elevação
das taxas de juros e a remessa ininterrupta
de rendimentos. Trata-se da mais brutal
valia internacional que nos é expropriada
na transferência líquida de capitais.
Não entendem os insensatos que
somos, no Terceiro Mundo, também senzalas dos países mais poderosos, e que só
seremos realmente livres do saque quando
distribuirmos a renda pelo menos com
eqüidade e, desta forma, dermos dignidade ao convívio social interno.
A modernização autônoma da economia não pode continuar sendo impedida por uma estrutura social arcaica, que
se amarra praticamente nas Ordenações
Filipinas.
Modernizar a economia é torná-la
competitiva, com o emprego racional de
todos os recursos disponíveis, a começar
pelo solo. A terra não pode ser mera reserva de valor para os que especulam com
o seu preço, porque só nela os homens
encontram a vida. Não podemos pensar
em distribui-la apenas. É nossa obrigação
fazê-la produtiva. Sempre que o direito de
propriedade se opuser ao interesse nacional, que prevaleça o interesse da Nação.
A propriedade é um dos mais antigos
direitos do homem, e é em razão disso
mesmo que a ética religiosa recomenda
distribui-la.
Para sentir-se senhor de si mesmo,
cada homem necessita de chão e teto, e a
razão natural não admite que sobrem tetos
e glebas a uns, quando milhões e milhões
de outros nascem e morrem entre paredes
alheias ou ao relento. Não podemos pensar no liberalismo clássico, que deixa às
livres forças do mercado o papel regulador
de preços e salários, em uma época de
economia internacionalizada e de cartéis
poderosos.
Se o Governo deve intervir no processo econômico, que a sua ação busque
a paz social. Ali, de onde se ausenta a
consciência ética, deve impor-se o poder
arbitral do Estado.
Liberdade dos cidadãos e justiça
nas relações econômicas entre patrões e
empregados são condições indispensáveis
223
OS PROFETAS DO AMANHÃ
ao fortalecimento das nações em seu convívio no mundo. Enganam-se os governos
que aspiram ao respeito internacional, se
lhes falta o respeito de seu povo.
e da dissolução posterior da Assembléia
Constituinte, ela retornaria, com força,
nas vésperas do movimento de 7 de abril
que levou D. Pedro I à abdicação.
Quando as elites políticas pensam
apenas na sobrevivência de seu poder oligárquico, colocam em risco a soberania
nacional.
Pregou-se, naquela hora oportuna,
a descentralização do Governo, mediante
uma federação monárquica, conforme
expressão do seu maior defensor, o jornalista político Antônio da Fonseca.
A segurança será sempre precária
onde houver o clamor dos oprimidos.
Nenhum país será suficientemente poderoso, se poderosa não for a coesão entre
os seus habitantes. Uma casa dividida não
saberá opor-se com êxito ao assalto dos
inimigos.
Liberdade, soberania, justiça. Sobre
estas idéias simples construíram-se as
maiores nações da História. Elas serão
o âmago da nossa razão comum no trabalho de dotar a Nação de uma legítima
Carta Política.
Srs. Constituintes, dois foram e continuam sendo os destinos que grandes
pensadores políticos do passado escolheram para o Brasil: o da liberdade política
e o da Federação. Os primeiros homens
públicos brasileiros já entendiam ser o
sistema federal o exigido para a administração do País.
Pensavam em Federação os membros da comissão encarregada de redigir a
proposta do texto de nossa primeira Carta
Política, em 1823. Nas discussões do art.
2º do texto, Ferreira França propôs que o
Império do Brasil compreendesse confederalmente as províncias. Respondendo
a quem considerava perigosa a menção,
Carneiro da Cunha argumentava que o
sistema poderia vir a ser “o vínculo mais
forte da união eterna das províncias”.
Malograda a idéia diante das
razões expostas por Nicolau Vergueiro
224
A mesma idéia que esteve na raiz
do Ato Adicional de 1834 quase levara a
uma Constituição republicana, em julho
de 1832, na antecipação de um movimento que só teria logro 57 anos mais
tarde.
Federação e democracia continuam
sendo as reivindicações nacionais maiores e nossa assembléia não poderá deixar
estas questões ao relento. Elas devem ser
enfrentadas com a coragem necessária.
Incluo-me entre os que, como Carneiro
da Cunha, consideram a autonomia federativa a base da unidade nacional. Esta
autonomia reclama, em primeiro lugar,
uma justa apropriação tributária. Só há
unidade entre entidades de igual direito
e não pode a União transformar-se, como
se transformou, em poder isolado das realidades estaduais.
A Federação, golpeada pelo Estado
Novo, foi praticamente destruída nos
recentes anos de arbítrio. Cumpre-nos
restaurá-la em toda a sua plenitude, tornando realidade um ideal que nasceu
com a própria independência.
A razão da liberdade esteve sempre
presente, como o ânimo maior de nossa
formação histórica. Sempre associamos
a liberdade do País à liberdade de seus
cidadãos. Mas a liberdade não é um valor
absoluto, que se conquista com o mero
gesto da vontade. Ela se constrói a cada
dia, na medida em que se constroem as
OS PROFETAS DO AMANHÃ
ULYSSES GUIMARÃES
nações. Para que se goze de liberdade, é
preciso, antes de mais nada, que se tenha
a consciência de sua necessidade e o sentimento moral de sua importância.
as nossas Cartas anteriores foram redigidas na adolescência da Pátria, quando
buscávamos nos Estados estrangeiros o
modelo para as instituições do País.
No versículo da Bíblia está decretado que Deus criou a terra para que nela
o homem trabalhasse, e não a saqueasse
e violentasse, ameaçando a qualidade
da vida, que deve ter no estatuto cívico
supremo seu guardião.
Não podemos negar a experiência
dos outros povos quanto aos mecanismos
da administração política, mas é conveniente encontrar, em nossa própria inteligência e vivência, processos novos de
desenvolvimento jurídico e social.
Esses valores do espírito se fazem
Uma Constituição é tanto mais
com a educação. “Conhecer é
legítima quanto mais ampla
ser livre”, dizia um dos granfor a discussão de seus ter“A segudes apóstolos da América,
mos. Peço-lhes permissão
rança
será
sempre
José Martí. Isso coloca
para citar um trecho do
precária onde houver
as tarefas da educação
discurso que o saudopública na urgência de
so estadista Tancredo
o clamor dos oprimidos.
nossas preocupações.
Neves pronunciou,
Nenhum país será suficiente- neste mesmo recinto,
A cidadania começa
no alfabeto.
mente poderoso, se poderosa quando o convocamos para ser o candiNão há um só
não for a coesão entre os seus dato à Presidência da
exemplo de nação
habitantes. Uma casa dividi- República.
forte sem bom sistema
de educação.
da não saberá opor-se com
êxito ao assalto dos
inimigos“.
-
O poderio dos
Estados Unidos e o apego
de seus cidadãos à Lei
Constitucional têm origem no
zelo com que os primeiros colonos
cuidaram da educação.
Dezesseis anos depois do desembarque, era criado o Colégio de Harvard e,
em 1647, todas as povoações com mais
de cinqüenta casas eram obrigadas a ter
uma escola básica, e as com mais de cem
moradias, uma escola secundária.
E qual é a nossa realidade?
Srs. Constituintes, estou convencido
de que esta é uma excepcional oportunidade histórica de dar ao País a mais
nacional de suas Constituições. Quando
uso o termo, uso-o na convicção de que
“As Constituições”
- dizia o meu companheiro e grande amigo
“não são obras literárias,
nem documentos filosóficos.
Elas não surgem do espírito criador de um homem só, por mais privilegiado em sabedoria seja esse homem.
Tampouco podem ser a codificação
de propósitos de um ou outro grupo que
exerça influência, legítima ou ilegítima,
sobre a Nação.
A Constituição é uma Carta de compromissos assumidos livremente pelos
cidadãos, em determinado tempo e sociedade”.
O compromisso maior da Carta que
redigiremos é com o futuro. Esse futuro
está aí, apressado, chamando-nos e exi225
OS PROFETAS DO AMANHÃ
gindo os nossos esforços urgentes para
recebê-lo sem transtornos maiores. Há
cinqüenta anos apenas o Brasil iniciava,
com timidez, o processo de modernização industrial. Mais de setenta por cento
de sua população vivia no campo. Poucas
eram as estradas que uniam os centros de
produção aos portos marítimos e dependíamos da importação de quase tudo.
Com enormes esforços – esforços sobretudo dos trabalhadores – conseguimos erigir
o maior parque industrial do Hemisfério
Sul, levantar cidades, desbravar sertões,
atualizar o nosso saber e impor-nos ao
respeito internacional. Deixamos a inibição histórica, que limitava, na prática,
a ocupação do Território com uma imaginária Linha de Tordesilhas, e rasgamos
as estradas que nos permitem, hoje, ir
de qualquer cidade a outra sobre rodas.
Ainda assim, temos que multiplicar os
nossos esforços para chegar ao próximo
século em condições de vencer os seus
desafios.
Partindo da razão básica – que
é a de transformar todos os brasileiros
em cidadãos, com a realização da justiça social –, deveremos combater certos
comportamentos que nos atrasam. É preciso – e é essa uma tarefa constitucional
– modernizar a legislação econômica, de
maneira a impedir a danosa especulação
financeira pelos agentes privados, incentivar a iniciativa econômica individual,
que não encontra espaço em um Estado
cartorial, aliado das grandes corporações
empresariais, e promover a modernização
dos processos de produção, com o desenvolvimento de novas técnicas.
Ao lado da educação – e dela inseparável –, exige-se uma política nacional
de desenvolvimento científico e tecnológico. Tanto quanto do capital – ou mais
226
do que dele –, os povos necessitam do
conhecimento sobre a natureza e dos
meios de colocá-lo a serviço do seu bemestar e segurança.
Não podemos submeter o nosso destino aos que buscam contê-lo, impedindonos de fabricar instrumentos modernos e
de promover, com a nossa própria inteligência, o seu desenvolvimento.
Concluíam os gregos, naquele
esplêndido século V antes de Cristo,
dando origem à concepção ocidental da
lei, que “o homem é a medida de todas
as coisas”.
Retorno assim à minha preocupação
original. É para o homem, na fugacidade
de sua vida, mas na grandeza de sua singularidade no universo, que devem voltar-se as instituições da sociedade.
Elas devem respeitá-lo e promover
o crescimento de sua personalidade, a
partir do momento em que nasce. Isso
significa lutar contra a vergonha que são
as altas taxas de mortalidade infantil e
prestar efetiva assistência às famílias. Tais
providências não podem ser vistas com o
velho espírito do paternalismo, como se o
Estado fosse instituição apenas dos ricos e
exercesse a caridade em favor dos pobres.
A assistência do Estado é um serviço que
ele presta aos cidadãos e estes, quando
dela necessitem, não devem suplicá-la,
mas, sim, exigi-la, como um direito irrecusável. Assistir não é amparar nem proteger. É cumprir uma tarefa inerente ao
Estado.
Não é preciso lembrar a dolorosa
situação das crianças abandonadas. É este
um tema do qual só podemos falar com a
cabeça baixa, os olhos no chão.
Devemos crescer, e crescer cada vez
mais, é verdade. Mas o nosso crescimento
ULYSSES GUIMARÃES
de nada valerá se o fizermos sem ter o
homem brasileiro como seu módulo.
Construir estradas, abrir portos,
desbravar sertões, escavar minas, plantar
milhões e milhões de hectares – como tantos
fizeram – aumenta o Produto Interno Bruto,
mas não significa, por si só, estabelecer a
independência ou garantir a soberania de
um país. As estradas e os portos também
podem ser construídos para favorecer o
saque das riquezas nacionais. De nada
adianta exportar milhões e milhões de
toneladas de grãos se eles faltarem à mesa
daqueles que os plantaram, colheram e os
transportaram até o mar.
Fazer um país crescer é fazê-lo
crescer dentro de si mesmo, é fazê-lo
crescer em cada um de seus cidadãos. O
que significa aumentar a produção se ela
estiver destinada a servir aos outros e não
ao nosso próprio povo?
Srs. Constituintes, esta é a grande
hora de nossa geração. Devemos ocupála com o grave sentimento do dever e a
consciência de que seremos responsáveis,
diante do futuro, pelo que decidirmos
aqui.
nossos aliados do PFL e aos companheiros
de todos os partidos que votaram em meu
nome.
Às demais legendas, principalmente
da Oposição, dou a garantia de que serei,
nesta presidência, o coordenador imparcial
dos trabalhos constituintes.
Como nos recomendou Tancredo,
não vamos nos dispersar.
Juntos, soubemos ter paciência e
coragem.
Juntos, não nos faltará a necessária
competência.
Haveremos de elaborar uma
Constituição contemporânea do futuro,
digna de nossa pátria e de nossa gente.
Para isso, iremos vencer os desafios
econômicos, políticos e sociais. Seremos
os profetas do amanhã.
A voz do povo é a voz de Deus. Com
Deus e com o povo venceremos, a serviço
da Pátria, e o nome político da Pátria será
uma Constituição que perpetue a unidade
de sua geografia, com a substância de
sua história, a esperança de seu futuro e
exorcize a maldição da injustiça social.
Temos, em nossas mãos, a soberania
do povo. Ele nos confiou a tarefa de
construir, com a lei, o Estado democrático,
moderno, justo para todos os seus filhos.
Um Estado que sirva ao homem e não
um Estado que o submeta, em nome de
projetos totalitários de grandeza.
Para isso estamos aqui.
Volto a agradecer a confiança que
os constituintes, em nome do povo, me
outorgaram.
Dirijo-me particularmente aos
companheiros do meu partido, o PMDB, a
227
PALAVRAS & HISTÓRIA
LUIZ GUTEMBERG
Ulysses Guimarães no dia da promulgação da nova Constituição Brasileira, em 05 de Outubro de1988.
(Acervo Câmara dos Deputados)
Receitas Tropicalistas de
Constituição pelo Mestre
Constituinte Ulysses
Silveira Guimarães
Se os especialistas em política fossem menos cientistas e mais cronistas, e
se os exegetas dos textos constitucionais
fossem menos etimólogos e mais historiadores – hipóteses totalmente absurdas,
pois desmontariam labirintos acadêmicos,
* Jornalista
228
ricos pareceristas perderiam sua clientela
e volumosas coleções de livros deixariam
de ser editadas – as constituições seriam
melhor compreendidas, os povos melhor
governados e, principalmente, a Justiça,
melhor distribuída.
Pelo menos, no caso da Constituição
do Brasil de 1988.
Quem tiver dúvidas, experimente
uma leitura do discurso de 2 de fevereiro
de 1987, do deputado Ulysses Guimarães,
na instalação da Assembléia Nacional
Constituinte, que ele presidiria.
Era a inauguração de uma das aventuras parlamentares mais alegres, confusas,
autênticas e tecnicamente desvairadas de
assembléias constituintes, através dos tempos, em todos os povos.
Uma constituinte que começou se
recusando a simplesmente tomar conhecimento de anteprojetos oferecidos. Até
mesmo um texto completo, elaborado
e discutido por uma grande comissão
de representantes de todos os setores da
sociedade, de que fizeram parte homens
e mulheres de “notável saber”, nomeados
pelo Presidente José Sarney. Tinha sido
presidida pelo senador Afonso Arinos,
orgulhoso por repetir a façanha do pai,
Afrânio Melo Franco, que exerceu papel
idêntico com relação à Constituição de
1934. Por acaso, as duas comissões constitucionais, a de 1933 e a 1986, haviam
se reunido, com um intervalo de mais de
meio século, na mesma sala do Palácio
do Itamaraty, no Rio. Pois, a Assembléia
Constituinte de 1986 não tomou conhecimento da tradição dos Melo Franco.
Orgulhosamente, partiu do nada. Durante
um ano e oito meses, os constituintes brasileiros, através de sucessivos estágios que,
teoricamente, asseguraram a participação
nos trabalhos de elaboração de 100% dos
513 deputados e 61 senadores que a compunham, foram autores desde o primeiro
croquis à redação final dos 245 artigos,
mais 70 das Disposições Transitórias.
Quem os lê hoje,– depois de 15
anos, já emendados 42 vezes, em alguns
pontos que pareciam pétreos em 1988,
como o monopólio estatal do petróleo,
revogado - dificilmente compreenderá o
exato sentido e intenção de muitos artigos.
Essa preocupação, dispensada por juristas, advogados e juízes, para quem basta
a letra fria, a expressão vernácula, para
erigir teorias, parece seguir o simplismo
do “vale o escrito” dos bicheiros cariocas.
Desprezam como anedóticas, reles preocupação de leigos, revelações sobre o que
há de humanidade, demagogia, cacoetes
pessoais, compromissos paroquiais com
grupos de eleitores e, até, insanidade, por
trás de alguns artigos emblemáticos e, às
vezes, intencionalmente ambíguos. Que
falta lhes fazem a História, ou ao menos,
uma crônica impressionista, uma análise
jornalística!
Como testemunha – com relação a
alguns temas, posso dizer, privilegiada,
pois muitas vezes tomei café da manhã
com o velho Ulysses na residência oficial
da Península dos Ministros, em Brasília,
pude assistir, à mesa, o planejamento das
jornadas diárias das votações, estabelecido em discussões de que sempre participavam o jurista Miguelzinho Reale, o
deputado Nelson Jobim e o secretário da
Mesa, Paulo Afonso, seus colaboradores
mais constantes. Ulysses exercia o papel
do Presidente da Constituinte, ora como
um patriarca (pela ascendência de autoridade tribal), ora como um maestro (pois
conduzia com rédea curta o andamento
e o timbre que julgava adequados a cada
tema, como se regesse uma peça sinfônica).
Tanto que o discurso inaugural da
Constituinte, por Ulysses, é uma espécie
de guia de orquestra para entendimento do
texto. A abertura é uma evocação biográfica, em três tempos. Lembra seu “barro
229
PALAVRAS & HISTÓRIA
municipal” – como gostava de dizer, repetindo Ribeiro Couto – Rio Claro; a herança
cultural e histórica, na evocação do paulista Prudente de Morais, de Piracicaba
(cidade irmã de Rio Caro) e, que presidiu
a primeira Constituinte da República, em
1890, mas a retórica bacharelesca repete o
estilo clássico da colocação de pronomes
dos oradores das Arcadas do Largo de São
Francisco, contida na afirmação, na primeira pessoa do presente indicativo:
“Sou-lhes muito obrigado por me
trazerem, do povo brasileiro, esta nova
tarefa.”
Tendo feito essa introdução em quatro parágrafos, declamados com pausas
que tanto os solenizava como os diversificava, no quinto, desfraldaria a infalível
saudação ao povo, à imprensa e autoridades e “pede passagem” – dos carros abre
alas dos velhos préstitos – e como fará na
promulgação, a 5 de outubro de 1988.
Agora, porém, a saudação é exclusiva aos
Senhores Constituintes, “o melhor do povo
brasileiro”. Os ungidos pelo voto popular,
a quem atribuía poderes extraordinários,
não por fantasia, mas por “fé e ciência”, como repetia. Entre os “criadores”
da humanidade, privilegiava os fazedores
de constituições e ordenamentos jurídicos, especialmente o romano Ulpiano, do
Corpus Júris Civiles. Tanto que não foi por
acaso, senão por paixão à primeira vista
pelo Direito Romano, que, mal chegado
a São Paulo e precisando ganhar dinheiro
para completar a modesta mesada paterna,
havia se tornado professor de latim.
Talvez por isso, por cultuar a lei
erudita, e esperando que a constituição
que se iria elaborar fosse uma expressão
jurídica perfeita, não refletisse sobre a
heterogeneidade filosófica da Assembléia
Constituinte, a não ser como expressão
230
democrática. Não refletia e, se pensava,
jamais confessou, sobre como promover
uma definição ideológica que promovesse
uma equalização das desigualdades intelectuais e morais, próprias da autêntica
representação popular, acentuada no Brasil
pelo vício histórico da descontinuidade da
prática representativa. Em um século de
República, duas longas e perversas ditaduras disseminaram a demagogia paternalista, o conformismo com as desigualdades
sociais, a injustiça como regra, e todas as
formas de dominação econômica e degradação cultural e política. Em vez desses
escombros, ele preferia admitir romanticamente que o mandato transforma, purifica e inspira, e que a democracia tem
mecanismos mágicos. Ele mesmo, que se
classificava como pertencente ao “gênero
parlamentar, espécie deputado” não disfarçava a confiança nas assembléias. Por
isso, saudava, nos Senhores Constituintes,
os veteranos, parlamentares reeleitos; os
estreantes; as mulheres – “esta bancada
feminina é a maior de nossa história parlamentar”; os líderes sindicais e populares,
que para ele são representantes de “grupos
sociais emergentes”; os jovens, que ainda
chama de moços – como Rui Barbosa e o
sambista Lupiscínio Rodrigues: “Sou dos
que confiam na inteligência e no trabalho
dos moços”.
Depois de usar a saudação como
um maestro que define os naipes da sua
orquestra, introduz o coro, que entoa o
tema que escolheu para a nova constituição. Mudança.
“A Nação quer mudar, a Nação deve
mudar, a Nação vai mudar”
É a vez dos metais para uma evocação épica das manifestações de rua que
marcaram o verdadeiro levante popular,
que aproveitou os estertores da ditadura,
LUIZ GUTEMBERG
e de que ele se sentia condutor com seu
“emedebê”, como dizia.
Evoca as cidade dos dois primeiros
comícios que deflagraram a avalanche da
campanha das “Diretas Já”, onde a vibração popular primeiro saiu às ruas clamando pela redemocratização:
- Goiânia!
- Curitiba!
Arremata tudo como preconizar a
postura da assembléia:
- “É um parlamento de costas para
o passado, este que se inaugura hoje para
decidir o destino constitucional do País”.
Seguem-se os princípios, as três
pedras angulares sobre as quais pretendia
alicerçar a constituição: liberdade, justiça
e soberania nacional.
Estava concluída a apresentação.
O plano de discurso de Ulysses,
que ele costumava formular esquematicamente em tiras de papel, que chamava
de “tripas”, antes de lhes dar forma final,
ou apenas para orientar os improvisos, e
de que encontrei algumas amostras entre
seus papéis, seguia o que chamava de
“trilha euclideana: o ambiente, a terra,
o homem e as peripécias”. No caso do
discurso inaugural da Constituinte, entenda-se por “peripécias” o longo e eclético
conjunto de temas que uma constituição
deve abarcar. Um texto que deve ser
político, em primeiro lugar; abrangente
por natureza; conter princípios que não
deixe órfão nenhum aspecto das relações
possíveis numa sociedade; juridicamente
irrepreensível, equânime, auto-aplicável e,
principalmente, que se preste à distribuição da Justiça.
Ulysses sentiu dificuldades em fixar
esses espaços estanques e, perdido, foi
e voltou várias vezes, repetiu-se, deu a
impressão de ter feito uma colagem aleatória. Como precisou trabalhar com muitas notas e textos enviados por amigos
– que infelizmente não identificou – adaptou conceitos técnicos de economia com
que não tinha familiaridade. Sua prosódia
bacharelesca tinha repertório para qualquer situação. Assim, depois de falar de
industrialização, infra-estrutura rodoviária, especulação financeira, repetindo uma
série de lugares comuns, como se tivesse
perdido o fôlego ou o fio da meada, diz:
“Concluíam os gregos, naquele
esplêndido século V antes de Cristo, dando
origem à concepção ocidental da lei, que
“o homem é a medida de todas as coisas”
Evidentemente perdido, reencontrase:
“Retorno assim à minha preocupação original. É para o homem, na fugacidade de sua vida, mas na grandeza da
sua singularidade no universo, que devem
voltar-se as instituições da sociedade”.
Velho político, literalmente – ele
estava naquele momento com 71 anos
- ele quer conciliar sua longa biografia
com um momento explícito de futurologia,
pois declara a pretensão de que a nova
carta constitucional contenha antevisões
que a tornem longeva, “contemporânea
do futuro.” Logo ele, que protagonizou a
instabilidade política da sociedade brasileira, desde que iniciou sua carreira sob
a Constituição de 1946, que chamava
de saudosa, no tom de pesar de quem
perdeu uma madrinha generosa e sábia.
Fato pouco conhecido, Ulysses quase fundou um culto à maneira positivista à
Constituição de 1946, de que promoveu,
na gráfica do IBGE, a primeira edição
popular de uma Constituição brasileira
com grande tiragem, quando Presidente
231
PALAVRAS & HISTÓRIA
da Câmara pela primeira vez, em 1956.
Havia até uma edição em miniatura, de
que guardo o seu exemplar, que encontrei, depois da sua morte, no escritório da
casa na rua Campo Verde, em São Paulo.
Não era uma paixão gratuita, pois foi para
complementá-la – com a preocupação de
decodificá-la nos limites regionais – que
teve seu primeiro mandato, em 1947,
como deputado estadual constituinte em
São Paulo. Deputado federal a partir de
1950, seria eleito, em 1956, aos 40 anos,
Presidente da Câmara, nº 2 na lista de
sucessão do Presidente da República. Em
1987, estava na sua nona reeleição como
deputado federal e há 40 anos não havia
passado um único dia sem mandato parlamentar. Tinha sobrevivido, sempre no
mesmo partido, o PSD, às crises políticas
que abalaram o regime da Constituição
de 46 - o suicídio de Vargas, em 1954
(em que teve papel de protagonista como
membro da CPI da Última Hora), o contra-golpe de 11 de novembro de 1955, a
renúncia de Jânio e a posse de Jango (de
que foi protagonista como membro do
Ministério parlamentarista de Tancredo
Neves, ocupando a pasta da Indústria e
Comércio) e, finalmente, o golpe de 64,
com a instauração da ditadura militar,
com que se conformaria inicialmente. Aí,
depois de uma tentativa frustrada de fazer
política, confiando na boa-fé do presidente Castelo Branco e em suas ingênuas
tentativas de reduzir o golpe a uma rápida
intervenção cirúrgico-militar, compreendeu que prevaleceria a violência do grupo
fascista. Recolheu-se silente e até ameaçado de cassação, para se transformar, a
partir de 1970, como presidente do MDB,
no principal articulador da oposição civil
que chegaria ao poder em 1985, com José
Sarney, pela morte do presidente eleito
Tancredo Neves.
232
Com a memória de todas essas
experiências e, principalmente, com a
rica crônica dos últimos 15 anos de luta
contra a ditadura – às vezes sutil; noutras, vigorosas; de repente excessivamente prudente; súbito, agressiva e até
temerária, quando comparou o presidente
Geisel ao ditador ugandense Idi Amin
Dada – Ulysses Guimarães administrou
os conflitos ideológicos, verdadeiros e
artificiais, que explodiam na oposição.
MDB, depois PMDB, foram uma frente
única e compulsória da oposição. Não
havia outros espaços, sob a ditadura, para
fazer política, e o partido era uma espécie
de Arca de Noé. Todos, por bem ou mal,
tinham que se submeter à convivência.
Para Ulysses, que sempre desdenhou a
radicalização, não era difícil exercer a
tolerância. Como pessedista, e a ideologia
do PSD era o exercício do poder conforme as circunstâncias, toda convivência
era possível. (Como gostava de lembrar,
Juscelino, cuja campanha presidencial
liderou em São Paulo, em 1955, foi eleito com o apoio negociado do Partido
Comunista, a que prometeu a legalidade e
relações com a URSS. Ao mesmo tempo,
patrocinou o financiamento dos integralistas de Plínio Salgado, com o objetivo de fazê-lo receber votos em Santa
Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul,
que iriam fatalmente para seu principal
competidor, Juarez Távora. A única forma
de esterilizar essa votação era viabilizar a
candidatura Plínio Salgado, que cumpriu
o seu papel: os votos de Plínio Salgado,
somados aos de Juarez, teriam derrotado
Juscelino.) A experiência do velho PSD,
segundo dizia, era uma vacina contra preconceitos e radicalismos. Foi assim que
os tratou no PMDB. As esquerdas, que
se intitulavam “autênticos”, embora não
faltassem direitistas de todos os matizes
LUIZ GUTEMBERG
entre os “moderados”. O denominador
comum era a oposição à ditadura.
Na abertura da Constituinte, Ulysses
não faz uma única referência à questão
ideológica, que ainda era muito forte.
Nada indicava, àquela altura, que o
Muro de Berlim estivesse prestes a cair,
e, junto com ele, a URSS e o comunismo
internacional, o que só aconteceria em
1989. Vê-se, numa leitura distante das
circunstâncias de 1987, que ele acena
para todo mundo, ora mais à esquerda,
falando de liberdade (“é preciso que se
tenha a consciência de sua necessidade
e o sentimento moral da sua importância”), ora mais à esquerda, falando de
propriedade (... “um dos antigos direitos
do homem, é em razão disso mesmo que
a ética religiosa recomenda distribui-la”)
até, em evidente desespero, ziguezaguear como os eloqüentes personagens
de Glauber Rocha em “Terra em Transe”.
Embrenha-se por um labirinto de dilemas,
perde a linha de Ariadne, ouve os urros
do monstro devorador dos que hesitam e,
sem resposta, termina com uma interrogação. Vejamos:
“Construir estradas, abrir portos,
desbravar sertões, escavar minas, plantar
milhões e milhões de hectares – como tantos fizeram – aumenta o Produto Interno
Bruto, mas não significa, por si só, estabelecer a independência ou garantir a soberania de um país. As estradas e os portos
podem ser construídos para favorecer o
saque das riquezas nacionais. De nada
adianta exportar toneladas e toneladas de
grãos se eles faltarem à mesa daqueles que
os plantaram, colheram e transportaram
até o mar. Fazer um país crescer é fazê-lo
crescer em cada um dos seus cidadãos. O
que significa aumentar a produção, se ela
estiver destinada a servir aos outros e não
ao nosso próprio povo?”
Um exemplo primário, do ponto
de vista formal da ciência política, do
desafio que se apresentava à constituinte,
mas absolutamente consentâneo com a
mentalidade da assembléia a que Ulysses
se dirigia.
Uma pesquisa que envolvesse testemunhos insuspeitos de assembléias políticas brasileiras (aleatoriamente, tomei
as resenhas do Senado do Império, de
Machado de Assis, que não era uma constituinte, mas se comportava como tal, sob
a bonomia de Sua Majestade, o Imperador,
na eterna tentativa de regulamentar dispositivos constitucionais, como a mudança
da capital para o Planalto Central; memórias da Constituinte de 1934, do deputado
alagoano Emílio de Maya e os registros de
João Almino, sobre a Constituinte de 46,
em “Democratas Autoritários”) mostrará
que os usos e costumes, temas e circunstâncias, foram sempre diversos, mas há
um traço especial, original, absolutamente diverso, em atitude e resultados, que
não se vê nas experiências constituintes
de outros povos.
As peculiaridades das assembléias
brasileiras são a preocupação de ruptura
e inovação; o contraste entre a sabedoria
e a improvisação, espírito público e a
demagogia populista, entre as pretensões de eternidade e a mais escrachada
efemeridade. Como definir tão difusas
características? Nos anos 30, a sociologia
de Gilberto Freire, recém chegado da
Universidade do Texas e desafiando as
visões clássicas de definição dos efeitos
sociais, políticos, econômicos e estéticos
da miscigenação brasileira, era simplesmente rotulada de ecologia. Antes que o
próprio Gilberto a denominasse lusotropicologia. Ulysses não chegou a definir sua
oratória, mas seu discurso inaugural da
Assembléia de 1987, que vale como intro233
PALAVRAS & HISTÓRIA
dução à história e ao texto da Constituição
de 88, certamente admitiria tratar-se de
uma típica experiência tropicalista.
Até mesmo porque uma constituição não é uma constituição, mas sempre a Constituição. O substantivo comum
“constituição” é dessas palavras que
designam abstrações, pois não existe um
modelo, um paradigma. Não há uma
constituição “de referência” a que se
possa recorrer e apresentar, como os contratos
padrão em que se precisa apenas
preencher espaços em branco, assiná-los,
datá-los, e ei-lo, personalizado,produzindo
efeitos singulares, tendo perdido seu caráter de fórmula.
Por isso, não há constituições, plural
de constituição, pois são singulares,
expressam as latitudes e longitudes,
momentos e povos que a escreveram e
promulgaram. Podem até figurar numa
coleção de textos políticos e jurídicos, mas
será lida, sempre, como uma notícia das
excentricidades do povo que, em dado
momento, a adotou.
Foi mais ou menos isso que Ulysses
queria dizer, e disse, aos seus colegas da
Assembléia Constituinte de 1986. Mas,
assim como nem sempre a objetividade e
o despojamento são o caminho mais curto
da compreensão de uma mensagem, ele
buscou a forma de expressão adequada.
Com sua experiência acumulada de 40
anos de vida parlamentar, e sendo um
homem de virtudes histriônicas e grande
sensibilidade, forjou, apressadamente o
discurso com que assumiu a presidência
da Constituinte. Sua regra era o improviso,
mas seus discursos lidos também eram,
virtualmente, improvisos. Partia de um
rascunho manuscrito, depois trabalhava
sobre uma versão datilografada por uma
secretária, na qual fazia alterações e,
234
finalmente, durante a leitura, que desejava
que fosse uma interpretação de ator, puro
teatro, profanava temerariamente seus
próprios textos com chistes e referências
de ocasião, que os taquígrafos anotavam,
às vezes sobre cópias dos textos lidos.
Este discurso de 2 de fevereiro de
1987, para ser evocado dignamente e mais
justamente entendido e glorificado como
peça de oratória, merecia um tratamento
de poema de Mário de Andrade (penso nos
coros de “Nas Enfibraturas do Ipiranga”),
apoiado por uma vibrante “Invocação
da Pátria”, de arrebatamento cívico, em
andamento de dobrado de Villa Lobos, de
que se valeu Joaquim Pedro de Andrade
em “Macunaíma”. A platéia, dominada
pelo irresistível otimismo e confiança com
que Ulysses falava da sua gente, sentir-seía, como de fato se sentiu, arrebatada e sem
perceber que ele apenas lhes reproduzia o
pensamento, tal como encerrou o discurso,
arrebatado e tropicalista:
“A voz do povo é a voz de Deus.
Com Deus e o povo venceremos, a serviço
da Pátria, e o nome político da Pátria será
uma Constituição.”
O tropicalismo não é uma opção
estética ou comportamental, mas a forma
de pensamento e expressão do povo
brasileiro. Todas as contradições históricas,
contrastes culturais, diferenças regionais e,
principalmente, as conexões surgidas da
convivência dos grupos étnicos, sociais,
religiosos, econômicos e políticos através
dos tempos, cabem nessa salada. São
os valores e códigos, tão imprecisos
quanto verdadeiros, pretendendo desafiar
e reinventar relações jurídicas, sociais
e políticas. Exatamente como Ulysses
Guimarães anteviu a Constituição de 1988
ao inaugurar a assembléia que redigiria.
Imagem
Histórica
Reprodução
Pedro Karp Vasquez
235
IMAGEM HISTÓRICA
Arsênio da Silva
Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1864. Coleção Dona Thereza Christina Maria da Fundação
Biblioteca Nacional.
236
*PEDRO KARP VASQUEZ
Brilhante composição, essa imagem
é o mais antigo exemplo de documentação fotográfica de um acontecimento
oficial de relevância nacional efetuado
no Brasil: o casamento da princesa Isabel,
herdeira do trono, destinada a ser a terceira governante do Império fundado por
seu avô, Dom Pedro I, a 7 de setembro
de 1822.
Pouquíssimo conhecida, essa imagem, tão admirável sob o ponto de vista
da concepção visual, é representativa
sob diversos outros pontos de vista, a
começar pelo estritamente técnico. Foi
realizada com o trabalhoso e complicado
processo de colódio úmido, que exigia o
emulsionamento da placa com o material
fotossensível, instantes antes da realização da exposição, obrigando o fotógrafo a
instalar um laboratório portátil no próprio
local de tomada da fotografia. O negativo
resultante tinha o formato de 17,2 x 20, 3
cm, sendo copiado – segundo o processo
mais empregado no Brasil neste período
– por contato direto sobre papel albuminado. Ou seja: sem o auxílio de um
ampliador, com o negativo sendo comprimido sobre o papel fotográfico com
o auxílio de uma prensa especialmente
concebida para este fim.
Conforme a perfeição técnica desta
fotografia demonstra de forma cabal, o
esquecido Arsênio da Silva – cuja assinatura e endereço são visíveis nos cantos
inferiores da imagem – era um excelente fotógrafo, com total domínio de
seu instrumento de trabalho. Contudo,
a iluminação inadequada para a prática
fotográfica não permitiu que Arsênio da
Silva registrasse o casamento propriamen-
te dito, realizado na Capela Imperial, no
sábado, 15 de outubro de 1864. Assim, a
cerimônia ficou perpetuada graças ao trabalho de artistas como o aquarelista Jean
Jules Le Chevrel e o pintor Pedro Américo
de Figueiredo e Melo.
O próprio Arsênio da Silva também
era pintor, tendo sido – conforme informou o respeitado historiador e crítico de
arte, Quirino Campofiorito – o responsável pela introdução no Brasil da técnica
de pintura em gouaches. Inovação que
lhe valeu, de princípio, grande consideração – foi premiado nas Exposições Gerais
da Academia de Belas Artes em 1861,
1862 e 1863 – e, depois, inúmeros dissabores. Isso porque, dotado de sensibilidade excessiva, raiando a instabilidade
emocional, Arsênio se ressentiu profundamente quando viu desfeito o sonho de
acesso ao corpo docente da Academia
Imperial das Belas-Artes. Derrotado pela
conspiração dos medíocres, sempre tão
operosos quando confrontados à genialidade, Silva afastou-se de seus colegas
futriqueiros, abandonando o fazer artístico para morrer em solitário ostracismo.
A esse respeito, é eloqüente o relato de
Mello Morais Filho:
“A intriga e a inveja cerrando-lhe as
portas [da Academia], Arsênio Silva teve
de recuar, e espraiando em derredor de
si olhares de desânimo, apercebeu que
as demais se haviam fechado para ele, e
que, ao desamparo do gosto pela arte, a
miséria seria uma conseqüência lógica,
uma companheira inevitável dos dias
futuros.
E, por um instante, sacudindo guizos
de uma alucinação transitória, o excelso
* Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
237
IMAGEM HISTÓRICA
pintor de gouaches, o vendedor de telas
esplêndidas a 5.000 réis, faz aquisição
de uma cabeça que fala a Saturnino da
Veiga, de um realejo e de um cosmorama,
seguindo pelas estradas da província do
Rio, assim transformado em saltimbanco
de feira”.
Dono de um talento e de uma sensibilidade superiores, Arsênio da Silva, como
outros tantos luminares da arte, sucumbiu
ante a avassaladora destrutividade das
miudezas comezinhas do cotidiano. Assim,
abandonando o saber artístico tradicional, acumulado em mais de três anos de
estadia na Europa, em fins
da década de 1850, quando transitou por Roma,
Milão, Florença, Pisa,
Turim e Paris, Arsênio da
Silva optou pela fotografia
muito provavelmente em
1863, data de sua última
participação na Exposição
Geral da Academia de
Belas Artes.
neirismo, documentou uma Congada em
torno de 1865, que, se não for o primeiro
registro desta manifestação popular parareligiosa de inspiração africana, é, com
toda a certeza, o mais antigo e perfeito exemplo de registro fotográfico protoantropológico do que hoje qualificamos de
evento “folclórico”.
Artista consumado
e dedicado, assimilou de
imediato as exigências técnicas do novo
métier, a ponto de ter o privilégio de fotografar o casamento da princesa Isabel. Esse
trabalho agradou tanto o imperador Pedro
II que este lhe franqueou, em seguida, as
portas do Palácio Imperial e Petrópolis,
até então focalizado apenas por Revert
Henrique Klumb, um habitué da casa,
posto que professor de fotografia, tanto
da imperatriz Thereza Christina quanto da
princesa Isabel.
Curiosa e tristemente, a princesa
Isabel e o conde d’Eu – motivadores desta
obra-prima fotográfica de Silva – também
foram vítimas da inveja, da maledicência e da incompreensão de interesseiros
que, medindo o mundo com a escala da
própria pequenez, eram
incapazes de enxergar a
grandeza alheia. O casamento documentado nesta
imagem floresceu feliz –
numa época em que eram
raros os casamentos felizes – por quase seis décadas, encerrando-se apenas
com a morte da princesa,
a 14 de novembro de
1921. Sobreviveu, portanReprodução to, às agruras da Guerra
do Paraguai (de cuja fase final, entre 30 de
março de 1869 e 1º de março de 1870, o
conde d’Eu foi o comandante-em-chefe do
Exército brasileiro); às inúmeras pressões
políticas; às dificuldades de procriação
da princesa (quase morta por dois abortos
espontâneos); e ao exílio injusto imposto
pelos militares republicanos empenhados
em impedir o acesso ao trono da princesa
Isabel após a morte de seu pai, que parecia
se avizinhar a olhos vistos.
Nascido na província de Pernambuco,
a 29 de abril de 1833, e falecido na província da Bahia, a 11 de fevereiro de 1883,
Arsênio da Silva teve trajetória meteórica,
porém, fulgurante. Predestinado ao pio-
Com efeito, esta não tardou, sucedendo de apenas dois anos ao advento
da República, ocorrendo em Paris, a 5 de
dezembro de 1891. Infelizmente, a miopia
de seus contemporâneos não os deixou
238
PEDRO KARP VASQUEZ
perceber a enorme importância da princesa Isabel, uma das nove mulheres que,
em todo o mundo, durante todo o decurso
do século XIX, foram governantes de seus
países.
Antes do fim do Império, a princesa
Isabel voltaria a congregar no Largo do
Paço expressiva multidão, ao assinar a Lei
Áurea, no domingo 13 de maio de 1888.
Só que desta feita a multidão se reuniu
diante da fachada do prédio – oculta na
fotografia de Arsênio da Silva – que dá
frente para o mar e a atual Praça XV de
Novembro, cuja estação de “ferry-boats” é
visível ao fundo, à esquerda.
O Largo do Paço, tão importante
para nossa história – o Dia do Fico, 9 de
janeiro de 1822, de Dom Pedro I (imediato
prenunciador do surgimento do Império
brasileiro), foi protagonizado aí, na sétima
janela (da esquerda para a direita), logo
antes do pórtico de entrada – foi igualmente importante para a história da fotografia
brasileira. Com efeito, o abade francês
Louis Compte, ao introduzir a daguerreotipia no Brasil, o fez aí, no Largo do Paço.
Colocando-se em posição paralela, porém oposta à de Arsênio da Silva
– ou seja, mais perto do mar e distante
da rua Direita (atual Primeiro de Março)
– Compte focalizou a mesma fachada
lateral do Paço Imperial e mais duas belas
construções excluídas desta composição
de Silva: o chafariz de Mestre Valentim
(ainda remanescente) e o Mercado da
Praia do Peixe (situado onde hoje se ergue
a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro).
Republicanizado, pour ainsi dire, o Largo
do Paço (não mais Imperial) manteve a
majestade, protagonizando, em 1894, um
grande evento cívico que deu ensejo a
uma igualmente grande documentação
fotográfica de Juan Gutierrez: a inaugu-
ração da imponente estátua eqüestre do
general Osório – erguida na área central
vazia nesta fotografia de Arsênio da Silva
– como parte dos festejos comemorativos
do quinto aniversário da Proclamação da
República.
Decorrido um século e uma década,
essa imagem magistral, tão importante
pelo tanto que nela se vê, quanto pelo
tanto que nela não se vê, ressurge agora,
como um belo convite para se repensar a
história. Ou diversas histórias: a história do
Brasil, a história da fotografia, e a história
de Arsênio. Este esquecido Silva pernambucano, entre tantos outros esquecidos
Silvas pernambucanos, que, talvez agora
que um Silva pernambucano comanda o
país dos Silvas de todos os quadrantes, terá
sua fabulosa contribuição devidamente
reconhecida.
Reprodução
239
PERFIL
* RICARDO ORIÁ1
Todos sabemos que a História é um
processo de construção coletiva, em que
interagem diferentes atores sociais. No
entanto, não podemos desprezar a ação
do indivíduo no processo histórico. A
Historiografia brasileira sempre primou
pela narrativa dos fatos protagonizados
pelos homens. Na história oficial do país
quase não há lugar para as mulheres,
negros, índios, trabalhadores e outras ditas
minorias sociais – os chamados “excluídos
da história”, expressão cunhada pela historiadora francesa Michelle Perrot2. Na verdade, construiu-se no Brasil uma história
assexuada, onde as questões de gênero3 só
muito recentemente passaram a fazer parte
do território epistemológico dos historiadores e cientistas sociais.
Segundo Izilda S. de Matos, “a expansão dos estudos que incorporam a mulher
e a abordagem de gênero na história localiza-se no quadro das transformações por
que vem passando a história nos últimos
tempos, sendo possível afirmar que, por
razões internas e externas, esses estudos
emergiram da crise dos paradigmas tradicionais da escrita da história, que requeria
uma completa revisão dos seus instrumentos de pesquisa. Essa crise de identidade
da história levou à procura de “outras
histórias”, o que levou a uma ampliação
do saber histórico e possibilitou uma abertura para a descoberta das mulheres e do
gênero4.”
O presente texto, neste primeiro
número da Revista Plenarium, pretende
resgatar a participação e luta das mulheres no processo histórico nacional, dando
ênfase à política institucional, mais precisamente no campo dos direitos políticos. Nada mais oportuno pois, neste ano,
comemoramos o “Ano da Mulher”, instituído pela Lei nº 10.745, de 20035.
Para tanto, escolhemos o perfil histórico-biográfico e parlamentar da primeira Deputada Federal do Brasil e de
(*) Historiador e Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados
240
Carlota Pereira de Queiroz na Assembléia Constituinde de 1934. (Acervo Câmara dos Deputados)
toda a América Latina, eleita pelo voto
popular para a Assembléia Constituinte de
1933. Estamos nos referindo à educadora
e médica paulista CARLOTA PEREIRA DE
QUEIRÓS (1892-1982). Antes, porém, de
traçarmos esse perfil, mister se faz uma
breve análise da árdua e longa luta das
mulheres brasileiras pelo exercício de seus
direitos políticos, cuja expressão maior
se traduz no voto e que só foi alcançado
em 1932, com a promulgação do Código
Eleitoral.
vezes o direito de voto como uma concessão dos governantes e assim passa-se a
idéia de que “Getúlio Vargas deu à mulher
brasileira o direito de votar”. A história não
é bem essa. A conquista do voto feminino
foi resultado de um processo de lutas,
avanços e recuos, que se inicia por volta
dos anos 10 do século passado.
A CONQUISTA DO VOTO
FEMININO
Em 1910, seguindo uma tendência
mundial do movimento sufragista, a professora carioca Deolinda Daltro funda o
Partido Republicano Feminino, defendendo o direito de voto para as mulheres e
a abertura dos cargos públicos a todos os
brasileiros, indistintamente.
Em virtude da cultura política predominante no País, de caráter personalista e
patrimonialista, costuma-se colocar muitas
A década de 20 do século passado
assistiu importantes movimentos de contestação à ordem vigente. Somente no
241
PERFIL
ano de 1922, tivemos importantes acontecimentos que colocavam em xeque a
República Velha, a saber: Semana de Arte
Moderna, Movimento Tenentista e fundação do Partido Comunista do Brasil. Nesse
contexto, não podemos esquecer a emergência do movimento feminista, tendo à
frente a professora Maria Lacerda de Moura
e a bióloga Bertha Lutz, que fundaram a
Liga para a Emancipação Internacional da
Mulher, um grupo de estudos cuja finalidade era a luta pela igualdade política das
mulheres.
Posteriormente, Bertha Lutz6, que
irá ser a segunda mulher a ocupar uma
cadeira na Câmara dos Deputados, cria
a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, considerada a primeira sociedade feminista brasileira. Essa organização
tinha como objetivos básicos: “promover
a educação da mulher e elevar o nível de
instrução feminina; proteger as mães e a
infância; obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino; auxiliar as
boas iniciativas da mulher e orientá-la na
escolha de uma profissão; estimular o espírito de sociabilidade e cooperação entre
as mulheres e interessá-las pelas questões
sociais e de alcance público; assegurar
à mulher direitos políticos e preparação
para o exercício inteligente desses direitos; estreitar os laços de amizade com os
demais países americanos.” 7
A 1ª Constituição Republicana, apesar de ter instituído o voto secreto e universal, continuou alijando as mulheres do
direito de participação na vida política do
país. O direito de voto para as mulheres só
se tornou realidade após a Revolução de
30, que derrubou as oligarquias do comando decisório do país. Antes disso, pelo seu
pioneirismo, merece registro a legislação
estadual do Rio Grande do Norte que pos242
sibilitou o voto das mulheres já em 1928.
Quando assumiu o cargo de Presidente
do Estado, Juvenal Lamartine solicitou aos
deputados estaduais que elaborassem uma
nova lei eleitoral que assegurasse o direito
de voto às mulheres. Foi sancionada a Lei
nº 660, de 25 de outubro de 1927, que
regulava o serviço eleitoral no estado e
estabelecia que no Rio Grande do Norte
não haveria mais distinção de sexo para
o exercício do voto e como condição
básica de elegibilidade. Nesse mesmo dia,
a professora potiguar, Celina Guimarães
Viana, natural de Mossoró, entrou com
uma petição ao juiz eleitoral solicitando
sua inscrição no rol dos eleitores daquele
município.
“Celina fincou o marco da vanguarda política feminina na América do Sul,
tornando realidade o voto feminino no
Brasil.” 8 Após esse ato, várias mulheres
riograndenses solicitaram seu alistamento
eleitoral e por ocasião das eleições para
o Senado, em 1928, 15 mulheres votaram
no Rio Grande do Norte. Fato interessante
ocorreu posteriormente, quando da diplomação do senador José Augusto Bezerra
de Medeiros no Congresso Nacional. No
ato de sua diplomação, os votos das 15
mulheres não foram computados por serem
considerados “inapuráveis” pela Comissão
de Poderes do Legislativo Federal. Em
protesto a esse ato arbitrário e que revela
o preconceito reinante à época acerca do
acesso da mulher à participação política, a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino lançou um Manifesto à Nação.
Vargas era simpatizante à causa feminista, sobretudo no tocante ao direito de
voto. Assim, em 1932, foi promulgado o
novo Código Eleitoral, de cuja comissão
de redação Bertha Lutz havia participado,
e que finalmente assegurou o direito de
voto às mulheres brasileiras.
RICARDO ORIÁ
UMA VOZ DE MULHER NA
CONSTITUINTE
“Além de representante feminina,
única nesta Assembléa, sou, como todos
os que aqui se encontram, uma brasileira,
integrada nos destinos do seu paiz e identificada para sempre com os seus problemas
(...). Num momento como este, em que
se trata de refazer o arcabouço das nossas
leis, era justo, portanto, que a mulher também fosse chamada a collaborar.”
(Trecho do discurso de Carlota P. de
Queirós).
No dia 13 de março de 1934, uma
voz feminina se fez ouvir, pela primeira
vez, no plenário do Palácio Tiradentes, sede
da Câmara dos Deputados e dos trabalhos
da Assembléia Constituinte. Tratava-se de
Carlota Pereira de Queirós, uma médica
paulista e primeira deputada federal do
Brasil, eleita pelo voto popular.
Nascida na capital paulista, em 13 de
fevereiro de 1892, Carlota era filha de José
Pereira de Queirós e de Maria de Azevedo
Pereira de Queirós. Pertencia, portanto, a
uma família tradicional das elites locais,
sendo seu avô paterno um rico proprietário
de terras em Jundiaí, membro do Partido
Republicano Paulista e um dos fundadores
do jornal “A Província de São Paulo” (hoje,
jornal “Estado de São Paulo”).
Carlota fez seus estudos iniciais
na então Escola Normal da Praça e em
1909 recebeu seu diploma de professora.
Convidada pelo Diretor da Escola Normal,
passa a trabalhar neste mesmo estabelecimento de ensino, sendo inspetora primária. Em 1912, torna-se professora do
jardim de infância, cargo que manterá por
dez anos. Até o início da década de 20,
Carlota acumulou várias atividades ligadas
à educação. Desiludida com o magistério,
Carlota dá uma guinada em sua vida pessoal e profissional ao ingressar na Faculdade
de Medicina e Cirurgia de São Paulo, em
1920. Em 1923, ela decide trocar de faculdade e inscreve-se no Curso de Medicina
do Rio de Janeiro, formando-se em 1926,
com a tese “Estudos sobre o Câncer”.
Recebeu, por seus estudos na área, o
Prêmio Miguel Couto. Nesse mesmo ano,
assumiu a direção do laboratório da clínica pediátrica da Faculdade de Medicina de
São Paulo e viaja, em 1928, comissionada
pelo governo paulista, à Suíça onde fará
seus estudos de dietética infantil.
Profissionalmente, Carlota, mesmo
ingressando posteriormente na vida política, terá sempre uma atuação destacada
na área médica, tornando-se a primeira
mulher a integrar a Academia Nacional de
Medicina, em 1942, e ocupando o cargo
de Presidente da Associação Brasileira de
Mulheres Médicas (ABMM), no período de
1961 a 1967.
Sua participação na política se deu a
partir da Revolução Constitucionalista de
1932, quando São Paulo pega em armas
contra a excessiva concentração de poderes nas mãos de Getúlio e exige um novo
ordenamento constitucional para o País.
“Nesse contexto, a duração imprevista da
Revolução de 1932 (quase três meses),
onde os paulistas acabam lutando sozinhos contra o governo central, improvisando forças e munições, abre às mulheres
das elites uma chance única de exercício
intensivo da cidadania.” 9
Carlota organiza, juntamente com
setecentas mulheres, o Departamento de
Assistência aos Feridos (DAF), subordinado ao Departamento de Assistência
à População Civil, dirigido por Olívia
Guedes Penteado.
243
PERFIL
A Revolução de 32 é derrotada pelo
governo central. No entanto, são convocadas eleições para a elaboração de um novo
texto constitucional. Como as principais
lideranças políticas do Partido Republicano
Paulista (PRP) e do Partido Democrático
(PD) encontravam-se no exílio, formou-se
a “Chapa Única por São Paulo Unido!”,
que escolhe vinte e dois nomes ligados
aos dois partidos. O nome de Carlota
surge por recomendação da Associação
Comercial, respaldado pela Associação
Cívica Feminina e pela Federação dos
Voluntários, grupo de oficiais e suboficiais
paulistas que haviam participado do movimento revolucionário de 32.
Contando com o apoio da elite local,
no qual sobressaem os nomes de Olívia
Penteado e Pérola Byington, suas amigas íntimas, Carlota inicia sua campanha.
É lançado o manifesto “Mensagem da
Mulher Paulista” na imprensa local, solicitando do segmento feminino o apoio à sua
candidatura.
No dia 3 de maio de 1933, realizam-se as eleições em dois turnos para a
Assembléia Constituinte. Carlota é eleita com 5.311 votos no primeiro turno,
e 176.916 no segundo. Empossada em
novembro do mesmo ano, Carlota Pereira
de Queirós será primeira e única mulher a
sentar-se entre 253 deputados federais.
No processo constituinte, Carlota
participou dos trabalhos da Comissão de
Educação e Saúde onde elaborou o primeiro projeto sobre a criação de serviços
sociais no país. Sua iniciativa colaborou
para o estabelecimento da obrigatoriedade
de verbas destinadas à assistência social,
possibilitando, assim, a construção da Casa
do Jornaleiro e do laboratório de biologia
infantil, anexo ao Serviço de Menores.
244
Já promulgada a nova Constituição,
Carlota é reeleita na legenda do Partido
Constitucionalista de São Paulo para uma
das 34 cadeiras da bancada paulista na
Câmara dos Deputados. Nessa eleição, ela
recebe 1.899 votos no primeiro turno e é
a segunda mais votada no segundo turno,
com 228.190 votos.
Como deputada federal, Carlota posicionou-se contrária à proposta da então
deputada Bertha Lutz sobre a criação de
um “Departamento Nacional da Mulher”,
no contexto da “Comissão Especial de
Elaboração do Estatuto da Mulher”.
Segundo ela, o modelo burocrático proposto para esse órgão acarretaria superposição de atribuições e competências com
três Ministérios da Administração Pública
Federal. Em seu lugar, ela propôs que o
Departamento a ser criado ficasse subordinado ao Ministério da Educação e Saúde.
Outro ponto de discordância entre as duas
parlamentares acerca da criação do órgão
devia-se ao fato de que Carlota se mostrava
contrária à idéia de que os cargos do referido Departamento fosse preenchido apenas
por mulheres. Segundo ela, essa proposta
continha um viés nitidamente sexista. Em
decorrência das divergências entre Carlota
e Bertha, o projeto do Estatuto da Mulher
avançou muito pouco e foi atropelado pela
implantação do Estado Novo.
Carlota permaneceu na Câmara dos
Deputados até 1937, quando o golpe de
estado impetrado por Getúlio determinou
o fechamento de todas as casas legislativas do país. Foi o mais longo recesso
parlamentar de nossa história. Durante o
Estado Novo (1937-1945), Carlota lutou
ativamente pela redemocratização do país.
Tentou retornar à Câmara dos Deputados,
candidatando-se em 1945 pela União
Democrática Nacional (UDN), mas não
RICARDO ORIÁ
se elegeu. Com o golpe de 1964, Carlota
posicionou-se a favor da tomada do poder
pelos militares.
Embora ausente da política institucional, Carlota continuou prestando
relevantes serviços na área da medicina
e assistência social. Organizou o primeiro
curso de serviço social do país ao lado
de outras mulheres e continuou integrando importantes associações femininas. Publicou as seguintes obras: “Sistema
Froebel e Montessori” (1920); “Estudos
sobre o Câncer” (1926); “Diário de um
Tropeiro” (1937); “Exame hematológico
e medicina social” (1940); “Exame de
hemorragias nas tonsilectomias” (1940);
“Das vantagens de generalização do exame
hematológico e sua aplicação em medicina social” (1941); “Um fazendeiro paulista
no século XIX” (1965) e “Vida e morte de
um capitão-mor” (1969).
Carlota veio a falecer em São Paulo,
aos noventa anos de idade, deixando um
importante legado na luta pela conquista
da cidadania feminina no Brasil. Seu nome
inspirou a criação, no âmbito da Câmara
dos Deputados, do Diploma Mulher Cidadã
Carlota Pereira de Queirós, instituído
pela Resolução nº 3, de 200310. Essa
homenagem será conferida anualmente
a cinco mulheres, em diferentes áreas de
atuação, que tenham contribuído para o
pleno exercício da cidadania, na defesa dos
direitos da mulher e questões de gênero. É
o reconhecimento do Poder Legislativo ao
papel da mulher na vida política nacional,
mediante o resgate da memória de sua
primeira parlamentar – CARLOTA PEREIRA
DE QUEIRÓS.
A Mulher em uma Pintura da Grécia Clássica. Autor desconhecido.
245
PERFIL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. SP: Paz
e Terra, 1988.
2. MATOS, Maria Izilda S. de. “Outras histórias: as mulheres e estudos de gênero – percursos
e possibilidades” In: Gênero em Debate. Trajetória e Perspectivas na Historiografia
Contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997, p. 86.
3. TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense,
1993, Col. Tudo é História.
4. PINTO, Célia Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. SP: Fundação Perseu
Abramo, 2003, Col. História do Povo Brasileiro.
5. AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? RJ: DP & A, 2003.
6. SCHPUN, Mônica Raisa. “Carlota Pereira de Queiroz: uma mulher na política” IN: Revista
Brasileira de História – órgão oficial da Associação Nacional de História. São Paulo,
ANPUH/ED. Unijuí. Vol. 17. nº 33, 1997
7. DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado.
RJ: Jorge Zahar Ed., 2000.
8. DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO BRASILEIRO PÓS-1930. Fundação Getúlio
Vargas – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
(FGV-CPDOC), 2000.
NOTAS
Historiador e Advogado. Ex-professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Direito
Público pela Faculdade de Direito da UFC. Atualmente, é Consultor Legislativo da área de educação e cultura da Câmara dos
Deputados.
2
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros, SP: Paz e Terra, 1998. Ver também, da mesma,
historiadora a coleção por ela dirigida juntamente com George Duby “A História das Mulheres” (5 vols.). São Paulo: EBRADIL,
1991.
3
Estamos utilizando a expressão gênero para se referir à construção social do feminino e do masculino. Não há, pois, como fazer
apenas uma história da mulher sem questionar a relação desta com o homem e de como, no decorrer da história, se construiu a noção
de feminino e masculino.
4
MATOS, Maria Izilda S. de. “Outras histórias: as mulheres e estudos de gênero- percursos e possibilidades” In: Gênero em Debate.
Trajetória e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997, p. 86.
5
A Lei nº 10.745, de 9 de outubro de 2003, é oriunda de um projeto de lei, de autoria da deputada Laura Carneiro (PFL-RJ) e, além de
definir o ano de 2004 como “Ano da Mulher”, remete ao Poder Público a promoção na divulgação e comemoração dessa efeméride,
mediante a realização de programas e atividades, com envolvimento da sociedade civil, visando estabelecer condições de igualdade
e justiça na inserção da mulher na sociedade brasileira. A partir desta lei, a Câmara dos Deputados resolveu constituir uma Comissão
Especial com a finalidade de definir a atuação desta Casa Legislativa nas ações destinadas a implementar as providências referidas
nesse dispositivo legal.
6
Berta Lutz foi a segunda mulher a assumir um mandato de deputada federal, em 28 de julho de 1936, na vaga deixada pelo deputado
titular, Cândido Pessoa, que falecera.
7
TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense, 1993, Col. Tudo é História, p. 44.
8
DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. RJ: Jorge Zahar Ed., 2000, p. 148.
9
SCHPUN, Mônica Raisa. “Carlota Pereira de Queiroz: uma mulher na política” IN: Revista Brasileira de História- órgão oficial da
Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH/ED. Unijuí,. vol. 17. nº 33, 1997, p. 174.
10
O Projeto de Resolução foi uma iniciativa da deputada Laura Carneiro (PFL-RJ) na presente legislatura.
1
246
Charge
• Bordal Pinheiro por Paulo Caruso
CHARGE
248
* PAULO CARUSO
Ares de janota no início, quando da
sua vinda ao Brasil, em 1875, um “clone”
de Chaplin; depois, à época de seu retorno
a Portugal, onde se torna pintor, gravador,
escultor e ceramista renomado, ficou mais
parecido com um dos vilões do Carlitos,
gordo, com bigodões virado pra cima nas
extremidades, e monóculo que espreitava com seu olhar, apoiado sobre largas
bochechas.
Raphael Bordalo Pinheiro foi, digamos assim, o segundo caricaturista no
Brasil nos primórdios da nossa imprensa; o
primeiro foi o italiano Ângelo D´Agostini.
Contratado para trabalhar em “O
Mosquito”, durante cinco anos vai fustigar com suas caricaturas o modo de vida
deste lado de cá do Atlântico, sendo um
dos responsáveis pela entrada de José do
Patrocínio no jornalismo.
Inicialmente afável, bem recebido
pelo concorrente Agostini através de desenhos estampados na Revista Ilustrada, saudando sua chegada, vai, mais tarde, entrar
em conflito com o italiano que não o
perdoava pelo fato de exercer, além da
caricatura, sua atividade de importador e
ensacador de carnes, lingüiças, pra falar
mais claro.
Isso lhe valeu uma guerra aberta com
caricaturas nas revistas e jornais da época
em que ambos se acusavam das mais torpes baixezas morais e estéticas, e Bordalo
chegou a retratar o oponente como um
Pinócchio pendurado num varal.
A ilustração que mais me chamou
a atenção quando passeei pelos arredores da encantadora vila de Cascais, em
Portugal, foi a de dois coveiros (um deles é
a sua cara) conversando, enquanto enterram para sempre a tão falada liberdade de
imprensa.
Publicada em “O Antonio Maria”, em
outubro de 1881, esse fac-simile decora a
parede de meu estúdio e muito me ensina
sobre a atualidade do mestre Bordalo num
tema tão caro a nós todos, praticantes do
ofício de exercer nossa liberdade pela caricatura.
A liberdade de imprensa é constantemente ameaçada, seja pela ditadura das
baionetas ou dos seus interesses econômicos, mas, hoje em dia, principalmente pela
ditadura do “politicamente correto”.
Cabe a nós sepultá-la, porém, como
sabemos, não vamos perder a piada por
isso...
* Cartunista
249
HISTÓRIA DA HISTÓRIA
* SEBASTIÃO NERY
Folclore
Político
Andrada
Antonio Carlos Ribeiro de Andrada
Machado e Silva, um dos três heróicos
irmãos Andradas da Independência (os
outros eram José Bonifácio e Martim
Francisco) era o presidente da Assembléia
Geral Constituinte Legislativa do Império
do Brasil, instalada, em 3 de maio de
1823, onde hoje é o Palácio Tiradentes,
no Rio (sede da Assembléia Legislativa do
Estado).
Em 12 de novembro de 1823, com
a Constituinte reunida e ele presidindo,
Antonio Carlos viu o Imperador Dom
Pedro I chegar à frente das tropas e cercar
o edifício. Preso, pegou o chapéu e saiu
com os dois irmãos, também constituintes,
e outros, todos presos.
Lá fora, vê o Imperador. Tira o chapéu e cumprimenta. Não o Imperador, mas
um canhão. E seguiu em frente.
(*) Jornalista
250
Alkmin
Na tribuna da Câmara, Carlos
Lacerda, líder da UDN, desancava o
governo de Juscelino. Alkmin, líder
do governo, levantou-se com um jornal
dobrado na mão:
“Deputado Carlos Lacerda, não era
isso que V. Excia escrevia no ano passado em seu jornal, a Tribuna da Imprensa,
sobre esse mesmo assunto”.
Lacerda perturbou-se, continuou,
mudou de tema. Quando desceu, pediu o
jornal a Alkmin.
Era O Globo.
Magalhães - I
tra. E planejaram a primeira jogada contra
Magalhães: eleger Baleeiro líder da bancada na Câmara.
Lacerda foi encarregado de ir conversar com Magalhães:
“Nosso candidato é o Aliomar”.
“Sou contra. O Aliomar é muito
talentoso, muito brilhante, mas não une o
partido”.
“Magalhães, é por isso que acusam
você de adesista. Você não quer um líder
combativo. Quer um acomodado e isso
não podemos aceitar”.
“Não se trata disso, Carlos. É que
tenho outro candidato”.
“Quem?”
“Você. Por que não? Você não tem
sido outra coisa na UDN senão líder. Meu
candidato é você”.
Lacerda saiu, Magalhães ficou rindo:
“Estou só pensando na cara do
Aliomar e do Adauto quando o Carlos
contar a conversa”.
Lacerda foi líder e Magalhães presidente.
Magalhães - II
Um dia, Lacerda atacou violentamente Magalhães pela TV. No dia seguinte, encontraram-se em um banheiro do
Congresso:
“Magalhães, fui muito agressivo com
você ontem, me desculpe”.
Magalhães Pinto tinha começado a armar sua candidatura à presidência da UDN. A “Banda de Música”
(Lacerda, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto,
Adauto Cardoso, Oscar Correa) era con-
“Nada disso, Carlos. Não aceito essas
desculpas. Você me ataca pela TV e pede
desculpas no mictório? Volta à TV e peça
desculpas lá. Atacou na TV, conserte na
TV”.
Lacerda pediu desculpas na TV.
251
HISTÓRIA DA HISTÓRIA
Pedro Aleixo
José Aparecido de Oliveira e eu conversávamos com Pedro Aleixo, já doente,
alquebrado, em um hotel do Rio, sobre os
sortilégios da política:
“Doutor Pedro, o senhor era presidente da Câmara dos Deputados aos 34
anos, Getúlio fechou o Congresso em 37.
Depois, o senhor era vice-presidente de
Costa e Silva, em 69, ele teve derrame, o
senhor foi impedido de assumir”.
“Responderei, senhor presidente, de
acordo com o regimento. Deputado, retirese de meu discurso!”
Lacerda - III
O deputado cearense Bonaparte, que
“Pois é, Aparecido, ninguém escolhe o lugar onde o raio cai. Ele caiu duas
vezes em cima de mim”.
Lacerda - I
Quando tentaram cassar o mandato de Carlos Lacerda, no governo de
Juscelino, por ter divulgado um telegrama
cifrado do Itamaraty, ele falou doze horas
seguidas na Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara. E contou:
“Não era permitido falar tanto
tempo. Mas, o presidente da Comissão
era o baiano Oliveira Brito, do PSD.
Arranjei um funcionário da Câmara que,
de vez em quando, com o pretexto de
trazer água, dissolvia umas bolinhas para
ele ficar tranqüilo, meio sonolento. E ele,
sonolento, não via o tempo passar e eu
continuava lendo e falando”.
Lacerda - II
Eloy Dutra elegeu-se deputado do
PTB da Guanabara combatendo Lacerda.
Na primeira sessão, Lacerda na tribuna,
Eloi pede um aparte, Lacerda concede,
ouve em silêncio, vai em frente:
tomou posse de smoking, ficou uma fera
porque Lacerda falou em “cearenses contrabandistas”:
“Continuando a parte séria de meu
discurso...”
“Deputado Bonaparte, eu não disse
que os cearenses são contrabandistas. Eu
disse que há cearenses que fazem contrabando. Entre os quais, data venia, incluo V.
Excia.”
Eloy protestou, o presidente Ranieri
Mazzilli lembrou a Lacerda que, pelo regimento, ele devia responder. Respondeu:
252
“Deputado Carlos Lacerda, a bancada do Ceará protesta!”
SEBASTIÃO NERY
Lacerda - IV
Mangabeira
Clemes Sampaio, do PTB da Bahia,
estava na tribuna:
“Segundo Adam Smith, a lei do mercado...”
Lacerda pediu um aparte:
“V. Excia cometeu um equívoco. A
tese da lei do mercado não é de Adam
Smith, mas do famoso economista inglês
Window.”
“Ilustre líder Carlos Lacerda, agradeço a contribuição de V. Excia a meu
discurso.”
“Senhor deputado, Window não é
economista inglês nem de país nenhum.
Window é apenas janela em inglês.”
Clemes se perdeu todo.
Nereu
Nereu Ramos, de Santa Catarina,
presidente e patriarca do Congresso, sábio
de antiqüíssimas lições, um Magalhães
Pinto ainda mais feio, só usava borboleta.
E só ele as usava, em todo o Congresso.
Um dia, chega de Minas, carregado
de votos e de literaturas, o deputado Mário
Palmério. E de gravata-borboleta. Nereu
convidou-o para ir ao gabinete:
“Deputado, o senhor usa gravataborboleta? Gosta mesmo de usá-las?”
“Gosto muito, presidente.”
“Então tome esta caixa. São minhas
gravatas - borboleta. Ou só eu uso ou não
uso.”
Não houve jeito de Palmério consertar a situção, deixando de usar. Nereu não
concordou. Nunca mais usou gravata-borboleta. Ou só ele ou nada.
Mangabeira estava na tribuna da
Câmara, pedem-lhe um aparte.
“Meu filho, seu nome?”
“Fernado Ferrari, líder da bancada
do PTB.”
“Pobre país de líderes mal saídos das
fraldas.”
Tenório - I
Tenório Cavalcanti, da UDN do Rio,
valente e ágil, falava na Câmara:
“O Brasil precisa cultuar seus heróis,
como João Fernandes Vieira, morto na
Guerra do Paraguai.”
Geraldo Mello Mourão aparteia:
“Deputado, há um engano. João
Fernandes Vieira é herói da guerra contra
os holandeses. Não esteve na guerra do
Paraguai.”
“Esteve em espírito, deputado.”
Tenório - II
Na tribuna da Câmara, que Tenório
citou Rui Barbosa. Luís Viana aparteou:
253
HISTÓRIA DA HISTÓRIA
“Deputado, escrevi a biografia de
Rui, li toda a sua obra e não me lembro
disso a que V. Excia está se referindo.”
“Ora, deputado Luís Viana. O conselheiro Rui Barbosa conversava muito.”
Zezinho
A Câmara tinha três Jorge Curi: Jorge
Curi, da UDN do Paraná; Jorge Said Curi,
do PTB do Estado do Rio e Athiê Jorge
Curi, do PDC de São Paulo. Uma confusão
permanente. Jorge Curi do Paraná fez uma
questão de ordem:
“Senhor Presidente, quem deve usar
o nome Jorge Curi?”
José Bonifácio, o Zezinho Bonifácio,
sorriu lá de cima:
“Ora, deputado, não fique preocupado. Cada estado tem o Jorge Curi que
merece.”
Último
aparteava ou esperava Benedito. Foi chamar o líder na sala do cafezinho:
“Benedito, o Juracy está arrastando o
governo.”
“Está bem, está bem.”
“Está atacando pessoalmente o
Presidente.”
“Está bem, está bem.”
“Até palmas já houve para ele. Você
não pode ficar aqui, Benedito. Você é o
líder, tem que ir apartear o Juracy.”
“Ô Cunha Melo, me diz uma coisa.
Quem é que sabe quando eu devo falar?
Sou eu ou o Juracy?” Juracy falou, acabou,
o assunto também. E Benedito, no cafezinho.
Benedito - II
Benedito ia entrando no Congresso,
passava o quase deputado Clovis Stenzel,
cumprimentou-o. Benedito pergunta a um
jornalista:
Oscar Correia, bravo deputado da
UDN de Minas, debatia na Câmara com
Último de Carvalho, do PSD de Minas,
manhoso e sábio. Oscar Correia pedia
definições, Último enrolava. Oscar ficou
irritado:
“É o Clovis Stenzel, suplente do Rio
Grande do Sul.”
“V. Excia não se define nunca. Fica
dando uma no cravo e outra na ferradura.”
Benedito - III
“Também pudera! V. Excia não fica
com o pé quieto!”
Benedito - I
Juracy Magalhães, líder da UDN,
também da tribuna, atacava o governo
de Juscelino. Benedito Valadares, líder do
PSD, fora do plenário. Cinha Melo, do
Amazonas, vice-líder do PSD, não sabia se
“Quem é aquele?”
“Ih, tenho pavor de suplente!”
E saiu ligeiro.
Benedito estava no Congresso,
já em adiantado estado de esclerose,
entra Leandro Maciel, de Sergipe,
cumprimenta-o:
“Bom dia, Benedito!”
“Bom dia!”
Leandro saiu, Benedito ficou olhando:
“Quem é aquele índio?”
Leandro tinha mesmo cara de índio.
*As ilustrações que constam nesta sessão (Folclore Político) foram retirados com a devida autorização do
autor do livro, Sebastião Nery - Folclore Político / 1950 – Histórias, e são de autoria dos Chargistas: Henfil,
Nassara, Lan, Fafs e Osvaldo Pavanelli.
254
SEBASTIÃO NERY
Leituras
Alca: O Gigante e os Anões.
Tullo Vigevanii e Marcelo Passino Mariano
SP - Editora SENAC/2003
Por Paulo Roberto Almeida
255
LEITURAS
* PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
A Alca do Gigante e a Alca dos
Anões: Incompatibilidade de
Gênios
A Alca, pelo menos no Brasil, parece
ter-se convertido numa espécie de “rogue
concept”, ou seja, no vilão do momento. De
fato, esse mero projeto se apresenta como
uma perspectiva temida (para alguns, ele
já seria uma realidade), ao mesmo tempo
* Diplomata
256
em que como um destino recusado, e isso
pelas mais variadas correntes de opinião,
englobando profissionais do antiimperialismo e bispos da CNBB, políticos autoproclamados nacionalistas e industriais
protecionistas, sindicalistas tradicionais e
ecologistas pós-modernos.
Mesmo economistas, usualmente
tidos como ponderados, têm recorrido a
conceitos como “dominação hegemônica”,
“assimetria de poder”, “desmantelamento
industrial”, que não costumam freqüentar
seu discurso, normalmente circunspecto.
Não se passa, aliás, uma semana, sem
que algum artigo vitriólico, descrevendo
o saco de maldades embutido no futuro acordo hemisférico, seja publicado
em algum jornal de circulação nacional,
aproveitando, o autor, para cobrar do partido atualmente majoritário (e no poder)
as dubiedades ou hesitações em relação
a esse antigo projeto de “anexação” da
economia brasileira ao território de caça
do novo império.
Com tal exibição de paixões econômicas e de fúrias políticas, fica difícil
manter um debate racional sobre a mais
importante proposta de integração continental desde a primeira conferência internacional americana, realizada na capital
do (então nascente) império, em 18891890. No entanto, esse mesmo caráter
controverso indica que estamos necessitando de bons estudos e de pesquisas
rigorosas, como forma de devolver um
certo equilíbrio a esse debate, que não
pode, obviamente, ficar entregue a “partipris” redutores ou simplismos ideológicos,
obscurecendo uma avaliação ponderada
sobre a importância da Alca e seu possível papel no futuro das relações hemisféricas e para o próprio processo brasileiro
de inserção econômica internacional (que
não pode ser confundido como um itinerário para o desenvolvimento, o que a
Alca não pode fazer sozinha).
O livro de Vigevani e de Mariano
vem justamente preencher essa função
de ampliação (racional) e de balizamento
(conceitual) desse importante debate para
o Brasil e o Mercosul, e que vinha sendo
impossibilitado pelo festival de superficialismo até aqui disponível para o grande
público. Como apresentação sistemática
da estrutura e das etapas seguidas até aqui
pelo processo da Alca e como discussão dos problemas enfrentados pelas três
dezenas de “anões” em face do gigante
hemisférico, o livro cumpre amplamente
esse papel didático-analítico, dispondo
de inegáveis méritos recapitulativos, ademais de uma rara capacidade (para os
padrões do debate intelectual no Brasil)
de colocar, no tocante à questão da Alca,
senão todas as respostas que poderiam
esperar seus leitores, pelo menos todas
as perguntas pertinentes que podem ser
feitas em relação a esse objeto. A despeito
de uma concentração na ciência política, em contraposição ao que seria uma
exposição basicamente econômica, cabe
desde já descrever o livro e louvar-lhe as
qualidades enquanto primeiro exemplo
de avaliação abrangente do “problema”
da Alca no e para o Brasil.
Trata-se de obra relativamente
modesta (150 páginas de texto, em formato reduzido) para a complexidade da
tarefa, mas que atende à finalidade de
apresentar o que é o projeto da Alca e de
introduzir a questão de como ela poderia impactar o Brasil e o Mercosul. Após
um capítulo introdutório (“Esclarecendo
dúvidas”), essencialmente conceitual, o
livro se compõe de três grandes capítulos
substantivos, cujos títulos são auto-explicativos: “Origem e desenvolvimento da
Alca”, “Por que ‘o gigante e os anões’?”
e “O Brasil e suas opções”. Um capítulo
conclusivo retoma as principais questões
257
LEITURAS
abordadas ao longo do texto, completando-se o livro com uma cronologia,
um glossário de siglas e de organizações
internacionais e regionais, bem como por
uma relação de fontes adicionais de consulta na internet e uma bibliografia não
exaustiva.
O
tom
geral do discurso é razoavelmente crítico em
relação à Alca,
como são, em
geral, as poucas
ilustrações selecionadas provavelmente pelo
editor: três cartoons típicos do
jornalismo brasileiro (nos temas
clássicos da cobiça imperialista e
das desigualdades de riqueza
e poder entre o
Norte e o Sul) e
uma foto de uma grande “Marcha contra
a Alca” (na qual figuram vários expoentes
do atual governo). Não se poderia mesmo
esperar ilustrações e fotos favoráveis à
Alca, ou, em geral, manifestações a favor
do livre-comércio, pois essa seria uma
realidade impossível em qualquer país do
mundo atual, no qual há uma quase unanimidade da opinião pública contrária à
liberalização comercial, ao mesmo tempo
em que os governos tentam, por vezes de
forma discreta e desajeitada, privatizar
alguns mamutes, abrir a economia e atrair
investimentos estrangeiros.
258
Não deve causar espanto, assim,
o fato de que a maior parte das análises
relativas à Alca apresentem, invariavelmente, essa visão crítica do processo,
como aliás revelado no próprio subtítulo
do livro: “anões”. Por que exatamente um
julgamento severo, de maneira preventiva,
contra a Alca,
com base na
desigualdade de
base dos parceiros envolvidos, ao mesmo
tempo em que,
também invariavelmente, esses
opositores julgam de modo
muito benigno
(e de forma algo
míope, eu poderia acrescentar)
o mesmo projeto de livrecomércio em
curso de negociação entre o
Mercosul e a
UE? Por acaso, as chamadas “assimetrias
estruturais” são menos relevantes neste
caso, quando a UE ostenta aproximadamente o mesmo gigantismo em termos de
PIB e de comércio exterior que os EUA,
sendo aliás muito menos atraente dos
pontos de vista da composição do intercâmbio e do protecionismo e do subvencionismo revoltantes na área agrícola?
A despeito dessa característica
comum à maior parte das análises relativas à Alca conduzidas no Brasil, o livro
de Vigevani e Mariano constitui, até aqui,
a mais completa exposição do processo
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
negociador hemisférico, desde suas origens até as recentes tomadas de posição
do novo governo brasileiro. Nele se dispõe
de uma recapitulação cuidadosa de todos
os encontros mantidos a partir da reunião
de cúpula de Miami, em 1994, quando
foi lançada a idéia de um acordo de livrecomércio hemisférico para ser
implementado
a partir de 2005
(são examinados
inclusive
os precedentes,
sob a forma da
“Iniciativa para
as Américas”,
lançada
em
1990 por Bush
pai, e que conduziria ao acordo do Nafta,
tão vilipendiado quanto está
sendo hoje sua
extensão continental).
Trata-se, portanto, em primeiro lugar,
de uma referência útil a todos aqueles
que necessitam ou desejam saber de onde
veio e como caminhou, até aqui, esse problemático processo de integração (à falta
de se poder dizer, com precisão, o que
acontecerá com ele na fatídica data de
2005). O conceito de integração é, aliás,
definido no primeiro capítulo
como um meio
de se alcançar
objetivos considerados estratégicos e que não
seriam atingidos
isoladame n t e .
Os
governos
podem utilizarse desse método
para minimizar
riscos ou produzir aumento de
ganhos econômicos.
De fato, o
capítulo sobre “Origem e desenvolvimento da Alca” apresenta um relato fatual,
honesto e objetivo (às vezes transcrevendo até o aborrecido da linguagem oficial
dos comunicados presidenciais, ademais
da estrutura negocial em cada etapa),
de cada um dos encontros de cúpula e
ministeriais ocorridos desde 1994. Não se
descarta, outrossim, a visão crítica, já que
o pressuposto das “bondades” do livrecomércio está sempre sendo confrontado
às suas limitações objetivas em termos
de desenvolvimento econômico e social
para todos.
Para
os
EUA, segundo o livro (p. 14), a proposta
da Alca está a meio caminho da busca de
“desenvolvimento econômico” – o que
pode parecer incongruente, na medida
em que não há, propriamente, referência
mais avançada de desenvolvimento do
que o próprio país – e do fortalecimento
de seu “papel hegemônico”, segundo
a “lógica da globalização” (o que sem
dúvida corresponde à visão que se tem
externamente dos “objetivos estratégicos”
dos EUA). Para outros, numa estratégia
mais defensiva, como por exemplo ou do
novo presidente brasileiro, o reforço do
259
LEITURAS
Mercosul deve servir para “uma negociação soberana diante da proposta da Alca”
(p. 15), o que também está conforme a
visão que se costuma ter, no Brasil, dos
desafios do projeto hemisférico para uma
economia percebida como frágil e despreparada.
Essa dupla
visão é, aliás,
confirmada em
diversas passagens do capítulo
“Origem e desenvolvimento da
Alca”, de resto
mais expositivo
do que propriamente discussivo. As razões
que impulsionaram os EUA a
propor esse projeto teriam sido
a necessidade
de preservar sua
“supremacia
econômica que
parecia ameaçada pelo avanço de alemães e japoneses”
e o desejo de impulsionar a “globalização
dos mercados” (p. 22). Como reação a
essa ofensiva, os autores acreditam que os
governos do Brasil e da Argentina decidiram aprofundar e acelerar o processo de
integração bilateral começado nos anos
1980 e que receberia, a partir de 1991, o
formato quadrilateral do Mercosul, apresentado como uma escolha de suas elites
políticas e econômicas. Os autores evidenciam a nítida relutância do governo
e das lideranças políticas brasileiras em
relação ao projeto da Alca, com base no
260
fato, obviamente manifesto, de que a conveniência de se criar, ou não, uma área de
livre-comércio hemisférica “nunca chegou a ser objeto de debate nacional significativo” (p. 43).
Aqui parece residir a questão básica
que angustia a maior parte dos observadores isentos, ou
pretensamente
imparciais, em
relação à Alca:
não se sabe, de
fato, se ela será,
ou não, boa
para o Brasil,
dada a ausência
de debates adequados e, mais
ainda, de estudos satisfatórios.
Existem, obviamente, aqueles
que respondem
de
imediato
pela negativa, e
até se permitem
fazer plebiscitos
com perguntas
manifestamente capciosas (como as que
vinculam a existência da Alca a uma ameaça à soberania nacional), assim como
existem aqueles (poucos) que respondem
positivamente, com base numa simples
constatação de que uma maior exposição
ao comércio internacional melhorará os
índices de competitividade da economia
brasileira, além de ampliar o acesso ao
maior mercado do planeta. Não se pode
dizer que o livro tenha respondido claramente a essa questão – o que seria de
todo modo impossível de se fazer em
bases puramente hipotéticas, pois que
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
tudo depende da Alca que se logre formalizar – mas ele abre, pelo menos, algumas
avenidas de discussão sobre o assunto
(como na discussão sobre as condições
de acesso a mercados e, mais importante,
sobre as normas regulatórias desse acesso).
O
capítulo principal,
entretanto, vem
já marcado por
uma certa predisposição negativa ao referirem-se, os autores, ao “gigante”
(apenas os EUA)
e aos “anões”
(todos
os
demais), quando
isso não parece
tão claro a partir
de uma análise
desagregada das
várias interfaces
da integração.
Se colocarmos
lado a lado o PIB individual (e nominal)
de cada um desses atores, parece claro
que as discrepâncias são incomensuráveis
e talvez mesmo insuperáveis. Diferenças
de tamanho, porém, nunca aboliram, ao
que se sabe, o princípio das vantagens
comparativas, que continua tão válido
agora como nos tempos de David Ricardo,
podendo, se tanto, produzir ganhos de
escala que nunca são absolutos em vista
de outras variáveis envolvidas na escala de
competitividade.
De resto, o tão alardeado gigantismo
das “megacorporações norte-americanas”
– argumento, aliás, muito pouco utilizado
em relação às “megaempresas européias”
– não parece sustentar-se em várias áreas
de nítida competitividade brasileira (não
apenas nas áreas labor-intensive, diga-se
de passagem), com base em tecnologias
tão ou mais avançadas do que aquelas existentes nos EUA – em siderurgia
ou agribusiness,
por
exemplo
– ou em muitos
outros terrenos
nos quais podem
ser mobilizados
nossos imensos
recursos naturais, os preços
menores
de
vários insumos
(terra, energia,
mão-de-obra) ou
a própria inovação e engenhosidade brasileira
(apesar de haver
muito
pouca
confiança em
nossas virtudes).
Se não fosse assim, por que exatamente os lobbies no Congresso americano
foram tão ativos e se apressaram em colocar limites ou várias condicionalidades no
mandato que aprovou a capacidade negociadora do Executivo para a atual rodada
de acordos comerciais? Se a assimetria é
tão brutal, como explicar esses surtos de
protecionismo setorial que, de resto, se
exercem com igual acuidade no caso da
Europa e de outros parceiros da OMC?
Com apenas 1% do comércio internacional (e algo equivalente nas importações
totais dos EUA), o Brasil pode não ser
um global player, como alardeado de
261
LEITURAS
forma permanente por nossos negociadores, mas certamente não é o “anão” que
se pretende mostrar em termos de poder
de barganha e de vantagens competitivas.
No frigir dos ovos, inclusive, nosso poder
negociador é bem maior do que a mera
expressão do nosso PIB, quando confrontado ao do gigante.
Questão de
tamanho à parte,
o cerne da discussão neste capítulo
refere-se às diferenças de condições econômicas
entre os parceiros
da Alca, problema
que tende a ser
respondido pelos
autores mediante
a invocação das
sérias dificuldades ocorridas nos
países latino-americanos nas duas
últimas
décadas, em especial
daqueles que teriam aberto suas economias e seguido o receituário neoliberal.
A liberalização eventualmente patrocinada pela Alca tenderia a acentuar, nessa
visão, essas dificuldades, em especial em
termos de desigualdades e precarização
das condições de trabalho (p. 88). Ora,
não é certo que a liberalização comercial
agrave as condições macroeconômicas
de um país, como o provaria o caso do
Chile, um dos países mais assumidamente
neoliberais e, ao mesmo tempo, detentor
de uma das maiores taxas de crescimento
com estabilidade da região.
262
Os autores também retomam, no
debate de uma Alca “ideal”, alguns dos
temas caros ao governo brasileiro, anterior e sobretudo atual no que concerne,
por exemplo, à transferência (presumidamente induzida) de tecnologia ou à
existência de mecanismos compensatórios das desigualdades estruturais. Nesse
último aspecto,
existe a tendência a se invocar o
exemplo europeu
e seus alegados
fundos corretores
de desvantagens,
e se pretende que
os EUA assumam
esse papel de dispensador líquido
de recursos, de
know-how e de
benesses para os
mais pobres, de
modo geral (entre
os quais supostamente se incluiria o Brasil).
Na verdade, os autores reconhecem que diferenças entre países “não são
obstáculos intransponíveis para a constituição de blocos econômicos” (p. 98),
mas voltam a dizer, no capítulo sobre “O
Brasil e suas opções”, que “deixado livre,
o mercado rege-se de acordo com suas
próprias motivações, não tende necessariamente a equilibrar benefícios, pode
manter ou aumentar as assimetrias e pode
levar ao acúmulo de poder nas mãos dos
que já o detêm” (p. 120). A recomendação, portanto, seria uma acumulação
preliminar de capacitação tecnológica e
econômica, se possível “no sentido de
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
atribuir ao Estado a capacidade de promover o desenvolvimento” (idem). Tratase da velha tese, conhecida em nossa
história, que recomenda que, em face de
um desafio, postergue o quanto puder a
solução do problema – abolição do tráfico, eliminação da escravidão, por exemplo – até conseguir juntar forças
para enfrentar
o valentão da
escola.
E s t o u
obviamente
exagerando na
caracterização
do que seria uma
posição atentista ou meramente postergadora
defendida por
certos
países,
mas é o que
julgo perceber
na seguinte passagem em que
os autores apresentam a doutrina do
livre-comércio de David Ricardo: “Essa
lei (sic) seria verdadeira se a alocação
dos fatores se desse num quadro de condições semelhantes. Quando esse quadro
de referência básico não existe, para que
o livre-comércio produza resultados satisfatórios para todos os países interessados,
são necessárias medidas não de mercado,
mas que viabilizem previamente um nível
mínimo de igualdade de condições, ainda
que a longo prazo” (p.127).
Ora, a experiência histórica ensina
que a “lei” funciona justamente porque as
condições são diferentes e, se se pretendesse uma igualdade prévia entre os par-
ceiros, nunca ocorreria intercâmbio. Não
se compreende aliás, como e em que uma
integração com a UE seria mais vantajosa,
dadas a existência das mesmas assimetrias
estruturais e uma composição dos fluxos
de comércio ainda menos diversificada
do que aquela incidente no plano hemisférico.
Não
se
pode
obviamente deixar de
reconhecer as
fortes assimetrias
existentes ou as
fragilidades latino-americanas,
mas considerar,
como fazem os
autores, que “A
eventual debilidade da posição brasileira,
assim como da
de outros países
latino-americanos, reside na
fragilidade das políticas estatais” (p. 136),
significaria admitir que apenas depois de
muito planejamento indicativo, de fortes
investimentos estatais e de “políticas corretivas” esses países estariam prontos para
enfrentar um projeto como o da Alca. A
mesma visão, segundo a agenda brasileira
descrita pelos autores, que tende a pedir
“metas de ajuste nos setores mais sensíveis; negociar políticas compensatórias;
e definir um ritmo mais lento para que
as modificações necessárias sejam implementadas” (p. 139), explica os medos
ancestrais brasileiros de ter de enfrentar
antes do tempo uma realidade que se crê
desconhecida e ameaçadora.
263
LEITURAS
A solução consiste, invariavelmente,
em apontar para a falta de um “projeto
nacional” e em recomendar assim que o
Estado, devidamente dotado de “planejamento estratégico”, assuma o papel condutor no fortalecimento da capacidade
negociadora externa. Nem adianta, nessas
circunstâncias, invocar uma bela frase do
tipo “o Mercosul é destino e a Alca uma
mera opção”, pois as invocações impressionísticas não resolvem alguns dos problemas básicos do Brasil: a falta de confiança
em sua própria capacidade negociadora
e a decisão de, por uma vez, enfrentar a
realidade, em lugar de ficar eternamente
postergando os embates.
O presente livro sobre a Alca e o
“anão brasileiro” não responde, como se
264
disse, a todos os problemas colocados
ao Brasil e ao Mercosul nesse debate
relevante para o futuro do País e do
bloco sub-regional, mas ele permite
colocar, de maneira inteligente, todas as
perguntas pertinentes para que esse debate
possa ser feito com o mínimo de teologia
e de ideologia, e com o máximo de
racionalidade e de refinamento analítico.
Em ambiente bibliográfico extremamente
rarefeito sobre a questão, ele constitui uma
publicação doravante indispensável para
uma discussão bem informada sobre um
projeto que está praticamente batendo na
porta do futuro imediato.
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