Entrevista com Boaventura de Souza Santos A entrevista abaixo é o extrato de uma conversa com Boaventura de Souza Santos sobre a relação entre a democratização dos meios de produção de imagem e a ecologia dos saberes. 1 Revista PVP #01 PROJETO vidas PARALELAS Eu penso que a imagem tem um poder de comunicação universal, porque ultrapassa as diferenças da língua. Um dos grandes problemas que nós temos na ecologia dos saberes é que os saberes se expressam em diferentes línguas e em diferentes meios. Quando se expressa em línguas nós temos o grande problema da tradução lingüística mesmo; não é só a tradução intercultural, é a tradução lingüística. Isso porque ela é muito cara e de certa forma impossível, já que os tradutores profissionais não sabem a língua do povo, não a entendem, traduzem tudo de uma maneira burocrática. Daí que uma metodologia como a do Projeto Vidas Paralelas acaba sendo muito mais participativa, pois capta muito mais realidades e faz isso a partir da perspectiva dos que sofrem as injustiças do capitalismo, colonialismo e patriarcado. Portanto, são eles que de fato têm uma capacidade para trazer um outro olhar, “um mundo ao revés”, como dizia um grande intelectual indígena do século XVII. Eles nos permitem ver outras realidades. Há no entanto uma questão complicada, a da hegemonia e da contra-hegemonia ligada a produção de imagens, porque o audiovisual é um dos grandes instrumentos da hegemonia. Basta ver toda a industria mundial, e fundamentalmente a americana, de vídeo e de cinema. Os participantes do Projeto Vidas Paralelas produzem imagens, mas ao mesmo tempo eles passaram e passam certamente muitas horas a consumirem vídeos feitos por outros que estão a serviço dessa hegemonia. O momento da criação é portanto breve, ele é uma espécie de intervalo do consumo passivo. E isso certamente molda algumas das possibilidades. Em outras palavras, nem sequer podemos ter a certeza se quando um participante do projeto agarra na câmera sua visão da realidade já não esteja de início contaminada por uma visão hegemônica, o que certamente afeta os temas que ele vai selecionar. Ou seja, é preciso que cada um desaprenda o modo audiovisual hegemônico para abrir espaço para a sua própria criatividade, porque de outra forma se atua como um criador secundário, e portanto repetidor. A cultura do consumo é a cultura da repetição. Não se cria porque não está no script, não está no quadro. Portanto eu acho que sim, o elemento cria- tivo é fundamental, mas é um processo, digamos assim. À medida que se controla melhor os instrumentos e que se começa a ver os efeitos da criação, ou seja, à medida que os participantes vêm e se relacionam com as imagens criadas, eles começam a ser mais ousados, a ter mais perspectivas, tentar ângulos novos e retratar realidades que outros condenam. Portanto, para mim a criatividade tem dois aspectos fundamentais, tanto do ponto de vista epistemológico, quanto da ecologia dos saberes. Por um lado ela faz uma sociologia das ausências, ou seja, ela vai engendrar um lado muitas vezes invisível; são eles que conhecem porque são eles que vivem essa linha abissal que divide a sociedade legítima e oficial da sociedade invisível, oprimida, negada, etc, e os que vivem lá conhecem-na, é a sua sociedade. Eles podem ter e têm uma grande capacidade de fazer a sociologia das ausências, trazendo exatamente essas experiências. Por outro lado, eles fazem uma sociologia das emergências, porque eles amplificam simbolicamente o conteúdo daquilo que lhe foi negado, do que não foi visto e por vezes eles conseguem, através da articulação das imagens, das sequências, fazer amplificações simbólicas de significado. Pode ser um botequim, pode ser uma dança de candomblé, pode ser um terreiro de macumba, pode ser o que for, mas é exatamente a experiência que eles têm, que lhes permite trazer o seu mundo, fazendo-o emergir. 2 Revista PVP #01 PROJETO vidas PARALELAS