Rev. Assoc. Med. Bras. v.46 n.1 São Paulo jan./mar. 2000
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-42302000000100001
Artigo Original
Perfil clínico da Enterocolite por
Citomegalovírus (CMV) na síndrome da
imunodeficiência adquirida (Aids)
D.B. de Lima, O. Fernandes, V.R. Gomes, E.J. da Silva, P.R. A. de Pinho, D.D. de
Paiva
Departamento de Medicina Interna e de Patologia e Laboratórios - Faculdade de
Ciências Médicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
RESUMO
Múltiplos agentes estão envolvidos na etiopatogenia da diarréia em Aids. O exame
de fezes e a colonoscopia são elementos decisivos para o diagnóstico específico. A
enterocolite por CMV pode cursar com febre, emagrecimento, diarréia intermitente
e hematoquesia. Outros agentes causadores de diarréia podem ter o mesmo
espectro de apresentação.
OBJETIVO: Definir o perfil clínico da enterocolite por CMV em pacientes com Aids,
comparando os parâmetros clínicos, endoscópicos e de tempo de sobrevida entre
dois grupos com diarréia crônica, grupo A com CMV e grupo B sem CMV.
MÉTODOS: Foram acompanhados 48 pacientes com Aids e diarréia de duração
maior que 30 dias, sendo 27 do grupo A e 21 do grupo B. Os parâmetros analisados
foram idade, situação de risco, duração da diarréia, hematoquesia, intervalo de
tempo entre diagnóstico da infecção por HIV e início de diarréia, achados
endoscópicos e sobrevida. Foram realizados exames parasitológicos, culturas e
colonoscopia com biópsias. Foi utilizado o teste "t-student" para amostras não
pareadas e o teste Qui-Quadrado com correção de Yates para variáveis não
paramétricas. Foram construídas curvas de sobrevida pelo método descrito por
Kaplan-Meier e aplicado o teste de Mantel - Haenszel. Foi assumido como nível de
significância estatística o valor de P menor que 0.05.
RESULTADOS: O padrão endoscópico da infecção por CMV correspondeu a
ulcerações associadas a hemorragia de submucosa 14 (51.8%) P < 0.01. O tempo
de sobrevida do grupo B após o diagnóstico do HIV e após o diagnóstico específico
da diarréia foi maior que o do grupo A (0.005 > P > 0.001). Os outros parâmetros
estudados não mostraram significância estatística.
CONCLUSÕES: A presença de enterocolite por CMV em Aids é marcador de mau
prognóstico e menor sobrevida. Existe um padrão endoscópico sugestivo da
infecção por CMV.
UNITERMOS: Citomegalovírus. Diarréia. Aids.
INTRODUÇÃO
O envolvimento intestinal pelo Citomegalovírus (CMV) pode estar associado a
diarréia, síndrome disabsortiva, perfuração intestinal e sangramento digestivo. Já
em 1961 foi descrito um caso de doença colônica causada pelo CMV simulando
colite ulcerativa1. Novos casos de citomegalovirose colônica, acompanhados de
vultuoso sangramento digestivo, foram publicados por outros autores 2-7. Diarréia
refratária ao tratamento, em pacientes cuja biópsia intestinal mostrou ao exame
histopatológico a presença de inclusões citomegálicas, continua sendo motivo de
discussão8-15, bem como a evolução da enterocolite por CMV com perfuração
intestinal 16-19,30.
Alguns parâmetros clínicos e endoscópicos podem ser considerados de valor no
diagnóstico da enterocolite por CMV. A presença de dor abdominal tipo cólica,
intermitente e ocasionalmente contínua, a hematoquezia, a evolução com abdome
agudo devido a perfuração intestinal, como citados anteriormente, sugerem o
diagnóstico sobretudo em pacientes com imunodeficiência severa. Os achados
endoscópicos considerados característicos foram descritos como áreas focais ou
difusas de eritema, edema, erosões 20 e úlceras em mucosa colônica 14.
Desde 1985 acompanhamos pessoas infectadas pelo vírus da imunodeficiência
humana (HIV). Observamos que, entre as queixas digestivas, a diarréia é a mais
comum. Entre agosto de 1985 e dezembro de 1990 avaliamos 41 pacientes com
diarréia e conseguimos diagnosticar o agente etiológico em 73% dos casos após
seguir uma rotina de exames laboratoriais (cultura e exame parasitológico das
fezes) e colonoscopia14. Motivados por esta experiência inicial, decidimos traçar o
perfil clínico de apresentação da enterocolite por CMV, em um grupo de pacientes
com Aids, quando comparado com outros pacientes com Aids e diarréia atribuída a
outro agente etiológico que não o CMV.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
População estudada
Pacientes adultos, de ambos os sexos, com sorologia positiva para HIV confirmada
por três técnicas (Elisa, imunofluorescência e Western Blot), apresentando diarréia
com duração mínima de 30 dias, acompanhados no Serviço de Doenças Infecciosas
e Parasitárias do Hospital Universitário Pedro Ernesto no período de março de 1985
a outubro de 1992.
Modelo de observação
Os pacientes foram cadastrados segundo faixa etária, situação de risco que levou a
infecção por HIV, tempo de soropositividade para o HIV até a ocorrência da
diarréia, características da diarréia (duração e presença ou não de hematoquezia),
infecções oportunísticas associadas, infecções digestivas associadas e prognóstico.
Métodos laboratoriais empregados
Exame Parasitológico das Fezes
As amostras fecais de cada paciente foram examinadas pelo método de centrífugo flutuação no sulfato de zinco21, coloração pela hematoxilina - férrica para pesquisa
de formas trofozoíticas de E.histolytica em fezes liquefeitas 22,23, pesquisa de
helmintos pela técnica do esfregaço espesso 24, pesquisa de larvas de helmintos 25 e
coloração pela safranina-azul de metileno para evidenciação de coccídeos
entéricos26.
Coprocultura
As amostras fecais foram colocadas em GN-Broth (Difco), incubadas a 37ºC
durante 24 horas. Posteriormente foram semeadas em SS - Agar (BBL) e Cled agar
(Difco), para pesquisa de Salmonella sp. e Shigella sp. Para a pesquisa de
Campylobacter jejuni / coli a amostra foi diluída em salina e semeada em meio
Brucella Agar acrescido de 5% de sangue e campylofar (mistura de anfotericina,
polimixina, vancomicina, cefalotina e trimetoprim). A leitura foi feita a 48 H e 72 H
após incubação em microaerofilia a 42ºC 27.
Exames Endoscópicos
O preparo do cólon foi feito por via anterógrada com solução de manitol a 20%. De
acordo com a gravidade da doença, foi feita ou não a sedação com meperidina por
via endovenosa. Os aparelhos utilizados foram os fibrocolonoscópios da ACMI e
Olympus. Foram retirados 10 a 12 fragmentos de biópsia do íleo até o reto mesmo
de mucosa aparentemente normal.
Estudo histopatológico
O material de biópsia foi encaminhado para exame histopatológico em formol a
10%. As colorações utilizadas foram: hematoxilina-eosina (HE), Giemsa, Fite, Prata
metenamina de Grocott (GMS) e Gridley.
Análise estatística
Foi utilizado o teste Qui-Quadrado com correção de yates, quando necessário, e o
teste t-Student para amostras não pareadas.
Foram construídas curvas de sobrevida pelo método descrito por Kaplan-Meier,
utilizando para comparação das curvas o teste de Mantel-Haenszel 28.
Foi assumido o nível de significância (a) de 0,05.
RESULTADOS
População estudada
A amostra foi constituída por 48 pacientes (41 homens e 7 mulheres), distribuídos
em dois grupos (A,B):
Grupo A: (colite por CMV) constituído por 27 pacientes com média de idade 37,8 ±
10,5.
Grupo B: (sem colite por CMV) constituído por 21 pacientes com média de idade
39,5 ± 9.
Estudo comparativo entre os grupos A e B
Faixa etária
Não houve diferença estatisticamente significativa entre a média das idades dos
dois grupos (p=0,584) (Tabela 1)
Situação de Risco
Não houve diferença estatisticamente significativa entre a via de transmissão do
HIV (sexual ou sangüínea) nos dois grupos (p=0,912) (Tabela 2).
Tempo da soropositividade para o HIV até o início da diarréia
Não houve diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos (p=0,315).
Características da diarréia
Quanto ao período de duração do quadro diarréico, não houve diferença
estatiscamente significativa entre os dois grupos (p=0,115), o mesmo ocorrendo
com relação à presença da hematoquezia (p=0,240).
Infecções e/ou
associadas
neoplasias
oportunísticas
associadas
e
infecções digestivas
Quanto à ocorrência de infecções e/ou neoplasias oportunísticas associadas, não foi
observada diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos (p=0,760),
o mesmo ocorrendo com relação às infecções digestivas associadas (p=0,497)
(Tabelas 3 e 4).
Exames endoscópicos
Os laudos endoscópicos variaram de exame normal, à presença de eritema e
edema até a ocorrência de úlceras com hemorragia de submucosa e podem ser
observados na tabela 5.
Prognóstico
A curva de sobrevida dos Grupos A e B, após o diagnóstico da infecção pelo HIV,
pode ser observada no gráfico 1(t=10 GL=1 0,005>p>0,001). Houve diferença
estatística entre os dois grupos, sendo o tempo de sobrevida do grupo B (CMV N),
após o diagnóstico do HIV, maior do que o do grupo A (CMV P).
A curva de sobrevida dos Grupos A e B, após o diagnóstico da diarréia, pode ser
observada no gráfico 2 ( t=9,5 GL=1 0,005>p>0,001).
Houve diferença estatística entre os dois grupos, sendo o tempo de sobrevida do
grupo B (CMV N), após o diagnóstico da diarréia, maior que o do grupo A (CMV P).
DISCUSSÃO
A população estudada se mostrou bastante homogênea com relação a faixa etária,
situação de risco para infecção pelo HIV, infecções e/ou neoplasias oportunistas
associadas e infecções digestivas associadas. Quanto ao período de aparecimento
da queixa de diarréia em relação a soropositividade para o HIV, observamos que foi
o mesmo para ambos os grupos, pois há ocorrência no grupo B (não CMV) de
outras doenças diarréicas oportunistas e que também são marcadores clínicos de
imunodeficiência severa.
Observamos com nossos dados que a sobrevida das pessoas com colite por
citomegalovírus foi menor com relação ao outro grupo, considerando-se tanto o
período de tempo após o diagnóstico da soropositividade para HIV quanto o período
após o diagnóstico específico do CMV. Considera-se que a citomegalovirose ocorra
em pessoas com contagem de células CD4 abaixo de 50/mmc, o que significa
imunodeficiência severa, justificando uma sobrevida tão baixa. Podemos verificar
que (tabela 4) mesmo a presença de infecções digestivas no grupo B não foi capaz
de igualar as sobrevidas dos dois grupos.
O fato de não termos encontrado diferença no período de duração da diarréia nos
dois grupos já foi anteriormente relatado 29.
Com relação ao parâmetro presença ou não de hematoquezia, esperávamos
encontrar com maior relevância a presença da hemorragia no portador da colite por
CMV. O envolvimento intestinal pelo CMV pode causar sangramento por induzir à
formação de vasculite no local envolvido. No grupo sem CMV, os pacientes que
apresentaram hematoquezia tinham sarcoma de Kaposi, Shiguelose e colite
inespecífica. O que observamos é que os pacientes com colite por CMV
apresentaram sangramento intestinal mais abundante, merecendo algumas vezes
reposição volêmica.
Os achados endoscópicos de nossos pacientes com colite por CMV variaram de
mucosa normal a edema e eritema sem friabilidade, até a presença de úlceras de
aspecto variado com hemorragia de submucosa. Nossa experiência mostra que o
aspecto endoscópico da colite por CMV pode sugerir colite ulcerativa inespecífica ou
doença de Crohn. No mesmo grupo tivemos cinco complicações cirúrgicas (18,5%),
quatro delas em decorrência de perfuração intestinal e outra de enterorragia.
CONCLUSÕES
Não conseguimos traçar um perfil clínico de apresentação da enterocolite por
Citomegalovírus, levando em consideração os parâmetros duração da diarréia e
presença ou não de hematoquezia. As características clínicas de apresentação da
enterocolite por CMV não são distinguíveis das de outras causas comuns de diarréia
em pacientes com Aids. Observamos, isto sim, uma menor sobrevida destes
pacientes com relação àqueles que apresentavam diarréia de outra origem.
Independentemente da faixa etária ou situação de risco, do tempo de duração da
diarréia ou da hematoquezia, a rotina laboratorial completa deverá ser feita para
afastar a presença de outros agentes causadores de diarréia, complementada pelo
exame endoscópico quando necessário.
Ulcerações e hemorragia de submucosa foram achados endoscópicos importantes
para o diagnóstico de colite por CMV. A presença de eritema e de erosões em
picada de pulga não sugeriu colite por CMV.
SUMMARY
Clinical profile of Cytomegalovirus Colitis in AIDS
OBJECTIVE: To determine the clinical profile of CMV colitis in AIDS patients,
comparing clinical, endoscopic parameters and survival time between 2 groups of
AIDS patients having chronic diarrhea. Group A being CMV colitis and group B
without CMV colitis.
METHODS: 48 patients with diarrhea that lasted more than 30 days, being 27 in
Group A and 21 in Group B, were studied. Age, risk factors, interval time between
the diagnosis of HIV infection and the beginning of diarrhea, hematochesia, the
endoscopic findings and life table in both groups, were analysed. All of them were
diagnosed by stool culture and stools for ovum and parasites, along colonoscopy
with biopsies. The unpaired t test was used to assess statistical significance of
differences observed in the means of continuous and the chi-square with Yates
correction for non-parametric variables. The survival curves were assessed by the
Kaplan-Meier and the Mantel-Haenszel's tests. A P value of less than 0,05 was
considered to indicate statistical significance
.
RESULTS: The mucosal lesions associated with the CMV infection are tipically
ulcerative on a background of hemorrhagic erythema 14 (51,8%) p < 0,01. The life
table analysis disclosed shorter survival time in the CMV colitis group 0,005>
P>0,001.The others studied data did not achieve statistical significance.
CONCLUSIONS: AIDS patients with CMV colitis have a poorer long-term survival.
Among the colonoscopic findings, ulcerations with hemorrhagic background were
the most common lesions. [Rev Ass Med Bras 2000; 46(1): 1-6]
KEY WORDS: Cytomegalovirus. Diarrhea. AIDS.
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