32 ÁREA TEMÁTICA: Sociologia da Educação LITERACIA E DESIGUALDADES SOCIAIS EM PORTUGAL: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS DADOS DO PISA (2000-2009) CARVALHO, Helena Doutorada em Sociologia Instituto Universitário de Lisboa - Centro deInvestigação e Estudos de Sociologia [email protected] ÁVILA, Patrícia Doutorada em Sociologia, Instituto Universitário de Lisboa - Centro deInvestigação e Estudos de Sociologia [email protected] NICO, Magda Doutorada em Sociologia Instituto Universitário de Lisboa -Centro deInvestigação e Estudos de Sociologia [email protected] PACHECO, Pedro Mestre em Sociologia Instituto Universitário de Lisboa - Centro deInvestigação e Estudos de Sociologia [email protected] 2 de 15 Resumo Pretende-se com este artigo contribuir para o estudo da literacia em leitura dos jovens em Portugal, entre2000 e 2009, e da relação desta com a origem social dos alunos. Para o efeito, são usados os dados do PISA (Programme for International Student Assessment). Partindo da definição de resiliência adotada pelo PISA, são averiguadas as características dos alunos e das escolas que distinguem os alunos resilientes (alunos que apesar de terem origens sociais desfavorecidas atingem scores de literacia em leitura muito elevados), contribuindo assim para que estes consigam contrariar a relação tendencialmente linear entre origem social e nível de literacia. Abstract This paper aims to contribute to the study of the reading literacy skills of 15 year-old youths in Portugal between 2000 and 2009, and of the relation of these skills with the social origin and background of the students. For this purpose, data from the PISA(Programme for International Student Assessment) was used. Following the definition of resilient studentsadopted in PISA, the students and school related characteristics of theresilient students are analysed, in an attempt to pinpoint the variables capable of escaping the linear relation between social origin and literacy skills. Palavras-chave: Desigualdades sociais; Literacia; Resiliência; PISA; Portugal Keywords: Social Inequalities; Literacy; Resilience; PISA; Portugal PAP0747 3 de 15 4 de 15 1. Introdução Este artigo situa-se no âmbito da investigação sociológica sobre literacia em leitura dos jovens, em Portugal, na última década. Mais concretamente, a análise incide nos alunos com origens sociais desfavorecidas, procurando-se perceber os fatores que poderão contribuir para que uma parte destes alunos consiga alcançar elevados níveis de competências de literacia em leitura, contrariando, assim, os resultados que seriam “esperados”, atendendo à sua origem social. A robustez e a persistência da relação entre origens sociais e trajetórias individuais têm sido teórica e empiricamente corroboradas pela sociologia, em particular pela sociologia da educação. No entanto, fechar o debate científico, e eventualmente político, à referida robustez conduz a que sejam muitas vezes relegadas para segundo plano as “contra-tendências” (Costa e Lopes et al., 2010) de um alegado “destino social” (Bertaux, 1978), desvalorizando as estratégias, individuais ou coletivas, promotoras de mobilidade social. Discutir esta relação na arena das referidas “contra-tendências” não significa, contudo, necessariamente remetê-la para as correntes mais “individualistas” da sociologia (Beck, 1992; Giddens (2001 [1991]), onde ingenuamente se crê que a carga normativa das instituições e a intensidade dos efeitos da origem social têm vindo a ser prodigiosamente eliminadas das tomadas de decisão e dos rumos e destinos sociais. A realidade social é mais contida. Não devemos “pensar, ingenuamente, que tudo está em aberto para cada um deles [indivíduos], independentemente do ponto do espaço social de onde parte, nem pensar fatalmente que cada um já está no ponto do espaço social onde vai ficar o resto dos seus dias. Todos têm um campo de possibilidades, mais ou menos generoso” (Machado e Silva, 2009: 10). Daí o interesse em orientar a análise sociológica num sentido que lhe permita captar, o melhor possível, esse campo de possibilidades. Os grupos de indivíduos com outcomes inesperados, de natureza escolar ou de outra, tendem muitas vezes a ser negligenciados pela análise estatística, por serem considerados “eventos do acaso” que oferecem contributos nulos ou muito frágeis em modelos causais (Shananan e Porfeli, 2007). Assim, mesmo quando o conselho de autores como Becker (1994) é seguido, ou seja, o de levar a cabo uma ciência capaz de integrar o interesse pela “exceção”, ou pelo que contraria as grandes tendências, a estratégia metodológica seguida tende geralmente a seguir apenas o rumo qualitativo, centrando-se na análise de casos singulares. Não colocando em causa o interesse e a importância das análises sociológicas intensivas e qualitativas, este artigo procura seguir, pelo contrário, na direção do estudo quantitativo desses percursos “singulares”, focando a análise no conjunto dos alunos “resilientes”, isto é, nos alunos com percursos “inesperadamente” positivos (têm baixas origens sociais, mas conseguem alcançar elevadas performances em literacia). Em suma, pretende-sedarum contributo para o estudo sociológico de âmbito extensivo e quantitativo dos percursos de contra-tendência e para os debates em torno do triângulo “OED” (origem social, educação, destino social). Apresentam-se neste artigo os primeiros resultados de uma investigação em curso, apoiada nos dados recolhidos no âmbito do PISA (Programme for International Sudent Assessment) na última década e incidindo nos alunos portugueses de 15 anos. 2. Dados e Métodos 2.1. O PISA O PISA resulta de um esforço conjunto empreendido pelos países participantes – países membros da OCDE e mais de 30 países parceiros – para avaliar em que medida os alunos de 15 anos de idade estão preparados para enfrentar os desafios que se lhes deparam na vida futura. Foi desenhado e é coordenado pela OCDE que, desde a década de 80, tem vindo a preocupar-se com a elaboração e disponibilização de indicadores sobre educação que permitam comparações válidas entre países. Em 1997, a OCDE estabeleceu um programa de investigação desenhado especificamente para responder às necessidades existentes no que respeita a indicadores sobre o desempenho dos estudantes – o PISA. Esperava-se que os novos indicadores pudessem contribuir “para a compreensão da forma como os sistemas educativos (…) estão a preparar os seus estudantes para a aprendizagem ao longo da vida e para desempenharem papéis construtivos, como cidadãos, em sociedade” (OCDE, 1999: 7). 5 de 15 O PISA tem como principal objetivo medir competências, conhecimentos e atitudes em áreas consideradas chave ou fundamentais distinguindo-se, assim, das avaliações de âmbito escolar que cada país leva a cabo regulamente. O modelo proposto é orientado para a avaliação de competências e conhecimentos reconhecidos como sendo de importância transversal aos vários contextos nacionais e internacionalmente comparáveis (Harlen, 2001). Assim, o PISA caracteriza-se por assentar numa avaliação direta das competências e dos conhecimentos dos jovens de 15 anos em fase final da escolaridade obrigatória, num conjunto elevado de países. Recolhe igualmente informação sobre o contexto pessoal e social em que essas competências são adquiridas. Organizado em ciclos de análise trienais, o PISA permite obter informação sobre os conhecimentos e as competências dos alunos em três áreas fundamentais: leitura, matemática e ciências. Em cada um dos ciclos tem sido eleita uma área principal: em 2000, literacia em leitura; em 2003, literacia matemática; em 2006, literacia científica; e, em 2009, novamente literacia em leitura. A par desta informação, os instrumentos de recolha de informação utilizados no PISA incluem ainda diversos elementos sobre a escola, a família, as estratégias de estudo e de aprendizagem, os ambientes de aprendizagem e a familiaridade dos alunos com computadores. Tendo sido concebido pelos governos da OCDE, o PISA rapidamente se tornou um importante instrumento para muitos outros países e economias, desempenhando um papel crescente em várias regiões do mundo inteiro (OCDE, 2004). Os resultados, espelhados em indicadores “politicamente orientados e internacionalmente comparáveis” (Harlen, 2001),têm despoletado um vigoroso debate público acerca da qualidade dos sistemas educativos na maioria dos países participantes, colocando, desta forma, “a política educacional no centro das atenções” (Fuchs e Wößmann, 2007). Para além da inegável importância ao nível do desenho e da avaliação das políticas públicas educativas dos vários países participantes, o PISA, enquanto projeto de investigação, tem contribuído para o desenvolvimento da investigação científica na área da educação, propiciando aos investigadores o acesso a um amplo conjunto de dados, comparáveis entre países, e abrangendo um alargado leque de dimensões. 2.2. As Variáveis A origem social e a literacia em leitura são os dois principais constructos usados neste artigo. Enquanto construções conceptuais, incorporam uma bateria de opções teóricas e de procedimentos metodológicos e estatísticos, fundamentados teoricamente pela equipa do PISAe que aqui são apenas brevemente abordados. A origem social dos alunos é medida no PISA através do índice de Estatuto Socioeconómico e Cultural(ESCS). Baseando-se no índice internacional de estatuto socioeconómico de ocupação (ISEI) construído com base na Classificação Internacional de Profissões (International Standard Classification of Occupations–ISCO), a equipa do PISA combina três índices: o estatuto profissional mais elevado dos pais (HISEI), o nível de escolaridade mais elevado dos pais em anos (PARED) e a posse de bens em casa (HOMEPOS). Este último é um índice complexo que combina todos os itens pertencentes a índices de bemestar familiar (WEALTH), recursos educacionais (HEDRES) e recursos culturais da família (CULTPOSS), assim como o número de livros em casa. O resultado da combinação de todos estes índices é então um índice de Estatuto Socioeconómico e Cultural (ESCS), cujos valores se encontram estandardizados, ou seja, têm média e desvio-padrão, respetivamente, de 0 e 1. Quanto mais elevados os valores de ESCS mais elevado o estatuto socioeconómico e cultural dos jovens. Este índice permite uma base de comparação, estandardizada por referência à média da OCDE, entre os países participantes no PISA. A segunda dimensão refere-se à performance em literacia em leitura. A literacia em leitura é definida como a “capacidade do indivíduo para compreender, usar, refletir sobre e apropriar-se de textos escritos, de forma a alcançar os seus objetivos, desenvolver o próprio conhecimento e potencial e participar na sociedade (OCDE, 2009)” (GAVE, 2010: 6).Uma das características distintivas do PISA é o facto de os resultados apresentados em cada área serem muito mais do que meras pontuações obtidas num teste porque, consoante os resultados alcançados, a proficiência dos alunos é descrita, de forma minuciosa, possibilitando a compreensão, em termos de conteúdos, daquilo que os alunos são, ou não, capazes de realizar e atingir (OECD, 2010e). 6 de 15 2.3. A análise de dados Nesta fase da investigação, a análise realizada, do ponto de vista estatístico, foi de âmbito descritivo e bivariado. Tendo com suporte o mapeamento dos resultados da relação entre estatuto socioeconómico e desempenho em leitura na Europa foi construída uma tipologia de alunos que possibilita a identificação dos alunos “resilientes”. Essa tipologia foi sistematicamente relacionada com um conjunto de variáveis, umas de caracterização dos alunos (sexo, origem imigrante, recursos familiares, gosto pela leitura e estratégias de estudo) e outras de caracterização das escolas por estes frequentadas. 3. Resultados e discussão 3.1. Desempenho em leitura e estatuto socioeconómico: Portugal no contexto europeu A análise do nível médio do estatuto socioeconómico e cultural de um país permite situar Portugal entre os restantes países europeus participantes no PISA. É relevante começar por este mapeamento dado que o nível médio de literacia atingido por um país é necessariamente influenciado por características de nível macrossociológico ou económico como o PIB, a despesa com educação, o nível médio de desigualdade social do país ou o nível médio de escolaridade do país (OCDE, 2010a: 34-36), em suma, pelas dinâmicas de desigualdades sociais circunscritos às fronteiras nacionais. Estes fatores, bem como outros de ordem cultural, não devendo ser encarados como “fatalistas” (OCDE, 2010c: 13), não podem deixar de ser tidos em conta na interpretação dos resultados. Desde logo épossível verificar que Portugal se destaca como um dos países europeus com mais baixo nível médio de estatuto socioeconómico e cultural (eixo horizontal, Figura 1). Espanha é o país que mais se aproxima, nesta medida, de Portugal e os países do Norte e da Escandinávia são os que mais se afastam. Evidentemente que um olhar dirigido a estes valores a uma escala geográfica mais ampla leva a que a posição de Portugal seja menos extrema, como sucede aquando da análise da situação de Portugal em contexto dos países da OCDE participantes no PISA 2009 (Carvalho et al., 2011). A mesma figura permite situar os vários países combinando a origem social e o desempenho em leitura. A relação observada é tendencialmente linear e positiva, ou seja, de um modo geral, quanto mais elevados são os valores médios dos países no índice de estatuto socioeconómico, mais elevado tende a ser o posicionamento médio no desempenho em leitura. Ainda assim, a posição ocupada por Portugal dever ser destacada, uma vez que o país aparece relativamente “desalinhado” da tendência linear que configura a relação entre ESCS e desempenho em literacia nos vários países. Com efeito, apesar de, como foi referido, apresentar dos mais baixos níveis socioeconómicos e culturais entre os países europeus, Portugal regista, em 2009, desempenhos médios em leitura ao nível de países com níveis socioeconómicos e culturais dos mais elevados. Tal reflete um aumento relevante no desempenho dos alunos portugueses, especialmente nos alunos oriundos das categorias sociais mais baixas(Carvalho et al., 2011). Portugal aproxima-se, a este respeito, de Espanha e também da Polónia. 7 de 15 Figura 1: Relação entre estatuto socioeconómico e cultural e desempenho em leitura na Europa (2009) Fonte: PISA 2009 (UE) 3.1. Os alunos resilientes(em leitura) em Portugal (2000-2009) Alguns relatórios oficiais sobre os resultados do PISA, produzidos pela OCDE, têm-se mostrado persistentemente interessados em identificar os efeitos que certas características sociais, nomeadamente referentes à família de origem, têm na performance em literacia alcançada pelos jovens de 15 anos. Têm-no feito através sobretudo da identificação e da análise de características, dos alunos ou das escolas, que poderão permitir superar condições sociais de partida mais desfavorecidas (OCDE, 2010b, 2011). O melhor exemplo desta estratégia analítica é o conceito de “resiliência” adotado pela OCDE(com base nos dados de 2006)na análise da performance em ciências (OCDE, 2011).O título desse relatório, “Against the Odds: Disadvantaged Students Who Succeed in School” situa, desde logo, o carácter alegadamente excecional destes alunos pela forma como conseguem desviar-se da tendencial linearidade da relação entre origem social e performance em literacia. São usadas pela OCDE duas operacionalizações do conceito de resiliência, cujos critérios teóricos são apresentados com algum pormenor no anexo técnico ao mencionado relatório (OCDE, 2011): uma internacional, construída de forma a permitir a comparabilidade de percentagem e dos preditores dos alunos resilientes nos vários países, e outra de âmbito nacional. Apesar de teórica e estatisticamente explicitado, o resultado empírico dessas operacionalizações do conceito de resiliência não é disponibilizado na base de dados do PISA (acessível à comunidade cientifica). Assim, os resultados apresentados de seguida, para o caso português, sobre leitura e englobando os dados de 2009 e também os de 2000 (altura em que a investigação relativa aos alunos resilientes ainda não tinha sido iniciada pela OCDE) resultam de uma análise dos dados, específica, e inovadora, conduzida pelos autores deste trabalho. Para o efeito, foi desenvolvida a operacionalização proposta pela OCDE para o nível nacional de análise de resiliência (OCDE, 2011), a qual se ilustra na Figura 2. 8 de 15 Se a relação entre origem social e literacia em leitura fosse perfeitamente linear, todos os alunos se situariam nos grupos destacados na diagonal traçada na Figura 2. Porém, alguns alunos conseguem contrariar aquilo que as suas origens sociais fariam prever, uns superando pela positiva os resultados alcançados, outros ficando abaixo do que seria esperado. Assim, em conformidade com a definição avançada pela OCDE, os alunos resilientes caracterizam-se por se situarem no primeiro tertil (o mais baixo) da distribuição do estatuto socioeconómico e cultural do seu país e terem, simultaneamente, obtido resultados situados no terceiro tertil (o mais elevado),também no seu país. Com o objetivo de perceber os fatores que favorecem a existência de alunos considerados “resilientes”, estes serão, em seguida, comparados com os alunos que têm origens sociais igualmente baixas, mas resultados no desempenho em leitura no tertil mais baixo – denominados como “disadvantaged low achievers” (DLA) nos relatórios oficiais do PISA (OCDE, 2011)i, relativamente a um conjunto de variáveis. Figura 2: Alunos resilientes e “disadvantaged low achievers” (DLA) Sexo e origem imigrante Os primeiros resultados a destacar referem-se ao peso que os resilientes e os DLA detêm no total de alunos inquiridos. A proporção de alunos DLA é, como seria de esperar, superior à de resilientes, o que desde logo confirma a importância das origens sociais dos alunos na interpretação dos níveis de desempenho por estes alcançados. Entre 2000 e 2009, as percentagens mantiveram-se muito semelhantes: cerca de 6% dos alunos portugueses com estatuto socioeconómico e cultural situado no tertil mais baixo, atingem elevados scores em literacia em leitura; cerca do dobro desta percentagem dos alunos (aproximadamente 15%), tendo origens sociais equivalentes, atingem baixos resultados no PISA. 9 de 15 Figura 3: Percentagem de resilientes e DLA,em literacia em leitura, por sexo e por origem imigrante (Portugal, 2000 e 2009) Fonte: PISA 2009 (Portugal). A análise da composição social destes grupos permite perceber alguns dos fatores subjacentes às diferenças entre os alunos resilientes e os restantes grupos. A Figura 3ilustra, em primeiro lugar, a predominância do sexo feminino e dos autóctones entre os alunos resilientes, em 2000 e em 2009. A percentagem de alunos resilientes do sexo feminino (face ao total de alunos deste sexo) manteve-se estável neste intervalo de tempo, ao contrário do que sucedeu com outras categorias. Estas duas categorias sociais, sexo feminino e autóctones, parecem ser então as que mais conseguem superar condições de partida adversas, como ser oriundo de uma família com baixo estatuto socioeconómico e cultural (para os padrões do país). Os alunos do sexo masculino, e os de origem imigrante, pelo contrário, revelam maiores dificuldades em contrariar as condições sociais de partida. Refira-se, ainda, que esta tende a ser uma situação transversal aos vários países (OCDE, 2010c; Carvalho et al., 2011), Recursos familiares Embora os “resilientes” e os DLA tenham em comum o facto de se situarem no tertil mais baixo do índice ESCS, é importante perceber se apresentam diferenças relativamente aos DLA no que concerne a alguns dos elementos constituintes do ESCS. É o caso do índice de bem-estar familiar, de recursos culturais e de recursos educacionais. Coloca-se, assim, a hipótese de os alunos em análise, embora apresentando os mesmos níveis no índice de estatuto socioeconómico, poderem evidenciar diferenças face a alguns dos elementos constitutivos desse mesmo índice. Um primeiro aspeto a reter refere-se ao facto de se registar um salto quantitativo acentuado nos três índices, transversal aos grupos aqui considerados (resilientes, DLA e outros), entre 2000 e 2009. Em 2000, os resultados mostram que os resilientes apresentam, em média, valores mais elevados do que os DLA nos índices de recursos educacionais (ter um espaço de estudo em casa, ter um computador utilizável para objetivos escolares, software educacional, livros técnicos, dicionário, etc.), de recursos culturais (literatura clássica, livros de poesia, peças de arte, etc.) e de bem-estar da família (posse de equipamentos e espaços vários, como ter o seu quarto, ligação à internet, máquina de lavar, um leitor de DVD, telemóvel, 10 de 15 televisão, computador, etc.) . Em 2009mantêm-seas diferenças quanto aos recursos educacionais e culturais, mas esbatem-se as relativas ao índice de bem-estar. Figura 4: Índices de bem-estar familiar, recursos culturais e recursos educacionais por tipo de alunos (Portugal, 2000 e 2009) (média) Fonte: PISA 2009 (Portugal). Assim, entre os alunos com baixo nível socioeconómico, aqueles que conseguem alcançar níveis elevados de conhecimentos e competências em leitura (os resilientes), tendem a dispor, em termos médios, de níveis mais elevados de recursos educacionais e culturais no agregado doméstico. A presença desses recursos no contexto familiar e doméstico apresenta-se, deste modo, como um aspeto que parece favorecer a resiliência. Tal vem reforçar a necessidade de a análise sociológica dos fatores que condicionam os resultados dos alunos diferenciar, sempre que possível, o efeito dos tipos de capitais e recursos. Estratégias de estudo e leitura Outras variáveis consideradas remetem para as práticas e as estratégias de leitura e estudo / aprendizagem associadas aos diferentes grupos de alunos em análise. Como se pode observar através da Figura 5,os alunos resilientes diferem, uma vez mais, dos DLA apresentando níveis mais elevados em todos os índices, com exceção do relativo às estratégias de memorização. A relação entre as estratégias de memorização, alegadamente associadas a formas menos elaboradas, complexas e eficientes de reter informação, e a performance em leitura não é clara (OCDE, 2010f). Enquanto em alguns países essa relação é positiva, noutros é negativa ou nula. Em Portugal, esta correlação não é, de uma maneira geral, nem positiva nem negativa (OCDE, 2010f: 52). O recurso a estas estratégias é idêntico entre os três grupos de alunos considerados e sofreu um decréscimo entre 2000 e 2009. Não obstante, é de relevar que os alunos resilientes têm, face aos restantes alunos, menos tendência a recorrer a este tipo de estratégia. É de sublinhar também que esta é a estratégia a que os alunos resilientes menos, e cada vez menos (entre 2000 e 2009), recorrem. As estratégias de estudo a que os alunos resilientes mais recorrem são as de elaboração e de controlo. Estas últimas consistem em monitorizar o próprio processo de aprendizagem, avaliando, por exemplo, se o material lido foi compreendido. Os alunos resilientes apresentam, assim, estratégias de aprendizagem orientadas para a monitorização da própria aprendizagem e uma literacia prática e holística, associada ao quotidiano e a situações reais, ou a aspetos da vida que transcendem a aprendizagem formal dos conteúdos (representadas pelas estratégias de elaboração). 11 de 15 Figura 5: Índices de práticas de leitura e estratégias de aprendizagem/estudo por tipo de alunos (Portugal, 2000 e 2009) (média) Fonte: PISA 2009 (Portugal). Mas é no prazer declarado pelas atividades de leitura, em média bastante elevado, que os alunos resilientes mais se distinguem, especialmente dos DLA. Os alunos resilientes combinam, assim, valores médios elevados no prazer na leitura, em estratégias de elaboração e também em estratégias de controlo, enquanto estratégias de aprendizagem. Contexto escolar Uma dimensão de análise fundamental no estudo dos fatores que podem favorecer a resiliência, ou seja, a possibilidade de um aluno alcançar elevados níveis de desempenho não obstante as origens socias serem desfavorecidas, remete, necessariamente, para a escola enquanto contexto capaz, ou não, de inverter as tendências (fortes) de reprodução das desigualdades sociais de partida das famílias. Ou seja, para além de um leque alargado de variáveis que permitem caracterizar de forma aprofundada os alunos e as suas famílias, torna-se necessário incluir nos modelos de análise também a dimensão “escola” (OECD, 2010d). Dispor de variáveis que permitam caracterizar as escolas e que possam eventualmente contribuir para a compreensão do modo como o contexto escolar poderá potenciar a emergência de situações de resiliência ou mesmo de movimentos de “contra-tendência” (Costa e Lopes et al., 2000) é, sem dúvida, uma mais-valia inequívoca de estudos com as características do PISA. Três dos aspetos chave das características das escolas que o PISA permite medir são: a composição social da escola(ou seja, o estatuto socioeconómico e cultural médio da escola que o aluno frequenta), o clima escolar (segundo a perceção dos alunos) e os recursos educacionais (índice invertido da insuficiência de determinados equipamentos, segundo a perceção dos diretores das escolas).ii A Figura 6 ilustra, claramente, dois aspetos. Em primeiro lugar, revela que os recursos educacionais da escola e o clima escolar são, em termos médios, muito próximos nos três grupos de alunos considerados, sobretudo em 2009. Neste ano, a forma como os alunos percecionam o clima escolar surge com valores mais elevados (positivos) do que em 2000 e os recursos educacionais da escola são considerados, por sua vez, mais baixos. 12 de 15 Figura 6: Variáveis escolares (composição social, clima escolares e recursos educacionais) por tipo de alunos (Portugal, 2000 e 2009) (média) Fonte: PISA 2009 (Portugal). Em segundo lugar, e será esse o aspeto mais importante a reter, a composição social das escolas frequentadas pelos alunos classificados como resilientes difere nitidamente, nos dois anos em análise, da dos DLA. Assim, os alunos resilientes tendem a beneficiar, apesar das suas origens sociais mais desfavorecidas, de escolas compostas por um corpo discente com estatuto socioeconómico e cultural médio mais elevado do que os alunos DLA. Estes resultados parecem então indicar que escolas socialmente heterogéneas (com médias de ESCS relativamente elevadas, mas com presença de alunos nos níveis de ESCS mais baixos) poderão facilitar a resiliência e contrariar a reprodução social das desigualdades sociais de partida dos alunos, contribuindo para que a escola potencie o seu papel na promoção da igualdade de oportunidades. 4. Conclusões Partindo dos dados do PISA (2000 e 2009), e da definição de resiliência adotada pela OCDE no âmbito do mesmo programa, pretendeu-se, com este artigo, contribuir para o estudo das condições e fatores que podem levar a que os alunos oriundos de famílias com baixos níveis socioeconómicos consigam alcançar níveis de desempenho em leitura elevados, contrariando, assim, a tendência, transversal a todos os países, que associa a pertença a grupos socialmente desfavorecidos a reduzidos níveis de desempenho. Deste modo, definindo-se os alunos resilientes como sendo os jovens que, apesar da sua origem social desfavorecida (tertil menos elevado do país), atingem scores de literacia em leitura muito elevados (tertil mais elevado no país), procurou-se identificar quais as características que distinguem estes alunos, através da mobilização de um conjunto alargado de variáveis. Os resultados aqui apresentados permitem concluir que as variáveis que podem explicar a “fuga” a um determinado destino social são de vários níveis (teóricos e analíticos), incluindo o género, a origem imigrante, as características sociais da família, as práticas de leitura e as estratégias de estudo /aprendizagem, e ainda características associadas à escola que esses alunos frequentam. 13 de 15 Destacam-se, nesta conclusão dois elementos. Em primeiro lugar, confirma-se a necessidade de investigar os efeitos de diferentes capitais separadamente. Em Portugal, entre 2000 e 2009, verifica-se um aumento generalizado do índice de bem-estar familiar, do índice de recursos culturais e de recursos domésticos, mas é especialmente em relação a este último que os alunos resilientes e os alunos DLA mais se distinguem. Ter um local calmo e com secretária em casa para poder estudar, ter um computador disponível para uso escolar, ter livros e software educacional, para além de livros técnicos e dicionários completa um cenário que, entre alunos oriundos de famílias com origens desfavorecidas, pode fazer a diferença. Em segundo lugar, foram destacadas algumas características das escola sque parecem facilitar as dinâmicas de “resiliência”. O dado mais marcante desta análise diz respeito ao facto de a presença de alunos resilientes ser maior em escolas caracterizadas por um nível médio de ESCS mais elevado. Quer isto dizer que, alunos de origens sociais desfavorecidas, quando integrados em escolas com origens sociais, em média, mais elevadas, tendem a ter melhores resultados. Sistematizar as características dos alunos e das escolas, associadas à resiliência, poderá ajudar a definir com maior precisão áreas prioritárias de ação no sentido da promoção da igualdade de oportunidades sociais. O exercício analítico aqui apresentado constitui um primeiro passo numa investigação mais abrangente, em progresso, da relação entre origem social e literacia em leitura dos jovens, para a qual os dados do PISA oferecem um enorme potencial. 5. Bibliografia Beck, Ulrich (1992), Risk Society. Towards a New Modernity, London, Sage. Bertaux, Daniel (1978), Destinos pessoais e estrutura de classe, Lisboa, Morais Editores. Bourdieu, Pierre (1985), “The forms of social capital” in Richardson, J.G. (ed.). Handbook of theory and research for the sociology of education, New York, Greenwood. Carvalho, Helena (Coord.), Patrícia Ávila, Magda Nico, Pedro Pacheco (2011), As competências dos alunos: Resultados do PISA 2009 em Portugal, Relatório de Pesquisa CIES-IUL. Costa, António Firmino da e João Teixeira Lopes (Coord.) et al. 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