Conselho E ditorial Edições Eletrônicas Na Capitania de São Vicente Washington Luís Biblioteca Básica Classicos da Política Brasil 500 anos Memória Brasileira O Brasil Visto por Estrangeiros Para visualizar esta obra é necessário o acrobat reader 4.0. Se você nâo possui esta versão instalada em seu computador, clique aqui, para fazer o download. Sumário Trecho do fac-símile da primeira carta geográfica da Capitania de São Vicente (História do Brasil, Block Editores, 1972, Volume I) Página anterior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . NA CAPITANIA DE SÃO V ICENTE Mesa Diretora Biênio 2003/2004 Senador José Sarney Presidente Senador Paulo Paim 1º Vice-Presidente Senador Eduardo Siqueira Campos 2º Vice-Presidente Senador Romeu Tuma 1º Secretário Senador Alberto Silva 2º Secretário Senador Heráclito Fortes 3º Secretário Senador Sérgio Zambiasi 4º Secretário Suplentes de Secretário Senador João Alberto Sousa Senadora Serys Slhessarenko Senador Geraldo Mesquita Júnior Senador Marcelo Crivella Conselho Editorial Senador José Sarney Presidente Joaquim Campelo Marques Vice-Presidente Conselheiros Carlos Henrique Cardim João Almino Carlyle Coutinho Madruga Raimundo Pontes Cunha Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Edições do Senado Federal – Vol. 24 NA CAPITANIA DE SÃO VICENTE Washington Luís Brasília – 2004 EDIÇÕES DO SENADO FEDERAL Vol. 24 O Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997, buscará editar, sempre, obras de valor histórico e cultural e de importância relevante para a compreensão da história política, econômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país. Projeto gráfico: Achilles Milan Neto © Senado Federal, 2004 Congresso Nacional Praça dos Três Poderes s/nº – CEP 70165-900 – Brasília – DF [email protected] Http://www.senado.gov.br/web/conselho/conselho.htm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Luís, Washington, 1870-1957. Na capitania de São Vicente / Washington Luís. -Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. 410 p. -- (Edições do Senado Federal ; v. 24) 1. Capitanias hereditárias (1534-1762). 2. São Vicente (capitania). I. Título. II. Série. CDD 981.023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sumário APRESENTAÇÃO Por Senador Aloizio Mercadante pág. 11 O HISTORIADOR WASHINGTON LUÍS Por Célio Debes pág. 15 INTRODUÇÃO Introdução que explica o livro pág. 37 CAPÍTULO I D. João III pág. 45 CAPÍTULO II A expedição de Martim Afonso de Sousa pág. 57 CAPÍTULO III Capitanias Hereditárias pág. 75 CAPÍTULO IV A criação das Vilas de S. Vicente e de Piratininga pág. 93 CAPÍTULO V Governo-Geral no Brasil. Tomé de Sousa, primeiro Governador-Geral. Seus meios e seus resultados pág. 103 CAPÍTULO VI A criação das vilas de Santos, Itanhaém e Santo André pág. 107 CAPÍTULO VII Os jesuítas pág. 119 CAPÍTULO VIII A fundação de São Paulo pág. 133 CAPÍTULO IX Os índios pág. 143 CAPÍTULO X Os colonos pág. 155 § 1º – João Ramalho e Antônio Rodrigues pág. 158 § 2º – Lopo Dias pág. 177 § 3º – Domingos Luís Grou pág. 180 § 4º – Pedro Afonso pág. 182 § 5º – Brás Gonçalves pág. 182 § 6º – Pedro Dias pág. 183 § 7º – Salvador Pires pág. 184 § 8º – Pero Leme pág. 185 § 9º – Afonso Sardinha pág. 186 § 10º – Brás Cubas pág. 202 § 11º – Buenos pág. 203 § 12º – João de Prado pág. 204 § 13º – Diogo Braga pág. 205 § 14º – Fernandes, e outros pág. 205 CAPÍTULO XI O cruzamento e a escravidão pág. 209 CAPÍTULO XII As entradas ao sertão pág. 219 CAPÍTULO XIII Jerônimo Leitão pág. 235 CAPÍTULO XIV Jorge Correia pág. 245 CAPÍTULO XV João Pereira de Sousa pág. 253 CAPÍTULO XVI Domingos Rodrigues pág. 267 CAPÍTULO XVII D. Francisco de Sousa pág. 271 CAPÍTULO XVIII André de Leão pág. 289 CAPÍTULO XIX Nicolau Barreto pág. 303 CAPÍTULO XX Fim do primeiro governo de D. Francisco de Sousa – Algumas Bandeiras – Volta de D. Francisco de Sousa após a divisão do Governo-Geral do Brasil em dois, cabendo-lhe a repartição do sul (Espírito Santo, Rio de Janeiro e S.Vicente) com a administração das minas a descobrir pág. 323 CAPÍTULO XXI A conquista do Sul. O Guairá. A retirada dos padres jesuítas para abaixo do Iguaçu e para os Tapes. Mbororé, no Uruguai. Direção para o oeste, Itatines, Taquari, Paraguai e depois para o norte pág. 339 Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Apresentação SENADOR ALOIZIO MERCADANTE O SENADO FEDERAL oferece importante contribuição a especialistas e curiosos na história do Brasil ao publicar obras quase inéditas, com edições raras e pouco conhecidas, mesmo de pesquisadores. É verdade que são poucos os Conselhos Editorais que, como o do Senado, têm a honra de serem presididos por imortais, como meu amigo e colega de Parlamento José Sarney, que surpreende pela qualidade das obras escolhidas. Entre as escolhas feitas para compor a coleção, não há dúvida que uma das mais felizes foi a de publicar A Capitania de São Vicente. Não só por estarmos em meio às comemorações dos 450 anos de São Paulo e, portanto, com o país debruçado sobre a história da cidade, mas também pela curiosidade que salta aos olhos de qualquer leigo ao perceber que tem nas mãos um rigoroso livro de história escrito por um dos mais importantes políticos da história brasileira: Washington Luís. 12 Washington Luís Washington Luís foi prefeito de São Paulo, presidente do Estado de São Paulo e Presidente da República. O amor que ele demonstrava pela história da cidade e do Estado estão presentes seja no seu incansável trabalho de pesquisa nos arquivos paulistas, seja por suas decisões enquanto administrador, como, por exemplo, quando abriu os referidos arquivos para consulta, ou na sua preocupação com a construção de monumentos que preservassem a memória paulista. E este amor nos rendeu esta deliciosa descrição da povoação e da formação do Estado de São Paulo. O autor, sobretudo a partir de material epistolar da época reconstrói todo o início da colonização da Capitania de São Vicente, desde a chegada dos primeiros navegadores até o desbravamento do território com as bandeiras. O livro traz relatos da época e possibilita que sejam reconstituídos importantes momentos históricos como este trecho de carta de Tomé de Sousa, governador-geral do Brasil, endereçada a Dom João III, rei de Portugal, em 1º de junho de 1553 que relata o surgimento de Santos, minha terra natal: “Está a Vila de S. Vicente situada em uma ilha de três léguas de comprido e uma de largo na qual a ilha se fez outra vila que se chama Santos a qual se fez porque a de S. Vicente não tinha tão bom porto; e a de Santos, que está a uma légua da de S. Vicente, tem o melhor porto que se pode ver, e todas as naus do mundo poderão estar nele...” Também merece destaque a descrição, sempre embasada, do momento em que nasce a cidade de São Paulo: “Em 1554, com autorização do Governador-Geral, os padres da Companhia de Jesus construíram uma igreja e nela celebraram missa, numa estreitíssima casa, no dia da conversão de São Paulo, na colina entre o Tamanduateí e o Anhagabaú.” Além disso, Washington Luís examina com cuidado aqueles que constituíam a população local na época: os Jesuítas, os Índios e os Na Capitania de São Vicente 13 Colonos. Relatando com minúcia histórias de personalidades importantes que muitas vezes hoje conhecemos apenas por serem nomes de ruas paulistas (quem se lembraria de Simão Álvares ou Mateus Grou, ruas da capital), trazendo à vida passagens esquecidas dessas personagens e louvando a miscigenação que sempre caracterizou o povo brasileiro. Enfim, para todos aqueles que pretendem entender o processo de formação territorial e populacional do Estado de São Paulo, este trabalho do ilustre ex-presidente é uma agradável leitura. E, para os homens públicos de maneira geral, deve servir como lembrança de que a dedicação política ao seu Estado pode sempre ser enriquecida pela busca de sua história e por essa relação claramente afetuosa entre Washington Luís e o Estado de São Paulo que salta aos olhos neste livro. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O historiador Washington Luís * CÉLIO DEBES W ASHINGTON LUÍS foi um epistológrafo de fôlego. Há, em seu arquivo, constituído, ousaria estimar, de alguns milhares de documentos, acentuada predominância de cartas. Várias peças de sua correspondência passiva revelam a existência de outras de sua lavra, que as motivaram, e, há, também, as que induzem resposta sua. Meticuloso – não fora ele advogado de formação e político militante – resguardava-se, enriquecendo esse acervo precioso com larga messe de cópias de sua correspondência ativa. É evidente que não se acham – como ocorreu com o arquivo de Glicério, por exemplo – copiadores de cartas, sistematicamente organizados. Nem de toda sua atividade epistolar. Os rascunhos, no geral, essas as peças preservadas, dizem respeito, quase em sua essência, ao período do exílio e ao que se seguiu ao regresso à Pátria. * Célio Debes é advogado, mestre em História pela USP e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras. São de sua autoria, entre outros livros, Campos Salles, Perfil de um Estadista, Washington Luís 1879-1924 e Washington Luís 1925-1930. 16 Washington Luís Afora o confisco que os vencedores de 30 fizeram de sua documentação, Washington não só preservou seus papéis, como curou de os organizar. Mesmo o arquivo volumoso e pesado, caro de transportar, que amealhou na Europa, zelou para que se conservasse incólume, durante a hecatombe que fustigou esse continente de 1939 a 1945, trazendo-o para cá.1 Com certa dose de contentamento e com vincado sentido de realização, escreveria a um parente – Francisco Carvalho Brandão Neto, residente no Rio de Janeiro, e com quem carteou, intensamente, nos últimos anos de sua vida – sobre a organização de seu arquivo. “Minha Secretária já entrou em funções e está arrumando os velho papéis que tenho interesse em que fiquem juntos e direitamente colocados.” 2 Desse trabalho, supervisionado pelo colecionador, resultaram algumas dezenas de pastas, numeradas em ordem crescente, contendo no frontispício, de modo geral, o nome da personalidade, ou das personalidades, ligadas aos documentos que encerram. O zelo empregado em tal empresa – é bom que se registre desde logo, a documentação está em condições extraordinariamente satisfatórias, livre dos papirófagos e da umidade (salvo algumas poucas exceções) vitimada, porém, pelo inexorável decorrer do tempo – denota, sem dúvida, as tendências do historiador, preocupado com a salvaguarda da memória de nosso passado. Esse cuidado, aliás, registra em carta a Brandão Neto . “Entre nós – assinala – pelo clima úmido e quente, pela voracidade das traças, pelo descaso ou incapacidade dos interessados, os documentos cedo desaparecem.” 3 E, na condição de afeito aos estudos históricos, manteve, resguardados, os numerosos manuscritos que encerram suas anotações, 1 2 3 Rascunho de carta de Washington Luís dirigida a Victor Konder, de Nice, 19 de janeiro de 1936 (AWL, Pasta 62). Carta de 14 de janeiro de 1955 (AWL, Pasta, 46). Idem, de 19 de março de 1953 (AWL, Pasta cit.). Na Capitania de São Vicente 17 colhidas diretamente nas fontes primárias, algumas de suas produções divulgadas e várias inéditas. Mas, fato curioso, esse homem que, no exercício dos mais elevados cargos públicos, exteriorizou seu acendrado amor pela História, assegurando a perenidade de incalculável volume de documentos que se consumiam nos arquivos públicos, “pelo descaso ou incapacidade” dos dirigentes oficiais; esse homem, que assegurou lugar respeitável em nossa historiografia; esse homem não se considerava historiador!... Ao relatar àquele seu parente um fato que ligaria seu nome indelevelmente a benemérita editora paulista, hoje extinta, é que sustenta a negativa, a propósito da publicação de seu livro Na Capitania de S. Vicente. “O editor Martins [...] quer lançá-lo quando inaugurar o edifício próprio [...] Nesse dia, colocará no edifício, que vai se chamar Edifício Mário de Andrade, uma placa de bronze com os dizeres: ”Este edifício inaugurou-se no dia em que foi lançado à publicidade o livro Na Capitania de S. Vicente, do historiador Washington Luís." Respondi-lhe que eu não poderia assistir a essa inauguração e que não consentia que pusesse na placa o historiador Washington Luís, porque não o sou, visto como esse tal livro é apenas um ensaio.” 4 O trecho transcrito encerra dois talhes da personalidade de Washington. Sua irreprimível recusa, após o exílio, de participar de 5 atos públicos, somente quebrada ao receber o título de cidadão de Itu. Sua modéstia, seu acanhamento quanto à exaltação de sua obra e de sua personalidade. Para que se entenda como Washington Luís, que se notabilizara como administrador brilhante e político destacado, se impusera no campo das 4 5 Idem, de 11 de junho de 1956 (AWL, Pasta cit.); os grifos são do original. O Estado de S. Paulo, 27 de setembro de 1955. 18 Washington Luís letras históricas, é mister que se lhe acompanhem os passos, após sua formatura na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1891. Feito bacharel em Direito, regressou a seu Estado, onde foi nomeado promotor público, em Barra Mansa. Decorrido cerca de um ano, acede ao convite de seu contemporâneo na Academia, Joaquim Celidônio Gomes dos Reis, e com ele passa a advogar em Batatais. Nesta cidade, sobressai-se nas atividades forenses, montando escritório próprio. Instigado por Celidônio, milita na política local. Elege-se vereador, sendo logo ungido por seus pares presidente da Câmara. Passa pelo mesmo critério, a exercer a Intendência Municipal. O Intendente, na verdade, era o executor das deliberações dos camarista, embora integrante da edilidade. No exercício dessas funções, proporcionou ao município avanços extraordinários e progresso assinalável. A atividade legislativa de Washington e sua defesa da autonomia municipal, deram destaque à Câmara e a tornaram conhecida e respeitada no cenário estadual. Do campo político, lançou-se ao jornalismo, fundando e redigindo A Lei, na companhia de Celidônio e Altino Arantes. A eficaz ação profissional e a eficiente gestão administrativa granjearam-lhe as simpatias necessárias para que viesse a integrar chapa, de oposição ao governo estadual, para a Câmara Federal. O insucesso, a despeito da significativa votação, foi o desfecho dessa campanha, empreendida em parceria com Francisco Glicério, rompido, então, com o situacionismo. A eleição feriu-se no derradeiro dia de 1899. No ano seguinte, Washington casa-se com Da. Sofia de Oliveira Barros, filha do segundo Barão de Piracicaba. Em 1901, transfere-se, com a esposa, para a Capital, onde procura exercer a advocacia, em companhia de seu concunhado Álvaro de Sousa Queirós. É nesse mister que encontra tempo para vasculhar os arquivos do município de São Paulo e do Estado. Na “Introdução que explica o Livro”, com que abre Na Capitania de S. Vicente – originariamente intitulada “Explicação que pode servir de Prefácio”6– registra que 6 Caderno I, integrante do AWL. Na Capitania de São Vicente 19 “pelos anos de 1902 e 1903 freqüentei o Arquivo Público de S. Paulo e o da Câmara da Capital. [...] Pude examinar e ler alguns dos documentos referidos [Atas da Câmara e Inventários e Testamentos] [e] tomei abundantes notas”. Compulsou essa documentação no original, vencendo dificuldades assoberbantes, já que mesmo os conhecimentos paleográficos não facilitavam desvendar o irregular e variegado modo dos escrivães, dos século I e II de nossa História, grafarem as palavras, de vez que cada qual deles “tinha sua maneira especial e imperfeitíssima de escrever”. Encontram-se, em seu arquivo, inúmeras dessas compilações, que iriam servir, como serviram, de base para seus escritos nessa área. Mas a faina diletante do advogado, com tempo sobejo para consumir na leitura de alfarrábios, encontraria uma barreira intransponível nas eleições estaduais, que o fariam deputado à legislatura a iniciar-se em 1904, rompendo-lhe a caminhada ascensional nos páramos políticos. Mas, antes que fosse “roubado à produção histórica pela polí7 tica e pela administração”, Washington divulgou pela colunas do Correio Paulistano, o resultado parcial daquelas suas pesquisas. Em 1902, o órgão oficial do Partido Republicano Paulista acolheu um extenso trabalho firmado por um nome, até então desconhecido, Washington Luís. Intitulava-se Capitania de S. Paulo. Rodrigo César de Meneses. Posto que a publicação não consigne, tratava-se de membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Nesta categoria, ingressara na entidade por proposta firmada, a 20 de fevereiro de 1901, por Manuel Pereira Guimarães, Artur Vautier e Carlos Reis. E, por iniciativa deles mesmos, tomada a 25 de janeiro de 1903, cambiara para sócio efetivo. 7 Carta de Clemente Maria Brandenburger, dirigida ao Presidente, datada de 20 de agosto de 1918 (AWL, Pasta XXX). 20 Washington Luís Nesse interregno, procede, no Instituto, à leitura, por partes, “de seu estudo histórico sobre o Governo Rodrigo César de Meneses”, consumindo cinco sessões consecutivas a apresentação do trabalho, ao 8 cabo da qual “o orador foi aplaudido e felicitado”. A revista dessa entidade9 agasalhou-lhe o texto integral sob o título “Contribuição para a História da Capitania de São Paulo” (Governo de Rodrigo César de Meneses). Em 1918, sob a denominação singela de A Capitania de São Paulo, a obra foi editada pela Casa Garroux, de São Paulo. Vinte anos depois, a 2ª edição surgiu integrando a Coleção Brasiliana, da qual é o volume 111. Houve, ainda, tentativa frustrada de uma 3ª edição, a cargo da Livraria Civilização Brasileira, de São Paulo, em 1955. O autor dela desistiu porquanto, a despeito das tratativas epistolares a respeito, a empresa, após vários meses, nada providenciou, no sentido de efetivá-la.10 Essa 3ª edição estava cogitada desde 1951.11 A primeira edição do livro mereceu boa acolhida da crítica. Para a Revista do Brasil,12 era o resultado de “pesquisas pacientes e frutuosas”, tratadas “no seu estilo e com a erudição e o talento do autor, deram origem ao precioso volume com que se enriquece a literatura histórica do nosso país”. Veiga Miranda, no Jornal do Comércio, de São Paulo, escrevia, então, que Washington Luís, com seus escritos históricos, revelava “sempre a preciosa faculdade que caracteriza os verdadeiros historiadores: compreensão lúcida dos fatos e da sua concretização lógica e impar8 Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 7:559-568. 9 Idem, 8:22-133 10 “Impressão da Capitania de S. Paulo, em 3ª ed., manuscrito de Washington Luís, datado de 7 de maio de 1955 (AWL, Pasta XLIX). 11 Carta a Júlio Moura,11 de agosto de 1951 (AWL, Pasta cit.). Em 2002, sob o título O Governo de Rodrigo César de Meneses, o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso publicou, com apresentação do historiador Odilon Nogueira de Matos, A Capitania de São Paulo. 12 Revista do Brasil, 35:363. Na Capitania de São Vicente 21 cialidade absoluta da análise”. Esse conceito, emitido em 1918, foi re13 petido em conferência proferida doze anos depois por seu autor. De seu estilo, melhor do que a adjetivação, di-lo passagem colhida a esmo. “A classe dirigente paulista, no princípio do século XVII, os principais da terra, eram pessoas graves, que já tinham o que perder, desejosas de fidalguia, venerando o rei e acatando o representante dele. Essa situação é que haveria de permitir, sem revoltas, as violências de Rodrigo César de Meneses, quem viria cerrar as cortina sobre o passado de aventuras portentosas e altiva independência e inaugurar a administração colonial paulista. É por isso que o período administrativo desse capitão-general marca a época da transição entre a vida antiga de liberdade rude e a vida nova amolecida pela riqueza. Ainda apareceriam casos de heroísmo praticados por homens dos outros tempos, mas esporádicos e anacrônicos na nova sociedade que se ia inaugurar. Quando Rodrigo César de Meneses terminasse o seu governo, o nome paulista estaria obscurecido para deixar aparecer o de Capitania de São Paulo, movendo-se sem atrito na engrenagem administrativa colonial. Isso é que se faria crer, como depois se repetiu, que só nessa época os paulistas conheceram o domínio da Coroa portuguesa.”14 Eis aí, com simplicidade, com clareza, numa linguagem despretensiosa, sem cair no prosaico, a síntese da transformação de uma sociedade, afetada pela opulência, preocupada com foros de fidalguia, ávida de prestígio, que relaxa seus hábitos, rende-se aos poderosos da 13 O País, Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1930. 14 1ª edição, p. 19, grifos do original. 22 Washington Luís ocasião, abdica de sua “liberdade rude”, para tornar-se súdito obediente de um monarca distante e indiferente e vassalo de seus prepostos prepotentes. De seus escritos, ressaltará alguém, a vernaculidade, demonstradora de seus conhecimentos do idioma, o instrumento capital para o exercício da exposição. Mas, das críticas, a mais eloqüente é a de Capistrano de Abreu. Carteavam-se ambos. Washington, por intermédio de Paulo Prado, amigo comum, e mesmo diretamente, buscava com o mestre elementos sobre o Caminho do Mar – um dos temas que o atraíam, tendo mesmo cogitado de dedicar-lhe um livro,15 via essa que, no Governo do Estado, iria recuperar – dele recebendo relatos de viajantes estrangeiros que registraram suas impressões a respeito. Desse relacionamento, partiu a oferta do livro pelo autor. Washington registra a reação do exigente historiador. “De 1893 a 1930, a minha vida foi absorvida por atividade executiva, que não me permitiu nada escrever, salvo no período de 1900 a 1903, em que escrevi algumas páginas sobre a História de S. Paulo, que Capistrano de Abreu, em carta que foi trazida pelo Sr. Paulo Prado, julgou capítulo quase definitivo da História do Brasil. Perguntando a Capistrano por que a restrição do quase, respondeu-me ele que, na bibliografia citada por mim como base do trabalho, indicava eu as “tradições de S. Paulo”, de que devia desconfiar, segundo ele.” 16 Para a consagração de qualquer autor, era o suficiente. A erudição e o rigor crítico de Capistrano de Abreu tinham a força de irre15 Carta de Afonso de Taunay, datada de 23 de março de 1921 (AWL, Pasta XI). 16 Registro constante de um caderno de notas de Washington Luís, de capa inteiriça de couro, com folhas perfuradas, presas por três argolas que se abrem ao meio, sem identificação. Na Capitania de São Vicente 23 futável argumento de autoridade. O juízo desse notável de nossas letras históricas era o bastante para consagrar Washington Luís historiador. Não seria ele, porém, autor de uma obra só. No estreito espaço de tempo de 1900 a 1904, deu ele a lume mais algumas produções, que o Correio Paulistano agasalhava e que, em alguns casos, a Revista do Instituto Histórico, de São Paulo, reproduzia, ou, pelo menos, consignava sua apresentação em sessão da sociedade. Assim, o artigo “Tibiriçá era Guaianá?”, estampado no Correio, foi lido na mesma data da publicação, na reunião social de 4 de julho de 1903.17 Nele sustenta a tese de que no planalto não habitava essa nação indígena. Trabalho meticuloso, calcado em relatos fidedignos de estrangeiros que aqui estiveram no nosso primeiro século, entre os quais, Hans Staden, além das cartas jesuíticas; faz reparos a Azevedo Marques, no tocante à transcrição de documento do Arquivo do Estado. Notas explicativas e referências bibliográficas enriquecem o texto. O pequeno relato intitulado Uma Eleição em 1599, em que descreve o processo eleitoral de antanho, calcado em dados do Arquivo da Câmara Municipal Paulistana e no qual explica o procedimento da escolha dos eleitores, dos edis, dos juízes e do procurador do Conselho, tomando por base o pleito daquele ano, mereceu acolhida naquele matutino. Trabalho de maior fôlego, a que dedicaria, mais tarde, sua atenção, desenvolve-se sob a epígrafe A Vila de S. Paulo. Desdobra-se em quatro capítulos, em que traça o perfil da “insignificante e quase miserável vila de S. Paulo do Campo”, no início do século XVII. Descreve a terra e a gente – pingues 190 habitantes (dos quais, cerca de um terço embrenhados pelo sertão, em entradas), dos 700 que povoavam toda a Capitania de São Vicente – e assinala o descalabro administrativo em que se debatia o povoado; fala de fidalgos e bandidos, de bastardos, do relaxamento dos costumes, de “uma sub-raça forte e sóbria, uma mestiçagem vigorosa e audaz, a única capaz de assegurar os 17 Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo 8:552. 24 Washington Luís descobrimentos feitos e de fazer novas conquistas”. Eram os mamelucos, sinônimos de paulistas. Detém-se nas lutas travadas com os silvícolas, inconformados com a intromissão dos brancos, nos territórios de seus domínios, e destaca, entre estes, os que capitanearam a defesa da vila. A guerra ofensiva que os paulistas passaram a entreter, preando escravos e alargando suas fronteiras, é submetida a seu crivo, como a odisséia vivida, permeada de arroubos de audácia, mas, igualmente, assoberbada por lances dramáticos. Chama-lhe a atenção a organização das bandeiras, cujo chefe, o capitão da entrada, revestia-se de poderes discricionários, inclusive inculcando-se a condição de magistrado, ordenando a abertura de inventário de comandado seu tombado no curso da expedição, arrecadando-lhe os bens, fazendo avaliá-los e arrematá-los em praça, entre os sobreviventes. Armava-se, então, um arremedo de Juízo, com curador à lide, defendendo os direitos da viúva, um curador para os filhos menores do morto, avaliadores juramentados e um escrivão, todos eles atuando como serventuários ad hoc, escolhidos ao talante do capitão, entre os de sua gente. Os arrematantes prestavam fiança para garantir o reembolso aos sucessores do falecido. Destaca, por outro lado, o significado mais importante das incursões ao sertão. A dilatação das fronteiras, garantia de segurança para a vila de São Paulo, permitindo que, com tranqüilidade, se explorasse o território conquistado, em busca de pedras e de metais preciosos. Embalavam, alentando-a, a lenda do Eldorado. Produziu, também, três artigos sobre D. Francisco de Sousa, governador geral do Brasil. Serviu-se, na empreitada, de fontes bibliográficas (Frei Vicente do Salvador, Pedro Taques, Knivet, Azevedo Marques, Orville Derby, Rio Branco) e das fontes primárias encerradas no Arquivo da Câmara. Alinhou o perfil do preposto do rei Filipe I, assinalando suas “manhas”, sua prodigalidade e sua falta de escrúpulos na obtenção de meios para custear as dádivas que distribuía e as Bandeiras que organizou, em busca das minas que, se achadas, render-lhe-iam o título de Marquês das Minas e a dignidade de par do reino de Espanha. Governou estas plagas ao tempo em que Portugal perdera a autonomia. Na Capitania de São Vicente 25 Encerra o rol das produções esparsas de Washington Luís, divulgadas pelo Correio Paulistano, o artigo a que denominou “O Morro do Castelo”. Trata-se mais de uma crônica de fundo histórico, sobre mistério daquela elevação existente no antigo Distrito Federal, que as exigências urbanas fariam desmanchar, do que de um estudo de rigor documental, como os trabalhos precedentes. A Revista do Instituto, enfeixa duas de suas contribuições para o aclaramento de pontos obscuros de nossa História. Uma delas é “O Testamento de João Ramalho”18 cuja cópia encontrou no “truncado arquivo de José Bonifácio, o Patriarca”, numa transcrição feita entre 1797 e 1803. Reproduz o texto, acompanhado de considerações em que demonstra a existência real dessa manifestação de vontade, posta em dúvida por alguns estudiosos, que a davam como produto da imaginação de Frei Gaspar da Madre de Deus. A outra, esclarece um caso de homonímia, que levava à confusão, numa só pessoa, cinco individualidades distintas. “Antônio Raposo,” a epígrafe que lhe serve de título.19 Trabalho documentado, esteado em abundantes fontes primárias, inéditas (transcreve 17 peças extraídas dos Arquivos do Estado, da Câmara Municipal e do Judiciário) e estribado em vasta bibliografia (Pedro Taques, Azevedo Marques, Barão do rio Branco, Berredo, D. Francisco Xavier Brabo, D. Francisco Xarque, Pe. João de Sousa Ferreira, Southey, Saint-Hilaire, Lozano, J. J. Machado de Oliveira), em que analisa e critica, discordando, das opiniões de Rio Branco, Azevedo Marques e Machado de Oliveira. Washington, nesse trabalho, identifica os cinco homônimos. Antônio Raposo da Silveira, capitão-mor governador de S. Vicente, em 1662; Pe. Antônio Raposo, até julho de 1611, vigário colado na vila de S. Vicente, oportunidade em que se recolhera para Roma, “a absolver-se da morte praticada em um de seus fregueses”; Antônio Raposo, o velho, vereador à Câmara de São Paulo, também em 1611, que integrou e, por fim, comandou a bandeira de Belchior Dias Carneiro, após a mor18 Idem, 9:563-569. 19 Idem, idem, p. 485-533. 26 Washington Luís te deste, bandeira esta que explorou o Rio S. Francisco (1607-1608); Antônio Raposo Pegas, filho do anterior, cujos feitos se confundiam com os de Antônio Raposo Tavares. Pegas “teria sido um obscuro colono, cuja vida deslizou apagada, sem deixar traços fortes”. Já a Raposo Tavares deve-se o crescimento territorial do Brasil “para os lados do sudeste”. Tocam-lhe, igualmente, como chefe, as “expedições contra os estabelecimentos jesuíticos na América espanhola”. É de sua responsabilidade o assalto ao Colégio dos Jesuítas, em Barueri. Coube-lhe, ainda, o comando dos “soldados paulista para a guerra contra os holandeses em Pernambuco”. Sobre sua decantada excursão ao Peru, rebate a afirmação de Saint-Hilaire de que ele haja galgado os Andes – “o grande reino do Peru” abarcava, à época, o “território em que se acham os Estados de Mato Grosso, Amazonas, parte do Pará e de Goiás. A Província de Quito, subdivisão do Peru, corria no alto Amazonas” – e qualifica de fabulosa a versão de Machado de Oliveira que, além de atribuir-lhe a escalada da cordilheira, asseverava que o bandeirante entrara “nas águas do Pacífico, com a espada levantada, dizendo que avassalava terra e mar para seu rei”. Conclui o pesquisador: “Compreendido o que era o Peru daquele tempo, vê-se que, para nele penetrar, não era necessário escalar os Andes, nem chegar às águas do Pacífico!” Para a elaboração de todos esses trabalhos, como ficou dito, seu autor valeu-se do acervo, então inédito em sua maior parte, dos Arquivos do Estado e da Câmara Municipal de São Paulo. Seu arquivo particular agasalha grande número de cadernos, refeitos das notas que tomou. Bandeirantes é o título de um deles. Outro, na capa principal, traçada a tinta, por sua mão, estampa estes dizeres “Caderno nº IV / História / Notas / por mim tomadas dos livros da / Câmara de São Paulo / no seu / Arquivo”. Num outro, seu título é Feijó / Rev. de 1842 / Maioridade. Feijó, por seu turno, foi o tema do discurso que proferiu no Teatro Municipal, na solenidade que assinalou a inauguração do Monumento ao Padre Diogo Antônio Feijó, chantado na Praça da Liberdade, Na Capitania de São Vicente 27 e que a incúria de certos administradores removeu para o depósito da municipalidade, ao abrir-se, no local, estação do Metrô, e que a insensibilidade de outros doou a uma cidade do interior. Nesse discurso, assaz difundido em opúsculo, além de reproduzido na Revista do Instituto,20 Washington cuida de “alguns poucos lances de Feijó durante o extraordinário Ministério da Justiça e a sua atitude na revolução de 1842, depois de rapidamente mostrar [...] o estado do país, naqueles tempos”. Para este pronunciamento, o orador serviu-se das notas acima referidas. Nesta altura, era ele deputado estadual, eleito que fora para a legislatura a iniciar-se em 1912. Isto, depois de exercer, por seis anos seguidos, o cargo de Secretário da Justiça e da Segurança Pública. Já desfrutava, também, da condição de sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por proposta do ano anterior, proposta esta lastreada com seus trabalhos A Capitania de São Paulo e Antônio Raposo. Esta categoria, conquistada por sua contribuição às letras históricas, Washington fez questão de conservar, paralelamente ao título de Presidente de honra da Sociedade, em decorrência do exercício da Chefia da Nação.21 Em 1914, foi ele eleito Prefeito da Capital. Surge, então, a oportunidade para confirmar seu pendor pela História e manifestar sua consciência da obrigação de preservar, como homem público, o acervo documental da comuna que geria. Graças a este sentimento, buscou proteger e divulgar a volumosa messe de documentos pertencentes à Câmara Municipal de São Paulo, que ele desbravara, copiara e sobre a qual elaborara seus estudos. Contrata paleógrafo para destrinçar o conteúdo dos papéis que, desde o século XVI, estavam enclausurados, encerrando os fastos da vida de nossa terra a partir dos primórdios da implantação da vila em chãos de Piratininga. Vertidas para a linguagem corrente, deu 20 Idem, 17:408-431. 21 Virgílio Correia Filho, Washington Luís e o Instituto Histórico Brasileiro, in Washington Luís Visto por seus Contemporâneos no Primeiro Centenário de seu Nascimento, p. 125. 28 Washington Luís ele início à publicação das Atas da Câmara da Vila de São Paulo, e, depois, da cidade, e do Registro Geral da Câmara. Procedimento idêntico adotaria na Presidência do Estado, no tocante ao respectivo Arquivo. Ordenou a edição dos Inventários e Testamentos, vários dos quais eram-lhe familiares, pelas consultas que lhes fizera, no original. Deve-se-lhe, ainda, a publicação dos Anais 22 do Museu Paulista. Tocou-lhe, também, a benemérita iniciativa de imprimir a essa Instituição o cunho histórico de que estava despojada (prevalecia lá o caráter zoológico que, aliás, granjeou-lhe notoriedade científica), com o que, entre outras iniciativas, assinalou o centenário da emancipação política do Brasil. Nesta oportunidade, inaugurou a galeria dos vultos da Independência, que ornamenta o saguão da escadaria monumental e, por inspiração de Afonso de Taunay, as estátuas que representam os principais bandeirantes, além do Monumento da Independência. Quanto ao apoio de Washington ao Museu Paulista, Taunay o enaltece, ressaltando sua colaboração desde os tempos em que ele era 23 Prefeito da Capital. Do mesmo modo, a fundação do Museu Republicano de Itu é obra sua,24 comemorando o cinqüentenário da Convenção realizada naquela cidade, em 1873. Seu interesse pela preservação da memória nacional não arrefeceu, ao galgar a suprema magistratura da Nação. Fez organizar e difundir, impressa, a série Documentos Históricos, arrancando do olvido documentação encerrada nos arcanos da Biblioteca Nacional. Soma-se a seus créditos a concretização da Casa de Rui Barbosa, instalada no prédio de morada do patrono, à rua São Clemente, no Rio 25 de Janeiro. 22 23 24 25 Carta de Afonso de Taunay, de 12 de dezembro de 1923 (AWL, Pasta cit.). Idem, idem, de 14 de setembro de 1919 (AWL, Pasta cit.). Idem, idem, de 20 de novembro de 1923 (QWL, Pasta cit.). Cartão de Américo Jacobina Lacombe a Francisco Brandão Neto, datado da “Casa de Rui Barbosa, 11-XI-52” (AWL, Pasta 46). Na Capitania de São Vicente 29 Em 30, vem a avalanche que aniquila a Primeira República, roubando a Washington Luís 21 dias de seu governo constitucional, culminando por desterrá-lo. Na Europa, em Paris, onde fixa residência, dedica-se ao levantamento genealógico de sua Família, com raízes nos Açores. Redigiu, pelo menos, três trabalhos a respeito, entre os quais A Família Pereira de Sousa Fluminense. A propósito deste assunto, escreveria, muito mais tarde, ao citado Brandão Neto.26 “A família Pereira de Sousa a que pertenço foi formada por meu bisavô, José Luís de Sousa, vindo da Ilha Terceira do arquipélago dos Açores em 1779, casou-se com Maria Joaquina, filha de Luís Pereira Nunes e de Maria Perpétua do Nascimento. Os seus descendentes, como é hábito entre nós, tomaram o Pereira materno e o Sousa paterno, constituindo os Pereira de Sousa da baixada fluminense, que, por 1850, prosperaram em Cabo Frio, Araruama, Saquarema, etc.” Seus pendores por estudos históricos devem ter ganho dimensão, tanto que, ao fundar-se, em Paris, em 1936, o Instituto de História da Revolução Francesa, foi ele eleito seu Vice-Presidente. Na mesma ocasião, outra entidade cultural, que iniciava suas atividades, o Instituto de Direito Constitucional, contava com ele em seus quadros.27 Enquanto sua mulher viveu, o casal percorreu vários países da Europa. Após o falecimento de Da. Sofia – fato que o abalou profundamente – Washington, embora empreendesse viagens, entregava-se à leitura e à redação de relatos, com a finalidade de preencher o tempo e depois rasgá-los, como deixou registrado.28 Há, em seu arquivo, um papel encimado pelo título “Algumas notas valiosas para serem desenvolvidas”. Referem-se elas a dois assuntos, apenas enunciados. “Bolchevismo e Getúlio Vargas” e “Como se obser26 Carta a Brandão Neto, de 19 de março de 1953, AWL, Pasta cit. 27 Carta ao Comandante Brás Veloso, de 31 de agosto de 1936 (AWL, Pasta 29-A). 28 Relatos e Notas (AWL, Pasta 39). 30 Washington Luís 29 vava a Constituição federal antes do governo W. Luís e durante este”. Desconhece-se o eventual desenvolvimento desses temas, a menos que tenham tido o fim destinado aos “relatos para preencher o tempo”... Cabe, aqui, lembrar que Washington cogitou de escrever um livro sobre seu governo. O último daqueles títulos, provavelmente, poderia constituir um capítulo dessa obra. Isso, enquanto permaneceu na França. Ao deflagrar a Segunda Guerra Mundial, transferiu-se da Suíça, onde permanecera por algum tempo, para Portugal. Neste país, realizou antigo desejo. “Desde o Brasil, desde minhas primeiras leituras dos livros de Eça de Queirós – confessa – pensei sempre com prazer numa visita ao Ramalhete, o paço dos Maias, em Lisboa, e a Tormes, a Quinta de Jacinto no Douro.” Acolheram-no as, então, detentoras das duas propriedades, a Marquesa de Sabugosa e Murça e Da. Maria d’Eça de Queirós, filha do escritor. Ao Paço dos Maias – na realidade, Paço de Santo Amaro – levou-o “também um interesse pessoal, um interesse histórico”. Prendia-se este ao seu – no dizer dele próprio – “pequeno e desconhecido livro sobre a Capitania de S. Paulo, durante o governo de Rodrigo César de Meneses”. Era ele irmão do primeiro Visconde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Meneses, que fora Vice-Rei do Brasil, ao tempo em que Rodrigo exercera a governança. Tendo o antigo governador falecido solteiro e sem descendência, “possivelmente – deduzia Washington – o seu arquivo teria ido parar ao solar ancestral.” “Procurei saber se os papéis do antigo governador de S. Paulo poderiam ser consultados, consulta que muito me auxiliaria para modificar ou alargar uma nova edição da Capitania de S. Paulo, a ser feita em Portugal, visto que a primeira havia sido estudada com documentos paulista e livros obtidos em S. Paulo.” Colheu, em resposta, desenganadora informação: o arquivo dos Sabugosas fora recolhido à Torre do Tombo. 29 AWL, Pasta 74. Na Capitania de São Vicente 31 Como se vê, a modéstia de Washington Luís ao referir-se à Capitania de S. Paulo como “pequeno e desconhecido livro”, não induz repúdio à obra. Ao contrário, a insistência com que procurou reeditá-la, e mesmo “modificar ou alargar” seu texto, evidencia a afeição que dispensava ao primeiro fruto de suas elucubrações históricas. De Portugal, acossado pela conflagração, ruma para os Estados Unidos, onde purga os derradeiros seis ou sete anos de exílio. Na república do norte, recebeu convite para proferir conferências. Redigiu-as, mas não as leu. Acompanha-as – são duas – uma nota em que expõe o que se passou a propósito da distinção que a Universidade de Vermont conferiu-lhe. “Estas conferências são superficiais e estão incompletas. Não as rasguei, como fiz a muitos outros trabalhos, porque conservava a esperança de poder aprofundá-las e de aperfeiçoá-las. Para tal atingir, seria preciso voltar ao Brasil, onde estão os meus livros e as minhas notas, sobre a parte brasileira, e melhorar o meu inglês, para consultar algumas fontes sobre a parte norte-americana. É possível que isso se faça, mas em época em que terei perdido o gosto e a capacidade para escrever coisas úteis. Pouco se perderá.” 30 Nessa manifestação, reassume seu escrúpulo em só manifestar-se com segurança sobre qualquer assunto que exigisse sua opinião. No entanto, seu vaticínio pessimista jamais se concretizaria. Conservou sempre “o gosto e a capacidade para escrever coisas úteis”, como se verá. Em 1947, restaurado, em sua plenitude, o regime da Lei em nossa terra, Washington Luís regressa ao Brasil. A apoteótica recepção que se lhe dispensou por onde passou, só a pode aquilatar quem dela participou. Aqui, recolheu-se a sua casa, escusando-se a participar de solenidades públicas e esquivando-se de fazer declarações. Entretinha 30 AWL, Pasta 39. 32 Washington Luís relações com poucos, fiéis e leais amigos, pessoalmente, ou por correspondência. Com aquele propósito, declinou do convite para integrar a Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo. A respeito, 31 escreve a Brandão Neto. “Desde 1930, tenho guardado silêncio, e após a minha volta ao Brasil, em 1947, não obstante o imerecido, se bem que generoso acolhimento dos brasileiros, tenho obstinadamente me conservado na penumbra, que me satisfaz. Não fiz parte da comissão para os festejos da fundação de S. Paulo, nem a eles estive presente, porque compromissos anteriores me retiveram fora da capital, dias antes e dias depois de 25 de janeiro, em que foram eles realizados.” A escusa, ao declinar do convite, ele a fundou em seu estado de saúde, decorrente de sua idade avançada. “Senectus morbus est”, 32 adita. Mas não se arredava dos estudos históricos. Sobre a questão levantada a respeito da fundação de São Paulo, em que se disputava a respectiva paternidade, emite sua opinião em carta ao parente. “A fundação de uma cidade é uma [obra] coletiva e não é obra de um só homem, de uma só classe, de um só partido.” 33 A despeito de sua idade (entrara, em 1949, na casa dos 80), dava curso às pesquisas que sempre o fascinaram. “Eu, para ocupar minhas horas de ócio, estou tomando notas cronológicas das entradas ao sertão feitas por bandeirantes paulistas, que concorreram decisivamente para a constituição geográfica do Brasil.”34 31 32 33 34 Carta a Brandão Neto, de 3 de fevereiro de 1954 (AWL, Pasta cit.). Idem, idem, de 22 de outubro de 1955. Idem, idem, de 2 de junho de 1956. Idem, idem, de 19 de março de 1953. Na Capitania de São Vicente 33 Sobre bandeirantes, aliás, há, no seu acervo, um grosso volume – são cerca de 300 folhas, escritas nas duas faces – em cuja capa lê-se a inscrição “Bandeirantes. 4º . Extractos de inventários pertencentes ao Arquivo do Estado de S. Paulo. 1903.” Iria dedicar páginas de seu derradeiro livro aos desbravadores. Na Capitania de São Vicente, extravasa sua admiração por esses homens rudes e destemidos. “Os navegadores temerários e tenazes seriam substituídos pelos sertanistas atrevidos; as bandeiras iriam ocupar na atenção da História o lugar das frotas. Era natural, lógico e fatal, pois o esquadrinhamento do interior dessas terras e as entradas ao sertão teriam que aparecer. O ciclo da navegação seria substituído pelo ciclo das bandeiras em Portugal.” 35 Contudo, não age preconcebidamente. Traça apreciação isenta.. “Era uma profissão o bandeirismo – escreve – mas não era de rosas e a ninguém enriquecia.” E invoca os testamentos e os inventários dos sertanistas para ressaltar “a pobreza dos bandeirantes, tal a mesquinhez e insignificância do acervo descrito e avaliado”. O paulista rico só iria surgir “no século 18, bem mais tarde”. A ação dos desbravadores é cruamente descrita. “As bandeiras foram firmando sua rota no continente desconhecido com violências e crueldades, com traços de sangue, com sinais de morte.” A violência e as atrocidades não foram marcas exclusivas dos bandeirantes, ressaltaria. O mesmo se passou na América espanhola, nas conquistas e com os conquistadores; na América inglesa, nas penetrações e nas expedições.36 Não olvida, porém, a expansão territorial decorrente dessas incursões ao sertão; das roças que plantavam para o sustento de seus integrantes, que se tornariam pousos, que, por sua vez, cambiariam para 35 1ª edição, p. 168. 36 Idem, p. 178. 34 Washington Luís arraiais e, estes, por seu turno, se converteriam em povoados e, ao depois, em vilas, “estabelecendo por essa forma a posse efetiva do território, que se alargava, cada vez mais, fincando marcos indiscutíveis para os futuros tra37 tados diplomáticos, quando se demarcassem as fronteiras internacionais”. E de algumas dessas bandeiras que se ocupa, dando “notícias sobre seus cabos, sobre a sua composição, sobre lugares por eles atingidos, com suas datas, tanto quanto permitirem os arquivos locais”.38 Assim, desfilam Jerônimo Leitão, Jorge Correia, João Pereira de Sousa, Domingos Rodrigues, André de Leão, Nicolau Barreto e D. Francisco de Sousa. Ao traçar o perfil do último, valeu-se das notas tomadas quando da visita ao Paço de Santo Amaro, sob o título Paço dos Maias, acima referidos. Tais “notícias” foram precedidas de análise do contexto nacional lusitano, que envolvia a metrópole e o vasto império colonial que conquistara. O descaso de D. Manuel e as preocupações de D. João III, dando o toque da orientação política com respeito à possessão da América; a ocupação da terra, com a fundação de vilas, a ação do Governo Geral, a presença dos catequistas, os naturais da terra, os colonos e suas atividades, demonstrando o quanto contribuíram, todos, para a consolidação do domínio português e para sua ampliação. Dessa forma, traça a introdução à epopéia bandeirista. São “os primeiros capítulos deste trabalho, de contribuição para o estudo da formação e civilização de nossa terra, limitados ao século 16 e aos princípio do século 17”.39 Na Capitania de São Vicente é obra de pesquisa rigorosa, de análise criteriosa e de valor histórico indiscutível. Está ela referta de citações que avalizam as opiniões emitidas, de observações que, estribadas em documentação autêntica e em testemunhos de fidedignos coevos, retificam erros consagrados. Preocupação, aliás, que sempre tinha em mente. “Para documentar as minhas opiniões – escreve a Aloísio de 37 Idem, p. 177. 38 Idem, p. 179. 39 Idem, p. 72. Na Capitania de São Vicente 35 40 Almeida – cito sempre o autor, o livro e as devidas páginas em que me apoiei.” Não era dos que, egoisticamente, sonegam as fontes... Ainda ao mesmo investigador, no ano de seu falecimento, dá o rol de sua produção histórica e confidencia seus projetos nessa área. Solicita-lhe algumas informações de seu interesse e, para justificar o pedido, faz a exposição. “Escrevi há tempos um ensaio sobre a Capitania de S. Paulo e, recentemente, outro sobre a Capitania de S. Vicente; estou escrevendo atualmente alguma coisa sobre a Província de S. Paulo, no tempo do Império, e pretendo, se tiver tempo e saúde, escrever sobre o Estado Federado de S. Paulo, na República.”41 Quanto ao São Paulo republicano, ressalva. “De passagem lhe digo que nada escreverei sobre as interventorias de S. Paulo, no tempo da Ditadura, porque tendo sido parte, ou, vítima, sinto que não teria a necessária serenidade para delas tratar com imparcialidade.” Era a consciência do historiador criterioso, a extravasar nas palavras do homem honrado que sempre foi. Remanescem, em seu arquivo, páginas inúmeras sobre este seu plano. Sob o título São Paulo, Província Imperial, há dois volumes, segundo a indicação do autor. Precede-os nota manuscrita. “Neste trabalho apenas o primeiro capítulo, embora incompleto e imperfeito, pode ser publicado. O capítulo sobre o caminho do mar precisa ser refundido. Os outros são esboços, que esperam desenvolvimento. Sobre a viação férrea basta resumir o que escreveu A. Pinto, que é completo. W. Luís.” Impertinente seria a análise crítica dessas palavras. É o juízo do autor, rigoroso sempre, quando se é humilde. E ficou demonstrado 40 Carta ao Cônego Luís Castanho de Almeida (Aloísio de Almeida), de 12 de março de 1957 (AWL, Pasta XLIX). 41 Idem, idem, de 21 de fevereiro de 1957. 36 Washington Luís fartamente o quanto Washington Luís manifestou, sempre, esse sentimento, ao referir-se a sua obra histórica. Se foi parcimonioso a esse propósito, foi altruísta quanto ao que apurara nos arquivos. E, ao ocupar a chefia do Governo, nas três esferas administrativas em que atuou, fez publicar vasta e valiosíssima documentação que jazia nos depósitos arquivais, ignorada pelos estudiosos e exposta à destruição pelos papirófagos e pela umidade. Sua deliberação de divulgar os assinaláveis repositórios constitui, além de manifestação de altruísmo, gesto de grandeza e de lucidez. De grandeza e altruísmo, como historiador. Lá, afloram as virtudes de inteligência que caracterizam os verdadeiros estadistas; aqui, o desprendimento do cultor da História, que abre, a todos as fontes primárias, privilégios de uns poucos eleitos. A este respeito, deixou expresso seu pensamento, ao referir-se ao período que mediou entre sua vinda para a Capital e seu ingresso nas lides políticas estaduais, em Na Capitania de São Vicente. “Eu havia tido lazeres e paciência, anteriormente, para compulsar tais documentos [os dos Arquivos do Estado e do Município] e deles extrair notas, muitos dos estudiosos da História de S. Paulo não teriam tempo para o consumir em investigações de arquivos. Seria, pois, egoísmo imperdoável, não divulgar tais documentos, desde que fosse possível. Assim se fez.” 42 Nessa divulgação, patenteia-se a clarividência do administrador público. Pela iniciativa de preservar e de disseminar, conscientemente levada a efeito, reflexo de mentalidade apercebida, ao contrário de sua modéstia em se negar sua legítima condição, merecia Washington Luís o título de Historiador. Mas, a obra que legou, meticulosa e importante, assegura-lhe, de jure, o título de Historiador. 42 1ª edição, p. XI. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdução que explica o livro WASHINGTON LUÍS A HISTÓRIA colonial paulista tem sido feita à vis- ta de crônicas religiosas, de algumas cartas jesuíticas, dispersas e truncadas cronologicamente, “a vista de conscienciosas informações da Nobiliarquia de Pedro Taques, dos verídicos Apontamentos de Azevedo Marques, das Memórias inteligentes de Frei Gaspar, da contribuição valiosa de alguns outros escritores, e de tradições, que necessitam crítica justa e imparcial, quando não se encontrem documentos que as comprovem. Frei Gaspar da Madre de Deus foi possuidor de uma inteligência viva e muito culta, e foi sutil argumentador de poucos documentos, que teve a seu alcance, dos quais por vezes tirava conclusões engenhosas, que documentos posteriores, por ele então desconhecidos, mostraram a pouca solidez. Pedro Taques, sem essas qualidades de Frei Gaspar, foi um pesquisador paciente e infatigável, e, embora preocupado – com foros de fidalguia, conseguiu reunir na sua Nobiliarquia uma soma imensa de informações sobre pessoas e fatos, prejudicados alguns por comunicações recebidas de terceiros ou por tradições sem crítica, que se contradizem flagrantemente, e que ele mesmo, depois de as referir, as põe em dúvida. 38 Washington Luís Azevedo Marques, fundando-se em parte nesses dois antecessores, apresenta muitos fatos de suas próprias investigações, em regra muito concisas, extraídas dos arquivos públicos. É fora de dúvida que esses três cronistas prestaram valiosos serviços à História de São Paulo. As cartas dos jesuítas são inestimáveis, mas às vezes confusas, talvez por defeito de cópia ou de tradução, mesmo as escritas pelos maiores padres da Companhia residentes no Brasil. Andaram dispersas em publicações de difícil consulta. Só ultimamente foram muitas reunidas em três volumes pela Academia Brasileira de Letras. Mesmo assim não estão completas. Escreveram todos esses de boa fé procurando servir uns a São Paulo e outros à Companhia de Jesus, de que faziam parte. São valiosos esses subsídios, não há como contestar. Mas a história, que só neles se apoiasse, teria que ser lacunosa, fantasista por vezes, exaltada por uns e deprimida por outros. Publicações posteriores, como a do Roteiro de Pero Lopes de Sousa, mais que secular, como a dos documentos na História da Colonização Portuguesa no Brasil, que já não é nova, esclareceram ou retificaram muitos pontos. A publicação integral – tanto quanto possível – das Atas da Câmara da Vila de São Paulo, a do respectivo Registro-Geral, e também a dos Inventários e Testamentos declarados documentos públicos, e removidos dos cartórios judiciais, anteriores ao século 19, para o Arquivo Público do Estado de São Paulo, em virtude da Lei Estadual nº 666, de 6 de setembro de 1899, bem como a publicação dos Documentos Interessantes desse mesmo Arquivo, trouxeram matéria farta e preciosa para, cotejada com o que já se sabia, fazer em grande parte a recomposição do passado paulista. Na verdade a publicação das Atas e do Registro-Geral desvendou, aos que estudam a vida local de São Paulo e da antiga capitania, um largo espaço de tempo, que andava obscurecido, deformado ou desconhecido. Na Capitania de São Vicente 39 Por essa publicação foi fácil conhecer muitos dos homens da governança, e, como eles, interpretando as Ordenações do Reino, elegiam os oficiais da Câmara, isto é, os vereadores, os juízes, os procuradores do conselho, e como estes nas suas sessões, ordinariamente semanais, exerciam suas funções. Sem recursos de gente armada nem de dinheiro, rodeados de tribos selvagens, e algumas inimigas desde os primeiros contactos europeus, longe da metrópole, extremamente centralizadora, num tempo em que o único meio de transporte era o marítimo, cujas escassas viagens, conforme os ventos e tempestades, consumiam meses para levar um pedido urgente de providências e trazer um despacho rápido, esses oficiais das Câmaras eram obrigados a demorar as suas resoluções ou a tomar iniciativas para existência da colônia. Dessas iniciativas ficaram vestígios nas representações, nas queixas, nas reclamações às autoridades nomeadas pelo donatário e pelo Governo português. Em alguns desses vestígios nas vereanças dessas Câmaras, se encontram em linguagem rude os diversos atos praticados no exercício de suas atribuições, as providências tomadas contra ataques de índios, ou, quando em guerras ofensivas, os nomes dos cabos paulistas que as dirigiam e os das tribos inimigas, vencidas ou exterminadas. Mais tarde a publicação dos Inventários e Testamentos lançou um jorro de luz sobre a vida social e econômica, com a qual se vê a pobreza dos primeiros habitantes de São Paulo. Dos inventários processados perante juízes, alguns dos quais faziam parte da Câmara, muitos têm apensos ou transcritos os inventários feitos no sertão e, às vezes, autos de ações judiciais, processados no foro local. Os testamentos, quase todos, foram escritos ou por padres, ou por escrivães públicos, ou por um ou outro letrado, porque em regra os testadores eram analfabetos, principalmente as mulheres que expressamente declaravam, que, por serem mulheres, não sabiam escrever. Começam todos por longas disposições espirituais, quase uniformes ou tabelioas, implorando os santos da devoção dos testadores, ou de seu anjo da guarda, de todos os santos da corte celeste, da Virgem 40 Washington Luís Maria, do seu Unigênito Filho, da Santíssima Trindade, de Deus, e positivam os seus rogos em numerosas missas, rezadas ou cantadas, em ofícios divinos, realizados por meio de legados pios. Com a exatidão de quem presta as últimas contas, indicam os seus credores, os seus devedores e também os seus filhos. Essas últimas declarações atraíram e facilitaram a obra dos genealogistas, a qual serviu para as biografias, por sua vez, auxiliadoras da História. Mas, assim como das Atas e do Registro-Geral da Câmara de São Paulo se perderam dezenas de livros correspondentes a dezenas de anos, em períodos diversos, também dos Inventários e Testamentos desapareceram, talvez, centenas de autos. Ambas as coleções estão incompletas e muito desfalcadas; e a publicação, feita pelos Arquivos de São Paulo, não conseguiu salvar todos os documentos. As traças lentas, mas obstinadas, haviam rendilhado vorazmente as páginas de muitos, perfurando túneis caprichosos nas pilhas em que foram eles ameaçados. O calor e a umidade, por seu turno, transformaram muitos desses maços em verdadeiras pastas de papelão, não permitindo o manuseamento das páginas, o que tudo dificulta e mesmo impede a leitura. Em alguns, a letra, delida pelo tempo, sumiu-se e não se revela, ainda que sob reações químicas, que foram empregadas. Outros, ajuntados sem ordem cronológica, estão truncados ou têm intercaladas páginas alheias. Muita coisa se perdeu, mas muita coisa se salvou. Nos salvados o trabalho do intérprete foi áspero e torturante. Se em alguns inventários, testamentos, atas e registros serviram escrivães, cuja letra era razoável e cuja redação é compreensível, na maioria deles, porém, a caligrafia fantasiosa e a ortografia arbitrária tornam a decifração penosa. No mesmo texto, na mesma página, na mesma linha, esses escrevedores grafam por diversas e variadas formas palavras portuguesas e, com maior desenvoltura ainda, o fazem com as palavras tupis. A paleografia é a ciência dos antigos escritos e é a arte de os decifrar, tendo conseguido estabelecer princípios e regras sobre o modo de escrever de um povo, numa época, determinando-lhe os caracteres peculiares. No caso paulista nada pôde ser estabelecido para ser observado. Cada escrivão Na Capitania de São Vicente 41 tinha a sua maneira especial e imperfeitíssima de escrever. Houve até um – Simão Jorge – que, apenas nomeado, leal e ingenuamente, alegou “não entender do ofício nem saber dar despachos às partes, conforme Sua Alteza manda”, e insistiu pela renúncia do cargo, que foi aceita. Para a decifração ou tradução e publicação desses documentos foi contratado o Sr. Manuel Alves de Sousa, cujo trabalho foi árduo e difícil, mas honesto e consciencioso, transladando para o português as Atas da Câmara e os Inventários e Testamentos, mas conservando rigorosamente a grafia dos nomes próprios e as dos lugares. Nesse particular fez ele o que era humanamente possível realizar. É necessário ainda considerar que a publicação das Atas e dos Inventários e Testamentos foi feita dezenas de anos após as consultas, que em 1902 eu tive oportunidade de fazer, e as que muitos outros fizeram antes nos arquivos paulistas. Durante esses muitos anos as traças continuaram a sua voraz e obstinada tarefa, a umidade e o calor prosseguiram na formação das pastas de papelão; as próprias consultas, apesar do extremo cuidado com que foram manuseados os autos de inventários e os testamentos, deixaram-os ainda mais estragados. Pelos anos de 1902 e 1903 freqüentei o Arquivo Público de São Paulo e o da Câmara da Capital. Graças à solícita cortesia dos seus diretores pude examinar e ler alguns dos documentos referidos, convencendo-me de que poderia por eles fazer uma relação cronológica das entradas ao sertão, incompleta e imperfeita, é verdade, mas útil e indispensável. Animado nesse propósito por mestres da História do Brasil, aos quais comuniquei esse achado, tomei abundantes notas sobre tal assunto. Mas, em 1904, eleito deputado estadual, minha vida tomou rumo diverso, absorvida pela política e pela administração. E assim passaram os anos, e senti que não mais me poderia ocupar dessa ordem de estudos. Foi só em 1914, quando eleito Prefeito da capital e, em 1920, quando Presidente de São Paulo, que pude determinar a publicação das Atas e do Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, já antes tentada por diversas vezes, e até já contratada, e providenciar a publicação dos Inventários e Testamentos, recolhidos ao Arquivo Público Paulista, messe que eu havia procurado para meus estudos. 42 Washington Luís Eu havia tido lazeres e paciência, anteriormente, para compulsar tais documentos e deles extrair notas. Muitos dos estudiosos da História de São Paulo não teriam tempo para o consumir em investigações de arquivos. Seria, pois, egoísmo imperdoável, não divulgar tais documentos desde que fosse possível. E assim se fez. A publicação dessa documentação valiosa, decifrada em boa letra de forma, em volumes facilmente manuseáveis, iria permitir a esses estudiosos o exame tranqüilo em suas casas, em horas disponíveis, com seguro proveito para a nossa literatura histórica. Após a publicação, muitas e notáveis obras, dentro e fora do Estado, foram realizadas, emendando, desenvolvendo e abrindo novos horizontes à História dos nossos primeiros tempos. Por não poder citar todas basta lembrar a de Taunay em a História Geral das Bandeiras, que já atingiu o undécimo volume, alentados todos, vasto repositório de informações e de crítica; a de Alfredo Éllis Júnior nas suas brilhantes monografias sobre o Recuo do Meridiano, Meio Século de Bandeirismo, a de Alcântara Machado no seu justamente louvado trabalho sobre a Vida e Morte do Bandeirante, e tantas outras cuja enumeração seria longa e sempre incompleta. De 1902 a 1903, porém, havia eu tomado por escrito muitos apontamentos, e, neles baseado, cheguei a algumas conclusões, que suponho verdadeiras, e que podem ainda ser úteis, suprindo falhas inevitáveis na publicação posteriormente ordenada. Por essa razão resolvi fazer alguns comentários que podem ser proveitosos à História de São Paulo. Constam eles, na sua maior parte, de extratos dos arquivos locais – da cidade e do Estado de São Paulo – e desejam mostrar a contribuição dos habitantes de São Paulo na história brasileira, na parte referente à definição territorial e à formação do Brasil, no descobrimento e aposseamento das terras pela ação dos colonos, e na civilização cristã pela catequese religiosa, todos garantidos e mantidos pela administração portuguesa no Brasil, sob a vontade absoluta do rei. Vou, por minha parte, tentar mostrar essa colaboração fazendo imprimir algumas notas, muitas tomadas há mais de quarenta anos, Na Capitania de São Vicente 43 algumas das quais tiradas de autos que já não existiam ao tempo da publicação feita por Alves de Sousa. Não pretendem elas resolver questões, mas concorrer para as respectivas soluções. Revendo, e de novo estudando-as, e agora em face de fartas e novas publicações e de novos e alheios estudos, mais se me fixou o meu modo de pensar sobre alguns pontos, não obstante ser por vezes contrário às brilhantes e sedutoras deduções que outros conscienciosamente têm feito. Na matéria intelectual é pela divergência que se caminha para a verdade. Quase tudo que aqui vai escrito é, entretanto, conhecido, ou melhor, é sabido, conforme o temperamento de cada um, de todos que têm estudado os primeiros tempos coloniais. Mas muitas pessoas, que se interessam pelo nosso passado, sem procurar as fontes autênticas, repetem ainda coisas lidas, em antigos cronistas, dignos aliás de respeito pela sua boa-fé, mas que não são verdadeiras. Julguei, pois, útil, e até necessário, indicar, para cada retificação, a fonte da verdade, ou que, pelo menos, me pareceu a verdade, criticando tanto quanto possível as deduções, por mais engenhosas que elas se apresentassem. A citação das fontes, com indicação das páginas e com os nomes dos lugares ou autores, obrigará e facilitará a procura e o exame para aceitação ou refutação encaminhando-nos para a verdade, que é o que todos procuramos. Por essa razão faço as reflexões, que em seguida se lerão, e que pouco valor têm, eu o sei de sobra, mas que despertarão em alguns o nobre desejo de estudá-las e em outros o de criticá-las, certamente com procedência. Ainda nesta última hipótese, serão elas úteis, porque a crítica justa servirá para fundada emenda, sempre com proveito para São Paulo, e a desarrazoada por si mesma se destrói. Todos os comentários citados, na sua maior parte, são, pois, referentes a fatos constantes nas Atas e no Registro Geral da Câmara da vila de São Paulo, e também nos Inventários e Testamentos, do Arquivo Público Estadual, todos publicados em mais de 50 volumes, Sumário 44 Washington Luís que podem ser facilmente verificados. Por essa razão, para os fatos gerais e repetidos não posso citar sempre os volumes e as páginas em que eles se encontram, porque estão em muitos; mas para os particulares ou novos, que se opõem às versões até agora aceitas, é feita a citação do volume e da página donde foram extraídos, logo em seguida à exposição. O que vai aqui escrito parecerá sem valor, e insuficiente é, visto como muitos aspectos da colônia não são examinados. Mas como o meu propósito foi trazer para o estudo da História a contribuição fornecida pelos documentos locais relativos principalmente à constituição territorial do Brasil, a ela me limitei, tomando o auxílio, entretanto, do estudo de autores conceituados, desde que afilado por esses mesmos documentos locais. Quando não pude fazer esse afilamento, cito sempre o autor em que me baseei. Assim não há propriamente deficiência do estudo, mas principalmente falta nos arquivos investigados. Apesar das honestas e exaustivas investigações sobre as “entradas ao sertão”, até agora feitas, ainda não se escreveu sobre elas a palavra definitiva. Eu poderia ter feito um estudo proveitoso para a História da Capitania de S. Vicente e da Capitania de S. Paulo, até a Independência, útil, portanto, para a História do Brasil. Não foi possível. Faço, porém, publicar estes comentários e estas informações pela mesma razão, agora em 1956, e com o mesmo intuito, com os quais fiz publicar as Atas das Câmaras, em 1914, e os Inventários e Testamentos, em 1920. Este meu trabalho não é ainda obra de historiador. O que se vai ler é auxílio para o trabalho do futuro historiador. É, pois, estudo incompleto. É aqui apenas fornecido material para construção do edifício final, na parte relativa à Capitania de S. Vicente. Nas próprias construções de arquitetura, não se enfadam os mestres em examinar os tijolos e a madeira, ainda tosca, para adotar uns e desprezar outros. Próxima página Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo I D. JOÃO III A CONQUISTA e a posse do Brasil foram intentadas por D. João III, que chegou mesmo a começar essa obra. O achamento da Ilha de Vera Cruz por Pedro Álvares Cabral, em abril de 1500, pouco interessou a D. Manuel I, então rei de Portugal. A carta, em que D. Manuel I comunicou aos reis católicos o descobrimento feito por Pedro Álvares Cabral, contém 8 páginas com 311 linhas, e destas apenas 3 linhas se referem à terra de Vera Cruz. (Vide essa carta na obra Pedro Álvares Cabral, por William B. Greenlee, páginas 137 a 146). Na lápide que, numa pequena igreja da cidade de Santarém, em Portugal, cobre a sepultura do descobridor, o único título que se lhe dá, é o de ter sido casado com uma das camareiras de uma infanta de Portugal. Portugal, seu povo e seu rei estiveram, na época Manuelina, completamente absorvidos pelo opulento e, relativamente fácil comércio das Índias, cujo caminho marítimo os seus perseverantes e audazes marinheiros haviam descoberto, comércio que se fazia então a tiros de canhão, que apavoravam gente amolecida pela riqueza e imobilizada por uma civilização envelhecida, ou dispersa em lutas locais. Página anterior 46 Washington Luís Só o oriente interessava, então; mas com a declinação do seu comércio, a situação econômica e financeira do reino também declinava assustadoramente. Entretanto algumas explorações da costa da América do Sul haviam revelado que Vera Cruz não era uma ilha; mas estava situada num imenso continente, completamente selvagem, oferecendo, no momento, é verdade, pouco proveito mercantil. “Com o peso enorme do império D. João III herdara o erário vazio e a fazenda real bastante arruinada e viveu sempre em aflições de dinheiro” conforme o dizer de A. Pimenta, grande apologista desse rei (D. João III pág. 312). Com o sistema político-administrativo, que dominava em Portugal, eram pequenas as rendas públicas. Iniciando o seu reinado a 19 de abril de 1521, D. João III encontrou a terra portuguesa esturricada por tremenda seca que mirrou as colheitas e trouxe a miséria e a peste. Para aliviar ou combater as funestas conseqüências dessas calamidades, não podia o rei valer-se das suas minguadas rendas consumidas em outros fins inevitáveis, e teve que se valer de empréstimos externos, onerosíssimos, que avolumaram a dívida pública, e foi esse o único recurso de que dispôs a fazenda real sob a má administração econômica do reino, segundo informa Alexandre Herculano (História da Inquisição em Portugal, pág. 157 do Vol. 2º). E o mesmo Alexandre Herculano que, baseado nas atas das Cortes de 1525 e 1535, e nas notas do Conde da Castanheira, vedor da fazenda real nesse tempo, narra que a dívida pública era em 1534 de mais de dois milhões, soma avultadíssima, numa época em que o orçamento ordinário da receita e despesa não chegava talvez anualmente a um milhão de cruzados. Levantaram-se empréstimos por todos os modos, e só os juros do dinheiro negociado em Flandres subiam, em 1537, a 120.000 cruzados. “Em 1543, já a dívida estrangeira era proximamente igual a toda a dívida interna de 1534. Os juros vencidos daqueles empréstimos tinham sido tão exorbitantes, que a sua importância excedia o capital. Calculava-os o feitor português, em Flandres, em 25% ao ano, termo médio, de modo que a dívida dobrava em cada quatro anos”. Para aliviar esses intoleráveis encargos, El-Rei pediu às Cortes de Almeirim, de 1544, 200.000 cruzados, e essas só lhe ofereceram Na Capitania de São Vicente 47 50.000. Recorreu depois aos empréstimos individuais, escrevendo cartas a pessoas abastadas. Desde que encetara o caminho ruinoso dos empréstimos nunca mais o abandonou, e o Estado quase que exclusivamente vivia desse expediente. Como as necessidades cresciam, tratou-se da venda de padrões de juros, que só parou quando não houve quem os comprasse. É o resumo que fez Alexandre Herculano da carta do vedor Conde da Castanheira a D. João III. (Frei Luís de Sousa – Anais, Vol. 2º, págs. 314 a 316). “Essa situação financeira profundamente desequilibrada era conhecida de algumas cortes estrangeiras, pelo menos da cúria romana, como se vê das instruções dadas ao bispo de Bérgamo, legado do Papa em Portugal” nas quais o rei é indicado como muito pobre, com grandes dívidas e altos juros e além disso morosíssimo nas suas decisões.1 A situação era tão angustiosa, que depois D. João III se vira obrigado a abandonar algumas praças fortes nas costas da África, como Çafim (1541), Azamor (1549), Alcacer (1550) e Arzila. À fraqueza e à miséria, então reinantes, associava-se a dissolução dos costumes (A. Herculano, idem pág. 159). E Alexandre Herculano descreve (Obra citada pág. 161 e seguintes) um quadro negro e entristecedor, que abrange todas as classes, chegando a concluir que irremediável era “a decadência moral e material do país naquela triste época, decadência que explica sobejamente o próximo termo que teve a nossa independência” (Idem, pág. 157). Era também escassa a população de Portugal. Pelo censo mandado organizar por D. João III, se sabe que a população portuguesa continental atingia a 1.122.128 pessoas, a 17 de julho de 1526. (Roteiro Ilustrado de Coimbra, pág. 10). Se se levar em conta que metade dessa população seria feminina, se dela se descontassem os velhos, as crianças, os enfermos, os que deveriam ficar para o amanho das terras, os ricos e fidalgos que não abandonariam seus bens e morgadios, o alto e baixo funcionalismo, os que guarneceriam as esquadras, há de se concluir que bem pouca gente ficaria, numa época de violências, para ocupar e segurar a América Por1 Vide O Panorama, revista portuguesa, V. 9 pág. 854. 48 Washington Luís tuguesa, cuja superfície iria somar mais de oito milhões de quilômetros quadrados virgens e selvagens. Nessas condições, imprensado entre Francisco I e Carlos V, em lutas pela hegemonia da Europa, D. João III só usando de manhas poderia manter os seus domínios e senhorios. Gomes de Carvalho no seu livro (D. João III e os Franceses, pág. 11) considera-o ardiloso. Mandava ele embaixadas negociadoras de paz à França, corrompia as autoridades marítimas francesas, mas ao mesmo tempo enviava frotas para atacar e apresar navios franceses na América. Francisco I, de França, por sua vez, concedia a corsários ousados e bem armados cartas de marca, das quais a mais célebre foi a de Francisco Ango, para se apoderarem de navios portugueses e com as cargas se pagarem por suas mãos até quantia de que se julgassem danificados. Até 1536, montava a 350 os navios tomados por esses corsários. (F. Palha. A carta de marca de F. Ango, pág. 37, citando Frei Luís de Sousa). Chegado a Carlos V pelas relações de parentesco, do qual era primo-irmão e duas vezes cunhado, a situação de D. João III tornava-se mais fácil. De ambos os governos na península ibérica havia recomendações formais e expressas para respeitar as respectivas fronteiras, na América e na Ásia, mal definidas pelo Tratado de Tordesilhas. E de ambos os lados ninguém as observava. Delicada era, pois, a situação de Portugal, e dificílima, pois, a colonização do Brasil. Mas, segundo Frei Luís de Sousa, nos seus Anais, o Brasil, que ainda nada tinha dado e estava em bruto, prometia grandes maravilhas. As lendas sobre riquíssimas minas de ouro alucinavam os europeus ávidos em toda a parte da velha Europa. Ninguém podia já distinguir o que de real haveria nas ficções criadas e amplificadas por imaginações desvairadas. Acreditavam-se e repetiam-se fábulas inverossímeis, como se fossem verdades incontestáveis. Algumas dessas lendas, que corriam soltas e desordenadas, se foram condensando precisando, até se cristalizarem no El-Dourado, fabulosa terra, onde havia montanhas de ouro, montanhas de prata, situadas no Peru, em Nova Granada, enfim, nas Índias de Espanha, na América novamente descoberta. Manoa era a sua capital, Na Capitania de São Vicente 49 onde, em palácios cobertos de pedrarias preciosas, morava um rei, cujo vestir lhe dava o nome. Era o El-Dourado. Todas as manhãs lhe rociavam o corpo com uma certa goma aromática e depois cobriam-no, dos pés à cabeça, com ouro em pó, e era esse o seu trajar. À noite lavavam-no todo, tiravam-lhe o ouro servido, que não era usado duas vezes. Tal havia que estivera em Manoa e tudo vira; outro mostrava até a planta da cidade fantástica. Ora, atingir esse país e saqueá-lo era o desejo febril que escaldava a imaginação de europeus pobretões. Maiores ainda eram as outras fantasias espalhadas. As façanhas extraordinárias de Cortez e de Pizarro tornavam verossímeis tais absurdos. À Europa chegara a história de um descendente de Caramuru, Robério Dias, que se apresentara oferecendo mais prata no centro do Brasil do que ferro dava Bilbau em Biscaia, desejando em troca de tanta riqueza apenas o título de Marquês das Minas. “Por boa razão de filosofia, segundo pensava o relator das capitanias do Brasil (R. I. H. G. B. Vol. 62, pág. 24 e segts.), esta região deveria ter mais e melhores minas que a do Peru, por ficar mais oriental e mais bem disposta para a criação de metais”. Frotas de corsários franceses e ingleses, nos mares da Europa, atacavam os galeões que, carregados de ouro, vinham da América Espanhola. Os franceses começavam a se estabelecer nas costas de Vera Cruz e a negociar com os indígenas a madeira cor-de-brasa, muito usada nas tinturarias. Os espanhóis penetravam o continente americano pelo centro, navegando os grandes rios que nos primeiros tempos foram considerados golfos. Podiam estes se apossar das terras, que pertenciam à coroa de Portugal, em que estivessem essas minas. Ninguém sabia! A geografia americana era desconhecida e o tratado de Tordesilhas era bem fraco. Não obstante, obstinadamente preocupado em obter e estabelecer a Inquisição no reino, apesar dos minguados recursos financeiros, da escassez da população e das dificuldades internacionais, D. João III quis também possuir tais minas e julgou indispensável cuidar da terra descoberta por Cabral, para não a perder. 50 Washington Luís Como bem mais tarde pensou e escreveria Macaulay, D. João III convenceu-se que não bastava cravar cruzes e meter padrões nas terras descobertas para as conservar. E, assim convencido, entendeu de mudar a política seguida no reinado anterior e voltou vistas mais atentas para as costas do Brasil. A não ser o desejo de expulsar os franceses de terras, que entendia e julgava suas, “nas quais iam eles tomando pé” e a não ser também a esperança de nelas descobrir as abundantes minas de ouro e de outros metais preciosos, o Brasil representaria para D. João III um peso e uma fonte de despesa, que não seriam compensados pela honra de possuir terras na América. Era o que pensava o Conde da Castanheira, vedor da Fazenda Real, achando que no Brasil já tinha o rei gastado muito dinheiro e se começara a gastar desde 1530, (Frei Luís de Sousa – Anais de D. João III, Vol. 2º, pág. 262). Em todo o Brasil, na exploração de suas costas, de seus rios, nas armadas que para tal fim compuseram, havia-se gasto 80.000 cruzados, desde 1522 a 1544 (Anais de Frei Luís de Sousa Vol 2º, pág. 274) ou 303 cruzados por mês. Deve-se porém confessar que um cruzado naquele tempo valia muito mais que 400 réis, hoje. Se não fosse incomodado por inimigos ou êmulos, talvez deixasse essas terras como estavam, para nelas degradar criminosos e ajuntar os judeus, que o fanatismo da Inquisição julgasse conveniente não queimar. Mandar-se-ia, então, gente para as costas do Brasil, como há ainda bem pouco tempo, se mandava para a costa d’África. As situações financeira, econômica e internacional do reino não permitiam, sem grandes sacrifícios, fazer coisa diferente da que foi feita. D. João III só cuidou em povoar o Brasil para nele firmar a sua posse, na esperança do ouro e das pedras preciosas. Não pensou em colonizar. Colonizar quer dizer conhecer e explorar a terra, saneá-la, distribuí-la a homens capazes de a lavrar, de a fazer produzir, e de educar os selvagens nela encontrados, dando a estes os mesmos direitos e iguais deveres, procurar o bem-estar para todos, organizar um país ou pelo menos transformá-lo aproximando-o da metrópole, fazer dele uma pátria ou incorporá-lo a uma pátria. E todos vivendo sob as mesmas leis com as mesmas aspirações e com as mesmas recordações. Na Capitania de São Vicente 51 Ao contrário de tudo isso, no Brasil era proibido o contacto com as outras nações. Nenhum estrangeiro poderia entrar no seu território, percorrê-lo e muito menos descrevê-lo, sem licença dos governadores. Nenhuma indústria nele poderia se estabelecer sem licença dos donatários, mesmo as moendas marinhas ou engenhos para fabrico de açúcar. Nele se arrancariam as plantas similares da Índia. Não era permitida a exportação no comércio exterior, sem essas licenças que eram sempre negadas. A importação dos produtos só se fazia através da metrópole em Lisboa. A pimenta, ou o cravo, chamou-se sempre do reino, e vinha da Índia; da mesma maneira o queijo era também do reino, ainda que oriundo da Holanda, porque deveriam primeiro ir ao reino de Portugal para depois ser consumidos no Brasil. Tudo deveria passar por esse entreposto metropolitano. O trabalho só poderia ser feito pelo escasso morador do Brasil, ou pelo índio escravizado, ou pelo negro de Guiné, outra conquista de Portugal na África. Na terra americana portuguesa só conseguiam chegar os náufragos, os fugidos de bordo; estes mesmos foram impedidos pelas proibições de aportar no Brasil as naus que se destinavam às Índias. Mandavam-se também degradados e meninos desvalidos encontrados nas ruas da capital da metrópole. As vias de comunicação interiores eram constituídas por trilhos de índios, conservadas, e mal conservadas, pelos moradores pobríssimos, que não podiam atingir as capitanias vizinhas. A comunicação entre o porto de mar, em São Vicente, e o planalto, causava pavor pela dificuldade que apresentava e assombro pelo perigo que oferecia, fazendo “tremer as carnes dos que a atravessavam”. Só havia instrução pública, a ministrada pelas ordens religiosas, que só se podiam estabelecer com autorização do reino. Quem quisesse saber alguma coisa mais teria que ir a Coimbra, para a qual havia transporte precário de ano em ano. Não se consentia imprensa. Nos forais dos donatários, prevendo-se o descobrimento de minas de ouro ou de pedras preciosas, já se determinava que o quinto da produção pertenceria ao rei, embora exploradas pelos próprios descobridores à sua custa, ou por contratos feitos em Lisboa. Não há dúvida que, com esse sistema execrável, o reino fraco defendia o que julgava seu, pois que os reis portugueses julgavam as costas do Brasil como sua 52 Washington Luís propriedade, seus senhorios e as distribuíam a seus vassalos, com a obrigação de as apossearem. Mas com esse sistema abafado e hermeticamente fechado, estanque, o reino não colonizou e o Brasil não pôde progredir. Não se pode chamar D. João III de colonizador. Herdando, por deliberação dos papas, terras desconhecidas e a descobrir, quis ele, ou quiseram os seus sucessores, apenas segurar senhorios e domínios, que prometiam maravilhas, segundo Frei Luís de Sousa, matando e cativando dos nativos a parte necessária para submetê-los, transformando as conquistas em presídios baratos, de pouco custo, verdadeiras penitenciárias ao ar livre, tornando-as couto e homízio de condenados, que as suas prisões não pudessem guardar ou que a Santa Inquisição não quisesse queimar. Todos acompanhados de alguns padres que lhe ministrassem a extrema-unção, despejando degradados, cujos direitos eram o de reproduzir-se com as indígenas, e o de viver, e como pudessem, e este último bem precário em face da vontade absoluta do rei, sempre ciumento do seu poder. Não conseguindo os seus fins com as ilusórias capitanias hereditárias, doadas a vassalos, em geral sem recursos, fez D. João III do Brasil uma vasta fazenda de produtos peculiares, com um feitor e auxiliares armados, tendo como trabalhadores os indígenas escravizados ou os escravos arrancados da África, pela força, depois que foi verificado que os naturais para tal pouco serviam. Mesmo na defesa das pequenas vilas, que se criaram nas minúsculas povoações, que a iniciativa particular de aventureiros fez, quando atacados ferozmente pelos aborígines indômitos, eram os moradores que acudiam com suas pessoas, suas armas, seus mantimentos, e seus escravos. Em 1525, Alonso de Santa Cruz informa no seu Islário que, na pequenina povoação, mantida pelos portugueses no porto de S. Vicente, apenas havia uma torre para defesa contra índios em caso de necessidade. Durante a sua permanência em S. Vicente, 1532-1533, Martim Afonso de Sousa nenhuma fortificação militar aí fez para defesa das terras. Nada a respeito ele alega na Sumária Relação dos seus serviços na Na Capitania de São Vicente 53 América, nem nenhuma tradição ficou nesse sentido, que fosse citada 2 pelos seus benévolos apologistas. Hans Staden se refere a uma casa feita pelos irmãos Bragas e em seguida narra que os mamelucos e os moradores de S. Vicente determinaram edificar outra ao pé d’água e bem defronte de Bertioga e aí colocar canhões e gente para impedir o ataque dos selvagens. Não a tinham acabado e o contrataram para lá ficar, porque souberam que ele entendia de artilharia (Hans Staden, Edição do Centenário (1900), pág. 40). Nos fins de 1552 ou princípios de 1553, no tempo em que Tomé de Sousa foi a S. Vicente, parece que na ilha de Santo Amaro, defronte do canal da Bertioga, se fez a tal casa forte, onde Hans Staden ficou com um escravo carijó, tendo sido então colocados aí uns canhões. Nessa ocasião Hans Staden recebeu de Tomé de Sousa a nomeação de artilheiro, segundo se vê na Edição do Centenário (1900 – pág. 41) ou de arcabuzeiro conforme a versão de Alencar Araripe (R. I. H. G. B. vol. 55, lª parte, pág. 286). Tomé de Sousa, na sua carta de 1º de Junho de 1553 a D. João III, conta que, quando esteve em S. Vicente, fez na Bertioga, para defesa contra índios, a custa do trabalho dos moradores, sem nada custar à coroa, qualquer coisa que pareceu bem a todos, mas não diz o que foi (História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, pág. 365). Como quer que seja, a obra feita foi tão insignificante e tão mal segura, que os tamoios aí vieram, aprisionaram o improvisado artilheiro e o carregaram para as suas choças em Ubatuba (Edição do Centenário, pág. 44). Pode-se, pois, dizer, sem exageração, que o rei jamais, pelo menos para a capitania de S. Vicente, o rei jamais mandou uma guarnição para as casas fortes levantadas pelos moradores. Nada fizeram os donatários, que aliás nada ou pouco possuíam. Nenhum donatário de S. Vicente veio a sua capitania ver o que ela valia ou o que ela precisava para poder prosperar. Todos limitaram-se somente a nomear loco-tenentes, que os substituíssem. Esses loco-tenentes, pobríssimos habitantes de uma capitania sem recurso algum, tolhidos pelos alvarás régios, 2 Vide essa relação na Biblioteca de Coimbra. 54 Washington Luís que pretendiam proteger a liberdade dos índios, ou receosos da catequese que os ameaçava com as penas eternas, esses loco-tenentes pouco ou muito pouco faziam, ou nada poderiam fazer. D. João III foi de medíocre inteligência, sem nenhuma cultura; andou sempre pelos caminhos já trilhados, foi um rotineiro. Foi marido exemplar; e mesmo nas suas travessuras dos 20 anos, de que resultaram filhos, antes de tomar estado, houve-se com recato, pois, como diz Frei Luís de Sousa, “nunca fez afronta a vassalos nem à mulher força” (Anais, vol. 1º, pág. 165). Em religião foi um fanático. Estabeleceu a Inquisição em Portugal e a fez funcionar calma e cruelmente (A. Herculano.). No tempo de D. João III, o rei exercia o poder absoluto. O absolutismo medieval era a estrutura política do Império de D. João III. O rei reinava e governava, mas carecia de quem o aconselhasse e o fizesse refletir (A. Pimenta, D. João III, Pág. 23). O rei ouvia os seus secretários e conselheiros, mas fazia o que entendia e o que queria. Com o absolutismo o rei concentrava no seu querer e na sua ação todos os poderes políticos e todas as atribuições governativas. Não havia, nem se compreendia, separação de poderes. Não se falava, nem se cogitava, de Poder Legislativo, Judiciário e Executivo, e muito menos de independência desses poderes, pois que só havia um, o Poder Real. Tudo era feito diretamente pelo rei ou pelos seus agentes, e, neste último caso, quando expressamente fossem delegados poderes, eram sempre restritos para cada caso particular, e só tais delegações poderiam ser exercidas. O Poder Real só parava onde o bom senso, a humanidade, o bel-prazer do soberano consentiam ou onde encontrasse ele resistência violenta e perigosa. Não havia constituição política escrita, como não a havia em parte alguma da Europa, que regesse os povos; não havia organização sistemática que determinasse o mecanismo administrativo do reino, só havia o que o rei determinasse nos seus regimentos, nos seus alvarás, nas suas cartas régias, nas suas ordenações. Tudo emanava do rei. Bens Na Capitania de São Vicente 55 materiais, liberdades individuais, vida, direitos, honras, só existiam quando o rei os dava ou reconhecia, e enquanto não os tirava. Os governos e senhorios dos próprios fidalgos, donos de terras, condes ou barões, eram exercidos, conforme as doações feitas, e de acordo com os usos e costumes antigos, e enquanto o rei os tolerava ou não tinha forças senão para os tolerar. O rei se considerava proprietário do Portugal continental, das suas ilhas, das suas conquistas, como então se dizia, e os dava aos seus favoritos, ou àqueles que tinham prestado serviços, como estímulo a novos serviços. Os governos sobre os novos descobrimentos, os dos capitães-donatários, os dos capitães-mores, eram exercidos segundo regimentos adrede expedidos. D. João III reinou e governou com as Ordenações Manuelinas e por meio de algumas cartas régias ou alvarás por ele mesmo expedidos. As administrações locais das cidades, das vilas – das municipalidades como hoje diríamos – se faziam conforme usos imemoriais ou conforme forais expressamente concedidos para cada uma, outorgando privilégios ou poderes diferentes, sempre precários a qualquer momento revogados, suprimidos ou suspensos. No século XIV foram publicadas as Ordenações Afonsinas, 1446, primeira tentativa para estabelecimento de um sistema comum de organização e atribuições municipais, procurando-se ao mesmo tempo estreitar os laços de subordinação dos municípios ao poder central. As Ordenações Manuelinas, publicadas em 1514, em nada alteraram nessa parte as anteriores.3 Todas as concessões estavam sujeitas à Lei Mental, desde D. João I e D. Duarte. Tudo isso se praticava claramente e se consolidou aberta e lapidarmente no Cód. Felipino, 1604, Livro 3º, Tít. 75 § 1º. E um “rei absoluto”, como bem mais tarde doutrinaria Zacarias de Góis (Poder Moderador, pág. XII) é irresponsável pela própria natureza das coisas; porque não está sujeito às leis aquele que as faz e as desfaz a seu sabor, ou para usar da frase energicamente expressiva da Ordenação 3 Cortines Laxes, Câmaras Municipais, J. Mendes Júnior Monografia-Estudo-Administrativo, Carneiro Maia, O Município. 56 Washington Luís Livro 3º, Tít. 75, § 1º “o rei é a lei animada sobre a terra e pode fazer a lei e revogá-la quando vir que convém fazer-se assim”. Cumpre-nos lembrar, diz também Ribas (Direito Civil, vol. 1º, pág. 108) que outrora todo o poder político, ou o poder absoluto, residia no monarca, que se considerava como lei animada na terra. “Qualquer que fosse a forma de seus atos, eles tinham em geral a necessária eficácia para alterar o direito, tanto quanto depende do poder humano, uma vez que fosse essa a soberana vontade”. “O monarca ficava sempre superior à lei, salvo se espontaneamente quisesse submeter-se-lhe. Porque nenhuma lei, por o Rei feita, o obriga, senão quando ele fundado em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu real poder (Ord. L. 2. Tít. 35, § 21) “porque o Rei é lei animada sobre a terra, e pode fazer a lei e revogá-la, quando vir que convém fazer-se assim”. (Ord. 1 3º, Tít. 75 § 1º). Era a regra do tempo, em toda a parte do mundo. É justo reconhecer, porém, que, nessa época, a da chamada colonização americana, as nações mais ricas e mais poderosas não fizeram mais nem melhor que o Portugal desse tempo. D. João III fez e desfez como melhor entendeu ou como melhor pôde, sobre a organização do Brasil, para não perder o achamento de Cabral, e para achar minas. Foi nas condições e circunstâncias, aqui resumidamente descritas, que intentou a ocupação da costa americana. A princípio, por mais cômodo e menos dispendioso, como já se disse, dividiu o Brasil em capitanias hereditárias, e delas fez doações a alguns de seus vassalos, para que nelas estabelecessem a posse efetiva do rei de Portugal. Mais tarde instituiu um Governo-Geral nos seus domínios. Vamos ver quais foram os resultados dos dois sistemas. Mandou, porém, preliminarmente explorar toda a costa do Brasil, por uma esquadra, cujo comando foi confiado a Martin Afonso de Sousa. Antes em 1526, já a tinha feito percorrer por Cristóvão Jaques. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo II A EXPEDIÇÃO DE MARTIM AFONSO DE SOUSA D IVERSAS expedições haviam sido feitas ao longo da costa do Brasil, ou nela haviam tocado, algumas esporádicas ou fortuitas, após o descobrimento de Cabral, em 1500. Alonso de Santa Cruz, cosmógrafo-mor do Imperador Carlos V, fez parte de uma, em 1526, sob o comando de Sebastião Caboto, (partido de Espanha e entrado no Rio da Prata) navegou ao longo dessa costa notando e nomeando ilhas junto ao continente ou dele distante até 65 léguas. No seu Islário, deixou entrever como foram essas expedições constantes e informou que essas ilhas haviam sido descobertas por portugueses “veniendo a passar el Cabo de Buena Esperança para ir a Caiecut e Maluco los quales procuram de venir meter-se em altura de 35 e 40 grados para despues con los Aires frescos dei polo antartico poder a su plazer doblar el Cabo de Buena Esperança, Y desta maniera van mas ciertos e ahorram mucho camino mas, que com el que antes levavam...”1 1 Islário de Alonso de Santa Cruz, Cosmógrafo mayor del Imperador Carlos V, publicado por Franz R. Vom Wiesser Pg. 54 – Inspruck, 1908. 58 Washington Luís De algumas dessas expedições há referências ou suspeitas em estudos brasileiros e portugueses. Outras são bem conhecidas, como a de Cristóvão Jaques. Incontestável, porém, é que em 1530, D. João III, a expensas da fazenda real, organizou e enviou expressamente uma esquadra à costa 2 do Brasil, composta de cinco navios, com cerca de 400 homens, inclusive capitães, alguns fidalgos, equipagem, pilotos, mestres, guranição militar, pessoal de intendência, intérpretes, alguns degradados, e cujo comando foi confiado a Martim Afonso de Sousa. Um dos capitães de navio nessa esquadra foi Pero Lopes de Sousa, irmão mais moço do comandante supremo, e autor de um Roteiro dessa navegação, Roteiro descoberto por Varnhagen nos Arquivos de Lisboa e publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Vol. 24, pág. 9 e seguintes), já bem divulgado e ainda ultimamente analisado na parte técnica, em dois volumes, pelo Comandante Eugênio de Castro. Por ele tornou-se conhecida de maneira certa a navegação de Martim Afonso de Sousa desde Lisboa, de onde partiu a 3 de dezembro de 1530, até defrontar-se com o cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, navegando depois ao longo da costa sul do Brasil. Possivelmente D. João III deu instruções escritas sobre os fins principais dessa expedição armada.3 Foram sempre minuciosos, abundantes, longuíssimos os regimentos organizados pelo governo português para todas as suas empresas. É possível que também tenham sido dadas instruções, provavelmente secretas, a Martim Afonso, mas que até hoje não foram divulgadas ou encontradas. Para a navegação de Martim Afonso de Sousa só foram registradas três breves cartas régias. São conhecidas e podem ser lidas na íntegra na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 24, págs. 2 3 Frei Luís de Sousa fala em 7 navios; mas parece que relatando a expedição, muitos anos depois, inclui nela navios francesses apresados. Eugênio de Castro (vol. 1º, págs. 31 e 32) informa que foram 5: a nau Capitânea de 150 toneladas, nau S. Miguel de 125 toneladas, galeão São Vicente de 125 toneladas e duas caravelas Rosa e Princeza. Jordão de Freitas, no seu trabalho na História da Colonização Portuguesa no Brasil, alude, em referências, a um Regimento dado a Martim Afonso de Sousa. Ainda não foi publicado tal regimento. Na Capitania de São Vicente 59 74 a 78, ou na História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, págs. 159 -160. Vão adiante, quase que na íntegra, transcritas e analisadas as suas disposições para melhor compreensão e mais fácil exame por parte dos que se interessam pelo assunto, ainda que o seu estilo pesado seja enfadonho. Não vou fazer a biografia de Martim Afonso de Sousa, nem julgar o seu governo na Índia; e, por mais interessantes que sejam essa vida e esse governo, não têm aqui cabimento. Pretendo apenas examinar os seus feitos em S. Vicente nessa única vez que em S. Vicente esteve. Alguns escritores, aliás de subido valor, entendem que os poderes outorgados a Martim Afonso de Sousa, nessas três cartas régias, foram imensos e até discricionários em relação ao Brasil. Ouso discordar dessa opinião. Em nenhuma dessas três cartas régias, datadas de Castro Verde a 20 de novembro de 1530 e assinadas por D. João III, é Martim Afonso nomeado, ou mesmo indicado, Governador do Brasil. Na primeira carta régia, (para facilidade das citações assim designo aquela em que foi nomeado Capitão-mor da esquadra) e que é chamada a dos grandes poderes, D. João III, logo no princípio diz: “Fasso saber que eu envio ora a Martim Afonso de Sousa do meu conselho por capitão-mor da armada que envio a terra do brasil e assim de todas as terras que ele dito Martim Afonso na dita terra achar e descobrir.”... Como aí se lê, Martim Afonso é “enviado” por capitão-mor de uma armada que é “enviada” à “terra do Brasil e assim de todas as terras que ele achar e descobrir nas ditas terras”. O seu capitaneato-mor é concedido sobre a esquadra, assim o diz a carta régia de nomeação; as palavras seguintes “terra do brasil e assim de outras terras que ele achar e descobrir” indicam sem dúvida alguma, e apenas, o destino da frota e o intuito de novos descobrimentos, nessa época de descobrimentos. É o que também afirma o próprio Martim Afonso quando, na “Relação” de sua vida e obra, apresentou à rainha D. Catarina, Regente 60 Washington Luís 4 de Portugal, disse inequivocamente que... “D. João III por ter novas que no Brasil havia muitos franceses me mandou lá com uma armada para os combater”, “assim nisto como no descobrimento de alguns rios”... Desejava o rei, talvez, que fosse explorado e descoberto pelos portugueses o Rio da Prata. Terras do Brasil designavam uma parte do mundo como terras da África designavam outra. Mesmo para as terras novamente achadas na dita terra do Brasil, mesmo para os rios a descobrir, não é ele nomeado governador. O rei continua, em seguida na sua primeira carta régia: “mando os capitães da dita armada e fidalgos cavaleiros escudeiros gentes darmas pilotos mestres mareantes e todas outras pessoas que na dita armada forem e assim a todas as outras pessoas e a quaisquer outras de qualquer qualidade que sejam que nas ditas terras que ele descobrir, ficarem e nelas estiverem ou a ela forem ter, por qualquer maneira que seja, que haja ao dito Martim Afonso de Sousa por capitão-mor da dita armada e terras e lhe obedeçam em todo e por todo o que lhes mandar e cumpram e guardem seus mandados assim e tão inteiramente como se por mim em pessoa fosse mandado sob as penas que puzer as quais com efeito dará a devida execução nos corpos e fazendas daqueles que o não quizer cumprir.” Aí repete ainda, e determina também, que não só todos que iam na armada, como também todas as pessoas, de qualquer qualidade, que nas ditas terras que ele descobrisse, nelas estivessem, nelas ficassem ou a elas fossem ter por qualquer maneira, obedecessem a Martim Afonso por capitão-mor da dita armada e das terras que descobrisse e cumprissem as suas ordens, como se fossem dadas por ele próprio rei, sob penas que ele pusesse nos corpos e nas fazendas. 4 Essa relação existe na Biblioteca de Coimbra e foi publicada pelo Comandante Eugênio de Castro na sua obra Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, volume 2º pág. 54 e seguintes, 2ª edição da Comissão Brasileira dos Centenários Portugueses de 1904. Foi tirada em 600 exemplares e é raríssima. Já a citei diversas vezes. O Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro tem um exemplar, do qual foi tirada uma cópia fotográfica, que possuo e agradeço. O Diretor da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Sr. Prof. Lopes de Almeida, prestou valiosas informações sobre essa Relação. Na Capitania de São Vicente 61 Sobre as pessoas da armada e sobre os seus vassalos compreendem-se esses poderes; e extraordinário seria que, com a nomeação do capitão-mor da armada, não pusesse o rei sob sua obediência todos os que tomassem parte na expedição. Mas sobre as outras pessoas, que nas ditas terras descobrisse, nelas estivessem, a elas fossem ter ou nelas ficassem, tais poderes seriam vãos, porque tais pessoas poderiam ser súditos do próprio rei de Espanha, com quem tinha sido feito o tratado de Tordesilhas, ou súditos de outros reis que nenhum interesse tinham em respeitar o tratado de Tordesilhas, ou melhor, que não o queriam reconhecer, numa época, em que as terras novamente descobertas pertenciam aos mais ousados, que delas tomassem posse e as defendessem. Além desses, lá poderiam estar nativos em certo grau de civilização – como os Incas no atual Peru, nada se sabia ao certo – sobre os quais nenhuma autoridade poderia exercer o capitão-mor da armada por delegação do rei de Portugal, a não ser pela violência e pela conquista, se para isso tivesse forças. A carta régia fala sempre que tais poderes eram dados sobre as pessoas que estivessem ou ficassem “nessas terras que ele novamente descobrisse e achasse”, poderes sem valor, sob condição casual, sobre terras indeterminadas, que poderiam, portanto, não ser achadas ou descobertas. Note-se que a delegação de poderes a Martim Afonso de Sousa é feita sobre o pessoal da esquadra e sobre os que estivessem nas terras que ele descobrisse. A carta régia repetiu sempre as duas frases – “capitão-mor da esquadra” e “terras que ele descobrisse”. Para execução dessas ordens acrescenta a carta régia: “além disso lhe dou todo o poder e alçada e mero e misto império assim, no crime como no civil sobre todas as pessoas assim da dita armada como em todas las outras que nas ditas terras que ele descobrir, viverem e nelas estiverem ou a ela foram ter por qualquer maneira que seja, e ele determinará seus casos feitos assim crimes como cíveis e dará neles aquelas sentenças que lhe parecer justiça conforme direito e minhas ordenações até morte natural inclusive, sem de suas sentenças dar apelação nem agravo que para todo o que dito é e tocar a dita jurisdição lhe dou todo o poder e alçada na maneira sobredita”… O mero e misto império, que pelo obsoleto das palavras pode impressionar, não era um poder extraordinário. Muitos vassalos de Portugal 62 Washington Luís continental, além das mercês de juros, de tenças, de saboarias, etc., com as terras concedidas, já o possuíam e de longa data. O próprio D. João III já o havia concedido a Fernão de Miranda, como já o tivera seu pai Antônio de Miranda, ao Conde de Tentugal, assim como o tiveram Rui Vaz Coutinho e João Rodrigues Coutinho, que não foram comandantes de esquadra (Anais de Frei Luís de Sousa, vol. 1º, págs. 81 e 169). Era uma mercê usual no reino, que nada tinha de discricionária, pois que deveria ser exercida de acordo com as ordenações, como poder judiciário (Vide Elucidário de Viterbo – Verbo Cutello). Esses poderes deram a Martim Afonso a faculdade de determinar os feitos cíveis e de devassar delitos, de impor penas pecuniárias e de morte natural, sem apelação nem agravo. Foram grandes os poderes, porém limitados, pois que só seriam exercidos de acordo com o direito e com as Ordenações e que lhes retirava o caráter de discricionários. Além do limite da submissão ao direito e às Ordenações do Reino, quer dizer, aos princípios jurídicos, ao processo e as penas marcadas, estabelecia outros como se vai ver, e estes importantes. A primeira Carta Régia continua em seguida: ... porém se alguns fidalgos que na dita armada forem, e na dita terra estiverem ou viverem e a ela forem, cometerem alguns casos crimes por onde mereçam ser presos ou emprazados ele dito Martim Afonso os poderá mandar prender ou emprazar, segundo a qualidade de suas culpas o merecer, e m’os enviará com os autos das ditas culpas para cá se verem e determinarem como for de justiça porque nos ditos fidalgos no que tocar nos casos crimes hei por bem que ele não tenha a dita alçada”. Está aí expressamente declarado, o que importa restrição, que quanto aos fidalgos, que na armada fossem ou por qualquer razão estivessem na terra, as atribuições de Martim Afonso, nos casos crimes, eram preventivas, preparatórias, só podendo prender e emprazar5 mandando-os com os autos para lá, em Lisboa, se ver e determinar. Mesmo 5 Emprazar, quanto à jurisdição, significava citar alguém para que, em dia e lugar, comparecesse perante juiz de maior alçada a dar a razão das queixas, crimes ou capítulos de que fosse acusado. (Viterbo, Elucidário, verbo Emprazar). Na Capitania de São Vicente 63 esse “emprazamento” dos fidalgos lhe era retirado, no fim da carta régia, numa espécie de adendo, em que expressamente se declarava “no que toca a emprazamento dos fidalgos que em cima hei declarado, por alguns justos respeitos, hei por bem que o dito Martim Afonso os não empraze e quando fizerem tais casos por onde mereçam pena alguma crime, ele os prenderá e m’os enviará presos com os autos de suas culpas para se nisso fazer o que for de justiça.” Ordenava ao capitão-mor da armada “que meta nas terras padrões e em seu nome tome delas (posse), que não é um poder mas uma ordem. Autorizava mais se o “dito Martim Afonso “em pessoa” for a algumas partes ele deixará nas ditas terras, que assim descobrir, por capitão-mor e governador em seu nome a pessoa que lhe parecer que o melhor fará ao qual deixará por seu assinado os poderes de que ha de usar, que serão todos aqueles ou aquela parte destes nesta minha carta declarados.” Aí não é Martim Afonso nomeado governador, apenas autorizado a deixar por capitão-mor e governador uma pessoa competente, nas terras que ele Martim Afonso descobrisse, os quais teriam todos ou parte dos poderes declarados na Carta Régia, e que já foram aqui analisados. Por onde se vê que ele não poderia dar mais do que o que tinha recebido. Nessa primeira carta régia, e que é a dos grandes poderes outorgados a Martim Afonso de Sousa por D. João III, encontram-se expressos os poderes concedidos ao comandante da esquadra exploradora e ao capitão-mor “das terras que descobrisse nas terras do brasil“, sendo de notar que alguns desses poderes foram restringidos e outros até suprimidos no fim do documento que se analisa. Todas as mais palavras aí escritas: “porque para isso lhe dou especial e todo o cumprido poder como para todo ser firme e valioso requererem e se para mais firmeza de cada uma das cousas sobreditas (sic) e serem mais firme e se cumprirem com efeito e necessário de feito ou de direito nesta minha carta de poder irem declaradas alguma clausula ou clausulas mais especial e exuberantes eu 64 Washington Luís as hei assim por expressas e declaradas como si especialmente o fossem, posto que serem tais e de tal qualidade que de cada uma delas por direito fosse necessário se fazer expressa menção e porque assim me de todo praz mandei disso passar esta minha carta ao dito Martim Afonso”, são frases tabelioas, que nada acrescentam de expresso ou de especial; ao contrário há nelas o cuidado de se declarar sempre, que esse fraseado fastidioso se refere a cada uma das coisas sobreditas, o que vale apenas por uma repetição dos poderes já concedidos, e que, por essa razão, nenhum poder novo delegam. Para se verificar que não eram amplos os poderes concedidos, nessa primeira carta régia, a dos grandes poderes, basta notar que, na mesma data, foram expedidas mais duas outras cartas régias, em uma das quais autorizava o capitão-mor da armada a nomear tabeliães e escrivães e na outra a conceder sesmarias das terras que descobrisse. Inútil seria, e vão, fazer mais duas cartas régias para outorgar poderes para nomeação de tabeliães e para conceder sesmarias a quem já os possuísse imensos, discricionários, a quem já tinha todos os poderes. Nada se dá ou se acrescenta a quem já tudo possui. Se, então foi julgado necessário acrescentar mais esses dois poderes, descritos nas duas outras cartas régias – nomeação de tabeliães e concessões de sesmarias – foi, sem dúvida alguma, por não estarem eles incluídos na primeira. Por essa transcrição da carta régia se vê que não foram imensos e muito menos discricionários os poderes concedidos. Esses poderes foram, em suma, a meu ver, os grandes poderes que se delegavam (ou a que se arrogavam em alto mar) aos comandantes de esquadras descobridoras de terras em mares ignotos. Na segunda carta o rei o autoriza a criar para governança da terra dois tabeliães os quais deveriam seguir logo na frota, após deixar os seus sinais públicos na chancelaria real; e autoriza mais, depois da chegada na dita terra, se lhe parecesse necessário para governança dela, a criar maior número de tabeliães e oficiais de justiça. A expressão “para governança” da terra não nomeia governador, nem dá poderes para governá-la. A autorização, como se vê, ficou restrita para criar dois ou mais tabeliães e oficiais de justiça, que fossem necessários. Na Capitania de São Vicente 65 A criação desses tabelionatos se relacionava com os interesses dos que estavam ou quisessem ficar na terra do Brasil. Aliás a permanência de Martim Afonso na terra do Brasil deveria ser muito passageira, pois que D. João III já o autorizava também a nomear substituto, deixando a seu critério voltar logo ou não, como ainda se lê na carta que a ele escreveu por João de Sousa.6 É verdade que, nas cartas de concessão de sesmarias, o escrivão, que as lavrou, chama a Martim Afonso de governador das terras do Brasil, e Pero Lopes de Sousa, no princípio de seu Roteiro, também assim o denomina. Mas não tendo nenhum deles autoridade para nomear governador, o uso dessa expressão mostra apenas lisonja ou deferência para com o comandante da armada exploradora e tolerância por parte deste. Mas há também a acrescentar, que foram ainda restringidos os supostos imensos poderes de Martim Afonso de Sousa sobre as terras do Brasil e sobre aquelas, que descobrisse, se prestar atenção ao que na carta que D. João III escreveu em resposta a esse seu capitão-mor, por João de Sousa, a 28 de setembro de 1532 (História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, pág. 161). Aí diz textualmente: “Depois de vossa partida se praticou, se seria meu serviço povoar-se toda esta costa do Brasil, e algumas pessoas me requereram Capitanias em terras dela. Eu quizera antes de nisso fazer coisa alguma, esperar por vossa vinda para com vossa informação fazer o que bem me parecer, e que na repartição, que disso se houver de fazer escolhais a melhor parte; e, porém, porque depois fui informado, que de algumas partes faziam fundamento de povoar a terra do dito Brasil, considerando eu com quanto trabalho se lançaria fora a gente que a povoasse depois de estar assentada na terra e ter nelas feito algumas forças, como em Pernambuco já começaram a fazer, determinei de mandar demarcar de Pernambuco até o Rio da Prata cinqüenta léguas de costa a cada capitania e antes de se dar a nenhuma pessoa mandar apartar para vós 100 léguas e para Pero Lopes, vosso irmão, 50”… como vereis pelas doações que logo mandei fazer”… 6 Carta que se acha transcrita na História Genealógica da Casa Real, por D. Antônio Caetano de Sousa. 66 Washington Luís Já aí se vê que foi, pois, após a partida da esquadra de Martim Afonso, que se praticou se seria serviço do rei povoar a terra e se pensou na repartição da costa do Brasil em capitanias. Apesar de declarar que nada queria fazer sem informação de Martim Afonso, com o desejo de lhe marcar o melhor quinhão, o rei pretendeu desde logo, antes mesmo da volta do capitão-mor, fazer doações dessas capitanias a outras pessoas, o que sem sombra de dúvidas, ainda diminuía os limitados poderes, diminuindo a área sobre a qual seriam eles exercidos. Martim Afonso já não teria a seu dispor toda a costa do Brasil, mas nela apenas uma donataria, com mais companheiros, que seriam os outros capitães-donatários nela aquinhoados. E, note-se desde já, com mais extensos e mais expressos poderes que os que havia recebido o capitão-mor da armada de 1530, como se pode verificar pelo confronto das doações de capitanias e dos forais dos donatários com as cartas régias de nomeação do comandante da frota de 1530. Na falta de conhecimento de outras instruções, escritas ou verbais, dadas a Martim Afonso de Sousa, somente pelo que ele executou ou tentou executar na América, se poderão deduzir quais os objetivos da esquadra de 1530. É o que vou procurar fazer lendo o Roteiro de Pero Lopes de Sousa, que em companhia de seu irmão, o comandante, fez toda essa navegação. Partida de Lisboa a 3 de dezembro de 1530, esteve a esquadra nas alturas do Cabo de Santo Agostinho a 31 de janeiro de 1531. Chegado às águas brasílicas Martim Afonso de Sousa percorreu a costa da América do Sul diretamente, e indiretamente por seus capitães, desde o norte, até onde chegou Diogo Leite, e ao sul até certa altura do Rio da Prata pela exploração feita por seu irmão Pero Lopes de Sousa. Combateu e apresou naus e marinheiros franceses, que carregavam pau-brasil, incorporou-os à sua esquadra, desmantelou feitorias que os franceses por aí já tinham conseguido estabelecer. A 30 de abril de 1531 a esquadra estava “com a boca do Rio de Janeiro, em cuja baía entrou”. Aí, onde mandou fazer casa forte, se deteve três meses. Estando aí Martim Afonso de Sousa mandou Na Capitania de São Vicente 67 “quatro homens pela terra a dentro, foram e vieram e andaram pela terra 115 léguas, delas 65 foram por montanhas muito grandes e 50 por campo mui grande e foram até dar com um rei senhor de todos aqueles campos e lhes fez muita honra e veio com eles, e trouxeram muito cristal e deu novas como no Rio Paraguai havia muito ouro e prata”. Procurava minas. De posse dessas vagas informações, da baía do Rio de Janeiro a esquadra partiu a 1º de agosto de 1531, diretamente a Cananéia, onde chegou a 12 desse mesmo mês. Em aí chegando fez explorar a região por Pedro Annes, piloto da sua armada e língua da terra. Ao cabo de 5 dias voltou Pedro Annes trazendo em sua companhia Francisco de Chaves, mais o bacharel e cinco ou seis espanhóis. Esse 7 bacharel já aí se achava, segundo dizia, havia trinta anos. Pelas informações obtidas, principalmente de Francisco Chaves, que se comprometera a voltar em 10 meses com 400 escravos carregados de ouro e prata, Martim Afonso de Sousa, a 18 de setembro de 1531, fez partir de Cananéia pela terra adentro, em direção ao Rio Paraguai, uma força composta de 40 besteiros e 40 espingardeiros sob o comando de Pero Lobo, ao todo 81 homens, a procurar as afamadas minas. Em Cananéia, esteve 44 dias, continuando em seguida a derrota para o sul. Essa viagem para o sul até as alturas do Cabo de Santa Maria, em que se gastaram meses, foi realizada com imensas dificuldades, sofrendo muitas tempestades e tormentosos ventos, que dispersaram os navios da esquadra, já nas águas do atual Rio da Prata. Nessas alturas, a 2 de novembro, Pero Lopes de Sousa, segundo escreveu no seu Roteiro, donde tiro todas estas informações, teve notícia certa de que a nau capi7 A contagem do tempo e das distâncias, em todas as narrações dessa época, não devem ser levadas rigorosamente à risca, pelas informações dos náufragos ou degradados. Homens de pouca ou nenhuma instrução encontrados em terras desconhecidas, vivendo entre selvagens durante muitos anos, sem pontos de referências, não poderiam marcar exatamente a demora de sua estada nas paragens visitadas. Computariam o tempo pelas estações de frio, de calor ou chuvas, que se sucedem ora se adiantando ora se atrasando. Eles mesmos, pelo abandono, pelos sofrimentos, e mesmo de boa-fé, tinham tendência a exagerar, de modo que o número de anos, que referem, deve ser sempre o aproximado, e, portanto, com erros para mais. Do mesmo modo as distâncias por eles indicadas são “mais ou menos”, pois que elas dependiam das estradas trilhadas, da rapidez com que se punham em marcha, das dificuldades nesta encontradas, das léguas percorridas, cuja extensão variava de povo a povo, e mesmo no próprio povo português. 68 Washington Luís tânia havia naufragado, tendo se salvado o seu comandante, mas “perecendo seis pessoas afogadas e uma de pasmo.” Conseguindo, entretanto, reunir todos os sobreviventes nos navios salvos, Martim Afonso de Sousa “tomou conselho com os pilotos e mestres e com todas as pessoas que para isso eram e todos acordaram e assentaram que ele, Martim Afonso, não deveria ir pelo rio Santa Maria (Rio da Prata) arriba por muitas razões”, sem dúvida por haver sido reconhecido que o Rio da Prata já havia sido descoberto pelos espanhóis e estava na demarcação destes pelo Tratado de Tordesilhas, ficando assentado que só Pero Lopes de Sousa subisse o rio. À vista desse concerto e determinação, Pero Lopes de Sousa, a 23 de novembro de 1531, partiu Rio da Prata acima levando em um bergantim 30 homens, tudo em boa ordem de guerra; e, como pôde, explorou esse rio até os Carandis, onde meteu padrões portugueses, e, como a ordem era de voltar em 20 dias, daí regressou a se reunir à esquadra. Naturalmente fez observações astronômicas, naturalmente teve, ou já tinha tido, notícias das explorações nesse rio realizadas por Solis, por Caboto, por Diogo Garcia. Ele a respeito nada diz. É fora de dúvida, segundo o Roteiro, que toda a esquadra retornou a Cananéia, de onde haviam partido para o interior do continente, em direção ao Paraguai, os 80 homens com Pero Lobo. Em Cananéia demorou-se a esquadra 7 dias, sem ter tido notícias de Pero Lobo e de sua expedição. Daí partiu para o porto de S. Vicente, onde surgiu, pela primeira vez, sob o comando de Martim Afonso de Sousa, a 22 de janeiro de 1532 e onde foi deliberado que permanecesse “até ver recado da gente que tinham intimado descobrir pela terra a dentro” (R. I. H. G. B. Vol. 24; pág. 67 – linha 10).8 Pela análise dos acontecimentos, em que tomou parte a expedição de Martim Afonso de Sousa desde o cabo de Santo Agostinho, para o norte e para o sul, pelo que ela fez, deduzo, e como deduzem outros cronistas, que a sua missão foi: 8 O episódio da ida de Tibiriçá desde o planalto até S. Vicente com 500 sagitários, tendo à frente João Ramalho, não encontra fundamento nos documentos que consultei; antes é contrariado por já haver nessa época moradores em S. Vicente. Já Aires do Casal havia feito essa observação, na sua Corografia Brasileira. Na Capitania de São Vicente 69 1º – Expulsar do Brasil os franceses que aí já começavam a se estabelecer, comerciando com os índios. 2º – Descobrir minas de ouro e prata e mais metais preciosos que se esperava existir, muito abundantes, mais a leste das que os espanhóis se haviam apoderado, e que então desvairavam o mundo excitando a cobiça geral. 3º – Reconhecer toda a costa e saber o que pertencia a Portugal, nos termos do Tratado de Tordesilhas. Esperava talvez D. João III que o seu domínio incluísse o Rio da Prata. 4º – Fortalecer civilmente e fortificar militarmente os diversos pontos na costa do Brasil, dentro da demarcação portuguesa, para assegurar os senhorios do rei de Portugal, e nelas estabelecer postos de ocupação, cravando padrões portugueses de posse. Os trabalhos de Martim Afonso de Sousa foram grandes e neles “passou muitas fomes e muitas tormentas e por derradeiro lhe dar uma tão grande que se perdeu a nau, em que ia, e escapou em uma tábua”.9 Os seus resultados, porém, foram nulos, ou quase. Martim Afonso, não há dúvida, fez o que pôde, e tudo por ordem e conta de D. João III; mas o que fez foi incerto, precário e pouco duradouro. Os franceses, negociantes de pau-brasil, foram expulsos então, mas continuaram esse tráfico com os indígenas, e pouco depois, chegaram a fundar a França Antártica no Rio de Janeiro e a se estabelecer no Maranhão. No reconhecimento da costa da América portuguesa pouco adiantou ao que já se sabia ou suspeitava, continuando tudo mais ou menos atrapalhado. É verdade que mandou por padrões portugueses no rio da Prata, os quais, porém, não permaneceram. Mas é verdade, também, que o rei, que escrevera pretender conceder capitanias desde Pernambuco até o rio da Prata nos seus domínios, dando apenas, ao sul, indeterminada fronteira a de Pero Lopes de Sousa. Na própria distribuição das capitanias de “S. Vicente” e de “Santo Amaro” ao comandante da esquadra e ao autor do Roteiro da 9 Vide Sumária Descrição dos Serviços de Martim Afonso, que se conserva na Biblioteca de Coimbra, publicada por Eugênio de Castro. 70 Washington Luís expedição, as informações geográficas obtidas foram tão incertas e confusas, que originaram intermináveis demandas judiciais, entre os herdeiros desses dois navegadores, causando-lhes dificuldades e prejudicando enormemente o desenvolvimento da colônia. As minas de ouro não foram descobertas, nem descoberto caminho para elas, não recebeu recado da gente que mandara a descobrir pelo sertão adentro. Apesar disso, no sertão, e naquele tempo, mesmo as más notícias andavam lentamente, mas sempre andavam. De índio a índio, de tribo a tribo, de aventureiro a aventureiro, Martim Afonso veio a saber que a expedição de Pero Lobo – comandante dos 80 homens – havia sido completamente trucidada pelos carijós próximo à foz do rio Iguaçu no rio Paraná. Esse mau sucesso é narrado nos Comentários de Cabeça de Vaca à viagem que fez, por terra, de Santa Catarina a Assunção em 1541 (R.I.H.G.B. Vol. 56, pág. 218, Parte 1ª) e é ele confirmado num requerimento dirigido ao Capitão-Mor Jerônimo Leitão, a 10 de abril de 1585, pela Câmara de S. Paulo em que se refere à matança dos 80 homens de Martim Afonso (Livro de Atas, Vol. 1, pág. 276) Câmara que, sem a menor sombra de dúvida, não leu os Comentários de Cabeça de Vaca, e nem deles jamais teve conhecimento. Nesse mesmo requerimento a Câmara informou também que Martim Afonso de Sousa, quando se foi desta terra, deixou determinado a Pero de Góis e a Ruy Pinto que levassem a guerra a esse gentil carijó, que vagava ao sul, guerra que eles, entretanto não fizeram conforme se vê na ata citada. Nessa expedição temerária e infeliz, perdeu Martim Afonso de Sousa um quinto do seu pessoal, 81 homens em 400. Não fortificou militarmente as feitorias portuguesas estabelecidas por iniciativa particular na costa do Brasil, nem dispunha de meios para o fazer. Não fundou vilas, nem tinha poderes para as fundar, como adiante veremos apesar das referências de Pero Lopes de Sousa, tendo apenas nomeado tabeliães e concedido sesmarias de terras, que, evidentemente, nessas feitorias, criaram laços civis com a metrópole. Durante a sua permanência em S. Vicente, desde 22 de janeiro de 1532 até meados de maio de 1533, onde esteve a esperar recado da expedição de Pedro Lobo, conforme o dizer de Pero Lopes de Sousa, daí fez, provavelmente, partir outras expedições pelo sertão à procura de minas de ouro, conforme narram cronistas espanhóis, com grandes erros Na Capitania de São Vicente 71 cronológicos. O seu intuito foi, a meu ver, descobrir e apossar-se a leste, do ouro que Cortez e Pizarro tinham encontrado a oeste. Desiludido quanto ao descobrimento de minas, resolveu voltar para Lisboa. A sua presença e a de sua esquadra deram algum movimento a S. Vicente. Quando partiu de S. Vicente para Lisboa, onde chegou em meados de agosto de 1533, deixou, segundo dizem, Gonçalo Monteiro 10 como capitão e substituto e aí ficaram, sem dúvida, algumas pessoas da esquadra, conforme estavam autorizadas pela carta régia. Mas não foram muitas. Não teria ele muita gente para deixar, e esta não era povoadora. Da sua esquadra, composta de 5 navios ao partir de Lisboa, segundo o Roteiro, mandou ele as duas caravelas – Rosa e Princesa – sob o comando de Diogo Leite a percorrer a costa norte do Brasil, donde voltaram diretamente para Portugal. A nau capitânia naufragou ao sul, perto das águas do rio da Prata. A 22 de maio de 1532 (R.I.H.G.B., Vol. 24, pág. 67) fez partir para Lisboa Pero Lopes de Sousa com as naus, (no plural o que quer dizer duas pelo menos) pois “gastadas como estavam pelo buzano e a gente do mar vencendo todo o soldo sem fazer nenhum serviço a el-rei, comendo os mantimentos da terra”, não seria acertado permanecer nas costas do Brasil. Há referências ao desgarro da nau S. Miguel, sob o comando de Heitor de Sousa. É verdade que ele apresou três naus francesas e as incorporou à sua esquadra. Dessas três naus uma foi queimada, e outra foi destinada a João de Sousa para levar a Lisboa ao rei de Portugal notícias da expedição. Incorporou à sua esquadra uma nau que ia para 10 Em 1560 havia em S. Vicente um vigário que se chamava Gonçalo Monteiro. Mas esse era “vigário e ouvidor eclesiástico em todas as capitanias de Santos e de Santo Amaro, pelo muito reverendo Senhor Dom Pero Leitão, Bispo da cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos e Comissário Geral em toda a costa do Brasil, por el-rei, Nosso Senhor”. Foi perante ele que o requerimento do P. Luís da Grã se iniciou, a 22 de abril de 1560, na vila e porto de Santos, o processo por heresia contra João Cointa, senhor de Boulés. Nele depuseram muitas testemunhas entre as quais Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. O Vigário absolveu o réu tendo havido apelação para o Bispo na Bahia, conforme se vê no processo publicado nos Anais da Biblioteca Nacional, V. 25, Pgs. 225 a 260. 72 Washington Luís Sofala. É verdade também que João de Sousa voltou em duas caravelas com a resposta de D. João III. Restariam, pois, em S. Vicente com Martim Afonso de Sousa dois ou três navios. Calculando-se em 400 homens (pois que para 400 homens tomou ele mantimentos no Rio de Janeiro) o pessoal de sua armada, e dele se descontando os 7 mortos no naufrágio da capitânia e os 81 perdidos na expedição de Pero Lobo, partida de Cananéia, restariam 312 homens. Desses sobreviventes a maior parte deveria ter guarnecido os navios que partiram para a Europa, como guarneceria com equipagem e com militares os dois outros navios, em que Martim Afonso regressou, que um chefe de expedição não poderia dispensar, nessas travessias perigosas, em mares infestados de inimigos, corsários e piratas. A esquadra de Martim Afonso foi uma esquadra combatente que ao norte pelejou bravamente com os franceses, “que estavam tomando pé nos senhorios do rei de Portugal”, e que ao sul foi explorar rios desconhecidos e descobrir terras inteiramente ignotas, em procura de minas, respeitando sempre os direitos de Castela, conforme recomendação instante. Não foi, portanto, e não poderia ter sido, uma esquadra povoadora. O próprio D. João III, na carta que escreveu ao Comandante da esquadra, a 28 de setembro de 1532 expressamente declara “depois de vossa partida se praticou si seria meu serviço povoar-se toda essa costa do Brasil” (Lugar citado). Só depois da partida de Martim Afonso é que se praticou sobre povoamento, com a distribuição de capitanias. E essa distribuição só foi feita em 1534, quando Martim Afonso já se achava na Índia. Não trouxe essa esquadra mulheres, elemento indispensável para a estabilidade da família, condição para colonização e povoamento. Não se conheciam ainda bem as terras encontradas e não se sabiam quais as que se iam encontrar, não se sabia mesmo o que elas poderiam representar. Não há nenhuma notícia de que trouxesse instrumentos agrários para cultivo. Não havia, pois, meios de semear nem esperanças de colheitas para consumo interno ou exportação e comércio, num tempo de raras e difíceis comunicações com a metrópole. Na Capitania de São Vicente 73 Convenceu-se ele que essas terras eram brutas, nas quais só havia a indústria extrativa do pau-brasil, com esperanças falsas de minas lendárias, terras habitadas por indígenas selvagens, nômades cruéis e antropófagos, no mais baixo degrau da humanidade. Naturalmente, e isso D. João III havia autorizado em sua carta régia, alguns desses homens, que vieram na armada, ficaram em S. Vicente, obrigados, ou atraídos pela possibilidade de descobrimento de minas, que num golpe, os enriquecesse. Martim Afonso de Sousa, segundo as três cartas régias analisadas, foi, pois, nomeado capitão-mor de uma esquadra exploradora do achamento de Cabral e das terras que achasse e descobrisse. Não foi nomeado Governador do Brasil, não trouxe meios para povoamento, não teve poderes para criar vilas, como se vai ver. Como adiante mostrarei, ele nada fez pela sua Capitania de S. Vicente. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo III CAPITANIAS HEREDITÁRIAS A INDA Martim Afonso de Sousa navegava com sua esquadra expedicionária pelas costas da América do Sul e já o rei de Portugal, D. João III, deliberava a distribuição do Brasil em capitanias hereditárias, por alguns de seus vassalos, e tal lhe fizera saber em carta de 28 de setembro de 1532, de que fora portador João de Sousa. Martim Afonso estava no porto de S. Vicente, e aí esteve um pouco mais de 13 meses, à “espera de recado da gente que mandara ao sertão a buscar ouro”, quando lhe chegou notícia dessa deliberação. Tendo aportado a 22 de janeiro de 1532 ainda aí se conservava a 4 de março de 1533, data em que concedeu uma sesmaria a Francisco Pinto (Apontamentos Cronológicos de Azevedo Marques). Retornou a Lisboa em meados de agosto de 15331 para dar conta ao rei do resultado de sua expedição. Sem dúvida D. João III, tomando conhecimento desse resultado, e dele se contentado, nomeou Martim Afonso capitão do mar da Índia, a 19 de dezembro de 1533, para onde ele partiu a 14 de março de 1534. 1 Sumária Descrição dos Serviços de Martim Afonso, que se encontra na Biblioteca de Coimbra, já citada. 76 Washington Luís Antes da partida para a Índia, antes de receber a doação da capitania de S. Vicente, já Martim Afonso havia passado procuração a sua mulher, D. Anna Pimentel, em 4 de março de 1534, para cuidar e tratar de todos os seus negócios. Com o sistema adotado, feito depois dessa partida, conforme se verifica pelas datas das cartas de doação e de foral, expedidas no correr e depois de 1534, repetia-se, no Brasil, o que se havia feito na ilha da Madeira e no arquipélago dos Açores, mas não se levando em conta que as situações dessas possessões eram bem diferentes. Naquelas ilhas desabitadas não havia a combater selvagens cruéis e antropófagos, nem nelas havia minas de ouro cobiçadas por outros países, contra os quais haveria que pelejar. Aquelas ilhas pequenas estavam próximas ao Portugal continental, tornando-se habitual a freqüência e mais fácil a sua defesa; o Brasil enorme estava situado num continente imenso, a grandes distâncias marítimas, tornando dificílimas as comunicações raríssimas com a metrópole, num tempo em que “os mares começavam a ser navegados”. *** Não tem aqui cabimento o exame para se classificar ou não como feudal o regime das capitanias hereditárias. O feudalismo, que ficou marcado com a invasão dos bárbaros e a dissolução do império romano, foi se fazendo aos poucos e se transformando lentamente através de toda a idade média. As capitanias hereditárias foram estabelecidas por diplomas assinados por D. João III, rei absoluto de Portugal, e neles se acham os seus elementos constitucionais. A Capitania de S. Vicente foi doada a Martim Afonso de Sousa, em duas cartas régias, ambas datadas de Évora, e que se podem ler no Registro Geral da Câmara da Vila de S. Paulo, nas páginas 385 e 397 do volume I. A primeira em data – 6 de outubro de 1534 – chamada Foral, discrimina quais os direitos, foros e tributos que o capitão-donatário auferiria nessas terras e quais os que o rei reservava para a coroa dos seus reinos. São eles os seguintes: 1º – dar e repartir em sesmarias as terras, conforme as Ordenações do Reino, a quaisquer pessoas, contanto que cristãs, livremente e Na Capitania de São Vicente 77 sem foro algum, salvo o dízimo à Ordem do Mestrado de Nosso Senhor Jesus Cristo que, diga-se logo, pertencia ao rei, não podendo, porém tomá-las para si, nem para sua mulher, nem para o filho herdeiro. 2º – reservar para o rei o quinto (a quinta parte) de qualquer sorte de pedrarias, pérolas, aljôfar, ouro, prata, coral, estanho e chumbo, que os sesmeiros encontrassem na capitania, sua costa, rios e baías, pertencendo ao donatário a redízima. 3º – reservar para o rei, ao qual pertenceriam exclusivamente, todo o pau-brasil e também qualquer especiaria ou drogas, quaisquer que fossem. 4º – reservar para a Ordem de Cristo o dízimo de todo o pescado da capitania, não sendo à cana; isto é, de cada dez peixes um, ficando-lhe a meia redízima, isto é, de cada vinte peixes um. 5º – permissão para mandar trazer de quaisquer cidades, vilas e lugares do reino – a não ser escravos e outras coisas proibidas – qualquer sorte de mercadoria e livremente vendê-las, mesmo para fora do reino, sem pagar direitos, salvo as cizas. 6º – dar permissão aos estrangeiros de lá comerciarem pagando as dízimas e redízimas, posto que já tivessem pago em outros portos dos reinos. 7º – entrada livre de artilharia, salitre, enxofre, chumbo e coisas de munição de guerra desde que introduzidos por cristãos súditos do rei de Portugal. 8º – interdição de carga e descarga de navios, salvo com licença do donatário. 9º – interdição de comércio direto do gentio da terra com estrangeiros, devendo ser feito por intermédio do donatário. 10º – comércio livre com as outras capitanias. 11º – autorização para os alcaides-mores perceberem os direitos, e tributos estabelecidos nas ordenações. 12º – autorização para perceber direitos de passagens nos rios, onde houvesse necessidades de estabelecê-las. 13º – obrigação dos tabeliães nomeados pagarem quinhentos réis anuais pelos seus ofícios. 78 Washington Luís 14º – obrigação de todos os moradores servirem nas guerras com o capitão, quando necessário. E pouco mais. Na segunda carta régia – datada de 20 de janeiro de 1535, posterior de mais de 3 meses ao Foral – de seu próprio moto, certa ciência, poder real e absoluto – fez mercê e irrevogável doação, de juro e herdade, a Martim Afonso de Sousa, para ele, seus descendentes e sucessores para todo o sempre de cem léguas de terras na costa do Brasil separadas em duas partes a saber: a primeira de 55 léguas começando a 13 léguas ao norte do Cabo Frio até o rio Curparê (hoje Juqueriquerê); a segunda parte começando no rio de S. Vicente até doze léguas ao sul de Cananéia; nessas divisas indicadas deveriam ser postos padrões, com as armas reais, e deles correriam linhas diretas entrando para oeste pelo sertão adentro e terra firme, tanto quanto fossem as conquistas do rei de Portugal, abrangendo no mar as ilhas adjacentes até dez léguas. Sobre essas terras, que incluíam a baía do Rio de Janeiro, teriam Martim Afonso e seus descendentes jurisdição cível e criminal, conforme abundantes cláusulas que procurarei resumir adiante. Nessas terras, porém, ficavam encravadas dez léguas de costa, desde o rio Curquerê, até o braço norte do rio de S. Vicente, doadas a Pero Lopes de Sousa. As linhas diretas, que dos padrões partiriam para o sertão a oeste, iriam até encontrar a linha indecisa norte-sul, a do tratado de Tordesilhas, a qual saindo da ilha Marajó iria fenecer pouco mais ou menos na ilha de Santa Catarina. Nessa carta de mercê e doação se repetia a concessão de direitos e tributos que ficavam pertencendo ao rei e os que eram outorgados ao donatário, acrescentando-se, porém, que este poderia: 1º – pôr ouvidor para conhecer das ações novas até dez léguas de sua sede, e dos agravos e apelações de toda a capitania, e para estar presente às eleições de juízes e oficiais, alimpar e apurar as pautas e passar aos respectivos oficiais as cartas de confirmação de seus cargos, podendo pôr meirinhos e escrivães e mais oficiais necessários. 2º – criar e prover tabeliães do público e judicial que julgasse necessários. 3º – fazer vilas em todas as povoações, “as quais se chamarão vilas e terão termo, jurisdição e liberdades e insígnias, segundo forma e costumes do reino de Portugal, nas povoações, porém, que estivessem ao longo da costa e dos rios navegáveis; nas outras povoações pelo Na Capitania de São Vicente 79 sertão e terra firme não poderia criar senão tendo seis léguas de termo para cada uma delas, e depois destas criadas não poderia fazer outras sem licença do rei” (Notar a data deste poder). 4º – arrecadar para si todas as rendas das alcaidarias-mores que fossem criadas. 5º – possuir exclusivamente todas as moendas de águas marinhas de sal, e só a ele cabendo dar licença para fazer tais moendas, concertando os foros e tributos, que lhe pertenceriam. 6º – concessão de vinte léguas ao longo da costa, livres e isentas de quaisquer direitos ou tributos, porém separadas em quatro ou cinco partes onde as escolhesse. 7º – permissão para mandar para Lisboa, dos escravos que resgatasse, 48 peças anuais, livres de direitos. Regulava ainda a ordem de sucessão na capitania, as armas que deveria ter o donatário e estabelecia o nome Sousa que deveria usar o donatário; e mais que a capitania não podia ser despedaçada, ou separada, conservando-se sempre íntegra, estabelecendo que nela não poderia entrar em tempo algum corregedor, nem alçada, nem outras justiças, ainda que as ordenações fossem contrárias e ficando suspensa a lei mental, e tudo isso para todo o sempre. As outras cláusulas são pouco mais que desenvolvimentos longuíssimos das concessões já feitas no Foral, nelas estabelecendo penas. As repetições “para todo o sempre”, “derrogação das ordenações”, “suspensão da lei mental”, pouco valor tinham, corria tudo o mais, pois que poderiam ser revogadas a qualquer tempo, visto como ao rei absoluto, que fazia a lei, cabia revogá-la quando assim julgasse que convinha assim fazer. Apesar das informações colhidas por Martim Afonso de Sousa a geografia da costa do Brasil ficara ainda tão mal conhecida, que D. João III, querendo dar as maiores porções aos irmãos Sousa, como ele anunciara, deu-lhes bem menor superfície de terras no Brasil, do que aos outros donatários. É fácil de verificar. As capitanias doadas constavam de 50 léguas de frente nas costas do mar e com os fundos até onde chegassem as chamadas conquistas de Portugal no Brasil. 80 Washington Luís Ora, desde o Cabo de S. Roque até o Cabo Frio, a costa do Brasil corre sensivelmente de norte a sul infletindo-se ligeiramente para oeste; aí, tendo-se o rosto para África, poder-se-iam marcar 50 léguas de frente para cada capitania com os fundos até às conquistas de Portugal, isto é, até a linha do tratado de Tordesilhas. Mas do Cabo Frio para o sul essa costa dobra-se visivelmente para o oeste de modo que nas doações feitas a Martim Afonso e, aí, a Pero Lopes, poucas léguas se poderiam contar de norte a sul, só podendo ser medidas, quase na totalidade, na costa para o oeste, o que, por conseqüência, estreitava e diminuía a capitania de Martim Afonso, na sua primeira porção, limitando-a ao norte com terras doadas a outros e logo encontrando a oeste a linha do tratado de Tordesilhas. Menor frente e menor fundo. Na segunda porção, por essa mesma e maior inflexão da costa para o oeste, mais depressa ainda essa capitania esbarraria com a linha de Tordesilhas. E ainda tinha ela encravadas, entre o rio de Juqueriquerê e o rio S. Vicente, dez léguas de costa, que constituíam a capitania de Santo Amaro, doada a Pero Lopes de Sousa e que pouca coisa era, apenas uma orla marítima encontrando à pequena distância, a leste, a norte, e a oeste, a capitania de Martim Afonso. Um simples, mesmo despreocupado olhar sobre a carta geográfica do Brasil, onde se tracem as capitanias hereditárias, conforme a distribuição feita por D. João III, mostra que a Capitania de S. Vicente seria uma das menores, como mostra a carta junta. Bem pouca coisa, em superfície, comparada com as outras capitanias, foi o que recebeu o comandante da expedição de 1530. Mas a verdade é que D. João III bem pouca coisa deu aos donatários; pois que as cartas de doações e os forais foram apenas papéis de chancelaria, onde se determinava a obrigação de ocupar e povoar terras em poder de selvagens cuja única aspiração, cujo fim único na vida era fazer guerra bravia e tão cruel, que os vencidos não eram escravizados, nem lhes era dada a morte simplesmente, mas eram aprisionados para serem devorados. Essas doações pouca coisa ou nada representavam, pois que a posse e ocupação das terras doadas só se fariam a ferro e fogo, pela força, que os donatários não possuíam. As cartas de doação não foram mais que uma espécie de autorização para, em terra, conquistar senhorios para o rei de Portugal no achamento de Cabral e tudo à própria custa dos donatários. Foi em suma, uma espécie de grilo, na moderna acepção Na Capitania de São Vicente 81 paulista, quando se povoou, nos princípios do século 20, o sertão desde os rios do Peixe e Aguapeí ao Paranapanema, território então figurado nos mapas do Estado de S. Paulo da época, como terrenos pouco conhecidos e habitados por selvagens. Pode-se mesmo afirmar que os célebres grilos paulistas, nos princípios do século 20, tinham mais eficiência que os concedidos por D. João III, no século 16. O Estado de S. Paulo já se havia constituído com as fronteiras da antiga província imperial, que aí se limitavam pelos rios Grande, Paraná e Paranapanema. Essa zona se compunha de terras devolutas, que, segundo a Constituição da República, pertenciam ao domínio do Estado. Este nenhum interesse tinha em conservá-las; ao contrário desejava vê-las cultivadas, sob posse e domínio privados, e sobre tal legislou. As estradas de ferro Sorocabana, Paulista e Noroeste por elas já avançavam ligando-as a centros populosos e consumidores, com polícia, justiça, enfim tendo todo o próximo aparelhamento da civilização em função. Os donatários poucos recursos tinham ou não tinham recursos de espécie alguma. Não podiam equipar esquadras que dos corsários defendessem suas doações, nem mesmo podiam organizar forças militares que as assegurassem dos ataques aborígines. Tampouco dispunham do poder absoluto para obrigar colonos a se transportar para terras brutas ou para nelas permanecer, cultivando-as. D. João III não deu assistência material, nem a poderia dar, aos donatários, para essa obra formidável de povoamento e colonização, que ainda hoje, quatrocentos anos depois, ainda não se fez completamente, por causas que direi adiante. Nessa terra bruta, que era o Brasil de 1534, habitado por selvagens nus e antropófagos, que só pescavam o peixe para a comida do dia, que não cultivavam, que não comerciavam, que ignoravam as relações civis da sociedade; nessa terra com transportes marítimos raríssimos, demorados e perigosos, banhada por mares infestados de piratas e corsários, nessa terra as mesquinhas dízimas e redízimas sobre coisas inexistentes, direitos de passagens em rios, os somíticos quinhentos réis anuais dos tabeliães, tudo somiticamente contado, recontado, descontado, nada seduzia o donatário, desiludido de descobrir metais preciosos, e muito menos nela se reteriam colonos. Mapa copiado do trabalho do Sr. Augusto Fausto de Sousa na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 43, entre páginas 34 e 35. (O reticulado escuro indica a Capitania de Martin Afonso e a retícula clara, a de Pero Lopes.) Na Capitania de São Vicente 83 Pedro Taques e Frei Gaspar afirmam nos seus escritos que na esquadra de Martim Afonso vieram muitos fidalgos, que permaneceram. Se vieram, pertenciam à pequena fidalguia de fresca data, nobilitados pelos reis de Portugal pelos seus feitos heróicos, entre os quais estaria a temeridade de ficar, então, nas selvas do Brasil. Nenhum deles, a não ser o comandante e seu irmão, pertencia à nobreza de linhagem portuguesa. Muitos seriam nobres por serem aparentados com pessoas que exerciam cargos, cujo exercício conferia nobreza. E, se vieram, não permaneceram, como os Góis, os Pintos. Algumas pessoas, que vieram na esquadra, ficaram sem dúvida em S. Vicente. Mas seriam em pequeno número, como já observei, e não eram fidalgos. O rei premiava e armava fidalgos, como mais tarde a monarquia brasileira fazia comendadores e a República criava coronéis da Guarda Nacional. Não é demais notar que, salvo algumas exceções, não eram esses fidalgos menos broncos, nem mais sensuais que os homens que, na idade média partiam em cruzadas para conquistar do muçulmano o túmulo de Cristo. Lá iam alguns por motivo de fé religiosa, mas outros acobertavam a cobiça ou o espírito de aventura com essa fé religiosa para devastar cidades. Aqui eles partiriam para o sertão a procurar braços para seus trabalhos, e, afastando as fronteiras dos senhorios de seus reis, fundavam cidades, concorrendo para a civilização de um continente. E estes aqui, duros e rijos, constituíram, pela mestiçagem, como adiante procurarei demonstrar, uma raça forte. Se aqui tivessem ficado os fidalgos de linhagem, imbuídos de preconceitos de cor e de raça, amolecidos pelo viver na corte, ou habituados a serem obedecidos nos seus morgadios, não haveria Brasil. Só essa gente rude, que ficou para mestiçagem, poderia deixar aos seus descendentes o nome de bandeirantes. Só os seus descendentes imediatos, os meio-sangues, os mamelucos, como injusta e desprezivelmente eram então conhecidos, poderiam afrontar e vencer as agruras do sertão. 84 Washington Luís O verdadeiro valor da gente de S. Paulo nasce com os bandeirantes, com eles se enriquece nas minas de ouro, mais tarde descobertas, e depois se fizeram os nobres de hoje, que contam 400 anos na sua ascendência. Penso mesmo que essa descendência só é nobre por proceder daqueles que, antes nada tendo e nada sendo, vieram, desesperados por qualquer motivo, para aqui permanecer, conquistar, semear, apascentar gados, povoar a terra, e assim constituíram os antepassados valorosos de que se orgulham aqueles de que S. Paulo se orgulha. É desses que se deve contar a nobreza paulista, e não dos camareiros da casa real, dos escudeiros, dos infantes ou dos criados dos duques e barões, que aqui não ficaram. Nesse tempo os fidalgos não povoavam. Desprezando o comércio, a indústria e a lavoura, procuravam o exército, a armada ou o clero. Eram generais, comandantes de navios ou bispos. As poucas pessoas que vieram para as capitanias, nesse período, foram náufragos, degradados, fugidos de bordo, que se embrenhavam nas selvas e muitos deles tomavam os costumes dos canibais estúpidos, ou eram aventureiros à procura de novas aventuras. O Padre Manuel da Nóbrega, pouco depois, em 1549, ainda escrevia ao Padre Mestre Simão, que “o que vinha em clérigos era a escória do reino” (Cartas Jesuíticas, vol. 1º, pág. 77). Pode-se imaginar o que seria o resto. Não estudei detidamente a ação dos donatários em as outras capitanias. É sabido, porém, que alguns não procuraram sequer conhecer as suas terras, como João de Barros; Aires da Cunha naufragou antes de lá chegar. Fernão Álvares de Andrade nem tentou, e se tentou, não chegou a obter foral das suas; Pero Lopes de Sousa morreu pouco depois da doação, nada tendo empreendido; outros inteiramente descorçoados abandonaram as suas. Francisco Pereira Coutinho morreu assassinado na Bahia pelos índios que o devoraram. Todos, diante das dificuldades imensas e dos obstáculos insuperáveis encontrados, com exceção de Duarte Coelho em Pernambuco, iam largando as terras das costas do Brasil. Na Capitania de São Vicente 85 Como todos os outros donatários, Martim Afonso de Sousa, no tempo da doação, não dispunha de recursos para empreender por conta própria uma obra de colonização no Brasil, bruto e selvagem. Em S. Vicente, nada fez pela sua capitania, quer usando dos recursos da fazenda real, quando nessas terras esteve como comandante da esquadra expedicionária, quer depois quando donatário. Jamais a ela voltou. Alonso de Santa Cruz, como disse no Capítulo III, informa que os portugueses, quando viajavam para Calecut e Maluco, costumavam meter-se em altura de 35 a 40 graus, para com facilidade dobrar o Cabo da Boa Esperança. Martim Afonso de Sousa fez essa viagem quatro vezes, indo e voltado como capitão do mar (1534 e 1539) e indo e voltando como Governador da Índia (1541 e 1546), tendo, na primeira viagem arribado na Bahia; jamais tocou em S. Vicente, sua capitania, mostrando assim nenhum interesse por ela. A indiferença pelas cem léguas de costa, que lhe foram doadas no Brasil, foi tão grande, que sabendo que o Conde da Castanheira nelas queria uma parte, comunicou-lhe de Diu a 14 de dezembro de 1535: “Pero Lopes me escreveu que vossa senhoria queria um pedaço dessa terra do Brasil, que lá tenho; mande-a tomar toda ou a que quiser, que essa será para mim a maior mercê e a maior honra do mundo (História da Coloninação Portuguesa no Brasil, vol. 3º, pág. 107). Porém, há ainda mais, ou ainda há menos. Martim Afonso de Sousa, na Breve e Sumaríssima Relação dos seus serviços (já citada) que prestou ao Rei de Portugal, durante 41 anos, deveria se referir aos que empreendeu na Capitania de S. Vicente. Era natural, lógico e mesmo indispensável que numa justificação de trabalhos, feita para obter remuneração, graças, favores, benefícios, alegasse os serviços prestados na fundação das vilas de S. Vicente e de Piratininga na costa do Brasil, na nomeação nelas de tabeliães, na concessão de sesmarias a numerosos fidalgos da sua esquadra, segundo Taques e Frei Gaspar, que em S. Vicente teriam ficado para a colonização dessas terras e segurança nelas dos grandes senhorios de D. João III. 86 Washington Luís Nada diz ele sobre S. Vicente nem mesmo se refere ao nome dessa capitania2 que já lhe pertencia ao tempo da apresentação do memorial. 2 Nota – O Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, no volume 51, pág. 215, acolheu a Brevíssima e Sumária Relação dos Serviços de Martim Afonso de Sousa, por mim enviada, de acordo com a publicação da 2ª edição dos Comentários feitos pelo Comandante Eugênio de Castro ao Roteiro de Pero Lopes de Sousa; 2ª edição raríssima, feita em 500 exemplares, dos quais possui um o Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. O original está na Biblioteca de Coimbra. Esse Gabinete, com delicada complacência, permitiu que fosse tirada uma fotocópia, que serviu de base para a publicação feita pelo Instituto de S. Paulo. Agora, entretanto, Da. Luísa da Fonseca, antiga Subdiretora do Arquivo Colonial de Lisboa, com rara cortesia e com aquiescência do Professor Manuel Lopes de Almeida, Bibliotecário da Universidade de Coimbra, fez tirar e me enviou um microfilme dessa Sumária e Brevíssima Relação dos Serviços, que se supõe escrita pelo próprio Martim Afonso. Mandei, aqui ampliar e revelar esse microfilme pela “Fotoptica” (Rua de S. Bento nº 359, S. Paulo) e por essa amplificação e revelação se verifica que na primeira página – página-capa – foi emendada uma palavra “ilha de... (a referência indica a emenda) e se escreveu à margem “Tamaracá”. Uma observação atenta permite, talvez, concluir que no manuscrito da Brevíssima, (conservado na Biblioteca de Coimbra) havia sido escrito ilha de S. Vicente, e depois foi emendado por cima da palavra S. Vicente a palavra “Tamaracá”. Martim Afonso não podia ignorar que a sua donatária abrangia a ilha de S. Vicente, pois que em S. Vicente esteve mais de treze meses com a esquadra exploradora. O emendador, desconhecendo sem dúvida a geografia colonial do Brasil, escreveu sobre a palavra S. Vicente a palavra “Tamaracá”, e ainda colocou à margem essa mesma palavra “Tamaracá”, que designava ao norte a porção da doação de terras feita a Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso. O copista, que serviu ao Comandante Eugênio de Castro, transcreveu tal trecho do documento, não fez referência à emenda, que ora se vê no microfilme. Atribuiu-se ao próprio punho de Martim Afonso de Sousa a Brevíssima e Sumária Descrição dos Serviços. Não parece procedente tal suposição, pois que a letra da “página-capa” é exatamente a mesma do texto. Não parece razoável que Martim Afonso nesta se chamasse a si mesmo de “grande” e que declarasse que a “Relação dos Serviços” é muito breve para o muito que de sua grandeza se conta... “de sua sabida e divulgada história” por maiores que fossem as suas pretensões e vaidade. A letra de ambas – página-capa e texto – é exatamente a mesma. E essa letra é muito diferente da letra de Martim Afonso, como se pode ver na sua assinatura, a fls. 30, que decalquei em documento do arquivo local. A letra da “página-capa” e a “do texto” não são do século 16. Parece-me, até melhor estudo, que se possa fazer da letra de Martim Afonso, que a Brevíssima e Sumária Relação é cópia do texto da que Martim Afonso escreveu, tendo o copista, como folha de rosto, espécie de título, juntado à primeira página. Como tudo, que se relaciona com Martim Afonso de Sousa na Capitania de São Vicente tem valor, fiz esta comunicação ao Instituto Histórico de São Paulo, oferecendo-lhe também o microfilme e a sua ampliação e revelação, por intermédio do Dr. Leite Cordeiro. Esse microfilme me foi oferecido por D. Luíza da Fonseca, subdiretora do Arquivo Colonial de Lisboa. Na Capitania de São Vicente 87 Nessa descrição de serviços nas costas do Brasil apenas escreve: “por el-rey ter novas que no Brasil havia muitos franceses me mandou lá em uma armada, onde lhes tomei quatro naos, que todas se defenderam muito valentemente, e me feriram muita gente e assi nisto como no descobrimento de alguns rios, que me el-rei mandou descobrir, tardei perto de tres anos, passando muitos trabalhos e muitas fomes, e muitas tormentas, até por derradeiro me dar uma tão grande, que se perdeu a nau em que eu ia, e escapei em uma tabua, e mandou-me el-rei vir de lá a cabo de tres anos.” Sobre vilas, sobre colonização por fidalgos, sobre conquistas e posse de terras, sobre criação de vilas nada, absolutamente nada, diz ou alega. Sobre a sua capitania não escreve uma só palavra. A ignorância sobre São Vicente foi tão grande, que nesse memorial, que se diz escrito pela própria letra de Martim Afonso, a capitania que lhe foi doada é indicada como a Capitania de Tamaracá! Nem mesmo o nome de São Vicente é referido. O descaso, o desprezo que Martim Afonso sempre demonstrou pela sua donataria, permitiu, ainda durante a sua vida, fosse nela fundada, na baía de Guanabara, a França Antártica, mais tarde transformada em capital da colônia com o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro, numa capitania real, que o rei aí criou, sem compra, sem indenização, sem reversão expressa à coroa. Não estava no seu temperamento, nem nas suas aspirações, nem nas suas posses, trazer colonos para, entre antropófagos, vagarosamente lavrar terras incultas e, então, sem esperanças de remuneração imediata. Os poucos, pouquíssimos feitos, que benevolamente se atribuem a esse donatário, na terra de São Vicente, são contestáveis. Assim, para a cana-de-açúcar, que dizem fora importada por Martim Afonso de Sousa da ilha da Madeira para ser plantada em São Vicente, deve-se entender, ter sido trazida espontaneamente por algum colono ousado e destemido, (e, talvez, tivesse vindo de algum lugar bem mais vizinho a São Vicente), pois que não é indicado nenhum fundamento autêntico para essa providência. Pigafetta, que acompanhou a Fernão de Magalhães, e dessa viagem fez o relato, escreveu que a esqua- 88 Washington Luís dra de circunavegação chegou ao Rio de Janeiro a 13 de dezembro de 1519, aí estacionando treze dias, tendo tido contacto com os indígenas. Pigafetta escreveu que “ficou estranhamente impressionado pelos novos frutos”, que aí viu: os “ananases”, que são parecidos com grandes pinhas redondas e têm gosto muito doce, magnífico, e as “batatas” a que encontrou sabor semelhante ao da castanha e a “cana-de-açúcar”, “a cana doce”. Já em 1519, a cana-de-açúcar era conhecida na costa do Brasil, e, parece, que os selvagens já a apreciavam. É apenas uma reportagem de Pigafetta, mas suficiente para mostrar que não seria preciso ir à ilha da Madeira para trazer a São Vicente a cana-de-açúcar (Stefan Zweig – Fernão de Magalhães, trad. de Maria Henriques Oswald, F. K. L. pág. 140, 2ª ed. da Livraria Civilização). Martim Afonso de Sousa e seu irmão Pero Lopes de Sousa, ao que parece, fizeram um contrato com João Venist, Francisco Lobo e Vicente Gonçalves para formação de um engenho para fabricação de açúcar, ato agrícola comercial para o qual os dois Sousa, entraram apenas com as terras, entrada tão vã, como a doação da capitania por D. João III, igual à que os Papas fizeram às nações ibéricas, quando por elas distribuíram o mundo a descobrir.3 Atribui-se-lhe também a providência de proibir que os colonos subissem ao planalto e que fossem ao campo. Não se compreende o motivo de tal proibição. Evitar que descobrissem o caminho das minas tão cobiçadas? Isso é pueril, pois que redundava apenas na impossibilidade de alargar a conquista do interior, pela ocupação do planalto, “de bons ares e de bons campos”, próprios para produção de mantimentos e criação dos gados, de que o litoral tanto precisava para poder subsistir. Além de pueril, seria contraditório ou incoerente fundar uma povoação no campo, como afirma Pero Lopes, a 9 léguas do mar, e proibir que a esse campo fossem os colonos. 3 Jordão de Freitas diz que foi esse contrato feito em 1534. Martim Afonso só recebeu o Foral a 6 de outubro de 1534 e a carta de doação em 20 de janeiro de 1535. (H. C. Port. no Brasil, Vol. 3º), mas cita Frei Gaspar da Madre de Deus, como fonte de informação. Na Capitania de São Vicente 89 Aliás essa proibição não se encontra em nenhum documento colonial. A provisão expedida por D. Ana Pimentel, mulher e procuradora de Martim Afonso, em 11 de fevereiro de 1544, da qual alguns cronistas deduziram a revogação dessa proibição, a esta não se refere, nem do seu contexto se infere que ela tivesse havido. Ao contrário é nessa provisão que se acha a proibição de ir ao campo no tempo em que os índios andassem em sua santidade (?), dependendo a ida de licença do capitão loco-tenente, licença, da qual sempre prescindiram os colonos para entrar ao sertão.4 Os franceses traficavam pau-brasil e papagaios com os indígenas em Cabo Frio, iniciando “um comércio que ia tomando pé”. Por motivo das guerras religiosas na França, alguns deles vieram fundar na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, a França Antártica, apossando-se do território que o rei de Portugal considerava seu, segundo o Tratado de Tordesilhas e que doara a Martim Afonso; fizeram o forte Coligny, deram o nome de Villegaignon a uma ilha, tentaram fundar a cidade de Henriville, estabelecendo a religião reformada calvinista, tudo dentro da donataria de Martim Afonso, pois que a Capitania de São Vicente começava a 13 léguas ao norte de Cabo Frio. Martim Afonso, valente e destemido soldado português, católico, donatário da capitania por mercê de D. João III, não tomou uma decisão, não deu uma ordem, não disse uma palavra, não fez um gesto sequer para auxiliar seu rei, para defender a sua fé, para conservar as suas terras. Pelo menos os cronistas, sempre reverentes e as crônicas locais sempre generosas para com ele, nada dizem a respeito. 4 Eis na íntegra a Provisão de D. Ana Pimentel: “D. Ana Pimentel, mulher de Martim Afonso de Sousa, capitão-mor e Governador da povoaçam da Capitania de S. Vicente, Costa do Brasil, que ora por seu especial mandado, e provisam governo a dita capitania etc. Aos que este meu Alvara virem e o conhecimento pertencer, faço saber, que eu hei por bem, e me apraz, que todos os moradores da dita capitania de S. Vicente possam hir, e mandar resgatar ao campo, e a todas as outras cousas, e porem mando que no tempo que os Indios do dito campo andam em sua santidade, nenhuma pessoa de qualquer qualidade que seja, possa hir, nem mandar ao dito campo, por ser informada, que he grande perigo para a dita terra hirem laa em tal tempo, e tirando este tempo, todo o outro mandaram, e hiram, com tanto que sempre tomem licença do Capitão, ou de quem o tal cargo tiver; e nenhum Capitam, nem Ouvidor lhe não poderaa tolher, não sendo no tempo que se diz em cima, assim mando a todas as justiças, que guardem este, e o façam guardar, porque assim o hei por bem. Feito em Lisboa a 11 de Fevereiro de 1544.” (Transcrita das Memórias para a História da Capitania de S. Vicente, por Fr. Gaspar da Madre de Deus, nº 116, na Ed. de 1797, citando o Arquivo de São Vicente). 90 Washington Luís A defesa do Rio de Janeiro foi feita pelo rei por intermédio do Governador-Geral Mem de Sá. Martim Afonso de Sousa “veio e viu que não havia o que vencer”. Militar, Capitão-mor de esquadra, fidalgo ambicioso, entendeu que não podia ficar a conquistar indígenas boçais ou a povoar terras que não tinham ouro, prata e pedras preciosas. Partiu para as Índias Orientais e nunca mais se preocupou com a Capitania de S. Vicente. Lá, na Ásia, serviu como capitão do mar de 1534 a 1539, voltou à Europa e foi promovido a Governador da Índia de 1545 a 1546, e depois na Europa de novo se conservou na corte de Portugal, tendo falecido em 1570. Pode-se pois, afirmar, sem exageração que o seu único ato relativo à capitania de S. Vicente foi o de ter passado procuração à sua mulher, D. Ana Pimentel, para administração de seus bens, e isto mesmo antes de receber a capitania, ato bem precário na verdade com o qual ela se limitou, quase que exclusivamente, a fazer nomeações de capitães-loco-tenentes, sem nenhuma intervenção ativa ou proveitosa na colônia americana. O estado a que chegaram essas capitanias hereditárias foi deplorável; miserável era também o estado dos indígenas, bem como o dos poucos portugueses que habitavam a costa do Brasil. Dando conta ao rei de sua inspeção nas capitanias, em 1550, pouco depois da sua chegada, Pero Borges, primeiro ouvidor do Brasil, escreveu que “os capitães-mores-loco-tenentes faziam juízes a homens que não sabiam ler nem escrever, e davam sentenças sem ordem nem justiça, cuja execução causava a maior desordem”. Não havia nas capitanias homens para “serem juízes nem vereadores, e neste ofício metiam 5 degradados por culpa de muitas infâmias, e desorelhados e faziam muitas coisas fora do vosso serviço e de razão” (Carta de 7 de fevereiro de 1550, Hist. da Col. Port. no Brasil, V. 3º, pág. 268). Esse tópico é suficiente para mostrar o que eram, em 1550 a justiça e a administração locais. Não é necessário transcrever os demais que dão a mesma impressão. 5 Houve tempo em que se mutilavam os ladrões e os falsários. Sumário Na Capitania de São Vicente 91 O próprio Tomé de Sousa, em sua carta relatório, a 1º de junho de 1553, depois da visita que fez às capitanias, escrevia ao rei: “Vossa Alteza deve mandar que os capitães próprios residam em suas capitanias e quando isto não (possa ser) por alguns justos respeitos, ponham pessoas de que Vossa Alteza seja contente, porque os que agora 6 cá servem de capitães não os conhece a mãe que os pariu”... Frase enérgica que definia cruelmente a situação. Era a dissolução completa, era a ruína total, a perda dos senhorios do Rei de Portugal no Brasil, que seria inevitável, se não fosse posto paradeiro. Isso durou desde 1534 a 1549 durante 15 anos e disso tinha notícia D. João III, por avisos de seus vassalos como se vê na carta de Luís Góis por exemplo (História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 32, pág. 259). A distribuição das costas do Brasil em capitanias hereditárias a vassalos portugueses, ambiciosos, mas sem recursos de espécie alguma, nenhum, absolutamente nenhum resultado produziu para Portugal nem para a colônia americana, pelo menos na Capitania de S. Vicente. 6 História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, pág. 365. Próxima página Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo IV A CRIAÇÃO DAS VILAS DE SÃO VICENTE E DE PIRATININGA V OLTANDO do sul, onde fora até o rio da Prata, e depois de apor- tar em Cananéia, a esquadra de Martim Afonso de Sousa só chegou a S. Vicente, a 22 de janeiro de 1532, onde a todos …“pareceu tão bem esta terra que o Capitão I determinou de a povoar e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas; e fez uma vila na ilha de S. Vicente e outra a nove léguas dentro pelo sertão a borda de um rio que se chama Piratininga; e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficiais, e pôs tudo em boa ordem de justiça, de que a gente tomou muita consolação com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar matrimônios, e viverem em comunicação das artes; e ser cada um senhor de seu; e vestir as injurias particulares e ter todos os outros bens da vida segura e conversável”. São palavras de Pero Lopes de Sousa, no seu Roteiro, relatando a expedição exploradora de 1530 a 1532. São palavras de encantadora simplicidade e quase bíblicas. A verdade é, entretanto, que, quando chegou a S. Vicente em 1532, Martim Página anterior 94 Washington Luís Afonso de Sousa já lhe achou o nome e já aí encontrou moradores estabelecidos. Nesse tempo, S. Vicente já era um porto conhecido, com lugar marcado nos rudimentares mapas da época, uma espécie de pequena feitoria portuguesa, de iniciativa particular, visitada por esquadras para o tráfico de escravos, onde se forneciam vitualhas necessárias à navegação de longo curso, se construíam bergantins e se contratavam línguas da terra. Antes da arribada a S. Vicente, o próprio Pero Lopes de Sousa, no seu Roteiro, por duas vezes a esse porto aludiu, quer na sua ida ao Rio da Prata, quer na sua volta de lá, o que mostra a existência do porto e o conhecimento que dele tinha a esquadra (Roteiro R.I.H.G.B., vol. 24, pág. 33 e 63). Nos seus estudos sobre mapas antigos, que se referem ao Brasil, (R.I.H.G.S. Paulo, vol. 7, pág. 227 e segts.), Orville Derby observa que no Atlas de Kurstman já se encontram dois que mencionam os nomes “Rio S. Vicente” e “Porto de S. Vicente”, depois da ilha de S. Sebastião e antes de Cananéia, na mesma latitude de S. Vicente atual. Ensina Orville Derby que “a data dos mapas de Kurstman é certamente posterior a setembro de 1502, quando a Lisboa chegou à informação neles representada; mas provavelmente anterior a junho de 1504 quando chegaram notícias que tornaram tristemente célebre a ilha de Fernando de Noronha, que não se acha neles representada”. Comandando uma expedição, partida de Corunha cm 1526, com o fim de explorar o Rio da Prata, Diogo Garcia chegou a S. Vicente a 15 de janeiro de 1527 – cinco anos antes de Martim Afonso – e, narrou ter encontrado o bacharel e seus genros, aí moradores mucho tiempo ha que ha bien 30 años. Deles comprou um bergantim, se abasteceu de água, lenha e todo o necessário para a viagem, contratou um dos genros por língua (intérprete) até o Rio da Prata. De acordo com todos os seus oficiais, contadores e tesoureiros, fez com esse bacharel e seus genros um contrato para transportar nos seus navios, quando de volta, 800 escravos para a Europa.1 “Nesse porto 1 Número sem dúvida exagerado. Na Capitania de São Vicente 95 estava muita gente chamada tupi, em companhia dos cristãos, mas comedora de carne humana” (R. I. H. G. B., vol. 15 pág. 9). Tornando do atual rio da Prata, em 1530 – dois anos antes de Martim Afonso – Sebastião Caboto ancorou defronte da ilha de S. Vicente, e aí permaneceu mais de mês. Num de seus navios estava o cosmógrafo Alonso de Santa Cruz, que escreveu: “Dentro do Porto de S. Vicente há duas ilhas grandes, habitadas por índios e, na mais oriental, na parte ocidental, estivemos mais de mês. Na ilha ocidental tem os portugueses um povoado chamado “S. Vicente” de dez ou doze casas, uma feita de pedra com seus telhados, e uma torre para defesa contra os índios em tempo de necessidade. Estão providos de coisas da terra, de galinhas de Espanha e de porcos, com muita abundância de hortaliça. Tem essas ilhas uma ilhota entre ambas de que se servem para criar porcos. Há grandes pescarias de bons pescados. Estão essas ilhas orientadas N. O. S. E. com dez léguas de comprimento e quatro de largura” (Islário de Alonso de Santa Cruz, Ed. de F. E. von Wieser, pág. 56). A Informação do Brasil em 1584 (R.I.H.G.B. Vol. 6º, pág. 417), também afirma que Martim Afonso já aí achou moradores. Hans Staden, segundo se depreende da narração de sua Viagem e Cativeiro entre os Indígenas, 2 chegou a S. Vicente pelos anos de 1551. Diz ele que cerca de dois anos antes da sua chegada, talvez por 1549, os irmãos Braga haviam construído na Bertioga uma Casa Forte, para defesa contra os índios tupinambás que, nesse lugar, sempre os vinham atacar. Construir e defender uma Casa Forte, embora rudimentar, contra ataque de índios cruéis e carniceiros, não é brinquedo de criança, mas obra de gente grande. Assim os irmãos Braga, que eram cinco, já deviam ser homens feitos a esse tempo. Hans Staden não lhes dá as idades, mas menciona-lhes os nomes: João, Diogo, Domingos, Francisco e André, todos filhos de um português – Diogo Braga – com uma índia da terra, por conseguinte, mestiços, mamelucos como ele os chama, mas já cristãos e tão bem versados na língua dos portugueses como dos selvagens (Hans Staden, Edição do Centenário, pág. 39). 2 Edição do Centenário – 1900. 96 Washington Luís Devendo eles ser homens feitos, dando-se ao mais moço a idade de 18 anos, teriam nascido antes de 1532, em tempo anterior à chegada de Martim Afonso, que aí teria encontrado o velho Diogo Braga, casado à moda da terra, e com família numerosa já cristã. À Cronologia de Hans Staden falta precisão, o que a torna confusa. Apesar disso pode-se fazer essa dedução. Esses irmãos Braga, bem como um seu primo de nome Jerônimo, e o filho do Capitão-Mor, Jorge Ferreira, e também mameluco, foram aprisionados e devorados em agosto de 1555 (Hans Staden, Cap. 42, pág. 98). Tal episódio é referido por Azevedo Marques nos seus Apontamentos Cronológicos, pág. 211, com pequena diferença de data, quando informa que Diogo Braga, natural de Portugal e seus cinco filhos, povoadores de S. Vicente, foram os heróis vencidos e devorados pelos tamoios, em 1547, depois de tenaz resistência com que se defenderam, coadjuvados por alguns colonos e por tupiniquins (Cita Machado de Oliveira e Simão de Vasconcelos como fontes). Pelos arredores haveria outros moradores e mesmo no campo. As cartas dos Jesuítas em 1550, sem declarar nomes, falam de muitos portugueses que já aí estavam em pecados mortais sem confissão, havia 30 e 40 anos, portanto desde 1510 e 1520 (Padre Leonardo Nunes, Cartas do Brasil, – escritas em 1550 e 1551, v. 2º, pág. 61 e 66). Quando Martim Afonso chegou, já aí habitavam João Ramalho e Antônio Rodrigues e não eram, portanto, os únicos; aquele mais para o planalto, e ambos, na sesmaria de Paro de Góis, em 1532, se declararam estantes na terra de 15 e 20 anos. Essas são informações escritas, de arribadas conhecidas; muitas outras houve em S. Vicente, sem que delas se escrevessem descrições ou se fizessem referências. O “bacharel”, tão falado e não identificado até hoje, foi encontrado em S. Vicente por Diogo Garcia em 1527, e, em Cananéia, por Pero Lopes de Sousa, em 1531. Outros espanhóis e portugueses são também mencionados, por essa época, na costa sul do Brasil. A identificação desse bacharel tem pouca importância para a História, porque ele nada fez de valor. Basta que ele tivesse existido e tives- Na Capitania de São Vicente 97 se sido encontrado por diversas pessoas em S. Vicente e em Cananéia, e já com genros negociantes, para mostrar que S. Vicente já era conhecido e habitado por europeus antes de 1532. Já aí havia moradores, não só no pequeno núcleo de portugueses, a que se refere Alonso de Santa Cruz, em seu Islário, como em serra acima até o planalto, pelo sertão, e outros ainda pela costa até Cananéia, até Santa Catarina e até mais ao sul. Já existia, pois, a povoação de S. Vicente, como feitoria conhecida. Martim Afonso de Souza não fundou, pois, a povoação. Não criou aí uma vila quando chegou a 22 de janeiro de 1532. Não existe arquivo municipal dos primeiros tempos de S. Vicente, nada se podendo afirmar, baseado em documentos locais, sobre a data da povoação, nem sobre a da criação da vila. O que se pode afirmar, com segurança, é que a vila de S. Vicente não foi fundada a 22 de janeiro de 1531, como narram antigos cronistas, nem no período de 22 de janeiro a 22 de maio de 1532, como se poderia deduzir no Roteiro de Pero Lopes de Sousa (R. I. H. G. B., vol. 24, pág. 67), o que é fácil de demonstrar. Durante o tempo em que Martim Afonso de Sousa permaneceu em S. Vicente, isto é, de janeiro de 1532 a meados de 1533, não era ele ainda donatário da capitania, nem mesmo ainda a costa do Brasil havia sido repartida em capitanias hereditárias, não havia ele ainda recebido a doação que deu poderes para criar vilas. Antes não os tinha, pois que o Rei absoluto não os delegara nas mencionadas três cartas régias passadas em Castro Verde a 20 de Novembro de 1530. O foral na capitania de S. Vicente, passado em Évora em outubro de 1534, tampouco os contêm (vide Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, vol. 13, pág. 149 e seguintes). Só a carta de doação, a 20 de janeiro de 1535, os concedeu nos seguintes termos: Outrossim me praz que o dito capitão e governador, e todos os seus sucessores possam por si fazer vilas todas, e quais quer povoações, que se na dita terra fizerem e lhe a eles parecer que o devem ser, as quais se chamarão Vilas, e terão termos e jurisdição, liberdade e insígnias de Vilas, segundo foro e costumes dos meus Reinos, e isto, porém, se enten- 98 Washington Luís derá, que poderão fazer todas las Vilas, que quiseram das povoações, que estiverem ao longo da costa da dita terra, e dos rios que se navegarem, para que por dentro da terra firme pelo sertão as não poderão fazer com menos espaço de seis léguas de uma a outra para que possam ficar ao menos três léguas de terras de termo a cada uma das ditas Vilas, e ao tempo que assim fizerem as ditas vilas, ou cada uma delas, lhe limitarão e assinarão logo termo para elas, e depois não poderão da terra, que assim tiverem dada por termo fazer outra vila, sem minha licença (Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, vol. 13, pág. 140). Esta carta de doação está também publicada na R.I.H.G.B. vol. 9, pág. 459, na História da Capitania de S. Vicente, por Pedro Taques e no Registro-Geral da Câmara da Vila de São Paulo. Vol. 1º, pág. 397 e seguintes). Só depois dessa doação, só depois da delegação desse poder pelo rei absoluto, poderia Martim Afonso instituir vilas nas suas terras, e assim mesmo com restrições expressas, porque só as poderia fazer nas povoações da costa oceânica ou nas margens dos rios navegáveis, não podendo criar no sertão a menos de seis léguas umas das outras, e, uma vez fundadas, só com licença régia poderiam ser estabelecidas outras nos termos (territórios) das já existentes. Essa carta de doação habilita a distinguir perfeitamente o que era vila e o que era povoação. As vilas deveriam ter termo, com seis léguas de distância uma da outra, teriam jurisdição, liberdades e insígnias, segundo os foros e costumes dos reinos de Portugal. As povoações eram quaisquer lugares habitados, sem nenhuma jurisdição administrativa ou judiciária. Foi sempre esse o conceito jurídico de vila, em todos os tempos. “Vila, povoação de menor graduação que cidade superior a aldeia, tem juiz, câmaras, pelourinho” (Pereira e Sousa, Dicionário Jurídico, verbo vila), era já uma parte da administração e da justiça local, emanada do poder real (do rei absoluto) e só a este cabia criar ou autorizar a criar. A palavra povoação não significava vila; nem povoar significava fazer vila. Os próprios primeiros habitantes da colônia se diziam conquistadores e povoadores, o que se verifica nos livros da Câmara de São Paulo, e daí não se pode concluir que eles fossem criadores de vilas. Na Capitania de São Vicente 99 Os lugares, em que eles moravam, eram povoações. Tomar a palavra povoação, como designando uma vila faz supor a existência de uma instituição, com todo o seu aparelhamento legal, onde só existia simples aglomerado de moradores. Não há dúvida que em toda vila havia uma povoação; mas a recíproca não é verdadeira, porque nem toda povoação era vila. A diferença, entre povoação e vila, fica bem clara nesse trecho da carta em que Martim Afonso é feito donatário da Capitania de S. Vicente, aos 20 de janeiro de 1535. Claro ainda se tornará quando se voltar ao assunto e se analisar documentos sobre a vila de Santo André da Borda do Campo. As palavras do Roteiro de Pero Lopes de Sousa – documento que mais deve valer para as coisas do mar que para os acontecimentos de terra – devem ser entendidas de modo consentâneo, dando-se-lhes o valor que elas devem ter. É esse Roteiro documento valioso, sem dúvida, mas pode e deve ser analisado e criticado em face de outros documentos oficiais autênticos, tais como alvarás e cartas régias. É o que ora se faz confrontando os seus dizeres com as cartas régias de doação e do foral da capitania de S. Vicente a Martim Afonso. O Roteiro de Pero Lopes de Sousa, do que dele se depreende, e é o mais lógico, não foi um Diário, na significação rigorosa da palavra: mas notas, algumas seguidamente tomadas e outras após intervalos de semanas e até de meses entre elas, ao que suponho, portanto truncadas e entremeadas de vagas informações dadas por moradores dos portos, nas longas paradas, notas que depois serviram de base para a formação de uma descrição concatenada. É verdade que a concessão de sesmaria a Ruy Pinto por Martin Afonso de Sousa (conforme Az. Marques nos seus Apontamentos) é datada da vila de S. Vicente a 10 de fevereiro de 1533. Não se declara aí que Martim Afonso fundara a vila de S. Vicente; mas expressamente se atribui a essa povoação o predicado de vila, predicado que, então, só o rei podia dar. É lícito supor que um pouco mais tarde, já em tempo em que Martim Afonso havia recebido a doação da Capitania de S. Vicente, e com ela o poder de fundar vilas, Pero Lopes de Sousa ao redigir o seu Roteiro nele se referisse à criação de vilas por seu irmão. 100 Washington Luís Nessas condições, a fundação da vila de S. Vicente teria sido legitimada pela subseqüente doação a Martim Afonso, ou então há de se concluir que foi criada após 1535. Nesse porto e nessa povoação, nomeou ele, tabeliães e escrivães, conforme estava autorizado numa carta régia, distribuiu sesmarias, como lhe permitia outra carta régia, que sem dúvida estabeleceram laços civis entre a feitoria e a metrópole, e aí deixou um substituto, de acordo também com autorização da carta régia, segurando assim os senhorios do rei de Portugal na América, “preparando tudo para boa obra de justiça, de que todos tiveram muita consolação, para celebrar matrimônios, ser cada um senhor do que é seu e ter os bens da vida segura e conversável”. Essa situação fez crer aos habitantes, talvez, na criação de uma vila, mas esse preparo para a boa obra de justiça não decorreu de poder para criação de vilas. Com a sua partida para Portugal, a 22 de maio de 1532, cessam as informações de Pero Lopes de Sousa sobre S. Vicente, onde Martim Afonso ficou à “espera de recado da gente que tinha mandado a descobrir ouro”. Martim Afonso, pois, em 1532, não tinha poderes para criar vilas. S. Vicente arrastou-se lenta, penosa e obscuramente durante séculos, abafada por Santos, povoação fundada por Brás Cubas em 1539, com predicamento de vila em 1545, confirmado em 1546 (Azevedo Marques, pág. 146). Santos, fora colocada em melhor sítio e em melhores condições para o comércio e navegação. Só, há alguns anos, apenas, S. Vicente desenvolveu-se, tornando-se uma confortável estação balneária e de repouso. *** A outra vila, feita a nove léguas do litoral para o sertão, à borda de um rio que se chamava Piratininga, mencionada por Pero Lopes de Sousa, nem sequer se lhe indicou o nome, nem foi ela posta sob invocação religiosa, numa época em que o intenso fervor católico dava nome de “santos” a todos os acidentes geográficos do litoral e do interior nos descobrimentos feitos. Apesar de investigações cuidadosas e de minuciosos exames locais, até agora não se sabe onde tal vila foi situada, ou mesmo se foi si- Na Capitania de São Vicente 101 tuada; o rio Piratininga jamais foi identificado, e com esse nome talvez não tivesse existido rio algum. Piratininga (nenhuma etimologia satisfatória para essa palavra), era uma região situada no planalto. A Câmara da Vila de S. Paulo, que às vezes se denominava “S. Paulo do Campo”, “S. Paulo de Piratininga”, “S. Paulo do Campo de Piratininga”, concedeu datas de terras em “Piratininga, termo desta vila” no “caminho de Piratininga”, “indo para Piratininga”, “no caminho que desta vila vai para Piratininga” etc. (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 3.º, pág. 168, Registro Geral, vol. 1.º, págs. 10, 72, 88, 98, 100, 108, 129, 283). “Índios de Piratininga”, qualificam as sesmarias de terras concedidas aos índios de Pinheiros e aos de S. Miguel de Ururaí, por Jerônimo Leitão em 12 de outubro de 1580 (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 354), o que não deixa a menor dúvida que Piratininga estendia-se desde Carapicuíba, incluindo Pinheiros, até Ururaí. Piratininga era, pois, uma vasta região do campo vagamente indicada no planalto. É por isso que, em Piratininga, sem que se fizesse menção da qualidade de vila, como era de uso nesses documentos, foi concedida à sesmaria de Pero de Góis, sendo a respectiva posse dada alguns dias depois na ilha de S. Vicente. Martim Afonso teria nessa ocasião chegado até a morada, a povoação de João Ramalho, pela vereda de índios que, então, ligava o planalto ao litoral. Aí nessa zona, nos campos de Piratininga, vizinhos da sesmaria de Ururaí, por Jaguaporecuba, não se sabe bem onde, já afeiçoado aos costumes da terra, João Ramalho vivia maritalmente com filhas de morubixabas, tendo numerosa descendência e dispondo de grande influência sobre Tibiriçá e outros. Martim Afonso, quando de S. Vicente subiu ao Planalto, reconheceu talvez que a povoação de João Ramalho constituiria um posto avançado de importância no caminho, que por ela passava, trilhado pelos índios, e que ia até o Paraguai, onde se imaginavam situadas as fabulosas minas que ele procurava, pelo sertão adentro, desde o Rio de Janeiro e de Cananéia. Por esse caminho transitaria mais tarde Ulrico Schmidt. Foi a pretensa vila a que se referiu a complacência de Pero Lopes, foi o lugar que Martim Afonso primeiro povoou segundo se escreveu mais tarde. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo V O GOVERNO-GERAL NO BRASIL. TOMÉ DE SOUSA, PRIMEIRO GOVERNADOR-GERAL. SEUS MEIOS E SEUS RESULTADOS A AMÉRICA portuguesa, ainda mal conhecida e já desconjuntada pela distribuição em capitanias hereditárias, sem um centro coordenador, estava ameaçada de desmembrar-se e de desaparecer arrebatada por outras nações. O sistema de repartição da costa do Brasil por D. João III a alguns de seus vassalos, sem ligação entre si, e com obrigação de conquistar as terras doadas, de povoá-las, de desenvolvê-las, havia completamente fracassado. Não obstante constantemente avisado, o Governo português nada fez, ou nada pôde fazer, e tal situação durou até 1549, época em que D. João III resolveu afinal mudar o sistema adotado. Para conservação do Brasil, estabeleceu aí um Governo-Geral, que superintendesse e ligasse entre si todas as capitanias, ocupando e explorando as terras com aparelhamento de administração e de justiça, mantivesse os colonos e civilizasse os índios pela catequese, conservando íntegro o seu senhorio na América a produzir economicamente e a render para o fisco. Não era coisa fácil para Portugal, pequeno e pobre, e 104 Washington Luís ainda absorvido com a Índia e com a África, fazer grande e completa tal obra. Mas, segundo textualmente a Tomé de Sousa na Carta de nomeação a 7 de janeiro de 1549, D. João III faz saber: ...porquanto é serviço de Deus e meu conservar e enobrecer as capitanias e povoações que tenho nas minhas terras do Brasil ordenei ora de mandar fazer uma fortaleza e povoação grande e forte na Bahia de Todos os Santos por ser para isso o mais conveniente lugar que ha nas ditas Terras do Brasil, para dali se dar favor e ajuda às outras povoações e se ministrar justiça e prover nas cousas que cumprem ao meu serviço e nos negócios de minha fazenda e bem das partes... “e a Tomé de Sousa hei por bem e me praz de fazer mercê dos cargos de capitão da povoação e terras da dita Bahia de Todos os Santos e governador geral da dita capitania e das outras capitanias e terras da costa do dito Brasil. 1 Tomé de Sousa foi, pois, nomeado Capitão da povoação da Bahia e governador geral da dita capitania e das outras capitanias e, em uma armada, composta de cinco naus, duas caravelas e um bergantim, partiu de Lisboa a 1º de fevereiro de 1549, e sem incidentes e com ventos prósperos, aportou à Bahia em 29 de março de 1549. Nessa esquadra, além da marinhagem, da guarnição militar, vieram oficiais-mecânicos tais como pedreiros, carpinteiros, pintores, telheiros, fazedores de cal, serventes etc., os operários, enfim, necessários para edificação de uma povoação. Vieram também cirurgião, boticário, e mais um Provedor da Fazenda Real – o Fisco – Antônio Cardoso de Barros, antigo donatário do Ceará, e seus escrivães, o ouvidor Pero Borges com seus escrivães – a Justiça – e um capitão do mar, Pero de Góis, antigo donatário da Paraíba do Sul. Tudo garantido com pequena força militar de terra e de mar. Vieram também seis jesuítas, os Padres Manuel da Nóbrega, Aspicuelta Navarro, Leonardo Nunes, Antônio Pires e os irmãos Diogo Jacome e Vicente Pires – a catequese. Vieram mais também 600 degradados, condenados por crimes, que não fossem de moeda falsa, traição, sodomia e heresia. Como nada havia no Brasil, bruto e selvagem, a esquadra trouxe o indispensável para fundação, construção, defesa, cuidado e civi1 Vide Memórias Históricas da Bahia, por Acioly e Braz do Amaral, vol. 1º, pág. 261. Na Capitania de São Vicente 105 lização de uma cidade, a do Salvador, que deveria ser criada na antiga vila de Francisco Pereira Coitinho, na Baía de Todos os Santos, ou se isso não fosse possível, em outro lugar julgado mais conveniente, sempre na mesma baía que, pela sua situação continental, deveria ser a sede de um Governo. O governador e capitão da Bahia, o provedor, e o ouvidor trouxeram regimentos, por onde se deviam guiar, de uma minuciosidade fatigante, onde estreitamente tudo vinha regulado até o tamanho dos barcos, que se fabricassem, bem como a distância entre os bancos dos remadores, onde também se discriminava o material que se empregasse na construção das obras defensivas da cidade. E assim tudo o mais, ordens pequeninas e vãs pois que, prevendo o emprego de materiais que podiam não existir, ainda se indicavam outros que os substituíssem, e que também podiam não existir. Salvador foi fundada e ficou sendo a residência do Governador e das demais autoridades que o acompanharam. Organizado pelo longuíssimo regimento, datado em Almeirim a 17 de dezembro de 1548, o governo geral do Brasil não suprimiu expressamente as capitanias hereditárias nem revogou os direitos nelas concedidos aos capitães-mores donatários; mas tacitamente deixou tudo sujeito ao Governador-Geral – representante e delegado do rei absoluto, a lei viva sobre a terra, como já se entendia e seria declarado na Ordenação Felipina – que a tudo superintendesse (vide Regto. que trouxe Tomé de Sousa, em Acioly e B. Amaral – Memórias Históricas da Bahia, Vol. 1º, pág. 263 e seguintes, já citadas). Os donatários nada reclamaram e alguns deles fizeram mesmo parte da expedição de Tomé de Sousa. Foi uma expedição oficial. O seu fim ostensivo foi, como declarava o regimento de Tomé de Sousa, “conservar e enobrecer as capitanias e povoações do Brasil, dar ordem e maneira com que melhor e mais seguramente se vão povoando para a exaltação da santa fé católica e proveito dos reinos e senhorios reais”. Incontestavelmente esses foram os objetivos principais para segurar a terra e, ocupando militarmente a costa do Brasil, dela expulsar “os corsários franceses que aí já iam tomando pé”. 106 Washington Luís Mas pela organização feita, e pela execução que ia ser dada, estabelecia-se na Bahia uma capitania do rei, uma feitoria portuguesa oficial, e uma espécie de penitenciária ao ar livre, um presídio militar, alguma coisa como a que em Cayena fez a França, e mandar-se-iam condenados, para as costas do Brasil, como já se mandavam e se iam mandar para a costa da África. E ia-se também subjugar o gentio e doutriná-lo cristãmente. D. João III foi feliz na escolha dos altos funcionários enviados – Tomé de Sousa, Antônio Cardoso de Barros, D. Pero Borges, Pero de Góis – probos e dedicados às suas funções, como também o foi na dos primeiros missionários jesuítas, cuja vinda autorizou para a catequese. Para tomar posse definitiva da Bahia, onde já havia alguns poucos habitantes portugueses, cumpria, assim rezava o regimento do Governador Geral expedido pelo rei, ao “serviço de Deus e ao meu”, castigar os tupinambás, que se haviam levantado, pondo “em ordem destinando-lhes aldeias, povoações, matando e cativando aquela parte deles que vos parecer que baste para seu castigo e exemplo” (Regto. § nº 6) e “si algum desse gentio (que estiver em paz) quizer ficar na Bahia dar-lhe-ei terras para sua vivenda” (Regto. § nº 7). Assim se entendia tratar os aborígines americanos. Davam-se-lhes títulos das terras que eles já ocupavam, sem dúvida imemorialmente, se se conservassem submissos; mas seriam cativados e matados, para castigo e exemplo, se não aceitassem o domínio português. Tomé de Sousa aí construiu a cidade do Salvador, conforme ordem recebida, e nela se fixou. Pouca ação desenvolveu na capitania de S. Vicente; mandou inspecioná-la em 1550, e a ela foi em 1553. Pouca coisa há a dizer dele, bem como dos demais governadores, exceto de Mem de Sá e de D. Francisco de Sousa, tendo em vista o limite imposto a este estudo. Como quer que seja, com o governo geral se manteve a integridade do imenso descobrimento e se ia fazer penosa e demoradamente o povoamento do Brasil. Deve-se contar dessa época a colonização portuguesa do Brasil. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo VI A CRIAÇÃO DAS VILAS DE SANTOS, ITANHAÉM E SANTO ANDRÉ E M FEVEREIRO de 1553, já no fim do seu mandato, em navio comandado por Pero de Góis, seu capitão do mar, Tomé de Sousa percorreu a costa do Brasil,1 em inspeção às capitanias, que constituíam o seu governo. De volta dessa inspeção, em carta dirigida a D. João III, datada de 1º de junho de 1553, já na cidade do Salvador, Bahia, Tomé de Sousa relatou o estado em que encontrou a terra. Nessa carta2 escrevendo sobre a Capitania de S. Vicente disse: “S. Vicente, capitania de Martim Afonso é uma terra muito honrada e de grandes aguas e serras e campos. Está a vila de S. Vicente situada em uma ilha de tres Léguas de comprido e uma de largo na qual ilha se fez outra vila que se chama Santos a qual se fez porque a de S. 1 2 Em 8 de fevereiro de 1553, a sua esquadra sob o comando do seu capitão do mar, Pero de Góis, estava surta no porto de Santos (Frei Gaspar, Memórias para a Capitania de S. Vicente, § 66, citando o Cartório da Provedoria da R. F. de S. Paulo). Arquivo da Torre do Tombo, Gav. 18, maço 8, nº 8, publicada na História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, págs. 364 a 366. 108 Washington Luís Vicente não tinha tão bom porto; e a de Santos, que está a uma légua da de S.Vicente, tem o melhor porto que se pode ver, e todas as naus do mundo poderão estar nele com os proizes dentro em terra. Esta ilha me parece pequena para duas vilas, parecia-me bem ser uma só e toda a ilha ser termo dela. Verdade é que a vila de São Vicente diz que foi a primeira que se fez nesta costa, e diz verdade, e tem uma igreja muito honrada e honradas casas de pedra e cal e com um colégio dos irmãos de jesus. Santos precedeu-a em porto e em sítio que são duas grandes qualidades e nela está já a alfandega de V. A. Ordenará V. A. nisto o que lhe parecer bem que eu houve medo de desfazer uma vila a Martim Afonso, ainda que lhe acrescentei tres, s. (isto é) a Bertioga, que me V. A. mandou fazer, que está a cinco leguas de S. Vicente na boca (dum) rio por onde os indios lhe faziam muito mal; eu a tinha já mandado fazer de maneira que tinha escrito a V. A., sem custar nada senão o trabalho dos moradores; mas agora que a vi com os olhos e as cartas de V. A. a ordenei e acrescentei doutra maneira que pareceu a todos bem, segundo V. A. verá por este debuxo; e ordenei outra vila no começo do campo desta vila de S. Vicente de moradores que estavam espalhados por ele e os fiz cercar e ajuntar para se poderem aproveitar todas as povoações deste campo e se chama vila de Santo-André porque onde a situei estava uma ermida deste apostolo e fiz capitão dela a João Ramalho, natural do termo de Coimbra, que Martim Afonso já achou nesta terra quando cá veio. Tem tantos filhos e netos bisnetos e descendentes dele e não ouso de dizer a V. A., não tem cãs na cabeça nem no rosto e anda nove leguas a pé antes de jantar e ordenei outra vila na borda deste campo ao longo do mar que se chama da Conceição, de outros moradores, que estavam derramados por o dito campo e os ajuntei e fiz cercar e viver em ordem e alem destas duas povoações serem mais necessárias para o bem comum desta capitania folguei o fazer”... Nesta carta-relatório, algo minuciosa, Tomé de Sousa mencionou as duas vilas já existentes em 1553 na Capitania de S. Vicente, “Santos” e “S. Vicente”, insinuou a extinção desta última e comunicou o acrescentamento, que fez, de mais três outras – Bertioga, Conceição e Santo André –; mas nenhuma referência fez à vila, que dizem fundada por Martim Afonso de Sousa, em 1532, a 9 léguas pelo sertão. Ao contrário notou que os moradores estavam espalhados pelo campo e que Na Capitania de São Vicente 109 ele os reuniu e os ajuntou para, aproveitando todas as povoações desse campo, formar uma vila. O seu silêncio a respeito mostra que a vila, que se diz feita em 1532, por Martim Afonso, não existiu, ou já não existia em 1553. Aliás o abandono, a extinção, a mudança de sedes de vilas, nos primeiros tempos coloniais, foi fato vulgar. A própria vila que o Governador-Geral acrescentou, a Bertioga, conforme escreveu, também desapareceu; e da mesma maneira, mais tarde, desapareceriam as que D. Francisco de Sousa criou – Cahativa, Monserrate – junto a lugares, onde se esperava que rica fosse a exploração de minas. Tomé de Sousa não iria acrescentar mais uma vila no campo, se outra próxima já aí existisse, ele que achava demais duas na ilha de S. Vicente, nem ousaria suprimir uma existente, e substituí-la por outra, ele que “houve medo” de desfazer uma vila a Martim Afonso – a de S. Vicente – por se achar perto da de Santos. Entendeu ele e ordenou outra vila, no começo do campo de S. Vicente com os moradores que aí estavam espalhados, que chamou Santo André. São palavras textuais na carta, cujo trecho transcrevi. Alguns historiadores e cronistas brasileiros, de incontestável autoridade, levaram muitos dos seus continuadores a concluir que João Ramalho fundara uma vila, a vila de Piratininga, povoação em que estava, onde primeiro Martim Afonso povoou, depois chamada Santo André da Borda do Campo, da qual mais tarde se fez São Paulo do Campo de Piratininga. Não está aí a verdade. Nessa carta de 1º de junho de 1553, Tomé de Sousa informou ao rei – e da veracidade dessa informação não se pode duvidar – que no começo do campo, na Capitania de S. Vicente, acrescentara ele uma vila a Martin Afonso, em lugar onde reunira moradores, que nesse campo estavam espalhados, a fez cercar, deu-lhe o nome de Santo André, porque onde a situou estava uma ermida sob a invocação desse apóstolo e dela fez capitão João Ramalho, natural do termo de Coimbra, que Martim Afonso já achou que “na terra quando cá veio”. Informou ele claramente: 110 Washington Luís “ordenei outra vila no começo do campo desta vila de S. Vicente de moradores que estavam espalhados por ele e os fiz cercar e ajuntar para se poderem aproveitar todas as povoações deste campo”... Está aí expresso que povoação não era vila, pois que para formar uma vila fez ele ajuntar todas as povoações do campo. A informação enviada a D. João III é categórica e circunstanciada, designando o lugar em que ele fundou a vila, dando a razão do nome e indicando o motivo da criação. Por outro lado, Manuel da Nóbrega, em 1554, diz em carta dirigida a D. João III: “Está principiada uma casa na povoação de S. Vicente onde se recolheram alguns orphãos da terra e filhos do Gentio; e do mar dez léguas, pouco mais ou menos duas léguas de uma povoação de João Ramalho, que se chama Piratinin onde Martin Afonso de Sousa primeiro povoou, ajuntamos todos os que Nosso Senhor quer trazer à sua Egreja, e aqueles que sua palavra e Evangelho engendram pela pregação, e estes de todo deixam seus costumes e se vão extremando dos outros e muita esperança temos de serem verdadeiros filhos da Egreja e vai-se formando formosa povoação e os filhos destes são os que se doutrinam no colégio de S. Vicente”. 3 Nessa carta, cujo trecho vai aqui transcrito, diz Manuel da Nóbrega que “a dez léguas do mar e a pouco mais ou menos duas léguas da povoação de João Ramalho, que se chanta Piratinian, onde Martim Afonso de Sousa primeiro povoou, ajuntamos todos que N. S. quer trazer à sua Egreja”. Note-se que Tomé de Sousa informa que Martim Afonso já achou João Ramalho quando cá veio. O lugar, em que morava João Ramalho, era, pois, uma povoação e não uma vila, como se vê, e aí Martim Afonso primeiro povoou, quer dizer, aí esteve, e, aí, passou a sesmaria de Pero Góis, talvez aí deixasse alguns homens de sua esquadra. 3 Cartas Jesuíticas, vol. 1º, pág. 146. Na Capitania de São Vicente 111 4 Em 1553, a vila de Santo André já havia sido criada por Tomé de Sousa e instalada por Antônio de Oliveira em nome do donatário com a presença do provedor Brás Cubas. Manuel da Nóbrega viera ao sul em companhia do Governador Tomé de Sousa, autoridade que ele muito considerava, e cujos atos administrativos não podia ignorar na insignificante capitania de S. Vicente. Entre esses atos estava a fundação de Santo André. Portanto, em 1554, se o Padre Manuel da Nóbrega quisesse marcar a distância que havia entre a formosa povoação, em Piratinim, que se ia fazendo e essa vila de Santo André, escreveria que “a sua formosa povoação estava a duas léguas de Santo André”; e, entretanto, escreveu que ela estava a duas léguas da povoação de João Ramalho. Em outra carta escrita em 1556,5 em que informou que a “formosa povoação” estava em bom sítio, posto o melhor da terra, de toda a abastança que na terra pode haver, em meio de muitas povoações de índios – e perto da vila de Santo André, que é de cristãos e todos os cristãos desejariam ali viver, si lhes dessem licença, ali foi a primeira povoação de cristãos que nesta terra houve em tempo de Martim Afonso de Sousa (Cartas Jesuíticas, vol. 1º, pág. 154)”. 4 5 Tomé de Sousa esteve na capitania de S. Vicente pelo menos desde 8 de fevereiro de 1553 até antes de 1º de junho de 1553, estando nesta última data, na Bahia. O anotador dessa carta no volume 1º pág. 155, das Cartas Jesuíticas, diz que ela foi escrita em 1556, de Piratininga. Esta anotação não está certa quanto ao lugar – Piratininga – o que é fácil de se verificar. Nóbrega escreve nesta “capitania de São Vicente”, onde ele se encontrava e onde estavam situadas a vila de S. Vicente e a casa de Piratininga; mas por duas vezes e escreva nesta vila de S. Vicente e por vezes se refere àquela casa de Piratininga. Esta é um demonstrativo que indica proximidade ou presença, e aquela é outro demonstrativo que indica distância, afastamento do lugar em que se está. Portanto, Manuel da Nóbrega dizendo nesta vila de S. Vicente estava em S. Vicente, e referindo-se àquela casa de S. Paulo de Piratininga, mostra que nela não se achava. Ainda, referindo-se a Piratininga, emprega o advérbio ali, que também mostra distância, e não aqui se estivesse em S. Vicente, como estava. Essa carta trata principalmente “de indagar se aquela casa de Piratininga devia ser para meninos, ao que aos padres não parecia bem, mas se assim o quisesse o rei fazer, deveria a sentença pertencer-lhe, ficando aos jesuítas somente a direção espiritual; ou, então, se devia ela ser colégio da Companhia, o que seria melhor para o rei. O que é interessante de fazer notar é que em 1556, ainda os padres da Companhia não sabiam se aí se faria casa ou colégio. 112 Washington Luís Nesta outra carta de 1556 já se refere ele, e por duas vezes, à vila de Santo André, e afirma que ela era de cristãos; não diz, porém, que fosse ela criada por Martim Afonso; diz que foi a primeira povoação de cristãos que houve em tempo de Martim Afonso, que são coisas diferentes. A povoação de João Ramalho já existia antes da vinda de Martim Afonso de Sousa, e a vila de Santo André foi criada em 1553, depois de sua vinda. É lógico, pois, concluir-se que a formosa povoação de S. Paulo, que se ia fazendo em 1554, e que já estava feita em 1556, ficava situada a duas léguas da povoação de João Ramalho e perto de Santo André, demonstrando conseqüentemente a existência destes dois lugares. Como já fiz notar, Piratininga indicava vasta região no campo, no planalto. Não era uma povoação e muito menos uma vila. Veja-se que, nas suas cartas aos seus superiores, os primeiros jesuítas designam como de Piratininga a casa e a igreja que nesse planalto haviam estabelecido, e de Piratininga são elas datadas. Só mais tarde o nome de S. Paulo obscureceu o de Piratininga. Por provisão expedida a 12 de outubro de 1580, o Capitão-mor Jerônimo Leitão, concedeu, como já se disse, uma sesmaria de terras de seis léguas em quadra, aos índios da aldeia de S. Miguel de Ururaí ao longo do rio Ururaí “começando onde acabam as terras que se deram a João Ramalho e a Antônio de Macedo” (a João Ramalho e a seus filhos, esta informação é assim repetida na provisão), e que dizem que era até onde chamam Jaguaporecuba. É evidente, pois, que as terras de João Ramalho e de seus filhos eram limitadas em certa parte pela sesmaria dos índios da aldeia de S. Miguel, no lugar onde chamavam Jaguaporecuba (Registro Geral, Volume 1º, Pág. 354). A Capelinha de S. Miguel de Ururaí ainda existe e é bem conhecida em S. Paulo pela sua antiguidade, tendo sido restaurada por diversas vezes; está situada além da Penha, na estrada de rodagem que passando por Mogi das Cruzes vai à Capital Federal, chamada Rodovia Rio–São Paulo. Ficava essa capelinha na aldeia de S. Miguel, então no velho caminho do mar, vereda de índios, que se desenvolvia no vale acidentado do rio Mogi. Foi por ele que Martim Afonso subiu ao planalto em 1532, visto que então não havia outro. Na Capitania de São Vicente 113 Todos os cronistas de S. Paulo, fundados em documentos paulistas, referem-se à aldeia de S. Miguel de Ururaí, como situada próxima às terras de João Ramalho e de seus filhos. Citando o Cartório da Provedoria da Fazenda de S. Paulo, L. 2º, de Sesmarias, Az. Marques, nos seus “Apontamentos” na parte-cronológica, a 12 de outubro de 1580, informa que Jerônimo Leitão, capitão-mor-loco-tenente de Pero Lopes de Sousa, concedeu três léguas de terras aos índios de S. Miguel em Ururaí. Na sua Notícia Raciocinada (Rev. I. H. G. B. Vol. 8º, pág. 222 e 223) Machado de Oliveira diz que as léguas concedidas por Jerônimo Leitão aos índios de S. Miguel foram designadas ao longo do rio Ururaí começando onde terminava a data de João Ramalho e de seus filhos. O Marechal Arouche de Toledo Rendon na sua Memória sobre As Aldeias de Índios, na província de S. Paulo. (R. I. H. G. B. Vol. 4º, pág. 314 notas 43 e 44), narra que o Capitão-General de S. Paulo, li Luís Antônio de Sousa, por portaria de 29 de Novembro de 1773, mandou medir e demarcar as seis léguas de terras concedidas aos índios de S. Miguel. Os medidores foram “às terras de João Ramalho e de seus filhos, que ficavam juntas à sesmaria da aldeia de S. Miquel de Ururahy”... Estão aí, pois, indiscutivelmente indicadas a moradia, a povoação, as terras de João Ramalho. Pedro Taques, na sua História da Capitania de S. Vicente (R. I. H. G. B. Vol. 9, pág. 149) e na sua Nobiliarquia Paulistana (mesma Rev. Vol. 34, pág. 6), conta que Santo André foi aclamada vila em 8 de abril de 1553, em nome do donatário Martim Afonso de Sousa, por provisão do loco-tenente Antônio de Oliveira, estando presente o provedor da fazenda real, Brás Cubas, e fundamenta essa informação citando o caderno nº 1 da vila de Santo André. Esse caderno desapareceu do Arquivo Municipal; a publicação das vereanças da vila de Santo André começa em julho de 1555 e vai a março de 1558, não existindo mais o das de 1553. Não é possível, pois, verificar os termos da vereança, da qual Taques fez apenas um resumo. Entretanto não há contradição entre as informações de Tomé de Sousa a D. João III e a narração de Taques; as primeiras se referem à criação da vila e a segunda à sua aclamação. Criar uma vila é uma coisa e 114 Washington Luís aclamá-la é outra. Criar uma vila é dar-lhe existência jurídica, é ato do poder legal; aclamar uma vila, conseqüência da criação, é instalá-la, torná-la pública, o que é apenas fato. Taques refere que a aclamação foi feita em nome de Martim Afonso, o que era de direito, pois que Martim Afonso era donatário da capitania, portanto da vila, e o representante do donatário quis acentuar e fazer reconhecer o direito do donatário, que o próprio Tomé de Sousa, aliás, foi o primeiro a proclamar quando declarou que ele acrescentara essa vila a Martim Afonso6. Criou a vila, mas não lhe determinou as divisas. Ela, portanto, compreenderia, com as limitações do Foral, todo o planalto, todo o sertão, onde se iam formar outras povoações. Para confirmação desta tese ainda se encontra, no livro da Câmara de Santo André – vereança de 8 de janeiro de 1557 – em que está publicado, um requerimento-protesto feito ao Capitão e ouvidor da Capitania de S. Vicente, Jorge Ferreira, sobre a demora ou recusa em apurar, nesse ano de 1557, a eleição procedida para oficiais da Câmara de Santo André, no qual expressamente se refere à criação e à aclamação da vila, e não deixa a menor dúvida sobre o fundador e os aclamado- 6 No tempo de Varnhagen ainda existia qualquer coisa a esse respeito e disso dá ele conta em uma carta ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, lida na sessão de 14 de novembro de 1840 (V. 2º da Rev. desse Instituto, pág. 529 a 531) na qual se encontra o seguinte período: No Arquivo da Câmara (de S. Paulo) acham-se livros bem antigos e cuja letra já pertence à Paleografia. Entre esses deve-se contar o caderno que contém as vereanças da extinta Villa de Santo André nos anos de 1555 a 1558”, “este livro de Santo André é rubricado em todas as suas folhas por Antônio Cubas. Começa contendo, em fragmento, o fim do foral da vila dado por Martim Afonso em Lisboa em 5 de abril de 1558”, por seu representante “seguem as vereanças de 1562 a 1563”. Há aí evidentemente um erro tipográfico ou de cópia, quanto ao último algarismo da data quando é citada a de 5 de abril de 1558, fácil de produzir-se visto a rudimentar e fantasiosa grafia dos escrivães quinhentistas e a semelhança dos algarismos 3 e 8 em fragmentos finais de escritos estragadíssimos. É o próprio Varnhagen quem afirma ter visto atas de “1555” a “1558”, e assim o foral dessa vila não poderia ser expedido em 1558, pois que a Câmara já funcionava pelo menos desde 1555, antes de 1558. Taques, que examinou esse livro ainda mais conservado, leu 1553. Na Capitania de São Vicente 115 7 res. Transcreve-se em seguida esse requerimento-protesto conservando a sua áspera redação e a sua não menos áspera ortografia: “Vosa merse não quer despachar nossa pauta e nos querer tomar nossa jurdyção que nos lleixou ho sor tomé de Sousa, gdor., a quall foy metydo de pose por ãoto. dollyveyra. capptão e Brás cuhas pr veador desta capytanya cõ todas llyberdades cõforme ao regym.to e foralt (q’ue está trelladado no lyvro da canuztra desta vylla) de sua alteza” “e vossa, nerse ho não querer despachar protestamos pr todas as perdas e danos e denefyca.ções desta vylla e bës dórfãos q por falta de justiça se perderem por vosa mer não prover cõ hos ofysios como aquy temos era costume... (Atas da Câmara de Santo André, págs. 57, 58)”. Em linguagem tosca, mas com dizer sólido e firme, a Câmara de Santo André reclamou a jurisdição que Tomé de Sousa deixou, quer dizer a sua criação, da qual fora metida de posse por Antônio de Oliveira e Brás Cubas, isto é, a sua aclamação pelos representantes do donatário e do rei. Reclamou ela os seus direitos e o Capitão-mor e ouvidor, Jorge Ferreira, apressou-se em reconhecê-los, alimpando a pauta, apurando a eleição feita pelos homens bons, pois que a 5 de fevereiro de 1557 (Atas de Santo André, Fls. 58) foi, em Santo André, aberta tal pauta saindo por Oficiais Simão Jorge, juiz, João Ramalho, vereador e Francisco Pires, procurador do conselho. E a Câmara de Santo André, criada por Tomé de Sousa, em 1553, aclamada em 8 de abril desse ano por provisão de Antônio d’Oliveira, Capitão-mor em nome do donatário, e com a presença de Brás Cubas, provedor da fazenda real, funcionou no lugar, em que a situou o primeiro Governador Geral do Brasil, até 1560. Tomé de Sousa, que, nos seus relatórios ao rei, não usava de eufemismos e inequivocamente dava os verdadeiros nomes às coisas que 7 Jorge Ferreira, capitão e ouvidor, que foi da Capitania de S. Vicente, estando na cidade do Rio de Janeiro, em 1º de outubro de 1573, requereu e obteve terras nas cabeceiras de Antônio de Mariz, e no sertão da banda de Cabo Frio, alegando que ajudara a Mem de Sá na expulsão dos franceses e tamoios da fortaleza de “Virgalham”, e, a pedido de Salvador Correia de Sá, o socorreu com mantimentos e armas, seus filhos, netos, cunhados, parentes e amigos, e ora veio com toda a sua casa, mulher, filhos e criados para ajudar a povoar e enobrecer esta terra” (Anais da Biblioteca Nacional – Vol. 57, págs. 262 a 266). 116 Washington Luís via ou observava, diz claramente, na sua carta da Bahia a 1º de junho de 1553, que ele acrescentara uma vila a Martim Afonso ajuntando algumas povoações do campo em lugar onde havia uma ermida sob a invocação do apóstolo Santo André. Ora, ermida significava naquele tempo, ainda significa hoje e sempre significou, uma capela, de ordinário em sítio ermo, descampado, pequeno templo em lugar ermo. Sendo ermo o lugar onde Tomé de Sousa fundou a vila de Santo André, não poderia ter sido na povoação de João Ramalho, pois que, nesta morava o régulo com a sua numerosa descendência. João Ramalho não fundou, pois, a vila de Santo André; nem na povoação, em que ele morava, foi criada a vila de Santo André por Tomé de Sousa. Os moradores, que ele aí juntou, foram em pequeno número. Consultando-se as Atas da vila de Santo André, vê-se que em 1555, chamado todo o povo, e cada um de per si, para escolher um procurador do conselho, o candidato mais votado teve onze votos (Atas, pág. 21). Ainda em 1556 tendo que eleger um juiz, o povo dá ao candidato mais votado onze votos (Atas de Santo André, pág. 52). Em 31 de março de 1558, e é nesse dia que se lavra a última ata publicada dessa Câmara, os oficiais dela chamando o povo para cuidar da defensão da vila, ameaçada por ataques de índios inimigos, só comparecem ou pelo menos só assinam tal ata, 16 pessoas (Atas de Santo André, pág. 74). A Câmara de Santo André compunha-se apenas de um vereador, um juiz e um procurador do conselho e nomeava um escrivão, um porteiro e um almotacé. Os homens bons da governança, segundo parece, eram apenas uns vinte ou pouco mais e se revezavam na administração, como se pode deduzir e da relação dos nomes que comparecem ao chamado e que constam nas atas publicadas. Na vila não havia telheiros nem pedreiros. Mesmo na vila de S. Paulo, que absorvera inteiramente Santo André, ainda em 1575, as casas eram cobertas de palha e só nesse ano se contratou com Cristóvão Gonçalves a feitura de telhas “para enobrecimento das moradas” (Atas de S. Paulo, Vol. 1º, pág 67) o que, entretanto, só muito mais tarde se realizou. As casas de Santo André eram cobertas de palha, em cujas paredes só havia taipa de mão, quando as havia. Os seus vestígios no Na Capitania de São Vicente 117 terreno deveriam desaparecer com facilidade. Era a vila cercada de muros, que se desfaziam com as chuvas, preocupando continuamente os oficiais da Câmara sobre a necessidade de os cobrir para evitar desmanchos. Entre as insignificantes vilas das costas do Brasil, Santo André da Borda do Campo, foi, sem dúvida, uma das mais insignificantes. Santo André, porém, teria existência efêmera; estava destinada a durar pouco mais de sete anos, e dela não ficariam vestígios no campo, nem na história a não ser o magro volume de atas contendo magríssimas sessões, como adiante se vai ver. Nenhuma relação tem com a atual Santo André, grande centro industrial nas proximidades da Capital de S. Paulo, criado distrito de paz pela Lei nº 1222-A, de 14 de dezembro de 1910 e reconhecido município pelo Decreto 9.775, de 30 de novembro de 1938. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo VII OS JESUÍTAS A COMPANHIA de Jesus estabelecida em Roma por poucos, mas ardorosos membros, foi aprovada pelo Papa Paulo III em 1540. Sob a inspiração viva e a ação infatigável de Inácio de Loyola, como superior, forma os seus principais membros os padres Pedro Lefèvre, Francisco Xavier, Simão Rodrigues de Azevedo, Diogo Laynez, Afonso Salmeron e Bobadilha. Os jesuítas faziam voto de pobreza, de castidade e de obediência e se organizaram para defender e revigorar a fé católica, então extremamente abalada pela Reforma e robustecer os princípios cristãos, por todos os meios honestos, com o desprendimento dos bens terrestres e principalmente com o desprezo da vida. Organizou-se com um Superior Geral – Inácio de Loyola – em Roma e com diversos Provinciais nas diferentes regiões do mundo, tantos quantos necessários. O Padre Simão Rodrigues de Azevedo ficou em Lisboa e foi em Portugal o primeiro Provincial. Aceita por D. João III, segundo se escreveu, a sugestão do Padre Diogo de Gouveia, por intermédio do Padre Simão Rodrigues de 120 Washington Luís Azevedo, foi adotada a idéia de evangelização dos indígenas do Brasil pelos padres da Companhia de Jesus, e foram designados seis jesuítas que partiram com Tomé de Sousa em 1549, primeiro Governador-Geral do Brasil, cujos nomes já foram indicados. Vieram mais quatro na esquadra de Simão Gomes de Andrade, em 1550. Com D. Duarte da Costa, segundo Governador Geral do Brasil, em 3 de julho de 1553, ainda vieram sete. Entre estes últimos veio o Irmão José de Anchieta. “Depois destes, em diversos anos, vieram outros padres e irmãos, que passaram de 70 em 1584, os mais deles já recebidos e outros para cá se receberam, entre os quais vieram muitos bons latinos, outros filósofos, outros teólogos e pregadores, entre estes vieram italianos, espanhóis, flamengos, ingleses, ibérnicos e o mais deles portugueses”. É o que se lê na Informação do Brasil em 1584 (Vol. VI da R.I.H.G.B., pág. 425). A companhia de Jesus e a sua ação constituem matéria já muito estudada e muito discutida. Foi ela, e tem sido, violentamente atacada, quer pelos meios que empregou, quer pelos fins visados. Mas tem sido entusiasticamente defendida. Entretanto, em alguns desses atacantes e defensores, se encontram profundos erros de julgamento. Os homens e as suas instituições só podem ser julgados com imparcialidade de acordo com princípios em vigor, na época em que existiram. Todas as instituições nascem, crescem, se desenvolvem, querem dominar, sofrem, se desnaturam ou se modificam ou acabam por desaparecer. A Companhia de Jesus, como instituição humana que é, nasceu, cresceu, se desenvolveu, sofreu, se modificou, desapareceu, mas reapareceu. Os seus fins iniciais, visados por Inácio de Loyola, têm sido transformados nesses quatrocentos anos de sua útil e tormentosa existência. Neste Brasil, desde 1549, desde a extrema pobreza e do extremo sacrifício, até a grande proprietária de terras e de outros bens pelo recebimento de doações e de legados, desde a expulsão, desde a extinção até a volta e de novo, a ensinar a mocidade, colaborando na civilização do Brasil, tem sido ela louvada e atacada. Para julgá-la é preciso determinar a época em que é analisada. Na Capitania de São Vicente 121 Nestes primeiros capítulos deste trabalho, de contribuição para o estudo da formação e civilização de nossa terra, limitados ao século XVI e aos princípios do século XVII, e de acordo com os documentos locais, é de rigorosa e imparcial justiça reconhecer que a ação coletiva da Companhia de Jesus foi elevada e que individualmente cada um de seus padres e irmãos cumpriu, com rigidez inquebrantável, com dedicada fé, os seus votos para realização de seus fins. A missão, a que os jesuítas se impuseram nas terras do Brasil para catequese, foi inçada de imensas dificuldades e bem mais difícil que em qualquer outra parte do mundo. Aqui eles não vieram mudar ou transformar uma crença para outra melhor; vieram criar crenças no espírito bruto de selvagens e no meio de selvagens. Renan diz (S. Paulo, pág. 55) “que não se deve supor que a missão de S. Paulo e de Barnabé, na Ásia Menor, foi muito mais difícil que a de Levingstone, sustentada por associações ricas. S. Paulo e Barnabé não tinham recursos materiais de espécie alguma, viviam como podiam mas exerciam as suas profissões nos lugares a que chegavam” cujos habitantes já tinham necessidades sociais e consumiam os produtos fabricados. S. Paulo era tapeceiro, e nos lugares em que evangelizava podia viver de sua profissão. Mais difícil foi a obra de evangelização na América. No Brasil os primeiros jesuítas vieram catequizar índios boçais, nômades, antropófagos, sem cidades ou vilas, sem laços sociais ou de família, sem outras necessidades que as de seus instintos, sem nenhuma idéia de uma divindade, vivendo em desertos, onde tudo se devia criar. Nos sertões ninguém exercia profissões remuneradoras, porque não havia quem delas tivesse necessidade. Nóbrega e Anchieta nada tinham, nem mesmo promessas, porque dos índios nada podiam esperar. A Companhia de Jesus nada lhes dava, a não ser a fé e a orientação. O rei dava-lhes para sua mantença um cruzado em ferro cada mês que equivalia no tempo a dois tostões, e 5$600 para vestuário e comiam com os criados do governador. E esse subsídio mesmo era aplicado no ensino dos meninos indígenas. O Padre Manuel da Nóbrega, em 1552, ainda usava a mesma roupa que trouxera do reino (Cartas Jesuíticas, vol. 1º, págs. 129, 138 e 140). 122 Washington Luís Atravessando rios e matas, andrajosas deviam ser as suas vestes talares. O próprio bispo e seu cabido tinham sorte idêntica pois que a terra estava tão pobre que não tinha rendas para os sustentar (Idem, pág. 141). Caminhavam os jesuítas com alpercatas feitas com fibras do país por eles mesmos trançadas. Nos primeiros tempos a sua pobreza foi extraordinária, vivendo de esmolas recebidas daqueles que deviam ensinar, em dependência destes portanto. Nas cartas, que eles escreviam aos seus superiores, se encontram sempre referências” aos bons ares” e “as boas águas”; mas, noto que se deve dar sempre atenção às estações do ano, em que se achavam, e aos lugares donde escreviam. Se bem, que no Brasil, então percorrido, não houvesse diferenças climáticas bem definidas para as quatro estações do ano, sempre havia tempos de intenso frio e de grandes calores. E, assim eram, e ainda são, muito agradáveis e frescos em certas regiões os dias desde fins de março até princípios de julho, e suportáveis nos outros meses; mas o calor é quase intolerável durante o verão no centro do norte, e, no inverno, o frio é intenso no planalto, principalmente para quem vivia ao desabrigo de toda a espécie. As cartas jesuíticas em regra não trazem datas e são os seus intérpretes que procuram fixar-lhes as épocas. Essas cartas discorrem sobre “os bons ares e as boas águas”, o que quer significar, e assim tem sido interpretado, o bom clima da terra. Mas, essas mesmas cartas falam continuamente nos curativos que faziam aos índios, e freqüentemente nas suas próprias enfermidades e doenças. Assim Manuel da Nóbrega andava sempre com as pernas inflamadas e tinha inchação de estômago, moléstia, que segundo o seu dizer, era aqui quase mortal (Cartas, vol. 1º, pág. 149 e vol. 3º, pág. 160). O Padre Luís da Grã fazia a catequese com grandes tumores nos peitos (Idem, vol. 3º, pág. 95). O Padre Antônio Pires esteve fraquíssimo por causa da maleita, (Idem, vol. 1º, pág. 86). Padre Vicente Rodrigues tinha contínuas dores de cabeça, que passavam por sugestão ou obediência a Nóbrega (Idem, vol. 1º, pág. 130). O Padre José de Anchieta era um valetudinário, como ninguém ignora. Encontram-se nas cartas muitas notícias a respeito das moléstias dos padres. Na Capitania de São Vicente 123 Assim deveria ser, porque mal abrigados, mal alimentados com comidas escassas e exóticas, mal dormidos, vergados sob o trabalho da catequese, sem higiene, em terras brutas, em descampados ou em matas cheias de cobras venenosas, de feras bravias e de índios canibais, matas cujos rios, nas inundações periódicas, produziam mosquitos pestíferos, esses padres não podiam gozar saúde. Somente a santa resignação cristã, alimentada pelo desejo ardente de salvar almas, poderia suportar uma existência de sofrimentos e de misérias. Só cantadores, poetas ou leitores superficiais de crônicas amenas, poderão criar um folk-lore bucólico, nesse tempo, esquecendo a grande e essencial obra de saneamento que S. Paulo tem feito no seu território. É possível que entre os índios se encontrassem alguns centenários; mas poucos, o que causava menção aos observadores, e já adaptados, desde milhares de anos e por meio de gerações ao viver selvagem. Para os adventícios, porém, vindos de outros climas e com outros hábitos, a vida deveria ser, nesses primeiros tempos, um tormento. As igrejas, que fundavam, eram mesquinhas, miseráveis, e nelas faltava tudo. Nas aldeias, onde nada se produzia, encontravam a resistência dos colonos. Apesar do desejo intenso de reduzir toda a indiada à fé católica e de reprimir e castigar as heresias e desmandos dos forasteiros que se asselvajavam, não obstante o fanatismo religioso estabelecido pela “Santa Inquisição”, que funcionava terrivelmente por meio de cruéis autos-de-fé, apesar de tudo isso, os reis católicos, quer os de Portugal quer os Filipes de Espanha, ciumentos de seus senhorios, absorventes no seu poder absoluto, esses reis jamais deram, no Brasil, apoio decisivo aos jesuítas, material ou administrativo ou pecuário, para a obra de catequese ou de doutrina. Reis por direito divino supunham não precisar de intermediários junto a Deus ou preferiam outros intermediários. Queriam a catequese dos aborígines, não há dúvida, mas nestes queriam vassalos para descobrir minas e para segurar os seus domínios na América. Faziam esses reis uma política de equilíbrio, de bascule, 124 Washington Luís como dizem os franceses, isto é, davam uma pancada no cravo e outra na ferradura, como diz o provérbio popular. Sustentavam os jesuítas fazendo leis proibindo a cativação dos índios; mas por muitas vezes fizeram vista grossa a essa cativação apoiando os colonos, que só se abalançavam a descobrir minas com o intuito de cativar índios. Os governadores guiavam-se por essa política, no tempo do absolutismo em que só a vontade do rei “nosso amo e senhor” predominava. Por essa forma, ora estimulavam as bandeiras, ora perdoavam os bandeirantes criminosos por entradas (Reg. Geral, vol. 7º, pág. 189 e vol. 2º, pág. III), tendo mesmo permitido a exportação de escravos; ora quintavam essas entradas, isto é, reservavam o quinto dos cativos para a coroa (Reg. Geral, vol. 7º, pág. 114) e ora mandavam abrir devassas rigorosas sobre essas entradas. Os donatários em geral nada podiam fazer nas suas capitanias por falta de meios materiais e os seus loco-tenentes deixavam-se guiar pelos seus interesses ou pelas suas superstições. Os jesuítas jamais se sentiram firmemente apoiados pelas autoridades civis, na sua obra religiosa. A um mameluco, a quem para evitar o pecado ou o mal José de Anchieta lembrava que se acautelasse com a Santa Inquisição, esse mameluco respondia acabarei com as Inquisições a flechadas” (Cartas, vol. 30, pág. 47). Aliás, as próprias autoridades civis, no tempo de D. João III, também não se sentiam muito seguras nos seus postos. Não há dúvida que os reis precisavam dos jesuítas e os auxiliavam, mas também precisavam dos colonos, daí essa política de equilíbrio. O que os padres da Companhia conseguiram nas possessões americanas foi quase que exclusivamente obra própria, pessoal ou coletiva, junto aos governadores, capitães-mores, colonos e índios. Em certo tempo, porém, os homens bons, os oficiais da Câmara entraram em luta aberta e violenta contra os jesuítas chegando até a expulsá-los da capitania, século e meio antes que Pombal os expulsasse do reino. A Companhia de Jesus, por sua vez, por doações e legados pios, veio a possuir grandes propriedades com índios administrados. Na Capitania de São Vicente 125 Tudo isso foi mais tarde; e mais tarde serão estudados esses episódios, na segunda parte deste ensaio, fazendo concorrência aos colonos. Na luta em prol dos preceitos católicos e dos sentimentos cristãos, civilizadores, a que se dedicaram nos primeiros tempos, demonstraram todos os padres e irmãos um valor que chegou à temeridade, uma abnegação ardorosa que foi ao sacrifício. A obediência aos seus superiores foi completa, e tão completa que chegava à submissão, foi tão completa que não tinham vontade própria, só executando a vontade de cima, na qual reconheciam o saber e a bondade, sem refletir e sem discutir, mesmo quando aparentemente essa vontade superior fosse contrária aos princípios que já lhes tinham sido pregados. O seu viver foi puro. A castidade foi tão observada que jamais ficou provada a sua quebra, não obstante as lutas sem tréguas sustentadas com os colonos e as facilidades de um meio selvagem e corrompido, em que dominavam o desconhecimento crasso e o desprezo impune das normas da moral. Catequizaram índios boçais, bravios e doutrinaram europeus aventureiros e audazes, que já se haviam habituado aos costumes soltos dos sertões índios e cruéis. Esses princípios, esses deveres foram observados de tal forma que transformaram a muitos dos primeiros jesuítas em apóstolos, fazendo de alguns verdadeiros mártires e a outros aproximando-os de santos. Alguns dos jesuítas e irmãos, que primeiro vieram ao Brasil, foram simples de espírito, cândidos de coração, com fé ardente e fervorosa. No Brasil a idéia dominante era salvar almas, desprezando e arriscando a própria vida. Dois entre eles se destacaram altíssimos, como montanhas resplandecentes em planícies férteis; foram Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Se bem que iguais no fervor de sua fé, no devotamento em espalhar os ensinamentos de Cristo, foram eles bem diferentes entre si. Sem dotes físicos que impusessem, pois que Manuel da Nóbrega era gago e Anchieta era quebrado das costas, ambos pela só presença se faziam respeitar por todos. 126 Washington Luís Manuel da Nóbrega, filho de desembargador, formado em Cânones na Universidade de Coimbra, desiludido das coisas do século, se filiou à Companhia de Jesus, e, já sacerdote, veio para o Brasil como superior de seus pouquíssimos companheiros. Nos primeiros tempos após a sua chegada, ao ver as terras do Brasil, “de bons ares e de boas águas”, cuja fertilidade louvava e cujo futuro descortinava, escassamente habitadas por indígenas primários, supôs ele a possibilidade de um povoamento português e ideou a formação na América de um prolongamento do Portugal europeu. Em cartas ao rei e ao provincial em Lisboa pedia que fossem enviados casais que lavrassem e povoassem a terra, suplicava que de Lisboa mandassem órfãs que, com bons dotes aqui dados, encontrariam matrimônios fecundos com portugueses, que já aqui estavam, lembrou mesmo que da metrópole poderiam ser despachadas “mulheres erradas, se de todo não houvessem perdido a vergonha, porque todas encontrariam casamento”. Antecipava-se a Paul de Saint Victor que, atribuindo o caso a um viajante, narra a crença em que estavam os colonos, que se casavam com mulheres deportadas para a Lusiânia, nas partes da América do Norte, que elas se purificavam com a travessia do Atlântico. A maceração do deserto transmudava as transviadas da moral, e o oceano tinha certa virtudes lustral (P. de Saint Victor, Hommes et Dieux, pág. 487). Instava Nóbrega para a vinda de pessoas casadas, “porque é certo mal empregada esta terra em degradados, que cá fazem muito mal” (Cartas, vol. 1º, pág. 85). Fez tratado de paz com os tupinambás de Cunhãbebe, que seria empresa vã e temerária, se tal convenção com índios volúveis e sem leis, não importasse na separação dos tamoios de Iperoig dos do Rio de Janeiro, e, portanto no enfraquecimento dos franceses, que “iam tomando pé nas costas do Brasil”, e, conseqüentemente, no fortalecimento dos portugueses na terra que se pretendia conservar. Construiu casas, fez colégios, edificou igrejas. Pensou em catequizar os carijós, ir até Assunção. Tinha ele vistas mais largas que as do seu rei, mas mais limitadas que as da Companhia de Jesus. Via ele as coisas portuguesmente e a Companhia as via universalmente. Na Capitania de São Vicente 127 Poder-se-ia talvez, e já houve quem pensasse, que a orientação do Padre Manuel da Nóbrega influiria para a sua substituição na direção dos jesuítas nas costas do Brasil e no sertão. Nenhum documento o prova, nem de nenhum documento, de qualquer espécie que seja, quer jesuítico, quer leigo, de tal se pode inferir. Mas essa orientação de Manuel da Nóbrega, exposta com franqueza rude e sem refolhos, por cartas escritas a D. João III e ao Padre Simão Rodrigues de Azevedo, Provincial da sua ordem religiosa em Lisboa, explicaria talvez a diminuição de sua autoridade missionária no Brasil, pouco depois partilhada com o Padre Luís da Grã, e em seguida por este substituída, não obstante referir-se ele às suas muitas moléstias e também ao término trienal de seu provincialato, que, entretanto, poderia ser renovado. O rei fanático queria também o Brasil para presídio penitenciário, para colocação das crianças abandonadas na metrópole e para exploração de minas. A Companhia de Jesus, católica, queria, porventura, realizar pelo apostolado e pela evangelização a obra que os reis empreendiam com as armas para conquista de terras e de homens. Uns queriam a riqueza e o poderio, a outra aspirava à conquista espiritual pela mansa doutrinação cristã, e todos desejavam o domínio do mundo. Destituído da direção da catequese, Manuel da Nóbrega, como era de direito, submeteu-se à regra de sua Companhia, e, obediente e silencioso, subordinou-se ao novo provincial do Brasil, limitando a sua ação à catequese religiosa, até sua morte. Manifestou, por vezes, visão de verdadeiro estadista na colonização do Brasil, não obstante o Padre Simão de Vasconcelos nas suas crônicas atribuir-lhe atos ridículos de comédia, que não se coadunavam com o caráter do primeiro superior dos jesuítas nas costas do Brasil e ainda menos com o princípio da liberdade pela qual os jesuítas combatiam, na catequese que faziam. Basta ler a venda simulada do Padre Manuel de Paiva, na Bahia, a ordem para que esse mesmo padre rolasse por um morro abaixo e o fingimento de enterrar vivo, em S. Vicente, a um caluniador (Crônicas da Companhia de Jesus, Livro 1º, págs. 49, 50, 77). Lembrou Nóbrega, entretanto, ao Padre Simão Rodrigues de Azevedo que... “a capitania de S. Vicente se vae pouco a pouco se despovoando, pela pouca conta e cuidado que el-rei e Martim Afonso de Sousa têm e se vão lá pas- 128 Washington Luís sando para o Paraguay pouco a pouco e considerar eu os muitos irmãos que ha em S. Vicente e o pouco que se fez aí e parecer-me que seria bom ter a Companhia lá um ninho onde recolhesse, quando de todo S. Vicente se despovoasse”.... (Cartas, vol. 1º, pág. 174). A sua última carta publicada do Brasil é de 1561. E a única, que escreveu o seu substituto, Luís da Grã, conforme a publicação feita pela Academia Brasileira de Letras, é também desse ano. (Cartas, vol. 2º, pág. 291) embora, durante o provincialato deste último, fatos importantes tivessem acontecido, como o processo de heresia por ele iniciado contra Jean de Boulés. Essa transformação de tribos selvagens em povos civilizados, também tentada no Guairá, foi talvez um sonho da Companhia de Jesus, naqueles tempos de aspirações desmedidas, de aventuras incríveis, que iam ver as façanhas de Cortez no México e as de Pizarro no Peru, que iam ler Cervantes ao descrever as proezas generosas e vãs do anacrônico D. Quixote. Ela sonhou, talvez, poder realizar em novos e bravios continentes, pela pregação, pela palavra e pelo exemplo abnegado, o que os reis de então conseguiam pelas guerras; e, como eles pretendiam, pretendeu ela (quem sabe?) também estender-se pelo mundo; mas, afinal, sentiu que em S. Vicente tal sonho, como todos os sonhos, era irrealizável diante da resistência tenaz dos colonos, da displicência interesseira dos governos e dos donatários, da bruteza indomável dos indígenas. Tal sonho também se desvaneceu no Guairá, conforme ver-se-á em outra parte deste estudo. Os seus meios não estavam em proporção a esses fins, se é que os teve. José de Anchieta, nascido em Tenerife, nas Canárias em 1534, de pais navarros, foi para Coimbra ainda muito moço, pois contava uns dezessete anos, e daí passou-se para o Brasil, com 19 anos, simples irmão da Companhia de Jesus, em 1553. Tomou ordens sacerdotais na Bahia em 1566. 1 Foi nesse meio virgem e bronco, habitado por índios selvagens e por aventureiros portugueses, que ele viveu. 1 Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil, vol. 1º, pág. 29. Nota. Na Capitania de São Vicente 129 Foi nesse Brasil, desprovido de todos os recursos materiais, intelectuais e morais, que ele formou e cultivou a sua alta e rara inteligência. Poeta, compôs em latim à Virgem Maria um poema de milhares de versos; orador sacro, os seus sermões são elevados e ainda hoje se lêem; naturalista, foi o primeiro a descrever a flora e a fauna do Brasil, cujas observações pessoais ainda valem; teatrólogo, arranjou burletas e autos para com representação cênica converter os pequenos indígenas; filólogo, fez a primeira gramática tupi-portuguesa, formando, por assim dizer, a língua que antes era incapaz de ser aprendida para ser falada. Seria unicamente um intelectual, como hoje se diz, se tivesse abandonado as práticas da catequese, e se esquivasse aos incômodos e perigos da selva. O Padre Leonardo Nunes, não obstante o seu esforço multíplice e incansável, que o fez denominar Abarebebê, o vigor de sua fé cristã, o devotamento à causa da Companhia instituída por Inácio de Loyola, e talvez por isso mesmo, já tinha outro feitio, via no martírio o fim invejável de sua missão religiosa, para maior glória de Deus. Expulsando João Ramalho de uma igreja, no dizer do Padre Simão de Vasconcelos, diante das ameaças dos mamelucos, ajoelhou-se e de mãos postas, esperou a morte violenta, o martírio, não vendo que assim deixaria de cumprir a sua missão apostólica. Deveria, nessa ocasião, procurar catequizar o régulo, se é que o fato é verdadeiro, como parece, e não uma das gemadas do Padre Simão de Vasconcelos, como a algumas das suas informações classifica Capistrano de Abreu (Cartas Jesuíticas, vol. 3º, pág. 15). Logo verificaram os padres, porém, que “os índios eram indômitos, nem se continham pela boa razão” (Anchieta, Cartas, vol. 3º, pág. 36) “o gentio era tão carniceiro que parece impossível viver sem matar” (Idem, vol. 3º, pág. 182) e matar o próximo para comê-lo, “por tal forma bárbaros que parecem aproximar-se à natureza de feras que à dos homens” (Idem, pág. 46); “os índios têm por sumo deleite comer-se uns aos outros” (Idem, vol. 3º, pág. 74) “certamente muito pouco fruto se pode colher se a força e o braço secular não acudirem para domá-los e submetê-los ao jugo da obediência” (Idem, pág. 41) “para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro” (Idem, vol. 3º, pág. 186). Esse gentio “era uma espécie de gente de condição 130 Washington Luís mais de feras bravias que de gente racional, ser gente servil que se quer por medo” (Manuel da Nóbrega, Cartas, vol. 1º, pág. 174). Sem abandonar a catequese nas selvas, os primeiros jesuítas edificaram igrejas que, atraíam as mulheres, e passaram a criar escolas onde ensinavam os meninos, considerando que, por meio delas e com estes, chegariam a civilização dos outros, de todos. Mas eles, os jesuítas, nos primeiros tempos, foram em pequeno número e eram muito pobres; as suas escolas foram estreitas e as suas igrejas mesquinhas, nas quais não poderia haver a pompa do culto católico que a todos impressiona, principalmente aos primitivos. Mas os padres da Companhia não se limitaram só ao ensino, à doutrina; eles também sangravam e davam remédios aos doentes, socorriam os que morriam no sertão, que era todo o Brasil daquele tempo, porque a catequese cristã abrangia todas as manifestações da vida humana. Também a sua ação não se circunscreveu aos silvícolas, quis abranger, e abrangeu, também os colonos, os imigrantes, quer fossem governantes, quer fossem governados. Sobre estes, além da doutrinação, na ausência de vigários, nesses tempos em que todos os poderes se confundiam, dispunham também de meios religiosos sobre atos da vida civil, que só tinham validade e vigor, quando consagrados pela Igreja. Fora da Igreja, no começo do século 16, em Portugal, não havia vida civil na terra nem salvação no céu. Eles batizavam, celebravam esse sacramento, que fixava para o neófito o ingresso no cristianismo, mas que era também um registro, que provava a entrada na vida civil, o nascimento, a maioridade, e com esta a plena posse dos direitos individuais. Nos primeiros tempos casavam, e sempre induziam severamente para o matrimônio, celebrando um sacramento, mas que era ao mesmo tempo o registro que provava a legalidade da família, a legitimidade dos filhos, instituindo o regime dos bens, o pátrio poder; administravam a extrema unção, outro sacramento, que, como o enterramento, era uma espécie de certidão de óbito que provava a morte, dando origem à transmissão dos bens, das heranças, da distribuição dos legados. Eles dispunham da confissão, com a qual dirigiam as consciências, orientando todos os atos da vida, estabelecendo a penitência, que abria às almas boas as portas para a felicidade eterna, e às más ou culpa- Na Capitania de São Vicente 131 das ameaçavam com a condenação a terríveis penas no inferno para todo o sempre. Essa ação, influindo energicamente para os casamentos dos colonos, que viviam amancebados, ou em promiscuidade com as índias, concorreu para a formação legal da sub-raça – a dos mestiços – chamados mamelucos. Procuraram influir nas autoridades locais; e, na metrópole, conseguiram inspirar leis que proibissem as guerras e a conseqüente escravidão do gentio pelos colonos, intentando, em suma, subtrair os índios ao domínio dos primeiros povoadores. Ora, esta empresa, a que se dedicaram os jesuítas, contrariava abertamente os interesses imediatos dos colonos, e por conseqüência, enfraquecia a posse que os reis queriam manter nos descobrimentos; alienava, portanto, a ajuda da administração – “o braço secular” – tornando difícil “por falta da espada e da vara de ferro” a obra por eles desejada. Essa luta existiu desde os primeiros tempos coloniais e constitui uma das páginas interessantes da sua história. Esse gentio feroz, carniceiro, inconstante, era uma sociedade humana que começava ou, para melhor dizer, neles se podia ver como a civilização começa. Apesar de tudo isso os jesuítas lutaram com tenacidade e paciência, indo às selvas catequizar o gentio e procurando dirigir as aldeias, quando era ele reunido junto às vilas. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo VIII A FUNDAÇÃO DE SÃO PAULO N A OCASIÃO em que Tomé de Sousa percorreu a costa sul do Brasil, em 1553, em inspeção às capitanias, que constituíam seu governo geral, veio, como se sabe, em sua companhia o Padre Manuel da Nóbrega. O superior dos jesuítas nas terras do Brasil, em visita às casas e colégios fundados para cristianização dos indígenas, esteve na vila de S. Vicente, depois também subiu ao planalto. Esse planalto já era conhecido. A ele viera, em 1532, Martim Afonso de Sousa; nele, antes dessa vinda, já habitava João Ramalho com a sua numerosa tribo; nele já havia alguns portugueses, que se comunicavam com S. Vicente por veredas de índios; nele também esteve Manuel da Nóbrega1 e, antes dele Leonardo Nunes. Nele, de bom ares e com facilidades de culturas, resolveu Manuel da Nóbrega estabelecer um ponto para irradiação da catequese religiosa dos aborígines. Com outros padres e irmãos da Companhia de Jesus, a ele subiu e, numa povoação de índios, que chamavam Piratininga, foi construída “uma paupérrima e estreita casinha, tendo 14 passos de comprimento 1 Cartas Jesuíticas, Manuel da Nóbrega, vol. 1º, pág. 145. 134 Washington Luís e 10 de largura, feita de barro e coberta de palha, que serviu ao mesmo tempo de escola, dormitório e refeitório, enfermaria e cozinha e despensa”, “separada da convivência dos portugueses”.2 Procuraram os jesuítas reunir no planalto o gentio acolhedor, fazer uma casa religiosa e construir uma igreja, distante, entretanto, da povoação de João Ramalho. Por mais tosca e rudimentar que fosse a casa, algum tempo demandaria a construção delas. Da mesma forma por mais acolhedor que tivesse sido o gentio, volúvel e inconstante, sempre seria necessário tempo para o reunir e induzi-lo a permanecer em determinado lugar. É o próprio Padre Manuel da Nóbrega que expõe o seu árduo trabalho, realizado no ano anterior de 1553, como se lê na sua carta de 31 de agosto de 1553 (Serafim Leite, Páginas de História, pág. 92) a fim de que com os demais padres e irmãos pudesse o Padre Manuel de Paiva celebrar missa aí, onde já se achava Tibiriçá e sua gente, no dia 25 de janeiro de 1554, dia consagrado à conversão de S. Paulo e por isso a pequenina casa tomou o nome desse apóstolo. Manuel da Nóbrega era o superior dos jesuítas em S. Vicente, no Brasil; e, na ocasião dessa missa, José de Anchieta tinha 19 anos, 9 meses e 18 dias de idade3 e não era ainda sacerdote, sendo apenas irmão da Companhia, tendo-se ordenado posteriormente na Bahia em 1566 (Charles Sainte Foy – Vida de José de Anchieta, págs. 1, 26, 52). Pela regra da Companhia, cujo voto de obediência era rigoroso, só o superior, só Manuel da Nóbrega, escolheria o lugar para a fundação da Igreja de S. Paulo, e, pelas leis da Igreja, só um sacerdote poderia celebrar missa. A missa de 25 de janeiro não poderia, pois, ser dita por Anchieta, embora a ela estivesse presente, nem a igreja poderia ter sido por ele fundada. E, porque tal dia se escolheu para isso, “é Piratininga, como acima se disse, se começou de ”propósito” a conversão do Brasil” (Inf. do Brasil R.I.H.G.B., vol. 6º, pág. 430). Santo André ficara situada à borda do campo, o que vale dizer à borda da mata, isto é, onde acabava a mata, que cobre a encosta da 2 3 Cartas Jesuíticas, José de Anchieta, vol. 1º, pág. 145. Nasceu a 7 de abril de 1534. Na Capitania de São Vicente 135 Serra, e onde começa o campo onde se situou S. Paulo do Campo de Piratininga. Ficava aquela vila mais sujeita aos ataques dos índios inimigos, que acobertados com a mata atacavam com surpresa e perfídia, o que tornava muito mais difícil a sua defesa. A casa e a igreja de S. Paulo ficavam no meio de campos abertos e largos, que permitiam os seus habitantes divisar o inimigo ao longe e assim opor-lhe defesa mais pronta e eficaz. Nesses campos de “bons ares e de boas águas” cultivavam-se cereais e frutas, se apascentava gado, com os quais se abasteciam a própria povoação, a vila de Santos e a de S. Vicente, coisas indispensáveis ao litoral, e para as quais as condições de Santo André não consentiam facilidades. Essa era a obra dos colonos. Santo André possuía ermida, mas não tinha pároco, só recebendo socorros espirituais idos de S. Paulo, com grande prejuízo para a religião. As duas povoações, por assim dizer contemporâneas, como núcleos urbanos, se equivaliam; a manutenção das duas dispersava esforços e atividades, cuja reunião era indispensável nessa época inicial de conquistas material e espiritual, de povoamento e catequese. Essas razões – que tinham em vista a defesa e a segurança, e que também eram de ordem econômica, social e espiritual – levaram a Mem de Sá, terceiro Governador Geral do Brasil, estando em S. Vicente, em 1560, atendendo os pedidos dos padres da Companhia de Jesus e os dos próprios moradores de Santo André, a mudar a sede dessa vila para junto da casa e igreja de S. Paulo edificadas estas na colina entre os ribeirões Tamanduateí e Anhangabaú, próximas às choças de Tibiriçá, ambas dentro do termo da vila de Santo André. Az. Marques, Cronologia, informa que Mem de Sá chegou a S. Vicente a 31 de março de 1560, e aí esteve cerca de sete meses ou mais, o que autoriza a dizer que a mudança foi feita depois de março e antes de findar esse ano de 1560.4 4 Vide – Instrumento dos serviços de Mem de Sá – Anais da Biblioteca Nacional, vol. 27, págs. 129 e seguintes. 136 Washington Luís Em 1560 foi também usado, por ordem de Mem de Sá, um outro caminho entre o planalto e o litoral, mais para oeste, a fim de evitar 5 os ataques dos tamoios. Por essa forma, “para melhor serviço de Deus e de el-rei, nosso senhor”, que nesse tempo tudo decidia, concentrou o Governador Geral mais uma vez, os moradores do planalto em um ponto mais avançado no sertão, alargando a posse portuguesa. Documentos autênticos provam que não houve um pedido único nem uma só razão para a transferência de sede da vila. 5 Essas duas veredas, ordinaríssimas, mal traçavam o trânsito entre o planalto e o Cubatão. Esta última ficou conhecida sob o nome de Caminho do Padre José, não se sabe desde que data e por que razão, talvez por ser freqüentada por Anchieta. Em 1560 José de Anchieta era apenas irmão da Companhia de Jesus, só tendo tomado ordens sacerdotais em 1566, na Bahia (Serafim Leite, História da Companhia de Jesus, Vol. 1º, pág. 29, Nota 2). Nem ele tinha poderes, nem a Companhia de Jesus, nessa época, tinha posses para construção de caminhos por piores que fossem. José de Anchieta “subia por esse caminho” (Documentos Interessantes, Vol. 29, pág. 112). É o que diz a Memória de Melo e Castro aqui citado. Foi uma preocupação constante, e com muita razão, da gente do planalto em manter a comunicação com o litoral. Desde as mais remotas vereanças da vila de Santo André (Atas, pág. 15), através das atas da Câmara de S. Paulo, continuamente se fala e se recomenda e se insta pela conservação do caminho do mar. Este caminho nos primeiros tempos, e por muito tempo, foi uma vereda de índios pela serra de Paranapiacaba, (porque da ilha de S. Vicente até ao pé da serra se viajava por água) e daí para a vila de S. Paulo, até à borda do campo, atravessavam-se rios caudalosos. Em 1560 o caminho do mar ainda passava pelo vale do Mogi, pelos sítios de João Ramalho, e por Ururaí, e foi por ele que Martim Afonso subiu até a região de Piratininga. Depois se fez outro, mais a oeste, que a tradição chamou caminho do Pe. José (Os rios correm para o mar) e que por ordem de Mem de Sé começou a servir ao tráfego entre o planalto e o litoral. O primeiro chamou-se o caminho velho do mar. Pelo caminho novo, era proibida a passagem de boiadas, visto o estrago que causavam. Ambos eram péssimos; do alto da serra até ao campo havia atoleiros causados pelas inundações dos rios Grande e Pequeno; do alto da serra para baixo eram aspérrimos e apenas indicados pelos cortes das árvores. Depois, no fim do século 18, Bernardo José de Lorena mandou fazer uma estrada, em ziguezague na descida, que se chamou a “Calçada do Lorena”. A Câmara de S. Paulo, todos capitães-generais, todos os viajantes descrevem o caminho novo como temeroso. Todas as administrações, conforme as suas posses, fizeram esforços para melhorá-lo. O Capitão General Antônio de Melo e Castro, em 1799, fez uma memória sobre esse caminho que se pode ler nos Documentos Interessantes, Vol. 29, pág. 112 e seguintes, publicados pelo Arquivo do Estado. Na Capitania de São Vicente 137 Comprova-o uma carta de 20 de maio de 1561 à rainha D. Catarina, regente de Portugal durante a menoridade de D. Sebastião, assinada por Jorge Moreira e Joanes Annes, oficiais que foram da Câmara de Santo André e depois da de S. Paulo, na qual escreveu: “este ano de 1560 veio a esta capitania Mem de Sá, governador Geral, e mandou que a vila de Santo André, em que antes estávamos, se passasse para junto da casa de S. Paulo, que é dos padres de Jesus, porque nós todos lh’o pedimos por uma petição, assim por ser o lugar mais forte e mais defensável assim dos contrários como dos nossos índios, como por muitas causas que a ele se movera” (Cândido Mendes de Almeida, R.I.H.G.B., vol. 40, 2ª parte, pág. 349 – Serafim Leite, Páginas de História do Brasil, pág. 87. Ambas essas citações se fundam na História do Brasil, de Ad. Varnhagen, vol. 1º, pág. 290, 2ª. ed. que por sua vez cita a Carta de Piratininga a 20 de maio de 1561). Comprova-o a vereança de 12 de maio de 1564 (Atas de S. Paulo, vol. 1º, pág. 42) na qual a Câmara de S. Paulo fez registrar um requerimento dirigido a Estácio de Sá, então com sua esquadra no porto de S. Vicente, onde viera buscar reforço, “primeiramente lembramos em como esta vila de S. Paulo sendo há tantos anos edificada doze léguas pela terra adentro, agora faz quatro anos que a esta capitania veio o Governador Mem de Sá e por lhe ser requerido pelo povo de S. Vicente, Santos e Padres da Companhia de que as provesse e fortalecesse esta vila, ele o fez com o despovoamento da vila de Santo André recolhendo os moradores para viver nesta dita vila”. “A capitania de S. Vicente estava entre duas gerações de gente inimiga de várias qualidades e forças, que em toda a costa do Brasil há, como são os tamoios e os tupiniquins”. São, pois, expressos os documentos profanos em atribuir a Mem de Sá a mudança, em 1560, da sede da vila de Santo André para junto da Casa Jesuítica de São Paulo. Com eles concordam os documentos jesuíticos. Em a carta de 12 de junho de 1561, José de Anchieta, (Cartas, vol. 3º, pág. 170) relata ao Padre Geral dos Jesuítas, Diogo Laynez, que uma povoação, que estava três léguas apartada, se mudou para Piratininga por mandado do Governador e por instâncias dos padres. 138 Washington Luís A Informação do Brasil, em 1584 (Rev. I.H.G.B., vol. 6º, pág. 430), declara que “a vila de S. Paulo era antigamente de invocação de Santo André, estava três léguas mais para o mar, e no ano de 60 por mandado do Governador Mem de Sá se mudou a Piratininga, porque não tinha cura, somente era visitada e sacramentada dos padres da Companhia, assim portugueses como índios seus escravos”. Foram esses pedidos, aqui resumidos, que determinaram a mudança da sede. No Arquivo Municipal de São Paulo faltam as atas da vila de Santo André da Borda do Campo, correspondentes aos anos de 1553 a 1555 e faltam as de São Paulo de 1560 a 1562 (e faltam muitas outras) período no qual se fizeram a criação e aclamação de Santo André, e a mudança da sede desta vila para junto da casa dos jesuítas. Neles deveriam constar os assentos relativos a esses fatos. O foral da vila de Santo André, se bem que a ele haja referências positivas, desapareceu, como desapareceram vereanças de alto valor. Os livros, que os continham, mal guardados, mal cuidados, maltratados, comidos pelas traças, em clima úmido e quente, constituídos por brochuras ordinárias e em certo tempo muito manuseados, se foram gastando, dilacerando, rompendo nas suas últimas e primeiras páginas. Muitos desses livros desapareceram e o arquivo local emudeceu para a História. O silêncio dos arquivos locais, entretanto, não impediu que outros documentos autênticos narrassem que houve a transferência da sede da vila de Santo André para junto da igreja que os jesuítas tinham levantado e dedicado a São Paulo. Para aí vieram os homens bons da governança de Santo André e para aí se transportou a administração local portuguesa autorizada nos forais concedidos pelo rei D. João III; aí já estavam alguns colonos, dos que andavam espalhados pelo campo; aí já se encontravam muitos índios; já aí haviam mamelucos. Há que concluir, portanto, que São Paulo não foi obra de um só homem nem de um só partido nem de uma só geração. Claro como a evidência. Basta indicar e resumir os elementos que coletivamente concorreram para que São Paulo existisse. Em 1553, Tomé de Sousa, na capitania de Martim Afonso, doada pelo rei de Portugal, juntou as diversas povoações, dispersas pelo campo, e fundou a vila de Santo André perto de uma ermida que aí ha- Na Capitania de São Vicente 139 via, dedicada ao apóstolo desse nome. Já antes havia autorizado os jesuítas a evangelizar nesses campos. Em 1554, com autorização desse governador geral, os padres da Companhia de Jesus,6 construíram uma igreja e nela celebraram missa, numa estreitíssima casa, no dia da conversão de S. Paulo, na colina entre o Tamanduateí e o Anhangabaú. Em 1560, Mem de Sá, terceiro governador geral, mudou a sede dessa vila de Santo André para junto dessa casinha. Daí passaram os padres a catequizar os aborígines, e os colonos e seus mestiços, chamados mamelucos, e estes e todos começaram a devassar o sertão, a fazer fazendas a apascentar gados e a descobrir minas. Em 1711, após o descobrimento de minas, o rei D. João V elevou a vila a cidade, nela estabelecendo a sede da capitania. Em 1822, desmembrando-se de Portugal, o Brasil viu a pequena cidade transformada em capital de uma província imperial. Em 1889, a república se estabeleceu e aí constituiu a capital de um estado autônomo e federado, com rendas próprias. Este abriu as portas de suas terras dadivosas, que ele as fez sadias e seguras, à imigração dos outros estados da Federação e à de todas as nações do mundo. Assim floresceram a agricultura, o comércio, as indústrias, as artes alargando e erguendo, próspera e rica, a cidade atual com mais de 2.300.000 habitantes. Foi a conjunção de todos esses elementos que fez a cidade, “que mais cresce no mundo”, segundo proclama o orgulho brasileiro. Mudada a sede da vila para junto à Igreja dos Jesuítas, no campo, que estava no termo de Santo André, este nome foi-se esvaecendo, até se integrar no de S. Paulo. À vila de S. Paulo não foi, pois, dado foral. E o nome de São Paulo absorveu totalmente o de Santo André. E essa absorção foi ainda mais vasta, se estendeu por toda a capitania de S. Vicente, por todo o sertão do Brasil. 6 Nesse tempo, tudo dependia de licença do rei, diretamente ou de seus representantes autorizados. 140 Washington Luís São Paulo, com a força de um destino, transmudou os vicentinos e os forasteiros em paulistas e o nome de S. Paulo, numa igrejinha em pequeníssimo povoado, passou para a vila, passou depois para a cidade, passou para a capitania e mais tarde para todo o território sertanejo, desde as altas e recônditas cabeceiras dos regatos, que afluem para o Paraguai e para o Paraná até formar o rio da Prata, como passou até para o norte, até as que constituem a bacia sul do Amazonas e para a bacia do São Francisco, no sertão. Oficialmente ainda havia a capitania de S. Vicente, mas já é de São Paulo que se fala. Ainda havia a capitania de S. Vicente e todos os seus habitantes já se chamavam paulistas e trilhavam terras desconhecidas, como os seus antepassados europeus navegaram mares tenebrosos. Sem dúvida alguma a 25 de janeiro de 1554, numa tosca casinha de 14 passos de comprimento por 10 de largura, na colina entre o Tamanduateí e o Anhangabaú, foi celebrada uma missa. Mas essa data não marca também a primeira missa celebrada no planalto de Piratininga. Missionando, desde fins de 1549 ou princípios de 1550, o Padre Leonardo Nunes percorrera esse planalto, e o Padre Manuel da Nóbrega, em catequese, também aí estivera, em 1553 e demoradamente. Segundo os preceitos da Igreja Católica os padres devem diariamente celebrar missas, sempre que possível. Os Padres Manuel da Nóbrega e Leonardo Nunes, já aí haviam dito missas, visto que aí, nos campos, já havia a ermida de Santo André, desde antes de junho de 1553, conforme Tomé de Sousa informou a D. João III. Mas, a 25 de janeiro de 1554, dia consagrado à conversão de São Paulo, o apóstolo do gentio, foi celebrada outra missa no planalto. Outro passo para conversão do gentio do interior sul-americano e para devassamento e posse do seu território. A data de 25 de janeiro de 1554 só marcaria, pois, os aniversários, os centenários da missa celebrada nos campos de Piratininga pelos jesuítas, se aí não estivessem também os colonos portugueses, os índios e as índias e seus descendentes, os mamelucos e, ainda mais, os representantes da administração portuguesa na capitania de S. Vicente, portanto do rei, todos concorrendo, sem o suspeitar talvez ou pelo menos em sua maior parte, que estavam iniciando com a catequese religiosa, com o trabalho civilizador, com o cruzamento das raças, com as entra- Na Capitania de São Vicente 141 das ao sertão, com as leis e a autoridade portuguesa, para uma obra coletiva, da qual resultaria a formação do Brasil atual. Marcaria, portanto, os centenários da casa de São Paulo. Mas a missa intencionalmente celebrada pelo Padre Manuel de Paiva a 25 de janeiro de 1554, entretanto, marca a reunião de todos os elementos que iniciaram a formação territorial e a cristianização do interior do Brasil7 como procurarei demonstrar. Ainda hoje, é com missas votivas que católicos solenizam os seus grandes acontecimentos; e, ainda hoje, até empresas industriais e comerciais, dirigidas por católicos, pedem bênçãos para seus empreendimentos em dias diferentes daqueles em que começaram os seus trabalhos. A própria Igreja Católica comemora os seus maiores dias – paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo – em dias que se mudam anualmente, a que se chamam solenidades móveis. O que se comemora é o fato e não o dia. No evoluir de uma civilização não há separações nítidas que marquem os seus faustos, como os valos e cercas indicam as divisas de fazendas. Os grandes acontecimentos da história não surgem, não se realizam num só dia. Assim, 7 de Setembro de 1822 consagra a nossa Independência Política, como 14 de Julho de 1789 simboliza a Revolução Francesa; mas a Independência e a Revolução não começaram e não se terminaram nesses dias. O que se deve comemorar em São Paulo, cuja capital conta hoje mais de dois milhões de habitantes, e cujo território, depois de desmembrado de vastíssimos territórios, hoje estados, possui ainda mais de 9 milhões de habitantes, concorrendo fortemente para a grandeza de um país de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados e com mais de 50 milhões de habitantes. Por conseqüência o que em São Paulo se deve comemorar é a obra realizada no passado, é o seu progresso no presente e a sua esperança no futuro. O dia exato em que todas as forças primitivas 7 Os padres do Brasil estavam sujeitos ao poder absoluto dos reis, que os subsidiavam, poder exercido pelos governadores e donatários, que davam e negavam autorização para entrada ao sertão, como se pode ver nas cartas jesuíticas. 142 Washington Luís da colonização e da catequese começaram a atuar conjuntamente, é difícil, senão impossível, de precisar. Mas os homens têm obrigação de comemorar os feitos de valor de sua gente e sentem a necessidade de fixar um dia para esse fim. Obedecendo a esses dois ditames imperativos é o dia 25 de janeiro de 1554, o dia que se deve adotar para comemorar a fundação de São Paulo, 8 dia já sancionado por uma tradição de quatro séculos. 8 Como bem disseram Manicourt e Bertrandfosse, a História é um processo em perpétua revisão (Les Bourbons, pág. 244). Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo IX OS ÍNDIOS Í NDIOS foram chamados os habitantes do Novo Mundo devido ao glorioso equívoco de Cristóvão Colombo que, supondo ter encontrado novo caminho para as procuradas e opulentas terras da Índia, achara a América. Índios foram então chamados os habitantes das terras descobertas, e, por força do hábito, conservou-se-lhes até hoje a mesma denominação. Bem diferente, mas muito diferente, era o estado em que viviam os habitantes do Novo Mundo, explorado pelos europeus, nos fins do século XV e meados do século XVI da nossa era. Neles havia os graus que vão da selvageria, mais completa, até o viver em sociedade, com elementos que distinguem o homem do bruto. A oeste do continente, que se chamou América, nas costas do Pacífico, já os aborígines possuíam rudimentos indiscutíveis da civilização. Assim, no que hoje se chama México, e em parte da América Central, já os Astecas e os Maias possuíam organização social, já tinham uma religião, já deixaram monumentos da sua passagem pela terra. E a memória de Montezuma e de Guatemozim coloca-os entre os de sua raça como vítimas e heróis. 144 Washington Luís Da mesma maneira, na hoje América do Sul, no Peru, os Incas, desde Manco Capaq, já tinham atingido um certo estado de cultura, como atestam as ruínas de seus templos e os restos de suas cidades a demonstrar uma vida social. Fernando Cortez encontrou e destruiu no norte o que Pizarro achou e aniquilou no sul. Mas, à proporção que se caminhava para leste, essa civilização ia perdendo os seus contornos, os seus elementos, ia se esvaecendo, se dissipando até desaparecer completamente nas selvagens, cruéis e ferozes tribos das margens do Atlântico. Aí esses aborígines viviam em manadas, que os aproximavam dos animais irracionais, e tão selvagens, que pareciam selvagens aos outros selvagens. Em certa parte, em que se constituiu o Brasil, habitavam os índios mais broncos, mais atrasados da América. Só conhecimentos de etnologia e de lingüística, que não existiam ao tempo do descobrimento, e que hoje não podem com segurança ser aplicados após séculos de larga mestiçagem, de abastardamento e da decadência física dos índios ainda existentes, poderiam determinar se todos os índios do Brasil, ou mesmo os de S. Vicente, eram autóctones ou se alguns ou muitos pertenciam a outras tribos invasoras, e quais foram elas. Há na História, principalmente nos povos sem história, problemas que ficarão para sempre insolúveis. A esse respeito, hoje, só se podem figurar hipóteses ou fazer deduções, que por mais verossímeis ou engenhosas que pareçam, não passarão de hipóteses ou de deduções. Desses índios só se podem conhecer os usos, costumes e hábitos, ao tempo do descobrimento, pelas descrições dos primitivos navegadores e pelas informações daqueles que com eles tiveram o inicial contato. Os primeiros navegadores tiveram pequeno tempo para os observar e as suas impressões devem ser recebidas com cautela. Assim o que a carta de Pero Vaz de Caminha informa sobre o encanto das índias nuas e do mesmo modo o que, no seu Roteiro, escreveu Pero Lopes de Sousa comparando as índias e achando-as iguais ou superiores às mulheres da Rua Nova, em Lisboa, mostram uma observação muito superficial. Na Capitania de São Vicente 145 Mesmo as primeiras informações sobre os índios do Brasil – francesas, flamengas, alemãs, inglesas, espanholas ou portuguesas – e até as próprias cartas que daí escreviam os jesuítas, já seriam benévolas; porquanto, ainda as mais antigas, foram escritas cerca de meio século depois do descobrimento, após duas gerações de índios, em tempo em que o trato com os europeus já os deveria ter amansado, ou pelo menos modificado os seus instintos. Entretanto só nelas se encontra apoio para conhecer ou descrever os indígenas. E, para se falar imparcialmente sobre os nossos índios, é necessário despojá-los dos supostos sentimentos, que eles, então, nunca possuíram e com que foram adornados pelos nossos poetas e romancistas, numa época muito posterior à do descobrimento, em que floresceu uma literatura chamada indianismo, brilhante e enternecedora, porém, não verdadeira. Observadores inteligentes, sagazes e cultos, de diversas nacionalidades e em tempos diferentes, têm descrito os hábitos e costumes dos índios da América no estado atual. Estado atual, deve-se entender o estado em que esses observadores, em datas posteriores, os encontraram, e sobre eles escreveram, que não é a mesma em que se achavam os aborígines ao tempo do descobrimento. Entretanto, tempos depois, todos – padres da Companhia de Jesus e cronistas – são concordes em afirmar que andavam completamente nus, o que aos primeiros homens, que os viram, pareceu inocência (H. Staden. J. de Léry). Alguns carijós, ao sul em zona mais fria, cobriam-se com peles de onça. Eram nômades, hoje aqui e amanhã acolá, conforme a escassez da pesca ou da caça ou ao sabor das suas brigas contínuas. Não se fixavam na terra, onde apenas faziam choças cobertas de folhas, que logo se desfaziam. Deles, em todas as terras do Brasil, não ficou um só monumento, uma só casa, um vestígio qualquer que lembre que eles por aí passaram. Não podem ser considerados como monumentos alguns potes de cerâmica com ossos, enterrados não se sabe quando nem por quem. Não tinham tradições a que se submetessem, porque não se pode chamar tradições os gritos e saltos, que precediam o devorar do vencido, seu igual, nas caçadas humanas que faziam. 146 Washington Luís Quando um bando se tornava numeroso, dele se destacavam outros bandos, mais audaciosos, como fazem as abelhas nas colméias, ou eram pelos outros empurrados para constituir outros agrupamentos, cuja formação tornava-os logo inimigos uns dos outros. Esses bandos não tinham propriamente nomes, designavam-se uns aos outros por apelidos depreciativos, ou pelas relações de parentesco, que antes os haviam ligado. Assim uns eram tamoios – os mais velhos, os avós, outros eram temiminós – os descendentes – alguns eram tupiniquins, os colaterais, os que estavam ao lado, segundo a etimologia sempre discutível e sempre variável dos nossos indianistas. Alguns eram conhecidos pelos nomes de seus morubixabas, como os Maracajás. Ainda outros eram designados pelos seus característicos físicos como os biobebas ou pés largos, ou pelas armas primitivas que usavam, como os ibirajaras ou bilreiros, ou ainda por designações pejorativas, que lhes davam os inimigos, como os tapuias. Foram os catequistas e os colonizadores que lhes fixaram os nomes, seguindo essas designações, ou formando-os pela composição na língua rudimentar de que eles se utilizavam. Nas terras, que constituíram a Capitania de S. Vicente e nas dez léguas encravadas da Capitania de Santo Amaro – exclusivo fim deste estudo – pode-se dizer que, nos primeiros tempos do descobrimento ou da colonização, havia a leste os tamoios, também chamados tupinambás, que foram os amigos ou aliados dos franceses e sempre inimigos dos portugueses; ao sul e a sudoeste havia os carijós, quase sempre também inimigos dos portugueses. Na costa, ao porto de S. Vicente nos campos de Piratininga, no vale do Tietê, estavam os tupiniquins e para o norte e nordeste os tupinaês, os biobebas, os temiminós escorraçados das terras da capitania do Espírito Santo. No vale do Paraíba e nas suas cercanias, além dos tamoios, havia também guaianases, que vinham também ao campo e que se distinguiam em guaianases do campo e guaianases do mato. É possível que estes tivessem habitado a ilha de S. Vicente nos princípios do século XVI. Os mapas antigos trazem o nome de Guaianas na ilha de S. Vicente. Na serra, hoje denominada Itapeti, estiveram os Guaruminis ou Maruminis, os Guarulhos, tudo isso, e principalmente estes, porém, como ilhotas erráticas vagando nas ondas do mar. São esses os nomes das tribos encontrados nos documentos locais. Na Capitania de São Vicente 147 É extremamente difícil fixar os lugares que eles habitavam, devido ao seu estado nômade ou melhor errante. As atas da Câmara de S. Paulo falam dos tamoios, carijós e dos outros como tribos vizinhas ou fronteiriças, e, principalmente, dos tupiniquins entre os quais viveram os portugueses. A 12 de maio de 1564, a vereança da Câmara de S. Paulo informa que “a Capitania de S. Vicente está entre duas gerações de gentes de várias qualidades e forças que há em toda a costa do Brasil, como são os tamoios e os topinaquis, todos inimigos havia muitos anos” (Atas, vol. 1º, pág. 42). Fala-se também nos carijós e nos tupinaens, cuja palavra grafam de diversas formas. Nos Inventários e Testamentos, na descrição de bens, há também menção desses, dos biobebas e dos carijós. Esses índios já usavam o fogo, mas desconheciam o uso dos metais. Alimentavam-se de caça e pesca, e cultivavam, talvez, o milho e a mandioca, coisas que davam sem plantar, com as quais, fermentadas em potes para esse fim fabricados, preparavam o cauim com que se embebedavam. Faziam com fogo, em troncos de árvores, canoas em que navegavam. É possível que conhecessem o algodão; mas já empregavam as fibras de palmeiras, com que teciam redes, em que dormiam. Mas os pássaros tramam os seus ninhos em que criam a prole, como as abelhas extraem das flores o mel, que depositam em favos da cera que fabricam, e da mesma sorte as formigas armazenam os seus peculiares mantimentos para as épocas da escassez e da penúria, sem que por isso pertençam à espécie humana. No seu estado social, se é que a tal gente podia-se aplicar tal classificação, mais que rudimentar, eles não escravizavam o inimigo vencido nas contínuas guerras, eles o devoravam. Esses índios se alimentavam de carne humana, eram antropófagos (Jean de Léry, R.I.H.G.B., vol. 52, pág. 249, 2ª parte, Hans Staden Ed. do Centenário, Cap. 36, 39, 42, 45, 48 – A. N. Cabeça de Vaca R. I. H. G. B., vol. 56, pág. 208 – Cartas do Padre Manuel da Nóbrega, de José de Anchieta e de todos os Jesuítas dos primeiros tempos). Supõem alguns cronistas que eles assim procediam por vingança; tal vingança, porém, não era menos repulsiva e abjeta. Mas 148 Washington Luís não era provável tal espírito de vingança, pois que demonstraria a consciência de um mal feito, ou a fazer, em quem só agia por baixo instinto. A vingança não os guiava; era por gosto e pela facilidade de achar alimento, não tendo ainda chegado à domesticação de animais, e comiam para não serem comidos. Tal hábito, e inveterado, os colocava abaixo de alguns irracionais, que não se alimentam da carne de seus semelhantes, pois que lobo não come lobo, ainda que atormentados pela mais cruciante das fomes. Narra Hans Staden que os tamoios, entre os quais viveu, partiam em guerra na época em que o abati amadurecia, época em que se preparava a bebida fermentada com que se embriagavam, para celebrar os banquetes selvagens, em que o homem vencido era a principal e apetecida iguaria. A esses encontros, a esses embates, os europeus que os viram, chamaram guerras. Não eram, porém, guerras, ou melhor eram guerras alimentares, verdadeiras caçadas de gente, feitas com o intuito de se nutrirem. Ainda usavam a moqueação, que, por muito tempo, conservava pedaços humanos para as delícias de sua voracidade. E eram as mulheres velhas as mais gulosas desse hediondo acepipe, cabendo-lhes esfolar, destripar, cortar e repartir a vítima por toda a tribo. Manuel da Nóbrega escreveu que eles engordavam, cevavam o inimigo vencido para depois devorá-lo. “Contava um padre da nossa Companhia grande língua brasílica, narra Simão de Vasconcelos nas suas Crônicas, que penetrando uma vez ao sertão, em certa aldeia, achou uma índia velhíssima, no último da vida; catequizou-a naquele extremo, ensinou-lhe as coisas da fé e fez cumpridamente seu ofício”. Depois perguntou-lhe o que então desejava. “Respondeu a velha já catequizada: nada mais desejo, tudo já me aborrece; só uma coisa me poderá abrir agora o fastio; se eu tivera a mãozinha de um rapaz tapuia de pouca idade, tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, então me parece tomara algum talento; porém, eu (coitada de mim) não tenho quem me vá frechar a um destes” (Simão de Vasconcelos, Crônicas da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. 2ª ed., Livro 1º, pág. 33, nº 49). Nas guerras, que se faziam, eram corajosos tendo a vida em pouco valor; mas eram também pérfidos empregando ciladas, para mais facilmente se apoderarem do inimigo e depois o comerem. Na Capitania de São Vicente 149 Combatiam e se perseguiam uns aos outros com pertinácia, com ferocidade, mas sem fito de defender a sua casa, a sua propriedade, os seus direitos, a sua honra, coisas que desconheciam completamente. Não tinham a mais leve idéia da respeitabilidade do homem, ou da dignidade de mulher, nem o mínimo sentimento da santidade do lar, ou do decoro da família. Sob esse aspecto delicadíssimo da vida vou buscar informações nas cartas dos jesuítas que com os índios conviveram. Escreve Nóbrega “é costume até agora, entre eles, não fazer caso do adultério, tomar uma mulher e deixar outra, como bem lhes parece e nunca tomando alguma firme”, estavam abaixo “dos outros infiéis de África e de outras bandas, que tomam mulher para sempre e, se a abandonam, é mal visto; o que não se usa aqui; mas ter as mulheres simplesmente como concubinas” (Cartas do Brasil, vol. 1º, pág. 93). Nunca se viu sentimento por adultério. (Idem, lugar citado). Quando muito uma explosão momentânea de cólera brutal, produzido pelo sentido carnal logo esquecido. Anchieta não é menos explícito: “Os índios do Brasil parece que não têm nenhum ânimo de se obrigar, nem o marido à mulher, nem a mulher ao marido, quando se casam” o (Cartas do Brasil, vol. 3º, pág. 448). Muito menor seria esse ânimo, antes da catequese, antes dos casamentos, quando eles se ajuntavam unicamente em obediência ao instinto de conservação da espécie. “A mulher nunca se agasta porque o marido tome outra ou outras”, nem o marido quando a mulher o deixa e se amanceba com outros (Cartas, lugar citado). Os padres nessas cartas usam de eufemismo falando em mulher, em marido e em casamento. Os principais das choças davam suas filhas e as mulheres de sua tribo para gozo do hóspede, espantando-se quando elas eram recusadas. Jean de Léry refere ser certo que entre os índios, os pais não punham dúvida em prostituir as filhas com qualquer varão; mas que o adultério por parte das mulheres causava tal horror que o marido podia matá-la ou repudiá-la com ignomínia (História de uma viagem à terra do Brasil, 150 Washington Luís § 3º, Cap. 17, na R. I. H. G. B., vol. 52, 2ª parte pág. 293). Mas, Anchieta na carta aqui citada, informa que “isso foi lição dos franceses, costumeiros em semelhantes mortes, porque índio do Brasil tal fez, nem tal morte deu” (Anchieta, Cartas vol. 3º, Pág. 449). “Elas (as índias) mesmo se ofereciam nuas, a ninguém sabendo se recusar, acometendo e importunando os homens, atirando-se com eles nas redes” (Anais da Biblioteca Nacional, Carta de Anchieta, vol. 19, pág. 53). Também ao inimigo vencido, que iam devorar, davam a filha do Principal, ou qualquer outra que mais o contentasse, (Nóbrega, Cartas, vol. 1º, pág. 90) para as noites que precediam a morte violenta. E, se deste ajuntamento monstruoso, por acaso nascessem filhos, eles também os devoravam e dessa comida participavam todos, avós, tios e as próprias mães (Hist. da Prov. de Santa Cruz, por Gandavo – R. I. H. G. B., vol. 21., Cap. 12., pág. 383. Luís Ramires, R.I.H.G.B., vol. 15, pág. 17. Hans Staden, Ed. do Centenário, págs. 147-8). Não formavam nações, no sentido mais rudimentar da palavra, nem entre eles existia a idéia remota de governo. Nenhuma autoridade reconheciam. Conservavam-se em bandos, como os caitetus bravios, para defesa de seu agrupamento. Para todos os atos da vida, os mais fortes, que sempre os há em todos os grupos, e o instinto do bando, que sempre existe nos animais que vivem reunidos, arrastavam os outros. Não havia, nesses agrupamentos, propriamente chefes, o que quer dizer que não se podia contar com uma resolução solidária, a que muitos ou alguns assentissem, e em seguida se guiasse para um fim qualquer. Esses, os mais fortes, foram chamados morubixabas ou caciques pelos conquistadores, que os encontraram ou trataram nos primeiros tempos. Obedeciam só aos seus instintos ferozes. Entre esses índios não havia rei ou chefe ou coisa equivalente; a autoridade de uns sobre os outros, se alguma tivesse havido, fora momentânea ou ocasional; “não são sujeitos a nenhum rei ou capitão só tem em alguma conta os que alguma façanha fizeram, digna de homem valente, e por isso comumente recalcitram porque não há quem os obrigue a obedecer, os filhos dão obediência aos pais quando lhes parece, finalmente cada um é rei em sua casa, e vive como quer”... (Cartas de José de Anchieta do quadrimestre do maio a setembro de 1554 – Cartas Jesuíticas, vol. III, pág. 45). Na Capitania de São Vicente 151 “Essa gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhecé a Deus, somente aos trovões chamam Tupane, que é como “quem diz causa divina”. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pae Tupan” (Manuel da Nóbrega, Cartas, vol. 1º, pág. 99). Nem ainda tinham atingido a fase do fetichismo em que, segundo Renan, consiste na adoração de um objeto material no qual se supõem poderes sobrenaturais (Vide – Vie de Jesus, pág. 2). Os sentimentos de dedicação e as lendas, que se lhes atribuem, são fantasias criadas, urdidas ou ouvidas e transmitidas muito depois da conquista. Nesses primeiros tempos, só por meio de sinais se comunicavam os europeus com os indígenas; e, como é fácil acreditar o que se deseja e presumir nos outros o que se pensa, forçosamente navegantes e aventureiros haviam de entender e ver coisas que só na mente dos inquiridores existiam. Basta recordar o que refere Pero Vaz de Caminha sobre o colar de ouro, com que se adornou Pedro Alvares Cabral para receber os índios de Porto Seguro. Na sua carta a D. Manuel I sobre o descobrimento do Brasil, define ele com precisão esse estado de espírito do europeu diante do selvagem, quando relata que um índio, encontrado na terra de Vera Cruz, ao receber um colar de pedras brancas, “acenava para terra e de novo para o colar (de ouro) do capitão como dizendo que dariam ouro por aquilo. “Isso tomávamos nós assim por assim o desejarmos”. Da mesma sorte Cabot julgou que havia abundância de prata, no rio, que ao sul navegou e por essa razão, o denominou rio da Prata. Os próprios jesuítas, que com eles trataram, nesses primeiros tempos, deduziram que eles se referiam “às pegadas de S. Tomé”, “ao caminho de S. Tomé”, como se tal gente pudesse guardar qualquer tradição, e datando de mais de 15 séculos, como a evangelização desse apóstolo. É um caso de auto-sugestão, e mesmo de sugestão, porque é sabido que o selvagem, quando não entende o que se lhe pergunta, em regra acena com a cabeça, como que a concordar. Mas tudo isso logo se desvaneceu, porque o próprio Manuel da Nóbrega, que a princípio julgava-os papel em branco, informa depois 152 Washington Luís “que eles são tão brutos”, que trabalhou por tirar em sua língua as orações e algumas palavras, e não as encontrou” (Cartas do Brasil, vol. 1º, pág. 73). “Era um papel em branco”, mas que consumiria séculos para nele se escrever e mal”, (Cartas do Brasil, vol. 1º, pág. 94). Não há dúvida que os índios já se comunicavam entre si por meio da fala, já tinham uma linguagem; mas esta era pobríssima, e não poderia deixar de ser, porque os seus conhecimentos eram menos que rudimentares. Davam nomes a alguns animais, a alguns acidentes do terreno; os rios eram conhecidos pelos animais neles encontrados; nomeavam alguns vegetais e designavam os atos costumeiros da vida material e pouco mais. “Nas raças primitivas, a linguagem repousa menos na articulação do que na entonação e na modulação variada das próprias sílabas. Os alfabetos primitivos contêm pequeno número de letras em que as consoantes são minoria (Dr. A. Marie, L’audiction Morbide, págs. 14 e 15). Os indígenas do Brasil estavam nesse estado primitivo. Os sons, que eles emitiam, eram na maior parte guturais para as vogais ou nasalados para as consoantes. Ainda muito tempo depois da catequese o Padre Antônio Vieira ajuntava o seu ouvido à boca do índio e não conseguia encontrar a representação do som emitido, mesmo aproximada, na língua portuguesa. Daí a dificuldade dos nossos filólogos para dar a verdadeira etimologia das palavras tupis que lêem ou ouvem, chegando a significações contraditórias, confusas, e às vezes ridículas – principalmente quando essas palavras foram escritas em língua francesa (Léry), alemã (Hans Staden), inglesa (Knivet), espanhola (Montoya), portuguesa (Anchieta), flamenga, etc., afeiçoadas à pronúncia de cada uma, e depois lidas por estrangeiros. Pode-se mesmo afirmar que, a leste da América do Sul, só existiu propriamente uma língua (tupi-guarani) depois que, no Brasil Anchieta, e, no Paraguai, Montoya domesticaram o linguajar bruto do indígena fazendo gramáticas e vocabulários, tornando-as comuns aos conquistadores e conquistados, permitindo que os europeus compreendessem os indígenas e se fizessem por eles compreendidos. Essa domesticação da língua se fez com sons diferentes dos primitivos. Na Capitania de São Vicente 153 No tempo do descobrimento, o estado de bruteza, em que se achavam os índios das costas do Brasil, sem dúvida ainda exagerado por aqueles que os escravizavam, essa bruteza era tão grande, que foi necessário ao Papa Paulo III expedir, a 9 de junho de 1536, a bula Veritas epsa quae nec fali neo fallere potest, na qual esse Pontífice declarava, que não só era sua vontade senão a vontade do Espírito Santo, que se reconhecessem os índios americanos como verdadeiros homens. Lê-se no O Panorama, jornal instrutivo dirigido por Alexandre Herculano (V. XI, pág. 226) que pouco depois do descobrimento da América propagou-se com uma facilidade e rapidez espantosa a opinião de que os indígenas não eram homens; havia quem os classificasse abaixo dos pretos africanos e um pouco acima dos macacos”. (Le sauvage) “le brésilien est un animal qui n’a pus encore atteint le complement de son espèce; c’est une cheniile enfermée dans sa fève et que ne sera papillon que dans quel quer siècles”, narra Taine (Origines de la France Contaporaine, L’ancien régime, pág. 233). Era essa gente que os jesuítas iam catequizar. No reinado de D. Sebastião, em 1570, foi-Lhes reconhecida a liberdade, proibindo-se a sua cativação, salvo quando tomados em guerra reconhecida justa pelo Rei ou pelo Governador Geral do Brasil, ou quando salteassem os portugueses, ou a outros gentios para os comerem. A lei de 11 de novembro de 1595 revogou a de 1570 e mandou que em nenhum caso fossem cativados, salvo os que o fossem em guerra autorizada pelo rei. A lei de 30 de julho de 1609, declarou livres tódos os índios conforme o direito; mas a lei de 13 de outubro de 1611, considerando os inconvenientes que se representaram diante da importância da matéria, declara-os livres conforme o direito, quer os já convertidos à fé cristã, quer os selvagens; mas “sucedendo que esses gentios movam guerra, rebelião e levantamento, o Governador do Brasil, juntamente com o Bispo, com o Chanceler, com os Desembargadores de Relação e com todos os prelados das ordens estantes averiguarão ser necessária a guerra ao bem do Estado e portanto justa, e deliberarão e comunicarão tal deliberação ao rei que autorizará a guerra e serão cativos todos os gentios vencidos”, e “sucedendo que a demora do rei com autorizá-la possa trazer perigo, poder-se-ia fazer logo a guerra, relacionan- Sumário 154 Washington Luís do-se todos os cativos”. Acrescentava ainda a lei que “por ser costume dos gentios terem sempre guerra uns com os outros, e comerem os prisioneiros, autorizava a compra destes. Providenciava mais o aldeamento dos índios, nomeando o governador capitães para as aldeias, de 500 casais, havendo nelas um religioso da Companhia de Jesus, ou não havendo este ou não querendo aceitar, haveria um clérigo de qualquer outra ordem. E em cada aldeia deveria haver um vigário português que soubesse a língua indígena para os deveres da religião, como o capitão o seria para os deveres da justiça, considerando os índios donos de suas pro1 priedades, etc.”. Variava, porém, a condição dos aborígines, conforme a influência, na Metrópole, dos jesuítas ou dos colonos sob os Governos dos reis, que não queriam perder o seu império. Essas leis não eram observadas; ao contrário eram defraudadas; e, tendo-se estabelecido “a administração dos índios”, pouca diferença houve entre índios administrados e escravizados, como se pode ver nos inventários da época, nos quais os escravizados eram avaliados e os administrados não o eram, mas todos eram legados aos herdeiros, salvando-se a responsabilidade individual, com as palavras “de acordo com as leis de el-rei nosso senhor”, e assim viviam todos os índios em condição servil. Os jesuítas também tinham fazendas, que tocavam com índios administrados; mas a Companhia de Jesus tinha vida longa, atravessava séculos, não fazia inventários e não se pode saber como os índios eram transmitidos. Nelas, sem dúvida, eram tratados mais cristãmente. 1 Documentos Interessantes – Vol. 3º, págs. 84 e seguintes, onde estão transcritas essas leis na íntegra. Próxima página Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo X OS COLONOS (Algumas notas sobre alguns dos primeiros povoadores e conquistadores de São Vicente) P ARA uma terra de tudo desprovida, imensa, sem esperanças de minas, habitada por indígenas ferozes, para essa terra só viriam homens que o rei mandasse em serviço, ou catequistas-apóstolos, que uma fé ardente arrebatasse para o sacrifício, ou então degradados por força das leis criminais, ou nela ficariam náufragos de expedições ousadas e temerárias, ou desgraçados fugidos de navios, onde a vida era pior que a que eles encontrariam entre os canibais. Foram poucos, muito poucos, os que vieram habitar o Novo Mundo em princípios do século 16. Alguns nomes aparecem nas Atas das câmaras municipais e nos Inventários e Testamentos, que merecem atenção. E, felizmente, não foram eles fidalgos. Ao retirar-se para Portugal, nos meados de 1533, Martim Afonso de Sousa deixou menos gente, do pessoal de sua frota, do que a que encontrou no porto de S. Vicente, em 1532, ao que suponho. As terras de S. Vicente nenhum atrativo tinham para reter gente aventureira, sequiosa de se enriquecer e rapidamente. Página anterior 156 Washington Luís A região era habitada por um gentio bárbaro, cruel, comedor de carne humana. No litoral, na baixada, os alagadiços, em que mais se formavam mangues que canaviais, poucos e insignificantes engenhos poderiam produzir açúcar, e sem meios de exportação. E não só de açúcar se vive. Só alguns séculos depois, iria ser ele convertido em bananais. Na serra, na Paranapiacaba, que se empina asperamente diante do mar, as terras são as piores que constituem o Estado de S. Paulo. Escarpadas, de dificílimo e perigoso acesso, voltadas para o antártico, e, por isto, sujeitas a contínuos nevoeiros, úmidos, garoentos ou chuvosos, açoitadas por frios e devastadores ventos do sul, essas terras nada produziam. Não obstante o seu conhecido espírito de vigorosa iniciativa e de perseverante decisão para o trabalho, os paulistas ainda não conseguiram transformar as vertentes de Paranapiacaba em zona de produção e de proveito. Apesar de todos os esforços, das construções de diversas estradas de diferentes espécies, algumas magníficas, que desde muito tempo, e que atualmente ligam a opulenta capital do Estado ao seu esplêndido porto marítimo, situado em Santos nessas terras nada existe, a não ser talvez a captação das águas pela companhia Light, continuando todas, mesmo hoje, mais ou menos, como no tempo de Martim Afonso 1 de Sousa, vestidas de matas ordinárias que à distância, dão a encantadora ilusão de florestas, mas que não se prestam para nenhuma cultura, nem permitem chácaras de recreio, quintas de repouso ou mesmo casas de moradia. Os donatários de largas sesmarias, concedidas por Martim Afonso durante a sua estada em S. Vicente, aí não se fixaram. Pero de Goes foi-se logo embora; fez-se donatário da Paraíba do Sul, onde também não foi feliz, e só voltou, para a Bahia, com Tomé de Sousa, como seu capitão do mar. De Ruy Pinto e de Francisco Pinto nunca mais se ouviu falar, ou pelo menos, deles só há menção nos documentos coevos para a guerra aos carijós, que, aliás, não fizeram. Só 1 Esta observação foi escrita em 1951. Na Capitania de São Vicente 157 ficaram aí os que já se ocupavam do tráfico de escravos indígenas e alguns poucos mais. Pode-se considerar porém o povoamento de S. Vicente, oficialmente, com o estabelecimento do primeiro governador do Brasil. Pelo menos é desse tempo que se encontram documentos locais, que o fazem presumir, na correspondência de Tomé de Sousa e de seus companheiros com a metrópole, nas cartas dos jesuítas aos seus superiores, nas Atas da Câmara de Santo André e nas de S. Paulo, nos Inventários e Testamentos dos primitivos tempos, nos arquivos dispersos e estragados de algumas ordens religiosas. Difícil é encontrar informações nos arquivos portugueses. Tudo mais desapareceu ou não existiu ou funda-se em lendas e tradições discutíveis. Todo esse povoamento se fez muito lentamente, muito vagarosamente, chegando mesmo a tal abatimento, que, em certa época – (Carta do Padre Manuel da Nóbrega ao Provincial de Portugal em 1557 – Cartas Jesuíticas do Brasil, vol. 1º, pág. 174), Manuel da Nóbrega escreveu da Bahia que “a capitania de S. Vicente se estava despovoando, pela pouca conta e cuidado que El-Rey e Martim Afonso têm”; e lembrou que seria bom ter a Companhia lá um ninho onde se recolhesse, quando de todo S. Vicente se despovoasse, como já disse. Manuel da Nóbrega estava verificando a pouca conta e cuidado que o rei e o donatário tinham pelo povoamento; e, prevendo o seu abandono completo, previdentemente sugeria que a Companhia de Jesus assegurasse aí, além da catequese, a posse e domínio. Mas os portugueses, por iniciativa própria, e os mestiços, mamelucos, iam conservar para o Brasil as terras de S. Vicente e os seus sertões, como vamos ver. Desses que aí já estavam, dos que ficaram, e dos que vieram após 1549, até o fim do segundo governo de D. Francisco de Sousa (1612), podem-se respigar algumas poucas e lacunosas informações. Entre esses há algumas figuras bem interessantes, que estão pedindo melhor e maior estudo, que sem dúvida ainda será feito. Entre eles foi João Ramalho, uma das mais curiosas. Sumário 158 Washington Luís *** § 1º JOÃO RAMALHO E ANTÔNIO RODRIGUES João Ramalho é uma curiosa figura, uma das mais curiosas figuras da costa do Brasil, e, sem dúvida alguma, a mais curiosa no porto de S. Vicente e nas suas cercanias. Foi um dos primeiros, e talvez o primeiro português que aí se fixou. Sobre ele muito se tem escrito em monografias e ensaios, de origem religiosa ou profana, em todas as épocas, alguns enchendo volumes. Todos os que se interessam pela Capitania de S. Vicente, têm se ocupado desse homem que Martim Afonso de Sousa já achou “quando cá veio”. Muita conjetura, muitas deduções, algumas engenhosas outras grosseiras, têm sido feitas sobre esse indivíduo, cuja singularidade chama a atenção. Encontrando esse nome e o de Antônio Rodrigues, figurando na sesmaria concedida a Pero de Goes por Martim Afonso de Sousa, a 12 de outubro de 1532, onde eles se declararam estantes no Brasil de 15 a 20 anos, alguns escritores foram levados a supor que só esses dois europeus por aí viviam, quando entretanto, havia outros, senão muitos pelo menos uns poucos, nas terras que iam constituir a Capitania de S. Vicente. Desses outros pouca coisa se sabe. O Padre Leonardo Nunes, o primeiro catequista que se fixou em S. Vicente, fala mais de uma vez, em 1550 e 1551, de pessoas que estavam na capitania havia mais de 30 e 40 anos, portanto, desde 1510 e de 1520. É assim que, em carta de 24 de agosto de 1550, refere que em S. Vicente havia muitas pessoas que de 30 a 40 anos não se tinham confessado e estavam em pecado mortal (Cartas Jesuíticas, vol. 2º, pág. 61). Ainda em carta de 20 de junho de 1551 informava que em S. Vicente muitas pessoas havia, que de 20 a 30 anos a esta parte nunca deixaram de comer carne na quaresma e nos mais dias proibidos, tendo pecado e estando sãos” (Cartas Jesuíticas, vol. 2º, pág. 66). A isso já me referi na página 50. Na Capitania de São Vicente 159 Antônio Rodrigues, o companheiro de João Ramalho, e que também como língua da terra é nomeado na sesmaria de Pero de Góis, foi uma figura apagada; possuiu depois terras em Tumiaru, e, se unindo a uma filha de Pequirobi, entrou na genealogia paulista. Sem maior crítica, tudo o que nesses primeiros tempos aconteceu ou se fez de mal, que se destruiu, foi imputado a João Ramalho, que se destacava no meio acanhadíssimo, mais que insignificante do sertão americano, entre o litoral de S. Vicente e o planalto de Piratininga. E, assim, se formaram tradições fantásticas e romances tenebrosos que enevoaram, enegreceram, tornaram lendária a sua memória. Sobre ele às vezes, contradições flagrantes se encontram no mesmo cronista. Assim Pedro Taques conta-nos fatos cujas circunstâncias são diametralmente opostas. Na Nobiliarquia Paulistana – (R. I. H. G. B., vol. 33, 2ª part, pág. 302 a 304 – Título Alvarenga Monteiro) relata que João Ramalho, natural de Barcellos, comarca de Viseu, veio de Portugal na companhia de Martim Afonso de Sousa em 1530”... Entretanto na História da Capitania de S. Vicente (mesma revista, vol. 9, pág 149) narra que “João Ramalho, homem nobre, de espírito guerreiro e de valor intrépido, que já muitos anos antes de vir Martim Afonso a fundar S. Vicente, em 1531, tinha vindo ao Brasil e fincando nas praias de Santos foi lá achado pelos Piratininganos, que o trouxeram ao seu rei Tevereçá que, por providência de Deus, se agradou dele e lhe deu sua filha, que no batismo se chamou Isabel”... As contradições e fantasias, entre os outros cultores das coisas do nosso passado, não são menos flagrantes. Frei Gaspar da Madre de Deus, memorialista beneditino (Memórias para a História da Capitania de S. Vicente, Ed. de 1797, págs. 30 e 31) informa que ao saber da chegada de uma armada ao porto de S. Vicente, em 1531, Tibiriçá capitaneando mais de 500 sagitários, com João Ramalho à frente, desceu do planalto para ataque, que não se realizou porque esse seu genro, reconhecendo que a armada era de Martim Afonso, de compatriotas conseguintemente, negociou e estabeleceu a paz entre os aborígines e os portugueses, por essa forma facilitando a colonização no sul da América. Criticando acerbamente Frei Gaspar, Cândido Mendes de Almeida faz de João Ramalho um perverso, mas letrado; e, identifica-o 160 Washington Luís com o discutido Bacharel, dá-lhe saber e títulos científicos (R. I. H. G. B., vol. 40, pág. 277, 2ª parte). Simão de Vasconcelos, cronista da Companhia de Jesus (Crônicas da Companhia de Jesus no Brasil, ed. de 1845, L.I., págs. 47 e 93), narra que no tempo da catequese iniciada pelo Padre Leonardo Nunes (de 1549 em diante) “havia em S. Vicente um João Ramalho, homem por graves crimes infame e excomungado”, acrescentando que “daqueles Ramalhos, árvore ruim e de pior fruto, foram os maiores males que a própria peste, a suscitar rancores”. É verdade que ele não enumera quais os graves crimes cometidos, nem diz a causa da excomunhão, mas lança-lhe tremendo anátema e o condena formalmente. E são numerosos os que assim escrevem, e por ser longa a lista, faz-se menção apenas dos primeiros, mais conhecidos e mais autorizados cronistas. Há também deduções feitas pelos que estudaram as cartas dos jesuítas, atribuindo a João Rama lho diversos atos que não passam de hipóteses, sem fundamento autêntico, conforme ensina estudo feito por Vale Cabral (Anais da Biblioteca Nacional, vol. 73, págs. 203 e seguintes). Diante disso é dever confessar que não é fácil descrever, circunstanciada e verdadeira, a vida de João Ramalho. Mas alguma coisa pode-se afirmar com segurança sobre essa figura pré-colonial na América, apoiada em documentos autênticos, profanos e religiosos, recentemente publicados. É o que tento fazer aqui, reconhecendo, entretanto, que muita coisa ficará obscura, sem solução e que será mais de lacunas que de esclarecimentos a biografia de João Ramalho. *** Como e por que veio João Ramalho ao porto de S. Vicente, e quais os meios que aí o trouxeram? Teria ele sido um náufrago acolhido pelos indígenas ou um fugitivo de bordo de algum navio que aí arribasse? Teria sido abandonado por alguma esquadra que por aí passasse, ou seria um degradado para a costa do Brasil, como costumavam fazer as justiças do Rei de Portugal ou teria sido impelido para alguma nova aventura num século de aventuras? Diante da atual documentação, que se encontra nos nossos arquivos, essas perguntas absolutamente não encontram respostas; e a Na Capitania de São Vicente 161 respeito, como tem acontecido, só se podem fazer conjeturas, que na maioria dos casos nenhum valor merecem. Não obstante ter ele estado em contato direto com os altos representantes do Rei de Portugal, como Martim Afonso e Tomé de Sousa, e em contato mais íntimo ainda com os capitães-mores-loco-tenentes dos donatários, um dos quais, Jorge Ferreira, foi seu genro, segundo os genealogistas, João Ramalho nada a eles referiu sobre a razão de sua vinda. Tendo tomado parte na governança da terra, na Câmara de Santo André e na de S. Paulo, aí nada disse nem fez escrever. Aos jesuítas, com quem tratou, nada confessou; à sua numerosíssima prole confidência alguma fez a respeito. Sobre tal acontecimento guardou sempre o mais completo silêncio e sobre isso reina mistério absoluto, que jamais será desvendado. Quando chegou a S. Vicente? Sobre sua chegada já se pode dizer alguma coisa próxima da verdade, mas sem precisão. Na já referida sesmaria concedida a Pero de Goes, nas terras de Piratininga a 12 de outubro de 1532, assinada por Martim Afonso de Sousa, escrita por Pero Capico, e como testemunha Pedro Gonçalves, que na armada veio como homem de armas, é ele também indicado juntamente com Antônio Rodrigues como línguas desta terra, e nela estantes de 15 e 2O anos, conforme o que juraram. Em outubro de 1532, de acordo com os dizeres dessa sesmaria, havia 15 a 20 anos que João Ramalho e Antônio Rodrigues estavam na terra do Brasil. É possível que a estada de 15 anos se refira a João Ramalho e a de 20 anos a Antônio Rodrigues, se atentar-se para a ordem em que estão escritos esses anos; mas é possível também que essas datas, assim vagas, se refiram a ambos, sabida, como é, a incerteza da contagem do tempo por parte dos europeus encontrados na América, nos princípios de 1500. Quer num, quer noutro caso, João Ramalho teria chegado a S. Vicente entre os anos de 1512 a 1517, que tal é a diferença de 15 e 20 anos para 1532, data da sesmaria. Parece, entretanto, que João Ramalho teria chegado em 1512, cotejando-se esta com outras referências de datas posteriores. 162 Washington Luís *** Ele era português; mas qual a sua terra de origem? Pedro Taques afirma que ele veio de Barcellos, comarca de Viseu. Tomé de Sousa, na sua já referida carta de 1º de junho de 1553 (Hist. da Col. Port. no Brasil, vol. 3º, pág. 364) relata que ele era natural do termo de Coimbra. Alguns indicam Vouzelas ou Boucelas como o lugar de seu nascimento. João Ramalho não deu informações precisas sobre a terra de seu berço. Dela veio estando casado com mulher, que lá deixou e da qual nunca mais teve notícia, supondo-a morta, quarenta anos depois. O Padre Manuel da Nóbrega, na carta de 31 de agosto de 1553 ao Padre Luís Gonçalves da Câmara, diz que João Ramalho era parente do Padre Manuel de Paiva, o celebrante da missa no planalto, a 25 de janeiro de 1554. (Páginas de História do Brasil, pelo Padre Serafim Leite, págs. 92 a 94). Não estará longe da verdade quem disser que João Ramalho fazia parte da feitoria, estabelecida por iniciativa particular no porto de S. Vicente, e, sem perder o contacto com essa feitoria, estabeleceu-se no planalto. Morou em lugar chamado Jaguaporecuba, próximo a Ururaí, como se vai ver. Na carta de sesmaria, concedida por Jerônimo Leitão aos índios de Piratininga em 1580 (Registro Geral, vol. 1º, pág. 354) escreve-se a palavra Jaguaporecuba cuja penúltima sílaba está roída por traças. Mas no mesmo 1º volume desse Registro, pág. 150, se encontra a transcrição da provisão em que João Soares, em 1607, é nomeado capitão-mor dos índios da aldeia de Guarapiranga, da aldeia-nova de Guanga e de Jaguaporecuba. Por outro lado, no inventário de Francisco Ramalho, casado com a índia Justina, inventário iniciado a 7 de novembro de 1618 (vol. 5º, pág. 255) há uma declaração de Francisco Ramalho, em que este, em 1604, se obriga .....“a levar e a sustentar a sua custa até minha casa, que é na aldeia de Guanga” .... Na Capitania de São Vicente 163 Este Francisco Ramalho, segundo os genealogistas, era filho ou neto de João Ramalho, em todo o caso era deste descendente. A Aldeia de Guanga, do que se depreende da nomeação de João Soares, estaria, talvez, próxima a Jaguaporecuba, onde morava a descendência de João Ramalho. Como quer que seja, houve em S. Paulo, além de outras, as aldeias de Guanga e de Jaguaporecuba cuja palavra “Jaguaporecuba” é completada pela menção na sesmaria, concedida por Jerônimo Leitão aos índios de Piratininga, e que ia desde Carapicuíba a Ururaí, ficando esta no único caminho, do planalto para o litoral, que então havia. As terras dos índios de Ururaí confrontavam com as de João Ramalho, onde chamavam Jaguaporecuba, pelo menos na época da concessão feita por Jerônimo Leitão. Assim se verifica no trabalho de Tole2 do Rendom. Parece que ele não morava na vila de Santo André, nem morou na vila de S. Paulo; com a sua numerosa descendência vivia nas suas terras, que possuía antes mesmo que lhe fossem dadas em sesmaria. E isso se pode deduzir da narração de Schmidl, que, falando no covil de João Ramalho, não se refere, à vila de Santo André, já então criada e aclamada. Em 1564, em S. Paulo, quando recusou o cargo de vereador, os seus companheiros de governança vão à casa da Luís Martins, onde ele se achava pousado, insistir pela aceitação do cargo; e, entre outras razões, que ele apresenta para persistir na recusa, dá a de que se achava em terra de contrários dessa vila, dos contrários da Paraíba (Atas da Câmara de São Paulo, vol. 1º, págs. 34 e 37). Ele foi capitão de Santo André e alcaide-mor do campo, que abrangia toda a região de serra acima, por nomeação de Tomé de Sousa. Nesse tempo havia um só caminho, vereda de índios, que comunicava o planalto com o litoral. Por esse caminho Ulrico Schmidl e seus companheiros, em junho de 1553, vindos por terra de Assunção, no Paraguai e gastando seis meses, desceram ao porto de S. Vicente. 2 Toledo Rendom, R. I. H. G. B., vol. 4º, pág. 295. 164 Washington Luís Na descrição dessa viagem Ulrico Schmidl estando na povoação de João Ramalho, não se refere a lugar denominado Santo André. Jamais escreveu a palavra Santo André; e seria lógico que o fizesse, se por lá tivesse passado ou lá tivesse estado, pois que a vila de Santo André já existia ao tempo de sua viagem (Vide Hist. da Colonização Portuguesa no Brasil – Carta de Tomé de Sousa, da Bahia, a 1º de junho de 1553). Ulrico Schmidl, atraído à América pelas maravilhas que se contavam a respeito do Novo Mundo, soldado de fortuna, aventureiro alemão, esteve na povoação de João Ramalho; mas não o viu, porque ele se achava ausente, em S. Vicente; foi recebido pelos filhos e descendentes, e foi bem recebido; mas deles teve má impressão, não referindo, porém, nenhum fato ou ato que os desabonasse. Muito vago nos seus dizeres, um pouco desconfiado pela longa e dificílima viagem através dos sertões descaroáveis, onde dominavam selvagens cruéis e pérfidos, as suas observações, colhidas em breve espaço de tempo, talvez em horas, pouco valor devem ter para se conhecer o caráter de João Ramalho e de seus descendentes. Aliás, à primeira vista, logo se conclui que essas informações são injustas, fantasiosas e, em certa parte, confusas. Esta confusão pode ser atribuída ao autor da descrição da viagem, ou ao seu tradutor visto que, na tradução espanhola, que li, de Edmundo Sarrick (Santa Fé, 1938), nas vinte e poucas linhas, em que refere a sua estada na povoação de João Ramalho, declara Schmidl que chegou a um ponto, que ao mesmo tempo chama localidade, vila, pueblo, casa, e, por tal forma embaralhado, que o tradutor ou comentador, em nota (nota 625, pág. 174) se vê obrigado a declarar que foram empregados no texto alemão as palavras stteden, e em seguida stettlen, que o redator substituiu por flecken (ef. 8º, 407). Diz-se aí que “chegaram a um pueblo que ele “reputou como covil de latrocínio”, cujo chefe, felizmente, não estava em “casa”; mas que foi bem recebido pelos filhos. Não dá qualquer outra indicação por onde se possa saber, que espécie de casa, de pueblo era esse. Não menos injustas são as suas informações, pois que, bem recebido “numa casa de cristãos”, ele a classifica de covil de latrocínio e dá graças a Deus de dela sair. São também fantasiosas; não tendo tratado com João Ramalho e nada dele tendo ouvido, conta em segunda mão, Na Capitania de São Vicente 165 que ele era um despeitado porque, dispondo de 5000 homens, estava sujeito ao Rei de Portugal senhor apenas de 3000 homens ou coisa equivalente, atribuindo-lhe intuitos de rebelião num tempo em que João Ramalho já era o alcaide-mor do campo, por nomeação de Tomé de Sousa, o que indica o prestígio de que gozava e a sua submissão a D. João III. Em relação ao Brasil a pequeníssima narração de Ulrico Schmidl só tem valor para mostrar que João Ramalho habitava o planalto, no caminho para S. Vicente, porto de embarque para a Europa, o que também é conhecido por documentos de maior valia. É pueril a narração de Ulrico Schmidl nessa parte. Não tem fundamento a hostilidade profunda que se atribuiu a João Ramalho aos Padres da Companhia de Jesus, por ter sido mudada a sede da vila de Santo André, para junto da Igreja onde foi celebrada a missa no dia da conversão de S. Paulo, em 25 de janeiro de 1554, como já se disse. João Ramalho depois de tal mudança continuou alcaide-mor do campo, onde estavam situados os dois lugares; sendo de notar que se ele fora eleito por diversas vezes vereador em Santo André, continuou a ser eleito vereador em S. Paulo, servindo sempre na governança da terra. Ele mereceu antes, e continuou a merecer sempre, a preferência das altas autoridades coloniais, dos governadores gerais, de Martim Afonso de Sousa por seus loco-tenentes, dos homens bons e do povo da terra em que habitava. Foi, quando esteve na Capitania de S. Vicente, em princípios de 1553, que Tomé de Sousa, Governador Geral do Brasil, acrescentou a Martim Afonso a vila de Santo André, e o nomeou alcaide-mor do campo (Carta da Bahia de 1º de junho de 1553, já citada). O segundo Governador Geral, D. Duarte da Costa, em um regimento datado de 11 de fevereiro de 1556, dirigido a Brás Cubas, então capitão-mor-loco-tenente em S. Vicente, proibiu a todos o trânsito pelo campo para o Paraguai e expressamente declara avisareis a João Ramalho, alcaide e guarda-mor do campo que não deixe passar nenhuma pessoa para ele, sem mostrar vossa licença nem os próprios moradores de Santo André (vol. das Atas de Santo André, vereança de 11 de fevereiro de 1556, pág. 37). 166 Washington Luís Em agosto de 1556, Jorge Ferreira, capitão-mor de S. Vicente, em ausência de Brás Cubas, e por ordem de D. Duarte da Costa, nomeia Baltasar Nunes porteiro e alcaide da vila de Santo André, mas determina expressamente que faça o que lhe pelo capitão e alcaide-mor João Ramalho desta dita vila e povoação for mandado em prol e serviço de Deus e de el-rei nosso senhor” (Atas de Santo André, pág. 42). Se foi necessário um alcaide e porteiro para Santo André, ficou ele inequivocamente sob as ordens de João Ramalho, capitão-mor da vila e alcaide do campo. Dos moradores da Capitania de S. Vicente, dos homens bons de Santo André foi também alvo de respeito e consideração, que o elegeram vereador da Câmara, apesar de a esse cargo se escusar, sob o fundamento de incompatibilidade com o de alcaide-mor e guarda do campo, que já exercia (Atas de Santo André, pág. 58). Mas afinal aceitou e os exerceu cumulativamente durante o ano de 1557 (Atas de Santo André, págs. 60, 62, 63, 64, 65, 66, 67 e 68). Ainda em 1558 serviu a chamado dos novos eleitos (Idem pág. 72). E não foi na governança um oficial que se limitasse a receber juramentos ou a impor multas por infrações de posturas. Foi ele um dos signatários, senão o inspirador, da reclamação a Jorge Ferreira, reivindicando imperiosamente direitos de Santo André, e energicamente protestando pela apuração da eleição de oficiais feita na Câmara dessa vila para vigorar em 1557, conforme a jurisdição deixada por Tomé de Sousa e de que foi metido de posse por Antônio de Oliveira, capitão e Brás Cubas provedor da fazenda real (Atas de Santo André, págs. 57 e 58 fls.). Não se encontram elementos para afirmar ou para negar que ele tivesse tomado parte na governança da terra nos anos de 1558 a 1561, porque da Câmara, que nesses anos funcionou em Santo André e em S. Paulo, desapareceram os respectivos livros de atas. Mas em 1562, a 28 de maio, João Colaço, capitão-loco-tenente por Martim Afonso de Sousa, atendendo a que “por vozes e eleição João Ramalho havia sido escolhido para fazer a guerra, que então se esperava, nomeia-o capitão dessa guerra com amplos poderes, como si fosse ele em pessoa, determinando que todas as pessoas lhe obedecessem em tudo que fosse necessário para essa guerra, sob pena de prisão, de multa de vinte cruzados, pagos da cadeia, e de degredo Na Capitania de São Vicente 167 de um ano para a Bertioga, sendo a metade da multa para o acusador e a outra metade para as despesas da guerra. (Atas V. 1º de S. Paulo, págs. 14 e 15)”. A 24 de junho de 1562, os oficiais da Câmara de S. Paulo Antônio de Mariz, Diogo Vaz, Luís Martins e Jorge Moreira dão a João Ramalho juramento sobre um livro dos santos evangelhos para bem e verdadeiramente servir esse cargo de grande e suma responsabilidade nesse momento crítico (Vide Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, pág. 14 em que estão lavradas a vereança da Câmara e provisão do capitão-loco-tenente). A Câmara, por sua vez, ordenando o acabamento dos muros e baluartes para defesa da vila (Atas, vol. 1º, pág. 16), em 1563 requereu a João Ramalho que fosse buscar pólvora (Idem pág. 25), para defesa da vila. Foi a época trágica de 1562, em que se revoltaram os índios amigos, alguns já aldeados, dirigidos pelo próprio irmão de Tibiriçá, aliados aos carijós, que investiram contra a vila de S. Paulo para destruí-la e exterminar os seus habitantes, pondo termo à catequese religiosa e ao povoamento civil, se conseguissem o seu intento (Vide Apontamentos de Az. Marques, na Cronologia desse ano, e cartas de José de Anchieta). Ninguém ignora a ascendência que João Ramalho exercia sobre Tibiriçá, por diversas vezes seu sogro e que, por conseqüência, a atitude de João Ramalho teria influído para que o morubixaba se conservasse fiel à obra civilizadora, que se realizava em Piratininga. Ninguém até hoje pôs em dúvida o poderio que ele teve sobre os numerosos selvagens que por aí andavam, mesmo desprezando os exageros de Ulrico Schmidl; todos sabem quão grande foi a influência por ele exercida sobre a sua numerosa descendência mestiça, aparentada por casamentos com as principais pessoas da capitania, e, por conseqüência, o conceito em que era tido pela grande maioria dos moradores, condições essenciais para a eleição e nomeação de capitão para fazer guerra ao gentio volúvel e, então, revoltado. Com um capitão dispondo de tais elementos, e com a superioridade do armamento dos portugueses, a guerra, nesse momento, foi decisiva e os indígenas em revolta foram rechaçados e completamente derrotados. 168 Washington Luís As cartas dos jesuítas não mencionam a cooperação eficaz de João Ramalho, nem a colaboração eficiente da vila de S. Paulo na defesa da então nascente povoação. Segundo o uso observado, os jesuítas deviam escrever cartas, dos lugares em que se achavam, aos seus superiores narrando os fatos ocorridos nas casas, nos colégios e discorrer sobre as dificuldades ou progressos da catequese; nelas não se referiam eles às autoridades civis locais, raras vezes mencionavam nomes ou fatos estranhos às missões religiosas que desempenhavam em relação aos indígenas. Quando muito, alguns poucos descreviam a terra e os seus recursos naturais. Não coordenavam elementos para a história, limitavam-se a se referir aos negócios internos da Companhia. É natural, pois, e de boa-fé, o silêncio dos Jesuítas a respeito. Fazia uma das exceções a essa regra o Padre Manuel da Nóbrega, que, por vezes se estendia sobre as condições da terra e os meios de a valorizar, sobre o seu futuro, sobre a ação das autoridades civis, dando orientação, indicando providências que julgava necessárias, louvando ou censurando abertamente até o próprio rei. Mas as Atas da Câmara de S. Paulo estão publicadas suprindo essa lacuna. Em 1564 João Ramalho foi ainda eleito vereador em S. Paulo (Atas de S. Paulo, vol. 1º, pág. 34) ofício que recusou, como já ficou referido, apesar da instância excepcional dos outros oficiais, seus companheiros de vereança, que incorporados foram à casa de Luís Martins, onde João Ramalho estava de pouso, insistindo pela aceitação do cargo, ao que ele respondeu que era um homem velho que passava dos setenta anos, e estava em um lugar em terra de contrários desta vila, digo dos contrários da Paraíba, e que estava também como degradado (?) no dito lugar e que outro fosse chamado para servir o dito cargo. Se se pode chamar vida pública o exercício de vereador de S. Paulo em 1564, foi ele quem dela deliberadamente se retirou. Foi substituído por Lopo Dias. João Ramalho prestou bons serviços a Martim Afonso, à colonização e à catequese e os seus atos não são de um rebelde, de um homem infame, de um excomungado por graves crimes. Aliás, antes e por largos anos, no meio de índios nus nos quais não havia noção de pro- Na Capitania de São Vicente 169 priedade, de respeito à vida alheia, de constituição da família, de organização de sociedade, de autoridade, de sentimento de pátria, de idéia de Deus, antropófagos, nômades, sem quem os orientasse, fazendo guerras alimentares, só cuidando de comer e de se reproduzir, difícil seria encontrar para João Ramalho o metro da infâmia ou a capitulação de crimes. Inculto, como era, a sua vida seria talvez repreensível ou delituosa numa sociedade civilizada. Nos primeiros tempos as suas relações com os padres jesuítas (e mesmo depois) não poderiam ter sido cordiais. Índios selvagens e broncos, portugueses, na sua maior parte, brutos e de baixa classe, com aqueles convivendo dezenas de anos, os descendentes destas duas espécies, soltos nos campos e nas matas, sem regras e sem incômodos, todos haveriam de estranhar e não poderiam apetecer ficar de joelhos em igrejas pobríssimas, a fazer preces e sofrer penitências, e com restrições que a civilização exige para que possa haver sociedade civil. Disso deviam saber, ou pelo menos isso prever, os padres da Companhia de Jesus. Aliás o ato infame, positivado, narrado pelo Pe. Simão de Vasconcelos foi o de João Ramalho entrar na igreja e querer assistir missa, a que o Padre Leonardo Nunes se recusou terminantemente a celebrar enquanto o infame, o excomungado daí não se retirasse. Então um dos filhos de João Ramalho, armado de pau lançou-se ao sacerdote para matá-lo, no que foi obstado por uma mulher que se interpôs. É evidente que o ato violento não partiu de João Ramalho, nem o Padre Simão de Vasconcelos diz que ele o tivesse ordenado (Crônica da Cia. de Jesus, L. I, pág. 47). O Irmão Pero Correia (Cartas Avulsas, vol. 2º, pág. 92) em 8 de junho de 1554 refere-se a este ou a idêntico episódio nos termos seguintes: “uma destas (índias) se achou umas dez léguas daqui, onde quiseram tratar mal o nosso padre e o ameaçaram com um pau e o ameaçador foi um homem que há 40 anos que está nesta terra e tem bisnetos e sempre viveu em pecado mortal e anda excomungado, e o Padre não quis dizer missa com ele e daqui veio, depois da missa acabada, a querer maltratá-lo, porque ele é possante, mas a índia ali pregou muito rijo e com grande fé oferecendo-se a padecer de companhia com o Padre, se 170 Washington Luís cumprisse. Eu não me achei ali, mas contaram-me os dois irmãos muito boas línguas, um deles se chama Manuel de Chaves e o outro Fernandes, moço de 15 até 16 anos”. Aí não se menciona o nome de João Ramalho, mas apenas há referência a um homem que estava nessa terra há mais de 40 anos. Com mais de 40 anos de estada nessa terra havia, além de João Ramalho, muitos outros e com muitos filhos mamelucos na costa do Brasil, na capitania de S. Vicente. Pero Correia relata o fato por ouvir dizer a dois outros irmãos e por modo diferente ao relatado pelo Padre Vasconcelos. Seria, portanto, o Irmão Correia uma testemunha referente, que só tem o valor das referidas, que não foram ouvidas. O episódio, apaixonadamente, narrado pelo Padre Simão de Vasconcelos em suas Crônicas, é verossímil e pode ser verdadeiro. Mas ponderadas as circunstâncias de tempo e lugar em que o fato se realizou, parece-me que a excomunhão e a expulsão da Igreja foram meios contraproducentes usados pelo Padre de Jesus contra um régulo com influência sobre os índios e com prestigio sobre os principais da terra. Aliás, essas medidas violentas jamais foram aconselhadas pelo Cristo que mandava oferecer a outra face, quando uma era ferida, que não condenou a adúltera e que dizia Non veni perdere animas sed salvare”, como, nessa mesma época, repetia o Padre Aspicuelta (Cartas Avulsas, vol. 2º, pág. 52). Os padres da Companhia deveriam saber que, em todos os países e em todas as classes, havia a mancebia e a concubinagem e que muitas vezes os filhos, que delas resultavam, ficavam altos prelados da Igreja ou governadores, e que seria excessivo julgar com tal severidade nas terras da América, quando tais fatos eram encontrados entre portugueses asselvajados e índias selvagens. Além disso, era conhecido pelos vicentinos e pelos estrangeiros que por aí passavam, e pelos próprios padres da Companhia, o prestígio de que gozava Ramalho sobre os homens principais da capitania, com os quais tinha casado as suas filhas mamelucas. Até Tomé de Sousa não censurou Ramalho, antes o prestigiou nomeando-o capitão de Santo André e alcaide-mor do campo, dando disso notícia ao rei de Portugal (Carta de 1º de junho de 1553, no vol. 3º da Colonização no Brasil). Na Capitania de São Vicente 171 É possível que João Ramalho, procurando a Igreja, no momento da celebração da missa, estivesse animado de boas e submissas intenções. De outras não fala Simão de Vasconcelos. Manuel da Nóbrega, ao chegar a S. Vicente, quando de sua viagem com Tomé de Sousa em 1553, teria recebido más informações a respeito de João Ramalho, e, em carta de 15 de junho desse ano, as transmitia o Padre Luís Gonçalves da Câmara, em Portugal, escrevendo: “nesta terra está um João Ramalho. É muito antigo nela e toda a sua vida e a de seus filhos é conforme a dos índios e é uma petra scandali para nós porque a sua vida é o principal estorvo para com a gentilidade, que temos, por ser ele muito conhecido e aparentado com os índios. Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e tem filhos delas, tanto o pae como os filhos. Vão à guerra com os índios e as suas festas são de índios e assim vivem andando nús como os mesmos índios. Por todas as maneiras temos provado e nada aproveita e até já o deixamos de lado. Este, estando excomungado, por não querer confessar e não querendo os nossos padres celebrar com ele...” (Novas Cartas Jesuíticas, publicadas pelo Padre Serafim Leite, pág. 46). Subindo, porém, a serra e chegando ao planalto, cerca de dois meses depois, e tendo encontrado João Ramalho e com ele tratando, a linguagem do Pe. Manuel da Nóbrega já é bem diferente, como se pode ler na carta, que a 31 de agosto de 1553 escreveu ao mesmo Pe. Luís Gonçalves da Câmara, com a sua habitual franqueza e costumada visão: “nesse Campo está um João Ramalho, o mais antigo homem que nesta terra está. Tem muitos filhos e muito aparentados com todo este sertão. E o mais velho dêles levo agora comigo ao sertão por mais autorizar o nosso ministerio. João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais desta terra. De maneira que nele, e nela e em seus filhos esperamos ter grandes meios para conversão destes gentios. Esse homem, para mais ajuda, é parente do Pe. Paiva, cá se conheceram. Quando veiu da terra, que havia quarenta anos e mais, deixou a sua mulher lá, viva, e nunca mais soube dela, mas que lhe parece que deve ser morta, pois já vão tantos anos. Deseja muito casar com a mãe destes seus filhos. Já para lá se escreveu e não veio resposta deste seu negócio. Portanto, é necessário que V. Rma. envie logo a Vou- 172 Washington Luís zela, terra do Pe. Mestre Simão, e da parte de Nosso Senhor lhe requeiro; porque si este homem estiver em estado de graça, fará Nosso Senhor por ele muito nesta terra. Pois estando em pecado mortal, por sua causa e sustentou até agora. E, pois, isto é cousa de tanta importância, mande V. Rma. logo a saber a esta informação de tudo isto o que tenho dito”. (Páginas de História do Brasil, Serafim Leite, pág. 93). Esta carta, só há pouco tempo publicada, revela de modo a não deixar dúvida, que João Ramalho não embaraçava a catequese jesuítica, e que, ao contrário, deixava o seu filho mais velho acompanhar e guiar, no sertão, o Pe. Manuel da Nóbrega, para mais autorizar o ministério religioso. Vivia maritalmente com índias da terra, filhas dos maiorais; mas desejava casar-se com a mãe de seus filhos, cumprindo assim um sacramento, o do matrimônio, cuja realização deveria ser precedida da confissão outro preceito da igreja, o que quer dizer que iria obedecer as regras da religião católica. Não se tinha casado, o que muito desejava, porque primeiro viveu entre selvagens, sem cura de alma, e ainda, porque não sabia se a mulher, que deixara em Portugal, era viva, receando sem dúvida a bigamia, condenada pelas leis civis e canônicas. Esse casamento era tão necessário que o Pe. Manuel da Nóbrega, com a maior instância possível, requeria em nome de Nosso Senhor, e suplicava quase, mandasse indagar de tudo em Vouzela. E considerando “uma causa de suma importância”, reiterava o pedido anteriormente feito. Isto se passava em 1553, antes da revolta dos índios, em 1562. É possível que tal conversão fosse obtida pelo esforço persuasivo do Pe. Manuel da Nóbrega; mas mostra ao mesmo tempo disposições do Alcaide-Mor do Campo, para voltar ao abrigo católico como ovelha tresmalhada. Além de salvar a alma, de colocar o régulo em estado de graça, no entender do Pe. Manuel da Nóbrega, esse matrimônio seria um grande exemplo para os demais colonos, santificando e legitimando-lhes o lar e sendo um grande passo para a conversão do demais gentio, com o qual era João Ramalho por seus filhos aparentado. Essa mulher, cujo nome indígena era Bartira, recebera o de Isabel no batismo, outro sacramento católico, que não se realizaria sem anuência de João Ramalho. Na Capitania de São Vicente 173 Era ela filha de Tibiriçá, o chefe indígena amigo dos jesuítas e sogro (?) de João Ramalho, o qual também se batizara. A sua descendência, em filhos, netos e bisnetos, todos cristãos, era tão numerosa, que Tomé de Sousa julgava coisa inacreditável e não o ousava dizer a D. João III (carta citada). Ulrico Schmidl, cujos comentários não são simpáticos ao régulo, declara que era de cristãos a povoação a que chegara, antes de descer para S. Vicente. Os genealogistas não estão perfeitamente de acordo, quanto ao número e aos nomes de todos os filhos de João Ramalho, tendo sido encontrados papéis antigos, em mãos de pessoas de crédito, que a isso se referem, mas que se contradizem. Em atas da Câmara de S. Paulo, em concessão de datas, em inventários se encontram porém, declarações em que alguns de seus descendentes se reconhecem seus parentes. Assim na sesmaria concedida aos índios de Ururaí por Jerônimo Leitão (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 354) escreve-se que era limítrofe com a de João Ramalho e de seus filhos, i. é., de João Ramalho e de Antônio de Macedo. Na vereança de 16 de julho de 1580 (Atas, vol. 1º, pág. 166) João Fernandes, filho de João Ramalho, é multado por não ter comparecido à procissão de Santa Isabel. Matias de Oliveira, se declara neto de João Ramalho, quando requer uma sesmaria de terras na capitania de S. Vicente (Sesmarias, vol. 1º, pág. 41. Publicação oficial do Arquivo do Estado de S. Paulo). Outras referências se encontrarão com mais acurado exame. Nele, em João Ramalho, chefe entre os gentios e de grande influência sobre os habitantes da capitania – como sem ambages escreveu Manuel da Nóbrega – nela, em Isabel Bartira, sua companheira de muitos anos, neles, nos filhos do casal esperava o superior dos jesuítas na costa do Brasil um grande meio para conversão do gentio. Não se sabe se o casamento se realizou. E, se não se realizou, não foi por culpa do Pe. Manuel da Nóbrega, nem de João Ramalho e de sua gente. Provavelmente, conforme o costume, de tudo procrasti- 174 Washington Luís nar, que hoje ainda dura nas coisas do maior relevo e importância, no Brasil e em Portugal, nenhuma providência se tomou. *** João Ramalho, português, de origem humilde, era inculto, desenhava apenas, o seu nome nos livros da Câmara, em Santo André e em S. Paulo; mas desenhava-o de maneira diferente da usual, intercalando entre o nome e o sobrenome um semicírculo, voltado para a esquerda, enquanto que a maior parte de seus companheiros usavam uma cruz, de diversas e variadas formas, algumas inscritas em círculo, o que hoje ainda caracterizam os analfabetos que assinam de cruz. Nessa originalidade, de que não foi ele o único, nesse sinal Horácio de Carvalho encontrou o Kaf hebraico e, daí em longo estudo, concluiu que João Ramalho era judeu. Foi uma conjetura excessiva, pois que não se vê o alcance, que teria um homem simples, natural, rústico, tendo vivido entre selvagens durante dezenas de anos, e vivendo depois entre compatriotas também rústicos, em conservar sutilezas de assinatura que demonstrasse a sua origem semita. Tudo, ao contrário, indica que, se ele não era um católico praticante, exerceu todos os atos solenes, nas Câmaras, jurando e fazendo jurar sobre livro dos Santos Evangelhos para o bom cumprimento dos cargos que devessem exercer. Estava ele pronto a casar-se catolicamente com a mãe de seus filhos; consentiu no batismo de sua companheira e de seus numerosos descendentes. Os representantes de D. João III, o rei inquisidor, nem o superior dos jesuítas na costa do Brasil, tratariam com um suspeito de judaísmo, e pela maneira por que o fizeram. Essas são também conjeturas que faço, não há dúvida, que afastam e se opõem a outra bem frágil de judaísmo por causa de um suposto Kaf. Naquele tempo, os habitantes da capitania de S. Vicente, depois de iniciada a cristianização, faziam os seus testamentos quando par- Na Capitania de São Vicente 175 tiam para o sertão, onde contava morrer e onde muitos pereciam, ou quando estavam em artigo de morte. João Ramalho fez o testamento a 3 de maio de 1580, segundo cópia tirada do livro de notas de Lourenço Vaz, tabelião de S. Paulo, livro rubricado por João Soares, que Frei Gaspar da Madre de Deus possuiu. Esse testamento existiu, porque diversas pessoas também o viram e o leram. Mas ao ler esse testamento, Frei Gaspar da Madre de Deus equivocou-se lendo nele que João Ramalho declarara em 1580 estar na terra do Brasil havia mais de 90 anos, o que colocaria a sua vinda anteriormente ao descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral. Equívoco natural em face da má e fantasiosa letra dos escrivães coevos. Outros afirmam terem lido 70 anos, menos vinte anos, portanto, designando data que mais ou menos coincide com a declaração que fez, quando recusou a vereança de S. Paulo em 15 de fevereiro de 1564, alegando ser homem velho que passava dos 70 anos e com a declaração na sesmaria de Pero de Góis (vide Testamento de João Ramalho na R.I.H.G. de S. Paulo, vol. 9, pág. 563 e seguintes. Vide também Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, pág. 37). Teria chegado à costa do Brasil nos seus 20 anos e teria morrido depois dos 80. Embora muito discutido esse testamento, não foi ele publicado, nem tampouco o inventário de seus bens, por não terem sido encontrados no arquivo do Estado de S. Paulo. Não era Barcellos, como escreveu Pedro Taques, nem Broucella, como interpretou Frei Gaspar, mas Boucella ou Vouzella, freguesia e comarca de Viseu, província de Beira Alta, em Portugal, a terra onde nasceu João Ramalho. Talvez então pertencente à Coimbra? A vila de Santo André não foi, entretanto, fundada por João Ramalho, conforme, segundo informações de antigos cronistas paulis- 176 Washington Luís tas, repeti no estudo sobre seu testamento publicado na R.I.H.G. de S. Paulo, em 1904, no citado volume 9º, pág. 563. A freguesia de Vouzella compreendia entre outras aldeias a de Valgode, equivalente sem dúvida ao Balbode, interpretado no testamen3 to, donde provavelmente era natural Catherina Affonso. Foi ele de vigor físico bem raro, pois que Tomé de Sousa (carta citada) informa que, apesar de já ter bisnetos, não tinha cãs no rosto nem nos cabelos, e fazia nove léguas a pé antes do jantar. Foi, não há dúvida alguma, homem de grande poder de vontade, de suma energia, de muita habilidade; porque um dos primeiros, sendo talvez o primeiro, a chegar a S. Vicente, pôde se impor a selvagens broncos e cruéis, dominá-los a ponto de poder dispor de milhares de arcos, ser por eles “venerado”, formar um lar, numa terra em que os que vieram depois, e sendo principais da capitania, nele constituíram família. Exerceu todos os primeiros cargos locais da colônia, recebeu das altas autoridades civis da costa do Brasil provas inequívocas de confiança e distinção, e foi julgado pela mais alta autoridade religiosa dessa mesma costa, necessário para o melhor êxito da catequese. Não foi um santo, nem um cenobita ou anacoreta, nem teve tendências para mártir. Teve naturalmente muitos defeitos, mas também teve as qualidades varonis dos portugueses de sua condição, que naquele tempo viveram. Era de trato difícil, gostava de mandar e estava acostumado a ser obedecido. Grosseiro e tenaz. 3 Notemos ainda que, por este documento, se vê, numa sesmaria passada por Gonçalo Monteiro, que este se declara vigário e capitão-loco-tenente de Martim Afonso de Sousa, governador da capitania de S. Vicente; o que indica que a palavra vigário poderia ter sido empregada na sua acepção rigorosamente etimológica, como mostrando aquele que substitui, que faz as vezes de outro. Martim Afonso de Sousa não era um prelado, mas o donatário da capitania; o seu vigário não era, pois, por este motivo, um padre, mas um capitão. Entretanto, um Gonçalo Monteiro foi vigário de S. Vicente por 1560, conforme se verifica no processo por heresia iniciado pelo Padre Luís da Grã contra João de Boulés (Anais da Biblioteca Nacional, v. 25, pág. 217). Fica assim retificado esse fato como também o da atribuição de João Ramalho de ter fundado quer a povoação, quer a vila de Santo André da Borda do Campo, referidos no v. 9, da R.I.H.G. de S. Paulo, pág. 563. Sumário Na Capitania de São Vicente 177 Cometeu os pecados que naquela época a religião católica considerava gravíssimos, e alguns ainda hoje o são, “a falta de confissão”, “não ouvia missa”, “amancebou-se na terra”, fez as guerras de sua gente contra as tribos inimigas, e, com viver solto e independente, viveu a vida de selvagem, onde só selvagens viviam, alimentando-se de caça e de pesca, de mel e de frutas, sem comércio cristão, único que poderia fazer a vida conversável, na frase expressiva de Pero Lopes de Sousa, quando se refere, em 1532, aos homens da feitoria do porto de S. Vicente. Foi, porém, uma das mais curiosas figuras, talvez a mais curiosa figura da costa do Brasil, nos seus primeiros tempos. § 2º LOPO DIAS Lopo Dias era português. Aparece o seu nome na Câmara de Santo André, pela primeira vez, em 5 de outubro de 1555, multado em 25 réis por não ter comparecido a fazer um caminho da vila, que então era conservado a mão comum (Atas de Santo André, pág. 16). Em 31 de março de 1558 o povo se reúne e juntamente com os oficiais da Câmara de Santo André deliberam a reparação dos muros e construção de guaritas para defensão da vila, porquanto chegavam novas que os índios do planalto iam atacar e destruir a vila, havia pouco tempo criada por Tomé de Sousa. Todos se obrigaram a fazer essas obras indispensáveis até sua completa execução, ajudando-se uns aos outros, para defesa de todos (Atas de Santo André, pág. 74). A vida aí não corria sem perigos e era necessário manter a povoação. Não eram muitos os moradores de Santo André. A Câmara compunha-se então dos oficiais Antônio Magalhães, como juiz, João Ramalho, como Vereador, João Eanes, como Procurador de Conselho, e Diogo Fernandes, Escrivão. Com o povo e com os oficiais assinam apenas, ao todo, 16 moradores entre os quais está Lopo Dias. Mudada a sede da vila, em 1560, de junto da ermida de Santo André para junto à igreja de S. Paulo, Lopo Dias continua a prestar os seus serviços à administração municipal. Em 28 de dezembro de 1562 e em 28 de agosto de 1563 é eleito almotacé; em 21 de fevereiro de 1564 é eleito vereador em substituição de João Ramalho, que a esse cargo se escusou declarando ter mais de 70 anos. 178 Washington Luís Em 12 de maio de 1564 é, como vereador, um dos signatários da representação a Estácio de Sá, para que permanecesse em S. Vicente com a sua esquadra para defesa da capitania sempre ameaçada, principalmente a vila de S. Paulo, “situada entre gente de várias qualidades e forças, que há em toda a costa do Brasil, como são os tamoios e os tupiniquins, que quebrando as pazes feitas sempre matam no sertão muitos homens brancos, entre os quais Geraldo, Francisco de Sarzeda e João Fernandes”. Os tamoios, ajudados pelos franceses, atacavam as vilas de Santos e de S. Vicente, por mar e por terra, e de todas elas levavam escravos, gados, mulheres e homens. Os tupiniquins se levantaram e puseram cerco a S. Paulo durante dias, em 1562, destruindo mantimentos e gados. A representação é longa e nela também se refere a mudança da sede da vila pelo Governador Mem de Sá, em 1560, a requerimento do povo de S. Vicente, e de Santos e dos padres da Companhia de Jesus (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, págs. 42 a 45). Os livros da Câmara de S. Paulo correspondentes a 1565 até 1567 desapareceram, e nada se encontra durante esse período sobre a vida de Lopo Dias em S. Paulo. Mas a 19 de fevereiro de 1576 é eleito vereador e almotacé em 1583 (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, págs. 91, 197). Aqui termina a vida pública de Lopo Dias, se a esses atos pode-se chamar vida pública, na pequenina vila de S. Paulo. Mas ainda ele aparece, como parte do povo, numa grande reunião, convocada pela Câmara de S. Paulo, cujos oficiais no ano de 1592, eram João de Prado e Pero Álvares, como juízes, Fernão Dias e Antônio Preto, como vereadores, e Alonso Peres como procurador do conselho, para tomar conhecimento da provisão do Capitão-Mor Jorge Correia, que mandava entregar as aldeias dos índios, na capitania de S. Vicente, aos padres da Companhia de Jesus. Compareceram a essa reunião 77 pessoas das quais 72 votaram contra a deliberação de Jorge Correia, pois que a administração das aldeias deveria continuar a pertencer à Câmara, cabendo aos jesuítas a doutrinação dos índios, o que não se lhe impediu nem se devia impedir. Entre os 72 contrários à provisão de Jorge Correia estiveram Lopo Dias e o vigário Lourenço Dias (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, pág. 446 e seguintes). Foi esse o primeiro choque ostensivo entre jesuítas e colonos, foi a ruptura franca, aberta de uma luta latente que existia desde os princípios da capitania. Na Capitania de São Vicente 179 Lopo Dias casou-se com Beatriz Dias (Inv. e Tes., vol. 2.º, pág. 113) filha de Tibiriçá, ou neta por João Ramalho. Os linhagistas não estão de acordo sobre se a mulher de Lopo Dias era índia ou meio sangue indígena. De seu casamento houve, pelo menos, dois filhos: Suzana Dias e Belchior Carneiro. Suzana Dias casou-se com Manuel Fernandes Ramos, natural 4 de Moura, em Portugal. Netos ou bisnetos de índios, esses Fernandes são conhecidos, entre os cronistas paulistas, como os Fernandes Povoadores. O outro filho de Lopo Dias e de Isabel Dias, chamou-se Belchior Carneiro, também neto ou bisneto de índia, fez diversas entradas ao sertão e nele morreu, como cabo de bandeira em 1607, entre os Bilreiros (Inv. e Test., vol. 2º, págs. 111 e seguintes), a mandado de Diogo de Quadros, em busca de índios para trabalho em minas de ferro em S. Paulo. Foi Belchior Carneiro, que sabia ler e escrever, e escrevia bem o seu nome, casado com Hilária Luís Grou, outra mestiça, filha de Domingos Luís Grou, do qual adiante se fala. Em 1608, “por não se achar presente Lopo Dias e por ser muito velho em idade (Inv. e Test., vol. 2.º, págs. 124 e 130) o juiz de órfãos faz curador dos filhos todos menores de Belchior Carneiro, a André Fernandes, deles primo-irmão. O próprio Lopo Dias vem a juízo e confirma a sua velhice em requerimento em que diz: “pesa-me senhores juízes escusar ser curador de meus netos, filhos 5 de Belchior Carneiro porque não ... de o poder ser, assim por minha 4 5 Além das informações dos genealogistas, encontra-se a confirmação disto em Atas, vol. 1º, págs. 133 em que se fala em Manuel Fernandes, genro de Lopo Dias. Vide também inventário de Suzana Dias e dos companheiros de André Fernandes (Inventários e Testamentos, vol. 33, pág. 11 e Inventários de Belchior Carneiro, no qual declara a sua filiação. (vol. 29, pág. 111. Atas, vol. 1º, pág. 465) – Suzana Dias é intimada a entupir um buraco que seu filho fez em um beco na vila (Atas, vol. 1º, pág. 468) Antônio Rodrigues, genro de Suzana Dias, almotacé em agosto de 1593. A reticência indica palavras destruídas pelas traças. Sumário 180 Washington Luís idade, como por me ter entregue ... padres do Carmo para irmão seu assim podem fazer curador quem lhes parecer e aqui me assigno – 1 de janeiro de 1609. Lopo Dias. (Inv. e Test., vol. 2º, pág. 132). § 3º DOMINGOS LUÍS GROU Domingos Luís Grou, da família Annes ou Ianes, de Portugal, veio para o Brasil tentar fortuna, e aqui casou-se com Fulana Guaçu, filha do cacique de Carapicuíba, segundo a Genealogia de Silva Leme (vol. 1, pág. 15). Um de seus netos, Luís Ianes Grou, no testamento que fez em 21 de outubro de 1628, no arraial de seu tio, Mateus Luís Grou, nas cabeceiras da Ribeira, sertão de Ibiaguira, declarou ter 55 anos e 8 meses de idade, ser filho legítimo de Luís Ianes Grou e de Guiomar Rodrigues, declarando também que numas contas feitas no inventário de sua avó, Maria da Penha... (Inv. e Test., vol. 7, pág. 430). O inventário de Maria da Penha não foi encontrado no Arquivo do Estado de S. Paulo. Mas os antepassados paternos dos Grou eram de Portugal e lá ficaram, o que me autoriza a afirmar que a avó então referida era a filha do cacique de Carapicuíba, e mulher de seu avô, Domingos Luís Grou, e chamava-se Maria da Penha, nome que, sem dúvida, recebera no batismo. A verdade é que o primeiro Domingos Luís Grou possuía uma data de terra, que vizinhava com a sesmaria concedida aos índios de Piratininga, junto ao rio Carapicuíba, como reza a provisão de Jerônimo Leitão passada a 12 de outubro de 1582, em S. Vicente, e registrada na Câmara da vila de S. Paulo em 26 de agosto de 1522 (Registro Geral, vol. 1º, págs. 354 a 357). Citando o Pe. Simão de Vasconcelos, na vida do Pe. José de Anchieta, Antônio de Alcântara Machado narra que no ano de 1570, dois moradores de S. Paulo “um deles nobre e conhecido por Domingos Luís Grou, ambos casados e ambos com família” tendo cometido um assassinato fugiram com os seus para o sertão, metendo-se de companhia com os bárbaros, que estavam com os nossos em guerra, estimulando-os a que acometessem e pondo em assombro e medo toda a capitania”. Nessa ocasião Anchieta resolveu intervir conjurando o perigo. Obteve dos camaristas “salvo-conduto e perdão daqueles delinqüentes” Na Capitania de São Vicente 181 e em companhia do Pe. Salvador Rodrigues e do secular Manuel Veloso e de alguns índios desceu o Anhembi. A canoa em que iam, naufragou e o Pe. Anchieta foi salvo por um índio, e o lugar, que era encachoeirado, ficou a chamar-se Abaremanduava que quer dizer “cachoeira do Padre” (Cartas, Jesuíticas, vol. 3º, pág. 554). É esse sem dúvida o episódio referido pelo Padre Pedro Rodrigues na vida do Padre José de Anchieta (Anais da Biblioteca Nacional, vol. 29, pág. 219) quando conta que “sucedeu que dois homens, de consciências largas e de nome, temendo o castigo de suas grandes culpas, se levantaram e com suas famílias, se foram meter com os gentios inimigos pelo que, com razão, se temiam não viessem com poder de gente a destruir a capitania. Vendo o Pe. José que não havia contra esse perigo forças humanas e confiado só nas de Deus se determinou de ir em pessoa a buscar os alevantados e reduzi-los a obediência do seu capitão levando-lhes largos perdões de todo o passado. Foi com ele o Pe. Vicente Rodrigues e outros homens e um índio esforçado”. Houve o naufrágio da canoa em que iam e o índio salvou o Pe. Anchieta, depois de dois mergulhos, que duraram meia hora debaixo d’água. Trouxe o Padre Anchieta os dois homens alevantados para a vila. Mas, daí a um ano, um desses homens (e que não é nomeado) “quis tornar ao sertão, mas o capitão recusou-lhe a licença, e por isso ele o maltratou por tal forma que um filho do capitão o matou a frechadas. O episódio do naufrágio foi posteriormente a 1572, quando Anchieta veio a S. Vicente com o Bispo D. Pedro Leitão e o Visitador da Companhia Pe. Ignácio de Azevedo. Com Antônio de Macedo, filho de João Ramalho, Domingos Luís Grou e mais 50 homens fizeram uma entrada ao sertão, que muito preocupou a Câmara da vila de S. Paulo, supondo-os todos mortos pelos índios, o que a levou a fazer em 1590 um ofício ao Cap. Jerônimo Leitão tudo narrando com minúcias (Atas, vol. 1º, págs. 388 a 390). Um filho de Domingos Luís Grou, de nome Mateus Luís Grou, meio sangue indígena, já foi o cabo da entrada ao sertão de Ibiaguira; uma filha, Hilária Luís, casou-se com Belchior Dias Carneiro, outro meio sangue indígena, neto de Tibiriçá (vol. 2º, pág. 111), que morreu em 1607, no sertão dos Bilreiros, para o lado dos Carijós, comandando uma bandeira que, a pretexto de procurar metais, fora cativar índios para trabalhar nas minas de ferro, por determinação de Diogo de Sumário 182 Washington Luís Quadros e era cunhado de Mateus Luís Grou; e outra filha – Maria Luís Grou – casou-se com Simão Álvares, outro mestiço índio, um dos comandantes de terço das tropas de Antônio Raposo Tavares o destruidor das reduções do Guairá. Domingos Luís Grou desapareceu na entrada, a que se refere a Câmara, feita com Antônio de Macedo, devorado pelos índios. Encontra-se a confirmação de sua morte em 4 de Junho de 1594, conforme deduzo do seguinte extrato por mim feito em 1902, dum livro de notas da vila de S. Paulo, do tabelião Belchior da Costa, que me foi confiado pelo Dr. Luís Gonzaga da Silva Leme – livro muito estragado – e a quem logo o restituí. “1594 – Junho – 4. Maria Afonso, viúva de Marcos “Fernandes dá em dote a sua filha Francisca Alvares, para “que se case com Antonio de Zouro, um pedaço de chão, terça “parte da data da câmara pegado a outro que ela comprou de “Domingos Luís Grou, já defunto, e pegado com a data de “Gaspar Collaço Villela no arrabalde da villa de S. Paulo”, e “também vende parte desses chãos a seu sobrinho Alonso Feres “Calhamares casado com sua sobrinha... § 4º PEDRO AFONSO Pedro Afonso, ilhéu dos Gagos e Afonsos, de Portugal, segundo Silva Leme (obra citada) casou-se com uma tapuia, índia resgatada, e desse casamento procedem Maria Afonso, casada com Marcos Fernandes, pai de Simão Alvares, como disse acima, um dos capitães de terço das tropas de Antônio Raposo Tavares, o destruidor do Guairá, e avô igualmente de Maria Luís Grou, mulher de Frederico (ou Fradique de Meio), outro capitão de terço das mesmas tropas (Silva Leme, Genealogia citada – vol. 1º, págs. 2 e 3). § 5º BRÁS GONÇALVES Brás Gonçalves, português, casou-se com a filha do cacique de Ibirapuera (Santo Amaro) que no batismo recebeu o nome de Margarida Fernandes (Inv. e Test., vol. 11, pág. 11) e ambos tiveram descendência numerosa. Seus filhos tomaram parte em diversas entradas ao Sumário Na Capitania de São Vicente 183 sertão. Esses nomes: Brás Gonçalves, Baltasar Gonçalves, repetem-se com freqüência na família e as designações, Brás Gonçalves, o velho, Brás Gonçalves, o moço; não os distinguem uns dos outros, porque essas designações são dadas em diversas épocas, quando o velho já tinha morrido e o moço já se tornara o velho, e assim também era indicado. Assim, o Brás Gonçalves, casado com a filha do cacique de Ibirapuera, era designado como Brás Gonçalves o velho, no inventário de seu filho Brás Gonçalves, o moço, começado no sertão do Paracatu em 1603, e é feito curador de seus netos, e destituído dessa curatela, em 18 de maio de 1613, por ser homem que nunca aparecia na vila e devia muito (Inv. e Test., vol. 21, pág. 37). Faleceu antes de 15 de abril de 1620 (Idem vol. 26, pág. 39). Entretanto, era 10 de outubro de 1636, no sertão dos Carijós, chamados Arachans, no arraial de Diogo Coutinho de Meio, se faz o inventário de Brás Gonçalves, o velho, casado com Inocência Rodrigues, evidentemente outro de igual nome (Inv. e Test., vol. 11, pág. 129). A mesma confusão se pode estabelecer com Baltasar Gonçalves. Assim, Afonso Sardinha, no seu testamento (Az. Marques, Apontamentos) declarava que foi casado com Maria Gonçalves, irmã de Baltasar Gonçalves; Clemente Álvares foi casado com Maria Gonçalves, filha de Baltasar Gonçalves (Inv. e Test., vol. 1º, pág. 17). E não se pode afirmar se esses Baltasar Gonçalves eram os irmãos de Brás Gonçalves, ou do genro do cacique de Ibirapuera, não obstante no livro de Atas (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 5 em 1583) haver declaração formal de que um Brás Gonçalves era irmão de um Baltasar Gonçalves. Nesse tempo os próprios apelidos – Gonçalves, como os de Fernandes, Rodrigues, Dias – eram usados por pessoas que nenhum parentesco tinham entre si. Assim encontram-se tais sobrenomes designando pessoas de diferentes famílias. Além disso os filhos do mesmo casal tomavam nomes diferentes dos seus pais, assinando os de seus avós ou padrinhos, o que também traz confusão ao investigador. § 6º PEDRO DIAS Sobre Pedro Dias, falecido em 1590 casado com Maria da Grã, filha de Tibiriçá, cujo nome indígena era Terebê, Silva Leme reco- Sumário 184 Washington Luís lhe tradição, que não encontra fundamento nos documentos locais de São Paulo, nem nos documentos jesuíticos até agora conhecidos, e segundo a qual, ele fora irmão leigo dos jesuítas, de cujos votos fora desligado para realizar tal casamento. Falecendo ela, casou segunda vez com Antônia Gomes, filha de Pedro Gomes e de Isabel Afonso, que era filha de Pedro Afonso e da Tapuia, meio sangue indígena. Silva Leme dá à sua numerosa descendência em Título de Dias no vol. 8º, pág. 3 e seguintes. Do primeiro matrimônio é filha Clara Parente, casada com Gonçalo Madeira, cujos inventários estão publicados no vol. 13, pág. 461, dos Inventários e Testamentos. Da sua segunda mulher, Antônia Gomes, teve Pedro Dias o filho, Francisco Dias Velho, que foi capitão-mor povoador da ilha de Santa Catarina. De Clara Parente e Gonçalo Madeira são filhas Agueda Rodrigues casada com Manuel Preto, o fundador da capela de N. S. do Ó, e Maria Jorge, casada com Francisco Barrete, irmão do capitão-mor Roque Barreto e de Nicolau Barreto, chefe de Bandeira. Os três Barretos eram filhos de Álvaro Barreto (Inv. e Test., vol. 2º, pág. 221 e vol. 3º, pág. 236) A numerosa descendência de Pedro Dias e de Terebê é descrita por Silva Leme no volume 8º da sua Genealogia, em 102 páginas, na qual se encontra a boa gente de S. Paulo Poder-se-iam encontrar ainda, com investigação mais atenta e mais pacientemente minuciosa, outras filhas de caciques, ou de não caciques, ligadas a europeus, fazendo essa mestiçagem audaz, forte, tenaz pelos seus pais, valentes, dura, sofredora das asperezas e agruras do sertão, por suas mães. § 7º SALVADOR PIRES Salvador Pires casou-se com Mécia Açu, neta ou bisneta de Piquerobi, maioral da aldeia de Ururaí. Faleceu em S. Paulo, no seu sítio de cultura, acima da cachoeira Patuaí no rio Tietê, em 1592. Na sua numerosíssima descendência encontram-se os maiores nomes da Capitania de S. Vicente. Seu filho, Salvador Pires de Medeiros, ocupou os principais cargos da República e “na sua fazenda Ajuhá, teve grandes culturas Sumário Na Capitania de São Vicente 185 e uma dilatada vinha, da qual todos os anos recolhia excelente vinho malvasia em muita abundância”, segundo Pedro Taques. Fundou a capela de Santa Inez, cuja devoção tomou por ser este o nome de sua mulher, D. Inez Monteiro de Alvarenga, cognominada a Matrona, em respeito às suas grandes virtudes. Assim assevera Silva Leme na sua Genealogia (vol. 2º, pág. 123) repetindo Pedro Taques. Salvador Pires era carpinteiro ou pelo menos exerceu esse oficio em S. Paulo (Atas, vol. 1º, pág. 76). Foram Salvador Pires e Mécia Açu sogros de Bartolomeu Bueno da Ribeira, de cujo casamento com Maria Pires, nasceu entre outros Amador Bueno, que a História denominou o Aclamado. Os genealogistas não estão de acordo sobre o pai do primeiro Salvador Pires. Se foi João Pires, este funcionou na Câmara de Santo André (Atas, v. 1º, pág. 11) e D. Duarte da Costa refere-se a perdão do crime, por ele cometido em matar um índio com açoites, contanto que fizesse o caminho do mar (R. I. H. G. B., vol. 49, pág. 562). § 8º PERO LEME Segundo os genealogistas e os dizeres de seu testamento (Taques, Silva Leme, Inventários e Testamentos, vol. 1º, pág. 25) Pero Leme era português da Ilha da Madeira, casado com Luzia Fernandes, da qual teve a filha Leonor, casada com Brás Esteves e todos vieram para S. Vicente pelos anos de 1550, onde foram vítimas dos saques e incêndios feitos pelos ingleses por fins do século 16. Aí em S. Vicente enviuvou e casou-se segunda vez com Grácia Rodrigues de Moura. Dos seus dois casamentos só teve filhas, sendo que a filha do 2º casamento não teve geração. Parece que as suas mulheres eram portuguesas; na sua descendência, porém, há cruzamentos, se bem que a linha de sua primeira mulher conservou-se sem mestiçagem até Fernão Dias Pais Leme, grande sertanista, que Olavo Bilac imortalizou no seu poema o “Caçador de Esmeraldas”. Ele morou primeiro em S. Vicente, porque no seu testamento feito nessa vila em 9 de setembro de 1592, já citado, fala em papéis de crédito, e por duas vezes, que lhe levaram os ingleses e também de umas Sumário 186 Washington Luís casas que tinha em 1582, vendidas por Paulo de Veres, cujos documentos também lhe levaram os ingleses. Pero Leme foi povoador mas não foi conquistador. Morreu em São Paulo em 1600. No testamento feito em S. Vicente, o escrivão, que o aprovou, declara que ele era fidalgo da casa real de el-rei, nosso senhor. § 9º AFONSO SARDINHA Não se pode afirmar ao certo quando Afonso Sardinha chegou à Capitania de S. Vicente; mas parece ter sido ele um dos seus mais antigos moradores. Residiu primeiro em Santos, porque no seu testamento (Azevedo Marques, Apontamentos) fala, e por vezes, em papéis de crédito que lhe levaram os ingleses, e também de umas casas, que naquela localidade possuiu, cujos títulos lhe levaram os ingleses. Esses ingleses seriam os das armadas de Felton em 1587 ou de Thomaz Cavendish em 1591-1592. Mas passou depois a morar na vila de S. Paulo e no seu termo, onde tinha trapiches de açúcar e gado em sua fazenda, vendia marmelada, emprestava dinheiro aos capitães-mores de S. Vicente e alugava casas aos vigários, fazia vir negros da África e comprava peles em Buenos Aires. Tudo em pequena quantidade, pois que para a metrópole só havia uma viagem marítima cada ano, e essa bem precária. Mais raras e mais precárias deveriam ser as viagens para outros pontos. Lord Macaulay (Ensaios Históricos, vol. 1º, pág. 246 em estudo sobre Lord Clive) informa que as relações com a Europa eram infinitamente pouco freqüentes. A viagem para o Cabo de Boa Esperança, que, em 1860 se fazia em três meses, consumia normalmente ainda por 1730, mais de seis meses, num tempo em que a Inglaterra já começava a dominar os mares e a sua marinha era superior à portuguesa. Nesse mesmo estudo sobre Lord Clive informa ainda que, numa de suas viagens, Lord Clive foi obrigado a aportar no Brasil, onde aprendeu algumas palavras portuguesas, gastando na sua viagem um tempo imenso, tais os riscos e dificuldades que as navegações do Atlântico ofereciam. Na Capitania de São Vicente 187 José de Anchieta (Cartas Jesuíticas, vol. 3º, pág. 85) reclamava paciência para as informações enviadas de S. Paulo de Piratininga para a Europa, pois que para lá “de ano em ano parte apenas um navio”. Dada a lentidão das coisas coloniais, o pequeno valor que elas representavam e a pouca importância que a elas se davam, não é temerário supor que em 1583, a comunicação marítima com a metrópole fosse ainda anual. Foi ele, entretanto, uma das principais figuras da capitania e dela foi conquistador e povoador. Era analfabeto e sua assinatura era feita com uma cruz com três hastes. Afonso Sardinha parece ter sido homem jeitoso; pertencia à classe dos que hoje são chamados “despistadores”, sabendo conduzir-se entre as duas correntes que dividiam a capitania – jesuítas e colonos – agradável a ambas, sem suscetibilizar nenhuma, para se filiar à vencedora. Vivia bem com os jesuítas, e havia resolvido, desde 2 de novembro de 1592, deixar-lhes por sua morte em testamento público todos os seus bens o que se realizou a 9 de julho de 1615 (Azevedo Marques, na sua Cronologia) mas votava com os colonos impedindo que as aldeias fossem entregues aos padres da Companhia de Jesus. Os jesuítas eram contrários às guerras contra os índios, e influíam sobre o capitão-mor Jorge Correia, para que as não fizesse (Azevedo Marques, Cronologia – Atas, vol. 1º, págs. 446-8). Não tomou parte na governança da vila de Santo André, tendo-se em vista que o seu nome não consta nas atas publicadas. As atas da Câmara da vila de S. Paulo começam em 1562 e vão até 1564, e continuam em 1572 havendo, pois, um hiato de oito anos nos papéis municipais paulistas. De 1562 a 1564 o nome de Sardinha não aparece entre os da governança da terra e nada se pode saber até 16 de março de 1572, data em que recomeçam as atas. Em 1572 foi ele eleito vereador e nomeado Almotacé em 1575. Foi de novo eleito vereador em 1576 e em 1590 (Atas da Câmara desses anos, vol. 1º, págs. 46, 59, 89, e 377). Em abril de 1578, no inventário de Damião Simões, aparece ele se obrigando pelo pagamento de uma foice de resgate avaliada em 188 Washington Luís 150 réis, arrematada por Bento Frias (Inventários e Testamentos, volume 1º, pág. 8). Em 20 de abril de 1592, foi nomeado pelo capitão-mor Jorge Correia para capitão da gente da vila de S. Paulo e seus termos (Registro Geral, vol. 1º, pág. 51). A Câmara de S. Paulo, composta dos juízes João de Prado e Pedro Álvares, dos vereadores Fernão Dias e Antônio Preto, a 2 de maio desse ano (Atas, vol. 1º, págs. 439 e 440), fez objeções e criou dificuldades para registrar essa nomeação, sob o fundamento de que “a vila nunca tivera outro capitão senão o capitão da terra”. O procurador do conselho, Alonso Peres achou procedente essas razões, mas alegou, entretanto, que a terra estava ameaçada e que os inimigos estavam a jornada e meia da vila. Todos ficaram concordes a respeito resolvendo, porém, esperar o capitão-mor, Jorge Correia, para tratar sobre o assunto, não impedindo, entretanto, que Afonso Sardinha exercesse as suas funções sem, porém, mandar registrar a provisão (Atas, vol. 1º, págs. 439 e 440). A vila de S. Paulo estava com efeito ameaçada de sério ataque por parte dos índios inimigos. A 23 de agosto de 1592 (Atas, vol. 1º, pág. 445) os oficiais da Câmara se reuniram para tratar da necessidade de uma entrada ao sertão da capitania “para ver o estado dos nossos inimigos”, com os quais estavam em guerra, havia dois ou três anos (Atas, vol. 1º, pág. 442), já tendo protestado perante o capitão-mor. Leram, então, e também aos moradores da vila que todos foram convocados, o capítulo de uma carta do capitão Jorge Correia que dizia que “se parecesse bom se fizesse o salto”, e logo foi deliberado que se fizesse a guerra com o maior “ímpeto de gente e com toda a brevidade” e que Jorge Correia mandasse a gente de Itanhaém e de S. Vicente. Houve, porém, sério rebate dos índios contrários, sendo grave a situação e “estando os nossos atemorizados”, Jorge Correia mandou Afonso Sardinha ao sertão, em seu nome, ver o estado em que estavam os índios contrários ou dar-lhes guerra com a maior segurança podendo levar todos os índios da capitania (30 set. 1592, Reg. Geral, vol. 1º, pág. 59). Queria contemporizar. Na Capitania de São Vicente 189 Jorge Correia ainda quis contemporizar alegando o perigo da guerra no mar com os piratas estrangeiros, e mais ser necessário pedir socorro ao Rio de Janeiro. A Câmara, porém, vigorosamente repeliu as alegações protelatórias. Essa entrada se fez, pois que no inventário de Catarina Unhate, em 1613, foi avaliado o índio Francisco, “Pés Largos”, da viagem de Afonso Sardinha (Inv. e Test., vol. 1º pág. 270) Dada a forma vaga com que eram feitos os inventários, a cativação do índio Francisco poderia ter sido feita, entretanto, antes ou depois desse ano e por Afonso Sardinha, o moço, pois que ambos entraram ao sertão em diversas épocas. O Padre Manuel da Fonseca, porém, na Biografia do Padre Belchior de Pontes, a qual foi escrita em 1752, narra que a aldeia de Carapicuíba fora povoada por índios trazidos do sertão por indústria de Afonso Sardinha, que por sua morte os deixou ao Colégio de S. Paulo (pág. 118). Quando foi nomeado capitão para entrar ao sertão, em 1592, Afonso Sardinha, o velho, fez o seu extenso testamento lavrado por tabelião, a 2 de novembro desse ano, e nele declara que do seu casamento com Maria Gonçalves (Vide Azevedo Marques, Cronologia, Testamento de Afonso Sardinha, o velho) não houve filhos, não tendo ele herdeiros forçados, pois que Afonso Sardinha, o moço, seu filho, foi havido na constância do matrimônio. Era portanto adulterino, sem direito a herdar. Casado com Maria Gonçalves, deixou-a herdeira de toda a sua fazenda “a portas fechadas” e, de combinação com ela, todos os bens do casal, após a morte de ambos, ficariam aos jesuítas. Nomeou-a testamenteira juntamente com o irmão Baltasar Gonçalves, seu cunhado, morador de S. Paulo. Não morreu nessa entrada, durou até proximamente 1616. Conhecidas a escassez feminina européia e a facilidade dos costumes indígenas, Afonso Sardinha, o moço, deveria ter sido um mameluco. Aliás, essas ligações, de que resultavam os mamelucos, eram comuns na Capitania de S. Vicente, e os Inventários e Testamentos referem sempre muitos bastardos, palavra que naquele tempo chegou a significar 190 Washington Luís filho de branco com índia, segundo diz o padre Manuel da Fonseca, na biografia do padre Belchior de Pontes6. Os cronistas antigos de S. Paulo, dada a identidade de nomes, confundem os feitos dos dois Sardinhas, atribuindo os do pai ao filho e vice-versa, o que sucede, como já notei, com muitos outros colonos. Pela narração feita não se pode saber com certeza o que pertence ao velho e o que pertence ao moço. O próprio Azevedo Marques, nos seus Apontamentos, verbo Afonso Sardinha, quando reproduziu o que escreveu Taques, sobre esses dois colonos, declara (págs. 2 e 3 em nota) expressamente que esse genealogista confundiu os dois Afonso Sardinha. Apesar de reconhecer a confusão, não a esclareceu e ao contrário a manteve. O autor dos Apontamentos informa que Pedro Taques, na Nobiliarquia das principais famílias da Capitania de S. Vicente, diz a respeito de Afonso Sardinha o seguinte: “Foi o primeiro descobridor das minas de ouro, prata, ferro e aço em todo o Brasil pelos anos de 1589 em as serras seguintes: na de Jaguamimbaba, que ao presente tempo se conhece com o nome de Mantiqueira; no sítio que agora se diz Lagoas Velhas do Geraldo, distrito da freguesia da Conceição dos Guarulhos, termo da cidade de S. Paulo; na de “Jaraguá, onde fez o seu estabelecimento minerando, e aí faleceu”, etc. Não diz Az. Marques de que Título da Nobiliarquia extraiu essa informação. Na obra, porém, do genealogista paulistano no Título Taques Pompeu (Rev. do Inst. Hist. Geogr. Bras., vol. 33, primeira parte, pág. 93) se lê a respeito de Afonso Sardinha: “o afamado paulista, primeiro descobridor de minas de ouro em todo o Estado do Brasil, em S. Paulo nas serras de Iguamimbaba, que agora se chama Mantaguyra, na de Jaraguá, termo de S. Paulo, na de Vuturuna, termo de Parnahyba, na de Hybiraçoyaba, termo de Sorocaba”. Da mesma forma no seu trabalho, sob a epígrafe Informação sobre as minas de S. Paulo, publicado também pela R. I. H. G. B. (vol. 64, Págs. 5 e 6) Pedro Taques diz textualmente que “Afonso Sardinha, e seu filho do mesmo nome, foram os que tiveram a glória de descobrir ouro de lavagem nas serras de Jaguamimbaba e de Jaraguá (em S. 6 Vida do Padre Belchior de Pontes, pelo Padre Manuel da Fonseca, Pág. 233. Na Capitania de São Vicente 191 Paulo) e na de Ivuturuna (em Parnahyba) na de Biraçoyaba (Sertão de Sorocaba) ouro, prata e ferro pelos anos de 1599”. Nesses dois trabalhos, principalmente no segundo, que é especial sobre as minas de S. Paulo, para o qual os seus cuidados seriam maiores, Pedro Taques, não escreveu que Afonso Sardinha, na “serra de Jaraguá tivesse feito o seu estabelecimento minerando, e aí tivesse falecido.” Azevedo Marques resumiu mal a notícia de Taques, no Título Pompeu; e, nesse caso, deve o seu resumo ser recebido com reserva, salvo se outra tivesse sido a fonte de informação, que o autor dos Apontamentos transmitiu, a qual não encontrei para ser analisada. Esse resumo infiel de Azevedo Marques tem induzido a erros todos os estudiosos que se têm ocupado do assunto, sem, entretanto, ir às fontes originais. Depois da publicação das Atas e Registro Geral da Câmara da vila de S. Paulo e dos Inventários e Testamentos pelo arquivo do Estado de S. Paulo, todas as informações dos velhos cronistas devem ser afiladas por esses documentos. Os antigos cronistas muito exageraram sobre a fidalguia e riqueza dos primeiros colonos. De boa-fé, sem dúvida, com o intuito de elevar os seus antepassados. *** O descobrimento de minas de ouro, prata e outros metais, nesse tempo, não dava ao descobridor a propriedade das terras em que estivessem elas situadas, ainda mesmo que fossem devolutas. Mesmo que o descobrimento de minas fosse feito em terras do próprio descobridor, não se tornavam essas minas sua propriedade, pois que tais minas, desde D. Manuel e seus sucessores até os Filipes de Espanha e até os Braganças restaurados, o direito sobre as minas era regulado pelas Ordenações Manuelinas, compreendidas e compiladas no Código Felipino. Este Código, na Ord. L. 2º, Títs. 26 e 28, § 16, acolhendo a Ord. Manuelina do L. 2º, Tít. 20, § 15, declarava que os veeiros e minas de ouro e prata, ou qualquer outro metal, eram direitos reais, isto é, pertenciam ao domínio real. Os descobridores dessas minas estavam sujeitos às regras da Ord. Felipina, L. 2º, Tít. 34 e seus parágrafos, que reproduziam disposições dos tempos de D. Sebastião e do Cardeal rei D. Henrique. Os descobridores deveriam manifestar os descobrimentos e 192 Washington Luís registrá-los perante determinadas autoridades, recebendo depois nelas demarcações precisas, para exploração, com tempos fixados, inteiramente à sua custa, sob pena de as perderem. Para as minas descobertas eram nomeados provedores, guardas-mores, etc., que davam as demarcações ao descobridor e a outras pessoas, pagando todos a quinta parte do ouro extraído à Fazenda Real (os célebres quintos) “em salvo de todos os custos”. A aquisição da propriedade das terras nas costas do Brasil, originariamente dada por alvarás ou cartas régias, foi delegada primeiro aos donatários das capitanias hereditárias e depois aos Governadores Gerais e aos conselhos municipais, que em regra as faziam, aqueles por cartas de sesmarias, e estes por datas nos rossios das vilas, quando, nos seus forais, houvesse para isso autorização. D. Francisco de Sousa, Governador Geral do Brasil, se achou em S. Paulo desde 16 de maio de 1599, por causa dos negócios das minas, como se dirá mais minuciosamente adiante. A 19 de julho de 1601 no regimento dado a Diogo Gonçalves Lasso determinou-lhe “que não consentisse que pessoa alguma possa por ora ir às minas descobertas nem tratem de descobrir outras, salvo Afonso Sardinha, o velho, e Afonso Sardinha, o moço, aos quais deixo ordem do que neste particular poderão fazer, que vos mostrarão, por serem os ditos descobridores pessoas que bem o entendem” (Reg. Geral, vol. 1º, fls. 123 a 125). Em 1601 o representante do rei absoluto – Governador Geral do Brasil – proibiu a ida de qualquer pessoa às minas descobertas e as por descobrir. E, se permitiu a ida aos dois Sardinhas, deve-se concluir que também a eles podia proibir. Permitiu a ida dos Sardinhas às minas, não porque fossem eles delas proprietárias, mas porque eram descobridores e entendiam de minas. Pelo direito, então em vigor, e pela aplicação que dele fazia o Governador Geral do Brasil, nos regimentos expedidos, há que concluir que os dois Sardinhas não podiam ser proprietários das minas do Jaraguá ou de quaisquer outras na capitania de S. Vicente. Também não possuíram datas ou sesmarias que lhes dessem a propriedade de terras no Jaraguá. Pelo menos nada consta a esse respeito nos arquivos locais, que consultei e estão publicados, encontrando-se, Na Capitania de São Vicente 193 porém, documentos que os fazem proprietários de terras em outros lugares. No seu testamento minucioso, feito a 2 de novembro de 1592, publicado por Azevedo Marques nos seus “Apontamentos” e já aqui referido, Afonso Sardinha declara que por seu filho natural, Afonso Sardinha, o moço, já havia feito o que devia, dando-lhe 500 cruzados nos quais entravam “as terras em que ele estava, em Amboaçava, as quais se estenderá da ribeira da aguada dos índios do forte até outra ribeira, que vem para Amboaçava, entrando pela mata adentro ali onde fiz minha demarcação”. As terras doadas a Afonso Sardinha, o moço, estavam, pois, em Amboaçava e confrontavam com as do doador seu pai De fato, nesse lugar estavam como se vê na carta de data concedida a Estêvão Ribeiro, o moço, em 1609, cujas terras na Embiaçava, partiam da tapera de Afonso Sardinha, o moço, até a borda da capoeira de Afonso Sardinha, o velho, ao longo de uma lagoa que está correndo para o caminho do forte (Registro Geral, vol. 1º, pág. 162). Cumprindo o prometido no testamento, Afonso Sardinha e sua mulher, em 15 de julho de 1615, fizeram doação de todos os seus bens à Companhia de Jesus, segundo a Cronologia de Azevedo Marques, o que está confirmado na escritura pública dessa data, publicada no vol. 44, fls. 360 dos “Documentos Interessantes”. Depois da expulsão dos jesuítas, em 1759, no tempo do Marquês de Pombal, todos os bens da Companhia foram confiscados pela Fazenda Real. O Conde de Bobadella, Capitão General do Rio de Janeiro e de S. Paulo, cumprindo ordens do rei, e por carta de 13 de setembro de 1762, mandou fazer o seqüestro desses bens em S. Paulo, como se pode ver no Volume 44 dos “Documentos Interessantes” do Arquivo do Estado de S. Paulo, e no auto de seqüestro e confisco consta: “ALDEIA DE CARAPICUÍBA” “Affonso Sardinha e sua mulher Maria Gonsalves fizeram doação de “toda a sua fazenda” à Capela de N. Snra. da Graça do Colégio e Igreja de S. Paulo, a qual o seu teor é o 194 Washington Luís seguinte: Saibam quantos de escritura e doação virem que no ano do nascimento de N. S. J. C. de 1615 aos 9 dias do mês de Julho, etc. (vol. cit; pág. 360). Essa escritura mostra que a doação abrangeu toda a “sua fazenda, moveis e de Rais, peças escravas de Guiné e da terra, terras, casas e gado, e da mais fazenda e benfeitoria que pessuião e tinham de seu nesta vila de S. Paulo e todo o mais que em qualquer parte que estivessem e se soubesse ser sua e por algum modo lhe pertencesse tirando o que tinham dado por dotes ou esmolas a saber quinhentas braças de ter7 ras que tinham dado a Pero da Silva as quais lhe tinham prometido em dote de casamentos” (Idem, pág. 361)... “As terras desta doação de Afonso Sardinha são as em que se acha situada a Aldeia vulgarmente chamada “Carapicuíba” no distrito de S. Paulo na qual se acham os Índios Administradores que foram dos ditos Padres e de que reza a doação retro”... (Idem, pág. 363)... “Algumas terras mais pertencem a esta doação como há uma sesmaria de terras em Ybatata até a Embuapava, como consta dos títulos dela... (Idem, pág. 8 367). Por esse auto de seqüestro feito nos bens da Companhia de Jesus, vê-se que todos os bens que possuía Afonso Sardinha e que haviam sido doados aos jesuítas, passaram à Fazenda Real, aí se declarando inequivocamente, onde, em S. Paulo, estavam eles situados. Nele não se encontra a menor referência a terras no Jaraguá. Além disso outros documentos, também oficiais, vêm confirmar a localização das terras de Sardinha, em outros lugares. Assim, no volume 1º de Sesmarias, publicado pelo Arquivo do Est. de S. Paulo (págs. 35 e 36) está registrada a data de terra de 7 8 Pero da Silva foi casado com uma sua neta, Tereza, filha de Afonso Sardinha, o moço, e irmã de Pero Sardinha conforme se vê no testamento deste, publicado no vol. 3º, dos “Inventários e Testamentos”, págs. 395, 396 e 397. A casa, que hoje comemora o Bandeirante desconhecido, não foi edificada por Afonso Sardinha; teria sido bem mais tarde, e talvez pelos jesuítas, na sesmaria desse povoado da Capitania de S. Vicente, que dela ficaram possuidores. Na Capitania de São Vicente 195 Afonso Sardinha, a 3 de novembro de 1607, na qual, alegando ser morador antigo na vila de S. Paulo e na capitania de S. Vicente, que sempre prestara serviços a S. Majestade, em bem da terra, tendo fazenda e trapiches de açúcar no rio Jerobatiba, pedia que lhe fossem dados os alagadiços que estão ao longo desse rio, dum lado e doutro, o que lhe foi concedido pelo capitão-mor Gaspar Conquero. Nesse mesmo livro de Sesmarias está o auto de posse da data concedida (págs. 37 e 38) no qual consta que o capitão-mor Gaspar Conquero “estando no termo da vila de S. Paulo, no lugar que se diz Ubat...9 onde mora Afonso Sardinha, no ano de 1607 deu a este posse dos alagadiços e campos conteúdos na data concedida”. Esses dois documentos estão estragados pelas traças, mas se completam, e são ainda completados por outro (ainda no mesmo livro I de Sesmarias fls. 42 a 44) em o que capitão-mor Gaspar Conquero, a 22 de janeiro de 1609, concede a Fernão Dias, a Pero Dias e a outros uma data de terras nas cabeceiras que tem Afonso Sardinha, sobejos das terras que foram de Domingos Luís Grou, partindo de Carapicuíba até a barra de Jerobatiba. Na sua Genealogia Paulista (vol. 6º, pág. 18 a 19 em nota), Silva Leme informara que Afonso Sardinha morava em Ubatãtã, e cita manuscritos de Pedro Taques como fontes dessa informação. Essa moradia se encontra confirmada na vereação de 9 de setembro de 1623, na qual os oficiais da Câmara, reconhecendo a danificação dos caminhos e serventias da vila, mandam consertar a ponte que está na fazenda, da que foi de Afonso Sardinha, onde chama Ibatãtã (Atas, vol. 3º, pág. 51). Ora, com esses documentos, ora citados e examinados, como sejam.: a) o testamento de Sardinha, o velho, dando a seu filho terras em Amboaçava partindo com as suas; b) a escritura de doação feita pelo Sardinha, o velho, aos jesuítas de todos os seus bens, em qualquer lugar em que se achassem; c) o arrolamento desses bens confiscados aos jesuítas no qual se encontra a doação de toda a sua fazenda e em que estava a aldeia de Carapicuíba, mas em que não há referência sequer a posse ou 9 O final está roído por traças. 196 Washington Luís domínio no Jaraguá; d) a concessão de sesmaria de Ibatãtã em Embuapava; e) a concessão de terras e o auto de posse das mesmas ao longo do rio Jerobatiba dum lado e doutro; f) a confrontação indicada na sesmaria de Fernão Dias, Pero Dias e Estêvão Ribeiro e de outros, cabeceiras que tem Afonso Sardinha, sobejos de Domingos Luís Grou, partindo de Carapicuíba; g) a indicação da morada do velho Afonso Sardinha em Ubatãtã, todos esses documentos, repito, publicados e que podem ser examinados e criticados, mostram que a moradia e a fazenda de Afonso Sardinha, o velho, estavam situadas em terras que partiam em Amboaçava, abrangiam a aldeia de Carapicuíba, ao longo do rio Jurubatuba em ambos os lados, e o Ibatãtã, onde ele morava.10 A sesmaria de terras que ele obteve em Ibatãtã até Embuapava nada rendia (Documentos Interessantes, vol. 44, pág. 367). Esses lugares Carapicuíba, Emboaçava, Butãtã ao longo do rio Pinheiros, antigo Jerobatiba, até a sua barra, estão à margem esquerda do rio Tietê (antigo Anhembi), e não abrangem o Jaraguá, que está situado à margem direita do Anhembi, do Tietê, do tradicional rio Paulista. É provável que os Sardinhas tivessem minerado em Jaraguá; mas não eram possuidores de terras no Jaraguá, nem lá se enriqueceram. As minas do Jaraguá foram sempre escassas, como se sabe. Descrevendo a extrema pobreza dos habitantes da vila de S. Paulo, e se referindo a D. Francisco de Sousa, nessa vila estante de 1599 a 1602, Frei Vicente do Salvador narra que o Governador entretinha o tempo que lhe restava do trabalho das minas, que era mui grande, e mui maior não ser sempre de proveito porque como é ouro de lavagem umas vezes se lavrara pouco ou nenhum, mas outras se acharam grãos de peso e de que ele enfiou um rosário, assim como saíam redondos, quadrados ou compridos que enviou a Sua Majestade (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, pg. 382). 10 Não é difícil a identificação desses nomes, embora redigidos com a escrita caprichosa dos escrivães desse tempo; Jerobatiba ou Jurubatiba é o atual rio de Pinheiros, Amboaçava, Imboaçava, Embuapava, grafias diferentes da mesma palavra, Ubat...... Ubãtã ou Ybatata é o atual Butantã. Na Capitania de São Vicente 197 Frei Vicente do Salvador, que foi contemporâneo de D. Francisco de Sousa e que, segundo parece, esteve com ele em S. Paulo conforme alguns escritores, mostra que bem pouca coisa em ouro se tirou em todas as minas dos arredores de S. Paulo. A vila de S. Paulo, nessa época era paupérrima, assim nota Frei Vicente do Salvador, na sua História do Brasil. E era verdade. A casa de morada de Afonso Sardinha, o velho, deveria ser pobríssima como então eram todas, como se vê nos inventários feitos nessa época. Em 2 de agosto de 1584, época quase contemporânea do descobrimento do ouro em Jaraguá (do descobrimento, não da exploração) os oficiais da Câmara e os homens bons da terra se reuniram nas pousadas de Jorge Moreira por não haver casa do conselho porque a que havia estava caída da cobertura, mandaram ajuntar o povo e com o parecer de todos logo todos a uma voz disseram que era bom e lhe parecia bem que se fizesse uma casa do conselho nova e coberta de telhas (Atas, vol. 1º, pág. 244). Aos 19 de julho de 1583, muitos meses antes, já a Câmara funcionava nas pousadas de Baltasar Gonçalves, por não haver casa de conselho, e notava a necessidade de consertar a cadeia, porque a sua cobertura quebrou e o telhado de palhas caiu sobre as paredes e eles não ousavam tirar a palha e descobrir as paredes, porque sendo estas de taipa, dariam consigo no chão”. Isso fora verificado em 30 de dezembro de 1583, “e não fora consertado, porque o conselho era pobre não tendo dinheiro para consertar” Atas, vol. 1º, págs. 225 e 226). Os edifícios principais da vila – Cadeia e Casa do Conselho _ estavam nesse estado miserável pela pobreza e, acrescente-se, pela negligência de seus habitantes. Por esse estado de ruína é lícito avaliar as condições das casas dos habitantes da vila e seu termo. *** Os dois Sardinhas eram sertanistas e fizeram entradas ao sertão. Das entradas do velho já aqui se encontra referência; das do moço, além das referidas nas Atas (Volume 2º, fls. 47 e 150), informa Azevedo Marques na sua Cronologia, que “em 1604, Afonso Sardinha, o moço, fez testamento no sertão escrito pelo Padre João Alves, e nele declarou 198 Washington Luís “possuir 80.000 cruzados em ouro em pó, que o tinha enterrado em botelhas de barro”. Em 1604 o Padre João Alvres11 estava realmente no sertão, e na bandeira de Nicolau Barreto, da qual ele e o Padre Diogo Moreira eram capelães conforme expressamente declaram essas qualidades por escrito na quitação, que passam, por missas cantadas e rezadas por alma de Manuel de Chaves, aí morto por uma flechada que lhe deram os Tupiães (Testamento de Manuel de Chaves, Inv. e Test., vol. 1º, págs. 461 e 489). Se Sardinha, o moço, fez testamento no sertão em 1604, parece que lá não morreu. Não consta que tivesse sido feito lá inventário dos bens de pessoa declarada tão rica. Segundo se pode deduzir do testamento de seu filho, Pero Sardinha, em 1615, ele provavelmente ainda vivia, já tendo, porém, morrido em 1616, quando foi feito o inventário desse filho em São Paulo, porque é ao avô que o juiz do inventário manda perguntar se quer nele herdar. A extrema miséria em que morreu Pero Sardinha, mostra que ele nada herdou de seu pai Afonso Sardinha, o moço. Este, como todos os moradores de S. Paulo, nessa época, era pobríssimo. Nada teria ele deixado a seus filhos; se tivesse deixado, Pero Sardinha no testamento não iria implorar ao avô a compra do filho da escrava Esperança. Ao contrário, declara ele que nada possui, e, na falta de seu avô, é à sua irmã que implora a libertação da criança que ele tinha por seu filho, do mesmo nome, que seu pai e seu avô. O fato, que relata Azevedo Marques, sobre os 80.000 cruzados, pode ser verdadeiro. Mas a quantidade de ouro em pó, enterrado em botelhas de barro, é, sem dúvida alguma, muito exagerada. Evidentemente 80.000 cruzados em todas as espécies, mas somente em ouro em pó, nessa época em que um boi valia 1$500 e uma vaca 1$200, um sítio 11 Padre João Alvres, clérigo, natural da vila de S. Paulo, filho e neto de conquistadores da capitania de S. Vicente, que assistia e morava em Boigi miri, querendo fazer suas milharadas, requer ao Capitão Gaspar Conquero meia légua de terra no dito Boigi miri da outra banda..................... Anhembi indo para a Paraíba, e fica esta...................... se o rio Anhembi, o que lhe foi concedido a 8 de março de 1610, no Porto de Santos (Sesmarias, vol. 1º, pág. 89 e seguintes. Este clérigo ainda vivia em 9 de julho de 1630, conforme se vê na Carta do Padre Justo Mansilla Vam Sunk (Documentação espanhola, publicada pelo Museu Paulista, vol. 2º, pág. 261). Na Capitania de São Vicente 199 em Pinheiros se avaliava por 16$000 e uma casa na vila com seu quintal por 10$000 (vide inventários do tempo) e o capitão-mor-loco-tenente e ouvidor do donatário ganhava 50 mil réis anuais, e pagos pelas rendas da capitania, a quantia de oitenta mil cruzados é quantia fabulosa (Vide livro nº 54 da Câmara de S. Paulo, numeração antiga de 1602. O traslado no vol. 1º do Registro Geral, pág. 39 está incompleto). Mas ainda em 1607 o capitão-mor ganhava 50$000 (Registro Geral, vol. 1º, pág. 143). Capistrano de Abreu também já achava exagerada tal quantidade de ouro, dizendo que deveria haver muito ogó no monte (Capítulos de História Colonial, pág. 193, edição da Casa Capistrano, por Capistrano de Abreu – 1928). E torna-se mais acentuado o exagero dessa quantidade de ouro, se se levar em conta que, na vila de S. Paulo, paupérrima e atrasa12 díssima, e, nesse tempo, com pouquíssimos e ignorantes habitantes um bastardo, cujo pai em 1592 declara em testamento ter “por ele já feito o que devia dando-lhe 500 cruzados”, pudesse ter guardado, doze anos depois, 80.000 cruzados em ouro em pó e os tivesse enterrado sem que ninguém o soubesse. É de notar ainda que Afonso Sardinha, por mais hábil sertanista que fosse, e entendedor de minas, não poderia ter conhecimentos especializados para exploração, como o declarava D. Francisco de Sousa. As grandes minas gerais só foram descobertas no século 18. Os processos de mineração eram então grosseiros, rudimentares, e consistiam na bateia que exigia numeroso pessoal e imenso tempo, dando o ouro de lavagem, que não poderia ser feito às escondidas dos moradores da vila.13 12 A Câmara informa em 1591 que 140 eram os moradores da vila (Atas, vol. 1º, pág. 410). 13 John Mawe, que fez Viagens no interior do Brasil, no começo do século 19, descreve no capítulo V como se fazia a exploração de ouro no Jaraguá. Declara que não havia mina mas lavagem de ouro, feita a céu aberto, exigindo muito tempo a muito pessoal. E isso em tempo em que o Jaraguá pertencia ao Capitão General Franca e Horta, dois séculos depois da descoberta aí feita. Não era possível em 1602 haver minas com exploração clandestina que permitissem a Afonso Sardinha obter 80.000 cruzados em ouro em pó e os esconder em botelhas. 200 Washington Luís 14 D. Francisco de Sousa, no regimento já referido, dado em 1601 a Diogo Gls. Lasso, menciona, como motivo da proibição da ida às minas, descobertas e por descobrir, a “falta de mineiros” para o respectivo benefício, mineiros que mandara vir e os estava esperando, a fim de que as achassem intactas e vissem que se falou verdade a S. M. (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 124). Intactas deviam, ainda em 1601, ficar as minas, era a ordem do Governador Geral, e se os Sardinhas foram autorizados a lá ir e a descobrir outras, não podiam explorá-las. As chamadas minas do Jaraguá, Bituruna, foram também descobertas por Clemente Álvares (Atas, vol. 2º, pág. 172) que as manifestou em 1606, procurando-as, segundo disse, desde 14 anos, época mais ou menos em que também as descobriram os Sardinhas, nada produziam ainda, dois anos depois do testamento de Afonso Sardinha, o moço, no sertão. E nada tinham produzido, porque o próprio Clemente Álvares pede que se registre o seu descobrimento em Jaraguá para “não perder o seu direito, vindo oficiais e ensaiadores que o entendam, por ele não o entender senão por notícia e bom engenho”. No tempo em que as manifestou, em 1606, as minas de Jaraguá ainda esperavam os mineiros e ensaiadores. Não tinha ainda havido exploração, estavam ainda intactas, conforme determinara D. Francisco de Sousa. Se houvesse produção o Fisco, curioso e ávido, não teria deixado de arrecadar os quintos para receber as porcentagens. As penas para quem guardasse ouro em pó eram severíssimas, e importavam em confisco desse metal, em multas pecuniárias, açoites nas ruas públicas, degredo para Angola, devendo todos reduzir o ouro a barras, depois de quintado (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 93 e 94). De 19 de julho de 1601, data em que o Governador-Geral do Brasil em atividade febril em S. Vicente para descobrimento de ouro, declarava intactas as minas de S. Paulo (Regto. dado a Diogo Gonçalves Lasso, no Registro Geral, vol. 1º, págs. 123 a 126) até setembro de 1602, época provável da partida da bandeira de Nicolau Barreto para o sertão, 14 Regimento dado a Diogo Gonçalves Lasso em 19 de julho de 1601 (Registro Geral, vol. 1º, págs. 123 a 126). Na Capitania de São Vicente 201 na qual tomaram parte Afonso Sardinha, o moço, e o Padre João Alvres, redator este do testamento do dito Sardinha (Inventários e Testamentos, vol. 1º, pág. 489 e vol. 11, pág. 17), em um ano e dois meses, portanto, não poderia esse bandeirante, em terra muito pequena e muito pesquisada, ter extraído das escassas minas 80.000 cruzados em ouro em pó, e muito menos ainda, enterrá-los em botelhas de barro. Deve haver na informação referida por Azevedo Marques, quanto à quantidade de ouro, ou erro de impressão ou de cópia, ou de escrita do Padre João Alvres ou do ditado de Afonso Sardinha, o moço. Afonso Sardinha, o velho, teria morrido em 1616, segundo Azevedo Marques (Cronologia). Afonso Sardinha, o moço, teve pelo menos dois filhos, Thereza que se casou com Pero da Silva, a quem o velho Sardinha fez doação de 500 braças de terra, e um filho que se chamou Pedro Sardinha. Este morreu no sertão dos Carijós na bandeira de Lázaro da Costa em 8 de dezembro de 1615. Silva Leme, na Genealogia Paulistana (vol. 6º, pág. 186, em nota, e vol. 1º, pág. 76) dá a descendência de uma filha de Afonso Sardinha, que ele chama de Luzia. A notícia desta descendência está confusa, a começar pelo nome da filha de Afonso Sardinha,o moço, casada com Pero da Silva, que se chamava Tereza e não Luzia, como se vê no testamento de seu irmão Pero Sardinha (Inv. e Test., vol. 3º, pág. 397). Pero Silva, casado com Tereza Sardinha, foi inventariante dos mesquinhos bens do bandeirante, seu cunhado, conforme se vê no seu inventário feito em São Paulo, em 10 de abril de 1616 (Inv. e Test., vol. 3º, pág. 397). Quando recentemente demolida, 1896-97, a Igreja do Colégio da Companhia de Jesus, em São Paulo, foi encontrada a pedra tumular, que marcava o lugar em que foram sepultados Afonso Sardinha, o velho, e sua mulher. Dessa pedra foram tiradas fotografias, publicadas no nº 1 da revista São Paulo Antigo e São Paulo Moderno, pelos editores Vanorden & Cia. Essa pedra está hoje no Museu Paulista. Sumário 202 Washington Luís Pelo estudo feito neste parágrafo, baseado nos documentos autênticos locais, deve-se concluir que nenhum dos Afonsos Sardinhas teve propriedade em Jaraguá; que a fazenda de Afonso Sardinha, o velho, onde ele morava e tinha trapiches de açúcar estavam nas margens do rio Jerobativa, hoje rio Pinheiros, e mais que a sesmaria que obtivera em 1607 no Butantã nada rendia e que todos os seus bens foram doados à Companhia de Jesus e confiscados pela Fazenda Real em 1762 em São Paulo. Se casa nesta sesmaria houvesse, deveria ser obra dos jesuítas. Pelo mesmo estudo se conclui que Afonso Sardinha, o moço, em 1609 ainda tinha a sua tapera em Embuaçava, terras doadas por seu pai. Não poderia ter 80.000 cruzados em ouro em pó, enterrados em botelhas de barro. Quem possuísse tal fortuna não faria entradas no sertão descaroável nem deixaria seus filhos na miséria. § 10 BRÁS CUBAS Brás Cubas é também morador antigo da Capitania de S. Vicente; mas este não foi um conquistador. Pertence ele mais ao elemento “administração portuguesa”, ao funcionalismo da colônia, no qual foi provedor da Fazenda Real, arrecadador de direitos de el-rei, nosso senhor, uma espécie de inspetor aduaneiro, concorrendo para a fundação da povoação de Santos e da construção da casa da alfândega e da Santa Casa de Misericórdia. Exerceu por vezes o cargo de capitão-mor em nome do donatário. Obteve muitas sesmarias e datas em Santos, delas fez doações a ordens religiosas e era grande demandista, segundo se depreende dos documentos coevos e de uma carta de Manuel da Nóbrega, na qual fala nos litígios que ele manteve com Pero Correia, que entrou para a Companhia de Jesus. Segundo alegação de seus serviços, fez uma entrada no sertão à procura de minas, em companhia de Luís Martins, informando descobrimento de ouro em Jaraguá, entrada analisada por Lobo Leite Pereira em estudo publicado no Arquivo Mineiro. Essa entrada é posta em dúvida e só consta na carta que escreveu ao rei. Brás Cubas só teve filhos bastardos. Sumário Na Capitania de São Vicente 203 § 11 BUENOS Segundo Taques, na sua Nobiliarquia Paulista, publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e seguida por Silva Leme, na sua Genealogia Paulista, Bartolomeu Bueno da Silva passou-se para S. Paulo, em 1571, com seu pai Francisco Ramires de Porros e foi de nobre família de Sevilha. Esse pai voltou para Espanha em 1599, deixando-lhe procuração passada a 20 de maio de 1599. Segundo Américo de Moura, “Povoadores dos campos de Piratininga”, a sua vinda para S. Paulo teria se dado em época posterior, e cita Carvalho Franco que afirma que Bartolomeu Bueno da Silva veio na armada de Diogo Flores Valdez que, em viagem para o estreito de Magalhães, aportou em Santos. Nesse porto Bartolomeu Bueno, segundo a versão última, desertou da armada e passou-se para S. Paulo, onde depois casou-se com Maria Pires, filha de Salvador Pires e de Mécia Açu. Serviu os cargos da República desde 1587; em 1591 como almotacé (Atas, vol. 1º, pág. 423), e vereador em 1616 (Atas,. vol. 2, pág. 371). Era analfabeto, pois todas as suas assinaturas são feitas por sinal que adotou. Era carpinteiro, como seu sogro Salvador Pires, e em 1587 foi designado juiz de seu ofício como se vê na Ata da Câmara de S. Paulo, no vol. 1º, pág. 321. Sua sogra Maria Pires era filha de Mécia Açu e por esta descendia de Piquirobi, maioral da aldeia de Ururaí. Deixou Bartolomeu da Silva numerosa descendência que se tornou notável na vida colonial de S. Paulo. Um dos seus filhos, Amador Bueno, passou à História como o Aclamado, pois aclamado foi rei de S. Paulo, quando da restauração do reino de Portugal, em 1640, por um movimento sem solidez, chefiado por seus genros espanhóis. Recusou enérgica e sensatamente a coroa hipotética de rei de S. Paulo. Segundo Silva Leme, que seguiu Taques, o Aclamado casou-se com Bernarda Luís descendente de João Ramalho e de uma filha de Tibiriçá, o maioral indígena dos campos de Piratininga, e amigo dos jesuítas. Sumário 204 Washington Luís Outro filho, Francisco Bueno, possuidor de um sítio no Jaraguá, foi cabo de uma bandeira que em 12 de maio de 1637 se achava no sertão; e, no seu arraial morreu, Estêvão Gonçalves, filho de Baltasar Gonçalves Mállio (Inventários e Testamentos, vol. 11, pág. 200). Um outro filho, Jerônimo Bueno, comandou bandeira que em 1637 estava no Sertão do rio Taquari, e da qual fizeram parte Manuel Preto (vol. 11, pág. 176), João Preto (vol. 11, págs. 176-178) e outros. Pereceu no sertão com toda sua tropa em 1644, segundo Pedro Taques e Silva Leme. Um seu neto, Bartolomeu Bueno, por alcunha Anhangüera, lançava aguardente nas rochas e a queimava, para fazer crer aos indígenas que possuía o poder de incendiar as águas dos rios, e, assim amendrontando-os, mais facilmente aprisioná-los, segundo diz Pedro Taques. Um filho deste Anhangüera, Bartolomeu Bueno, o segundo Anhangüera, bisneto de sevilhano, foi aos 70 anos de idade o descobridor das minas de Goiás, as minas dos martírios, no tempo do governo de Rodrigo Cesar de Meneses, já por ele divisadas, quando com doze anos acompanhara seu pai nas expedições aos sertões. Descendentes desse sevilhano fizeram parte de ordens religiosas e foram frades carmelitas, beneditinos, como Frei Gaspar da Madre de Deus, e estadistas do segundo reinado, como o Marquês de S. Vicente (Pimenta Bueno). § 12 JOÃO DE PRADO João de Prado, era de tanto valor e prestígio na capitania, que os cronistas jesuítas espanhóis fazem-no chefe da entrada em 1597, de que, entretanto, foi cabo João Pereira de Sousa, e na qual ele morreu, no sertão da Parnaíba. Ocupou todos cargos da governança da terra, e foi casado com Filipa Vicente, ambos naturais de Olivença e a ambos Pedro Taques conferiu nobreza. Para conciliar Pedro Taques com as leis da nobreza, é preciso talvez entender os nobres, a que ele se refere, como pessoas respeitáveis, de valor moral, pela consideração de que gozavam na terra, visto como nos inventários de Filipa Vicente, viúva de João de Prado, são eles decla- Sumário Na Capitania de São Vicente 205 rados apenas pessoas honradas (Inventários e Testamentos, vol. 1º, pág. 101). Deixou também numerosa descendência. § 13 DIOGO BRAGA Diogo Braga era português. Quando Hans Staden chegou a S. Vicente já o achou com filhos homens, havidos de uma índia da terra, já cristãos e falando tão bem o tupi quanto o português. Isto por 1551. § 14 FERNANDES E OUTROS Houve nos primeiros tempos muitos outros conquistadores e povoadores da Capitania de S. Vicente, os Fernandes, os “Pretos”, os “Gonçalves” os “Camargos”, os “Álvaro Netos”, os “Bicudos”, “os Campos.” Além desses, tantos outros cujos feitos não foram conservados e cujos nomes se encontram solitariamente na rudeza das Atas das Câmaras, no intrincado dos inventários e testamentos, e, ainda muitos outros, cujos nomes nem nesses papéis aparecem. Os Fernandes, conhecidos nas crônicas como Fernandes povoadores foram fundadores de Santana de Parnaíba, de Itu e de Sorocaba; eram filhos de Manuel Fernandes Ramos e de Luzia Dias, esta filha de Lopo Dias, neta de Tibiriçá (Inv. e Test., vol. 33, págs. 12 e seguintes, Pedro Taques e Silva Leme). Havia aí homens de diversas raças e de diversas línguas – italianos, flamengos, alemães, castelhanos, aragoneses, etc. além dos portugueses – como se pode ver na narração de Hans Staden, no processo de João Boulés, e em outros escritos, o que era natural durante o domínio dos Filipes. De alguns, principalmente dos que morreram no sertão, soldados e cabos de bandeiras, se fará mais minuciosa referência, quando forem estudadas as respectivas entradas. Mas outros, e muitos, dezenas no começo, centenas depois e milhares após o descobrimento das minas, vieram ao Brasil, espontaneamente ou por força, e aí se casaram, se ligaram às índias prolíferas ou com as filhas ou netas delas, deixando enorme descendência, cujos no- 206 Washington Luís mes não são indicados nas “Atas da Câmara de S. Paulo”, nem no Registro Geral, nem nos “Inventários e Testamentos”, anônimos, que desapareceram nas bandeiras que anonimamente partiram para o sertão e lá foram aniquiladas. Muitos dos que, em Portugal, mereceram ser degredados para as costas do Brasil, nestas costas em que nos primeiros tempos não havia leis ou autoridades, viveriam apenas cometendo o crime da época, que era a escravização da raça vermelha e da raça negra, crime que praticaram todos, nos séculos 15 e 16, e mesmo depois. Não é possível nomeá-los todos e, só menciono alguns que se acham indicados, em documentos e nos genealogistas, até o fim do segundo governo de D. Francisco de Sousa; por isso, encerro provisoriamente esta lista com um tópico de Antônio Knivet na descrição, sem dúvida verdadeira em alguns pontos, mas indubitavelmente fantasiosa em muitas de suas partes. Escreve ele referindo-se a Martim de Sá, seu cabo numa entrada, “Que poder tem o capitão para dar morte a este homem? Não viemos a estes sertões em serviço do rei, se não em proveito próprio, e o capitão, não é mais que um bastardo do governador” (Salvador Correia de Sá) (R.I.H.G.B., vol. 41, pág. 237 da primeira parte). O sertão onde eles estavam, segundo se depreende, era nas proximidades do vale do rio Paraíba, ainda na capitania de Martim Afonso. E o Padre Manuel da Fonseca diz claramente o que era um bastardo nos primeiros tempos coloniais. Entretanto Salvador Correia teve um filho chamado Martim Correia de Sá, que não era bastardo e este foi o pai do famoso Salvador Correia de Sá e Benevides, por sua mãe espanhola D. Maria de Mendonça e Benevides (Camilo Castelo Branco, Serões de S. Miguel de Seide, vol. 2º, pág. 97). Muitos foram os que se aliaram às índias com as quais deixaram numerosa e abundante descendência. Desses, que os inventários dizem apenas “se ter notícia por serem mortos no sertão”, não recolheram os genealogistas os nomes nem as gerações. Muitos dos seus inventários desapareceram, talvez a maior parte, outros não tiveram inventários porque só possuíam os seus cor- Na Capitania de São Vicente 207 pos e as suas vidas. Destes pode-se ainda com trabalho insano fazer a genealogia, catando-os nas Atas da Câmara, no Registro Geral, nas referências dos inventários existentes. No momento só se pode erguer o monumento do “Bandeirante Desconhecido”, como após a primeira guerra mundial se levantou o monumento do “Soldado Desconhecido” Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XI O CRUZAMENTO E A ESCRAVIDÃO C OMO se poderá ler nos capítulos anteriores, os jesuítas, em pequeno número, só dispondo de recursos espirituais, não tinham elementos, como foi reconhecido pelos mais autorizados catequistas nas suas cartas, para, pela só persuasão, cristianizar os indígenas bravios e brutais, e sempre aludiam ao auxílio da espada, da força em suma. Os indígenas, antropófagos, nômades, sem Deus e sem leis, não poderiam por si sós sair da selvageria em que viviam havia muitos séculos. As costas de Vera Cruz cairiam aos pedaços nas mãos de piratas ingleses, holandeses e franceses, movidos pela cobiça e pela avidez do ouro, as quais depois passariam aos respectivos governos, mais fortes, se no século XVI houvessem sido descobertas as minas incríveis, que a fantasia então desvairada concretizara no El Dourado. Tudo assim sucederia se não tivesse havido o cruzamento, o extermínio e a escravidão dos aborígines. Esse cruzamento das raças foi uma experiência, inconsciente sem dúvida, para a civilização da zona contida entre o equador e o trópico e na zona temperada pela altitude. 210 Washington Luís Todos os povos têm as suas origens enevoadas e obscuras. Essa obscuridade engendra fábulas que os pósteros acreditam, cria lendas formosas que arrastam, sustentam, fazem viver e triunfar as nações. São elas inevitáveis e sempre existiram, desde que os Deuses desceram do Olimpo para coabitarem com as gregas e desde que a Loba amamentou Rômulo e Remo. A verdade é que a vida dos povos, que conquistaram, começou sempre pelas guerras, as quais só terminavam com o extermínio ou com a escravidão dos vencidos. Todas as civilizações, em seus inícios, e mesmo em seus períodos adiantados, estabeleceram e mantiveram a escravidão. No Cap. 2º, do Livro 1º de sua Política, Aristóteles, na fase social da Grécia de então, admitia e justificava a escravidão. Estudando os elementos da economia doméstica, considerava ele como partes primitivas e indecomponíveis – a mulher e o marido, o pai e o filho, o homem livre e o escravo – e declara que há pessoas que nasceram para mandar – o senhor – e outras que nasceram para obedecer – o escravo. Do mesmo modo, segundo Gastão Boissier narra, Cícero justificava a escravidão (Ciceron et ses amis, pág. 113) e ninguém ignora que a escravidão sempre existiu em Roma, ainda nos seus períodos áureos. Nos países do mediterrâneo houve sempre escravos. Em todos os países da América, mesmo nas mais adiantadas nações, houve escravos, instituição que durou até os fins do século XIX, em muitas nações. São fases primitivas da evolução social. Mesmo os jesuítas que defendiam a liberdade dos índios, admitiam a escravidão do africano pedindo negros de Guiné para seu serviço (Cartas jesuíticas, vol. 1º, págs. 126, 130, 138 – Manuel da Nóbrega). D. João III, nas cartas de doação a Martim Afonso, autorizava a mandar para Lisboa, dos escravos que resgatasse, 48 peças livres de direitos. No próprio regimento dado a Tomé de Sousa, D. João III mandou cativar e matar dos tupinambás “aquela parte deles que vos parecer que baste para o seu castigo e exemplo. E isso será, porém, com eles ficarem reconhecendo sujeição e vassalagem” (Reg. do Tomé de Sousa – Memórias Históricas e Políticas da Bahia, I. Acioli e Brás Amaral – vol. 1º, pág. 264). Na Capitania de São Vicente 211 O que sucedeu no Brasil, sucedeu em toda a parte. Nos começos, de viver quase paralelo, os povos da Europa não tiveram a seu lado outros mais adiantados que descrevessem, em toda a sua nudez, a barbárie dos seus costumes primitivos. O índio da América encontrou escritores, nem todos inteligentes e de boa-fé, que contaram o estado selvagem em que ele se achava. É evidente que para uma terra bruta, habitada por selvagens, sem produção, sem as mais rudimentares comodidades da vida social, não viriam viver ricos e nobres, filósofos e literatos. Para aí viver sem garantia de espécie alguma, só viriam os forçados pela lei, os que se destinavam ao martírio os degradados pelas justiças da terra e os aventureiros. Para estes últimos a não ser alienados mentais ou tipo lombrosianos, podia-se esperar a consoladora regra de Paulo de Saint-Victor que declarava “que a travessia do oceano purificava”. Na terra, em que não se conheciam princípios de justiça de propriedade e cujo fim único era morrer e matar, não poderia haver ladrões ou assassinos. O homem é o produto da terra em que vive, que ele transforma, como o é das condições sociais que o rodeiam. *** Não há, nas nações, raças puras. É o clima que principalmente faz o homem e a sua raça. E o clima é produzido pela latitude e pela altitude sobre o nível do mar, modificadas pelos seus rios, montanhas e ventos. É preciso reparar em que latitude e em que altitude vivem os homens que criaram a civilização. Repare-se a diversidade dos climas em que ele vive. A mais de sete mil metros de altitude o homem não pode viver, debaixo do equador o homem vive dificilmente. A luta pela vida cria necessidades e obriga o homem a trabalhar para satisfazê-las. Sob os climas frios o homem é obrigado a cobrir-se, a fazer sua cãs, a armazenar víveres e para isso se esforça. Depois dessa necessidade, vem o conforto e em seguida a arte que adorna o vestuário, que embeleza a casa, a gastronomia que torna saborosos os víveres armazenados. Esses homens, pela expansão natural da descendência, para poderem viver, estendem a sua civilização aos outros povos que a aceitam a princípio pela escravidão e depois pelo hábito. Nos trópicos, na selvageria, a natureza aquece os homens e eles andam nus, e só têm casas rudimentares para 212 Washington Luís se acobertar das chuvas, as florestas dão os frutos e a caça para a sua alimentação, como também o fazem os rios dando os peixes. E se lhes faltam esses gêneros de nutrição são eles antropófagos. É a lei do menor esforço. É a vã discussão sobre superioridade de raças. O clima faz o homem e o homem faz a raça, criando o meio, o ambiente, as condições mesológicas, enfim em que ele se reproduz. Os Estados Unidos se estendem de leste a oeste sempre sob quase a mesma latitude, semelhante a da Inglaterra, e lá se exterminou, se escravizou o aborígine e se conquistaram territórios. O Brasil se estende de norte a sul e com zona tórrida. A sua altitude no planalto deu o clima temperado de que gozam os trópicos e permitiu desde cedo o seu maior desenvolvimento. Essa situação geográfica explica suficientemente a diferença do progresso entre os dois países. O nosso progresso tem que ser mais lento mas tem que vir, o que nos deve animar e não abater. Uns se civilizam outros são civilizados. Como em outros países nas costas do Brasil, houve o extermínio de tribos, a escravidão de outras; mas aqui houve também o cruzamento pela religião, pelas leis portuguesas, houve progresso embora lento e foram essas as causa, e primordiais, para a formação do Brasil. Também em outros países houve o cruzamento. Os celtas, os gauleses, os francos e mesmo os árabes, que só foram vencidos em Poitiers e que deixaram descendência cruzaram para fazer a França. Os celtas, os anglos, os saxões, os normandos, cruzaram para fazer a Inglaterra. Os iberos, os lusitanos, os bérberes, os árabes cruzaram para fazer Espanha e Portugal. Os ligúrios, os lombardos, os gregos, os asiáticos cruzaram para fazer a Itália. Nos países do norte os vândalos, os celtas, os germanos, os eslavos, cruzaram para formar a Alemanha. Nos Estados Unidos, país de imigração, há todas as raças. Não posso fazer a enumeração completa das raças que nos diversos países cruzaram, porque me falta competência para isso e seriam necessários estudos que absorveriam uma existência. Sem outras mulheres que as índias, com grande espaço diante de si, sem outro instrumento de trabalho que o índio vencido, essas levas de gente vindas não se sabe como, ou mandadas pela vontade abso- Na Capitania de São Vicente 213 luta e fanática do rei de Portugal sob o domínio das leis portuguesas e sob a proteção da catequese, tornar-se-iam talvez boas ou úteis. O extermínio, a escravidão, e o cruzamento teriam que se impor. Não têm os descendentes dos primitivos habitantes da Capitania de S. Vicente que se orgulhar ou que se envergonhar diante de outros povos, eles que dos primitivos não chegam a ter deles uma gota de sangue, depois dos cruzamentos europeus. Nas Causeries de Lundi (vol. VII, pág. 138) conta Sainte-Beuve que Benjamin Franklin aplicava à fidalguia um método de aritmética moral, segundo o qual um filho pertence por metade à família do seu pai e a outra metade à família de sua mãe e chegava à conclusão provada por algarismos e supondo uma genealogia intacta que na nona geração esse descendente possuiria apenas “cinq cents – douziènes parties” da fidalguia inicial. Adotando-se na aritmética racial o método de Benjamim Franklin, e admitindo-se que, cada indivíduo normal em peso e tamanho, tenha no seu organismo cinco mil gramas de sangue, chega-se à conclusão de que um paulista de quatrocentos anos, descendente dos que se enumeraram acima, após quinze gerações, que tantas são as que se contam desde os primeiros colonos até hoje, esse paulista tem em suas veias apenas cento e cinqüenta miligramas de sangue de João Ramalho ou de Antonio Rodrigues, ou das respectivas princesas, quantidade que equivale a pouco menos de uma gota. Foi esse o cálculo que, sob as bases indicadas, fez um professor da Escola Politécnica de S. Paulo, a meu pedido. É inútil, parece-me, fazer observar que, nas linhas que aí estão, procuro reunir elementos para a futura história da formação territorial do Brasil, e, por conseqüência, não faço obra de moralista. Isto quer dizer que narro, sem os aprovar ou censurar, os fatos que se desenvolveram para a constituição geográfica do país e para a civilização de seus habitantes. E fazendo esta observação repito conceitos expedidos por Ernest Renan, quando estuda As Origens do Cristianismo. Hoje considera-se a escravidão como um sistema violento, desmoralizador, entorpecente do progresso econômico, e, sem dúvida alguma, injusto e abjeto; mas não foi assim nos tempos anteriores. 214 Washington Luís Também não é minha intenção diminuir as glórias dos paulistas ou amesquinhar a fidalguia e a riqueza de seus antepassados. Para sua glória basta relatar o que eles realizaram para a constituição geográfica do Brasil, que ainda hoje é um dos principais feitos de sua História. Mas é de justiça recordar que todo o trabalho começou pela opressão do mais forte sobre o mais fraco; e que, em seguida, a civilização se estabeleceu pela escravidão, imposta por uma raça mais forte sobre a vencida. E a fortaleza aqui não somente deve-se entender fisicamente, mas sob o aspecto moral e intelectual. Para ser justo e imparcial para com esses homens, que foram escravizar os índios para obrigá-los a trabalhar dando-lhes começo de civilização, é imprescindível julgá-los com os princípios e a moral do tempo em que viveram. Se escravizassem, nos nossos dias, seriam eles passíveis de censuras e de condenação: mas nos primeiros tempos coloniais, eles agiram, como agiram os principais povos, as principais pessoas, embora louvavelmente já houvesse quem a isso se opusesse. Com o cruzamento das duas raças, apareceram os mamelucos que herdaram dos pais uma inteligência mais apurada, a iniciativa e a tenacidade nos esforços, as possibilidades da civilização, aprenderam a língua portuguesa e foram feitos cristãos; das mães herdaram a resistência física às agruras do viver sem conforto, a sobriedade na qual o comer não tinha horas marcadas, e, às vezes, nem havia o que comer. Herdaram mais a imunidade às febres, conseguiram a adaptação ao clima áspero e selvagem do sertão falto de todo o necessário, mas abundante de feras, de mosquitos, que dão febres, que matam, em viagens que duravam meses e mesmo anos. Delas herdaram também os ódios de tribos, e, por conseqüência, o gosto indômito de guerrear. Foram eles, foram esses mamelucos, os elementos básicos, indispensáveis para organização das bandeiras e decisivos para o bom êxito das entradas ao sertão, concorrendo poderosamente para conquista e povoação do interior do Brasil. Mas já esses mamelucos não eram selvagens, já possuíam, com força e vigor, os princípios elementares de uma civilização incipiente. Hans Staden, quando escreveu, em 1551 (?), sobre os irmãos Braga, disse que já falavam a língua paterna e a materna e que já eram cristãos, como cristãos eram os descendentes de João Ramalho, conforme, em 1553, relatou Ulrich Schmidl. Na Capitania de São Vicente 215 O negro africano, se algum veio nessa primeira época, foi em pequeníssimo número, e só mais tarde, muito mais tarde, entrou a colaborar, e servilmente, nessa obra. Houve então poucos escravos de Guiné, como eram chamados os africanos. Nessa época, nos inventários processados em S. Paulo, desde 1578 a 1611, ano em que faleceu em S. Paulo, D. Francisco de Sousa, e publicados pelo Arquivo de S. Paulo, nessa época, em que nos inventários, as mais insignificantes coisas se avaliavam, como por exemplo, duas colheres de estanho, três galinhas, uma ceroula velha, meias usadas e quejandas, nessa época poucos foram os escravos de Guiné avaliados para serem partilhados pelos herdeiros, encontrando-se, porém, numerosíssimos índios da terra, indicados como escravos, administrados, ou serviços forros, o que tudo significava a mesma coisa. 1 Não pude fazer estatística rigorosa, nem mesmo aproximada, porque nesse período não consultei todos os inventários; muitos deles desapareceram e outros tornaram-se ilegíveis e não foram publicados; e, provavelmente, as descrições dos escravos nos inventários consultados, não foram talvez completas. Mas só tive esse elemento para distinguir a origem dos escravos. Mesmo sem casamentos, o cruzamento das raças foi grande e talvez maior. Pedro Taques só menciona os que, no seu entender, podiam ser colocados em Nobiliarquia. Os padres da Companhia de Jesus narram, nas suas cartas, que o sertão estava cheio de mestiços, que se asselvajavam, tomavam os costumes dos aborígines, e até os doutrinados fugiam para viver nas selvas. Nessas longas e demoradas, ou não, estadas no sertão longínquo, a mestiçagem proliferava. Nesses testamentos que consultei, raro é aquele em que o testador não se refira a filhos bastardos, havidos com índias da terra, antes, durante e após casamento, e neles sempre os recomenda, para educação, 1 Negros eram chamados os índios da terra, como se vê nos inventários em que são avaliados os tamoios e os outros. Negros de Guiné eram chamados os africanos. No inventário de Henrique da Cunha, vol. 1.º, págs. 223 e 224, em 1624, se descreve uma negra de Guiné, casada com um índio, com um filho de peito e avaliados dois mulatos, seus filhos. 216 Washington Luís aos seus inventariantes e testamenteiros, a seus pais, a seus irmãos, às próprias esposas, que, virtuosas, não se descuidavam desses enteados postiços, sendo algumas delas designadas com o apelido de Matronas, que as tornavam respeitáveis na terra em que viviam. Num desses testamentos (vol. 20, pág. 6) o testador, possuidor de muitos bens e de mais de 500 arcos (índios), ao lado de quatro filhos de seu legítimo matrimônio, diz que não sabe quantos tem bastardos, textualmente diz “que na verdade não sei quantos; são meus quantos as mães disserem”, e todos deviam ser contemplados na terça. Um outro que vivia em um sítio, que pela quantidade de casas mais parecia vila, conforme diz Azevedo Marques nos seus Apontamentos, não casou; Mas deixou treze bastardos com as índias de sua administração, que todos tiveram geração. Luzia Leme litigou judicialmente com seus sobrinhos, filhos de Brás Esteves, seu irmão, para excluí-los da herança por serem bastardos. Afonso Sardinha, o moço, era bastardo. Pero Sardinha, filho deste Afonso Sardinha, o moço, em seu testamento, suplica a seu avô, Afonso Sardinha, o velho, que não deixe ficar escravo o seu bisneto, também de nome Afonso, que ele havia tido com uma índia, Esperança, escrava de Pedro Álvares (vol. 3º, pág. 396). Inumeráveis foram os que não entraram na Nobiliarquia. Essa mestiçagem começou bem cedo, logo nos primeiros dias do descobrimento, graças aos instintos de reprodução dos alienígenas, da indiferença e desprezo do índio pela mulher, e à facilidade de costumes das índias, em estado quase animal. Quando foi distribuída a costa do Brasil em capitanias, com a vinda dos séquitos dos capitães-donatários, ela cresceu; e mais se avolumou depois do governo geral, com a chegada de Tomé de Sousa, que trouxe uma guarnição militar com empregados subalternos de cerca de 400 homens, na maior parte celibatários, e com 600 degradados solteiros, largados nas selvas do Brasil, terra que, pouco depois, seria declarada couto e homízio para os criminosos, exceto os de heresia, moeda falsa, sodomia e traição. Continuou ela crescendo com a vinda das frotas portuguesas, das quais desertava a marinhagem, a tal ponto que uma provisão real proibiu a arribagem ao Brasil de naus que se destinassem às Índias, como já disse. Na Capitania de São Vicente 217 Ela existiu sempre, mesmo nas povoações habitadas pelas autoridades civis e religiosas. Um pouco mais tarde começaram a chegar casais brancos e homens brancos solteiros. Estes se casavam com as mestiças, como o Capitão-mor Jorge Ferreira, que se consorciou com uma filha de João Ramalho. E muitos outros assim o fizeram. Os filhos destes já eram um quarto de sangue, e, pelos casamentos sucessivos com europeus, um oitavo, etc., embranqueceram, formaram, civilizaram uma raça, pela diluição do sangue indígena, permitindo que eles se chamassem brancos, ou que mesmo se tornassem brancos, pela pequena quantidade de sangue indígena, que ainda lhes circulava nas veias. Foi a “equiparação cívica das raças, de cuja fusão saiu grande parte da nacionalidade brasileira” (Frase de Olavo Bilac, em Críticas e Fantasias, pág. 166). Da promiscuidade cautelosa em que os primeiros portugueses viviam com os tupiniquins procedeu essa sub-raça, em que se apoiaram os forasteiros para conquista do sertão, para aumento do Brasil. Depois vieram os casamentos Dessa promiscuidade nasceu essa sub-raça, elemento forte para as contínuas guerras de conquista, que sustentavam contra os aborígines – tamoios, carijós, temiminós, tupiaens etc. – dando os portugueses o auxílio de suas traças e de sua superioridade aos seus sócios e deixando parte dos vencidos inimigos para a antropofagia indígena, que não podiam evitar, e destinando a restante para venda aos navegantes que aí aportavam, ou para as necessidades de suas lavouras. Esposando os ódios hereditários, que acendiam guerras com as tribos vizinhas, esposavam os colonos também as índias prolíferas. Com esses mamelucos, como eram então chamados pelos que os combatiam, se formaram os bandeirantes que compuseram as expedições, que domaram os sertões, e bandeirantes ainda se dizem hoje, e com orgulho, os seus milhões de descendentes. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XII AS ENTRADAS AO SERTÃO T OMÉ DE SOUSA, nomeado Governador Geral do Brasil construiu a cidade do Salvador. Com a pequena ajuda que esperava dos donatários, aos quais foram vagamente deixadas as suas doações, mas sobre as quais deveria e teria de influir poderosamente, foi ele uma espécie de donatário de legado amovível da capitania da Bahia, que depois da morte de Francisco Pereira Coitinho, voltara ao senhorio total do rei. Pequena foi a sua ação na capitania de S. Vicente; mandou inspecioná-la em 1550, e a ela foi em 1553. Pouca coisa há a dizer sobre ele, bem como sobre os demais governadores, exceto D. Francisco de Sousa e Mem de Sá, tendo em vista o limite imposto a este estudo que tem por objeto a Capitania de S. Vicente. Como quer que seja, com o estabelecimento do governo geral se manteve a integridade do imenso território, e sob ele se ia fazer penosa e demoradamente o povoamento do Brasil. Mas o rei de Portugal, não obstante o seu absolutismo, não tinha forças militares suficientes nem dinheiro sobejo para socorrer os donatários, que fizera, ou os governadores que nomeara, nem para de- 220 Washington Luís fender as costas do Brasil, nem tampouco gente para nelas fazer o povoamento. Companhia de Jesus, Realeza de Portugal, Administração Portuguesa não passariam de quase sombras impotentes que, isoladas, não poderiam formar e civilizar um Brasil. O governo geral, em nome de D. João III, os donatários com as doações feitas pelo rei de Portugal, trouxeram as leis portuguesas, “as Ordenações do Reino”, os usos e costumes de Portugal na administração e na justiça, impuseram a língua portuguesa. Os jesuítas se dedicaram à catequese cristã do gentio e os colonos – degredados ou espontâneos – fizeram a mestiçagem com a aborígine e arrotearam a terra com o indígena vencido. Na América Portuguesa foram esses cinco elementos – rei, administração portuguesa, jesuítas, colonos e índios – que juntos nesses primeiros tempos do século XVI constituíram o Brasil territorial, moral e econômico. E esse povoamento e civilização foram feitos, não obstante a animosidade entre eles quase inconscientemente, por assim dizer, à revelia do Governo de Portugal. Como em todo o Brasil, mas principalmente na Capitania de S. Vicente em que se constituiu o Estado de S. Paulo, houve, em conseqüência, uma obra coletiva, embora nela nem sempre os seus elementos primordiais andassem de acordo, e, ao contrário, se hostilizassem, e por vezes se oprimissem violentamente, visto que os fins imediatos por eles visados eram bem diferentes, como adiante se verá. O trabalho dos jesuítas foi incontestavelmente imenso na civilização brasileira; mas dela não foi o único elemento. Houve também 1 outros e valiosos sem os quais ele não se realizaria Os jesuítas se devotaram ardentemente à catequese do gentio, cuja cristianização iniciaram. Se o seu propósito exclusivo triunfasse, S. Paulo seria uma cidade de tupis. Os colonos imigrantes queriam trabalhadores para as lavouras, que abriam, e só os encontravam nos índios, cuja cativação haviam 1 Houve também outras ordens religiosas e o clero secular que concorreram para a civilização. Na Capitania de São Vicente 221 começado; e se eles aí estivessem sozinhos, não tivessem embaraços da catequese cristã, S. Paulo seria apenas um pequeno povoado mestiço de obsoletos proprietários. A ação dos colonos não seria completa sem o auxílio moral da religião. Se somente houvesse a proteção política da administração portuguesa nas terras do Brasil, continuariam S. Vicente e S. Paulo no mesmo atraso, e por muitos anos, como feitorias para tráfico de escravos. O rei, na terra da América, ambicionava a manutenção de seus senhorios, nos quais seus capitães-mores procuravam minas de ouro; e se os seus intuitos fossem inteiramente realizados, S. Paulo ficaria pouco mais que um decaído posto avançado no sertão americano, de que só restariam ruínas. Se esses elementos falhassem, o Brasil continuaria terra de selvagens ou cairia nas mãos de outra nação mais forte. Em qualquer desses casos não seria a nação atual. Mas o choque entre essas forças, por vezes violento, seguido de cooperação, nem sempre previdente, mas inevitável para a sua existência, criou essa terra sadia e dadivosa, o S. Paulo atual, que é obra antiga, e não individual. A colonização do Brasil, entretanto, não procedeu de um sistema, concebido por aplicação de um plano metódico, e em seguida executado obedecendo a um intuito único e previdente; foi-se formando com atos sucessivos, sem íntima ligação entre si, determinados por circunstâncias ocasionais, para remediar ou cortar males do momento. Cativando e cruzando-se os colonos faziam dos vencidos seus aliados. E como essas tribos indígenas se guerreavam continuamente, fácil foi aos colonos levar os seus aliados a combater, matar ou aprisionar os seus inimigos tradicionais. Às vezes esses aliados se revoltavam; matavam os colonos, incendiavam-lhes as fazendas, ameaçando destruir a colônia; mas com as derrotas sofridas, ou eram exterminados ou se submetiam e tornavam-se também soldados das bandeiras. Foi o que fez Roma com os Sabinos e com todos os outros povos da Itália. Em todas as bandeiras, a maior parte dos combatentes eram tropas auxiliares compostas dos índios aliados e amigos. 222 Washington Luís Na carta do Padre Ruyer, de que extratamos dados para recompor a batalha do Mbororé (Nota da pág. 401 deste) se vê que os brancos e mamelucos eram 300 e que os tupis eram 800. Na carta de Domingos Jorge Velho da qual transcrevemos trechos (Vide pág. 358) se verifica que os índios constituíam a maior parte das expedições, e que eram valentes e destemidos quando dirigidos pelos brancos contra os outros índios. A exterminação a princípio e depois a cativação do selvagem boçal foi o primeiro passo para a sua civilização. A liberdade só pode existir para os que a sabem conquistar, defendê-la, mantê-la e dela usar. Os próprios jesuítas faziam os índios trabalhar nas suas fazendas, castigavam-os com rezas de joelhos nas igrejas e faziam com que eles se açoitassem em penitências até fazer sangue cruamente em procissões pelas ruas (Cartas Jesuíticas, vol. 1º, pág. 181 e vol. 3º, pág. 39). Incontestavelmente o sistema dos jesuítas era mais brando, mais humano; mas eles mesmos reconheceram que sem o auxílio da força pouco poderiam fazer. Em vista disso tentaram ensinar as crianças indígenas. Não obstante as ligações com os portugueses, os indígenas, salvo algumas exceções, estiveram algumas vezes em luta com os invasores. Atas da Câmara de Santo André já referem providências e medidas tomadas para se defenderem dos ataques dos índios. No princípio, quando os desgarrados náufragos ou desertores se adaptavam ao viver do indígena, e vendiam os cativos vencidos, alguns permaneceram em relativa tranqüilidade pessoal. Depois, porém, que eles quiseram obrigar os aborígines a trabalhar, a situação mudou e as lutas entre invasores e invadidos começou e continuou sempre até o extermínio ou a domesticação. Mesmo a catequese, por mais brandos que fossem os meios empregados, era sujeição incômoda e penosa para quem estava habituado ao viver solto e indômito das selvas. As próprias cartas dos jesuítas dão disso notícias, como faço notar nos extratos. Estabelecida a Igreja de S. Paulo, no planalto em 1554, os próprios índios amigos e compadres (assim são chamados nas Atas os tupiniquins), em 1562 atacaram a nascente colônia e o próprio colégio e quase os destruíram. Nóbrega e Anchieta fizeram, em 1563, as pazes com os tamoios; e pouco depois esses precários pactos foram quebra- Na Capitania de São Vicente 223 dos, atribuindo uns a culpa à avidez dos colonos, outros à volubilidade dos índios, mas com certeza devido a ambos esses motivos. É evidente que conhecidos todos “os mares nunca dantes navegados”, encontrados novos e desconhecidos continentes, explorados estes em todas as suas costas, examinados em todos os seus contornos, teriam eles que ser penetrados fatalmente em todos os seus recantos, para o reconhecimento dos territórios em suas minúcias, de cursos d’água, de planícies, de montanhas, de possibilidades de riquezas. O devassamento do sertão foi a conseqüência natural do descobrimento do continente. Mais que a curiosidade aventureira e ávida, a necessidade imprescindível de, pela ocupação efetiva, pela posse, assegurar os descobrimentos feitos, iriam impulsionar com ardor insaciável as expedições audacíssimas através dos desertos selvagens ou inimigos. Os navegadores temerários e tenazes seriam substituídos pelos sertanistas atrevidos; as bandeiras iriam ocupar na atenção da História o lugar das frotas. Era natural, lógico, fatal, pois, o esquadrinhamento do interior dessas terras, e as entradas ao sertão teriam que aparecer. O ciclo das navegações seria substituído pelo ciclo das bandeiras em Portugal. As bandeiras, pois, teriam que se formar, que se organizar, teriam que entrar ao sertão, estendendo “a costa do Brasil” (como então se dizia), desde o oceano até o interior desconhecido, revelando os seus territórios, ou então a colonização portuguesa no Brasil teria desaparecido sem deixar vestígios, como a esteira pouco rumorosa de uma canoa solitária, que sulca águas dormentes. Esse devassamento traria as inevitáveis guerras com o gentio. As guerras ou o abandono da colônia: o dilema se apresentava inexorável. Diante dessa alternativa, os moradores da capitania de S. Vicente preferiram duramente, violentamente permanecer, e para isso era necessário escravizar ou exterminar, “conquistar ou ser conquistado; era preciso optar entre essas duas condições extremas, não restando nenhum partido intermediário” (como pensaria Taine – Origines de la France Contemporaine, Le Regimem moderne, Tomo 1º, pág. 67). Mas os portugueses encontraram ainda um partido intermediário, o cruzamento. 224 Washington Luís As bandeiras devassadoras, cativadoras ou exterminadoras, iam-se fazer, e com os mamelucos, para serem proveitosas. As bandeiras, porém, não se formaram antes, nem logo após a chegada da esquadra expedicionária a S. Vicente, em 1532. A partida de 81 homens em direção ao Paraguai – 40 besteiros e 40 espingardeiros, determinada por Martim Afonso, comandada por Pero Lobo e guiada por Francisco Chaves – não foi uma bandeira no sentido paulista, foi uma expedição organizada com elementos da guarnição da esquadra de D. João III, foi uma expedição formada militarmente, tendo por fim escoltar os 400 escravos carregados de ouro, prometidos por Francisco Chaves. Foi toda ela aniquilada pelos índios carijós, quase na foz do rio Iguaçu no rio Paraná. Não teve continuadoras imediatas. O próprio Martim Afonso de Sousa quando em S. Vicente, esperando o resultado dessa expedição, aí soube que ela havia sido totalmente trucidada, não tentou vingá-la. Daí se retirou para Lisboa, determinando a Pero de Goes e a Ruy Pinto que fossem contra os carijós, exterminadores dos seus soldados, determinação que não foi cumprida. Talvez não dispusesse Martim Afonso de forças militares para esse castigo, indispensável para impor ao gentio o respeito ao rei de Portugal. Com a sua retirada para o reino menores seriam ainda as forças de seus prepostos, que não ousaram tentar a aventura (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, pág 276). As bandeiras evoluíram, da feitoria de S. Vicente às entradas, até o rio Paranaíba e até as nascenças do rio S. Francisco, percorreram o rio Paraíba, e pelo Tietê até as reduções do Guairá até o rio Uruguai, aprisionando escravos, até o descobrimento do ouro das Minas Gerais, do Cuiabá, de Goiás, varando todo o centro do Brasil até o Amazonas. A conquista – posse e povoamento da terra – já havia começado com os primeiros homens que “Martim Afonso achou quando cá veio” afeiçoados ao viver do gentio. A feitoria preafonsina já traficava em escravos, como se vê na informação de Diogo Garcia (R. I. H. G. B., vol. 15, pág. 9). Começou depois ela a tratar com o gentio do sertão mais distante, e assim iniciou-se o chamado resgate com o gentio. Era a civilização que começava e duramente, como se sabe. Resgate, palavra então de significação larga e vastíssima, e, por isso mesmo, equívoca, era corrente nos sertões da capitania de S. Na Capitania de São Vicente 225 Vicente nos fins do século XVI e começos do século XVII. As vereanças da Câmara de então a ele se referem e, por vezes, o proíbem. Resgate era o trato do europeu invasor, ou de seus descendentes, com o aborígine nômade. Consistia em trocas, por parte dos colonos, dando bugigangas, miçangas, espelhos, machados, foices, facas, e semelhantes, recebendo, por parte do gentio, os inimigos sobrantes da antropofagia, incluindo também, por vezes, os parentes e até os próprios filhos. Para esse fim os colonos faziam entradas ao sertão. Odiando a civilização, que os obrigava a trabalhar, mesmo abominando a própria catequese, que impunha sujeição aos deveres e às obrigações de uma vida metódica, e ainda pelo próprio instinto de conservação, os índios resgatavam, mas resistiam e repeliam o invasor. Este não desistia. A repulsa ou resistência do gentio ocasionava as chamadas guerras, declaradas justas quando o gentio vinha atacar povoadores e povoações e depredavam fazendas e gado. As leis da metrópole especificavam os casos de guerras justas e defendiam no papel a liberdade do indígena sob graves penas. Mas essas leis eram defraudadas na prática e as guerras tornavam-se inevitáveis, ofensivas. Os próprios tupiniquins, entre os quais viviam os portugueses, já se revoltavam e também atacavam, como em 1562, e já se aliavam às outras tribos atacando e destruindo, ameaçando a existência da própria colônia, como de 1585 em diante. Os sertões foram talados. Vencidos os índios, homens e mulheres, eram aprisionados para o cativeiro e para a mestiçagem. E, então, – também pelo extermínio – alargavam-se cada vez mais a conquista e a posse portuguesas na América do Sul. A pobreza de recursos pecuniários e de gente fizera andar vagarosamente a ocupação, povoamento e colonização do Brasil. A morte de D. João III em junho de 1557 trouxe mais uma causa ao desenvolvimento da colônia americana, com grande influência na administração, pois que o governo do reino foi parar nas mãos de uma regência. D. João III deixara a coroa de Portugal a seu neto D. Sebastião, ainda na infância, e como regente do reino, durante a menoridade, sua viúva, a rainha D. Catarina, espanhola e irmã de Carlos V. 226 Washington Luís Começaram em Portugal as intrigas políticas para dar a regência ao Cardeal D. Henrique, o que se conseguiu em 1562. Esse irmão de D. João III foi o regente até a maioridade de D. Sebastião e, depois de morto este sobrinho-neto, rei até 1580. D. Sebastião, rei, cavaleiro e anacrônico, logo preparou a campanha da África, onde, com o povo válido de Portugal e a maior parte de sua nobreza, pereceu em Alcacerquibir, sucedendo-lhe o Cardeal D. Henrique que governou dois anos, no fim dos quais a descendência legítima masculina da dinastia de Aviz se extinguiu indo Portugal parar às mãos de Filipe II das Espanhas, herdeiro pela linha feminina e que do reino se apoderou pela força em 1580. Esse período de 23 anos (1557-1580), de regências sempre fracas, de rei cardeal e inquisidor-mor, sem herdeiros diretos, fazendo ponto final de uma dinastia, depois da morte de D. Sebastião em África, as hesitações políticas e indecisões administrativas, pressagiando e produzindo perturbações sérias de toda a natureza, esse período, não pequeno para uma terra nascente, deveria refletir-se e se refletiu, na América portuguesa, sem forças para por si só caminhar. Não é possível fazer a História do Brasil colonial sem acompanhar, ainda que de longe, a História dos países europeus. Na Europa, por fim, Filipe II consolidou o seu domínio sobre Portugal anexando-o às Espanhas. Durante um período de 60 anos (1580-1640) o Brasil será espanhol, gozando de muitas vantagens e sofrendo alguns sérios prejuízos. Incontestavelmente a Espanha daquele tempo, ainda que críticos hodiernos achem que ela já ameaçava ruína, era uma das poderosas nações do mundo e aspirava à monarquia universal; e, para isso com guerras dispendiosas, lutou dentro da França contra os Valois, contra as Províncias Unidas da Holanda com opressão violenta, tendo que prover a Itália, organizou a Invencível Armada desbaratada nas costas da Inglaterra a quem queria subjugar, integrando em suas mãos as Índias orientais portuguesas e quase todo o continente americano, então chamado Índias ocidentais. A Espanha não teria também muitas forças para colonização. Suas guerras ocasionavam ataques ao Brasil, então colônia espanhola, por parte de seus inimigos europeus. Na Capitania de São Vicente 227 Em religião mais fanático, em administração mais centralizador que D. João III, Filipe II tudo queria gerir de seu gabinete de Madri. Mandou fazer o Código Felipino, que regulou e consolidou no seu império as relações de família, de propriedade, de obrigações, de recursos, o qual no livro 3º, Título 75, § 1º declara que o rei é lei animada sobre a terra, e que, quem faz as leis, pode desfazê-las se tal convier. As suas esquadras foram, porém, bem mais poderosas que as de D. João III e viajavam o Atlântico para proteção de seus domínios americanos, passavam o estreito de Magalhães para navegar o Pacífico e protegiam o produto das minas do Peru, o ouro do México, e também as costas do Brasil. Mas atraíam também para essas costas os corsários ingleses, holandeses e franceses seus inimigos que, quando não podiam nelas se estabelecer, procuravam enfraquecer, arruinar e destruir os estabelecimentos portugueses e espanhóis. Desse tempo datam os ataques de Cavendish, que saqueando incendiaram S. Vicente. Desses tempos das regências data também o estabelecimento dos franceses na baía do Guanabara, aliando-se aos tamoios. Também desse tempo datam as maiores organizações bandeirantes, como adiante se verá. *** Se as bandeiras se organizaram em todas as Américas, e, de todas as partes tomaram todos os rumos, foi em S. Paulo do Brasil que elas primeiro se criaram, culminaram e se impuseram à História, legando-lhe o nome, que os dicionários recolheram, dando-lhe uma significação própria, mas diferente e que a nobiliarquia local venerou. Tendo sido, em todas as Américas, idênticos os métodos e análogos os processos de devassar, apossar a terra, foram em S. Paulo que se organizaram as maiores e as mais numerosas bandeiras, e, por isso, bandeira tornou-se nome local e bandeirante ficou sinônimo de homem paulista. Mas nelas tomaram parte homens das outras vilas da capitania, das outras capitanias e da metrópole. Uma bandeira se organizava quase sempre sob a direção de um dos principais homens da capitania por seus bens, pelo número de arcos de que dispunham, pelo número de índios escravos ou administrados, 228 Washington Luís ou serviços forros (palavras sinônimas nesse tempo) pela experiência e prática do sertão, e se compunha de número vário de homens, conforme a importância do descobrimento ou o prestígio do cabo ou chefe. Houve bandeiras oficiais, houve bandeiras pequenas e houve importantes. Em regra, nela o chefe reunia seus filhos maiores e algumas vezes os menores, os seus parentes, os seus apaziguados, e milhares de índios auxiliares, aliados ou escravizados, inimigos das tribos que eles esperavam encontrar e combater. Nelas não havia propriamente hierarquia ou disciplina, como hoje compreendem os militares. E chefe era o mais respeitado sendo por vezes nomeado pelo capitão-mor. A obediência dos bandeirantes a seus cabos não era imposta pela força ou em virtude de regras pré-estabelecidas; mas aceita voluntariamente por todos como condição para o bom êxito da empresa, na qual todos eram interessados, tendo em vista a existência individual e a própria existência coletiva. Uma espécie desse instinto coletivo que une todos, quando todos sentem que trabalham perigosamente para o interesse comum. Quando entravam pelo sertão, iam armados de arcabuzes, escopetas, mosquetes, espadas, como armas ofensivas, as melhores da época; e, como armas defensivas, iam com acolchoados de algodão, com que se revestiam, úteis contra as setas indígenas que neles se amorteciam. Os índios auxiliares só dispunham de arcos e flechas, e muitos deles só serviam para transportar pequenas cargas, como ferramentas, e, talvez, algum pouco mantimento para os primeiros dias. Levavam também grilhões para aprisionamento do índio vencido. Nessas guerras, que os índios faziam ou que se faziam aos índios, até quando declaradas justas, nessas guerras em regra não havia combates ou batalhas, não se cogitava de tática ou de estratégia, não podiam mesmo ser classificadas de guerrilhas, eram elas lutas de expediente, com ciladas e perfídias, de parte a parte, nas quais os europeus levavam vantagens pela superioridade das armas e da inteligência, mas nas quais eram também, às vezes, vencidos em emboscadas e devorados depois. Nos meados do século XVI as bandeiras se compuseram, nos primeiros tempos sob a chefia principalmente de portugueses do continente, adventícios e ousados chefes, e, depois, desses mamelucos, portugueses da América que mais tarde foram cabos enérgicos e incontestados. Na Capitania de São Vicente 229 Muitas bandeiras foram comandadas por portugueses reinóis, como as de Antônio Raposo Tavares na destruição da província do Guairá, e mesmo algumas o foram pelos capitães-mores dos donatários, como as de Jerônimo Leitão, Nicolau Barreto e de Jorge Correia e outras por chefes nomeados pelo Governador Geral, como as de João Pereira de Sousa e de André de Leão. Outras foram capitaneadas por paulistas sem mescla de sangue indígena como a de Fernão Dias Pais Leme; mas grande parte o foi por mestiços, em diversos graus, como as de Antônio de Macedo, de Belchior Carneiro, André Fernandes, os dois Anhangüeras, etc. Esses homens não se diziam bandeirantes, nem às expedições chamavam bandeiras. Faziam entradas ao sertão e eram sertanistas. Seus adversários ou inimigos, e eles tinham muitos, denominavam-nos mamelucos, e à terra, donde partiam, alcunhavam de Biserta ou de Nova Rochela (Atas, vol. 1º, pág. 383). Nas citações de seus serviços, a fim de obter das Câmaras, modestas datas de terras ou dos donatários sesmarias no sertão, eles se diziam conquistadores e povoadores, que prontos sempre estiveram para a defensão da terra com suas pessoas, bens, mantimentos e armas (Vide tais declarações nas Sesmarias e Atas da Câmara). Nos fins do século XVI e princípios do século XVII, nos documentos coevos – Atas e Registro Geral da Câmara de S. Paulo, Inventários e Testamentos, – nas cartas dos jesuítas, ou nos livros espanhóis e franceses, referentes às incursões paulistas, não se encontram as palavras bandeiras e bandeirantes.2 2 Entretanto no Registro Geral da Câmara de S. Paulo, V. 1º, pág. 323-4, se encontra escrito que Martin de Sá, servindo de capitão-mor de S. Vicente, nomeou a Ascenso Ribeiro capitão da infantaria e ordenança da vila de S. Paulo o qual tinha debaixo de sua bandeira quarenta soldados em.... de dezembro de mil seiscentos e vinte e um (1621). A provisão foi registrada por ordem da Câmara cujos oficiais foram os vereadores Pedro Taques e João de Brito Cação, o Juiz Bartolomeu Bueno, e o Procurador João Rodrigues de Moura, que funcionaram no ano de 1621 (Atas, vol. 2º, págs. 465 a 472) No mesmo Registro Geral, às págs. 469-70, Álvaro Luís do Valle determina que todos os homiziados venham acudir a seus capitães e “bandeiras”, em 15 de março de 1625. D. Luís de Céspedes y Xeria num relatório de 1628 declara que os habitantes de S. Paulo levantavam bandeiras. 230 Washington Luís Mais tarde, quando das entradas ao sertão resultaram a formação territorial do Brasil e o descobrimento de minas, o bandeirismo deixou de ser uma profissão para ser um título de glória, e da riqueza. Mas conservei as expressões, porque já consagradas, exprimem perfeitamente o que se quer dizer e analisar. S. Paulo, estabelecida no interior do continente sul-americano, situada um pouco abaixo do trópico de Capricórnio, a uns 70 quilômetros do Atlântico, no planalto central, tem uns 750 a 800 metros de altitude, acima do nível do mar. Desde a vista do mar o planalto se inclina para o interior das terras, às vezes com socalcos abruptos; e os rios, que por lá nascem, abrindo a rota com penosos esforços, se afastam do oceano, e correm todos para o sertão a alimentar e a formar os grandes e altos afluentes do rio da Prata, que encachoeiram os seus cursos em bruscos saltos e imensas quedas, que dificultam e, por vezes, impedem a navegação. Só o Tietê, que até o Paraná era a principal avenida fluvial de saída, está eriçado (de corredeiras e de cascatas, e tem dois majestosos saltos, o Avanhandava e o Itapura. Mas havia, por todo o continente sul-americano veredas e trilhos freqüentados pelos índios, depois conhecidos dos sertanistas, que das costas do mar iam até os grandes afluentes do rio da Prata, até os Andes, até a planície do Amazonas. Rios e trilhos constituíam um sistema rudimentar de viação fluvial e terrestre através de campos e da brenha entrelaçada, sombria, úmida e mortífera. De uns e de outros falam crônicas e roteiros. De ambos se serviam os bandeirantes, que partiam de S. Paulo, em seus itinerários atrevidos, revelando uma geografia até então desconhecida. Com a continuada freqüentação da selva, a certa distância dos rios, nas proximidades das veredas e trilhos, na ida, faziam os sertanistas roças de mantimentos para colherem na volta, nas demoradas expedições que faziam. No sertão inimigo não havia estalagens e os sertanistas se alimentavam dos peixes dos rios, dos frutos das árvores, das caças do mato e dessas roças, que nem sempre lhes eram prestadias porque roedores vorazes se antecipavam às colheitas. Esses homens, que compu- Na Capitania de São Vicente 231 nham as bandeiras, não recebiam paga dos chefes nem soldo das municipalidades ou do rei. Ao vesperar das expedições os bandeirantes faziam compras de armas e mais apetrechos para “a entrada em que ora vai o “cabo X” assim declaravam nos seus escritos (títulos de dívida) juntos aos inventários, a créditos pagos na volta em mercadorias, como caixas de marmelada, carne de porco salgada ou em peças do gentio escravizado. Os mais abastados concorriam com os seus escravos, com os seus bens, contando todos com os despojos opimos, os índios, que iriam trabalhar nas suas lavouras. Lembravam-se também, então da vida futura, faziam os seus testamentos em que regulavam o viver de suas famílias, com longas e minuciosas disposições, principalmente espirituais. Em muitos dos testamentos há expressas referências à próxima entrada para descobrimento de minas de ouro e pedras preciosas, referências ostensivas com que pretendiam se resguardar das penas criminais, quando estavam proibidas as guerras e era punida a escravização dos índios. Essa escravização, em certo tempo, foi o fim principal das expedições. Tais testamentos quando feitos em povoado eram deixados em poder das mulheres, que mantinham o lar e guardavam os filhos infantes, porque os maiores de 14 anos, em geral, numa iniciação que enrijava e endurecia, acompanhavam os pais. Áspera e perigosa era a vida no sertão. Árida era a vida de família. Assim se formaram as matronas paulistas e os homens fortes de S. Paulo. Os inventários, os feitos no sertão, eram depois processados na vila de S. Paulo, provida de juízes e escrivães e mais ofícios judiciais, e na volta, os iniciados no sertão eram apensados aos inventários legais. Quando na mata intérmina, ou no descampado sem fim, acontecia morrer o bandeirante, de “flechada de índio” ou de “moléstia que Deus lhe dava”, o que era comum, o cabo da bandeira, que se arrogava todos os poderes, civis e judiciários, determinava o arrolamento dos poucos bens encontrados, quase sempre armas, nomeava escrivão, avaliadores, fazia leilão desses bens para serem arrematados pelos companheiros, a prazo, dando fiadores ao pagamento em povoado, sendo tudo reduzido a escrito, assinado pelos interessados, ou a seu rogo, datado 232 Washington Luís do lugar em que se achavam, quase sempre na margem de um rio, num cabeço de morro, numa maloca de tribo selvagem. Esses arrolamentos feitos no sertão mostram que os bandeirantes, na sua diminuta bagagem, levavam papel, pena e tinta e que alguns eram os que sabiam ler e escrever. É verdade que o papel por lá não abundava. Serviam-se de qualquer um, e, muitas vezes, escreviam no verso de folhas já escritas. É assim que um arrolamento feito nos sertões de Goiás, por 1616 (Inventário de Pero de Araújo – Inv. e Test., vol. 5º, pág. 173) foi lavrado em uma folha de papel em cujo dorso já estavam escritas duas ou três estâncias de Camões, as primeiras do Canto V dos Lusíadas. Em tais circunstâncias os bandeirantes declaravam que S. M. el-rei desculparia o papel usado em tais lugares e mandaria cumprir o testamento. As estâncias dos Lusíadas foram sem dúvida alusivas à longa e incerta expedição que faziam, porque é nelas que Vasco da Gama, em caminho para a Índia, narra a um rei africano “a sua travessia de longa e incerta via”. O poema de Camões teve a sua primeira edição em 1572, e poucos anos após, já os sertões de Goiás o conheciam. Esses inventários demonstram também a pobreza dos bandeirantes, tal a mesquinhez e insignificância do acervo descrito e avaliado, quer no sertão, quer no povoado. Era uma profissão o bandeirismo, mas não era de rosas e a ninguém enriquecia. Só no século XVIII, bem mais tarde, encontram-se alguns paulistas ricos, e de uma riqueza relativa, e isso depois da exploração das minas, e esses não foram os desbravadores do sertão. Mas o principal valor, o valor histórico desses inventários, arrolamentos e testamentos, aparece agora incontestável, porque com os nomes do cabo, do escrivão, do morto, dos avaliadores, dos arrematantes e seus fiadores, dos distribuidores dos índios aprisionados, dos padres que os acompanhavam, todos neles apontados, pode-se recompor a bandeira descobridora com todos ou com muitos dos seus membros; e, pelos lugares em que são datados, podem-se determinar a época e os diversos pontos do sertão atingido, marcando-se assim os sucessivos descobrimentos e posses, que formam o território atual da nação. Assim, as bandeiras foram firmando a sua rota no continente desconhecido com violências e crueldades, com traços de sangue, com sinais de morte. Na Capitania de São Vicente 233 Mas fixavam-na também com sinais de vida, nas roças que plantavam. Muitas dessas roças tornaram-se pousos habituais, sempre indicados nos roteiros escritos ou orais; tais pousos se tornaram arraiais e estes se transformaram em povoações e depois em vilas estabelecendo-se por essa forma a posse efetiva do território, que se alargava cada vez mais, fincando marcos indiscutíveis para os futuros tratados diplomáticos, quando se demarcassem as fronteiras internacionais. No Brasil, isso começou cedo, e durou muito tempo, sendo longa a fermentação. No Brasil, como já fiz notar, os capitães-donatários tinham pouca força e nenhum dinheiro, resultado algum auferiam de suas capitanias; os reis de Portugal e de Espanha, quando não eram pobres, estavam sempre absorvidos e ocupados com guerras européias, que muito de perto os interessavam, prestando apenas à colônia americana uma atenção distraída de administração longínqua e difícil. Aliás, em todas as terras da América, cuja colonização foi realizada com povos europeus, quer portugueses, quer filhos de outros países, foi ela começada com a cristianização ou com o extermínio ou com a escravização ou com esses métodos simultaneamente. Isso foi assim no Brasil; mas isso foi assim em todas as mais partes de todas as Américas. Chamaram-se conquistas, e conquistadores quando os seus membros como Fernan Cortez apoderaram-se dos territórios dos Astecas e dos Maias e dominaram o grande México; ainda conquistas e conquistadores quando Pizarro assaltou as terras dos Incas e suas riquezas, e assenhoreou-se do Peru, ambos na orla do Pacífico. Foram penetrações quando Hudsou navegou o rio e a baía, a que deu o seu nome. Foram expedições, quando De Sotto e sua gente subiram o Mississipi, onde, já de volta, esse chefe encontrou a morte. Foram ainda expedições, quando partidas das margens dos grandes lagos, foram encontrar os altos afluentes do Mississipi, amarrando pelo interior o Oceano Atlântico ao Golfo do México. Destas basta referir aquela de que fez parte o Pe. Marquette da Companhia de Jesus, no último quartel do século XVII. Já vivia ele há muito tempo no Canadá e aí catequizava e aí procurava civilizar os naturais. Conhecia 234 Washington Luís seis ou sete línguas indígenas, entendidas nas margens dos grandes lagos e no S. Lourenço, conhecia a região, os habitantes, os seus hábitos e costumes, mais ou menos nômades. Os índios respeitavam-no, como uma espécie de Pajé, o grande homem preto, assim designando-o por causa da batina negra, que ele usava. O governador de Quebec, Mr. de Frontenac, suspeitava que desses lagos, pelos rios que aí desaguavam ao sul, se poderia talvez chegar ao Oceano Pacífico. Foi então organizada uma expedição, cuja parte militar foi confiada a Jolliet e a parte religiosa e diplomática pertenceu ao Padre Marquette, se é que se podem dar tais qualificativos a tratos com índios selvagens e bravios. Tal expedição chegou às alturas do Arkansas, onde teve notícia da penetração de De Sotto que, vindo do sul em 1541, já havia aí arribado em nome de Castela. Voltou a bandeira canadense, mas sabendo que o Mississipi ia desaguar no Golfo do México. Os fatos se repetiram na América do Norte como já se haviam desenrolado na América do Sul. Frontenac foi uma espécie de D. Francisco de Sousa, governador do Brasil; Jolliet teria sido um Nicolau Barreto e Marquette o Nóbrega do Canadá. No Brasil as entradas ao sertão partidas de S. Paulo se fizeram aproveitando talvez as indicações fornecidas pelos náufragos, semeados pelas armadas anteriores, soçobradas nas costas do novo mundo, os quais, já familiarizados com o gentio da terra, teriam dado sem dúvida os primeiros e incertos roteiros para a procura das riquezas, que a ávida imaginação dos europeus criava ou exagerava desmesuradamente. Essas bandeiras, na faina insaciável do escravo e do ouro, mas trilhando, descobrindo, cruzando, revelando novos territórios em todas as direções, partiram durante largos anos. De algumas delas, quase todas já estudadas, se darão em seguida algumas notícias sobre os seus cabos, sobre a sua composição, sobre os lugares por elas atingidos, com as suas datas, tanto quanto permitirem os arquivos locais. A primeira entrada, esta oficial, partida da Capitania de S. Vicente, segundo os documentos municipais, falhos e truncados, foi a comandada por Jerônimo Leitão. E digo primeira, porque é sobre ela que se encontra documentação oficial nos arquivos locais. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XIII JERÔNIMO LEITÃO A ZEVEDO Marques nos seus apontamentos históricos, dando a relação dos capitães-mores de S. Vicente que, em nome dos donatários, administraram a capitania, informa que Jerônimo Leitão exerceu tal cargo em 1573 e em 1583, e que Antônio de Proença o ocupou em 1580. A administração de Jerônimo Leitão, pois, teria sido feita em dois períodos, tendo entre eles a de Antônio de Proença, de 1580 a 1583. A informação de Azevedo Marques está em contradição com a da Câmara de S. Paulo a 20 de setembro de 1592, (Atas, vol. 1º, pág. 446) que formalmente declara que Jerônimo Leitão foi capitão-mor de S. Vicente durante cerca de 20 anos, espaço de tempo equivalente ao tempo que vai de 1573 a 1592. Em caso de dúvida, deve prevalecer a informação da Câmara da vila de S. Paulo, contemporânea do fato, e em cujos livros, em regra, se registavam as patentes de nomeação. Mas há em outras atas dessa Câmara, informações precisas sobre o longo capitaneato de Jerônimo Leitão, que se prolongou por perto de 20 anos. Assim a 18 de janeiro de 1573 (Atas, vol. 1º, pág. 57) em vereança, com a presença do Sr. Capitão-Governador Jerônimo Leitão se 236 Washington Luís abriu a pauta das eleições locais desse ano. De 1573 a 1578, Jerônimo Leitão continua como capitão-mor de S. Vicente, provendo diversos cargos da vila de S. Paulo (Atas, vol. 1º, págs. 58, 74, 75, 119, 120, 121). Nos anos de 1579 e 1580 não se encontra nenhum registro de provimentos de cargos em S. Paulo, feitos por Jerônimo Leitão. Também não os há feitos por Antônio de Proença, nem nenhuma referência ao exercício deste como capitão-mor. A 11 de março de 1581 aparecem os traslados de provisões expedidas por Jerônimo Leitão, notando-se que em uma delas nomeia justamente Antônio de Proença meirinho do campo da vila de S. Paulo (Atas, vol. 1º, pág 177 e 205). Está bem claro que Antônio de Proença era nesse ano de 1581 um subordinado do capitão-mor de S. Vicente, Jerônimo Leitão, e não tendo sido nesse ano por conseqüência capitão-mor de S. Vicente. Tampouco o foi nos anos de 1584, (Atas, vol. 1º pág. 232) porque nesse ano foi eleito juiz ordinário da vila de S. Paulo, cargo incompatível com o exercício de capitão-mor-loco-tenente do donatário. Nenhuma referência há, no período indicado por Azevedo Marques, nas atas e nos demais papéis da Câmara de S. Paulo, ao exercício deste cargo por Antônio de Proença, ao passo que, nos anos de 1582 e de 1584, período atribuído por Azevedo Marques a Antônio de Proença, se encontram registros de nomeações feitas e atos praticados por Jerônimo Leitão, como capitão-mor-loco-tenente, como também os há nos anos subseqüentes até 1592 em que foi substituído por Jorge Correia (Atas, vol. 1º, pág. 194, 200, 239, 251, 275, 446) nomeado por Lopo de Sousa, por provisão passada em Lisboa em 1590, mas que só foi registrada em S. Paulo a 18 de abril de 1592 (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 39). Frei Gaspar da Madre de Deus não inclui Antônio de Proença na Relação que organizou dos capitães-loco-tenentes, que governaram a capitania de S. Vicente até 1592. É possível que Antônio de Proença, em 1580, tivesse praticado qualquer ato de capitão-mor, substituindo inteiramente Jerônimo Leitão em alguns de seus impedimentos. Disso, porém, não encontrei nos arquivos, que consultei, nenhum documento que o comprove. Jerônimo Leitão, pode-se concluir, administrou a capitania de S. Vicente, como capitão-mor-loco-tenente desde janeiro de 1573 a Na Capitania de São Vicente 237 1592, perto de 20 anos, como disse a Câmara. Possuiu ele a inteira confiança do donatário Lopo de Sousa que ainda em 20 de março de 1588, passou-lhe procuração e ao sobrinho Baltasar Borges, em caso de sua ausência, para tratar de negócios na capitania, como receber rendas etc., entretanto, já aí sendo ele seu loco-tenente (Registro Geral, vol. 1º, págs. 25 a 28). Administrou a capitania prudentemente, a pleno contento dos povos da vila de S. Paulo, assim o declaram a Câmara, os homens bons e moradores de S. Paulo (Atas, vol. 1º, pág. 446). Tinha ele os mesmos sentimentos que os moradores da capitania, e a estes servia conforme os seus interesses e necessidades. Estava Jerônimo Leitão bem radicado na terra, era irmão de Domingos Leitão, este casado com Cecília de Góis, filha de Luís de Góis. Segundo Frei Gaspar, casou em S. Vicente e teve vários filhos, dos quais existia ainda geração em 1792, mas seus descendentes ignoravam que dele provinham (Frei Gaspar – Memórias para a História da Capitania de S. Vicente, pág. 159, da 3ª ed., edição Taunay). Era tio de Baltasar Borges, conforme ainda informa Frei Gaspar, e se encontra cientificado na procuração que passou Lopo de Sousa (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 25 a 28). A sua ação, para a conquista da terra, no combate aos índios inimigos dos portugueses e na expulsão dos franceses, não se limitou ao território, que ia ser capitania de S. Paulo, foi muito além, ainda que dentro das terras doadas a Martim Afonso. Diz a “Informação do Brasil”, de 1584, R.I.H.G.B., vol. 6º, pág. 415: “Na era de 1574 veio o Dr. Antônio Salema com alçada em todo o Brasil”. Ainda no seu tempo, estavam em pé os tamoios de Cabo Frio, grande colheita dos franceses, donde vinham, fazer saltos dentro do mesmo Rio, pelo qual se determinou de lhes dar guerra e assim com o favor da Capitania de S. Vicente da qual veio o Capitão Jerônimo Leitão, com a maior parte dos portugueses e dos índios cristãos e gentios e com esta ajuda cometeu a empresa e acabou de destruir toda a nação dos tamoios que estava ainda com muita “soberba e fortes com muitas armas dos franceses, espadas, adagas, montantes, arcabuzes, etc”... Há confirmação desse feito. Referindo-se à guerra que, em 1579, Antônio Salema fez para exterminação dos tamoios de Cabo Frio, 238 Washington Luís aliados dos franceses e com estes comerciando, Capistrano de Abreu informa que nessa ocasião “foi pedido auxílio da capitania de S. Vicente, de onde partiu Jerônimo Leitão comandando muitos portugueses e índios cristãos.” As forças reunidas, segundo dois contemporâneos, contavam 400 portugueses e 700 índios. Entre os primeiros acham-se Cristóvão de Barros e Antônio de Mariz1 que nela se distinguiu. A 15 de novembro de 1579, estava ele em preparativos para uma expedição, da qual deviam fazer parte Antônio de Macedo e João Fernandes, filhos de João Ramalho, segundo uma carta que lhe escreveu José de Anchieta: mas não se pode determinar o objetivo e o destino, pois muito vagos são os termos dessa carta (Cartas Jesuíticas, vol. 3º, pág. 268). A 10 de abril de 1585 (Atas, vol. 1º, pág. 275), a Câmara de S. Paulo dirigiu longa e interessante representação a Jerônimo Leitão, alegando a situação aflitiva da capitania, na qual desde seis anos tinham morrido mais de seis mil peças do gentio, de câmaras de sangue e de outras moléstias, estando ela sem escravaria para o trabalho de plantações e criação de gado, de que viviam e pagavam o dízimo ao rei, e alegando ainda que o gentio carijó já havia matado dos brancos mais de 150 homens, espanhóis e portugueses, entre os quais os 80 mandados por Martim Afonso pela terra adentro, e até padres da Companhia de Jesus. A Câmara de S. Paulo nessa representação requereu que fizesse guerra a esse gentio carijó, inimigo dos tupiniquins, por mar, pela facilidade de se levar mantimentos, e, vencendo-os fossem eles trazidos ao ensino e à doutrina cristã. Sem essa guerra de escravização e de vingança, a capitania se despovoaria, porque estavam todos dispostos a “largar a terra e ir viver onde tivessem remédio de vida”. Pediu ainda que a respeito fossem ouvidas as demais Câmaras. Recebendo esse requerimento, a 25 abril de 1858, e já havendo lei que regulava as guerras justas, Jerônimo Leitão convocou uma reu1 Antônio de Mariz é nome que aparece nas Atas da Câmara Municipal de S. Paulo, mas sem o dom, como almotacé em 1563 e Juiz em 1564. Ao que parece, José de Alencar tomou esse nome de quem se distinguiu em campanha em Cabo Frio, e dele fez um fidalgo português, um dos heróis do seu romance, O Guarani, estabelecido junto ao Paquequer, um dos afluentes do baixo Paraíba. É essa a opinião de Capistrano de Abreu nos Gravetos da História Pátria, e transcrita na longa nota (b) à pág. 443 e seguintes. Do livro Câmara Municipal por Cortines Laxe. Na Capitania de São Vicente 239 nião dos oficiais da vila de S. Vicente e da de Santos, do reverendo padre vigário da vila de Santos para praticar sobre as coisas dessa guerra. A reunião se efetuou a 10 de junho de 1585, na igreja e ermida do bem-aventurado S. Jorge na fazenda e engenho dos Esquetes (Shetz), termo da vila de S. Vicente, estando presentes os convocados e algumas pessoas da governança das ditas vilas. Nela se tomou a deliberação de fazer a guerra aos carijós e tupiães, contanto que todos os moradores se apresentassem com suas pessoas, armas, mantimentos e escravos, para acompanharem o Capitão-mor Jerônimo Leitão e que os índios vencidos fossem repartidos proporcionalmente entre todos os vencedores “para serem doutrinados, como gentio forro, e dele se ajudarem em seu serviço no que fosse lícito”. Nessa ocasião fora mais deliberado que o Capitão-mor Jerônimo Leitão levaria línguas (intérpretes), para com o gentio tratar e ter comércio de pazes, o que sendo pelo gentio recusado, o dito capitão e com os que em sua companhia fossem determinariam como se havia de haver com esse “gentio, que não quiser vir de paz, de tudo se fazendo autos, guardando sempre o serviço de nosso senhor e o bem e prol da terra”. Tomando conhecimento dessa deliberação a Câmara de S. Paulo deu-lhe o seu completo apoio a 1º de setembro de 1585 (Atas, vol. 1º, pág. 281). A guerra se fez, como se vê da vereança de 17 de outubro de 1585 (Atas, vol. 1º, pág. 286) na qual conta que 3 oficiais da Câmara mandaram chamar os moradores, que estavam na vila, para eleger substitutos “por serem os mais ido ao sertão em companhia de Jerônimo Leitão na entrada que fez ao sertão” ... A 14 de junho de 1586 (Atas, vol. 1º, pág. 297) os oficiais da Câmara de S. Paulo, Jorge Moreira, Gonçalo Frz., Pero Dias, Fernão Dias e Baltasar Rodrigues, reconhecem e desculpam o mau estado dos caminhos e das pontes, pois que “toda a gente do povo estava ausente da capitania com o Capitão Jerônimo Leitão, tendo ido à guerra, ficando apenas mulheres e que por esta razão, por ora, se não podia prover nas pontes. Mas que todavia fosse notificado às mulheres dos homens, a que estavam repartidas às tais pontes, cumprissem a sua obrigação”. A 27 de julho de 1586, Jerônimo Leitão já estava de volta na Vila de S. Paulo de Piratini, e nomeava, por ser muito necessário, Diogo 240 Washington Luís Teixeira, meirinho do campo, por provisão registrada em Ata dessa Câmara (Atas, vol. 1º, pág. 301). Já essa fase da guerra estava terminada; mas a esse termo não se referem os arquivos paulistas. Pode-se, porém, afirmar que não foi então uma guerra de extermínio, porque as entradas continuaram, sendo sem dúvida a reunião, na igreja e ermida de S. Jorge e a determinação tomada no engenho dos Esquetes, o reconhecimento de guerra justa ao indígena da capitania de S. Vicente, guerra que iria durar anos. Em 31 de julho de 1588 os oficiais da Câmara se juntam para eleger um substituto ao Juiz João de Prado, que era ido à guerra (Atas, vol. 1º, pág. 354). Sem dúvida outras entradas foram feitas, e para outros rumos. De uma, pelo menos, falam as vereanças, que não teve sorte feliz. Em 1590, Antônio de Macedo, filho de João Ramalho, meio sangue de índio, e seu companheiro Domingos Luís Grou, casado com Maria da Penha, filha do cacique de Carapicuíba, fizeram uma entrada composta de cerca de 50 homens brancos (Atas, vol. 1º, pág. 403) tendo sido quase toda destruída pelo gentio, o que comoveu profundamente a pequenina vila de S. Paulo, que nesse ano contava apenas uns 140 moradores (Atas, vol. 1º, pág. 410). A respectiva Câmara, abalada pelo fim trágico dessa entrada, dela se ocupou longamente em várias de suas vereanças. A Câmara deu conta minuciosa ao capitão-mor em carta de 17 de março de 1590 (Atas, vol. 1º, pág. 388) informando que os índios estavam amotinados, haviam matado muitas pessoas, confirmando que a entrada de Antônio de Macedo e de Domingos Luís Grou havia sido inteiramente trucidada pelos índios, e que estes vinham sobre S. Paulo. Pediu ao Capitão-mor Jerônimo Leitão que, com brevidade acudisse com a sua pessoa a pôr cobro a tal situação. Nessa carta deu também notícia das atrocidades cometidas, do pavor que reinava, das circunstâncias aterradoras que envolviam o caso, das providências tomadas para a garantia da colônia. Os sitiantes haviam abandonado os seus sítios, fugindo. “Antônio Arenso fugiu do sertão por o quererem assassinar em Jaguari, depois de lhe matar um mancebo chamado João Valenzuela e um índio tecelão. Dois ou três dias antes havia sido morto um filho do Gonçalo Afonso e Isac Dias, e que muitos estavam presos para serem sacrificados. Na Capitania de São Vicente 241 Anunciavam os índios que todos da entrada haviam sido mortos e já os “traziam na barriga” (já os tinham devorado). A Câmara tomou as providências que lhe cabiam e que estavam a seu alcance, mandando construir um forte e tanques em Emboaçava, próximo a aldeia de Carapicuíba, determinou que nessa passagem estivessem um cabo e 15 homens de guarda, estabelecendo vigias, que dia e noite estivessem atentos e diariamente viessem dar conta do ocorrido. Proibiu a exportação de carnes, mandou conservar carnes salgadas e fazer farinha para alimentação “dos possíveis reforços”, a vir do Rio de Janeiro e das outras vilas, ordenou que os moradores se aprestassem com suas pessoas, armas, escravos e índios para a defesa da vila, reclamando desesperadamente munições (Atas, vol. 1º, págs. 393, 398, 401). Parece que os próprios tupiniquins, entre os quais viviam os colonos, aliaram-se, pelo menos em parte, aos inimigos que vinham do sertão. A redação das vereanças não é bem clara. A 13 de abril de 1590, no porto de vila de Santos, Jerônimo Leitão tomou conhecimento das comunicações recebidas e determinou que todos “os homiziados e apelados que estivesse na vila por qualquer motivo, salvo os proibidos na Ordenação, se aprontassem com as suas armas ofensivas e com suas armas defensivas de algodão, contra o gentio topinaen, digo topininiqui, digo topiquanaqui, digo topianaquim (na sua ignorância ou na sua atrapalhação o escrivão usou todos esses nomes confundindo tudo) para aplacar essa “fúria de guerra”, porquanto o gentio já se achava marchando juntos às fronteiras. Igual providência foi por Jerônimo Leitão tomada junto às outras vilas do mar, inclusive Itanhaém, para que todos o acompanhassem na defesa de S. Paulo, suspendendo todas as causas crimes e cíveis ou demandas em andamento. Tudo isso foi apregoado, conforme se vê no termo transcrito no volume 1º das Atas de S. Paulo, págs. 398-399. É provável que tivesse sido reclamado socorro do Rio de Janeiro. As novas que chegavam e se espalhavam eram verdadeiramente aterrorizadoras, pois que constava até que os índios alevantados traziam ajuda dos naturais de Paraopava (Idem, pág. 404). Azevedo Marques, nos Apontamentos Cronológicos, dizia que a 1º de julho de 1590 os índios atacaram a vila, se apoderando dos subúrbios 242 Washington Luís e queimaram a Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Pinheiros. A câmara se fez constar na sua vereança de 7 de julho de 1590 (Atas, vol. 1º, págs. 403 e 404) que os índios depois de terem destruído toda a entrada de Antônio de Macedo e de Domingos Luís Grou atacaram a vila e puseram a terra em grande aperto, mataram três brancos, muitos índios e escravos, feriram a muitos, destruíram muitas fazendas, assim de brancos como de índios e sacrilegamente quebraram a imagem de Nossa Senhora do Rosário de Pinheiros. Os índios foram repelidos e a guerra depois tornou-se ofensiva por parte dos colonos. Desde agosto de 1590 a janeiro de 1591, não se fizeram vereanças na Câmara, porque todos os moradores da vila eram índios à guerra com o capitão-mor (Idem, vol. 1º pág. 409). Muitos dos índios foram aprisionados e reduzidos à escravidão e sobre eles a Câmara providenciou determinando a 15 de junho de 1591 (Atas, vol. 1º, pág. 422) “que toda a pessoa que tivesse escravo macho, trazido desta guerra dos topinaquis, de 14 de anos para riba, os venda para fora da terra sob pena de ser perdido tal escravo que se não vender ... pelo muito dano que se pode seguir em eles fugindo daqui para o campo”. Nessas entradas, em 1590, nessa guerra ofensiva, os colonos tinham atravessados o rio Jaguari (Idem, fls. 388) o seu afluente Pirapetingui (Idem, fls. 423) e atingindo o Parnaíba, onde havia chegado Antônio de Macedo, Domingos Grou e sua gente e em cuja volta tinham perecido (Idem, pág. 423). Os índios foram repelidos, mas não se deram por vencidos nem subjugados. As ameaças, as escaramuças, os ataques prosseguiram. E a Câmara continuava a fazer as suas reclamações, acrescentando que esses índios “eram vizinhos e amigos, eram seus compadres, se comunicavam com os moradores, gozando dos mesmos resgates e de suas amizades”, e que, se não tivessem o justo castigo, reformariam as suas forças e tornaria com mais ímpeto, por ser gente bárbara e usada na guerra, e que eles chegaram a dizer que, acabando com a capitania de S. Vicente iriam ao Rio de Janeiro e mais partes da costa, entregariam o capitão e os padres aos ingleses, e com estes assentariam pazes (Vereança a 7 de julho de 1591, vol. 1º, pág. 404). Na Capitania de São Vicente 243 Descrevendo os fatos e receando a sua repetição a Câmara reclamava nova guerra ofensiva, que assim era lícita e justa e a reclamava com toda a urgência, antes que essas tribos se aliassem com o gentio de Paraupava e com ele viessem em novos assaltos (Atas, vol. 1º, págs. 403 e 404). A situação era grave e uma das mais graves que atravessou a colônia; e, de fato, estavam em perigo a vida dos colonos e a segurança do estabelecimento português. Por essa época, Cavendish atacou e incendiou a vila de Santos e andava rondando as costas do Brasil e nelas não achou nada que o seduzisse. Era necessário meter brio ao capitão-mor e estimular os moradores das outras vilas, e por essa forma escrevia a Câmara de S. Paulo a Jerônimo Leitão e às outras Câmaras. Em vista das reclamações insistentes, a última foi feita a 13 de outubro de 1591 (Atas, vol. 1º, pág. 429 e 431) e após consultas às Câmaras da Capitania, tomando todas as precauções para não se colocar mal com o rei e com os jesuítas, Jerônimo Leitão considerou a guerra justa, tomou a ofensiva e entrou ao sertão, com a gente de S. Paulo e com a gente que pôde obter nas outras vilas da capitania. A que pontos chegaram as entradas comandadas por Jerônimo Leitão? Bem difícil é determiná-los precisamente. Nos nossos arquivos não se encontram indicações do itinerário seguido por Jerônimo Leitão nem região a que ele chegou. O Padre Pablo Pastells, porém, na sua História da Companhia de Jesus na Província do Paraguai (vol. 1º, pág. 195), dá o resumo de uma carta de D. Antônio de Anhasco, datada de 14 de novembro de 1611, dirigida ao Sr. Diogo Marim Negron, Governador do Rio da Prata, em Buenos Aires, em que comunica “que havendo saído de Ciudad Real e estando em uma redução dos Padres da Companhia de Jesus, antes de chegar a Paranambaré, onde é capitão um índio chamado Taubici, na véspera de Todos os Santos, chegou-lhe a notícia de que os portugueses de S. Paulo entravam pelo caminho, que 30 anos antes tinha entrado Jerônimo Leitão com grande golpe de portugueses”. Por esse sertão foi feita, sem dúvida, a entrada. Pode-se apenas afirmar que a primeira expedição foi dirigida contra os carijós que nessa época povoavam o sul da capitania de S. Vicente, porque se descrevem, em inventários, índios escravos da entrada de Jerônimo Leitão. 244 Washington Luís Mas até onde chegou nada se pode adiantar diante do silêncio dos documentos locais consultados. Era o prenúncio da campanha do Guairá. Na segunda entrada a direção foi para o norte, para o oeste. A Câmara de S. Paulo para se defender das ameaças dos índios do sertão e para vingar o destroço da entrada de Antônio de Macedo e de Domingos Luís Grou, já havia mandado fazer o forte e tranqueiras em Emboaçava para as bandas de Carapicuíba. E nas Atas da Câmara se declara que Macedo e Grou atravessaram os rios Jaguari, Piratingui, Mogi, tendo atingido o rio Parnaíba, o que significa que a guerra ofensiva contra esse gentio tomou a direção do noroeste, a mesma, mais ou menos, que 150 anos depois seguiria Bartolomeu Bueno, o 2º Anhangüera, o descobridor de Goiás. Não se conhecem também os incidentes dessas entradas capitaneadas por Jerônimo Leitão; mas os seus resultados não foram decisivos para a segurança da colônia estabelecida no planalto. A entrada de Antônio de Macedo e de Domingos Grou foi a última numerosa feita, sobre o pretexto de resgate. O seu destroço, mostrando o perigo que corriam os colonos, motivou as guerras declaradamente ofensivas e aflitivamente desejadas. Essas guerras fizeram recuar as tribos revoltadas, mas não as venceram totalmente, não estabeleceram a segurança e a paz no planalto de Piratininga. Em 1592 Jerônimo Leitão foi substituído no seu cargo, por Jorge Correia. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XIV JORGE CORREIA P OR provisão de 22 de junho de 1590, expedida em Lisboa por Lopo de Sousa, então donatário da Capitania de S. Vicente, foi “Jorge Correia, moço da Câmara de el-rei nosso senhor”, nomeado capitão-mor-loco-tenente e ouvidor da Capitania de S. Vicente, de cujos cargos tomou posse em 1592, vencendo o ordenado de 50$000 anuais, enquanto servisse os dois cargos, e de 40$000 quando exercesse um só, pagos pelas rendas da mesma capitania, as quais eram bem escassas. O Governo de Jorge Correia não seria feliz. Veio ele encontrar a capitania muito agitada em vista das ameaças de próximos e iminentes ataques dos índios do sertão contra a vila de S. Paulo, vila estabelecida no interior da América Portuguesa, a mais próxima dos silvícolas. As atas da Câmara de S. Paulo dão notícia do estado de espírito dos governantes da terra, que refletia o estado de espírito da maioria dos homens bons e dos moradores da capitania. Sem dúvida da maioria, mas não da totalidade, pois que alguns pensavam como os jesuítas em relação aos índios. Nem todos eram pela guerra contra o gentio. Os jesuítas tinham também os seus partidários. 246 Washington Luís O Governo de Jorge Correia foi reacionário ao do seu antecessor. Os oficiais da Câmara reclamaram com energia e vigor a necessidade da declaração de guerra justa contra o gentio, para defesa imediata e conseqüente ofensiva no sertão. Era um dos momentos críticos para a existência colonial do planalto. O novo capitão-mor não via, ou não quis ver, o perigo que representava para a colônia a vitória dos índios. Talvez considerasse exageradas as reclamações da Câmara. A verdade, porém, é que ele veio partidário da orientação dos jesuítas, talvez a seu ver mais acertada. Esta afirmação é justificada pela sua conduta em S. Vicente, conforme diz Azevedo Marques em seus Apontamentos, parte cronológica, a 14 de novembro de 1593, em que afirma que Jorge Correia, de acordo com os Padres da Companhia de Jesus, resolveu impedir a guerra contra os índios tupiães e tupiniquins. Que Jorge Correia foi partidário e amigo dos jesuítas é incontestável. Em 11 de junho de 1638 fez doação por escritura de todos os seus bens ao Colégio S. Miguel dos Padres Jesuítas em Santos (Cartório da Tesouraria da Fazenda de S. Paulo, maço 4 de próprios nacionais, citado pelo mesmo Azevedo Marques). Esta doação é confirmada na relação dos bens confisca dos aos Jesuítas, quando de sua expulsão no século XVIII no tempo de Pombal e de D. José I. Nessa relação (pág. 345 e seguintes dos Documentos interessantes, fascículo nº 44 do Arquivo do Estado) encontra-se notícia da doação entre vivos, feita em 1638, por Jorge Correia à Casa de S. Miguel de Santos de todos os seus bens, entre eles moradas na vila de S. Paulo e terras na borda do campo, para com o produto serem compradas casas, cujo rendimento seria destinado a sustentar os reverendos padres jesuítas. *** Em abril de 1592, começou ele a sua atividade administrativa na vila de S. Paulo e seu termo, pelo provimento dos cargos locais. Assim em 25 de abril fez a nomeação de Gaspar Colaço para capitão e língua da aldeia de S. Miguel; a 9 de maio a de Belchior da Costa para escrivão e tabelião da Câmara, do judicial e notas, almotaçaria e órfãos. Na Capitania de São Vicente 247 Por provisão de 20 de abril desse ano nomeou para uma entrada Afonso Sardinha (Reg. Geral, Pág. 51) capitão da vila de S. Paulo, provisão que foi apresentada a 2 de maio desse ano à Câmara (Atas, vol. 1º Pág. 439). Afonso Sardinha apesar de procurar viver bem com os dois partidos – colonos e jesuítas – era conhecidamente favorável à Companhia de Jesus, sua futura legatária universal (Documentos Interessantes do Arquivo do Estado de S. Paulo, vol. 44). A Câmara de S. Paulo apesar de considerar Afonso Sardinha apto para fazer a entrada, opôs objeções, sendo afinal a 30 de maio trasladada a provisão (Reg. Geral. vol. 1º, pág. 51). No mesmo mês de maio de 1592 a Câmara e o povo da terra, entre outras coisas, praticaram que havia dois ou três anos que estavam em guerra e que eram necessárias providências enérgicas para defesa da vila e para ofensiva no sertão; e, reclamando-as do capitão-mor, apelaram para o Governador-Geral e Ouvidor-Geral do Brasil (Atas, vol. 1º, págs. 442-443). As providências do Capitão-Mor Jorge Correia eram, entretanto, todas no sentido de evitar a guerra ofensiva. A 20 de setembro de 1592, lançou uma provisão que alvoroçou a vila de S. Paulo. A Câmara se reuniu nesse mesmo dia, convocou o vigário da paróquia, Padre Lourenço Dias Machado, os homens bons que já haviam administrado a vila desde o tempo em que a sede estava em Santo André, todo o povo enfim, para ler e ouvir a inopinada provisão, na qual mandava entregar as aldeias dos índios aos padres da Companhia de Jesus. A provisão foi largamente debatida, sendo considerado que Jorge Correia, vindo de pouco do reino de Portugal, “não tinha tomado bem o ser da terra” e a necessidade dela; que Jerônimo Leitão, aí Capitão-mor por cerca de 20 anos, conhecedor dos negócios locais jamais quis fazer tal entrega, que contrariava os índios amigos e deixava a terra à mercê dos inimigos. Foi resolvido não se obedecer à provisão e a ela pôr embargos, sendo, entretanto, conservado aos padres da companhia o direito de doutrinar e ensinar os índios sem impedimento algum, como sempre o fizeram. Das 77 pessoas presentes a esse ajuntamento, 5 votaram contra a deliberação municipal e foram o Vereador Antônio Preto, Estêvão Ribeiro, o velho, e Belchior da Costa, escrivão, e mais dois do povo – 248 Washington Luís Brás Esteves e Pero de Campos que fizeram declarações – ao todo 72 a favor e 5 contra a atitude assumida, todos assinando a vereança (Atas, vol. 1º, págs. 446 a 448). Tal provisão abalou profundamente a Câmara e o povo e deu sério alarma aos moradores da vila. Foi o primeiro embate público do conflito entre os jesuítas e os colonos, latente desde o início da catequese em 1549. Eram os dois sistemas de civilização aplicados ao selvagem – de um lado a domesticação do indígena pelo cativeiro e pela mestiçagem, de outro lado a catequese católica exclusiva e a administração do gentio pelos padres da Companhia – que abertamente se encontravam frente a frente. A linguagem da Câmara nessa vereação foi hábil, firme se bem que respeitosa. Os colonos apresentaram embargos à provisão de Jorge Correia perante o Governador-Geral do Brasil na cidade do Salvador, na Bahia. As guerras alegadas nos embargos eram temidas conforme diziam as Atas, mas eram ao mesmo tempo ambicionadas; teriam sido provocadas pelos colonos com as suas entradas ao sertão, a princípio para resgate com o gentio e em seguida para cativação do braço para as suas lavouras, ou teriam sido começadas pelo próprio gentio, cuja primordial preocupação da existência era fazer a guerra uns contra os outros, umas tribos contra outras tribos, contra os portugueses que invadiam as terras, contra todos em suma. Mas as ameaças e os ataques dos índios continuavam, os povos queriam a guerra, reclamavam entradas ofensivas. Os jesuítas persistiam em opor a elas hábil resistência. A orientação governamental, que Jorge Correia trouxe do reino, ou a influência jesuítica, que na colônia sofreu, encontrava de frente os interesses dos colonos e indicava o perigo para a colonização portuguesa. Diante dessas dificuldades o capitão-mor hesitava e procurou contemporizar. Na provisão de 30 de setembro de 1592, registrada a 10 de outubro desse ano (vol. 1º, pág. 59 – Reg. Geral), Jorge Correia determinou que Afonso Sardinha, em seu nome, fosse ao sertão, a ver o estado dos contrários ou a dar-lhes guerra com a maior segurança, levando a Na Capitania de São Vicente 249 gente de Piratininga e os índios dessa terra, ordenando que as pessoas e justiças da capitania o conhecessem como capitão dessa entrada. Mandava fazer um reconhecimento, e dava a responsabilidade e a iniciativa da guerra aos moradores da vila. Foi nessa época, a 13 de novembro de 1592, que estando de caminho para a guerra, Afonso Sardinha fez o seu longo testamento. Nesses tempos absolutos, nesses tempos de extremo fervor religioso, Afonso Sardinha e a gente de Piratininga tiveram medo de justificar a fama de nova Rochella, que já se aplicava à vila de S. Paulo. Essa medida protelatória, essa entrada, pouco resultado produziu, apesar de em alguns inventários se encontrar descrição de índios da viagem de Afonso Sardinha (Inv. e Test. vol. 1º, pág. 2(0), os quais poderiam ter sido cativados em outras expedições. A maioria da opinião continuava superexcitada reclamando a guerra ofensiva contra os índios; mas dividida, uns do lado dos jesuítas, outros do lado dos colonos. Algumas Câmaras mesmo, como a de Santos e a de Itanhaém e seus povos foram contrários à guerra. Na vereança de 5 de dezembro de 1593, a Câmara de S. Paulo convocou os homens bons da vila e perante eles se leram as cartas (Vol. 1º, pág. 476) dessas duas Câmaras que entendiam “não dever se fazer tal guerra porque o gentio não nos dava opressão”. As Câmaras do litoral estavam longe, e só temiam os ataques dos piratas ingleses. A Câmara de S. Paulo, para justificar a sua reclamação, fez vir alguns dos moradores da vila – Belchior Carneiro, Gregório Ramalho, filho de Vitorino Ramalho, e neto de João Ramalho, Manuel, índio cristão de S. Miguel, irmão de Fernão de Sousa, Gonçalo Camacho – que tinham feito parte da Companhia de Antônio de Macedo e de Domingos Luis Grou, restos da expedição, a fim de juramentados sobre um livro dos Santos Evangelhos, declarassem o que se passou com o gentio de Bongi que havia assaltado e desbaratado a Companhia de Macedo e de Grou. Disseram eles que os índios de Mongi, pelo rio abaixo de Anhembi, junto de um outro rio de Jaguari, esperaram toda a entrada, e foram dando, matando, desbaratando a uns e outros. Nesse transe “foram 250 Washington Luís mortos Manuel Francisco, o francês Guilherme Navarro, e Diogo Dias; Francisco Correia, Gaspar Dias e João de Sales levaram um tiro; um moço branco cunhado de Pero Guedes, ou de sua casa, e Gabriel da Pena também foram mortos, fora Tamarutaca, do qual não havia notícia”. “Levaram cativas muitas pessoas e muita gente tupinaem, e apregoavam nova guerra por novos caminhos para novos ataques e depredações”, razão pela qual era necessário ir fazer-lhes a guerra e com toda a brevidade. Era a confirmação dos ataques e assaltos mencionados na vereança de 17 de março de 1590. Em vista disso foi requerida a presença do Capitão Jorge Correia, que, vindo, ouviu a leitura das cartas escritas pelas Câmaras litorâneas, a refutação a elas pelos sobreviventes da Companhia de Macedo e de Grou, e os protestos da Câmara, que o responsabilizavam perante Deus, Sua Majestade e o senhor da terra, por todos os males que caíssem sobre a vila, visto estarem todos prontos com suas armas e sua gente a acompanhá-lo ao sertão. Jorge Correia ainda procurou contemporizar dizendo ser necessário pedir socorro ao Rio de Janeiro, falou ainda nos perigos dos inimigos piratas que vinham por mar, a que primeiro se devia acudir, sendo talvez insuficiente a gente da capitania para as duas guerras. Mas a Câmara insistiu declarando que “bastava a gente da capitania para a guerra do sertão contra o gentio de Bongi, que estava já entre mãos, e que se acudisse também ao mar e se lhe desse também o remédio possível e com a mesma gente do mar, pois que para tudo havia gente”. O Capitão Jorge Correia prometeu que tudo proveria como era sua obrigação e que todos estivessem prestes para o seguir e o acompanhar (Atas – vol. 1º, págs. 477, 478 e 479). Entretanto os embargos opostos pela Câmara da vila de S. Paulo à provisão do capitão-mor e ouvidor da Capitania de S. Vicente, que ordenava a entrega aos padres da Companhia de Jesus das aldeias de índios, foram levados ao Governador-Geral na cidade do Salvador, na Bahia, por Atanázio da Motta e iriam lá encontrar favorável acolhimento por motivos que serão adiante explicados. Tais embargos não foram, porém, registrados nos livros da Câmara de S. Paulo, nem nos da sede da capitania, mas ainda que nesta Na Capitania de São Vicente 251 o tivessem sido, nada deles se poderia saber, porque o antigo arquivo de S. Vicente, como se sabe, desapareceu totalmente, e há muito tempo. Mas é lícito supor que, com mais veemência e com mais paixão, repetissem os argumentos expostos na vereança de 20 de setembro de 1592, mostrando os perigos do cumprimento da provisão embargada. Não sendo possível conciliar colonos com índios e com jesuítas, ou porque tivesse tido conhecimento de que o Governador Geral do Brasil receberia bem os embargos da Câmara da vila de S. Paulo opostos à sua provisão, ou porque realmente reconhecesse que o movimento hostil dos indígenas do sertão punha em perigo os bens do senhor da terra e os senhorios de el-rey, e, portanto, a própria existência da colônia ou por todas essas razões juntas, Jorge Correia em 1594, capitaneando os moradores da vila de S. Paulo, “fez uma entrada ao sertão, a dar guerra ao gentio inimigo vindo a esta vila de S. Paulo a dar-lhe guerra e pô-la em cerco”, assim o declara a provisão em que Sebastião de Freitas é feito cavaleiro a 26 de junho de 1600 (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 105). 1 Mas a sua resolução foi tardia. No tempo em que a Câmara opôs embargos à provisão de Jorge Correia, pela qual, na capitania de S. Vicente, as aldeias de índios seriam entregues aos jesuítas, o Governador-Geral do Brasil era D. Francisco de Sousa. 1 Na provisão, em que D. Francisco de Sousa armou cavaleiro a Sebastião de Freitas, a 16 de março de 1601, também se declara que Manuel Soeiro fez uma entrada ao sertão no ano de 1595, como está publicado no Registro Geral, Vol. 1º, pág. 105. Quando consultei o Arquivo Municipal, em 1902 e 1903, essa provisão estava registrada na página 22 v. do livro que então tinha o nº 55, e nas entrelinhas estava feita, com letra já antiga, a “tradução” dessa provisão e aí se lia Capitão Manuel Soeiro. Manuel Alves de Sousa a seguiu a tradução e assim foi publicado no primeiro volume do Registro Geral, pág. 22 v. Naquela ocasião pareceu-me que não era Soeiro o nome do capitão, mas Oliveira, em breve, ou Ribeiro. Assim notei nos meus apontamentos, decalcando a grafia do escrivão, aliás, péssima. Em verdade, porém, posso afirmar que não encontrei em nenhum documento, quer do Arquivo Municipal – atas, requerimentos, termos, etc. – quer do Arquivo Público do Estado de S. Paulo – inventários, testamentos, justificações, etc. – o nome Manuel Soeiro nem referência a entradas ao sertão em 1595. Talvez houvesse; mas os arquivos por mim consultados foram silenciosos. Sumário 252 Washington Luís D. Francisco de Sousa deu provimento a esses embargos, suspendeu Jorge Correia do cargo de Capitão-Mor de S. Vicente, emprazou-o a ir à Bahia para se defender na devassa, que contra ele mandou instaurar. E, enquanto durasse a suspensão, nomeou para substituí-lo a João Pereira de Sousa, com dois ajudantes, Simão Machado e João Batista Malio, para proverem os negócios da capitania, e deu-lhe posse na mesma cidade do Salvador, na Bahia, recomendando-o em uma carta à Câmara de S. Paulo. João Pereira de Sousa partiu imediatamente para o Sul. Próxima página Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XV JOÃO PEREIRA DE SOUSA D E posse de sua nomeação e da carta de recomendação fei- tas por D. Francisco de Sousa, João Pereira de Sousa partiu da Bahia e à Câmara de S. Paulo apresentou-se a 8 de abril de 1595, tratando logo de partir para o sertão. Alguns cronistas acrescentam aos três nomes deste capitão de S. Vicente mais o sobrenome de Botafogo e chamam-no João Pereira de Sousa Botafogo. Nos arquivos públicos de S. Paulo, quer no estadual quer no municipal, só o encontrei com os três primeiros nomes “João Pereira de Sousa”. D. Francisco de Sousa, na patente da nomeação, apenas deu-lhe o nome de João Pereira de Sousa. No auto de posse e na ata, em que se lê a carta de recomendação, só constam os três primeiros nomes (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 74). No inventário que se procedeu no sertão da Parnaíba por morte de João de Prado, feito por ordem de João Pereira de Sousa, este só assinou os três nomes, e por oito vezes, em diversos termos. O escrivão do arraial só mencionou estes nomes nos diversos termos que lavrou (Inv. e Test. vol. 1º, pág. 77). Página anterior 254 Washington Luís Na correspondência entre a Câmara da vila de S. Paulo e o donatário Lopo de Sousa referindo-se a este cabo de bandeira, em 1606, só com os três primeiros nomes é ele mencionado. Em diversos lugares, em diversos atos, em diversas épocas só se encontram os nomes João Pereira de Sousa, e jamais com o acrésci1 mo de Botafogo. A Câmara, logo que ele chegou, tomou imediatamente conhecimento da patente, leu a carta, obedeceu e determinou que a provisão fosse registrada nos livros do conselho, o que foi feito sem demora. É bem fácil de calcular a satisfação com que a Câmara registrou. O seu triunfo, ansiosa como estava, por uma guerra contra o gentio que ameaçava os interesses e a existência da colônia. João Pereira de Sousa era um impetuoso, e mais ainda se tornou sentindo-se apoiado pelo Governador-Geral. Começou logo a agir, e sem habilidade, na formação de uma entrada ao sertão. Indispôs-se com os dois ajudantes, aos quais desdenhava de ouvir, com as Câmaras do litoral a que não ligou importância e com os jesuítas que não queriam a guerra com o gentio. 1 O Dr. Vieira Fazenda, num artigo sob o título O Palacete Abrantes (R. I. H. G. B. tomo 89 correspondente ao volume 143, ano 1921, Pág. 451) depois de lembrar que a Praia de Botafogo, no Rio de Janeiro, segundo Gabriel Soares de Sousa, chamou-se Enseada de Francisco Velho, acrescenta: “A atual denominação proveio de ter nessa enseada grande sesmaria João Pereira de Sousa Botafogo. Foi casado com D. Maria da Luz Escossia de Drummond, natural da Ilha da Madeira, na qual os seus ascendentes se refugiaram para evitar perseguições religiosas. Desse casal proveio D. Maria de Sousa Brito. Casou com Heliodoro Ebanos, que da Capitania de S. Vicente acompanhou Estácio de Sá do qual era primo-irmão”. Não tendo tido ainda ocasião de estudar tal sesmaria, apesar das numerosas pesquisas feitas, não posso afirmar ou negar que esse João Pereira de Sousa Botafogo seja o mesmo capitão-mor de S. Vicente em 1595. Esses sobrenomes “Pereira“, “Sousa”, eram muito comuns em 1595 e hoje, ainda o são. É possível também que designem pessoas diferentes, o que parece mais provável. Só um estudo sobre melhores documentos pode decidir o caso. Há, porém, no Rio de Janeiro descendentes de João Pereira de Sousa Botafogo, que foram consultados e nada puderam adiantar a respeito. Na Capitania de São Vicente 255 Os dois documentos – provisão e carta – devidamente registrados na Câmara de S. Paulo, estão publicados no volume 1º das Atas, às fls. 503, e no volume 1º do Registro Geral, às fls. 74 e seguintes. E, para que não reste dúvida alguma sobre o conteúdo dos dois documentos vão eles transcritos, em seguida: “Aos oito dias de abril de 1595 os oficiais da Câmara se ajuntaram nela para assentarem coisas necessárias ao bem comum e ali apareceu o Sr. João Pereira de Sousa com uma provisão de capitão desta capitania e uma carta do Senhor Governador-Geral D. Francisco de Sousa, a qual se leu e obedeceu e se mandou que se registrasse a dita provisão e eu Belchior da Costa o escrevi – Jorge Moreira – Gaspar Fernandes – João Sobrinho – Josepe de Camargo. “Traslado da provisão de João Pereira de Sousa de capitão desta capitania de S. Vicente”. “Dom Francisco de Sousa, do Conselho de el-rey, nosso senhor, Governador deste Estado do Brasil, etc. Faço saber a todos e quaisquer justiças da Capitania de S. Vicente, a que esta minha provisão for apresentada e o conhecimento dela com direito pertencer que eu ora mando vir emprazado a esta cidade e alçada a Jorge Correia, lugar-tenente e capitão e ouvidor da dita capitania e outrossim devassar dele por mo requererem as câmaras principais de Santos e S. Vicente por seu procurador bastante Atanazio da Mota por.... lugar-tenente se dizer... bem em seus cargos... sua majestade... bem comum da república como... que dele... foram apresentados as ditas... pelo dito Atanazio da Mota... por esta razão dita vaga a dita capitania enquanto se tirar esta devassa e fizerem deligências, que mando fazer, para se saber a verdade do conteúdo dos ditos capítulos hei por bem e serviço de sua majestade de prover por capitão da dita capitania de S. Vicente a João Pereira de Sousa por ser pessoa benemérita e de que confio faça o que convém ao serviço de sua majestade e obrigação do dito cargo e para que nele corra com mais brevidade e inteireza lhe nomeio para seus adjuntos a Simão Machado e João Batista Malio para todos três determinarem os casos e negócios da dita capitania como lhes parecer justiça e aumento......... o qual cargo o dito João Pereira de Sousa servirá enquanto eu o houver por serviço de sua majestade e o dito senhor não mandar o contrário......... ordenados, pios e percalços ao dito cargo per- 256 Washington Luís tencentes assim e de maneira que.......... o dito Jorge Correia, e ele me deu... mensagem da dita capitania obrigando-se na forma dela coma é costume e houve juramento perante mim dos santos evangelhos de bem e verdadeiramente servir o dito cargo guardando em tudo o serviço de sua majestade e as partes o seu direito, pelo que mando as justiças da dita capitania que tanto que o dito Jorge Correia for suspenso do dito cargo de capitão e ouvidor, por virtude da provisão – que para isso mando passar, seja logo metido de posse o dito João Pereira de Sousa com os ditos declarado e que esta cumprisse.................... Falta nesse registro a parte final da provisão; e isso é notado pelo publicador dos livros, Manuel Alves de Sousa, no volume primeiro do Registro Geral. O que falta, no Registro, pouca coisa é do final costumeiro das provisões, o que não invalida o seu conteúdo. Os dizeres principais do título de Capitão-Mor de João Pereira de Sousa encontram-se aí trasladados. A data de sua transcrição pode ser determinada pela vereança de 8 de abril de 1595, pois nesta data manda a Câmara fazer o registro dessa provisão. No livro, o registro anterior ao da provisão é de 8 de abril de 1595 e refere-se a uns chãos concedidos a João Maciel. É natural que João Pereira de Sousa fizesse o registro da sua provisão no mesmo dia em que foi ele ordenado, isto é, a 8 de abril de 1595. Mas, para provar que a nomeação de João Pereira de Sousa, para capitão da capitania de S. Vicente, foi feita por D. Francisco de Sousa, Governador-Geral do Brasil, bastaria a vereança de 8 de abril de 1595, que está íntegra, na qual a Câmara determina o registro. Esses são documentos autênticos com mais de três séculos de existência, ou exatamente com 356 anos neste abril de 1955. À vista desses documentos, cuja veracidade não pode ser contestada, a hipótese aventada por alguns cronistas de que João Pereira de Sousa tivesse sido um falsário ou que, com uma provisão falsa, se tivesse apoderado do governo da Capitania de S. Vicente, fica completamente aniquilada. Essa hipótese, sem nenhum fundamento de valor, originou-se da má interpretação de uma carta dirigida a 1º de dezembro de 1605 por Lopo de Sousa (Atas, vol. 2º, pág. 175), donatário da capitania de S. Vicente, à Câmara de S. Paulo na qual há o seguinte trecho: Na Capitania de São Vicente 257 “Pela carta dessa Câmara que me foi dada entendi e me maravilhei das maldades e traições de João Pereira de Sousa, e atrevimento tão grande como foi levar uma provisão falsa minha e uma provisão para cobrar o meu o que tudo na forma que apresentou era falso, porque quando a minha verdade não bastara para prova disto, bastava a morte que teve de sua maldade e traição porque não sou eu o senhor que disponha um homem sem culpa, nem pelos maiores interesses do mundo, pelo que advirto a essa câmara e ela o faça as mais que isto foi engano e falsidade” etc. etc. Essa carta, como tudo que escreveu Lopo de Sousa, é realmente confusa. Escrita a 1º de dezembro de 1605, nela acusa João Pereira de Sousa de maldades, atrevimentos, traições, falsificações de provisões e já se refere à morte desse capitão-mor. A carta da Câmara de 13 de janeiro de 1606 (Reg. Geral, vol. 7º, pág. 110) não é resposta a essa, porque alude a uma trazida por João Pereira de Sousa, que Deus levou. Houve, pois, de Lopo de Sousa uma anterior à de 1º de dezembro de 1605, da qual esse capitão só poderia ser portador estando vivo, a qual entretanto não consta no arquivo municipal. As atas e o Registro Geral da Câmara da vila de S. Paulo, correspondentes aos anos de 1602 a 1607, desapareceram, não tendo sido publicadas; não se pode, por conseqüência, verificar os termos da correspondência trocada, nesse período, entre o donatário e a Câmara de sua vila de S. Paulo. Mas pode-se concluir que Lopo de Sousa era um trapalhão ou não foi sincero na carta de 1º de dezembro de 1605 como se vai ver. Desde já é de estranhar que fazendo tão mau e deprimente conceito sobre João Pereira de Sousa o encarregasse de levar cartas à Câmara da vila de S. Paulo. A autoridade de Lopo de Sousa foi muito pouco respeitada na sua capitania de S. Vicente; e D. Francisco de Sousa, quando para ela se passou, em 1599, aí exerceu não só as suas atribuições de Governador-Geral do Brasil, como absorveu e exerceu todos os poderes do donatário, e mesmo as funções de Juiz, como se pode ver no inventário de Belchior Carneiro (vol. 2º, pág. 165), e até as dos próprios capitães por ele nomeados. 258 Washington Luís Nenhuma atenção deu ao donatário aos seus direitos, agiu como se não houvesse donatário. Nomeou tantos capitães-mores quantos quis, ou julgou necessário para o descobrimento de minas, em que se empenhou a fundo. E quando os capitães-mores nomeados pelo donatário estavam com ele de acordo, acrescentava-lhe atribuições judiciais, como no caso de Roque Barreto que, nomeado somente capitão por Lopo de Sousa, foi por ele nomeado também ouvidor da capitania (Reg. Geral. vol. 7º, pág. 89). O próprio Lopo de Sousa, sem coragem ou sem forças ou sem prestígio para fazer valer os seus direitos, também atabalhoadamente fazia nomeações para a sua capitania. Assim verifica-se na provisão em que nomeou Antônio Pedroso de Barros e Pero Vaz de Barros, a 21 de novembro de 1605 (Atas, vol. 2º, págs.173 e 174) capitães de S. Vicente, na qual declara que o faz por mais um triênio, que deve portanto ser acrescido ao triênio anterior, o que mostra que já os havia nomeado três anos antes, isto é, em 1602,2 e torna bem claro que a nova nomeação deveria ser contada de modo a haver mais três anos, que deveriam, pois, terminar no fim de 1608. Entretanto, antes desses novos três anos, em fevereiro ou março de 1607, sem maiores ou menores explicações, nomeia Gaspar Conquero capitão-mor e ouvidor de S. Vicente, desautorando os nomeados anteriormente (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 142 e 145). A própria Câmara da vila de S. Paulo espantava-se dessa profusão de capitães-mores e lho diz na carta de 13 de janeiro de 1606 da maneira mais franca e explícita que possa ser. Assim escreve: Só faremos lembrança a V. mcê que se sua pessoa ou cousa muito sua e que muito se doa desta capitania, não acudir com brevidade pode entender que não terá cá nada porque estão as coisas desta terra com a candeia na mão e cedo se despovoará, porque assim os capitães e ouvidores que V. mcê manda como os eu cada quinze dias nos metem os governadores gerais em outra coisa não entendem nem estudam senão como nos hão de esfolar e destruir e afrontar em isto gastam seu tempo, 2 Pedro Vaz de Barros exerceu esse cargo em 1603 (Atas, vol. 2º, pág. 138). Na Capitania de São Vicente 259 não vem nos governar nem aumentar a terra que o senhor Martim Afonso ganhou e que Sua Majestade lhe deu com tão avantajadas mercês e favores. (Reg. Geral, vol. 7º, pág. 111). Quando o donatário Lopo de Sousa, escrevendo à Câmara de S. Paulo, a 1º de dezembro de 1605, diz que, por carta dessa mesma Câmara, ficou entendendo e se maravilhou das maldades e atrevimento de João Pereira de Sousa apresentando-se na capitania com uma provisão falsa, já João Pereira de Sousa não pertencia ao número dos vivos, porque é o próprio donatário que escreve, dizendo “para prova do que afirmo basta a morte que ele teve de sua maldade e traição”. A Câmara de S. Paulo, como já se notou, acusando o recebimento de uma carta de Lopo de Sousa, a 13 de janeiro de 1606, nesta época também já conhecedora dessa morte, começa a sua resposta escrevendo “Com o Capitão João Pereira de Sousa, que Deus levou recebemos uma de vossa mercê”.... Para mais confirmar a sua trapalhice ou fraqueza é suficiente ler com atenção a sua carta de 1º de dezembro de 1605 em que há desculpas, alegando “que quanto a minha verdade não bastara”, “que não sou eu o senhor que disponha um homem sem culpas nem pelos maiores interesses do mundo”. Do mesmo modo até na nomeação de capitão dos dois Barros, em que admite que “se um não queira servir, que seja o outro”. Um donatário, com grandes poderes, não se determina por essa indecisa forma e muito menos escreve, ou faz escrever e assina por esse modo titubeante, ordens para prepostos ao governo de sua colônia americana, no tempo em que a comum rudeza da linguagem traduzia a rijeza dos caracteres. A única coisa que consta nos arquivos municipais e estaduais, contra João Pereira de Sousa, é a sua prisão, em 1597, “por culpa de sua devassa”, quando comandava uma bandeira nos sertões da Parnaíba. Se essas são as traições, irregularidades e audácia de João Pereira de Sousa, e de outras não falam os documentos, nenhuma procedência tem a acusação. Mas examinando atentamente o trecho da carta de Lopo de Sousa, vê-se que não é aí levantada contra João Pereira de Sousa a acusação de falsificador de provisões, que ele não foi. 260 Washington Luís A culpa, que aí lhe é atribuída, é a de “se apresentar com provisão falsa do donatário”, o que mudaria a figura do delito, se delito houvesse. O que maravilhou a Lopo de Sousa foi a malvadez, foi a traição, foi o atrevimento de João Pereira de Sousa em se apresentar com uma provisão falsa. Entre o apresentar-se com provisão falsa e falsificar uma provisão vai grande distância. Com inteira boa-fé, um indivíduo pode apresentar-se com uma certidão falsa, desde que não seja ele o falsificador, nem da falsificação tenha tido conhecimento, ainda que nessa apresentação haja maldade ou traição ou atrevimento. A maldade, a traição e o atrevimento não são sinônimos de falsificação, embora possam se ajuntar para uma falsificação, em alguns casos. A provisão de nomeação de João Pereira de Sousa não foi apresentada como expedida por Lopo de Sousa, donatário; mas o foi como ordenada por D. Francisco de Sousa, e como tal registrada em S. Paulo, despachada, pois, pelo Governador Geral do Brasil, que se julgou órgão competente para o fazer. D. João III, na provisão de Governador-Geral do Brasil a favor de Tomé de Sousa, sem suprimir, como já notei e é sabido, os direitos dos donatários nas capitanias, subordinou-os, entretanto, aos governadores, o que permitia a centralização de poderes e a absorção dos direitos dos donatários. Aí teria havido mais uma absorção por parte de D. Francisco de Sousa, e não foi a única e não seria a última. Lopo de Sousa fora mal informado ou não foi sincero; pois há na sua carta, se ela se refere à devassa de 1597, uma afirmação caluniosa visto que a provisão de nomeação, com que se apresentou João Pereira de Sousa, não era falsa nem a ele, Lopo de Sousa, fora falsamente atribuída, mas ao contrário, nela se declarava de modo expresso ser ela expedida por D. Francisco de Sousa, cuja autoridade para a expedir, não era posta em dúvida e que ainda exibiu carta de apresentação desse governador. *** Assumindo o cargo de Capitão-Mor em S. Vicente, João Pereira de Sousa começou a “determinar os casos e negócios da capitania”. Na Capitania de São Vicente 261 Nesse momento, o caso mais interessante, o negócio mais importante da capitania era a entrada ao sertão para a guerra aos índios, que, então, era também preocupação de D. Francisco de Sousa, com o objetivo de descobrimento das minas. João Pereira de Sousa, pois, começou a preparar uma companhia para a entrada ao sertão. Encontrou, porém, sérios embaraços para realização de seu intento por parte das autoridades. A 1º de junho de 1596 a Câmara da vila de S. Paulo recebeu cartas do ouvidor da capitania. Gaspar Nabo, e requerimentos da Câmara de Santos e dos próprios adjuntos Simão Machado e João Batista Málio, em que se dizia “que fizesse saber a João Pereira de Sousa e o notificasse, que nada fizesse sem parecer e acordo dos mesmos adjuntos, e que não começasse a guerra; e, ao contrário, a sobrestivesse por causa dos inimigos ingleses e franceses, que rondavam a costa, e também por estar o gentio amigo cansado e falto de mantimento” (Atas, vol. 2º, págs. 15 e 16). A notificação foi feita a João Pereira de Sousa. Este, porém, ou porque julgasse protelatórias as razões apresentadas, ou porque executasse instruções pessoais do Governador-Geral, ou levado pelo seu temperamento impetuoso, a nada atendeu e a entrada ao sertão se realizou nesse mesmo 1596 (Provisão de D. Francisco de Sousa, Reg. Geral, vol. 1º, pág. 105). Não era ele morador da Vila de S. Paulo, mas encontrou da parte dos principais habitantes a melhor boa vontade para a empresa, que todos desejavam, salvo os jesuítas e seus adeptos. Os inventários de João de Prado (Inv. e Test. v. 1º, pág. 77) e de Francisco da Gama (mesmo volume pág. 335) vão fornecer elementos para a reconstituição dessa bandeira assinalando alguns dos pontos por ela percorridos e atingidos. Formou ele, entretanto, a sua entrada com bons elementos da vila, da melhor parte da gente de S. Paulo, na qual encontrou decidido apoio. E, assim, tomou parte na sua tropa Sebastião de Freitas, que dela foi escrivão, e que em 1591 viera de Portugal, como soldado da companhia de Gabriel Soares de Sousa, para descobrimento de metais 262 Washington Luís preciosos no rio S. Francisco; ainda estiveram nessa tropa João de Prado (de Prado como ele assinava e não do Prado como tem sido escrito) com seu genro Miguel de Almeida; também Gaspar Gonçalo Vilela, Estêvão Martins, Simão Borges, João Bernal, Filipe Vaz, Francisco Farel, Vasco da Mota, Diogo Ramirez, Juan de Santana, Francisco Pereira, Manuel Gonçalves, Antônio Pinto, Álvaro Neto, Antônio de Campo, Antônio Castilho. João de Prado era pessoa importante na minúscula localidade. Desde 1588 vinha ele exercendo os cargos da governança. Nesse ano foi ele Juiz, e também o fora em 1592 e vereador em 1594 (Atas, vol. 1º, pág. 444, 433 e 487). Pedro Taques informa que ele e sua mulher, Filipa Vicente, naturais de Olivença, nessa época ainda pertencente no território português, eram pessoas nobres e honradas. No inventário de João de Prado (Inv. e Test. vol. 1º, pág. 101) declara-se somente que ela, Filipa Vicente, era pessoa honrada e viúva de pessoa honrada, o que significa que os dois foram pessoas de destaque na então insignificante vila de S. Paulo. João de Prado, pela sua pessoa, pela sua família, pelas suas armas, pelo número de índios administrados e escravos que possuía, foi um dos mais poderosos elementos que compuseram a bandeira de João Pereira de Sousa. Era tal a importância de que gozava, que a sua presença na entrada o punha em evidência de chefe. O Padre Del Techo, na sua Hist. Provinciae Paraquariae o considerou chefe da bandeira, o que não é verdade. Teria sido um dos chefes, mas o chefe supremo foi João Pereira de Sousa, em cujo arraial no sertão, ele faleceu a 13 de fevereiro de 1597, conforme expressamente é declarado no respectivo inventário (vol. 1º, pág. 79).3 Não se pode afirmar com segurança o dia exato da partida da bandeira; mas foi depois de 5 de outubro de 1596, porque, nessa data, 3 O Barão do Rio Branco, citando Del Techo na História do Paraguai, nas Efemérides Brasileiras, dá também a João de Prado, a chefia dessa bandeira. No tempo em que foram feitas as Efemérides Brasileiras, valiosíssima contribuição para a nossa História, não tinham sido ainda publicados pelo Arquivo do Estado de S. Paulo os Inventários e Testamentos, de modo que o Barão do Rio Branco não poderia retificar o equívoco de Techo, não tendo tido conhecimento desses inventários. Aliás o equívoco tem pouca importância para o estudo do devassamento e conquista do sertão. Na Capitania de São Vicente 263 Francisco da Gama, que nela tomou parte, ainda estava em S. Paulo e, nessa data, passou um documento a João Fernandes, em que declarou ter dele recebido “dez cruzados emprestados de amor em graça os quais prometeu pagar em dinheiro de contado ou em uma peça (do gentio) pelo que valer nesta guerra em que ora vamos com o Sr. João Pereira de Sousa, como capitão” (Inv. e Test. vol. 1º, pág. 351). Esse documento de dívida, que é cobrado judicialmente, prova que a bandeira a 5 de outubro de 1596 ainda estava em S. Paulo, mas em preparativos para a partida. Qual o sertão em que foi feita essa entrada? A provisão de D. Francisco de Sousa, que armou cavaleiro Sebastião de Freitas, declarou que este acompanhou Jorge Correia, Manuel Soeiro e João Pereira de Sousa a fazer guerra ao gentio que, em ataque, tinha vindo contra a vila de S. Paulo (vide provisão). Essas três bandeiras foram, pois, ao mesmo sertão. A 13 de fevereiro de 1597, no sertão da Parnaíba, onde estava o arraial de João Pereira de Sousa, começou-se o inventário de João de Prado, que lá falecera (Inv. cit. pág.79). Um outro documento de dívida de Francisco da Gama, foi cobrado judicialmente, em S. Paulo, e cujo processo se iniciou a 22 de Julho de 1600 com citação por éditos “por se achar o devedor ausente, perto de três anos ou perto de quatro anos (Inv. Francisco da Gama, vol. 1º, págs. 349 e 350) e nele depõem cinco testemunhas que afirmam que ele era ido à guerra de Parnaíba e dele não havia notícias”. Citando ainda Del Techo, História do Paraguai, o Barão do Rio Branco, em Ephemerides Brasileiras, de lº de setembro de 1583, narra que no vale do Anhembi, hoje Tietê, os Tupiniquins tinham 300 aldeias e 30. 000 sagitários, que, em seis anos de guerra, de 1592 a 1599, foram todas destruídas e exterminados os selvagens do rio de Jeticaí, hoje rio Grande. O rio Parnaíba é afluente da margem direita do rio Paraná e tem suas nascenças mais a leste, do lado das nascenças do rio S. Francisco. Conforme se vê pelas atas da Câmara de S. Paulo, que se referem às entradas de Antônio de Macedo e de Domingos Luis Grou, já esses sertanistas lá tinham estado. As bandeiras já tinham atravessado o rio 264 Washington Luís Jaguari, tributário do Tietê, e o Pirapetingui seu afluente, já tinham ido além do Mogi, afluente do rio Pardo. Com as informações de Del Techo, vê-se que já tinham chegado ao rio Grande; e com os inventários de João de Prado e de Francisco da Gama, vê-se mais que já tinham atingido o sertão da Parnaíba, onde João Pereira de Sousa em 1597 tinha estabelecido o seu arraial. O sertão, pois, atingido pela bandeira de João Pereira de Sousa foi o da Parnaíba. Essa Parnaíba não designa a hoje cidade de Santana do Parnaíba, situada apenas a cerca de 40 quilômetros da cidade de S. Paulo, e que, naquele tempo já tinha moradores e fazendas; mas designa região muito além. Foi, pois, no sertão onde corre o rio Parnaíba, afluente do alto rio Paraná, que João Pereira de Sousa foi fazer guerra ao gentio. Essa bandeira de João Pereira de Sousa sofreu muitas vicissitudes, como aliás todas as bandeiras. Quando se fez a repartição dos índios cativados, de que se lavrou termo no inventário de João de Prado, a 26 de julho de 1597, João Pereira de Sousa já não estava no comando da bandeira, por se achar “ausente, preso por culpas de sua devassa” assim se declara nesse termo em que foi feito o recebimento das peças que couberam a João de Prado (Inv. e Test. vol. 1º, pág. 87). Fora substituído por Francisco Pereira, que assumira o comando da expedição. “Culpas de sua devassa” diz o termo lavrado no sertão. Na linguagem tabelioa do escrivão, que esse termo lavrou “preso por culpas de sua devassa” significava que João Pereira de Sousa fora preso, sujeito a processo judicial para apuração de seus crimes. Onde foi feito esse processo? Em S. Paulo, em S. Vicente, na Bahia? Nada se sabe. Nos arquivos de S. Paulo nada consta. Qual o crime por ele praticado que o destituiu do comando, o sujeitou à devassa e prisão? Nada se sabe com segurança, a não ser a confusa carta de Lopo de Sousa a 1º de dezembro de 1605, que não é verdadeira na parte principal referente a crimes. Os crimes capitais, nesse tempo de catequese, na capitania de S. Vicente, eram as entradas ao sertão, para guerra e escravização do Na Capitania de São Vicente 265 gentio, cuja liberdade variava conforme os interesses e os intuitos dos executores das leis que a garantiam. Não é, pois, arbitrária a hipótese de que a devassa tivesse sido instaurada pelo ouvidor Gaspar Nabo, por iniciativa dos adjuntos Simão Machado e João Batista Malio, sob a influência da Câmara de Santos, que todos vigorosamente se tinham oposto à entrada de João Pereira de Sousa em 1596, numa época em que muito forte estava a luta entre os dois sistemas, o da catequese religiosa e o da colonização leiga. Jorge Correia fora suspenso e sujeito a devassa por ter querido contemporizar ou impedir uma entrada ao sertão; João Pereira de Sousa teria sido preso e sujeito a devassa por ter feito uma entrada ao sertão. Ora vencia a política sutil dos jesuítas, ora vencia o violento interesse dos colonos. Os reis cobiçosos de minas de ouro ora abriam ora fechavam os olhos a essas incursões. Apesar da prisão de João Pereira de Sousa a bandeira continuou a sua faina pelo sertão sob o comando de Francisco Pereira; mas, não obstante essa substituição, parece que a bandeira de 1596 se desmantelou. Sobre minas de ouro nada descobriu. Francisco da Gama, que fez parte dessa bandeira, por lá ficou três ou quatro anos, foi recolhido por Domingos Rodrigues, cabo de uma entrada em 1600, da qual adiante se tratará. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XVI DOMINGOS RODRIGUES D OMINGOS RODRIGUES capitaneou uma entrada que, em 1600, estava no sertão. Tinha ele, nessa época 44 anos, conforme declarou em uma justificação em S. Paulo, que se acha junto ao inventário de Francisco da Gama (Inv. e Test., vol. 1º, pág. 365). Essa entrada foi feita no sertão da Parnaíba, como se vê de outro processo judicial de cobrança, intentado por Ascenço Ribeiro, e também junto ao mesmo inventário (Inv. e Test. vol. 1º, pág. 361 e seguintes). Francisco da Gama fez parte da bandeira de João Pereira de Sousa, que se dispersou, ao que parece, no sertão da Parnaíba. Ele se reuniu à bandeira de Domingos Rodrigues e no arraial deste cabo, no mesmo sertão da Parnaíba, morreu, lendo sido feito o inventário de seus poucos, pouquíssimos bens, a 11 de Fevereiro de 1600, inventário que depois foi anexado ao judicial promovido em S. Paulo (Loc. cit., pág. 339). Conhecem-se alguns membros dessa bandeira pela arrematação que lá fizeram da mesquinha bagagem do sertanista e das fianças prestadas para pagamento em povoado, na volta. 268 Washington Luís Assim se vê: Domingos Rodrigues, cabo da entrada, Matias Gomes, escrivão do arraial, Antônio de Zouro, Brás Gonçalves, o velho, Pero Velho, Antônio de Andrade, arrematantes e fiadores, e Tristão de Oliveira, declarante dos bens. Fez parte dessa bandeira Ascenço Ribeiro, como se depreende do processo de cobrança por este intentado. Nenhum desses nomes se encontra entre os que compuseram a bandeira de João Pereira de Sousa. Nas atas da Câmara de S. Paulo, nem no seu Registro Geral, nenhuma referência há a esta entrada. É possível que ela tivesse sido feita em socorro da gente de João Pereira de Sousa que no sertão da Parnaíba ficara, conforme requerimento da Câmara de S. Paulo (Atas, vol. 2º, pág. 40). É possível também que Domingos Rodrigues a tivesse realizado por sua própria iniciativa e lá recolhesse Francisco da Gama, extraviado havia três ou quatro anos, e que assim veio a morrer no seu arraial. A única certeza, que se tem, é que, em 1600, estava a bandeira no sertão e chegou até o rio Paraupava, pois que se encontra no Inventário de Martim Rodrigues (Inv. e Test., vol. 2º, pág. 6) avaliação de uma índia da nação Guoayá, que diz ser escrava, da entrada de Domingos Rodrigues, de Paraupava. Dela se tem notícia em época em que D. Francisco de Sousa já se achava na vila de S. Paulo. Dos inventários recolhidos ao Arquivo Público do Estado de S. Paulo, o de Francisco da Gama é um dos mais estragados pelas traças, que o roeram e rendilharam, e pela umidade que, em muitas páginas, apagou frases e linhas inteiras, tornando difícil a sua leitura. Além disso, estão a ele acostados, como então se dizia, ou a ele se fizeram juntada, como hoje se exprime a linguagem forense, sem ordem cronológica, o inventário feito no sertão, o testamento, e os traslados de diversas justificações, processos de cobrança de dívidas, nos quais faltam as primeiras e últimas páginas, que os distinguiam uns dos outros não só pela diferença do papel como da letra dos escrivães que os lavraram. Isso se pode verificar nos autos originais. Mas, hoje, publicados em letras de forma e em páginas seguidas, e não poderia ser de outra forma, pelo Arquivo do Estado, não se distinguem mais uns dos outros, se confundem, tornando difícil a sua compreensão. Pude eu distinguir, porque tomei notas em 1902 dos autos originais. Na Capitania de São Vicente 269 Naturalmente pesquisadores pertinazes, que pacientemente se dedicam a essa ordem de estudos, podem tudo deslindar e esclarecer. O inventário de Francisco da Gama foi iniciado em S. Paulo a 23 de Dezembro de 1600; montaram os seus bens a 56$500 dos quais deduzidas as custas judiciais e o pagamento das dívidas sobraram 11$773 para a viúva, Jerônima Fernandes, e 11$715 para a filha única, Maria, que, nessa época, tinha cinco anos, e da qual foi feito tutor João de Santana, seu avô torto, pois que era padrasto da viúva. Francisco da Gama era alfaiate, e, por diversas vezes, nesses papéis de inventário, foi designado como Francisco da Gama, o moço, o que faz supor que seu pai, com o mesmo nome, ainda vivia nesse tempo. Possivelmente o pai foi nomeado procurador dos índios forros de S. Paulo por provisão de D. Francisco de Sousa em Fevereiro de 1601 (Registro Geral, vol. 1º, pág. 103). Domingos Rodrigues é nome que se encontra freqüentemente nos papéis da época, sem designação que o distinga. É nome comum entre portugueses, e que, com os documentos estudados, não permite fazer identificação segura. Há um Domingos Rodrigues que foi juiz ordinário em 1606. Um Domingos Rodrigues foi casado com Ana de Alvarenga, filha de Antônio Rodrigues de Alvarenga. Há diversos Domingos Rodrigues. A 21 de Março de 1598, em vereança, a Câmara da vila de S. Paulo se inquietava pela sorte da bandeira de João Pereira de Sousa e requereu ao capitão-mor “que se mandasse socorro à nossa gente que ficara no sertão, porque não vinha, nem se sabia se eram mortos ou vivos” (Atas, vol. 2º, págs. 39 e 40). É de notar que este requerimento foi dirigido ao capitão-mor Jorge Correia, que já reassumira o seu cargo, e nesse cargo estava desde 19 de Julho de 1597, porque nesta data é a esse capitão, Jorge Correia, que a Câmara de S. Paulo se dirige pedindo carcereiros, ferro, prisões, para os delinqüentes da vila (Atas, vol. 2º, pág. 26). Ainda a 22 de novembro de 1597, a Câmara de S. Paulo leu cartas suas, cujo assunto não foi registrado, e, portanto, não se conhece, mas que foi considerado, sendo resolvido “que viesse ele em pessoa à vila de S. Paulo porque é de seu cargo especular o que deve e dar remédio no feito e no que se faz e pode suceder” (Atas, vol. 2º, pág. 29). 270 Washington Luís Ainda inquieta pela sorte da bandeira a Câmara requereu de novo a 14 de novembro de 1598, mas já a Roque Barreto, então capitão-mor, “porquanto a nossa gente que ficou no sertão da companhia de João Pereira de Sousa não vinha e podia estar necessitada de socorro e que era bem que se lhe desse socorro e se soubesse de (que) modo estava, pois é bem de todos (Atas, vol. 2º, pág. 47). A devassa instaurada contra Jorge Correia não dera resultado criminal (e nem esse intuito teve D. Francisco de Sousa), pois que Jorge Correia exerceu seu cargo após a prisão de João Pereira de Sousa. O que importava para D. Francisco de Sousa era que o capitão, por ele mandado, fora preso e não poderia levar a cabo a entrada ao sertão, e que a opinião dos jesuítas e de seus partidários prevaleceria não se fazendo por conseqüência as explorações, que deveriam encontrar as minas desejadas, com o desânimo de alguns e com a dispersão dos bandeirantes. Na Bahia, o Governador-geral do Brasil sentiu que as atividades dos sertanistas vicentinos se perderiam e, que os seus esforços para descobrir as fabulosas minas de Robério Dias, procuradas antes por João de Sousa e por Gabriel Soares de Sousa nenhum resultado teriam. Resolveu, pois, passar-se para a Capitania de S. Vicente para coordenar o trabalho dos bandeirantes, acalmar os jesuítas e assim descobrir o ouro cobiçado e obter o marquesado das Minas. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XVII D. FRANCISCO DE SOUSA N ESSE tempo, em que se abriu a luta entre Jorge Correia e os colonos, o Governador-geral do Brasil era, como se disse e se sabe, D. Francisco de Sousa, nomeado para esse cargo em 1590. Desembarcou na Bahia em 9 de Junho de 1591. Terceiro filho de D. Pedro de Sousa, que era neto dos condes do Prado, senhores de Beringel, a D. Francisco de Sousa faltaram morgadios. Cadete de uma família nobilíssima, cuja prosápia era sete gerações chegava a Martim Afonso Chichorro, bastardo de Afonso III, o Bolonhês, o Governador do Brasil só tivera, para o encarreirar na vida, o seu nome ilustre e, principalmente, a sua grande finura, a sua muita habilidade, qualidade tão notória que, desde muito, era chamado D. Francisco das manhas. A manha era, porém, apanágio dos Sousas. Ruy de Sousa, primeiro senhor de Beringel, trisavô de D. Francisco, precisando de dinheiro, pediu a D. João II, apenas, que quando saísse a passeio, na Rua Nova de Lisboa, Rua dos mercadores e capitalistas, o tratasse com amizade. Custou pouco ao Príncipe Perfeito aca- 272 Washington Luís riciar em público a vassalo, que estimava, e valeu muito a Ruy de Souza, perfeito cortesão, a quem os mercadores abriram a bolsa e o crédito por verem-no familiar e suporem-no valido do rei, e em começo de fortuna. D. Francisco de Sousa começou a sua carreira em Tangere Comenda, no tempo em que governava aquela praça D. João de Meneses. Quando El-Rei D. Sebastião passou à África, para desaparecer na batalha de Alcacerquibir, foi ele por capitão de um dos galeões da armada, de que era general seu tio D. Diogo de Sousa. Foi depois capitão-mor da Comarca de Beja; e, na Guerra de Sucessão de Portugal, seguiu a Filipe, Rei da Espanha, que, no ano de 1588, em que foi a armada com o Prior do Crato, o mandou a Elvas a levantar gente, e após o nomeou capitão da Mina, o que não teve efeito. Pouco depois da sua chegada ao Brasil, trazendo uma caravela de Lisboa novas do falecimento de sua mulher, publicou ele que não tornaria ao reino e ficaria no Brasil até a morte por parecer-lhe boa manha, para atrair a dedicação dos “cidadãos e naturais da terra, fazer-se com eles cidadão e natural”. Mas o traço característico de seu temperamento, além da tenacidade de seus propósitos, era a liberalidade, a magnificência. Tratando os mais do que haviam de guardar para levar, ele só queria ter para dar e obter para gastar; fartamente dava e dava sempre e a todos, bons e maus, pobres e ricos, sem lhes custar mais do que pedir; razão pela qual se costumava dizer, “que era ladrão, quem lhe pedia a capa, por que com o só pedir lhe levava dos ombros”. Se ele não dava por vaidade, às vezes dava por manha; mostrando-lhe a sua largueza de ânimo que, descobertas no Brasil as afamadas minas, no que punha imenso empenho, estariam ressarcidos todos os prejuízos, que por acaso tivessem ele e o rei. E ele não dava só bens de fortuna; dava também ofícios e postos, títulos e honras; armava cavaleiros; levantava fidalgos; conferia hábitos de Cristo; distribuía pensões e tenças. A par dessas benignas qualidades, conservava sempre toda a sua autoridade e respeito, e “assim foi o mais benquisto Governador, Na Capitania de São Vicente 273 que houve no Brasil, junto com ser o mais respeitado e venerado” (Informações de Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, donde as tirei todas). Nesse tempo eram correntes as lendas de riquíssimas minas de ouro e prata no Novo Mundo, e todos sonhavam com os inesgotáveis tesouros de reis fabulosos, que governavam países inverossímeis pela sua riqueza. Repetiam-se e acreditavam nessas fantasias como se fossem verdades incontestáveis. Supunha-se que o rio S. Francisco tinha as suas nascenças na Lagoa Dourada no centro do continente sul-americano, a terra do ouro. Essas minas eram faladas no Brasil, e, principalmente, na Europa. Muitas das expedições marítimas espanholas e portuguesas, que então se organizaram, não tiveram outro fim senão descobrir e assenhorear-se, e por qualquer forma, dessas terras onde o ouro e a prata eram mais abundantes que o ferro em Bilbau, é tudo fácil de colher. Os piratas, franceses e ingleses, corriam os mares não policiados para saquear, se apoderar dos galeões carregados de ouro que vinham da América para os reinos de D. Carlos I. D. Francisco de Sousa, mesmo em Lisboa e em Madri, ouvira falar dessas minas e nas pretensões de Robério Dias, e sem dúvida, a esses boatos dera crédito; no Brasil, depois de sua vinda essa crença mais se confirmou. Frei Vicente do Salvador, contemporâneo de D. Francisco de Sousa, recolhe, nas páginas de sua História do Brasil (Livro 1º, Cap. V), e dá curso à notícia de que um soldado de crédito lhe contara que um índio aprisionado falara de uma certa paragem, onde havia mina de muito ouro limpo, de onde se poderia tirar o metal precioso aos pedaços. J. Marcgrave narra que na Bahia, D. Francisco de Sousa recebera de um brasileiro certo metal extraído dos montes Sabaroason de cor azul escuro ou celeste, mesclado com certas areias finas cor de ouro, que, depois de ser examinado pelos faisqueiros, foi reconhecido conter num quintal trinta marcos de prata pura (3. Marcgrave – História Natural do Brasil, Edição do Museu Paulista, pág. 263). 274 Washington Luís João Coelho de Sousa, pelo norte, à procura dessas minas, percorrera os sertões próximos ao rio S. Francisco durante três anos e neles descobrira metais preciosos, mas ao regressar falecera, nas cabeceiras do rio Paraguaçu, na Bahia. Mandara, porém, entregar a seu irmão, Gabriel Soares de Sousa, os roteiros de seus descobrimentos. Gabriel Soares de Sousa, herdeiro do itinerário de seu irmão, em Agosto de 1584, partiu para Madri a oferecer ao Rei de Espanha o descobrimento dessas minas, pedindo por isso favores, concessões e privilégios nas terras do Brasil. Foi nessa ocasião que dedicou a D. Cristóvão de Moura, ministro influente no Governo, talvez com o objetivo de recomendar-se, o precioso Tratado Descritivo do Brasil, segundo Varnhagen, de quem copio estas informações (R.I.H.G.B., vol. 14, Aditamento). Depois de pertinazes requerimentos e solicitações, após cerca de sete anos, foi enfim despachado favoravelmente em meados de Dezembro de 1590. Voltando para o Brasil, muito recomendado a D. Francisco de Sousa, já então Governador-geral, tratou de organizar uma expedição e partiu de suas terras, na Bahia, em busca das minas famosas que se supunham situadas no rio S. Francisco. Subiu pela margem direita do rio Paraguaçu e, de acordo com uma das cláusulas da sua concessão, deveria formar arraiais ou povoações, com os índios que levara, de 50 em 50 léguas. Fez o primeiro arraial e continuou a sua marcha pelo sertão. Mas adoeceram muitos dos seus homens de sezões, perdeu muitos animais, muitos mordidos por cobras, outros devorados pelas onças. Embaraçado pelas enchentes do próprio rio Paraguaçu, atravessou serras, e decidiu-se a fundar o segundo arraial; mas abatido por moléstia, esgotado de forças, faleceu aí. No comando da expedição foi substituído por, Julião da Costa, que, vendo-se privado do guia, o índio Aracy também aí morto, esmoreceu e retirou-se com os restos da expedição para lugar mais sadio e escreveu ao Governador-geral dando conta do sucedido e pedindo instruções. D. Francisco de Sousa que, segundo as ordens de seu rei, havia auxiliado a expedição, determinou-lhe o regresso. Na Capitania de São Vicente 275 Varnhagen julga severamente o Governador-geral e até acusa-o de se ter apoderado dos roteiros e mais indicações para o descobrimento das minas. O mais provável que Julião da Costa tivesse entregue ao Governador-geral todos os papéis da expedição. O fato é que, de posse dos roteiros e das indicações das duas primeiras tentativas, D. Francisco de Sousa tratou de requerer e obteve do rei da Espanha todos os favores, concessões, privilégios, antes outorgados a Gabriel Soares de Sousa, e muitos outros ainda, entre eles a promessa de ser feito Marquês das Minas, se tal ouro ou prata fosse descoberto. Este título sintetiza a época, caracteriza o rei e define o Governo de D. Francisco de Sousa. Ele procurava honras e rendas, o rei precisava de ouro para as suas guerras na Europa. Ao mesmo tempo, que pelos roteiros tivera conhecimento da existência de minas de ouro e prata nas nascenças do rio S. Francisco, também tivera notícia certa e segura que, desde a vila de S. Paulo, homens que resistiam às sezões e às onças, às agruras e às asperezas das selvas, que guerreavam e venciam os índios ferozes, faziam entradas ao sertão do alto S. Francisco, já tendo tocado era alguns de seus afluentes. Esses homens, partindo do sul, seriam capazes de ir e chegar à Lagoa Dourada e voltar depois de descobrir as afamadas minas. Desejando encontrar as minas de ouro e prata nas cabeceiras do rio S. Francisco, e sentindo que obstáculos eram criados à gente de S. Paulo, impedindo-a de ir a essas cabeceiras, D. Francisco de Sousa achou intempestiva a atitude de Jorge Correia, pressuroso recebeu os embargos opostos pela Câmara de S. Paulo à provisão expedida, atendeu aos “capítulos de acusação opostos pelas câmaras que lhe foram apresentados por Atanázio da Motta”, e suspendeu Jorge Correia dos cargos de capitão-mor e ouvidor da Capitania de S. Vicente, emprazando-o a ir à cidade do Salvador para se defender na devassa, que contra ele mandou abrir. E para que “a capitania não ficasse acéfala, enquanto durasse a suspensão, e enquanto ele o houvesse por bem e por serviço de sua Majestade e o dito senhor não mandasse o contrário”, nomeou capitão-mor de S. Vicente a “João Pereira de Sousa” “pessoa benemérita” “dando-lhe por adjuntos Simão Machado e João Baptista Mallio, moradores em Santos,” para que todos três determinassem os casos e os negócios da capitania, dando mais a João Pereira de Sousa carta de reco- 276 Washington Luís mendação para a Câmara de S. Paulo. Na própria cidade do Salvador, na Bahia, perante o próprio Governador, foi dado juramento a João Pereira de Souza, sobre um livro dos Santos Evangelhos, para bem servir o cargo, como já narrei. As instruções dadas ao novo capitão, é lícito crer, foram para fazer guerra imediata ao gentio, como reclamava a Câmara de S. Paulo, dirigir as expedições para esse sertão, já percorrido pelas bandeiras paulistas, nas proximidades do alto S. Francisco, onde, no seu pensar, se achavam as minas, e aí descobri-las. É o que se pode deduzir da ação de João Pereira de Sousa, como ver-se-á no capítulo em que é estudada essa ação. A expedição de João Pereira de Sousa não obteve os resultados esperados. Para não perder o auxílio dos paulistas, habituados à vida do sertão, para dirigi-los no descobrimento das minas, D. Francisco de Sousa resolveu transportar-se para a Capitania de S. Vicente, onde a sua habilidade tudo aplanaria e os recursos oficiais tudo facilitariam. De fato, partiu para a Capitania de Lopo de Sousa tocando em diversos pontos da costa do Brasil, como Espírito Santo de onde dizem mandou exploradores ao sertão. Em Vitória, por provisão datada de 27 de novembro de 1598, nomeou Diogo Arias de Aguirre capitão-mor de certos navios que foram em direitura para a capitania de S. Vicente com 300 índios flecheiros, para sua guarda e benefício das minas de S. Vicente “até a minha chegada para evitar os inconvenientes que com a minha presença se atalharão sem embargo de presente (haver?) na dita capitania capitão” (Provisão registrada na Câmara de S. Vicente a 18 de dezembro de 1598 e também na Câmara da vila de S. Paulo no Reg. Geral, vol. 7º, págs. 61 a 65). Logo depois ele mesmo, como Governador-geral, para estimular, para mandar ao sertão diversas bandeiras, se transportaria para a Capitania de São Vicente, para a Vila de S. Paulo, onde estabeleceu, por assim dizer, a sede do Governo-geral do Brasil. *** No princípio do século XVII era bem insignificante e quase miserável a Vila de S. Paulo do Campo. Na Capitania de São Vicente 277 João de Laet dava-lhe 200 habitantes, entre portugueses e mestiços, em 100 casas; a Câmara, em 1606, informava que eram 190 os moradores, rios quais 65 andavam homiziados por causa das entradas ao sertão: em toda a capitania de S. Vicente pouco mais havia de 700 moradores portugueses. Pouco antes, em Fevereiro de 1585, o Padre Fernão Cardim, da Sociedade de Jesus, que esteve na capitania de S. Vicente acompanhando o Visitador Cristóvão de Moura, dá interessantes informações que confirmam ou são confirmadas por outros documentos. Ameno e complacente ele narra o que viu, sem fazer apreciações sobre os acontecimentos nem julgar os homens que encontrou. Quando o que ele viu foi mau, nada a respeito disse; quando o que ele viu foi rudemente feito, ele achou que tudo se havia de remediar, que em tudo houve muita devoção. Como todos os jesuítas, em suas cartas, omitiu em regra os nomes das pessoas que viu ou com quem tratou. Fala das vilas que, nesse fim desse século 16, havia na capitania, que fora dada a Martim Afonso, e descreveu com indulgência a sua viagem de S. Vicente a S. Paulo, da qual os rios que atravessou eram formosos, os campos que os circundavam eram belos parecendo os de Portugal, as frutas saborosas, e as festas, com que foi recebido, deram muita consolação. A Capitania de S. Vicente tinha então quatro vilas. Entrou ele pela barra de Bertioga onde havia uma fortaleza. coisa muito formosa, que ao longe, se parecia com a de Belém (no rio Tejo) e para onde antigamente se degradavam os malfeitores. É uma descrição contemporânea da Capitania de S. Vicente. É interessante reproduzir algumas de suas partes. “A vila de S. Vicente, numa ilha, diz ele, está situada em lugar baixo, manencolizado e soturno. Foi rica e agora é pobre, por se lhe fechar o porto de mar e barra antiga”... e também por estarem as terras gastadas e faltarem índios que as cultivassem; se vai despovoando, tem 80 vizinhos. Aqui têm os padres uma casa, onde residem de ordinário seis da Companhia, o sítio é mal assombrado, sem vista, ainda que muito sadio”. “Santos, situada na mesma ilha, é porto de mar, tem duas barras, na primeira está o forte que deixou Diogo Flores Valdez e a outra é o da barra da Bertioga, que dista desta vila quatro léguas, por um sítio 278 Washington Luís tão formoso, que podem navegar navios de alto bordo. Terá 80 vizinhos com seu vigário”. “A terceira é a vila de Nossa Senhora de Itanhaém, que é a derradeira da costa, que terá 50 vizinhos. A quarta é a vila de Piratininga que está doze léguas pelo sertão dentro, terá 120 vizinhos ou mais.” Para S. Paulo de Piratininga, a quarta e última vila da Capitania de S. Vicente, a viagem foi feita em três dias. Embarcados em Santos fizeram duas léguas por mar e uma por terra; no dia seguinte subiram a serra, por caminho íngreme, em que, as vezes iam pegando com as mãos. Ao terceiro dia navegaram por um rio de água doce, em canoas, até peaçaba e deste ponto fizeram quatro léguas a cavalo até o Mosteiro dos Jesuítas. O rio era o Jerubatuba ou Pinheiros e peaçaba era em Emboaçava. “Piratininga, informa Fernão Cardim, é vila de invocação da conversão de S. Paulo, está do mar pelo sertão dentro, doze léguas; é terra muito sadia, há nela grandes frios e geadas e boas calmas, é cheia de velhos mais que centenários porque quatro juntos e vivos se acharam quinhentos anos. Vestem-se de burel e pelotes pardos e azuis, de pertinas compridas, como antigamente se vestiam. Vão aos domingos à igreja com roupões ou berneos de cacheira sem capa”. “A vila, continua o Padre Cardim, está situada em bom sítio ao longo de um rio caudal; terá cento e vinte vizinhos com muita escravaria da terra, não tem cura nem outros sacerdotes senão os da Companhia, aos quais tem grande amor e respeito e por nenhum modo querem aceitar cura; os padres os casam, batizam, dizem missas cantadas, fazem as procissões e ministram todos os Sacramentos e tudo por sua caridade; não tem outra igreja na vila senão a nossa.” “Dá-se trigo e cevada nos campos; um homem semeou uma quarta de cevada e colheu 60 alqueires”. João de Laet informa, porém, que o trigo era de má qualidade, não tinha bela cor, e só se usava para hóstias e para mimos, segundo Gabriel Soares. “Os padres têm uma casa bem acomodada, com um corredor e oito cubículos de taipa, guarnecidos de certo barro branco” (R. I. H. G. B., 1ª parte, vol. 65, págs. 58 e seguintes). Até aqui Fernão Cardim. Na Capitania de São Vicente 279 O Capitão-mor, que era Jerônimo Leitão, nunca se apartara do Padre visitador. A aglomeração principal das casas, na Vila de S. Paulo, ficava no alto da colina entre o Tamanduateí e o Anhangabaú, e olhava a oeste para matas e, ao norte, leste e sul, para belos campos abertos. As casas, distribuídas irregularmente em ruas tortuosas, feição que a cidade ainda conservou por muito tempo no bairro comercial, eram em geral feitas de taipas de pilão e cobertas de telhas, mas havia grande parte feitas de taipa de mão ou de pau-a-pique e cobertas de palha. A vida nela não tinha conforto. Os habitantes eram pobríssimos, como demonstram os seus inventários nos quais o monte-mor atingia a 50$000 e a 200$000, nos mais ricos, sendo de notar que nesses inventários tudo se avaliava. Tão pobre era a “Vila de S. Paulo, a mais chegada às minas, que os homens e mulheres se vestiam de pano de algodão tinto e, se havia alguma capa de baeta e manto de sarja se emprestava aos noivos e noivas para irem à porta da Igreja; porém, depois que chegou D. Francisco de Sousa e viram suas galas e seus criados e criadas, houve logo tantas librés, tantos periquitos, e mantos de soprilha que já parecia outra coisa” (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, Cap. 37, do Livro 40). Essas galas seriam da gente que acompanhou D. Francisco, porque os moradores continuaram pobres, apresentando as minas referidas, apenas ouro de lavagem, que às vezes dava e as vezes não dava, conforme informa o mesmo Frei Vicente do Salvador, que segundo alguns cronistas, também acompanhou D. Francisco de Sousa a S. Paulo. A vila de S. Paulo, nesse ano de 1599, era administrada por um conselho composto de dois vereadores, dois juizes e um procurador. As suas funções eram administrativas e judiciais, e as suas vereanças eram realizadas semanalmente. Nos casos graves convocavam os homens bons da terra, isto é, aqueles que já tinham feito parte da governança, e também todo o povo para deliberar sobre as resoluções a tomar, dando-lhes mais força e repartindo responsabilidades. O Conselho era escolhido em eleição feita em dois graus. 280 Washington Luís A eleição do ano de 1599 revestiu-se de maior solenidade, porque estava na terra o Governador-geral do Brasil. Nas oitavas do Natal os oficiais, assim eram chamados os membros da câmara, que terminaram o seu mandato, se juntaram com os homens tons e com o povo, chamados a conselho, para fazerem a eleição dos novos oficiais que deveriam ocupar os cargos da República para bem reger a Vila e seu termo. Nesse ano os oficiais que presidiram a eleição foram Estêvão Ribeiro, Diogo Fernandes, Antônio Raposo, o velho, e Pero Nunes. (1598 – Atas, vol. 2º, pág. 33). Estêvão Ribeiro, por ser o Juiz mais velho declarou que, conforme era uso e costume, se ia fazer a eleição e requereu aos homens bons e mais povo que nomeassem seis homens para eleitores; e, fazendo-se acompanhar de Belchior da Costa, escrivão da Câmara, começou a andar entre todos os presentes, perguntando-lhes secretamente, sem que uns ouvissem os outros, quais os escolhidos e, à proporção que eles o diziam, o escrivão tomava por escrito o nome preferido. Depois de a todos ter perguntado, Estêvão Ribeiro se reuniu aos mais oficiais e, vendo todos o rol dos nomeados, escolheram os que tinham mais votos. Apresentaram-se 95 moradores, cujos votos se dispersaram por 58 pessoas, tendo obtido maior número de votos Jorge Moreira, Baltasar Gonçalves, João Maciel, Diogo Fernandes, Pedro Álvares e Garcia Rodrigues os quais chamados à Câmara, sobre um livro dos Santos Evangelhos, prestaram juramento de bem e verdadeiramente escolher dois juízes, dois vereadores e um procurador do Conselho, não podendo revelar a qualquer pessoa os que assim escolhessem. Em seguida os seis eleitores foram apartados dois a dois a fim de que indicassem em escrito por eles assinado, as pessoas que deveriam servir de oficiais da Câmara, sendo-lhes observado que os de um grupo não se podiam comunicar com os de outro, e que dali não poderiam sair sem que houvessem terminado a escolha. Tudo assim foi feito. Ordinariamente esses votos com os demais atos da eleição, tudo reduzido a escrito, eram levados ao capitão-mor e ouvidor, que residia no mar, em S. Vicente, por pessoa de confiança, a fim de apurar a eleição, que na linguagem do tempo se chamava alimpar a pauta. Nesse ano de 1599, porém, o capitão-mor e ouvidor, Diogo Arias de Aguirre, achava-se em S. Paulo, e nas suas pousadas, a 29 de de- Na Capitania de São Vicente 281 zembro alimpou a pauta e achou que tinham saído para vereadores Jorge Moreira e Tristão de Oliveira, para juízes João Maciel e Pero Leme e para procurador do conselho Francisco Maldonado, mandando passar cartas de confirmação para que servissem os seus cargos. Devolvida a pauta à Câmara, esta juntou-se em vereação mandou chamar o ouvidor Diogo Arias de Aguirre, a fim de tomar parecer sobre o voto que João Maciel havia dado em si mesmo para juiz. Posto em prática este caso, assentaram todos que João Maciel devia ficar de fora. Como os seguintes mais votados estavam empates, lançaram-se sortes, nas quais saiu Gaspar Cubas. Ficou a Câmara completa para reger a vila de S. Paulo e seus termos1. O processo eleitoral, então observado, era o estabelecido na Ord. Livro 1º, título 67 e seus parágrafos. Aí se determinava que a eleição fosse trienal, sendo, porém o mandato anual. Elegiam-se tantos quantos fossem necessários para servirem os cargos durante os três grupos e postos em pelouro. Esses três pelouros eram metidos em um saco e este em cofre com três fechadoras, cujas chaves ficavam em poder dos vereadores do triênio anterior. No tempo próprio, à vista do povo, chamado a conselho um menino, menor de sete anos, tirava um dos pelouros e os nomes que nele constassem “seriam os oficiais desse ano e não outros”. A vila tinham também tabeliãs, juízes de órfãos, nomeados pelo donatário. Ao saber da próxima vinda de D. Francisco de Sousa à vila de S. Paulo, a Câmara tomou para sua hospedagem as providências que estavam a seu alcance. A Câmara tinha então minguadas, pequeníssimas rendas. Não encontrei, nesse período estudado, o orçamento da sua receita e despesa. Pelo que se deduz eram todas eventuais. Compunham-se em regra das multas impostas aos oficiais do conselho faltosos, das coimas por infração de suas posturas, pelo aforamento das datas dos chãos municipais, pelas fintas lançadas ao povo para feitura das obras necessárias, como igrejas, cadeias, casas do conselho, etc. os caminhos e 1 Notas por mim extraídas de autos do Arquivo Municipal e publicadas no Correio Paulistano em agosto de 1904, e, parece, já desaparecidos quando da publicação feita por Alves de Sousa. 282 Washington Luís pontes eram feitos e conservados por mão comum, distribuindo-se o trabalho em trechos pelos moradores vizinhos que eles usassem. Às vezes, criminosos se ofereciam à autoridade competente para realizar obras de maior vulto, desde que lhes fossem perdoados os seus crimes, como no caso de João Pires, o Gago de alcunha (Carta de Duarte da Costa, vol. 49, pág. 562 da R.I.H.G.B.). Isso era usual no reino e não se considerava venalidade de Justiça, mas comutação do degredo ou da prisão em pena pecuniária. As principais providências municipais, além das festas populares, foram mandar consertar o caminho do mar e assentar que era necessário haver na vila um homem que tivesse casa para venda de coisas de comer para que chegando o Governador em uma casa certa achasse o que comer. Para dirigir essa foi escolhido Marcos Lopes a quem foi dado juramento sobre um livro dos Santos Evangelhos de bem servir o cargo, sendo também estipulado que das coisas que lhe fossem dadas para vender – assim carnes, como beijus e outros – só podia haver de cada dez réis um real (Atas, vol. 2º, pág. 57). Esse Marcos Lopes era um homem já velho e casado com Helena de Macedo, cujo sobrenome parece indicar uma das descendentes de João Ramalho (Atas, vol. 2º, pág. 61). Para essa vila de S. Paulo partiu D. Francisco de Sousa, e a transformou, por assim dizer, em sede do Governo Geral, nela se estabelecendo com a sua guarda, sob o comando do capitão Diogo Lopes de Castro e da qual era alferes Jorge João, (Registro Geral, vol. 7º, pág. 79), com os oficiais de sua Câmara, como PedroTaques seu secretário, Antonio Coelho escrivão, José Serrão cirurgião, com seus criados, com uma comitiva enorme na qual vinham também o engengeiro alemão Geraldo Beting, e mineiros entre os quais Jaques Oalt, também alemão, Cornele de Arzam etc. Segundo Pedro Taques vieram também os mineiros experimentados Gaspar Gomes Malho, Miguel Pinheiro, Azurara e Domingos Roiz fundidor. Antes já havia ele enviado o capitão Diogo Gonçalves Lasso muito recomendado à Câmara de S. Paulo a fim de que o favorecesse para o efeito do ouro (Atas, vol. 2º, pág. 24 e 25, vereança de 8 de fev. de 1598). Já aí deveria estar o capitão Diogo Arias de Aguirre, capitão Na Capitania de São Vicente 283 dos certos navios com os 300 frecheiros que ele enviara do Espírito Santo. A comitiva encheu a pequena vila, o que não era difícil, e transformou profundamente os costumes de seus habitantes. A 16 de maio de 1599, ou pouco antes, já o Governador-geral se achava na vila e S. Paulo (Atas, vol. 2º pág. 58). Desde a Bahia já vinha ele diretamente intervindo na administração da Capitania de S. Vicente, exercendo e absorvendo os poderes do donatário, intervindo até na administração local determinando a feitura e conservação do caminho do mar, o que a Câmara de S. Paulo providenciava com a lentidão de seus parcos recursos (Atas, vol. 2º, pg. 28, 38 e 39. Capitães-Mores e ouvidores nomeava ele quantos julgava necessários e para as diversas enventualidades. Em S. Paulo, D. Francisco de Sousa desenvolveu uma atividade imensa, febril, do que restam muitos vestígios nas atas da Câmara. Criou vilas – S. Filipe e Monserrate que não subsistiram _ prometeu à vila de S. Paulo que com o favor divino havia de ser cidade antes de muito pouco tempo, com grandes mercês e privilégios aos moradores, que ele havia de procurar com Sua Majestade (Reg. Geral, vol.1º, pág. 125). Armou cavaleiros e fez fidalgos a Pedro de Morais, a Sebastião de Freitas, a Antônio Raposo, o velho, que registraram as suas provisões nos livros da Câmara (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 75, 105 e 117). Outros teriam recebido iguais foros, que não registraram, o que não é provável, ou que registraram e não foram encontrados por terem desaparecidos os respectivos livros de registro, o que é mais provável. Vindo a morrer Diogo Gonçalves Lasso, D. Francisco de Sousa nomeou a 31 de maio de 1601 o neto, do mesmo nome, ainda menor, para o cargo de capitão da vila de S. Paulo e distrito das minas. E, enquanto não chegasse ele à maioridade, serviria em seu lugar Diogo Arias de Aguirre com todos prós e percalços que lhe pertencessem, e os 200$000 de ordenado seriam percebidos pela viúva, avó do nomeado, Guiomar Lopes (Reg. Geral, vol.1º, págs. 133 e 134). Assim ele recom- 284 Washington Luís pensava os descendentes dos que bem o tinham servido, e estimulava o trabalho de novos. Em 26 de junho de 1600, dia em que armou cavaleiro a Sebastião de Freitas, já por três vezes, com os moradores da vila, pelo aspérrimo caminho do mar, tinha ido a Santos fortificar essa vila e defendê-la contra os inimigos corsários (Reg. Geral, vol.1º, págs.105 e 117). Somas enormes, para o tempo, custaram essas viagens e expedições, essas explorações dirigidas pelas mãos rotas do Governador-geral do Brasil, que largamente gastava. Quando esgotava os dízimos, quando consumia o que tomava emprestado, saqueava sem escrúpulos, o que era da prática usual. Por fevereiro, talvez, de 1600, ao porto de Santos arribou o “Mundo Dourado”, grande Urca de Amsterdam, cujo Capitão, Lourenço Bicar, alegando suas idéias cristãs e os seus intentos comerciais, requereu licença para fundear e vender as mercadorias que trazia. Despachado favoravelmente, o Mundo Dourado ancorou e, pagos os direitos reais, entrou a negociar com os moradores de Santos. Alegou-se que mais tarde, tomando inquirições D. Francisco de Sousa veio, a saber, que essa Urca, separada por tempestades de uma armada, que fora ao estreito de Magalhães a pilhar carregamentos que vinham do Peru – o que poderia ser verdade – e aportara apenas para esperar as companheiras. Foi, então, posta em prática uma das manhas de D. Francisco. Uma canoa empavesada, com pessoas tocando guitarra e cantando, dirigiu-se para a Urca. Recebidos a bordo, os tripulantes da canoa começaram a bailar e a beber, e quando parte da guarnição menos esperava, porque a maioria tinha ido a terra, os bailarinos se apoderaram da praça d’armas e da pólvora, e a sinal combinado, outras canoas com soldados e índios abordaram e tomaram a Urca. A manha aí passou a perfídia; mas pouco importava porque os costumes da época, dos dois lados, permitiam tais manobras; e com essa perfídia se fez um apresamento superior a 100.000 cruzados, os quais tão depressa adquiriram quão depressa se gastaram, conforme escreveu Frei Vicente do Salvador (História do Brasil). Na Capitania de São Vicente 285 Por historiadores contemporâneos é D. Francisco acusado de não ter sido rigoroso no cumprimento do Alvará de 11 de novembro de 1595, que proibiu terminantemente a escravização do indígena e que revigorou o de 20 de março de 1570, que permitia a cativação dos que fossem tomados em guerra justa. Conhecidos os motivos que trouxeram D. Francisco de Sousa ao sul do seu governo, é evidente que ele não poderia ter sido rigoroso no cumprimento do humano alvará, e que faria vista grossa ao seu conteúdo, pois que sendo o cativeiro do índio o lucro imediato do bandeirante, tornar efetiva a proibição seria dificultar, senão impedir as pesquisas, as investigações das minas que ele ansiava por descobrir. Ao contrário, não só não se esforçou para o cumprimento desse alvará, como mandou, protegeu, ajudou, fomentou as entradas ao sertão. Em outubro de 1599 já tinha ido examinar o ouro em Jaraguá, Bituruna, Monserrate e Biraçoiaba. Já em 27 de maio de 1599, por uma provisão autorizava a todos a ir tirar ouro (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 84). A 11 de fevereiro de 1601, porém, por um mandado, autorizava a tirar ouro em Monserrate, registrando o interessado cada semana o ouro tirado, pagando os quintos a S. M., fundindo-o e dele fazendo barras, marcadas com as armas reais. Supondo que nenhuma pessoa pudesse ser tão ousada para infringir tais ordens, e tivesse ouro em pó, entretanto, estabeleceu penas severíssimas a serem aplicadas aos infratores, tais como a perda do ouro tirado, sendo metade para cativos e a outra metade para o acusador, incorrendo mais no degredo para fora da capitania e pagando cem cruzados. Nenhuma pessoa, branca ou escrava poderia comprar ouro, salvo em barra com as marcas reais, sob pena, sendo branco, de ser degradado para Angola, com baraço e pregão na vila, e sendo índio, ser açoitado, pela vila (Reg. Geral, vol. 1º, fls. 93 e 94). A 19 de julho de 1601, em Regimento dado a Diogo Gonçalves Lasso, determinou a este que não consentisse que nenhuma pessoa fosse às minas descobertas e por descobrir, salvo “Afonso Sardinha, o velho, e Afonso Sardinha, o moço, aos quais deixou ordens do que neste particular poderiam fazer, e que seriam mostradas ao Capitão Gonçalves Lasso, por serem os ditos descobridores pessoas que bem o entendiam. 286 Washington Luís A razão desta proibição baseava-se em que, a qualquer momento, estava esperando por mineiros que Sua Majestade havia de mandar para benefício das minas, e assim nelas se não bulisse até a vinda dos ditos mineiros e mais oficiais, para que estes as achassem intactas e vissem que se falou verdade a Sua Majestade”. Determinou providências para que qualquer coisa que de novo houvesse sobre minas lhe fosse imediatamente comunicado, correndo as despesas por conta de S. Majestade, onde quer que ele estivesse (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 123 a 126). Os jesuítas não ousaram, na Capitania de S. Vicente, embaraçar a ação de D. Francisco de Sousa; ninguém ousou, ninguém poderia ousar com proveito, embaraçar a ação do poderoso Governador-geral, representante do Rei absoluto de todas as Espanhas. D. Francisco de Sousa sabia mandar, mas sabia agradar e com isso se fazia respeitar e era obedecido. Ninguém melhor o descreveria que Camilo Castelo Branco (Mosaico, artigo sobre os jesuítas, pág. 17) quando descreveu o perfil do ladino para lhe ser aplicado, se o tivesse conhecido. “Ser ladino é outra coisa. A palavra reluz e argúi saber, perspicácia, sagacidade, ponderação reflexiva, virtudes capciosas, cedência de benefício com muitíssima abnegação de vantagens próprias, influência salutar sobre os corações em que pese às rebeldias do espírito, conjugação benigna de vontades com a mira apontada a remotos futuros”. Todas essas virtudes e qualidades ele desenvolveu na Capitania de S. Vicente, tendo a seu dispor o poderio absoluto. Mas muitas dessas qualidades e virtudes possuíam também os jesuítas, conforme escreve Camilo, e que sabiam aguardar oportunidade. Mas o intuito de D. Francisco de Sousa vindo a S. Paulo, com mineiros, com ensaiadores de ouro, com fundidores, com imensa comitiva, com trabalhos e despesas enormes, com todos os papéis dos dois irmãos Soares de Sousa, que haviam feito tentativas de descobrimentos pelo norte, foi o de tentar descobrir pelo sul as “minas” nas nascenças do rio S. Francisco, minas que o obcecavam. Possuindo os roteiros das minas, tendo a sua disposição os elementos sertanistas para execução, tratou de organizar uma expedição que, partindo de S. Paulo, deveria chegar ao ponto desejado. Não obstante a sua habilidade incontestável, a sua atividade perseverante, os seus árduos e esforçados trabalhos, D. Francisco de Na Capitania de São Vicente 287 Sousa não viu a fortuna coroar a empresa a que ele se dedicara inteiramente. Fez partir para o sertão a companhia de André de Leão; estimulou e ajudou com o seu prestígio de Governador-geral do Brasil a formação e a partida da bandeira de Nicolau Barreto, ambas em busca das minas que ele supunha no alto São Francisco, como se verá quando se tratar dessas duas expedições. Nada conseguiu. Antes mesmo que a bandeira de Nicolau Barreto voltasse a povoado, já tinha sido ele substituído no Governo-geral do Brasil por Diogo Botelho, que foi reacionário ao seu antecessor. Apesar de substituído no Governo-geral do Brasil, ainda se conservou em S. Paulo durante algum tempo, pelo menos até o ano de 1603, como se vê “no termo de ajuntamento que se fez para tratar da volta dos soldados que vieram de Vila Rica do Espírito Santo (no Guairá) “ajuntamento que se fez em presença de D. Francisco de Sousa” (Atas, vol. 2º, págs. 138 e 139). Nesse mesmo ano, em 9 de agosto, a Câmara da vila de S. Paulo havia providenciado a aposentadoria do mesmo D. Francisco de Sousa, e mais gente que com ele vinha, e disso sendo encarregada a cigana Francisca Rodrigues (Atas, vol 2º, págs. 132 e 133). Quis ele sem dúvida esperar o resultado da expedição de Nicolau Barreto, para se apresentar em Madri com as provas da existência das grandes minas, que com tanta obstinação buscava. Partiu afinal para a Espanha. Na Espanha reinava, então, Filipe III que, no Governo do Brasil, substituíra D. Francisco por Diogo Botelho. Lá D. Francisco de Sousa desenvolveu as suas habilidades convencendo o Governo Espanhol da existência das famosas minas, conseguindo que o Governo do Brasil fosse dividido em dois, dele retirando as capitanias de Espírito Santo, Rio de Janeiro e S. Vicente, que passaram a constituir a repartição do sul e dela foi encarregado o próprio D. Francisco para a conquista e administração das minas descobertas e de todas as mais que ao adiante se acharem nas três capitanias (Carta de 2 de janeiro de 1608). 288 Washington Luís Para essa administração foi-lhe concedido todo o poder e alçada que tinha o Governador-geral na Bahia, quer na Justiça, quer na Fazenda. Foi-lhe mais concedido outorgar foros de fidalgo, de cavaleiro fidalgo, hábitos de Cristo, prover ofícios, provedor e tesoureiro das minas, etc., conforme se vê nos alvarás e provisões reais registrados na Câmara de S. Paulo (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 188 a 207). Apesar de todos esses poderes, D. Francisco de Sousa pouca coisa fez, ou mesmo nada fez. Na sua repartição do sul, não descobriu minas. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XVIII ANDRÉ DE LEÃO N ÃO pode ser posto em dúvida que D. Francisco de Sousa mandou ao sertão André de Leão e mais companhia descobrir minas. Ele transportou-se da Bahia a S. Paulo com o intuito de partindo do sul, descobrir os metais preciosos que os irmãos João Coelho de Sousa e Gabriel Soares de Sousa não tinham conseguido achar partindo do norte. Chegando a S. Paulo, com todo o seu aparato de Governador-geral do Brasil, tomou todas as providências para tal descobrimento promovendo a entrada com os elementos paulistas. A prova está no regimento, que em S. Paulo deu a Diogo Gonçalves Lasso, a 19 de julho de 1601, publicado no Registro Geral da Câmara da vila de S. Paulo no volume 1º, págs. 123 a 126, no qual por duas vezes o Governador-geral expressamente se refere a uma entrada, confiada a André de Leão, nos seguintes termos: ... “Sendo caso com o favor de Deus e da Virgem Nossa Senhora de Monserrate venha recado de serem achadas as minas de prata, que “André de 290 Washington Luís Leão” com mais companhia foi buscar, logo ordenareis de me avisardes com recado e cartas que trouxerem”... “mando ao Capitão Roque Barreto e ao Provedor Pedro Cubas vos dêem... embarcação no porto de Santos por conta da fazenda de sua majestade e todo o mais aviamento necessário que se lhes pedir e requerer para o efeito de se mandar este aviso e entretanto”... “sucedendo que “André de Leão”, ou pessoa que em seu lugar servir, vos peça algum favor para bem das ditas minas a que o mando, por lhe ser necessário, por causa do gentio inimigo que lá se achar, logo procurareis de o socorrer com a gente desta capitania... como também pedireis ajuda e ... ao dito Capitão Roque Barreto (e) vilas de Santos e S. Vicente...” Esse “regimento” está muito estragado pelas traças, mas conserva frases suficientes para se concluir que D. Francisco de Sousa mandou André de Leão e mais companhia descobrir e buscar determinadas minas, as minas de prata. Estava ele tão seguro de as achar que determinava ao seu Capitão Gonçalves Lasso e às autoridades locais todas as providências necessárias, mesmo por conta de Sua Majestade, para que a notícia do descobrimento lhe fosse levada onde ele estivesse. No tempo em que, vindo da Bahia, D. Francisco de Sousa, esteve pela primeira vez em S. Paulo, aí vivia Guilherme Glymmer, flamengo, que tomou parte em uma expedição ao sertão e que dela fez uma descrição, que encontrou abrigo na obra de P. Maregrave – história Botânica do Brasil – nos termos seguintes: “Julgo a propósito inserir aqui o roteiro que recebi de Wilhelm Glymmer, nosso compatriota. Conta ele que, na época em que vivia na Capitania de S. Vicente, chegara àquelas paragens, vindo da Capitania da Bahia, Francisco de Sousa; pois recebera de um brasileiro um certo metal, extraído, segundo dizia, dos montes Sabaroason, de cor azul-escura ou celeste, salpicado de uns grânulos cor de ouro. Tendo sido examinado pelos entendidos em mineração, reconheceu-se que esse metal continha, em um quintal, trinta marcos de prata pura. Fascinado por essa amostra, o governador, julgando conveniente explorar mais cuidadosamente esses montes e as minas que eles encerravam, resolveu mandar para lá setenta ou oitenta homens, entre portugueses e brasileiros. Fez parte dessa expedição o nosso Glimmer, que dela faz a seguinte descrição: Na Capitania de São Vicente 291 “Partindo da cidade de S. Paulo, na Capitania de S. Vicente, chegamos, primeiro à povoação de S. Miguel (distante de S. Paulo cinco ou seis léguas para o Nascente), à margem do rio Anhembi, e nesse lugar achamos preparadas as provisões, que os selvagens tinham de carregar nos ombros. Atravessamos, depois, aquele rio e, com uma marcha de quatro ou cinco dias a pé, através de densas matas, seguimos rumo de Norte, até um riacho que nasce nos montes Guarimumis, ou Marumiminis, onde há minas de ouro. Aqui, aparelhadas algumas canoas de cascas de árvores, continuámos rio abaixo, durante cinco ou seis dias, e fomos ter a um rio maior que corria da região ocidental. Aquele primeiro riacho deslisa por sobre campos baixos e úmidos, notáveis por sua amenidade. Tendo descido este rio maior, em dois dias, encontramos outro ainda muito maior, que nasce no lado septentrional da serra de Paranapiacaba (assim como o Anhembi nasce no lado austral da mesma Serra), e correndo, a princípio, para o Ocidente, na mesma direção dos montes, depois, formando um cotovelo, se encaminha por algum tempo para o Norte, e, afinal, como geralmente se crê, se lança no Oceano entre o Cabo Frio e a Capitania de Espírito Santo; chama rio de Sorobis e é abundantíssimo em peixes, tanto grandes como pequenos. Descendo também este rio, durante quinze ou dezeseis dias, chegamos a uma catarata, onde o rio, apertado entre montanhas alcantiladas, se despenha para o Nascente. Por isso, abicamos neste ponto as nossas canoas e marchamos outra vez a pé, ao longo de outro rio que desce do lado ocidental e não se presta a navegação. Com cinco ou seis dias de marcha, chegamos à raiz de um monte altíssimo, e, transpondo-o descemos a uns campos mui descortinados e aqui e acolá sombreados de bosques se vêem lindíssimos pinheiros, que dão frutos do tamanho de uma cabeça humana; as nozes desses frutos têm a grossura de um dedo médio e são protegidas por uma casca como as castanhas, e são mui agradáveis ao paladar e nutritivas, (Presumo que Glimmer se refere aqui à árvore da Sapucaia). Por muitas milhas no interior se encontram árvores desta espécie. “Três dias depois, chegamos a um rio, que deriva do Nascente, e, atravessando-o, durante quatorze dias, tomamos a direção de Noroeste, através de campos abertos e outeiros despidos de árvores, até outro rio, que era navegável e corria da banda do Norte. Atravessamo-lo em umas embarcações chamadas jangadas, e, quatro ou cinco léguas mais adiante, topamos outro rio que corria quase de norte e era navegável. Creio, porém, que estes três rios, afinal, confluem num só leito e vão desaguar no Paraguai, em razão de que o curso deles é para o sul, ou para o Ocidente. Em toda a viagem até aqui descrita nada vimos que de- 292 Washington Luís notasse cultura, não encontramos homem algum, apenas aqui e ali aldeias em ruínas, nada que servisse para alimentação, além de hervas e algumas frutas silvestres; todavia, observávamos às vezes fumaça, que se erguia no ar, pois por aquelas solidões vagueavam com suas mulheres e filhos alguns selvagens, que não tinham domicílio certo e não curavam de semear a terra. Junto a este último rio, encontramos, finalmente, numa aldeia de indígenas, víveres em abundância, que vinham muito a propósito, visto que já estavam consumidos os que conosco tínhamos trazido, e já a fome nos obrigava a comer frutos silvestres e hervas do campo. “Tendo-nos demorado aqui quase um mês, abastecidos de vitualhas, proseguimos a nossa viagem em rumo de noroeste e, decorrido um mês, sem encontrar rio algum, chegamos a uma estrada larga e trilhada e a dois rios de grandeza diversa, que, correndo do sul, entre as serras Sabaraasu, rompem para o Norte; e é minha opinião que esses dois Rios são as fontes ou cabeceiras do rio S. Francisco. Da aldeia sobredita até estes rios não vimos pessoa alguma, mas soubemos que além das montanhas vivia uma tribu de selvagens assás numerosa. Estes, informados (não sei como) da presença de europeus naqueles sítios, despacharam um dos seus para nos espreitar. Caindo este em nosso poder, demo-nos pressa em arripiar carreira, de medo desses bárbaros e por nos escassearem os viveres, ficando por explorar o metal por cuja causa haviamos sido mandados; e, quasi mortos de fome, voltamos aquela aldeia de selvagens. “Daí, recuperadas as forças e aparelhados os víveres, pelo mesmo caminho por onde viéramos regressamos àquele rio, onde havíamos deixado as canoas, e, revigorados, saltamos nela e subimos o rio até as suas fontes; e assim gastos nove meses nesta expedição, voltámos primeiro a Mogomimin, depois, à cidade de S. Paulo.” Por sugestão de Capistrano de Abreu, Orville Derby fez um estudo sobre o roteiro descrito por Guilherme Glymmer, inserido na obra de Margraff, a fim de identificá-lo no terreno. As sugestões de Capistrano de Abreu foram felizes, como em regra as suas soluções, pois que Orville Derby era o homem capaz de fazer bom trabalho, não só pelo seu saber e competência, como pela sua experiência e prática que havia adquirido em estudar e explorar as terras e rios percorridos pela expedição de que Glymnier fez parte. Na Capitania de São Vicente 293 Em 1879, o Conselheiro Cansanção de Sinimbu, então à testa do Governo Imperial, iniciando uma política de melhoramentos materiais, organizou, sob a direção do abalizado engenheiro americano, William Milnor Roberts, uma comissão de engenheiros para o fim de estudar os portos do Brasil e a navegação interior dos grandes rios que desembocam no oceano. Além do chefe, W. M. Roberts, havia no pessoal dessa comissão os engenheiros Amarante, Wieser, Lisboa, Saboya, Pecegueiro, Aquino e Castro, Orville Derby e Teodoro Sampaio. Teodoro Sampaio escreveu um livro sobre essa expedição do qual tiro estes informes: “Essa comissão, em pouco mais de quatro meses, subiu o Rio S. Francisco desde a sua foz, no Atlântico, até Pirapora, corredeira, no Estado de Minas Gerais, levantando o seu curso, desenhando as serras vizinhas, esboçando as pequenas vilas e cidades, marcando o desemboque dos seus afluentes. “Passou na confluência do rio Paracatu, à margem esquerda e depois na do rio das Velhas à margem direita. “A comissão esteve na barra do rio Paracatu, no dia 9 de dezembro de 1879, onde se demorou para receber lenha para o vapor em que viajava, e para medir a embocadura desse rio, que tinha 216 metros de largo.” Aí ouviu Teodoro Sampaio a narrativa de lendas misteriosas, de coisas extraordinárias, para as quais não faltaram, como sempre acontece, testemunhas oculares e sérias, que afirmaram a veracidade sob palavra de honra. Daí seguiram alcançando a barra do rio das Velhas a 13 de dezembro de 1879. Foram todos até Pirapora e na volta, estiveram de novo na povoação Manga, na confluência do rio das Velhas com o S. Francisco, da qual fizeram um esboço. Aí a Comissão se desmembrou, estabelecendo-se o plano para ultimar as explorações. O Sr. Orville Derby remontaria o vale do rio das Velhas, transporia a serra do Espinhaço e voltaria por estrada de ferro para o 294 Washington Luís Rio de Janeiro. O restante da Comissão voltaria pelo S. Francisco, rio abaixo (Th. Sampaio, O Rio S. Francisco. Págs. 5, 20, 91). Assim foi feito. Orville Derby, pois, conheceu pessoalmente no norte como técnico competente, em 1879, a região atingida em 1603, pela expedição de que fez parte W. Glymmer. Teve, pois, elementos para identificar essa região, que mais tarde estudou toda minuciosamente até muito mais ao Sul, baseado em documentos paulistas e em estudos sobre o terreno. Orville Derby foi, e por muitos anos, como muitas pessoas ainda se lembrarão, e então adquiriu conhecimento do terreno ao sul do S. Francisco, chefe da então Comissão Geográfica e Geológica criada em S. Paulo pelo Conselheiro João Alfredo, no tempo do Império. Dirigindo a Comissão Geológica e Geográfica do Estado, ele estudou e fez levantar plantas, mapas da maior parte do território de S.Paulo, principalmente nas fronteiras do Estado de Minas Gerais, numa época em que se desejava bem conhecer a região para decidir e fixar as divisas entre esses dois estados. A respeito dessas divisas o Arquivo Público do Estado de S. Paulo publicou grossos volumes de documentos. Orville Derby não se limitou ao estudo atento desses documentos, leu também todos os nossos cronistas e os cronistas estrangeiros, que se ocuparam do Brasil colonial e de sua expansão. Teve ele ocasião de conhecer, na História Natural de Piso e Marcgraff, o escrito de Glymmer sobre o roteiro de uma das primeiras bandeiras paulistas partidas de S. Paulo para o sertão, no tempo em que D. Francisco de Sousa, viera da Bahia para a vila de S. Paulo, a fim de procurar minas de metais preciosos, nas nascenças do rio S. Francisco. Podia, pois, concluir, com pouco risco de errar, que o rio Guaibií era o Guaicuí ou rio das Velhas, um dos afluentes da margem direita do S. Francisco (R.I.H.G.S. Paulo, vol. IV e vol. 8, pág. 400). Atendendo à sugestão de Capistrano de Abreu fez traduzir o roteiro de Glymmer, pôs em contribuição os trabalhos e os estudos próprios que lhe advieram do conhecimento da zona, como membro de uma comissão exploradora do rio S. Francisco e como chefe da Comissão Geográfica e Geológica do Estado, e identificou todos nos pontos Na Capitania de São Vicente 295 nele mencionados com a conformação e acidentes do terreno, pelos seus rios, cursos e cachoeiras, pelos seus vales, montes, planícies, campos e matos desde S. Paulo até as cabeceiras do rio S. Francisco no centro do Brasil. Consultou também as fontes históricas locais, então existentes – Pedro Taques, num manuscrito conservado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que fala na entrada de André de Leão, e Azevedo Marques nos Apontamentos Cronológicos, que narra que em 1602 partiu numerosa bandeira para o sertão sob o comando de Nicolau Barreto e formulou a hipótese de que as duas informações se referiam a uma só entrada, e que a expedição fora uma única, cabendo a Nicolau Barreto a organização civil e a André de Leão, a parte militar. Foi a expedição, em que tomou parte Glymmer, que O. Derby identificou no terreno. Na época em que Orville Derhy divulgou o seu estudo não tinham ainda sido publicados pelo Arquivo do Estado de S. Paulo os Inventários e Testamentos; e escassas eram as notícias sobre essas entradas; mas desde que teve conhecimento dos inventários, feitos por morte de Brás Gonçalves, o moço, e de Manuel de Chaves, e verificou que a hipótese sugerida de uma expedição única não tinha cabimento, apressou-se ele mesmo em bani-la como se pode ver em um estudo aditivo na R.I.H.G. de S. Paulo, v. 8º, pág. 400. Aliás a hipótese da unidade da expedição só poderia interessar ao renome dos seus comandantes, nenhum valor tendo para identificação do roteiro de W. Glymmer, que era o objetivo essencial para fixar pontos do devassamento e ocupação do sertão, identificação que continua, pois, com o seu mérito próprio. O vale do Paraíba já estava domado pelos portugueses nas lutas que sustentaram com os Tamoios e pelo abandono do Rio de Janeiro pelos franceses. Relativamente fácil foi à expedição de André de Leão o caminhar por esse rio, vales e montes. Vai transcrita a identificação feita, por Orville Derby, no terreno e nos rios tornando por base a descrição de W. Glymmer. 296 Washington Luís 1 “Partindo de S. Miguel , nas margens do Tietê, perto de S. Paulo, a bandeira passou para um afluente do Parayba, ganhou este rio, navegou por ele abaixo, até a sua secção encachoeirada, galgou a Serra, da Mantiqueira, passou diversos rios atribuídos correctamente ao sistema platino e penetrou até próximo ao alto S. Francisco. Até entrar na bacia do S. Francisco, este caminho deve corresponder muito proxima, se não exactamente, com o da Bandeira de Fernão Dias Pais Leme, ‘uns setenta anos mais tarde, e com o que depois da descoberta de ouro se tornou célebre como o caminho para as Minas Gerais. Sobre a derrota de Fernão Dias, não temos detalhes, senão do Rio Grande para o norte, onde diverge da do atual roteiro; mas para a dos mineiros existe o precioso roteiro dado por Antonil, na sua obra, intitulada Opulência e cultura do Brasil publicada em Lisboa, em 1711. Pela comparação desses dois roteiros e levando em consideração a probabilidade de que a derrota de ambas fosse determinada por caminhos já existentes dos Índios, sendo, portanto, provavelmente idênticos, é possível reconstruir grande parte do caminho da Bandeira de 1601. Os dois rios que deram acesso ao Parayba eram indubitavelmente o Paratehy e o Jaguary. A serra de Guarimunis, ou Marumiminis, é 1 Em 1902, segundo vejo do meu caderno, tomei a seguinte nota: “Em 27 de novembro de 1600, por um termo de vereança, vê-se que nessa data se preparava, com consentimento de D. Francisco de Sousa, uma entrada ao sertão, que não era o da capitania, da qual faziam parte moradores da terra e de fora dela. Era sem dúvida a de André de Leão, que partida era dezembro de 1600 (pág. 403), ainda estava no sertão em 1601, tendo voltado por agosto ou setembro, assim completando os nove meses de que fala Glymmer. Este tomou parte em uma bandeira quando D. Francisco de Sousa, vindo da Bahia, chegou a S. Paulo para descobrir as minas de metal que continham prata extraída dos montes Sabarousom”. No vol. 2º das Atas, em que foram publicadas as vereanças de 1600, não se encontra essa de 27 de novembro de 1600, a que se refere à nota transcrita. Como se vê no vol. 2º, das Atas às págs. 82 e 83 com que termina o ano de 1600 há uma vereança a 27 de novembro que não se refere ao preparo dessa entrada. Há depois um termo (pág. 83) de seis linhas que nada diz. Provavelmente quando Manuel Alves de Sousa copiou esse livro já as páginas correspondentes à vereança de 27 dc novembro, de que foi copiada a nota transcrita, haviam desaparecido, consumidas pelo manuseio ou por outra qualquer razão. Para tal informação só resta a nota por mim tomada, que pouco valor tem, quanto à autoridade do extrato, que ficou acima transcrito. Na Capitania de São Vicente 297 a atualmente conhecida pelo nome de Itapety, perto de Mogy das Cruzes, sendo possível que estes nomes antigos ainda sejam conservados no uso local. A referência a minas de ouro nesta serra talvez seja um acréscimo na ocasião de redigir o roteiro; mas é certo que em 1601, havia, desde uns dez ou doze anos, mineração nas vizinhanças de S. Paulo, e que antes de 1633, quando foi publicada a edição latina da obra de João de Láet, em que vem a enumeração das minas paulistas, a houve na localidade aqui mencionada. A referência aos campos, ao longo do primeiro destes rios, é, talvez, um caso de confusão com os do rio Parayba, visto que, conforme informações dos ajudantes da Comissão Geográphica e Geologica, que ultimamente levantaram a planta do vale do Pararehy, ali não existem campos notáveis. O rio então conhecido pelo nome de rio de Sorobis, bem que a sua identidade com o Parahyba do litoral já era suspeitada, foi alcançado na foz do Jaguary, em frente da actual cidade de São José dos Campos. Nota-se que, já nessa época, era conhecido o curso excêntrico do alto Parahyba. Depois de 15 ou 16 dias de viagem o rio foi abandonado no começo da secção encachoeirada, perto da actual cidade da Cachoeira, e a bandeira galgou a Serra da Mantiqueira, seguindo um pequena rio que, muito provavetmente, era o Passa Vinte, que desce da garganta que depois serviu para a passagem da estrada dos mineiros e hoje para a da estrada de ferro Minas e Rio. Passando o alto da Serra, a bandeira entrou na região dos pinheiros, que os naturalistas holandeses (que evidentemnente não conheceram a Araucária, desconhecida no Norte do Brasil) julgaram, pela descrição de Glimmer, que eram Sapucaias. Deste ponto em diante, o roteiro torna-se um tanto obscuro, dando a suspeitar o ter havido alguma confusão na redeção... Os dados topográficos são; o rumo de noroeste e as passagens de três rios, dos quais dois maiores, navegáveis e vindos do norte, com a distância de 4 ou 5 léguas entre um e outro. Os únicos rios em caminho das cachoeiras do Parahyba para a região do alto S. Francisco, que corresponder a esta descrição destes dois rios, são o Rio Grande e Rio das Mortes, perto da sua confluencia. Ahi o Rio Grande cujo curso geral é para o oeste corre, por alguns kilômetros, do norte, num grande saco que sempre tem sido um ponto de passagem, e, a quatro ou cinco léguas adiante, o 298 Washington Luís 2 Rio das Mortes tambem vem um pequeno trecho do Norte . Este trecho é junto à estação de Aureliano Mourão, na estrada de ferro Oeste de Minas e poucos kilômetros abaixo da povoação de Ibituruna, onde Fernão Dias estabeleceu um dos seus postos, talvez por encontrar perto a grande aldeia de índios amigos, rica em mantimentos, de que fala o nosso Glymmer. Se porem, este for o ponto de passagem do Rio das Mortes, não se encontra, a três dias de viagem, dos Pinheiros e a quatorze do Rio Grande, rio algum que pareça digno de menção numa narrativa em que não vem mencionado o Angahy. Este, pelo roteiro de Antonil, está a 22 ou 24 dias de viagem dos Pinheiros e a 4 a 5 do Rio Grande. Para pôr os dons roteiros de acordo, identificando o primeiro rio de Glymmer com o Angahy, seria necessário inverter os termos dos três e dos quatorze dias de viagem, supondo um outro caso de confusão na redação, como o já apontado com os campos do Paratehy e Parahyba. Da passagem do Angahy o caminho dos mineiros dado por Antonil tomou mais para a direita, procurando São João d’El-Rei, via Carrancas. É para notar que as marchas diárias do roteiro de Antonil são pequenas, sendo geralmente “até o jantar”, o que explica, talvez, a discordância, do número de dias (de 14 a 22 ou 24) que se ‘nota na hypothese de ser o Angahy o primeiro rio do presente roteiro. Partindo da aldeia sobre o terceiro rio, a Bandeira caminhou durante um mes em rumo de noroeste, sem passar rio algum, até achar-se perto da confluência de dous rios de diversas grandezas, que romperam para o norte, entre montanhas que foram identificados com a desejada Serra de Sabarábussú. Aqui, foi encontrada uma estrada larga e trilhada, que nesta época não podia ser senão dos Índios e cuja existência confirma a hipótese já lançada da que a derrota, desta e de subseqüentes bandeiras era por estes caminhos fá existentes. A estrada seguida da aldeia por diante era pelo alto de um espigão, e, admitindo que o ponto de partida era nas vizinhanças de Ibituruna, temos três hipóteses a considerar: 2 Estes trechos em rumo de Norte a Sul, que não vêm representados na maioria das cartas, são figurados ao excelente mapa que acompanha o trabalho do falecido dr. Augusto de Abreu Lacerda sobre a bacia do rio das Mortes, no Boletim nº 3 da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de Minas Gerais. Na Capitania de São Vicente 299 1º O espigão entre o Rio Grande e as cabeceiras dos rios Pará e S. Francisco. 2º O entre os rios Pará e S. Francisco. 3º O entre os rios Pará e Paraopeba. O caminho pelo primeiro destes espigões, passando por Oliveira, Tamanduá e Formiga, até o alto S. Francisco, corresponde regularmente com o rumo dado, tendendo, porém, mais para o oeste do que para o noroeste, e cruzando o rio Jacaré que, conquanto não seja grande, parece de bastante importância para ser mencionado. Por este espigão, porém, é difícil identificar os dois rios do fim da jornada e a serra cortada por eles, porque as serras de Piumhy ou a de Canastra mal correspondem à descrição do roteiro. O segundo espigão daria para cair na forquilha entre o Pará e o Itapecerica, ou entre o Pará e o Lambary, ou finalmente, entre o Pará e o S. Francisco. As duas primeiras parecem demasiado perto para a jornada de um mez, e na do Pará e São Francisco os dois rios devem figurar como tendo proximamente a mesma grandeza. O terceiro espigão daria, na hipótese de accompanhar de perto a margem direita do Pará, para cahir na forquilha entre este rio e seu afluente o rio de S. João, na passagem das serras na vizinhança da atual cidade de Pitanguy; e, sem poder pronunciar-me positivamente a respeito, sou inclinado a considerar esta como a hipótese mais provável. Até aqui o estudo do O. Derby (R.I.H.G. de S. Paulo, vol. 4º, pág. 338), sobre a identificação do Roteiro de Glymmer no terreno. Fácil também é agora identificar o cabo da expedição mandada por D. Francisco de Sousa, e na qual tomou parte Guilherme Glymmer. Essa identificação está baseada nos documentos do Arquivo Público do Estado de S. Paulo e do Arquivo da Câmara da vila de S. Paulo, apoiada em alheios estudos precedentes. As entradas de Antônio de Macedo e de Domingos Luís Grou foram começadas antes de 1583, as de Jerônimo Leitão até 1590, foram todas anteriores à nomeação de D. Francisco de Sousa para Governador-Geral do Brasil. A de Jorge Correia em 1595, a de Manuel Soeiro (?), em 1596 e a de João Pereira de Sousa em 1597 se realizaram 300 Washington Luís depois que D. Francisco de Sousa já era Governador-Geral do Brasil, mas se conservava ainda na Bahia, sede de seu Governo, sem ter vindo à Capitania de S. Vicente. Já se achando ele na Capitania de S. Vicente, desde antes de Julho de 1601, a expedição de André de Leão em 1602 foi promovida, organizada, sob influência e ordem de D. Francisco de Sousa, que só com esse fim veio ao sul, o que é confirmado pela descrição do roteiro, inserido na obra de Piso e Maregrave. Nele Guilherme Glymmer declara que vivia na capitania de S. Vicente, quando a “essa paragem, vindo da Bahia, D. Francisco de Sousa, Governador-Geral do Brasil, mandara ao sertão”, a descobrir minas, uma expedição, composta de 70 a 80 homens, na qual ele Glymmer tomara parte, expedição que voltara ao povoado sem descobrir minas de ouro ou prata, por terem escasseados os víveres e por medo dos selvagens que povoavam os lugares atingidos e, portanto, sem aprisionar índios”. Glymmer só poderia ter tomado parte na expedição de André de Leão, que se compôs de 70 a 80 homens, mandada por D. Francisco de Sousa, época em que este Governador se achava em S. Paulo, conforme o regimento que deu a Diogo Gouçalves Lasso a 19 de Julho de 1601. Os pontos expressamente mencionados no roteiro de Glymmer – S. Paulo, S. Miguel nas margens do Anhembi, travessia do rio Anhembi, serra dos Guauminis (Itapeti hoje) rio Sorobi (hoje Paraíba) – mostram que a expedição seguiu para leste e depois para o norte buscando o rio S. Francisco. A não ser que haja, nesse tempo, outra bandeira, da qual, entretanto, não dão notícias os documentos paulistas nem os cronistas vicentinos, parece que se pode concluir “sem risco de errar”, que foi na bandeira de André de Leão, em 1601, que Glymmer tomou parte e descreveu o roteiro que foi inserido na obra de Piso e Marcgraff, e cuja identificação no terreno foi magistralmente estudada por Orville Derby no volume 4º, pág. 329 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo. *** André de Leão é nome que não se encontra entre os da governança de S. Paulo, nas atas publicadas. Achei menção de um André de Leão no inventário de Martim de Prado, feito em 1616, publicado Na Capitania de São Vicente 301 pelo Arquivo do Estado de S. Paulo (Vol. 4º, pág. 406), onde figura “quitação que deu André de Leão ao dito defunto de seis mil réis, da qual quantia perdeu o conhecimento que havia”. Num estudo, que fez sobre o Hospital Velho da Santa Casa do Rio de Janeiro (R.I.H.G.B. vol. 89, pág. 204) o Sr. Vieira Fazenda refere-se a um documento de doação de chãos aos religiosos capuchos, em 28 de Fevereiro de 1592, no qual assinam Salvador Correia de Sá, Governador do Rio de Janeiro, o administrador eclesiástico, e em terceiro lugar, logo em seguida, André de Leão, e depois mais dezesseis pessoas. Se, é o mesmo da entrada de 1601, André de Leão estava no Rio de Janeiro, antes dessa entrada. Também na “Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro”, extraída dos livros de Sesmarias e Registro do Cartório do Tabelião Antônio Teixeira de Carvalho – de 1565 a 1796 – feita por Monsenhor José Pizarro de Sousa Azevedo e Araujo, consta a sesmaria concedida a “André de Leão”, de 300 braços na lagoa, em 19 de Janeiro de 1593 (R.I.H.G.B., vol. 63, 1ª parte, pág. 108), também antes da entrada. A não ser o caso de homonomia, freqüente nos tempos coloniais, André de Leão teria vivido no Rio de Janeiro. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XIX NICOLAU BARRETO C HEGANDO a um sertão do Brasil, onde escassearam os víveres e onde, segundo informações de um indígena aprisionado, havia muitas tribos selvagens, conforme narra o roteiro de Guilherme Glymmer, a bandeira de André de Leão regressou a S. Paulo, sem descobrir minas e sem cativar índios. Sendo pequena em número, 60 a 70 homens, e com poucos mantimentos, a bandeira não ousou prosseguir no descobrimento nem fazer a guerra ao gentio numeroso e inimigo, que lá se achava. A causa, pois, do insucesso dessa expedição foi sua organização deficiente em pessoal e em mantimentos, causa facilmente removível diante da pertinácia de D. Francisco de Sousa, absorvido completamente em descobrir as minas de ouro e prata, já procuradas desde o norte do Brasil, não trepidando ele em deixar a sede do Governo, na Bahia, para vir encontrá-las partindo do sul. Promoveu ele a organização de outra expedição muito mais numerosa e convenientemente abastecida, de modo, a devidamente explorar e descobrir a região tão procurada. 304 Washington Luís Essa outra expedição teria sido composta na sua maioria com moradores da vila de S. Paulo, mas também com moradores das outras vilas da capitania, e com os de outras capitanias sobre as quais se estendia a jurisdição do Governador-Geral, e mesmo com gente da comitiva deste, pois que S. Paulo, naquele tempo não poderia, sozinho, organizar uma bandeira com 300 homens brancos. O seu comando foi confiado a Nicolau Barreto, irmão de Roque Barreto, nessa época, capitão-mor-loco-tenente pelo donatário Lopo de Sousa. Compôs-se ela de cerca de 300 homens brancos, de índios auxiliares e escravos, nela tomaram parte os Padres João Álvares e Diogo Moreira, como capelães da tropa, e mais e Pe. Gaspar Sanches (Inventários e Testamentos, vol. 1º, pág. 489 e vol. 21, pág. 18). Organizou-se a bandeira com parecer de D. Francisco de Sousa, com ordem e mando do capitão-mor-loca-tenente, Roque Barreto e a requerimento das Câmaras e partiu depois da substituição de D. Francisco de Sousa no Governo do Brasil(Atas, vol. 2º, pág. 130 Reg. Geral, vol. 7º, págs. 113 e 114). Azevedo Marques na sua Cronologia, pág. 224, informa que: “em Agosto de 1602 parte de S. Paulo para o sertão numerosa bandeira ao mando de Nicolau Barreto, em direção de Mogy das Cruzes, com o fim ostensivo de descobrir ouro. Dela fizeram parte pessoas importantes daquela época, tais como Simão Borges de Cerqueíra, fidalgo da Casa Real, Ascenso Ribeiro, Pedro Leme, Manuel Preto, Francisco de Alvarenga e outros.” Cita como fonte dessas informações o inventário de Ascenso Ribeiro, no cartório de órfãos de S. Paulo. Este inventário de Ascenso Ribeiro não foi encontrado no Arquivo Público do Estado de S. Paulo, por mais cuidadosas que tivessem sido as pesquisas feitas por Manuel Alves de Sousa, encarregado pelo Governo do Estado de S. Paulo, de traduzir, copiar e publicar os inventários lá recolhidos do Cartório de Órfãos, e desejoso esse paleógrafo de cumprir as instantes recomendações, que lhe haviam sido feitas. Outros inventários, porém, publicados pelo Arquivo, vieram esclarecer, precisar e preencher lacunas da breve, contudo, preciosa notícia recolhida por Azevedo Marques. Na Capitania de São Vicente 305 Assim o inventário de Brás Gonçalves (Inv. e Test., vol. 11, pág. 9 e segts. e o de Manuel de Chaves, Idem, V. 1º, pág. 459 e segts.) confirmaram a existência da bandeira comandada por Nicolau Barreto; ela porém partiu, não em agosto, mas nos princípios de setembro, porque esses dois bandeirantes, que nela tomaram parte, ainda se achavam em S. Paulo nos primeiros dias de setembro, e aí assinaram, neste mês, setembro, documentos de dívida, com o fim de obter recursos pecuniários para a entrada que fizeram na Companhia de Nicolau Barreto (Inv. e Test., vol. 1º, pág. 486, vol. 11, pág. 17). A partida em princípios de setembro se confirma na vereança de oito desse mês na qual o único vereador do ano de 1602, restante na vila, Josepe de Camargo e o povo “por não haver oficiais e se irem todos os mais fora, elegem dois juízes, um vereador e um procurador do conselho que sirvam na ausência dos mais” (Atas, vol. 2º, pág. 109). É lógico supor-se que indicando o mês de agosto para a partida da bandeira, Az. Marques se tenha apoiado em documentos de dívida, idênticos aos que se encontram nos inventários de Brás Gonçalves e de Manuel de Chaves, e que permitem agora marcar a partida da bandeira para princípios de setembro. Essa diferença de poucos dias para a partida não invalida a informação amplamente confirmada. No seu livro História da Companhia de Jesus (vol. 1º, pág. 189 em nota) o Padre Pablo Pastells transcreveu em nota, e na íntegra uma carta do Padre Justo Mancilla van Surck, escrita da Bahia, a 2 de outubro de 1629, ao Geral da Companhia de Jesus, em que descreve com cores vivas, e, com palavras veementes, acusa de crueldade os costumes paulistas de então, dizendo que “no ano de 1602 (?) foi de S. Paulo a buscar e trazer índios Nicolau Barreto, com licença de seu irmão Roque Barrete, capitão da terra, com capa de descobrir Minas”. Assim quer com documentos municipais quer com os jesuíticos se mostra não haver dúvida alguma quanto à ida de Nicolau Barreto ao sertão, com “cerca de 270 a 300 homens”, e mais índios escravos. Acrescenta Azevedo Marques que a bandeira partiu em direção a Mogi das Cruzes. Quis ele designar não o destino, mas o itinerário e o fez pelo nome atual de uma das primitivas paragens que anteriormente foi chamada Mogi, designação que não ignoram os que cuidadosamente estudam a toponomia de S. Paulo. 306 Washington Luís É ele, mesmo, Azevedo Marques, que, sob o verbo Mogi das Cruzes, nos seus Apontamentos, informa que, em tempos remotos, tal localidade se denominou Bogi, que se transformou em Mogi com o acréscimo das Cruzes, porque no adro da primeira matriz, que lá houve, existiram plantadas três cruzes. Aí Brás Cubas, segundo ainda o mesmo informante, tinha uma fazenda de cultura em terreno compreendido em uma grande sesmaria obtida em 1560, e que começava abaixo da serra e ia até o cimo. Era uma paragem, bem conhecida na época da partida da bandeira, essa de Bogi, nome corrompido em Mogi, e mais tarde transformado em Mogi das Cruzes. Pedro Taques conta que foi Brás Cardoso o fundador da povoação de Mogi das Cruzes, em 1602, ereta vila em 1º de setembro de 1611 (História da Capitania de S. Paulo). Bogi... Mogi... são modificações da mesma voz pronunciada pelos índios tupis e que eram grafadas conforme permitiam as poucas letras dos escrivões da época. É freqüente, nas Atas da Câmara, nos testamentos, no Registro das Sesmarias, encontrar-se o nome da mesma localidade ou duma mesma tribo indígena, escrito de macio diferente, na mesma página, nas páginas seguintes, e, em anos subseqüentes, como já disse, podendo-se ver as transformações de tal nome até a sua fixação atual. Nas concessões de datas de terras nessa paragem se pode acompanhar a evolução dessa palavra, até se consolidar na atual Mogi das Cruzes. Assim (Livro 1 de Sesmarias Publicação do Arquivo de S. Paulo) o Capitão-Mor Gaspar Conquero concedeu a 24 de Janeiro de 1609 a Francisco Vaz, terras pelo “... ombiaci para a banda da Paraíba, defronte de uma serra que se chama Tapeti, no Boixi miri (Vol. 1º, pág. 38). A 10 de Novembro de 1609 o mesmo Gaspar Conquero deu a Fulano Rodrigues, morador em S. Paulo, uma légua de terra na banda dos campos de Utacurubitiva no caminho que Gaspar Vaz fez e que vai para “Boigi mirim” a saber partindo da barra dum rio que se chama Guayoó...e correrá avante até dar no rio Grande de Anhembi” (Idem, vol. 1º, pág. 66) A 27 de Fevereiro de 1610, ainda Gaspar Conquero concedeu uma sesmaria ao clérigo João Álvares, natural da vila de S. Paulo, filho e neto de conquistadores, assistente em Boigi-mirim, uma légua de terra em Na Capitania de São Vicente 307 quadra, que começará a partir pelo caminho para o dito rio da Paraíba e fica... para o rio Anhembi (Idem, v. 1º, pág. 90). A 1º de Abril de 1610, mais uma vez esse capitão-mor concedeu a Domingos Agostin em Boigi-Mirim uma légua de terra do outro lado do Anhembi partindo com Gaspar Vaz (Idem, vol. 1º, págs. 91 e 92). A 15 de Março de 1611, Amador Bueno, morador em S. Paulo, em petição ao Capitão-Mor Gaspar Conquero, declarando que está informado que junto a Maria Álvares, dona viúva, mulher que foi de Manuel Eianes, perto de S. Miguel, aldeia dos índios, estão terras devolutas para a banda de Mogi, as pede etc. (Idem, vol. 1º, pág. 145). Por Aguiar Barriga é concedida em Mogi-Mirim, a Manuel da Siqueira e a Francisco Bicudo, moradores em S. Paulo, filhos e netos de povoadores e conquistadores, uma légua de terras, nas cabeceiras do Padre João Alvres e outros, que com elas partem, rio acima em Taquaquecetiba no termo da vila de Santa-Ana da outra banda do Anhembi (Idem, vol. 1º, págs. 252 e 253). A 4 de Janeiro de 1641 é concedida a João Portes de El Rey e outros, filhos e netos de povoadores e conquistadores desta capitania, na vila de Santa Anna das Cruzes de Mogi-Mirim duas Léguas de terras de matos daninhos pelo rio arriba à mão esquerda do rio Anhembique (Idem vol. 1º, pág. 418). Nessas sete sesmarias – das quais as duas primeiras trazem a data de 1609, época muito próxima à da partida da bandeira de Nicolau Barreto – nessas sesmarias o nome e escrito de diversas maneiras; mas as indicações locais, que o acompanham como a Serra Tapeti, que fica na vizinhança de Mogi das Cruzes, o rio Anhembi, a barra do rio Guaiaó, a aldeia de S. Miguel, Tacuaquecetuba (acidentes geográficos e povoações intermediárias entre S. Paulo e Mogi das Cruzes), Boacica, o rio Paraíba, as confrontações coincidentes com Gaspar Vaz e com o Padre João Alvres, levam a identificar, sem dúvida alguma, Boigi, Mogi, Mogi-Mirim com Sant-Anna das Cruzes de Mogi-Mirim e afirmar que Mogi-Mirim, antiga povoação que se fez na sesmaria de Brás Cubas, fundada por Brás Cardoso, criada vila em 1611, elevada a cidade em 1855, é a atual Mogi das Cruzes. 308 Washington Luís Avisadamente andou Az. Marques indicando em 1872, época em que escreveu os seus Apontamentos, “Mogi das Cruzes” como sendo a direção da bandeira de Nicolau Barreto, porque, se o fizesse com o nome contemporâneo da entrada, estabeleceria confusão com uma outra localidade, mais tarde chamada, e ainda hoje, “Mogi Mirim”, situada próxima ao rio Mogi-Guaçu, afluente do rio Pardo. Os documentos locais da vila de S. Paulo dão elementos seguros para se concluir que a diretriz da bandeira foi Mogi das Cruzes. O documento, já aqui citado, inserido em nota pelo Padre P. Pastells, no volume 1º da sua citada História da Companhia de Jesus na Província do Paraguai, às páginas 189 a 191 em nota, e consistente como disse em uma carta do Pe. Justo Mancilla van Surck, datada da cidade do Salvador, Bahia, a 2 de Outubro de 1629, dirigida ao Geral dos Jesuítas, narra que O Pe. Francisco Carneiro contou que no ano de 1602 (?) saiu de S. Paulo a buscar e a trazer índios Nicolau Barreto, irmão de Roque Barreto capitão da terra, com o fim ostensivo (com capa) de descobrir minas e levou em sua companhia 270 portugueses e três clerigos. Acrescenta que um quarenta deles encontraram por aqueles montes com uns índios cristãos, que, enviados por nossos padres de Villa Rica do Espírito Santo, tinham ido buscar seus parentes e trazê-los para as nossas aldeias e, com efeito, levavam para lá umas 700 almas; porém os portugueses tomaram todos, não obstante os índios cristãos lhes dizerem que eram enviados dos nossos padres e que perto havia muitos outros índios infiéis, que poderiam ser levados. Na sessão de 24 de Novembro de 1602 (Atas, vol. 2º, pág. 113) em requerimento e protestação ao Capitão-mor Diogo Lopes de Castra, a Câmara declarou que eram ido dez homens ou mais pelo rio abaixo em busca de algumas peças (índias) e que lhes poderia suceder matarem-nos”..., declaração que se torna mais explícita, quando em seguida fez escrever que a sua notícia era vindo, como dez ou doze homens que estavam em seguimento de Nicolau Barreto, capitão, que Roque Barreto, capitão que foi desta capitania, mandou ao sertão, mudaram de viagem e se foram pelo rio Anhembi abaixo, aonde lhes pode suceder muito mal com os matarem e que é necessário e será grande serviço de Deus mandar em seu seguimento 15 ou 20 homens.., e os tirar d’algum perigo em que podem estar”... (Atas, vol. 2º, pág. 114). Na Capitania de São Vicente 309 Evidentemente o fato narrado por Pastells é o mesmo referido pela Câmara de S. Paulo; o mesmo ano de 1602, a mesma expedição sob o comando de Nicolau Barreto com três clérigos, a mesma circunstância de uma parte, que se destacou do corpo principal da bandeira. Esses dois documentos se completam. Há apenas pequena discordância quanto ao número dos homens, que se separaram da bandeira, discordância facilmente explicável. O Padre Mancilla alude a cerca de 40 homens, a Câmara de S. Paulo se refere a uns 10 ou 12. Nenhum deles quis dar, nem o poderia fazer, o número exato desse destacamento. O Padre Mancilla não sabia, de ciência própria, o fato de 1602. Escrevendo 27 anos depois, e da Bahia, a ele se referiu por o ouvir ao Padre Francisco Carneiro, que possivelmente aumentou o número das pessoas, componentes do destacamento A Câmara de S. Paulo, contemporânea e interessada no fato, sugeriu menor número para facilitar o Capitão Roque Barreto a prestar o auxílio de 20 ou mais homens para juntá-los aos 10 ou 12 que tinham ido rio abaixo, o que provavelmente foi feito, e faz coincidir aproximadamente os dois efetivos indicados para o destacamento. Essa circunstância tem porém, pouca importância, desde que em ambos está bem caracterizada a bandeira de Nicolau Barrete em 1602 da qual se separou uma parte. Do trecho transcrito da obra do Pe. Pastells vê-se que o destacamento, que se separou da bandeira de Nicolau Barreto, encontrou “por aqueles montes 700 índios que iam sendo levados para Vila Rica do Espírito Santo”, a fim de serem catequizados nas aldeias que lá existiam. Como se lê os 700 índios, aprisionados nessa ocasião, pois, não estavam na Província do Paraguai; ao contrário, eram para lá levados por índios já cristianizados. Eram os padres jesuítas do Guairá – que vinham “chasser dans nos terres”, poderia dizer o cabo da bandeira. O aprisionamento foi feito nos montes do vale do Tietê, onde habitavam os tupiniquins. Ambas as entradas, quer a mandada pelos jesuítas, mencionada na obra de Pastells, quer a que se referiu Azevedo Marques, tendo por objetivo buscar gentio, motivo da luta entre a catequese religiosa e a cativação colonial, se haviam de encontrar nos sertões da capitania de S. Vicente, nos quais ambas penetravam. 310 Washington Luís Se o destacamento tivesse ido ao Guaíra, o Padre Mancilla indicaria essa circunstância como, também, sem dúvida alguma, mencionaria a presença de Nicolau Barreto, se ele lá tivesse ido com a sua bandeira. É claro que não se limitaria a transmitir a informação do Pe. Francisco Carneiro, ex-Reitor do Colégio do Rio de Janeiro. Afirmaria o que teria ouvido in loco aos padres das reduções do Guairá, porque ele foi um deles e dos mais zelosos, desde 16281. A Câmara municipal da pequenina vila de S. Paulo seiscentista, situada na colina entre o Tamanduateí e o Anhangabaú, informa que dez ou doze homens, que estavam em seguimento de Nicolau Barreto, mudaram de viagem e foram pelo rio Tietê abaixo. Ora, visto desse S. Paulo quem mudou de viagem pelo rio, deixando a companhia de Nicolau Barreto e foi pelo Tietê abaixo, evidentemente tomou a direção de Barueri, de Pirapora, de Itu etc., foi em suma em direção ao rio Paraná para o oeste. A tropa de Nicolau Barreto, que não mudou de direção, não poderia ir para o oeste, porque então toda ela mudaria de direção; não seguiria para o sul, porque logo chegaria ao litoral, nem para o norte porque logo esbarraria com as então ínvias serras da Cantareira, Atibaia, Bragança, contra-fortes da Mantiqueira, que, se fossem transpostas, dariam também caminho para as nascenças do rio S. Francisco. A bandeira de Nicolau Barreto, portanto, só poderia ir para leste, e indo para leste foi em direção a Mogi das Cruzes. E é lógico que para lá fosse, porque mais numerosa em homens e bem apercebida de víveres, e organizada com parecer de D. Francisco de Sousa, fosse buscar 1 Na cópia inserida na nota do Pe. Paulo Pastells, encontra-se, após o milênio 1602, uma interrogação, entre parênteses, o que parece por em dúvida o ano da entrada de Nicolau Barreto. Não sei se a dúvida aparece no escrito de Pe. Pastells ou de Pe. Mancilla. Que a entrada de Nicolau Barreto foi realizada em 1602, não pode sofrer dúvidas à vista dos documentos aqui citados. Essa dúvida, porém, pode aparecer e certamente refere-se a aprisionamento de índios que iam sendo levados em 1602, para as missões jesuíticas do Guairá, porque estas só começaram em 1607, com os Padres Maceta e Cataldino e foram organizadas pelo Pe. Antônio Roiz de Montoya depois de 1610, isto é, anos depois da bandeira de Nicolau Barreto. A província jesuítica do Guairá recebeu organização formal em 1607, mas lá já havia começado a catequese, como se infere dessa nota. Mas antes mesmo das missões do Padre Roiz de Montoya, já os jesuítas mandavam buscar índios no sertão de S. Vicente para os cristianizar nas suas reduções. Na Capitania de São Vicente 311 as minas de ouro e prata, por este governador obstinada e ardentemente procuradas, e que se supunham situadas nas nascenças do rio S. Francisco, não atingidas por André de Leão. É natural que seguisse para o mesmo sertão já percorrido sem êxito por André de Leão, em busca das minas desejadas. Era uma nova tentativa que se realizava para o mesmo fim. Era lógico que o fizesse; porque esse roteiro, já conhecido e já em parte trilhado recentemente nessa época, levava às nascenças do rio S. Francisco. E foi por aí que seguindo, sem dúvida alguma, o mesmo roteiro de Glymmer, atingiu afluentes do rio S. Francisco já atingidos pela bandeira de André de Leão. A identificação no terreno deve ser a mesma. Após cerca de cinco meses de marcha, a bandeira de Nicolau Barreto, a 17 de fevereiro de 1603, chegava ao rio Guaibií, e nesse dia e no arraial de Nicolau Barreto, Brás Gonçalves assinou um documento a Domingos Barbosa no valor de 3 cruzados (Inv. e Testamentos, vol. 21, pág. 32), atingindo depois o rio Paracatu. Nos valiosos Prolegômenos à História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, no Capítulo IV, Capistrano de Abreu, não obstante reconhecer a excelência dos dois ensaios feitos por Orville Derby, a respeito das entradas de André de Leão e de Nicolau Barreto, publicados na Revista do Instituto Histórico de S. Paulo, põe em dúvida que Nicolau Barreto tivesse chegado ao rio Paracatu, afluente do alto S. Francisco e que lá tivesse aprisionado índios temiminós. Para essa dúvida indica o episódio de Manuel Preto vindo do Guairá (em 1606-1607) ter encontrado temiminós no caminho e cita o volume 2º das Atas de S. Paulo na página 184. O fundamento dessa dúvida, tenho a ousadia de dizer, não me parece procedente. Nesse volume das atas, nas páginas indicadas está transcrito o requerimento de Gaspar Nunes, então, a 7 de janeiro de 1607, Procurador do Conselho da Vila de S. Paulo, no qual textualmente declarou que “ele estava informado que Manuel Preto trouxera muitos temiminós que vinham de suas terras em busca dos brancos, os quais vinham de pazes e ele Manuel Preto vindo de Vila Rica (no Guairá) os encontrara no caminho e os trouxera à sua casa”. 312 Washington Luís Por esse requerimento se vê que os índios temiminós não estavam no Guairá, pois que iam de suas terras, e era justamente Manuel Preto que vinha de Vila Rica, situada no Guairá. O encontro se deu no caminho, em lugar que não está determinado, mas que deve ser o caminho de Guairá para S. Paulo. Ora pela carta, que Pastells transcreve em nota no volume 1º da História da Companhia de Jesus na Província do Paraguai (Vol. 1º, pág. 191, em nota), vê-se que os padres fundadores das reduções jesuíticas no Guairá mandavam índios já cristianizados buscar seus parentes para levá-los para as reduções do Guairá. Manuel Preto vindo de Guairá poderia encontrar esses temiminós que em pazes procuravam os brancos. Principalmente, é de notar-se, que esse encontro se deu em 1606-1607, após a expedição de Nicolau Barreto que desbaratou os temiminós. Havia temiminós por toda a parte, o que era natural, dado o seu estado nômade. Havia temiminós em Guairá, fugidos de S. Paulo e são eles mencionados depois da entrada de Nicolau Barreto. Na sua longuíssima relação de sucessos ocorridos em Guairá, a 6 de fevereiro de 1629, D. Luís Cespedes y Xeria2 refere textualmente “saque destas ditas Reduciones Y de la Vila Rica numero de indios tupis, temiminos peis largos, carijós todos estes venidos de la villa de Sam Pctblo y su jurisdicion, estado dei Brasil hydos de sus amos por ia esclavitud que aliá tenham e casados en estas partes despues que vinieron a ellas...” Não é de estranhar, pois, antes o fato é confirmado, que Manuel Preto, vindo do Guairá, tivesse encontrado no caminho temiminós, pois que estes fugiam de S. Paulo para evitar o cativeiro. Os temiminós, por conseqüência, encontrados por Manuel Preto em 1607, não eram de Vila Rica no Guairá, mas para lá se dirigiam. Os cronistas, mais ou menos coevos da entrada de Nicolau Barreto, se referiram aos temiminós e os localizaram para os lados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e centro da atual Minas Gerais na direção da Bahia, pelo rio S. Francisco. 2 Anais do Museu Paulista, vol. 1º, pág. 244, Documentos espanhóis do Arquivo de Sevilha, mandados copiar por Afonso D’Escragnolle Taunay, quando Diretor do Museu Paulista, e nos Anais deste Museu publicados por sua diligência e iniciativa. Na Capitania de São Vicente 313 João de Laet fala dos Tamominos habitando o Governo do Espírito Santo, ferozes e cruéis (Descrição das Índias Ocidentais – L. 15, Cap. 14). Fernão Cardim também fala nos Timigminós, que moravam no Espírito Santo (Princípio e Origem dos Índios R. IHGB Vol. 57, pág. 207, 1ª parte). José de Anchieta se refere aos Temiminós do Espírito Santo (RIHGB Vol. 8º, pág. 258). Em A. Knivet há referências a Tomimenos “dos quais se receavam quando voltavam do rio Paraíba para o Rio de Janeiro” (RIHGB Vol. 41, pág. 185). Thevet chama-os de Teminous e Jean de Léry de Tenreminou. Simão de Vasconcelos (Crônicas, L. 1º, nº 204 e 205) narra que o Padre Brás Lourenço, por 1555, tendo notícia que, nas partes do Rio de Janeiro, andavam em guerra duas nações de índios os chamados uns temiminós e outros tamoios, que se destruíam, tratou com Vasco Fernandes Coutinho, senhor da capitania do Espírito Santo, que se estendia para o oeste, de oferecer agasalho ao Principal dos temiminós, chamado Maracaiá Guaçu. Mas acrescenta o mesmo Simão de Vasconcelos (Idem, L. 2º, nº 46) que os temiminós em 1555, em lutas uns com os outros e com os portugueses, tornaram às brenhas do sertão a viver como feras. É o mesmo Simão de Vasconcelos que afirma (Crônicas, L. 1º, das Notícias, nº 47, pág. XLVIII, 2ª edição) que os temiminós se encontravam entre as nações indígenas, que assenhoreavam toda a paragem do rio S. Francisco até a Bahia. É incontestável que havia temiminós no alto S. Francisco, rio acrescenta ele (lugar indicado nº 44, 46, pág. XLVII) cujo “nascimento é aquela famosa alagoa feita das vertentes de águas das serranias do Chile e Peru, donde dissemos procediam os rios Grão Pará e da Prata...” “Suas campinas vêm a ser outros Campos Elíseos, ameníssimas, fertilíssimas,...” “Corre por terras minerais ricas de ouro, prata, salitre, buscadas essas minas por mandado de alguns governadores”, mas até agora não achadas...” “guardando o tempo do descobrimento dessas riquezas para quando o sábio autor da natureza, que aí as criou.” 314 Washington Luís Transcreveu Simão de Vasconcelos, nesse tempo de escassos conhecimentos geográficos, as lendas em curso, e profetizou os descobrimentos de Fernão Dias, o caçador de esmeraldas. Mas o que não pode ser posto em dúvida é que os índios americanos do sul eram nômades. A sua condição de nômades impelia-os para todas as partes. O fato, pois, de serem encontrados temiminós no caminho de Vila Rica a S. Paulo, não exclui a certeza de que eles, em 1602, estivessem ou tivessem estado no alto S. Francisco. Ao tempo em que Capistrano de Abreu levantou essa dúvida – 1918 – só haviam sido publicadas as Atas da Câmara Municipal de S. Paulo. Só dois anos depois, em 1920, começou o Arquivo do Estado de S. Paulo a publicação dos Inventários e Testamentos, que varre qualquer incerteza a respeito. A nova publicação de documentos antigos, que jaziam ignorados, veio elucidar e desmanchar muitos pontos de nossa História, até há pouco aceitos, tornando verdadeira a tese de Villemain de que “l’histoire est toujours à refaire.” Se, em 1918, já tivessem sido publicados os Inventários e Testamentos, Capistrano não apresentaria essa dúvida; ou se já a tivesse apresentado, com o seu espírito largo e elevado, culto e consciencioso, sem mesquinhas vaidades literárias, seria o primeiro a desfazê-la, reconhecendo que as bandeiras paulistas haviam em 1603 chegado ao rio Paracatu e nessa região aprisionado temiminós. Não teve o grande mestre da História do Brasil oportunidade de ler e analisar os inventários de Martim Rodrigues (vol. 2º, pág. 5 e seguintes), de Manuel de Chaves (vol. 1º, pág. 459 e seguintes), de Brás Gonçalves (vol. 21, pág. 5 e seguintes) de Belchior Carneiro (vol. 2º pág. 111). Nesses inventários – documentos velhos mas só publicados em1920 – teria ele a ocasião de, modificando a sua opinião, refazer nessa parte a nossa História. Nesses documentos se vê que Martim Rodrigues fez o seu testamento em 12 de março de 1603, estando no sertão do rio Paracatu escrito por Manuel de Soveral, Escrivão da bandeira de Nicolau Barreto, no arraial de descobrimento de minas de ouro, prata e mais metais, assi- Na Capitania de São Vicente 315 nando como testemunhas Antônio Gonçalves David, Sebastião Peres Calheiros, Diogo de Oliveira Gago, Francisco Ferreira, Francisco Alves Correia, Miguel Gonçalves e Manoel Machado, membros da bandeira citada (vol. 2º, pág. 21 a 27). Manuel de Chaves, outro soldado dessa bandeira, doente de uma frechada recebida dos gentios tupiães, começou o seu testamento a 22 de março de 1603, terminado a 30 do mesmo mês (Idem, vol. 1º, pág. 461) e morreu no sertão do rio Paracatu a 2 de abril de 1603, onde foi iniciado o inventário de seus bens de sertanista, no rancho de Domingos Dias, seu irmão, no arraial do Capitão Nicolau Barreto sertão e rio de Paracatu (Idem, vol. 1º, pág. 459). De 17 de fevereiro de 1603 a 4 de abril do mesmo ano, Nicolau Barreto explorou, pelo menos, o sertão do rio Guaibií e do rio Paracatu onde estava aposentado, mandou vender em leilão a fazenda lançada no inventário de Manuel de Chaves (Idem, vol. 21, pág. 459) e nesse dia e nesse sertão, “se iniciou o inventário de Brás Gonçalves, perante o mesmo Nicolau Barreto, capitão-mor do arraial do descobrimento das minas de ouro e prata e mais metais (Inventários citados). A 2 de abril de 1603, no sertão do rio Paracatu iniciou-se o inventário de Manuel de Chaves, e a 4 do mesmo mês se realizou a venda de seus bens, nesse sertão do rio Paracatu, onde estava aposentado com o seu arraial o Capitão Nicolau Barreto (vol. 1º, pág. 464). A 29 de junho de 1603, no sertão e limites que povoam os índios temiminós, perante o Capitão Nicolau Barreto, no arraial do descobrimento de minas de ouro e mais metais, se iniciou o inventário de Brás Gonçalves, o moço (vol. 21, pág. 9). Antes, a 29 de junho do mesmo ano, nesse mesmo sertão Brás Gonçalves, o moço, fez o seu testamento, no qual há referência expressa à entrada do rio Guaibií (rio das Velhas)................... onde corimataí3 (algumas palavras roídas) (vol. 22, pág. 11 e 14). A 14 de agosto de 1603, ainda no sertão e limites que povoam os gentios temiminós, na tranqueira onde estava o Capitão Nicolau Barreto 3 Corumbataí. Repare-se que Teodoro Sampaio no seu livro já citado, à pág. 90, ensina que a Serra de Corumbataí estava próxima ao rio das Velhas. 316 Washington Luís com o seu arraial, lavrou-se um termo em que Domingos Dias, irmão de Manuel de Chaves, e dele testamenteiro, desobrigou Salvador Pires do compromisso assumido por Duarte Machado (Idem, vol. 1º, pág. 472). Em 8 de março de 1604, vencidos os índios e estabelecida a paz no acampamento, os Padres João Alvres e Diogo Moreira, capelães do arraial de Nicolau Barreto, passaram recibo das missas cantadas e rezadas por alma de Manuel de Chaves (Inv. e Test., vol. 1º, pág. 489). Esses padres fizeram parte da bandeira de Barreto. Seis dias depois, a 14 de março de 1604, Antônio Rodrigues Velho, o Araa, de alcunha, o repartidor dos índios temiminós escravizados no sertão, na companhia de Nicolau Barreto, distribuiu a Antônio Gonçalves David um temiminó cujo nome era Jaguare metara mirim (Inv. e Test., vol. 2º, págs. 151 e 152). Nessa distribuição, coube ao espólio de “Brás Gonçalves, o moço, três homens, três mulheres e duas crianças e mais um rapaz, magros, que estavam tais, como os mais que nesse sertão se repartiram da nação temiminó, que foram entregues a Brás Gonçalves, o velho, para levá-los aos herdeiros, por não haver quem os comprasse e não haver outro remédio para os pôr em arrecadação” (vol. 22, págs. 19 e 20), em 14 de março de 1604. Conhecidas as circunstâncias que trouxeram D. Francisco de Sousa à Capitania de S. Vicente, isto é, o descobrimento de minas de metais preciosos no alto rio S. Francisco, e a pertinácia que nesse intento pôs, só se pode concluir que a bandeira de Nicolau Barreto, seguiu o mesmo itinerário da de André de Leão, e que foi identificado por Orville Derby. Difícil é determinar com precisão o lugar que esses temiminós então habitavam. Como os demais índios do Brasil esses temiminós, como se sabe, eram nômades; e mudando continuamente de habitação vagavam pelo interior do Brasil. Mas em 1603 estavam nos sertões vizinhos do rio Paracatu e rio das Velhas. No seu testamento de 30 de março de 1603, Manuel de Chaves declarou que se achava doente de uma frechada que lhe eram os tupiães. Isto significa que além dos temiminós encontraram também os tupiães. Em setembro e outubro de 1604, são iniciados respectivamente a Vila de S. Paulo, os inventários legais de Brás Gonçalves e Ma- Na Capitania de São Vicente 317 nuel de Chaves, aos quais estão juntos os inventários feitos no sertão do rio Paracatu nos limites onde povoavam os índios temiminós. Estas duas últimas datas mostram que em setembro e outubro de 1604 já a bandeira, carregada de escravos temiminós se achava de volta no povoado. Depois da entrada de Nicolau Barreto, nos diversos inventários, publicados pelo Arquivo do Estado de S. Paulo, se encontram descrições de índios temiminós e tupiães da entrada de Nicolau Barreto, como se pode ver no de Belchior Carneiro (vol. 2º, pág. 111) e do de Martim Rodrigues Tenório (vol. 2º, pág. 13). O rio Paracatu, diversas vezes mencionado no inventário de Manuel de Chaves e no testamento de Martim Rodrigues Tenório, se identifica por si mesmo, conserva o mesmo nome até hoje, é um dos afluentes da margem esquerda do rio São Francisco; o Rio Guaimií4 é identificado por Ovillle Derby, “com pouco risco de errar”, disse ele e repetimos ainda, com o rio das Velhas ou Guaicuí, afluente da margem direita do mesmo S. Francisco (RIHG de S. Paulo. vol. 8º, pág. 400), nas proximidades da Serra de Corumbataí, no mencionado, segundo Teodoro Sampaio, nas proximidades do rio (Inv. e Test., vol. 26, págs. 11 e 14). Era já a vitória que permitia as investigações para descobrimento das minas. Mas a bandeira não as descobriu nem delas trouxe notícias, só aprisionou índios temiminós e tupiães. 4 Teodoro Sampaio no seu livro O Tupi na Geografia Nacional – Glossário, pág. 206, escreve Guaimihy, por guaymi-y, o rio das Velhas, Minas Gerais. Em documentos de 1600 e 1603 o grande afluente da direita do rio S. Francisco é chamado Guibihy. O b em tupi é sempre, ou quase sempre, nasalado (mb) e, como todas as articulações primitivas dessa língua, não era bem pronunciado; e muitos ora ouviam mais o m e outros mais o b, desaparecendo, às vezes, daí o escrever Guabihy e Guaimihi. O mesmo fenômeno se observa na palavra Mogi, que ora se encontra, escritos com M Mogi e ora com B Boigi. E na toponomia, em S. Paulo, ainda se encontra a forma mb, como na forma tão conhecida da povoação Mboy, próxima à cidade de S. Paulo que se pronuncia comumente Embu. Couto de Magalhães, no seu livro O Selvagem (pág. 13), já chamando a atenção dos estudiosos da língua tupi para o M e B que freqüentemente se substituíam nessa língua, aconselhava que esses estudiosos deveriam sempre ler as palavras em voz alta para julgar o sentido das palavras pelo som que ouvissem e não pela letra que vissem. Em suma, a língua tupi não estava ainda fixada quanto à sua pronúncia, o que fazia variar a sua escrita. 318 Washington Luís Lá já teria chegado a notícia que o novo Governador-Geral, Diogo Botelho, que substituíra D. Francisco de Sousa, mandara correr bando apregoando severíssimas penas em que iam incidir os sertanistas, depois de devassas ameaçadoras. *** Nicolau Barreto, o cabo da famosa bandeira de 1602, era irmão de Roque Barreto e de Francisco Barreto, e os três eram filhos de Álvaro Barreto, morador no Rio de Janeiro, e que se verifica nos inventários de Francisco Barreto (Inv. e Test., vol. 2º, pág. 241) nos quais Álvaro Barreto é feito curador de seus netos, filhos de Francisco Barreto. Segundo Silva Leme, Genealogia Paulistana, vol. 7º, pág. 440, Nicolau Barreto foi casado com Lucrécia Moreira, filha de Jorge Moreira e Isabel Velho. Este Jorge Moreira foi um dos mais antigos moradores e povoadores da Capitania de S. Vicente, tendo sido almotacé em Santo André da Borda dos Campos (Atas de Santo André, pág. 67) e juiz e vereador de S. Paulo. Foi uma das principais pessoas da terra até 1599. No volume 16 dos Inventários e Testamentos, pág. 441, há um inventário de Nicolau Barreto, feito em 1664; talvez um descendente ou parente do capitão. Roque Barreto foi Capitão-Mor de S. Vicente, por Lopo de Sousa, em 1602, foi depois Vereador da Câmara de S. Paulo em 1604 (Atas, vol. 2º, pág. 143). Continuou a viver em S. Paulo, onde obteve datas e sesmarias depois de deixar o cargo de Capitão-Mor, que ocupava na capitania. Francisco Barreto viveu em S. Paulo, casou-se com Maria Jorge, filha de Gonçalo Madeira e de Clara Parente, moradores de S. Paulo. Tomou parte em diversas entradas ao sertão. Em 6 de março de 1607, “no porto de Pirapetingui, estando de partida a descer gentio” faz o seu testamento em que declara o seu casamento, deixando uma filha pequena e a mulher grávida. O seu inventário é iniciado em S. Paulo a 20 de agosto de 1607. Sua viúva casou-se em segundas núpcias com Pero Nunes, morador no Ipiranga. Do resultado dessa entrada não houve notícia. Parece que ela desapareceu inteira no sertão. *** Na Capitania de São Vicente 319 Pelos inventários de Brás Gonçalves, de Manuel de Chaves, de Belchior Carneiro, de Ascenso Ribeiro, de Martim Tenório e de algumas deduções, mais ou menos procedentes, podem-se mencionar muitos nomes, dos que constituíram a bandeira5: 5 1 – Nicolau Barreto – (Capitão da entrada) (Vol. “ 21 “ Pág. “ 5 “ 3 – Pe. João Álvares – (capelão da tropa) “ “ “ “ 4 – Diogo Macieira – (capelão da tropa) “ “ “ “ 5 – Pe. Gaspar Sanches (*) “ “ “ “ 6 – Brás Gonçalves, o moço “ “ “ “ 7 – Brás Gonçalves, o velho “ “ “ “ 8 – Baltasar Gonçalves, o velho “ “ “ “ 9 – Baltasar Gonçalves, o moço 10 – Domingos Gonçalves “ “ “ “ “ “ “ “ 11 – Francisco Nunes Cubas “ “ “ “ 12 – Jorge João (Alferes da Companhia Diogo Gonçalves Lasso (R. Geral, vol. 7º, pág. 79) “ “ “ “ 13 – Jorge Rodrigues “ “ “ “ 14 – Antônio Pinto “ “ “ “ 15 – Manuel Pais “ “ “ “ 16 – João Bernal “ “ “ “ 17 – João Morzelho “ “ “ “ 18 – Antônio de Andrade “ “ “ “ 19 – Matias Gomes “ “ “ “ 2 – Manuel de Soveral – (escrivão da entrada) * Como se vê houve um terceiro padre na expedição. 320 Washington Luís “ “ “ “ 21 – Antônio Luís Grou (Vol. 1º pág. 459) 22 – Antônio Pedroso (Vol. 21 pág. 5) 23 – Baltasar de Godoy “ “ “ “ 24 – Simão Borges de Cerqueira “ “ “ “ 25 – Duarte Machado “ “ “ “ 26 – Geraldo Correia “ “ “ “ 27 – Paschoal Leite “ “ “ “ 28 – Paulo Grum ou Quim “ “ “ “ 29 – José Gaspar Sanches “ “ “ “ 30 – Sebastião Peres Calheiro “ “ “ “ 31 – Manuel Affonso “ “ “ “ 32 – Rafael de Proença “ “ “ “ 33 – Fernando Nobre (Vol 1º pág 459) 34 – Domingos Dias “ “ “ “ 35 – Manuel de Chaves “ “ “ “ 36 – Pero Nunes “ “ “ “ 37 – Aleixo Leme “ “ “ “ 38 – Bento Fernandes “ “ “ “ 39 – .......... Leme “ “ “ “ 40 – Mateus Neto “ “ “ “ 41 – Antônio Bicudo “ “ “ “ 42 – Manuel Mendes Alemão “ “ “ “ 43 – André de Escudeiro “ “ “ “ 44 – Francisco de Siqueira “ “ “ “ 45 – Pero Martins “ “ “ “ “ “ “ “ 20 – Luís Eannes Grou (Luís Yanes) 46 – Domingos Fernandes Na Capitania de São Vicente 321 47 – Lourenço da Costa “ “ “ “ 48 – Nicolau Machado “ “ “ “ 49 – Antônio Pedro “ “ “ “ 50 – Francisco Ribeiro “ “ “ “ 51 – Lourenço Nunes “ “ “ “ 52 – Manuel Rodrigues “ “ “ “ 53 – Salvador Pires “ “ “ “ 54 – Simão Leite “ “ “ “ 55 – Diogo Peneda “ “ “ “ 56 – João Dias “ “ “ “ 57 – Henrique da Cunha Lobo “ “ “ “ 58 – Estêvão Ribeiro “ “ “ “ 59 – João Gago “ “ “ “ 60 – Ascenso Ribeiro (Az. Marques – Cronologia pág. 602) 61 – Pero Leme “ “ “ “ 62 – Manuel Preto “ “ “ “ 63 – Francisco Alvarenga “ “ “ “ 64 – Martim Rodrigues Tenório (Vol. 2º 65 – Antônio Gonçalves David “ “ “ “ 66 – Antônio Ferreira “ “ “ “ 67 – Manuel Machado “ “ “ “ 68 – Francisco Alves Correia “ “ “ “ 69 – Diogo de Oliveira Gago (Vol. 2º “ “ “ “ (Vol. 5º pág. 251) “ “ “ “ 70 – Miguel Gonçalves 71 – Francisco Ramalho (Tamarutaca) 72 – Simão Jorge págs. 26 e 27) págs. 26 e 27) 322 Washington Luís (Vol. 2º pág. 111) 74 – Antônio Rodrigues Velho (Araa) “ “ “ 155 75 – Afonso Sardinha, o moço (**) “ “ “ “ 73 – Belchior Carneiro * * Azevedo Marques na sua Cronologia, 1604 diz que nesse ano de 1604, Afonso Sardinha, o moço, fez testamento no sertão escrito pelo Padre João Alvres. O Padre João Alvres realmente esteve no sertão no ano de 1604, na bandeira de Nicolau Barreto. Se Affonso Sardinha fez testamento em 1604, escrito pelo Pe. João Alvres no sertão, só poderia ser no sertão, onde se achava o Pe. João Alvres, com a tropa de Nicolau Barreto. Afonso Sardinha, pois, fez parte da bandeira de Nicolau Barreto. Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XX FIM DO PRIMEIRO GOVERNO DE D. FRANCISCO DE SOUSA – ALGUMAS BANDEIRAS – VOLTA DE D. FRANCISCO DE SOUSA APÓS A DIVISÃO DO GOVERNO-GERAL DO BRASIL EM DOIS, CABENDO-LHE A REPARTIÇÃO DO SUL (ESPÍRITO SANTO, RIO DE JANEIRO E SÃO VICENTE) COM A ADMINISTRAÇÃO DAS MINAS A DESCOBRIR A FILIPE II, em 1594, sucedera Filipe III, no trono de Espanha. Fim do primeiro governo de D. Francisco de Sousa – algumas bandeiras – volta de D. Francisco de Sousa após a divisão do Governo-Geral do Brasil em dois, cabendo-lhe a repartição do sul – Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente, com a administração das minas a descobrir. Como sempre acontece nas mudanças de governo, começou a derrubada sob o fundamento de que os homens bons haviam sido intencional e maldosamente afastados da administração por vinganças, ódios, intrigas, só se aproveitando os venais, os incompetentes. Assim, também, iniciou-se uma regeneração no começo do reinado de Filipe III. Mas a regeneração, porém, como sempre também acontece, não se faria. Foi assim em todos os tempos, foi assim também nesse fim do século XVI em Espanha. Grande teria sido o trabalho em Madri para que D. Francisco de Sousa fosse substituído no Governo-Geral do Brasil. 324 Washington Luís Mas na península ibérica, demoradas eram as resoluções e demoradíssimas eram as suas execuções. Afinal apareceu a nomeação de Diogo Botelho para Governador-Geral do Brasil, lugar que durante 12 anos D. Francisco de Sousa ocupara. As viagens para o Brasil eram, então, raras, precárias, difíceis e demoradas. Vindo para o Brasil, Diogo Botelho aportou em Recife, onde chegou a 1º de abril de 1602 e aí se deteve mais de ano e meio, para compor negócios da capitania de Pernambuco, só vindo a tomar o Governo-Geral do Brasil, em Salvador, na capitania da Baía de todos os Santos, por outubro de 1603. Só, então, Álvaro de Carvalho, o substituto lá deixado por D. Francisco de Sousa, largou o governo interino. Durante algum tempo D. Francisco de Sousa continuou em S. Vicente, com as prerrogativas de Governador Geral. Mas ao conhecimento da vila de S. Paulo já havia chegado a notícia da vinda do novo governador e das suas disposições reacionárias ou regeneradoras, com grandes penas contra os que fossem ao sertão em guerra ao gentio. Na sessão de 22 de março de 1603 (Atas, vol. 2º, págs. 125 e 126) tendo conhecimento que havia sido publicado um mandado do capitão e ouvidor da capitania proibindo a entrada ao sertão e mandando devassar os que lá tinham ido, a Câmara de S. Paulo muito precavidamente, querendo afastar de si qualquer responsabilidade, protestou contra a expedição de Nicolau Barreto com perto de 300 homens e mais gentio e escravos, por ser isso contra a lei de Sua Majestade, tendo a vila de São Paulo os Guaruminis à porta, com a possibilidade de guerra estrangeira por mar, ficando as minas sem benefício e todos sem defesa. A Câmara de 1603 era, já se deduz, composta de oficiais, outros que tinham dado autorização para a entrada de Nicolau Barreto. Não querendo também aceitar a responsabilidade da entrada o capitão-mor e ouvidor, Roque Barreto, no dia seguinte ao protesto, a 23 de março de 1603, apresentou-se à Câmara e declarou terminantemente que ele “não mandara dar guerra ao gentio do sertão, salvo alimpar ladroeiras que fazem muito mal e dano a esta capitania e por lhe parecer serviço de Sua Majestade e bem da terra, e tendo por fim juntamente mandar chamar seu irmão Nicolau Barreto, para se recolher com toda a gente, acrescentando que tal diligência não se poderia fazer com um ou dois homens, mas com a gente necessária, por Na Capitania de São Vicente 325 haver contrários no caminho” (Atas, vol. 2.º, págs. 126 e 127). Câmara e capitão-mor estavam alarmados e procuravam justificações. Os boatos deveriam fervilhar na pequena povoação, fazendo a guerra de nervos com ameaças de devassas tremendas, penas severíssimas, confiscos, etc. Começou a derrubada, as autoridades locais, menos as eletivas, que entretanto já eram outras, foram mudadas pelo donatário e pelo Governador-Geral. Foi no momento o triunfo da catequese religiosa sobre a colonização leiga com a escravização do indígena. A Câmara assustou-se e resolveu dirigir-se diretamente ao Governador-Geral, Diogo Botelho, e o fez em carta escrita a 19 de julho de 1603, na qual, dizendo a verdade, procurou ser hábil (Atas, vol. 2.º, pág. 130). Nessa longuíssima carta, com ingenuidade manhosa, entenderam os oficiais da Câmara de avisar, como se Diogo Botelho ignorasse o regime das capitanias, que o Governador-Geral havia feito o provimento dos cargos de capitão-mor e ouvidor, sem dúvida por não estar informado que tal nomeação, pelo foral e carta de doação de Sua Majestade a Martim Afonso e aos seus sucessores, pertencia ao donatário da capitania de S. Vicente, então Lopo de Sousa a quem a Câmara não queria dar motivo de queixas. Informavam mais que os moradores da capitania, muito pobres, eram idos ao sertão a mandado do capitão-mor Roque Barreto, a requerimento das Câmaras, com parecer do Governador-Geral passado D. Francisco de Sousa; que essa entrada de Nicolau Barreto, muito perigosa e de pouco proveito, fora feita à custa dos moradores pela muita necessidade em que todos estavam para cultivo das terras e para proverem a própria subsistência. Insinuavam que se ao sertão fosse a deliberação das severas medidas punitivas, cuja notícia já então corria, nenhum dos que lá estavam, voltaria à vila e de lá mesmo todos tomariam caminho do Pequeri (naturalmente pelo caminho trilhado pelos 700 índios referidos na carta do Pe. J. Mansilla), que era província do Rio da Prata, do que resultaria o abandono das mulheres e filhos, ficando a terra sem moradores, as minas sem benefício e a colônia ao desamparo. 326 Washington Luís Davam a entender mais que o Governador sabia que Sua Majestade, nas guerras que fazia, pagava a seus soldados e os sustentava; e nas guerras aos índios, nada lhes dava, e ainda lhes tirava o quinto das presas; e rogava, portanto, providências para que os homens voltassem seguros e quietos às suas casas, a fim de que não se perdessem muitas almas. Nos livros da Câmara não se encontram registradas as provisões das novas nomeações, registro que os oficiais da Câmara julgavam indispensável (Atas, vol. 2.º, pág. 129). Os livros da Câmara de S. Paulo só contêm em 1604 as Atas dos dias 1, 3 e 19 de janeiro, não havendo nenhuma do ano de 1605 e começam as de 1606 a 24 de junho. Da mesma forma no Registro Geral faltam as folhas relativas a 4 de agosto de 1602 até 1607. Há nisso singular coincidência. Sabem-se, porém, os nomes dos novos nomeados pela declaração de sua presença em diversos atos oficiais durante esse período. Assim, por exemplo, na sessão em que se escreveu a carta, cujo resumo acaba de ser feito, se declara a presença do Sr. Ouvidor Luís de Almada Montearroio (Atas, vol. 2.º, págs. 131 e 133). E na sessão de 26 de dezembro de 1606 há o traslado da provisão de capitão-mor a Antônio Pedroso e a Pedro Vaz de Barros, da qual se infere que estes haviam sido nomeados por 1602 ou 1603, conforme já analisei (Atas, vol. 2.º, pág. 174). Nos livros da Câmara de S. Paulo, nada se escreve sobre a volta da bandeira de Nicolau Barreto; mas nos inventários, hoje no Arquivo do Estado de S. Paulo, encontram-se, nas descrições de bens, os nomes de muitos temiminós da entrada de Nicolau Barreto. Para D. Francisco de Sousa essa expedição foi um fracasso completo. Mas, tenaz no seu desejo de descobrir as minas, de cuja existência estava certo, o seu ânimo não se abateu. Conservou-se na vila de S. Paulo ainda durante anos, ainda mesmo depois de terminado o seu mandato. Isso se confirma com a ata de 9 de agosto de 1603 na qual os oficiais da Câmara acordaram em que “era necessário haver na vila uma mulher que vendesse porquanto vinha o Sr. D. Francisco de Sousa e gente com ele e para isso lhes pareceu Na Capitania de São Vicente 327 bem Francisca Rodrigues, cigana, a qual foi dado juramento dos Santos Evangelhos” (Atas, vol. 2.º, págs. 132 e 133). Ainda se confirma a sua permanência em S. Paulo num termo lavrado antes de setembro de 1603 (a requerimento do capitão Pedro Vaz de Barros, na casa da Câmara, em que tomaram parte o vereador Francisco Viegas, o Juiz João da Costa e diante de D. Francisco de Sousa) onde se lê que se praticou sobre a volta de quatro companheiros que vieram de Vila Rica do Espírito Santo, no Paraguai, e que para lá queriam voltar, mas temiam algum desastre por terem fugido alguns índios que consigo haviam trazido. Nessa reunião foi resolvido que, a bem do proveito, que se esperava da reabertura do caminho por terra entre S. Paulo e Vila Rica, para o comércio entre as duas vilas, ambas habitadas por cristãos e pertencentes ao mesmo rei, se desse a esses companheiros toda a ajuda de gente e de fazenda, pelo menos 15 a 20 homens, que ficassem conhecendo os sítios e inimigos (Atas, vol. 2.º, pág. 138). Tudo isso na presença de Luís de Almada Montarroio. Esses companheiros eram espanhóis e chamavam-se: João Benitez de la Cruz, Pero Caminha, Pero Gonçales e Sebastião de Peralta, despachados pelo seu capitão-mor, D. Antonio de Anhasque, e tinham vindo por terra pela antiga vereda entre S. Paulo e o Paraguai e se achavam em S. Paulo, pelo menos, desde 22 de novembro de 1603 (Atas, vol. 2.º, pág. 136). Luís de Almada Montarroio, nesse ano de 1603, a 3 de novembro, fez registrar a renúncia do cargo de capitão-mor e ouvidor que exercia (Atas, vol. 2.º, pág. 137). D. Francisco de Sousa só deixou a capitania de S. Vicente, “quando uma ordem régia transmitida por Diogo Botelho a 19 de março de 1605 assim o determinou; e, então, se decidiu a transpor o oceano levando consigo mineiros, impedindo que comunicassem a quem quer que fosse o resultado de suas pesquisas, de indústria e prudência”, seguindo para Madri diretamente onde se achegou ao Duque de Lerma para realizar os planos que arquitetara, segundo Capistrano de Abreu (Prolegômenos ao Livro da História do Brasil por Frei Vicente do Salvador, pág. 257). “Muito se receava no Brasil, pelo muito dinheiro que havia gastado da fazenda de Sua Majestade, que (“a D. Francisco”) lhe tomassem no 328 Washington Luís reino estrita conta; como, porém, nada tomou para entesourar, antes do seu próprio gasto, como o outro grão capitão, não tratou el-rey senão de lhe fazer mercês. E porque ele não pedia mais que o marquesado das Minas de S. Vicente, o tornou a mandar a elas, com o governo do Espírito Santo, Rio de Janeiro e mais capitanias do Sul” – (História do Brasil, Frei Vicente do Salvador, pág. 418). Deixou S. Vicente, mas voltaria com maiores poderes ainda, como adiante se verá. Diogo Botelho mandou para a capitania um mineiro-mor, Juan Munhoz de Puertos com um ajudante Francisco Vilalva, que se apresentaram à Câmara de S. Paulo a 22 de agosto de 1603, para fazerem as diligências, ensaios, e fundições do ouro, prata e mais metais, conforme escrituras que traziam, porque no conselho real houve certas contradições ao ouro que o Sr. Dom Francisco mandou por Diogo de Quadros e outras pessoas (Atas, vol. 2.º, pág. 134). No volume 2.º das Atas da Câmara de S. Paulo, págs. 173 e 174, está o traslado da provisão da nomeação de Antônio Pedroso de Barros e de Pedro Vaz de Barros, lavrada em Lisboa a 21 de novembro de 1605, e assinada por Lopo de Sousa, donatário da Capitania de S. Vicente, como já foi analisado. Na capitania de S. Vicente esmoreceu durante algum tempo a iniciativa das entradas ao sertão. Ninguém melhor que a Câmara da vila de S. Paulo poderia dar notícia do estado da capitania como se vê na carta de 13 de janeiro de 1606, mandada a Lopo de Sousa, o donatário, à qual pertencem os seguintes trechos curiosos: “Já vossa mercê será sabedor como Roque Barreto sendo capitão mandou ao sertão 800 homens brancos a descer gentio e gastou dois anos na viagem com muitos gastos e mortes, e por ser contra uma lei de el-rei que os padres da companhia trouxeram, o Governador-Geral Diogo Botelho mandou provisão para tomar o terço para ele, e depois veio ordem para o quinto; sobre isto houve aqui muito trabalho e grandes devassas e ficaram muitos homens encravados, que talvez haja nesta vila hoje mais de 65 homiciados, não tendo ela mais de 190 moradores; se lá for informado de que a gente desta terra é indômita, creia vossa mercê o que deve aos seus, que não há quem sofra tantos desaforos”. Na Capitania de São Vicente 329 E dizia mais a Câmara, no começo da carta referida: “O que de presente se pode avisar, muito papel e tempo eram necessários, porque são tão várias e de tanta altura as coisas que cada dia sucedem que não falta matéria de escrever e avisar, e, melhor se poderá dizer, de chorar... “Vai em tal maneira razão que pelo eclesiástico e pelo secular não há outra coisa senão pedir e apanhar, e um que nos pedem e outro que nos tomam tudo é seu e ainda lhe ficamos devendo. E se falamos prendem-nos e excomungam-nos e fazem de nós o que querem, que como somos pobres e temos o remédio tão longe não há outros recursos senão abaixar a cerviz e sofrer o mal que nos põem.” Entretanto a Câmara confiava ainda na sua terra e na sua gente e procurava estimular o indiferente donatário acrescentando: “Assim senhor, acuda, veja, ordene e mande o que lhe parecer, que muito tem a terra que dar: é grande, fértil de mantimentos, muitas águas e lenhas, grandes campos e pastos, tem ouro, muito ferro e açúcar, e esperamos que haja prata pelos muitos indícios que há; mas faltam mineiros e fundidores destros. E o bom governo é o que nos falta de pessoas que tenham consciência e amor de Deus, e valia, que nos mande o que for justo, e nos favoreçam no bem e castiguem no mal quando o merecermos, que tudo é necessário (Az. Marques – Apontamentos. Registro Geral, vol. VII, págs. 110 e 114). *** Durante a ausência de D. Francisco de Sousa não foram muitas as entradas ao sertão, ou pelo menos, não constam elas nos papéis locais. Os sertanistas estavam escarmentados com as severas medidas judiciais mandadas pôr em prática pelo Governador-Geral Diogo Botelho. Nas Atas da Câmara, nos Inventários e Testamentos pouca coisa se encontra a respeito. Entretanto conhecem-se, e menciono, não só as entradas de Francisco Barreto, de Belchior Carneiro e de Martim Roiz Tenório, nas quais esses três cabos pereceram, como as de outros de que falarei. Essas, esporádicas e clandestinas, foram feitas antes das entradas metódicas no Guairá, que constituirá uma outra parte deste estudo. *** 330 Washington Luís Martim Rodrigues Tenório era espanhol. Em 1589 estava casado com Suzana Rodrigues, viúva de Damião Simões, sapateiro (Inv. e Test., vol. 1º, pág. 13) da qual teve quatro filhas. Elvira, casada com o carpinteiro Cornélio Darzan, Maria, Ana da Veiga e Suzana (com 15 anos em 1612) casadas, respectivamente, com Clemente Álvares, também investigador de minas do Jaraguá, Teodósio da Fonseca e João Pais. Teve mais três bastardos. Na vereança de 6 de setembro de 1608 consta que os oficiais da Câmara reuniram o povo para eleger um vereador para substituir Martim Rodrigues, que era ido ao sertão (Atas, vol. 2º, pág. 217). De fato, em 1608, fez ele uma entrada “ao sertão onde estavam os bilreiros”, partindo do porto do Anhembi, assim o declaram Lourenço Gomes Ruxaque e Manuel Dias, em seus testamentos (Inventários, vol. 2º, pág. 358 – vol. 11, pág. 23). Foram testemunhas do testamento de Lourenço Gomes Ruxaque, Baltasar Gonçalves, João de Santana, Brás Gonçalves, Manuel de Oliveira, João Pais e o capitão Martim Rodrigues (Idem, pág. 360) e no de Manuel Dias além de alguns mencionados no testamento de Ruxaque, Diogo Martins Manuel de Oliveira. Parece que essas pessoas, estando no porto do rio Anhembi, como testemunhas dos testadores, que iam na companhia de Martim Roiz Tenório, também fizeram parte da sua bandeira. Parece também que a maior parte dessa bandeira desapareceu, pois que ao se iniciar o inventário de Martins Rodrigues Tenório, alguns anos depois, o escrivão declara em 1612, “que ele era ido ao sertão e se dizer que era lá morto” (vol. 2º, pág. 5). Mais uma bandeira que o sertão consumia. Sobre a entrada de Belchior Carneiro o seu inventário (vol. 2º, págs. 111 e seguintes) ministra algumas informações, e também as fornece as atas da Câmara da vila de S. Paulo numa longa, se bem que muito confusa, vereança (Atas, vol. 2º, págs. 234 a 237). Belchior Carneiro era, como já ficou dito, filho de Lopo Dias, português, e de sua primeira mulher, Beatriz Dias, filha ou neta de Tibiriçá. Foi casado com Hilária Luís Grou, filha de Domingos Luís Grou e de Maria da Penha, que era filha do cacique de Carapicuíba. Na Capitania de São Vicente 331 indígena. Ele era meio sangue indígena e unido a meio sangue também Foi cabo da bandeira que em 1607 entrou pelo sertão dos bilreiros a cativar índios a mandado de Diogo de Quadros, provedor das minas, a fim de arranjar mão-de-obra para uma fábrica de ferro que havia em Ebirapoeira, na qual se fabricavam coisas para resgate. Belchior Carneiro tomou parte na entrada de Antônio de Macedo e de Domingos Luís Grou, seu sogro, a qual na volta, fora desbaratada perto do rio Jaguari; fora um dos membros da companhia de Nicolau Barreto e, parece, fizera uma entrada por sua própria conta no sertão dos índios temiminós (Inv., vol. 2º, pág. 111). Por estar de caminho para fora Belchior Carneiro fez o seu testamento em 8 de março de 1607 e deixou-o em mãos de seu cunhado Belchior da Costa, que por muitos anos foi escrivão na vila de S. Paulo. Era um experiente sertanista e por isso foi escolhido por Diogo de Quadros para buscar gente para o engenho de ferro. Levara em sua bandeira cunhas, escopros, facões, e mais ferramentas de ferro para resgatar com os índios (vol. 2º, pág. 198). A bandeira de Belchior Carneiro, a mandado de Diogo de Quadros, com o fim ostensivo de descobrir minas de ouro, prata e mais metais, mas com o objetivo de cativar índios, era composta de 40 a 50 homens brancos e mais índios auxiliares1. Apesar de ter tomado diversas notas em um canhenho, que se acha junto aos autos do seu inventário, nada escreveu sobre o roteiro da expedição que dirigiu. Ninguém a tal respeito escrevia, porque essas entradas eram fatos corriqueiros na capitania. Essas notas se referem principalmente ao lado financeiro da entrada. Mas falam em créditos e débitos feitos para realizá-la, e designam vagamente lugares em que lá estiveram. Assim falam em um dom que deveria ser feito ao Principal dos bilreiros, em um facão para comprar uma peça dos bilreiros; um soldado de 1 Dela também fizeram parte, Antônio Raposo, o velho, Matias Gomes, Mateus Luís Grou, Manuel Ribeiro Boto, João Moreira, Pascoal Delgado, Manuel Rodrigues, Luís Ianes Grou, Estêvão Raposo, o moço, Manoel Requeixo, Domingos Barbosa, Miguel Gonçalves e seu irmão Jerônimo Gonçalves; Lourenço Cabrera, Manuel Pires, Mateus Neto, Domingos Fernandes. 332 Washington Luís bandeira apresenta-se credor do valor de 150 mãos de milho que lhe deu, quando estavam entre os bilreiros. A expedição fora resgatar com bilreiros. Bilreiros, segundo alguns cronistas (Simão de Vasconcellos, João de Laet), eram nomes portugueses que em tupi designavam os ibirajaras; porque usavam como armas paus ou lanças de madeira. Segundo a carta do Padre José de Anchieta (Cartas Jesuíticas, vol. 3º, págs. 79 a 83), os irmãos Pedro Correia e João de Sousa, enviados aos ibirajaras, foram trucidados por esse gentio. Parece que essas tribos estavam então vizinhas dos carijós. A bandeira de Belchior Carneiro teria ido, portanto, a resgatar ao sul de S. Paulo. Mas no inventário de Belchior Carneiro (Inv. e Test., vol. 2º, pág. 158) feito no sertão, se declara que foram entregues a seu cunhado, Mateus Luís Grou, como curador, 26 peças do gentio temiminó que couberam a Belchior Carneiro, de suas partilhas, que juntas a seis de casa, faziam ao todo 32. Tal declaração parece indicar que o sertão em que eles estavam, era dos temiminós, e nessas condições poderia ter sido na bacia do rio S. Francisco onde também povoaram os temiminós, em 1603, ao tempo da penetração da bandeira de Nicolau Barreto, bandeira da qual fez ele parte, e conhecendo, portanto, o roteiro. É possível também que esses temiminós, nômades, já vencidos, se tivessem retirado para o sul da capitania de S. Vicente. Nessa expedição Belchior Carneiro morreu no sertão a 26 de junho de 1608; mas não se declara qual a causa de sua morte; assumiu, então, o comando da bandeira Antônio Raposo, o velho, que mandou fazer, no mesmo sertão, o inventário dos bens encontrados aí de seu antecessor. Por esse inventário pode-se constituir a lista de alguns dos bandeirantes que lá estiveram, pelos diversos termos lavrados onde se encontram os respectivos nomes dos arrematantes e fiadores. Em 29 de dezembro de 1608, já era conhecida a morte desse cabo, pois que seu cunhado Belchior da Costa apresentou ao juiz o inventário (vol. 2º, pág. 112) feito no sertão e nesse dia se iniciou o legal na vila de S. Paulo. Há uma circunstância interessante a notar, que já constituía direito costumeiro na vila de S. Paulo, a qual se refere à garantia da liberdade dos índios. E é a ela que a viúva Hilária Luís alude quando requer Na Capitania de São Vicente 333 que as peças do gentio pertencentes a seu marido trazidas do sertão, sejam lançadas como peças forras, e partilhadas entre seus filhos. O governador D. Francisco de Sousa, já de volta na terra a 4 de outubro de 1609, declara “que não se podem lançar em partilhas nenhumas peças por serem forras”. O Juiz de Órfãos replica a esse despacho dizendo que os índios e serviços forros não se podem pôr em inventários nem partilhá-los, mas devem eles ser entregues à viúva para com eles sustentar seus filhos. O governador manda ouvir a respeito o Juiz dos índios, Estêvão Ribeiro, o dos Órfãos, Gaspar Conqueiro, e ambos informam que é uso e costume da terra lançarem-se as peças em inventário e entregá-las à viúva para sustento dos órfãos. À vista desses pareceres, manda o Governador lançar as peças no inventário (vol. 2º, págs. 163 a 165). *** Em Madri, D. Francisco de Sousa conseguira que o governo geral do Brasil fosse dividido em dois, continuando a sede do primeiro em Salvador na Bahia, e que o segundo fosse constituído pelas capitanias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e S. Vicente, abrangendo as minas a descobrir, sua preocupação máxima, sob a denominação de Repartição do Sul. Desta foi ele nomeado Governador, assim na administração da justiça, como da fazenda e das minas e imediatamente somente sujeito ao rei, com muitos privilégios e promessas de mercês. Havia convencido ao governo de Filipe III da certeza que nutria do descobrimento das famosas minas, que iriam abastecer o tesouro espanhol. Fez-se de vela a 22 de janeiro de 1609, gastou 28 dias na viagem e aportou em Recife a 19 de fevereiro desse mesmo ano (C. de Abreu). Acompanhado do escrivão de sua Câmara, João de Santa Maria, fez em Pernambuco a 4 de março de 1609, trasladar a comunicação da divisão do governo-geral em dois, do qual seria ele o governador da repartição do sul, e fez seguir a participação régia dessa divisão ao Governador-Geral do Brasil, então D. Diogo de Meneses. Não tocou na Bahia. Quis evitar o encontro desagradável com o Governador-Geral, cujos poderes ficaram diminuídos. Pode-se seguir a sua viagem desde Pernambuco, na costa do Brasil, pelas atas da Câmara, que a foram registrando (Atas de janeiro de 1609). Em janeiro de 1609, a Câmara esperava a qualquer momento D. 334 Washington Luís Francisco de Sousa e o ouvidor-geral, e “mandou fazer o caminho do mar (vol. 2º pág. 232); a 25 de abril de 1609, ainda o esperava e o caminho do mar ainda estava por fazer (Idem, pág. 242); a 26 de abril do mesmo ano, tiveram notícia certa de que D. Francisco de Sousa já estava no Rio de Janeiro, e estavam todos moradores da Capitania apenados em fazer o caminho do mar (Idem, pág. 243). D. Francisco chegou afinal à capitania de S. Vicente, trazendo em sua companhia dois filhos, D. Antônio, o mais velho e D. Luís, ainda menor. A 3 de novembro de 1609 fez registrar nos livros da Câmara quatorze provisões régias que lhe davam na Repartição do Sul poderes idênticos ao do Governador-Geral do Brasil, e mais os poderes de fazer fidalgos a quatro pessoas, a conceder o foro de cavaleiros da casa real a cem pessoas e o de moços da Câmara a outros cem, de conceder dezoito hábitos de Cristo, sendo doze com 20$000 de tença e seis com 50$000, podendo ainda nomear capitão e governador das minas, prover os ofícios de justiça, de provedor e tesoureiro, nomear mineiros e dar-lhes ordenado e ainda com ordem aos governadores do Rio da Prata e de Tucumã para o proverem de trigo e cevada. Todas essas provisões são dadas de 2 de março e 16 de junho de 1608 (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 188 a 207). *** D. Diogo de Meneses na Bahia conturbou-se e amargamente queixou-se ao rei de Espanha por ver separados do seu governo as capitanias do Espírito Santo e de S. Vicente, que incluía o Rio de Janeiro. Julgou-se até afrontado, agravado e francamente manifestou os inconvenientes dessa separação, que dava a D. Francisco de Sousa a administração de todas as minas a descobrir (Anais da Biblioteca Nacional, vol. 57, págs. 52 e 53). Na confusão e ignorância geográfica, então existentes sobre as divisas entre as capitanias, as minas a descobrir poderiam estar situadas na parte do território do seu governo, o que causaria sérios conflitos administrativos, sem solução imediata e com grave prejuízo para todos. Esse era, sem dúvida, um grave inconveniente, mas condicional, dependendo do descobrimento das minas. Mas o principal, e ele o acentuava, era que as três capitanias separadas eram pobríssimas, nada valiam por si, não poderiam se sus- Na Capitania de São Vicente 335 tentar a si mesmas com governo próprio. Além disso o Rio de Janeiro era lugar desejado pelos franceses que, se o vissem fraco e debilitado pela separação, o acometeriam. E se não o fizessem aí estariam os rebeldes da Holanda e da Zelândia que o fariam. Dificilmente se acudiriam a tais ataques e mais difícil ainda seria desalojá-los se eles aí tomassem pé. Esses dois graves inconvenientes eram indisfarçáveis, principalmente o primeiro tendo em vista a penúria, a miséria da terra que D. Francisco de Sousa ia governar, mesmo que ela não fosse atacada por inimigos ou corsários. Essa repartição do sul era, então, pobríssima. Essa era uma verdade incontestável. D. Francisco de Sousa, para a obra formidável, que trazia em mente, só poderia contar com os seus recursos pessoais, que eram sabidamente escassos, e com os subsídios de governador, que eram diminutos. Já havia sido substituído uma vez no governo, e o poderia ser ainda outra vez, o que sem dúvida enfraquecia a sua ação. Vinha ele a descobrir minas e a explorá-las, cujas despesas seriam enormes, cujas dificuldades seriam imensas, numa terra percorrida por índios selvagens, e habitada por mestiços desambiciosos ou por poucos reinós ignorantes, sem mineiros experimentados, sem ensaístas capazes para achamento do ouro. Só poderia contar com a confiança na sua ação, com a certeza inabalável de encontrar as minas, e com a audácia e experiência dos sertanistas no devassar o sertão; e esta mesma enfraquecida pelo escarmento das devassas anteriores ordenadas por Diogo Botelho e abalada pela propaganda dos jesuítas. Devia também esperar a manifesta má vontade de Diogo de Meneses, Governador-Geral do Brasil, na repartição do Norte. Nas poucas vilas, situadas na sua repartição, faltava tudo, até as comezinhas coisas para um viver frugal, rudimentar, já que não se podia pensar em conforto, no bem-estar que a vida exige, qualquer que ela seja. As moradas dessas vilas eram na maior parte coberta de palha, a Câmara não tinha casa própria onde fazer audiências, (Atas, vol. 2º, pág. 258 em 1610) nem a vila possuía a igreja paroquial (1. c. págs. 259, 273). O viver aí era duro e na própria alimentação havia privações. 336 Washington Luís A principal indústria da terra era a cativação do índio, em guerras perigosas, para cuidar das parcas criações de porcos e de gado, do plantio de algodão, de marmeleiros e de cereais para consumo local. Os inventários dos principais da terra, feitos nesse tempo, demonstram à saciedade o desconforto, a pobreza, e miséria mesmo, dos habitantes desamparados da metrópole, ameaçados de cruéis guerras gentias, assolados continuamente por epidemias de varíola, de sarampo, de câmaras de sangue, sem médicos e sem farmácias que os curassem. Só tinham o amparo da religião dos padres jesuítas, cuja medicina consistia principalmente em sangrar. A missão, que D. Francisco de Sousa se tinha imposto, deveria fracassar, como fracassou. Os documentos desse tempo, quer nos arquivos estaduais quer nos municipais, são silenciosos a respeito da ação de D. Francisco no governo da repartição do sul da colônia. Guardam apenas vagas referências a ínfimas transações comerciais sobre trabalhos em minas e num engenho de ferro. O Registro Geral, durante esse período, acolheu apenas duas ou três provisões, para desaparecer em 1610 e só recomeçar em 1616. Nesse seu segundo período governamental – 1609 a 1611 – nada fez ou pelo menos nada consta nos arquivos locais, cuja falta nesse período, é sensível. A 20 de maio de 1610, a seu pedido a Câmara deu procuração a seu filho, D. Antônio de Sousa, que ia a Portugal a “negociar e pedir algumas coisas a Sua Majestade para o bem deste povo” (Atas, vol. 2º, pág. 267) “sendo nessa ocasião portador de uma espada e de uma cruz de ouro, o que tudo os corsários no mar lhe tomaram“, conforme relata Frei Vicente do Salvador (H.B. pág. 419). E foi tudo que conseguiu nas minas dos arredores de S. Paulo. “Nem o Governador D. Francisco de Sousa teve lugar de mandar outra com uma enfermidade tão grande que teve na vila de S. Paulo da qual morreu, estando tão pobre que me afirmou um padre da companhia, que se achava com ele a hora de sua morte, que nem uma vela tinha para lhe meterem à mão, si não a mandara levar do seu convento” (Frei Vicente do Salvador, H. B, pág. 419). Sumário Na Capitania de São Vicente 337 Assim finou-se tristemente na pobríssima vila de S. Paulo, nos sertões de um quase deserto, um Governador Geral, hábil e pertinaz, um grande de Portugal, cuja casa ia por varonia até D. Afonso III, e que tornara ao Brasil, segunda vez, com poderes extraordinários, concedidos pelo monarca de todas as Espanhas. Não descobriu minas de ouro para seu rei, nem para si obteve o Marquesado das Minas, tão ambicionado e tão prometido. “A 12 de junho de 1611, na vila de S. Paulo, se ajuntaram na casa do conselho os oficiais da Câmara e sendo todos juntos, apareceu o senhor D. Luís de Sousa, filho que ficou do Sr. Francisco de Sousa, que foi capitão geral desta nova repartição do sul e por ele foi apresentado um codicilo e nomeação, que o senhor seu pai lhe fizera em o deixar com adjuntos para que sirvam em ausência do senhor D. Antônio de Sousa que ficava nomeado conforme provisão de Sua Majestade e que os ditos oficiais aceitaram por andar o povo alvoroçado e para evitar muitas inquietações que se aparelhavam sobre este caso”. D. Luís de Sousa, ainda de menor idade prestou o juramento sobre um missal (Atas, vol. 2°, págs. 291 e 292). Assim lastimosa e melancolicamente terminou o segundo governo de D. Francisco de Sousa na repartição do sul das partes do Brasil. Mas não terminaram as bandeiras, que continuaram e até recrudesceram mais tarde no Guairá, e que afinal descobriram as minas, como se verá adiante. Próxima página Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo XXI A CONQUISTA DO SUL – O GUAIRÁ – A RETIRADA DOS PADRES JESUÍTAS PARA BAIXO DO IGUAÇU E PARA OS TAPES – MBORORÉ, NO URUGUAI – DIREÇÃO PARA O OESTE, ITATINES, TAQUARI, PARAGUAI E DEPOIS PARA O NORTE § 1º GUAIRÁ O GUAIRÁ era uma vasta região, na América do Sul, na parte que, há mais de três séculos, pertence ao Brasil e constitui hoje o Estado do Paraná. Era limitada ao norte pelo rio Paranapanema, a oeste pelo rio Paraná, ao sul pelo rio Iguaçu, e vinha a leste até os contrafortes da Serra do Mar. Poucas regiões sul-americanas, nos tempos coloniais, tiveram limites tão precisos. Está situada, mais ou menos abaixo de 26 graus de latitude sul, goza de clima ameno, onde as estações já se definem, possui terras férteis para todas as culturas, e, na serra, estendem-se pastagens para criação do gado. A sua altitude varia de mais de mil metros acima do nível do mar na serra de Paranapiacaba, e vai se abaixando em alguns lugares até 400 metros na parte oeste. Página anterior 340 Washington Luís Essa região era percorrida por diversas tribos de índios nômades chamados Guaranis pelos espanhóis, e Carijós pelos portugueses e destes eram inimigos. Entre S. Paulo e essa região, havia caminho terrestre, trilho de índios, que uma tradição, evidentemente fantasiosa, atribuiu sua feitura a um dos apóstolos de Jesus Cristo e que, por isso, foi conhecida em meados de 1500 como “Caminho de São Tomé” ou Pai Zumé, segundo o falar indígena. Para lá se ia também por via fluvial, isto é pelo Tietê e Paraná, e ainda por mar. Por esse caminho se atingia o Paraguai. Alguns governadores do Brasil proibiram, por instantes recomendações e sob penas severas, o trânsito por aí, como o fez D. Duarte da Costa cm 1556 (Atas da Câmara de Santo André, pág. 36). No interregno de seus dois governos, no Brasil, D. Francisco de Sousa, ao contrário em 1603, mandou reabri-lo (Atas da Câmara, vol. 2º, pág. 138). Por esse caminho veio do Paraguai Ulrich Schmidl e, passando, em junho de 1533 pela morada de João Ramalho se foi, em S. Vicente, embarcar para a Europa. Em 1516 a Espanha fizera navegar o rio Uruguai por Dias Solis, que foi devorado pelos índios que estavam nas margens, onde ele desembarcou. Dez anos mais tarde, 1526, fez seguir outra expedição sob o comando de Caboto. Depois da volta deste, designou D. Pedro de Mendoza, como Adelantado que fez um pueblo, Santa Maria, 1535, (onde depois se fundou Buenos Aires) logo depois destruído pelos indígenas. Este Adelantado fez subir, seu lugar-tenente, Juan de Ayolas, pelo rio Paraguai (1536) o qual deixou Domingos Irala, onde se fez Assuncion. Daí, de Assunción, Irala fez partir diversas expedições. De uma delas foi comandante Ruy Dias de Melgarejo, que fundou Ciudad Real, a duas léguas depois do salto do Paraná, nas imediações da foz do Pequiri, em 1557, com 100 espanhóis. Mais tarde a ela se agregaram outros 60 espanhóis que, a duas léguas mais abaixo, haviam antes dado princípio à vila de Outiveros, assim chamada por, em Castela, ter este nome a pátria do capitão Garcia Rodrigues de Vergara, seu fundador. Outra, a Vila Rica do Espírito Santo, a 60 léguas da primeira, fora também fundada, em 1577, pelo capitão Ruy Dias de Melgarejo com outros 100 espanhóis, Na Capitania de São Vicente 341 perto da foz do rio Corumbataí no Ivaí, este afluente do Paraná, a qual possuiria nos princípios do século 17, uns 200 vizinhos espanhóis. A primeira, a 160 léguas de Assunção, paragem insalubre, com caminhos quase intransitáveis, era segundo o Padre Lozano, uma miserável aldeola de uns 40 vizinhos, espanhóis em nome, mas na realidade mestiços degenerados, alimentando-se de mandioca, da caça e pesca, vestidos de algodão grosseiro, com uma curiosidade tão apagada que nada sabiam do próprio país e nem cuidavam saber dos alheios. Em 1614, a Espanha separou essa região do Peru, fazendo a província do Paraguai que ficou abrangendo Tucumã, Corrientes, Buenos Aires e todo o sul da América espanhola. Em 1617 criou a província de Buenos Aires, separada da província do Paraguai, abrangendo esta o Guairá. Dada a indecisão das fronteiras entre Espanha e Portugal, na repartição do mundo a descobrir feita pelo Papa, mal determinadas ainda depois no tratado de Tordesilhas, os portugueses julgavam que esse território do Guairá pertencia a Portugal, como os espanhóis sustentavam ser ele do domínio de Espanha. Por essa razão, aportando em Santa Catarina, Cabeça de Vaca foi por terra em 1541 para Assunção no Paraguai, certo de pisar terra espanhola. Os jesuítas espanhóis também começaram a catequese dos indígenas, por essas regiões, saindo do rio Paraná e do rio Paraguai. No ano de 1588, enviados da província jesuítica do Peru, com o título de Missão, os padres da Companhia de Jesus entraram no território de Tucumã. Mas tais foram os progressos e frutos obtidos nessas missões, e tão vasto o território em que elas se realizavam que, por 1604, o Geral da Companhia de Jesus, Cláudio Aquaviva, resolveu criar uma nova província jesuítica, independente da do Peru. Essa província, que compreendia os territórios dos governos políticos do Chile, de Tucumã, do Rio da Prata e do Paraguai, foi efetivamente fundada em 1607, sendo o Padre Diogo de Torres o seu primeiro provincial (1607-1614). Essa catequese, mais ou menos nômade, que os padres faziam ao batizar milhares de selvagens, não trazia conversões seguras com resultados duradouros; por isso entenderam os padres de reunir os indígenas em estabelecimentos fixos, onde pudessem com eficácia doutriná-los e reduzi-los à fé católica. 342 Washington Luís Essas reduções sedentárias, porém, só poderiam ser feitas longe dos espanhóis, que se entendiam com o direito de dispor dos índios por encomienda, sistema que os abusos, na prática, confundiam com escravidão. Transposto o Paraná, os padres evitando essa vizinhança, caminharam mais para o norte e chegaram ao rio Paranapanema onde só encontravam indígenas, que eles sem obstáculos desejavam civilizar, argila virgem, que podiam modelar à vontade, segundo supunham, para aí fazer nações, criando impérios. Poucos padres, porém, foram trabalhar nessa faina gigantesca. Pode-se marcar, quase com precisão, o dia 26 de novembro de 1609, como o da entrada dos jesuítas no Guairá, pela ordem escrita pelo Capitão D. Antônio de Anhasco, então Tenente General do Governador e Justiça Maior nas províncias do Paraguai e Rio da Prata, que determinou ao Capitão Pedro Garcia, ou a qualquer outra justiça do Guairá, que não embaraçasse por forma alguma a ação dos P. José Cataldino e Simão Mazzeti, que ficavam encarregados, na província do Paranapanema, da redução dos indígenas; e, ao contrário, os auxiliasse na sua missão (P. Pastells, História da Companhia de Jesus, vol. 1º, pág. 153). Assim esses dois padres, Simão Mazzeti e José Cataldino, chegaram à margem esquerda do Paranapanema, próximo à foz do tributário Pirapó, fundaram em 1610 a redução de N. S. do Loreto, e subindo um pouco mais o Paranapanema, léguas acima, fundaram outra que denominaram Santo Inácio. Mas antes já aí evangelizavam. Alguns meses antes da fundação desses estabelecimentos, a essas partes chegou o Pe. Antônio Ruiz de Montoya, a alma mais perfeitamente talhada para fazer prosperar a obra gigantesca que se projetava. Muitos anos levaram esses padres, que aos poucos foram recebendo novos companheiros como reforços espirituais, na dura tarefa de catequizar os selvagens indígenas. Nessas reduções, que eles sempre melhoravam materialmente, construíram toscas igrejas de madeira e de telha, casas, etc. Nelas faziam ponto, donde partiam alargando a sua conquista espiritual, entrando nas matas, ensinando os caciques, atraindo os índios infiéis, trazendo-os para o seio das igrejas de Loreto e de S. Inácio, e por essa forma estendendo as suas fronteiras. Na Capitania de São Vicente 343 Breve, tendo maior número de missionários, e reconhecendo a inconveniência de Igrejas com tão grandes distritos, resolveram erigir novas entre os povos, que lhes aceitavam a doutrina, fundando assim outros estabelecimentos fixos, verdadeiro sistema ganglionar de um vasto, embora rudimentar, tecido civilizador que iria envolver os aborígines. Junto a cada nova igreja, onde reuniam-se os índios doutrinados, ficavam dois padres, um com o governo espiritual e outro com o temporal, e assim aumentavam cada vez mais as reduções que tomavam o nome do orago da igreja estabelecida, adicionado ao nome indígena, ou do acidente do terreno ou do cacique que aí dominava. Esse nome indígena estendia-se a um território circunvizinho, que pelos jesuítas evangelizadores era designado como uma província. E porque os primeiros padres entraram por lugares que os espanhóis já chamavam Guairá, as duas reduções primeiras – Loreto e S. Inácio – ficaram na província do Guairá, propriamente dita, nome depois generalizado a toda a região. Subiram os padres o Paranapanema e, abandonando-o na boca do Tibagi, navegaram por este até um seu pequeno tributário que desce da fragosa serra Apucarana, ramificação da serra de Paranapiacaba, atravessaram-na e, em 1624, fundaram S. Francisco Xavier em Ibiterembetá. Sendo muito arriscada, porém, em tempos chuvosos, a viagem pelo Tibagi, que por aí corre, por causa de seus muitos recifes e precipitadas correntes, e desejando assegurar a passagem por terra entre o Guairá propriamente dito e o Ibiteremhetá, fundaram os padres em 1624, a redução de S. José, no Tucuti. Ao sul do Ibiterembetá ficava a província de Taiati, na qual, junto ao monte Nuantigui, e, na fralda de uma serra coroada de pinheiros, foi fundada, em 1625, Encarnación. A quatro jornadas de Encarnación, para oeste corria o iñeai (este nome se aplicava, parece, ao curso superior do lvaí, antes de receber o Corumbataí) que dividia a leste a província de Taiati da de Taiobá, que lhe ficava a oeste. Na província de Taiobá, fundaram em 1628 São Tomé e à margem direita do Corumbataí criaram Conceição dos Galachos, também em 1628. 344 Washington Luís À margem esquerda do Iñeai (alto Ivaí) situaram S. Paulo (1627) e nessa mesma margem S. Antônio (1628) no lbiticoí. A leste do Taiobá e ao sul de Taiati ficava S. Miguel de Ibituru na (1628). No mais alto das serranias, Jesus Maria em terras do cacique Guiravera, a última fundada, em 1630. A leste destas duas últimas e de Encarnación estava S. Pedro, fundada em 1627. Na margem direita do Iguaçu quase na sua foz no Paraná, estava Santa Maria Maior fundada em 1626. Em 1628 já haviam fundado Arcângelos. Havia nessa região, como se vê, duas cidades espanholas e quatorze reduções jesuíticas. A raça guarani, que os portugueses chamavam carijó, tinha aí, ao norte, maior número de representantes. Mas nos Campos, que correm desde as ásperas serranias, onde nasce o Ivaí até próximo ao Iguaçu, campos de onde se avista o oceano, dominavam índios que se chamavam Camperos ou Guarairu ou Cari-iru, Cabeludos ou Coroados, e Guaranis. O primeiro nome foi dado pelos espanhóis aos moradores, em razão do lugar que ocupavam; o segundo e terceiro deram os naturais do país, por causa de dois poderosos caciques que aí dominavam; o quarto era dado porque os índios cuidavam muito do cabelo que deixavam crescer abundante, tanto homem como mulher, raspando, porém, as cabeças de modo a abrir coroas. E o último era uma designação geral adotada pelos espanhóis. Confinando com estes havia os Guañañas tão alvos, que se supunham descendentes de náufragos espanhóis. Eram selvagens de outra língua e de outra raça, e foi com eles que os jesuítas fizeram a redução de Conseption de los Gualachos. Havia, por aí, naturalmente, outras tribos de raças diversas, e línguas diferentes, ilhadas nesse território. Dificilmente se poderá avaliar precisamente a população indígena que aí habitava e aquela que foi reduzida pelos padres. Dela se pode dizer que em Santo Inácio e Loreto, que eram os mais importantes estabelecimentos, havia na primeira umas 900 famílias, com 4.500 pessoas, e na segunda 800 famílias, com 4.000 pessoas aproximadamente. Caminhando, porém, para o nordeste, em parte fugindo dos espanhóis, para preservar a colossal obra de civilização que empreende- Na Capitania de São Vicente 345 ram, os jesuítas se arriscavam a se encontrar com os portugueses, aproximando-se da célebre linha de marcação, mal conhecida de todos e não respeitada por ninguém. Os dois mapas, em seguida, em que estão situados os dois vilarejos espanhóis e as reduções jesuíticas, dão uma idéia aproximada do que nessa época era o Guairá. A situação, quer política, quer religiosa, nessa região, era semelhante a que se desenrolava no planalto em que estava S. Paulo. Lá também houve a mestiçagem e a mesma necessidade do índio para os serviços domésticos e agrícolas para tornar efetiva a ocupação européia no continente novamente descoberto. Também o trabalho jesuítico desviava o indígena para a catequese religiosa nas reduções ou missões, que ele formava e dirigia ciumentamente. Havia, porém, diferenças notáveis: a região do Guairá ficava muito mais distante dos portos do mar e era alagada pelas cheias dos caudalosos rios, que a atravessavam, e a tornavam insalubre; enquanto que o planalto, perto do porto de S. Vicente, era dotado de “bons ares e de boas águas”. Essas circunstâncias tornavam a administração espanhola mais difícil e mais enfraquecida. A Espanha não dividira as terras, que o indeciso e desrespeitado Tratado de Tordesilhas lhe designara, em capitanias e não as dera a seus vassalos, como fizera Portugal, de modo que as leis decretadas para as suas conquistas eram menos observadas, ou não eram executadas. Nomeava para lá adelantados, governadores, que receavam absorver atribuições dos seus vizinhos e não se animavam a sair das suas circunscrições. Por outro lado, o Governo de Espanha, segundo expõe Raimundo Fernandes Ramos ordenava que luego que se haya hecho la pacificacion el Adelantado, governador o pacificador reparta os indios entre los pobladores españoles para que cada uno se encargue de los que fuessen de su repartimiento y los defenda e ampare, proveyendo ministro que los enseñe la dotrina cristiana y administre los sacramentos, guardando nuestro patronage y enseñe a vivir en policia (poblado). La formula en estos casos para el repartimiento era la seguinte: “A vos Fulano, se os encomienda tantos índios de tal cacique; enseñando les las cosas de nuestra religion”. De aqui procede el que se les diera el nombre de encomienda a las tierras repartidas con los indios correspondientes y se chamassem encomienderos a los que teniam unas e otras a su cargo. Trecho do fac-símile do primeiro mapa do Paraguai, construído pelos jesuítas dessa província, oferecido ao R. P. Vicente Carrafa, então geral da Companhia de Jesus. (1646-49) (Copiado de um mapa apresentado pelo Barão do Rio Branco ao árbitro Cleveland, na questão das Missões entre Brasil e Argentina). Trecho do fac-símile aumentado da Gravura Original no tomo XXI, 229, das “Lettres E’Difiantes Écrites des Missions Etrangeres, par Quelques Missionaires de la Compagnie de Jesus, Pariz”, 1734. (Copiado de um mapa apresentado pelo Barão do Rio Branco ao árbitro Cleveland, na questão das Missões entre o Brasil e Argentina). 348 Washington Luís El encomiendero preferia cobrar el tributo que los indios debiam abonar no en plata e efetos como ordenaba la lei, sino em jornadas irrisorias. Com este sistema podiam tener 100 indios a sus ordenes... El servicio personal en las encomiendas fué el que prevaleció. Esses indios eram los que le chamabam mitais, porque cumpliam en los dos meses de trabayo com essa mita o termo....1 Las encomiendas passaram logo a escravidão e os encomienderos a senhores dos escravos índios. Equivalia mais ou menos ao resgate e às guerras que os portugueses faziam no planalto, com os quais obtinham serviços forros. Depois os jesuítas no Guairá fizeram as províncias religiosas para a catequese em reduções, missões ou doutrinas, o que tudo significava a mesma coisa, ajuntavam os índios subtraindo-os assim ao trabalho dos espanhóis nas suas encomiendas. A luta lá se estabelecera entre colonos e jesuítas, mas muito menos vigorosa por parte dos colonos, pois que estes eram menos numerosos e aqueles mais ativos. Mas os interesses contrariados eram os mesmos. A luta, que aqui se estabeleceu entre jesuítas e colonos, também se estabeleceu entre missionários e espanhóis. No planalto os jesuítas quiseram assenhorear-se das aldeias, e, pela catequese, também subtraíam os índios ao trabalho nos sítios possuídos pelos portugueses. A causa, em ambas as regiões, era a mesma. Os habitantes, pois, do Guairá haviam que ver com tolerância ou mesmo com cumplicidade as invasões dos paulistas. 2 Essa situação é definida no livro de Gustavo Adolfo Otero quando expõe as teorias de Sepulveda e Las Cases, nas quais não vê ele um duelo intelectual, entre dois homens, mas entre duas expressões do pensamento humano, que representam a eternidade dos interesses, das paixões dos homens considerando-as antes como a luta entre a liberdade e a opressão, entre a razão e as paixões, entre o direito e a força, o direito 1 2 Apuntes sobre missiones (págs. 58 e seguintes). A Vida Social del Coloniaje – Esquema de la Historia do Perú hoy Bolivia, pág. 12. Na Capitania de São Vicente 349 posto a serviço dos humildes e dos inermes, e a força que se esconde 3 sob a cobiça e o sensualismo do mando . Acrescente-se a essas considerações, essa observação menos elevada, porém de mais realidade, reconhecendo que no Guairá estabeleceu-se também a luta entre a catequese religiosa e a colonização civil para a ocupação da América do Sul pelos europeus. Tolerando ambas as formas, a proteção dos reis variava. Os jesuítas portugueses já lá haviam mandado os irmãos Pedro Correia e Manuel de Chaves, que pereceram em 1555 devorados pelos selvagens carijós. Desde o século 16, pois, era conhecida essa região pela catequese jesuítica portuguesa, saindo ela da Capitania de S. Vicente. Os jesuítas obedeciam à sua ordem e não aos reis, serviam aos interesses da companhia e não aos das nacionalidades. Essa região já era também freqüentada pelos moradores de S. Paulo, e dessas entradas tinham conhecimento os jesuítas espanhóis, que, a princípio, as consideravam como cativação de índios infiéis. As bandeiras paulistas desde pelo menos 1581 iam lá fazer guerra aos carijós, certos de que andavam por conquistas da coroa de Portugal, ou isso alegavam (Carta de D. Antonio Añasco de 14 de novembro de 1611 – v. 1º, Anais do Museu Histórico de S. Paulo, pág. 153). Jerônimo Leitão, após consultas prudentes, e a instâncias das Câmaras e dos povos da Capitania de S. Vicente, lá esteve, como já narrei no Capítulo XIII, para fazer a guerra aos carijós. E desde essa época, nos inventários, aparecem descrições de índios carijós escravizados. Uma dessas expedições partiu em fins de 1585, e em abril de 1586 ainda estava nesse sertão, o que se deduz da vereança de 7 de abril de 1586 (Atas, vol. 1°, pág. 293). Afonso Sardinha, que em 1598 partira para o sertão, fora lá ao resgate; e em setembro de 1606, agasalhara em sua casa na vila de S. Paulo diversos principais carijós do Paranapanema (Atas da Câmara de S. Paulo, vereança dessa data, vol. 2º, pág. 150). 3 A Vida Social del Coloniaje – Esquema de la Historia do Alto Perú, hoy Bolivia, pág. 12. 350 Washington Luís O Padre Pero Lozano conta – Conquista del Rio de la Plata, vol. 1º, pág. 422, da qual tomo grande parte das notícias aqui dadas que pelos anos de 1600 os mamelucos de S. Paulo cativaram índios Guananás, que uns chamam Gualachos e outros Guaianás, que viviam no rio Iguaçu e com eles fundaram um povo que entregaram a um clérigo português; mas, tais vexações receberam esses índios dos paulistas e do clérigo, que uns 600 deles fugiram. E em 1607, Manuel Preto, vindo de Vila Rica, trouxera muitos temiminós, que no caminho encontrara (Atas da Câmara de S. Paulo, vereança de 7 de janeiro e 11 de fevereiro de 1607, vol. 2º, pág. 184). Em 18 de fevereiro de 1607, diversos homens poderosos, cujos nomes por essa razão não são talvez mencionados, revéis e desobedientes aos mandos das justiças, se aprontavam para ir aos carijós (Atas, C. S. Paulo, vol. 2º, pág. 190). Esse comércio começara a ser tão lucrativo que Belchior Roiz, de Birapoeira, no termo da vila de S. Paulo de Piratininga, com tenda de ferreiro queria ir para Apiassava das canoas, onde costumavam a desembarcar os carijós, que à vila de S. Paulo vinham a resgate; e porque “isso causaria muito prejuízo à vila”, a Câmara proibiu a ida de Belchior Roiz (Atas, vol. 2º, pág. 198). Em 1611, Pedro Vaz de Barros, comandando 32 homens, brancos e muitos índios tupis, em Guairá, teve “dares e tomares” com D. Antônio de Añasco, conforme este relata numa carta a Diego Marin Negron, a 14 de setembro do ano acima indicado (Anais do Museu de S. Paulo, vol. 1º, pág. 154). Pedro Vaz de Barros ia com um mandado de D. Luís de Sousa, filho menor de D. Francisco de Sousa, e que ficara governando a repartição do sul, por morte de seu pai e ausência de seu irmão D. Antônio de Sousa, para buscar índios para trabalho das minas. Este mandado está transcrito nos Anais do Museu Paulista (vol. 1º, pág. 148 e seguintes). Em 1612, Bartolomeu de Torales escreve ao Governador Diogo Marin Negron que Sebastian Preto, português de S. Paulo levou cinco caciques com muitos índios para a dita vila de S. Paulo (Idem vol. 1º, pág. 158) o que é confirmado por carta do cabido de Ciudad Real, calculando o número de índios em 3.000 (Idem, pág. 159). Em 14 de dezembro de 1615, Lázaro da Costa era capitão-mor de uma bandeira, que se achava postada no sertão dos carijós, e Na Capitania de São Vicente 351 da qual faziam parte Pero Sardinha, neto de Afonso Sardinha, o velho, e que lá morreu, o Alferes-Mor Lourenço de Siqueira, João Pereira, Paulo do Amaral, Francisco Nunes Cubas, Aleixo Jorge, Alonso Peres Calhaniares, Romão Freire, Theodosio de Saavedra, Luís Delgado, Balthasar Glz., Gaspar dos Reis, Manuel Roiz, Simão Fernandes, João de Sousa, Antonio Roiz Velho, o Araa (Inv. e Test. vol. 3º, pág. 391 e seguintes). Em 1618, Manuel Preto, já freqüentador dessas paragens, com uma imensa bandeira, acometeu a redução de Loreto, na foz do Pirapó, afluente do Paranapanema; mas se retirou atendendo aos rogos ou às ameaças do Padre Antônio Roiz de Montoya. Ao retirar-se, já na foz do Tibagi, fez prisioneiros diversos índios. Afirmou o Padre Montoya que nessa retirada Manuel Preto foi acometido por um tigre, que o feriu na cabeça e duas vezes nos braços, e que isso, lançando o pavor na bandeira, salvou 900 índios que já iam aprisionados, os quais o Padre Cataldino levou para as reduções de Loreto e de Santo Inácio. Veio mais tarde Manuel Preto a morrer de um flechaço no sertão (em 1630?). Em 1623, a 18 de novembro, outra bandeira de que faziam parte Henrique da Cunha, o velho, João Gago da Cunha Lobo, João Raposo, Diogo Barbosa Rego, Mateus Luís Grou, Jeronimo Abres, Jerônimo da Veiga, estava acampada no sertão dos carijós (Inv. e Test., vol. 1º, pág. 208 e seguintes). André Fernandes, de Parnaíba, foi grande matador de índios e o mais cruel dos invasores, e, segundo o extrato de Pastells (obr. cit., pág. 461), fez lá entradas. A mulher de André Fernandes, entretanto, Antonia de Oliveira, no seu testamento, em 1632 (Inv. e Test., vol. 8º, pág. 311) declara solenemente que os gentios que possuía o casal, muitos vieram de suas terras livremente sem ninguém ir por eles, só pela fama do bom tratamento que seu marido a eles dava. Em 1º de julho de 1623, o procurador da Câmara informa que a vila estava despejada de moradores por terem ido quase todos ao sertão (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 3º, pág. 41). Mas cativando índios infiéis no Guairá, as bandeiras tiveram conhecimento pleno das numerosas reduções, que aí os padres jesuítas espanhóis pacificamente criavam para cristianização dos aborígines, e que os paulistas julgavam estabelecidas em terras da coroa de Portugal. 352 Washington Luís A 12 de outubro de 1627, a Câmara se dirige ao capitão-mor mostrando apreensões sobre os espanhóis de Vila Rica que se vinham aposseando das terras da Coroa de Portugal (Atas, vol. 3º, pág. 282). Pastells, no seu trabalho, tantas vezes citado, em que recolheu extratos de documentos dos arquivos de Sevilha (pág. 758 e Nota) informa que perguntado pelo Padre Cristóvão de Mendonça por que título faziam guerra às reduções, respondeu-lhe Antônio Raposo Tavares, capitan de uña compañia de portugueses, que por el título que Dios lhes daba en el libro de Moyses de debelar las gentes dando a entender que, a exemplo dos israelitas, eles vinham conquistar a nova Canaã que entendiam sua (Pastells, pág. 458). Mais claramente afirmaram ainda que lá iam, porque o Guairá pertencia à Coroa de Portugal “e que esta conquista lhes pertencia e estava na demarcação de suas terras” (Pastells, obra cit. pág. 461 em nota). Os jesuítas contavam que o Bandeirante Antônio Pedroso declarou que esta guerra, mandada do Brasil tinha por intuito trazer da Holanda ao Brasil o filho de D. Antônio e aclamá-lo rei. O próprio informante desse conto, sem dúvida alguma inverossímil, ignorava o seu fundamento pois que eram falas de índios, confusos e herejes (Pastells, vol. 1º, pág. 458). Mas o escopo principal das bandeiras era a cativação dos índios e sendo mais fácil a dos indígenas inermes ou mal armados, reunidos nas reduções, passaram a atacá-las, embora a conseqüência remota tenha sido a posse de territórios. Vê-se, pois, que D. Luis Céspedes y Xeria não teria sido parte determinante para a invasão dos bandeirantes no Guairá, território que os portugueses julgavam ser da Coroa de Portugal, e onde iam cativar índios. D. Luís Céspedes y Xeria foi nomeado Governador e Capitão-Geral do Paraguai a 6 de fevereiro de 1625 (Pastells, vol. 1º, pág. 417). Para ir tomar posse do seu governo fez longuíssima, demorada, penosa e acidentada viagem, segundo ele mesmo conta em cartas a seu rei, em Espanha, como se vê da Documentação Espanhola, mandada extratar por Afonso de Escragnolle Taunay e publicada no volume 1º dos Anais do Museu Histórico Paulista, nas páginas 139 e seguintes, dos papéis do Arquivo General de Índias em Sevilha. Os documentos, publicados nesses Anais, são trasladados na íntegra, e deles há também referências Na Capitania de São Vicente 353 inequívocas feitas pelo Padre Pablo Pastells, na sua obra Historia da Companhia de Jesus en la Província del Paraguay. Pablo Pastells, lealmente indica esses documentos, com suas datas, mas deles faz resumos curtíssimos, principalmente, dos que se referem aos feitos de D. Luís Céspedes y Xeria. A Coleção de Angelis, publicada pela Biblioteca Nacional e comentada pelo Sr. Jaime Cortesão, traz muitos desses documentos. Segundo a publicação agora autêntica, na íntegra, desses documentos, nos Anais do Museu Paulista, é fácil acompanhar a difícil viagem e os diversos feitos de D. Luís Céspedes Y Xeria. Segundo narra esse Governador do Paraguai, após 15 dias de sua nomeação foi a Cádiz e daí saiu para Lisboa, a fim de seguir para a América e tomar posse do seu governo; mas nessa cidade teve que se demorar um ano pois que aí, por causa da guerra com os holandeses, havia ordem de não sair navio algum, antes que partissem as naus das Índias, que eram comboiadas por forças militares marítimas. Afinal partiu de conserva com essas naus até certa altura e afastando-se seguiu para Salvador, na Capitania da Bahia de Todos os Santos. Aí assistiu ao ataque feito pelos holandeses. Foi muito bem recebido pelo Governador Geral, Diogo Luís de Oliveira, que lhe proporcionou transporte marítimo até o Rio de Janeiro. Da Bahia escreveu ao rei de Espanha a 30 de julho de 1627 (Documentação Espanhola – Anais do Museu Paulista, v. 1º, pág. 168). No Rio de Janeiro casou-se com D. Victoria de Sá, filha de Gonçalo de Sá, este irmão de Martim de Sá, Governador do Rio de Janeiro, e, 15 dias depois, partiu por mar para Santos, por não ter encontrado monção para o Rio da Prata. Deixando sua mulher no Rio de Janeiro, foi ela mais tarde a ele se reunir, pelo mesmo caminho fluvial do Anhembi, sendo conduzida desde S. Paulo, por André Fernandes, um dos fundadores de Santana do Parnaíba. D. Victoria foi também acompanhada por seu primo Salvador de Sá y Benevides, que consigo levou 30 soldados portugueses, em setembro de 1629 (Anais do Museu vol. 2º, pág 265). Em S. Vicente, a 22 de junho de 1628, alegando possuir as licenças necessárias do Governo de Espanha para passar por terra ao Paraguai, D. Luís requereu ao ouvidor da capitania, então Amador Bueno, que com grandes penas, fossem publicados editais para que nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que fosse, o acompanhasse nessa sua viagem, a não ser 354 Washington Luís aquelas que o capitão-mor de S. Vicente designasse, no que foi atendido (Idem, vol. 1º, pág. 172) por despacho no mesmo dia. O Capitão-Mor, naquela época, Álvaro Luís do Vale, designou o Capitão Manuel Preto para que, apenas com seis índios sem nenhuma pessoa branca, acompanhasse D. Luís Céspedes, pelos rios abaixo, voltando imediatamente a S. Paulo, sem ir ao sertão nem trazer outros índios (Idem, pág. 176). Quando o Governador do Paraguai chegou a S. Paulo a Câmara, composta do Juiz Ordinário, Sebastião Fernandes, dos Vereadores Maurício de Castilho, Baltasar de Godoy e do Procurador Cristovão Mendes, mostrou-se alvoroçada e quis saber com ordem de quem queria ele passar por um caminho, cuja travessia estava severamente proibida (Atas, vol. 3°, pág. 314). Ainda obteve esse governador, no mesmo dia 22 de junho de 1628, atestado dos padres jesuítas João de Almeida e José da Costa superiores das aldeias de Escada, de Conceição (Guarulhos?) e S. Miguel, e também do Padre Salvador da Silva, superior da casa de Santo Inácio na vila de S. Paulo, declarando que ele não levava consigo nada mais que seus criados e roupas de seu serviço. Tudo isso confirmado pelos tabeliães e escrivães de Santos e de S. Paulo (Anais do Museu Paulista, vol. 1º, págs. 178 e 179). Seguiu a viagem e de Guairá a 8 de novembro de 1628 em longo relatório ao rei de Espanha mandou curiosas, desfavoráveis e deprimentes notícias sobre a vila de S. Paulo e sobre os costumes de seus habitantes, com tal vivo interesse que textualmente escreveu: suplico a vuestra magestail mire con atencion desde aquilo que hoy diciendo y oyra desta gente de S. Pablo y su jurisdicion las mayores maldades traciones y vellaquerias que hazem an echo. Tambien oyra... en la villa de San Pablo residen quatro cientos soldados, tienen sus casas en ella, su assistencia dellos mugeres y hijos es en los campos vienen en el pueblo los dias de fiestas y esos armados con escopetas, rodelas y pistolas publicamente consentiendo las justicias, porque no son mas que en la aparencia y son como los demas muertes cuchiladas y otros insolencias matando-se uaguardando en los caminos todos los dias suceden sin que haya sido castigado hombre ninguno hasta el dia de oye ni de tal se sabe... Conservo o texto em espanhol porque D. Luís, como verdadeiro fidalgo espanhol, nenhum caso fazia da pontuação ortográfica. Na Capitania de São Vicente 355 Informa mais que eram maus vassalos, não somente em sua pátria, mas nas províncias vizinhas, a que iam andando 200 e 300 léguas para cativar os índios das reduções. Eles mesmos se fazem capitães, alferes e sargentos, levantam bandeiras, tocam caixas e atacam as reduções, carregando os índios, as imagens das igrejas, sem consentimento de seus governadores, ou melhor “governadores que tudo sabem e nada remedeiam”. O que está acima é pequeno resumo das informações mandadas ao rei (Idem vol. 1º, pág. 183 e seguintes). Informa também que viajou por terra, umas 40 léguas (naturalmente desde Santos) até onde se embarcou no Tietê, (naquele tempo conhecido por Anhembi ) com infinitos trabalhos e perigos por não haver outro caminho, depois de ter estado aí um mês a fazer fabricar canoas de árvores imensas. Desceu o rio Tietê em 32 dias, e desse Tietê debuxou, com yerbas dei paiz, um grosseiro mapa, rudimentar mas interessante, mapa que foi enviado à Espanha, e que o Museu Paulista fez copiar em Sevilha, e se acha publicado na Coletânea de Mapas de Cartografia Paulista Antiga. Em seguida desceu o rio Paraná em 8 dias e visitou as reduções de Santo Inácio e Loreto, situadas no rio Paranapanema (Idem, págs. 183 e 184) e encontrou-as prósperas e florescentes. Grandes foram os desconfortos, os incômodos, os sofrimentos, os perigos que D. Luís Céspedes teve nesta viagem fluvial, e aos quais ele apenas se refere. Para, de longe, se avaliar basta ler a descrição, que fez Theotonio José Zuarte de idêntica que realizou, em 1769, por ordem de D. Luís Antônio de Sousa Mourão, cento e cinqüenta anos depois, época, em que as canoas deveriam ser melhores, os remadores e pilotos mais destros e os recursos maiores. A não ser o receio dos piratas ingleses, holandeses e franceses, que infestavam os mares sem piedade, ou ordem do Governo espanhol para conhecer verdadeiramente a situação da Vila de S. Paulo e as entradas, que faziam os seus moradores, não se compreende que um governador fizesse tal viagem (Vide Anais do Museu Paulista, vol. 1º, pág. 43 e seguintes). 356 Washington Luís Aí foi bem recebido pelos padres da Companhia de Jesus, dos quais fez grandes elogios, dizendo, em atestado, que a catequese com grandes trabalhos e infinitos perigos era magnífica, que os índios, quer sob o aspecto material quer espiritual, tinham tido grande proveito, que as igrejas que ele viu nas duas reduções, eram mais belas do que as que encontrara no Peru e no Chile (Idem pág. 188). Acrescentando que todos os índios e índias estavam com grande doutrina, assim se estendendo a palavra de Deus, aumentando a coroa de S. M. Elogiando os trabalhos dos padres da Companhia de Jesus, que aí evangelizavam, salientou os do superior deles, o padre Antônio Roiz de Montoya, cuja grande e infinita dedicação, exposta às intempéries, por caminhos extensos e fragosos, passando necessidades e até fome, correndo riscos de vida diariamente, muito exaltou. Os jesuítas também o receberam aí muito bem. Quando aí esteve o governador avisou aos padres que os portugueses de S. Paulo estavam preparando por terra uma grande invasão nas reduções jesuíticas, o que naturalmente observou quando permaneceu na Capitania de S. Vicente (Jesuítas e Bandeirantes do Guairá, Jaime Cortesão, pág. 299). Depois descendo o rio Paraná D. Luís Céspedes y Xeria visitou também as cidades espanholas Ciudad Real e Villa Rica, onde ouviu as queixas dos moradores, deixando-se por elas se influenciar. Encontrou essas povoações em decadência e em extrema miséria; nelas foi recebido com grandes manifestações de regozijo, pois que era a primeira vez que um governador por aí passava. Essas queixas consistiam em acusações contra os jesuítas, que concentrando os índios nas reduções, impediam que eles trabalhassem nas encomiendas. Essas queixas eram apoiadas pelos alcaides e moradores (Anais Museu Paulista, vol. 1º, pág. 185). Começou desde aí a exercer a sua administração integral não só sobre as cidades espanholas, como sobre as reduções jesuíticas. Para estas mandou visitadores em inspeção, Capitão Romero e Agostin Alvares, a fim de verificar a procedência das queixas. Esses inspetores já habitadores da região, inábeis ou inaptos, descontentaram sobremodo os jesuítas, que não estavam dispostos a sofrer qualquer inspeção. Os padres da Companhia de Jesus se opuseram a essa intervenção; a princípio com corteses e hábeis cartas, e, em seguida, com queixas ao rei, às autoridades espanholas, aos seus superiores hierárqui- Na Capitania de São Vicente 357 cos, com tal constância e veemência, com acusações tão fortes que levaram o Governador a processo judicial na audiência de Charcas. Foi o que mais ou menos sucedeu em S. Paulo, no tempo do Capitão-Mor Jorge Correia, que quis impedir as guerras ofensivas contra os índios, e que mandou entregar as aldeias indígenas aos jesuítas. As causas foram as mesmas e forçosamente ocasionariam choques entre tais orientações, evitadas em S. Paulo pela habilidade de D. Francisco de Sousa, que se transportou, como Governador-Geral para a Capitania de S. Vicente, e nela soube conjugar, durante algum tempo, todos esses interesses, que se contrariavam, amortecendo-os com o descobrimento de minas de metais preciosos. Só a leitura do processo judicial feito em Charcas, a vista das acusações, defesa e suas respectivas provas, pode permitir julgamento seguro sobre o conflito entre os jesuítas e D. Luís Céspedes, num tempo de escravização de índios e de catequese religiosa. Os jesuítas acusaram o governador de cumplicidade com os bandeirantes nas invasões do Guairá, baseando-se nas suspeitas que nasciam do casamento de D. Luís com D. Vitória de Sá, da família dos Sá do Rio de Janeiro, da ida com Manuel Preto, do comboio organizado por André Fernandes e que transportou D. Vitória para a companhia de seu marido no Governo do Paraguai, na venda dos índios aprisionados nas reduções para os engenhos dos Sá no Rio de Janeiro, na intromissão e nenhuma assistência dada por Céspedes y Xeria contra as invasões. Esta última circunstância já era o próprio conflito. Cabe, entretanto, dizer que esse governador do Paraguai, proibiu por bandos lidos nas ruas das povoações espanholas, a venda de armas de fogo aos índios e aos religiosos jesuítas (Anais do Museu Paulista, vol. 2º, pág. 41). O Governo Espanhol em Madri, mandou sindicar as acusações feitas pelos jesuítas a D. Luís Céspedes, por Hernandarias Saavedra, que, por muito velho e enfermo, fez as diligências por terceira pessoa. Todas as acusações foram confirmadas (Anais do Museu Paulista, vol. 2º, págs. 267 a 269 da documentação espanhola). Como quer que seja pode-se concluir que D. Luís Céspedes y Xeria, Governador do Paraguai, não foi um indivíduo ponderado e não 358 Washington Luís teve as qualidades necessárias para um governo colonial, longínquo da metrópole. Era um homem que se deixava influir pelos que os rodeavam, formava juízos precipitados e com grande precipitação os punha em execução. Basta atentar para as contradições expressas nas suas cartas ao rei. Elogiava o governador do Rio de Janeiro, e, entretanto, acusava-o de praticar os mesmos atos que os bandeirantes da Capitania de S. Paulo. Elogiava a obra dos jesuítas nas reduções e depois mandava inspecioná-las para remediar abusos. Por esses sertões do Guairá, já haviam entrado, como disse, por diversas vezes e em diversas épocas, os habitantes de S. Paulo, em guerras ofensivas, de que resultaram a cativação dos aborígines. Essas entradas, organizadas à maneira paulista, foram depois mais contínuas, e pode-se afirmar que foram muito mais numerosas que a de Nicolau Barreto. Algumas se fizeram até oficialmente. Ao fazer as reduções os jesuítas evitaram as encomiendas, que se viam privadas de trabalhadores indígenas. Estavam os padres da Companhia de Jesus entre Scilla e Caríbedes. A carta de 15 de julho de 1694, em que Domingos Jorge Velho, chamado a Pernambuco para combater a Tróia Negra, dos africanos em Palmares, dá-nos uma idéia do que seriam esses combates. Domingos Jorge Velho era um afamado bandeirante paulista, que organizaria as suas tropas e as conduziria para sertões pernambucanos contra os negros dos Palmares, mais ou menos como os bandeirantes quando foram ao Guairá, talvez de um modo melhor, mas seguindo os métodos e processos, tornados clássicos na Capitania de S. Vicente. Nessa carta, publicada por Ernesto Ennes, no seu trabalho valioso sobre as “Guerras nos Palmares” (vol. 1º, pág. 205 e seguintes) escreve ele textualmente ao rei: “Primeiramente nossas tropas com que imos à conquista do gentio brabo desse vastíssino sertão, não é de gente matriculada nos livros de V. M., nem obriga por soldo, nem por pão de munição; são umas agregações que fazemos alguns de nós entrando cada um com os servos de armas, que tem, e juntos imos ao sertão deste continente não a cativar (como alguns hipocondríacos pretendem fazer crer a V. M.) senão a adquirir os Tapuias gentio brabo e comedor de carne humana para o Na Capitania de São Vicente 359 reduzir ao conhecimento de urbana humanidade e humana sociedade, à associação racional trato, para por esse meio chegarem a ter aquela, luz de Deus e dos mistérios da fé católica, que lhes basta para sua salvação (porque em vão trabalha quem os quer fazer anjos, antes de os fazer homens) e desses assim adquiridos e reduzidos engrossamos as nossas tropas, e com eles guerreamos a obstinados e resistentes a se reduzirem; e se ao depois nos servimos deles para nossas lavouras nenhuma injustiça lhe fazemos; pois tanto é para os sustentarmos a eles e a seus filhos como a nós e a nossos filhos; e isso bem longe de cativar antes de lhes fazer irreinuneravel serviço com os ensinar, lavrar, colher e trabalhar para seu sustento, cousas que antes que os brancos lhes ensinem eles não sabem fazer”... “Desta gente estava formado o meu terço a saber 800 e tantos indios e 150 brancos”. .. “de aqueles tenho perdido ao redor de 400, e destes não ha hoje bem sessenta que tudo têm destruido a guerra, a fome e as doenças”... “Dos brancos que comigo desceram poucos morreram, porém a maior parte deles vendo o pouco que lhes rendia esta guerra e que nem para os sustentarem lhes dava se espalharam a buscar seu melhor e em seu lugar me deixaram a esperança”... tendo largado tudo e me pôr a caminho ao redor de 600 léguas desta costa de Pernambuco por o mais aspero caminho, agreste e faminto sertão do mundo”... Foi, pois, levado por contrato com o governador de Pernambuco, segundo se vê nas primeiras linhas dessa carta autógrafa, conforme o Sr. Ernesto Ennes, que Domingos Jorge foi destruir o Palmares (obra citada, págs. 74 e 75). Domingos Jorge, quando contratado comandante do terço de paulistas para a guerra da Tróia negra, já devia ser homem maduro, e talvez tivesse tomado parte nas expedições contra as reduções no Guairá; pelo menos na sua mocidade ouvia contar as façanhas bandeirantes aí realizadas. Esta carta escrita do próprio punho de Domingos Jorge Velho, como declara Ernesto Ennes, pode dar-nos uma impressão de como foram feitas as invasões e a ruína dos estabelecimentos do padre Antônio Roiz de Montoya. Os paulistas, práticos nas entradas ao sertão, useiros e vezeiros nessas expedições, se organizavam para cativação dos índios, como já tentei explicar no Capítulo XII à página 165. 360 Washington Luís Não recebiam soldo e esperavam de seus esforços e de suas despesas somente a distribuição dos índios cativados, que traziam para suas lavouras, onde naturalmente estes adquiriam noções rudimentares do trabalho. Essas bandeiras para o Guairá compunham-s de 300 a 600 homens brancos, que os jesuítas, em regra, chamavam mamelucos, mas o grosso dessas tropas era composto de índios anteriormente aprisionados, dos administrados, dos compadres, entre os quais viviam os portugueses, quase sempre inimigos encarniçados das tribos que iam ser combatidas. “Isolados, informa Domingos Jorge Velho, (Obra citada pág. 206) são medrosos contra os brancos, mas encabeçados e guiado por estes são tão valentes, afoitos e constantes nas batalhas, que nenhuma outra nação do mundo se os iguala nem excede”. “Duzentos tapuias sozinhos fugiram dos brancos, sendo acompanhados dos brancos, investirão resolutamente contra 2.000 outros tapuias e os derrotarão, como já me tem acontecido diversas vezes” “e sem eles não se pode fazer a guerra desta qualidade”. Foi Domingos Jorge Velho, testemunha, ou talvez autor de guerras contra os selvagens do Guairá, que prestou esse depoimento precioso, que não se pode desprezar no estado da conquista das terras do Brasil e da cativação dos seus aborígines, e que confirma o que já disse no Capítulo “Entradas no Sertão” (pág. 165 deste), tomando posse para a coroa de Portugal de imenso território. Contra a província do Guairá a guerra foi, entretanto, mais fácil, em vista da situação dos dois reinos de Portugal e Espanha. Anexando Portugal às Espanhas Filipe II não o assimilou. Ao contrário prometeu solenemente respeitar e fazer respeitar os foros, os usos e costumes de Portugal sobre suas conquistas e assim procurou fazer. Foi Filipe II em Espanha e Filipe I em Portugal. Reuniu ele as duas coroas em sua cabeça, mas continuou a considerar os dois reinos como distintos. Assim também procuraram fazer os seus sucessores. Na América, cuja geografia era completamente desconhecida, não prevaleceu, porém, o Tratado de Tordesilhas, celebrado entre D. João II, de Portugal e os reis de Castela, que modificou a repartição feita Na Capitania de São Vicente 361 pelos papas das conquistas marítimas entre os monarcas da península Ibérica. O tratado de Tordesilhas foi celebrado a 7 de junho de 1494, antes do descobrimento do Brasil. Esse descobrimento supôs que o Brasil fosse uma ilha que foi denominada Vera Cruz. Mais tarde verificou-se a sua extensão no Oceano Atlântico, sem se saber até onde ela ia ao norte e ao sul e foi denominada Terra de Santa Cruz. Mais tarde ainda, dada a sua enorme extensão no continente sul-americano, foi conhecida como costa do Brasil, por causa da madeira cor-de-brasa que aí se explorava, própria para tinturaria, comerciada com os índios que chegavam até a costa. O tratado de Tordesilhas determinava, como se sabe, que os descobrimentos a 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde pertenceriam a Portugal e os que estivessem a leste seriam de Espanha. Mas Cabo Verde é um arquipélago, com diversas ilhas distantes umas das outras e não se determinou de qual delas se contariam as 370 léguas, como da mesma maneira não se determinou qual o cumprimento da légua que variava de país a país, e até no mesmo país. Dessa forma, dada a ignorância em que todos estavam do centro da América do Sul, sobre a qual recaía esse tratado, não se poderia saber onde passava essa linha de marcação norte-sul, o que permitia a confusão das fronteiras entre Espanha e Portugal, nessa parte da América, ainda que esses dois países andassem de boa-fé. As expedições partidas de S. Paulo andaram pelos sertões dos índios carijós, que aí nomadeavam, seguros de que trilhavam terras das conquistas da coroa de Portugal, cujos foros, usos e costumes deveriam ser respeitados por Espanha, segundo o juramento de Filipe II ao anexar Portugal, que ele herdou, conquistou e comprou, segundo era corrente. Essa situação singular, que não nos importa agora aprofundar trouxe grandes beneficios para o Brasil, sendo o mais notável o seu alargamento geográfico, atraindo entretanto para as conquistas de Portugal os inimigos da Espanha. A ação das bandeiras paulistas chegou a seu auge, justamente entre 1580 a 1640, período durante o qual os cetros de Portugal e de Espanha estiveram reunidos nas mãos dos Espanhóis. 362 Washington Luís Essa expansão se fez para todos os lados da América do Sul, só encontrando espanhóis. As incursões paulistas, em território espanhol além da indefinida linha de Tordesilhas, não tinham, pois, e não podiam ter, aspectos internacionais, que a honra e os interesses de uma nação reclamassem ou impusessem à outra castigo imediato, público e peremptório. Eram elas, apenas, casos internos passíveis de penas correcionais ou judiciais, de repressão, que só a administração e as justiças, em nome de um mesmo rei, poderiam e deveriam remediar. Mas mesmo para esses incidentes sérios, de simples polícia ou de competência judiciária, a Metrópole, em Madri, na Espanha, estava muito longe, num tempo de notícias incertas, de comunicações precárias e demoradas, para permitir oportunas e adequadas providências, que estabelecessem a ordem nas coisas da América, as quais, no fim de contas, não punham em perigo a integridade da monarquia, que os reis espanhóis consideravam forte e supunham e queriam definitiva. Mais ou menos deturpadas eram pois as notícias que lá chegavam, e versavam principalmente sobre expedições para conquistas de índios e sobretudo para descobrimento de pedras preciosas e de ouro, pelos quais ansiava reis e povos. Talvez até supusessem que eram revoltas ou ataques de índios que os jesuítas intentavam civilizar. Os Filipes, reis de Espanha e de Portugal, muito ocupados com as guerras de França, com as guerras com a Inglaterra, que já esboçava o domínio dos mares, com as guerras com a Holanda, que se apoderava de suas colônias, só a essas guerras podiam prestar atenção. Por outro lado os reis de Espanha tinham, como se sabe, as suas principais rendas públicas nas minas de ouro, e apesar do seu zelo católico e do seu fanatismo religioso, fechavam os olhos a essas incursões que poderiam revelar novos e grandes depósitos do precioso metal. Os seus princípios cristãos ora ouviam as reclamações jesuíticas e faziam leis protegendo a liberdade dos índios; e, de vez em quando, determinavam devassas quando essa liberdade era violada, não se esquecendo os prepostos reais de tomarem para a fazenda del-rei às vezes o terço, e, habitualmente, o quinto das presas indígenas. Quase sempre, porém, as leis protetoras eram desrespeitadas, sob as mais especiosas razões e a ca- Na Capitania de São Vicente 363 tivação do índio se desenvolvia, pois que era a condição da permanência dos colonos, e, por conseqüência, da exploração das minas. Além disso na América os interesses imediatos dos colonos espanhóis eram exatamente idênticos aos dos portugueses, o que estabelecia entre eles tolerância recíproca e mesmo conivência na expulsão dos jesuítas e conseqüente cativação dos índios. Os colonos espanhóis viam, nesses assaltos, a destruição de reduções, que sistematicamente lhes subtraíam trabalhadores de que também careciam para suas lavouras. As bandeiras paulistas iam procurar trabalhadores, para o mesmo fim, e todos encontravam-se acumpliciadamente destruindo ou deixando destruir as reduções jesuíticas na província do Guairá. Algumas ordens religiosas, como os carmelitas, subsidiavam sertanistas para angariar trabalhadores para suas fazendas. (Vide documentos publicados por Azevedo Marques nos seus Apontamentos, verbo Índios, pág. 195). Os próprios jesuítas espanhóis faziam os índios trabalhar nas suas aldeias e reduções, que outros índios cristianizados iam buscar ao sertão. (Vide Pastells, Nota à pág. 191, publicando carta do Padre Mansilla). O fomento escancarado que D. Francisco de Sousa, com autorização real, deu às bandeiras para descobrimento de metais, permitiu às autoridades locais fazer vistas grossas sobre a escravização do indígena. A Capitania de S. Vicente, sem governo central forte, pertencia a donatários de vãs mercês, os quais não tinham forças próprias, nem energia ou materiais de ação. Esses donatários nulos ou desinteressados dos seus bens no Brasil, apenas davam mostras de sua autoridade nomeando capitães-mores e ouvidores, também nulos ou pobretões, mal pagos pelas ínfimas rendas da capitania. Essa prerrogativa, única que exerciam, era absorvida e usurpada pelos governadores gerais do Brasil, principalmente por D. Francisco de Sousa, e todos nomeavam, ao mesmo tempo, capitães-mores e ouvidores, e outras autoridades subalternas. A confusão de limites, entre a capitania de S. Vicente e a de Santo Amaro, permitiu também aos descendentes de Martim Afonso e de Pero Lopes, nomear, indistintamente, capitães-mores e ouvidores. 364 Washington Luís Essa abundância de capitães-mores para o mesmo lugar tirava aos respectivos detentores a responsabilidade do exercício da autoridade e deixava a capitania sem governo. Ficavam, pois, os paulistas entregues a si mesmos, à iniciativa de cada um ou à iniciativa dos mais poderosos, entre os quais, às vezes, estava um dos capitães-mores. As bandeiras paulistas avançaram, pois, para o sul e o oeste, sem peias, como já iam caminhando para o norte, devassando terras desconhecidas e nelas estabelecendo posses indiscutíveis. Grande parte desses bandeirantes cruzados com o gentio, adaptados, pois, ao clima e ao meio, encontrando na escravização lucros necessários às suas lavouras e com ela aumentando o seu poder na guerra, pois que também transformavam os vencidos em seus soldados. Com os rios correndo para o sertão, eles ao sertão deveriam entrar; e como esses rios deslizavam para o ocidente, em breve se deveriam encontrar com os jesuítas espanhóis que caminhavam para o oriente. E encontrando-se os dois sistemas de chamar o aborígine à civilização, na colisão de seus interesses opostos, não era difícil vaticinar-lhes a luta e às bandeiras a vitória sobre adversários, que dispunham principalmente de armas espirituais. Os espanhóis, quando não prestassem mão forte às entradas paulistas, guardariam uma neutralidade que era um apoio e um estímulo, e que não lhes irritava o amor-próprio, porque Portugal e Espanha, sob uma só coroa, pertenciam a um só rei. E, enquanto essa luta durasse, o futuro do Brasil vacilaria, como disse Oliveira Martins, entre uma nação à européia e um governo teocrático de índios cristianizados. Não é difícil também prever a quem caberia a vitória. Partiam de S. Paulo as forças paulistas, organizadas em bandeiras autônomas, independentes umas das outras, agindo os chefes por conta própria, para o fim que tinham em vista. Essas bandeiras eram portuguesas. Organizavam-se em S. Paulo, por causa da sua situação geográfica, mas nelas tomavam também parte indivíduos de outras nações. Na Capitania de São Vicente 365 Em alguns casos se reuniam diversas bandeiras, sob comando de um só chefe, sentindo a necessidade de se fortalecer para o interesse comum. A necessidade ia-lhes, por vezes, dar certa ordem e unidade de comando; mas eram os mesmos bandeirantes armados de espadas, mosquetes, arcabuzes, escopetas, vestidos de roupas acolchoadas de algodão, com rodelas de couro como escudos para os proteger das flechas. Nessa campanha não tiveram, em conseqüência, um chefe supremo. No princípio Manuel Preto seria um dos principais. Depois André Fernandes, de Parnaíba, se destacou entre eles. Sou levado a crer que, embora cada bandeira trabalhasse por conta própria, a de Antônio Raposo Tavares foi a maior, ou melhor, teve sob seu comando outras bandeiras, que sob o nome de terços, hierarquicamente obedeciam a esse capitão-mor, que se distinguia pela sua iniciativa e inteligência, e talvez por sua instrução relativamente superior ao meio atrasado e inculto em que vivia. A sua assinatura, escrita em todos os papéis, que consultei, está feita sempre com a mesma decisão e igualdade, o que se pode ver nas que em seguida decalquei nos livros da Câmara. A razão dessa minha afirmação está também em que, nos documentos extratados pelo padre Pablo Pastells, o nome de Antônio Raposo Tavares é mencionado em primeiro lugar, o que indica um principal (Nota a pág. 458, vol. 1º do Pe. Pastells, Hist. da Comp. de Jesus). Além disso a Câmara de S. Paulo, na vereança de 25 de setembro de 1627 (Atas, vol. 3º, págs. 281 e 282) manda prender a Antônio Raposo Tavares e a Paulo do Amaral como os principais amotinadores do povo para levantar capitão de entradas ao sertão. Vê-se também no arrolamento e leilão dos bens de Brás Gonçalves, morto no sertão dos Carijós chamados Arachans, que o Capitão Diogo Coitinho de Melo mandou fazer, a 10 de outubro de 1636, nele declarou expressamente, que assim procedia, por se achar ausente do arraial o capitão-mor Antônio Raposo Tavares em um assalto (Inv. e Test., vol. 21, pág. 45). A cédula real, expedida em 16 de setembro de 1539, a ele se refere como o chefe da destruição. 366 Washington Luís Antônio Raposo Tavares era reinol e na vila de S. Paulo ocupou cargos da governança; na Câmara foi juiz em 1633 e foi até ouvidor da capitania. Era filho de Fernão Vieira Tavares, que foi provedor da fazenda real em S. Vicente e que aí exercera o cargo de capitão-mor. A sua ação se fez sentir muito principalmente na destruição das reduções do Guairá e nas que ficavam ao sul do Iguaçu. 374 Washington Luís Nasceu em Beja, no Além-Tejo, foi casado em primeiras núpcias em S. Paulo com Beatriz Bicudo, filha de Manuel Pires, da família dos Pires, uma das facções que se tornaram célebres na luta com os Camargos. Enviuvou em 1632 (Invent. e Test. vol. 25, pág. 115). As suas façanhas ocuparam a atenção das autoridades, como 4 veremos adiante . *** Com auxílio das Atas da Câmara de S. Paulo, que são em regra silenciosas sobre os lugares dessas entradas, com os Testamentos e Inventários do Arquivo do Estado de S. Paulo, que também calam quase sempre os lugares onde no sertão morreram os bandeirantes e com extratos feitos pelo padre Pastells no Arquivo de Sevilha na Espanha, pode-se, talvez, reconstituir algumas bandeiras que foram ao Guairá e que lá destruíram as reduções jesuíticas. A bibliografia e a documentação espanholas, de origem jesuítica, é, entretanto, farta e abundante embora apaixonada. Vide documentação mandada copiar por Taunay e publicada nos Anais do Museu Paulista (vols. 1º, 2º e 5º) e nos comentários e notas sobre a biblioteca de Pedro de Angelis por Jaime Cortesão. *** 4 Já sobre ele fiz um estudo que o Instituto Histórico de S. Paulo acolheu na sua Revista, estudo confirmado na obra de Pastells. Em 1926 viajei o rio Amazonas e lá parei em Gurupá, onde Tavares, destroçado em 1651, chegou com restos de uma bandeira, depois de ter percorrido a Sul-América, do Sul ao Norte. Nesse ano de 1926, em Curupa, havia um vilarejo em ruínas, com poucos habitantes e muita maleita; e aí, depois de assumir a Presidência da República, mandei restaurar o antigo forte, o que foi executado pelo Ministério da Guerra. Em 1936, em Beja, no Além-Tejo de Portugal, onde Tavares nasceu em 1598, procurei os registros de nascimento, que, depois da República, foram recolhidos às repartições civis; mas não tinham ainda sido catalogados. Deixei pedidos instantes para que fossem eles procurados. Na Capitania de São Vicente 375 Em fins de 1628 e princípios de 1629, no sertão do Ibiãgira ou Ibiaguira, nas cabeceiras do Ribeira, estava acampada a bandeira de 5 Mateus Luís Grou (Inv. e Test., vol. 7º, pág. 431). No mapa dos jesuítas, feito em 1646, nº I-A da coleção Rio Branco, vê-se localizado o monte Ibiagi, próximo ao rio Tibagi, em altura eqüidistante das reduções Encarnación e S. Francisco Xavier. O monte naturalmente estendeu seu nome ao sertão por intermédio do Tibagi e às cabeceiras da Ribeira. Não tenho elementos seguros para descrever todos os assaltos indicando os nomes dos chefes e as peripécias que neles ocorreram. Todos se fariam da mesma maneira e a descrição integral talvez se tornasse mais monótona que a parcial que ora se faz. Mas as bandeiras destruíram quase todas as reduções. Alguma coisa pode-se, entretanto, dizer afilando-se os cronistas jesuítas espanhóis, com os documentos locais e ainda assim de modo desalinhavado. Vou também resumir o que diz Jarque no seu livro Roiz Montoya em Indias, valendo-me além disso do que escreveu o Barão do Rio Branco, e apoiado na documentação espanhola publicada pelos Anais do Museu Paulista, em Charlevoiz e em Del Techo, apesar dos exageros desses jesuítas. Antes de setembro de 1629, uma bandeira paulista, sob o comando de Antonio Raposo Tavares, se subdividiu em diversos terços sob a direção dos capitães Diogo Coutinho, Manuel Mourato, Frederico de Melo e Simão Álvares. O primeiro dirigiu-se para a redução de Santo Antonio, que foi a primeira atacada. Simão Álvares mandou um recado ao Pe. Pedro Mola pedindo que lhe entregasse o cacique Tataurá que, com seus vassalos, tinha fugido de sua casa e serviço. À recusa natural do Pe. Mola, no dia seguinte ao amanhecer, esse capitão deu ordens para o ataque da redução, acometendo todos como leões desabalados, ferindo, matando, aprisionando 5 Da qual faziam parte Luís Anes Grou, Pero Domingues, Antônio Dias Grou, André Botelho, Antônio de Oliveira, Antônio da Silva, Jácome Nunes, capitão Baltasar Gonçalves Malio, Diogo Gomes, Ascenço Luís Grou, Antônio do Prado, Manuel de Oliveira, Miguel Garcia Carrasco, Antônio Fernandes, João de Prado, Manuel de Soveral, Domingos do Prado, João de Oliveira, Bernardo Fernandes, João Lopes, Rui Comes Martins, Jerônimo Luís, Isaque Dias Grou, Sebastião Fernandes, o velho (Inv. e Test. , vol. 7º, pág. 431). 376 Washington Luís os catecúmenos e voltaram triunfantes ao seu arraial com uns 2.000 prisioneiros, segundo o dizer do narrador jesuíta. O Pe. Mola recolheu-se para Encarnación onde estava o Pe. Silvério Pastor. A nova do ataque e do destroço de Santo Antônio logo chegou a S. Miguel, onde os Padres Cristobal de Mendonça e Justo Mansilla procuravam resolver o que lhes convinha fazer, quando veio-lhes a notícia, que um outro corpo de paulistas, sob as ordens do capitão Antônio Bicudo se dirigia para S. Miguel. Sem mais consulta, foi dado o grito de “salve-se quem puder”, e, induziram os índios a fugir e a se refugiar nas matas. Bicudo, com seu esquadrão volante, chegou, pôs cerco à redução e levou-a de arrancada, achando-a porém deserta quando isso viu, “lançava pela boca espuma de raiva”, diz o cronista jesuíta, de quem são tiradas estas notícias. Enviou quadrilhas de soldados a prender os que encontrassem, mas logo se retirou para Jesus Maria. Um terceiro corpo, sob as ordens dos capitães Manuel Mourato Coelho e Frederico de Melo, cercou a redução Jesus Maria. O padre que aí estava, Simão Mazzeti, ao ver os paulistas se aproximarem revestiu-se com sobrepeliz e estola, e, com uma cruz nas mãos, saiu-lhes ao encontro a ver se assim salvaria a redução; mas os paulistas levaram tudo a sangue e fogo, matando, ferindo, domando e cativando. “Vimos a lançá-los de toda esta terra que é vossa e não do rei de Castella”, diziam os capitães. Aprisionada a maior parte dos índios, recolheram-se os bandeirantes aos seus arraiais e daí seguiram a S. Paulo, onde chegaram carregados de cativos. Dois jesuítas, devotadamente, acompanharam os neófitos cativados nessa peregrinação longa, dificultosa, martirizante cheia de perigos e de sacrifícios. Foram eles Simão Mazzeti e Justo Mansilla Van Surk, o primeiro italiano e o segundo flamengo, que escreveram narrações a respeito, em língua espanhola, e não obstante estrangeiros nessa língua, sente-se vivamente, na sua eloqüência desataviada, a dor profunda que os acabrunhava vendo desmanchada a obra que realizavam no Guairá, com a cativação dos índios e o arrasamento das reduções, que antes prosperavam. Os bandeirantes não deixaram pedra sobre pedra, tudo desmantelaram, incendiararn casas e igrejas, rasgaram e quebraram imagens de santos, feriram e mataram muitos índios e levaram cativos a maior parte deles. Vê-se o desespero que esmagava a alma dos padres nas pala- Na Capitania de São Vicente 377 vras lancinantes com que para a catástrofe pediam nas cartas remédio aos seus superiores, ao papa, ao rei, a Deus. Foram até S. Paulo, a S. Vicente, ao Rio de Janeiro, onde foram amparados pelo padre Antônio de Mattos; foram até Salvador, na Bahia. Em todas as partes só encontraram ouvidos moucos, donde concluíram que todos eram cúmplices da 6 cativação ou tinham receio de se envolver em tal questão . 6 Vide essas cartas na Documentação espanhola, publicada nos Anais do Museu Paulista, vol. 2º, pág. 247 e seguintes; vide também a lista dos bandeirantes que tomaram parte nestes assaltos (Idem págs. 245 e 246), que vai em seguida. Relación de los portugueses que en companhia de Antonio Raposo Tavares deshicieron tres reducciones de indios canos que doctrinaban en el Paraguay los religiosos de la Compania de Jesus. (17 de septiembre de 1629. Archivo General de Indias – Estante 74 – Cajón 3 – Legajo 26 Jhs. Memoria de los Nombres de algunos portugueses de la Compania de Antonio Raposo Tavares, que deshizieron tres Reducciones de yndios carios que estauan doctrinando los Padres de la Companïa de Jesus del Paraguay como se refiere en la Relacion que va con esta. Antonio Raposo Tavares, y su hermano Pascual y su suegro Manuel Piris, y dos hijos suyos. Saluador piris, y dos, o tres hijos suyos. Antonio Pedroso. Manuel Morato. Simeon aluares con 4 hijos suyos. Fedrique de Melo su yerno. Manuel de Melo Cotiño. Pedro de Morais. Baltasar Morais con sus dos yernos. Diogo Rodriguez Salamanca y Francisco Lemos. Pedro Cotiño. Simon Jorge, y sus dos hijos. Onofre Jorge, y su hijo I. Antonio Bicudo el viejo. Antonio Bicudo de Mendoca. Antonio Bicudo otro. Domingo Bicudo. Sebastian Bicudo. Francisco Prouença con dos hijos. Matheos Nieto com dos hijos. Gaspar da Costa. 378 Washington Luís Na Bahia, entretanto, o Governador-Geral, Diogo Luís de Oliveira, mandou o ouvidor Francisco da Costa Barros abrir uma rigoAsenso Ribero. Manuel Macedo. Andres Furtado. Fulano Pechoto. Saluador de Lima. Consalo Piris. Antonio Lopez. Antonio Sylua Ração. – N. Sylua Sirgero. El hijo de Amador Bueno oydor de San Pablo llamado Ameno Bueno y su yerno. Francisco Roldao, y sus hermanos. Hieronimo, y Francisco Bueno. Castilla de Mota, y su hermano. Simon de Mota. Sebastian Fretes. Antonio Luys gro, y su hijo, y su herno. Juan Rodrigues beserano. Gyraldo Correa, y su dos hijos, y su herno. Esteuan Sanchez. Bernardo de Sosa, y au cuñado. Asenso de Quadros. Antonio Raposo el viejo com sus hijos. Juan Esteuan, y Antonio Pedro Madera con su hijo. Gaspar Vas, y su cuñado. Manuel Aluares Pimentel. son sesenta y nuebe, de los demas no sabemos aun los nombres. Castilla de Mota, y su hermano. Simon de Mota. Sebastian Fretes. Antonio Luys gro, y su hijo, y su herno. Juan Rodrigues beserano. Gyraldo Correa, y sus dos hijos, y su herno. Esteuan Sanchez. Bernardo de Sosa, y au cuñado. Asenso de Quadros. Antonio Raposo el viejo coa sus hijos. Juan Esteuan, y Antonio Na Capitania de São Vicente 379 rosa devassa para prisão dos delinqüentes e restituição dos índios cativados. Voltaram os padres Simão Mazzetti e Justo Mansilla e já estavam de novo em S. Paulo, a 30 de julho de 1630. Aí, o povo reuniu-se e impediu que eles entrassem no Mosteiro da Companhia de Jesus. Eles se acolheram à casa de Manoel Fernandes Sardinha, que tal asilo ofereceu, e só daí saíram em virtude de petição feita pelo padre Francisco Ferreira, Reitor do Colégio de S. Paulo. A presença dos dois padres causou grande alvoroço. O alvoroço e as violências foram ocasionadas por correr na terra que eles traziam uma provisão para processar os moradores de S. Paulo (Atas, vol. IV, págs. 62 e 63). Nas aldeias, na vila e seu termo, os índios fremiam e propagara-se que todo o gentio se ia levantar; os moradores todos se colocaram em armas e a Câmara ordenou que os capitães de ordenanças passassem a residir na vila com suas companhias. O ouvidor Francisco da Costa Barros nada fez; pelo menos a respeito nada consta nos arquivos locais, e os padres Mazzetti e Mansilla, vendo que se preparava nova invasão ao Guairá, trataram de se retirar. Nesse ínterim uma bandeira avulsa, desgarrada atacou ao amanhecer a redução de S. Paulo a 22 de junho de 1630 (Corpus Christi). Receando os padres a mesma sorte para Encarnación, que ficava a poucas jornadas, fizeram dela retirar os neófitos para S. Francisco Xavier. Desses regurgitava S. Francisco Xavier com os que aí já estavam e com os que fugiram de Encarnación, a qual por sua vez já contava os restos não aprisionados de S. Miguel, Jesus Maria, e Santo Antônio. Em 1631 os padres tiveram aviso que os paulistas de novo se aproximavam. Tentaram defender-se fazendo uma paliçada à roda da redução. Mas à “uma hora da tarde com muito estrondo e bárbara algazarra os bandeirantes invadiram o pátio da redução”. Enquanto aprisionavam os indígenas, um deles, “em hábito de beato, com uma ropa talar de lienzo acolchada de algodon, Pedro Madera con su hijo. Gaspar vas, y su cuñado. Manuel aluares Pimentel. son sesenta y nuebe, de los demas no sabemos aun los nombrs. 380 Washington Luís con su escopeta al hombro, su espada ceñida y um rosario de ermitano en la mano, se puso a hablar com uno de los padres de cosas espirituales y pontos delicados de oracion. Hacia como que resaba e iba pasando a gran prisa las cuentas”. A este gesto os padres atribuíram a contagem dos cativos para depois fazer as partilhas. Pouca presa, porém, fizeram aí; porque por diligência dos padres os índios tinham-se acolhido ao mato; mas apesar disso muitos índios passaram, voluntariamente, para o inimigo, e entre outros o cacique Pero Dobuju e o capitão Manuel Abijurá. Passando por Vila Rica o Provincial Francisco Vasques Truxillo aí soube do cerco que sofria S. Francisco Xavier. O tenente dessa vila se ofereceu para ir ajudar a defender a redução com gente armada. Aceito o oferecimento, caminhou o tenente com sua gente e lá chegando, em vez de atacar os paulistas, começou também a cativar os índios. Esses fatos abateram o ânimo dos padres, que perderam a esperança de remédio e resolveram a retirada para o Paranapanema e para o Ivaí. No Peabiju, que era o caminho de S. Tomé, em um ponto mais seguro, o Padre Roiz tratou de reunir os índios escapos das reduções atacadas, quando se deu a invasão e distribuição de S. Francisco Xavier. Resolveram também retirar a gente de Arcângelos para o rio Pequiri, no povoado da Virgem de Copacabana, que na sua margem estava fundada; agregaram a essa gente, que passava de 10.000 almas, a gente de S. Tomé e de Jesus Maria, para ser mudada. Os índios, porém, se recusavam a abandonar as suas terras e relutavam em acompanhar os padres; mas dobrando-se os avisos de que o inimigo vitorioso e insolente se aproximava, resolveram, um pouco tarde, a retirada. Os paulistas chegaram e acometeram a redução de Arcângelo com extraordinário furor. Acudiram os Padres Cristobal de Mendonza, Luís Arnot, Inácio Martinez e Nicolau Henart, mas nada conseguiram. De Arcângelo os paulistas se digiram para S. Pedro, onde só estavam os p. p. Mazzetti e Diogo Ferrer e dois moços que os seguiram, tendo a redução sido evacuada e os índios fugido para as matas. Na Capitania de São Vicente 381 De S. Pedro seguiram para Conceição de Gualachos onde encontraram maior resistência. Dirigia a redução o Padre Salazar. Os Gualachos sustentaram renhido combate, mas, inferiores em número e em armas, afinal se retiraram. Os padres procuraram juntar a gente que fugira e se espalhara pelas matas e pelas serranias. O Padre Luis Arnot recolheu os neófitos, que encontrou no Peabiju, e dirigiu a retirada para o Pequiri, a cuja ermida chegou ao cabo de 60 dias, tendo passado por Vila Rica. Em Loreto e Santo Inácio se tinham acolhido as relíquias das outras reduções mais próximas, destruídas ou evacuadas. Sebastião Preto, em 1632, morre de uma flechada no sertão dos Apucus, tendo, entre outros companheiros, Francisco de Alvarenga, Aleixo Leme, Ascenso de Quadros, Antônio Pedroso, Domingos Cordeiro, Rafael de Oliveira, Pedro Vaz de Barros, Paulo da Silva, Francisco Alvares (Inv. e Test., vol. 11, págs. 73 e 74). Parece que esta entrada não teve bom êxito para os bandeirantes. Em 16 de setembro de 1632 a Câmara, tendo conhecimento que Fernão Dias, capitão dos índios, ia ao sertão com alguns homens e que Francisco Roiz da Guerra andava fazendo gente para também ir lá, mandou prendê-los e também a Paulo do Amaral, a Antônio Peres, a Alonso Peres, e a Jorge Rodrigues de Niza por serem as principais pessoas dessas idas (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 3º, pág. 52). É preciso receber com certa reserva essas prisões, essas proibições de idas ao sertão, ordenadas pela Câmara para se acobertar de penas criminais; porque, em regra, os oficiais que as determinavam, já tinham ido ou iriam ao sertão com idêntico fim. Em fins de junho de 1632 os paulistas, concentrando as suas forças, resolveram terminar a sua obra no Guairá indo bater àquela parte, para onde os p. p. se tinham retirado. Seguiram pelo Peabiju abaixo; percorreram o Ivaí e, no salto que então chamavam Arairi, encontraram esse ponto defendido pelo cacique Tinguigui e por sua gente, os quais, tendo por muitas vezes feito frente aos espanhóis de Vila Rica, entenderam de embargar o passo aos paulistas; mas estes por aí passaram matando os que opuseram resistência e, se aproximando do Ivaí, em cujas margens saltaram, destruíram os povoados, que serviam os espanhóis de Vila Rica. 382 Washington Luís Afinal os paulistas, em grande número, atacaram a Vila Rica do Espírito Santo, habitada por espanhóis, que não pôde se defender. Foi por eles posto apertado sítio à vila, na qual se achava casualmente em visita episcopal o Bispo do Paraguai D. Frei Cristobal de Aresti, que chegara a 25 de agosto de 1632. Animou os Villenos (que assim se chamavam os vizinhos desta vila) a suportar com constância os trabalhos do rigoroso sítio; mas vendo que era impossível a defesa contra tão feroz inimigo, fez com que os moradores em número de uns 500 espanhóis, com 4.000 índios desamparassem o lugar, e descendo o Ivaí, ou indo por terra, atravessassem o Paraná e embarcando-se no Igatini (Iguatemi), os transplantou por terra para a província do Mbaracaju, onde se fundou em outubro de 1632 uma nova Vila Rica no assento do Tapuitá, nas margens do Jeiuí, que desemboca no Paraguai. Evacuada a cidade, os vencedores, depois de a arrasar, a largaram. Em seguida ameaçavam Loreto e S. Inécio. Aí os padres procuraram fazer a defesa e trataram de fortificar-se; mas lembrando-se de que às armas de fogo dos invasores só podiam opor os arcos e flechas dos índios, pareceu-lhes escusada a diligência. Resolveram abandonar o Guairá. Dirigia tudo o padre Antônio Roiz de Montoya, que viu, num momento, esboroar-se a sua obra de tantos anos. Despachou um correio ao padre Espinosa ordenando-lhe que descesse com toda a gente, que estava no Pequiri, para o Salto do Paraná, onde se encontrariam com a de Loreto e a de Santo Inácio. Levaram as alfaias, os ornamentos, as imagens das igrejas, os ossos dos padres, que aí tinham morrido e que aí tinham sido enterrados. Saíram enfim como quem não tinha que voltar, nem em tal pensava. A verdade é que Antônio Roiz de Montoya, superior dos jesuítas na Província do Guairá, estando nas margens do rio Paraná, a 28 de abril de 1631, escreveu que das doze reduções fundadas na sua província, já haviam sido destruídas seis pelos mamelucos; primeiro as quatro de S. Miguel, San Antonio, Jesus Maria e Encarnación, e, em março de 1631, mais as de S. Francisco Xavier e de S. José, e ameaçavam todas as outras sem deixar uma só. Quem mais se assinalou nessa destruição, disse ele, foi o português Frederico de Melo; mas mencionou também Antônio Raposo Tavares, Antônio Pedroso e Francisco Rendon, desde 1628. Na Capitania de São Vicente 383 Pedro Taques (R. I. H. G. B., vol. 33, págs. 60-61, 2º parte) conta que de 1630 a 1634, muitos espanhóis do Guairá se passaram para S. Paulo e cita os nomes de Bartolomeu de Torales e sua irmã D. Maria, Gabriel Ponce de Leon, sua mulher D. Violante, Barnabé de Contreras y Leon, sua mulher e sua filha, e outros que contraíram casamento com paulistas. Em fins de 1631 ou princípios de 1632, as bandeiras tinham ocupado todo o Guairá; 12 reduções tinham sido destruídas ou abandonadas e duas cidades espanholas tinham sido evacuadas. Esta descrição está apenas alinhavada; mas concorre como subsídio local, que juntos aos dos espanhóis e jesuíticos, pode se fazer o histórico da campanha do Guairá, que deu ao Brasil o hoje Estado do Paraná, e permitiu o alargamento do território nacional para o sul. De alguns desses bandeirantes consegui decalcar, nos livros da Câmara de S. Paulo diversos nomes que foram aqui reproduzidos, como se vê nas páginas anteriores. Vendo destruída a maior parte, quase a totalidade, das reduções indígenas, contrariados pelos espanhóis residentes na região, desamparados pelas autoridades locais, não tendo sido ouvidas as suas queixas e reclamações, e à vista dos assaltos das bandeiras paulistas, que, sem dúvida, iriam continuar, o padre Antônio Roiz de Montoya e seus companheiros de catequese abandonaram o Guairá, dirigindo-se o superior deles ao rei e enviando-se o padre Francisco Dias Taño ao Papa para esclarecer a situação. As medidas indispensáveis e urgentes que Montoya julgou necessárias para pôr cobro a essa destruição foram: 1º que o Conselho Real de Portugal mande pôr em liberdade os índios do Paraguai, que estavam no Brasil. 2º que S. M. el-rey compre a vila de S. Paulo aos herdeiros de Lopo de Sousa para lá pôr governadores de sua confiança que, com presídio de soldados, sejam obedecidos. 3º que mude a residência do Governador de Paraguai para Vila Rica. 384 Washington Luís 4º que S. M. el-rey, comprando ou não a vila de S. Paulo, mande arrasá-la pelos muitos delitos que tem cometido (Pastells, vol. 1º, nota, pág. 473). “O Governador de Buenos Aires D. Francisco de Céspedes, em “vista de se perder a santa obra dos jesuítas, como ele dizia, lembrava ao rei, em 30 de março de 1631, que o menor inconveniente seria despovoar-se S. Paulo” (Pastells, vol. 1º, pág. 465). Antônio Roiz Montoya e os mais padres jesuítas efetuaram a mudança das duas reduções de Loreto e de Santo Inácio, que ainda restaram, com as relíquias das outras para o sul do rio Iguaçu, para o rio Uruguai, onde antes já tinham fundado algumas e iam fundar outras repetindo algumas vezes os nomes das reduções destruídas. Começou a retirada dos Padres da Companhia de Jesus, e dos índios, que lhes restavam fiéis, para o sul do rio Iguaçu. Apoiando-se nas informações jesuíticas e acolhendo as fábulas correntes entre os habitantes do Guairá, é o padre Pero Lozano, da Companhia de Jesus, no seu livro Conquista do Rio de la Plata, publicado sob a direção de Andres Lamas, no volume 1º, pág. 60 e seguintes, quem nos vai dar a impressão dessa trágica retirada, descrevendo sucintamente o drama que ela representou. Resolveram descer o Paranapanema até o Paraná, e por este abaixo a procurar o sul. Este rio já se achava povoado de lendas terríveis, com sucessos pavorosos, que a imaginação criava. “Fábula foi, diz Lozano, que Alfeo, rio da Estólia, se introduzisse pelas entranhas da terra em busca da celebrada fonte Aretusa; porém o que lá foi fantasia, no rio Paraná foi realidade.” Fazendo aí a natureza coisa monstruosa, encobre em parte o rio Paraná com o seu poderio imenso, e o faz despencar, depois deste parêntese, com tanta violência, que a corrente em fúria, numa grande extensão não parece água, mas enorme superfície de prata lavrada borbulhante, coberta de espuma densíssima, deslumbrante pelo sol, nociva aos olhos que ficam por momentos sem vista. Os vapores, que levanta esse turbilhão, formam nos ares espessa nuvem que se espalha por muitas léguas, e o estrondo do precipício se percebe a grande distância; e nesse espaço não se encontra viven- Na Capitania de São Vicente 385 te algum, nem aí as aves sobrevoam. Passando as léguas penhascosas e chegando a lugar mais plano, começa o maior perigo; pois quando parece correr mais calmo, como que cansado do formidável esforço, o rio encrespa as suas águas em tumultuosos rodamoinhos, em ondas altíssimas, que soçobram as embarcações que aí se arriscam. Ainda há nesse rio peixes descomunais, tais como tubarões tão agigantados que para os transportar são precisos dois homens, quando conseguem matá-los. “O padre Montoya avistou um enormíssimo, do tamanho de um boi, nadando com a maior parte do corpo fora dágua, semelhando a um batel!” “Maior ainda era um que atacou um índio incauto, tragou-o e depois lançou o cadáver inteiro na praia (!) como atesta o padre Nicolau Mastrilla em uma carta ao padre Mestre Geral Mucio Viteleschi”. Por muitas léguas depois de este monstruoso salto (Salto das Sete Quedas), o rio vai-se estreitando de tal maneira que se torna inavegável. Se os ousados ou imprudentes não o abandonam em tempo, são irremessivelmente arrebatados por seu ímpeto, como aconteceu a 40 espanhóis, que, depois de ter aprisionado muitos índios, na província do Guairá, por ele desceram em 30 balsas carregadas de despojos, e, foram arrebatados pela formidável corrente, sem que jamais aparecessem nem espanhóis, nem balsas, nem coisa alguma das que transportavam. Apesar disso o Padre Antônio Roiz de Montoya tentou navegá-lo. Mandou arrojar 30 canoas vazias, em que tinham vindo desde o Paranapanema até o Salto do Paraná, para experimentar se poderiam atravessá-lo; mas a violência incrível das águas, a profundidade imensa, e o arrebatado movimento, que levantavam os escolhos, as fizeram em migalhas, sem se salvar uma só. O extenso salto do Paraná é deveras temeroso e impossibilita a navegação. Diante dessas dificuldades insuperáveis, Antônio Roiz de Montoya resolveu levar os seus catecúmenos por terra, por meio de florestas sem caminhos, povoadas de feras e de cobras, encharcadas e maleitosas e chegou à Cidade Real, onde não teve acolhimento favorável. Atravessou o Iguaçu e começou a fundar novas reduções. *** 386 Washington Luís Em S. Paulo também a luta contra os jesuítas, que vinha desde os princípios, e que teve a sua primeira mostra no governo do capitão-mor Jorge Correia, continuou latente, e explodiu, porém, em violências, no ano de 1633. Os oficiais da Câmara, em diversas vereanças, fazem constar que “os reverendos padres induziam índios das aldeias”, “queriam usurpar as terras de Cotia e de Carapicuíba” e resolveram, a 20 de agosto desse ano “botar fora da aldeia de Barueri os religiosos da Companhia, que lá se achavam e fechar a igreja”, o que realizaram a 21 desse mês. Os oficiais da Câmara nesse ano, Pero Leme, o moço, juiz, os vereadores Lucas Fernandes Pinto, Paulo do Amaral, e o procurador Sebastião Ramos de Medeiros, à frente de populares, foram os autores desse ato, para o qual concorreu decisivamente o ouvidor Antônio Raposo Tavares, nomeado pelo Conde de Monsanto, e que, a 26 de fevereiro de 1633, deixara o cargo de juiz ordinário, por incompatibilidade entre os dois ofícios. Foi, pois, um ato oficial apoiado nos populares (vide Atas, vol. IV, págs. 170 a 187). Azevedo Marques, na sua Cronologia, relata esse fato, acrescentando que os jesuítas não se amedrontaram, lançaram contra os assaltantes a “excomunhão”. Mas os autores do atentado zombaram da pena eclesiástica a ponto de lançarem mãos violentas ao padre Antônio de Marins, que lhes foi intimar a sentença, arrancando o papel em que ela estava e rasgando-o. Os padres da Companhia de Jesus, porém, recorreram para o Governador Geral do Brasil, Diogo Luís de Oliveira, que por provisão de 9 de dezembro de 1633, em nome do rei de Espanha, os manteve na posse e administração da aldeia de Barueri, privou os oficiais dos cargos que na Câmara exerciam, mandando que eles aparecessem dentro de sete dias perante o Ouvidor Geral do Estado para serem processados e sujeitos a todas penas cíveis e criminais, que merecessem. Essa provisão só foi registrada em S. Paulo a 23 de maio de 1634 (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 485 e seguintes). Nada se encontra sobre o processo dos oficiais da Câmara de S. Paulo; mas foi irrisória a privação de cargos anuais que eles já não exerciam, ao tempo em que foram condenados. Na Capitania de São Vicente 387 Sob o fundamento de que era Ouvidor, por provimento do Conde de Monsanto, donatário da capitania, e que por essa razão enquanto durasse o seu triênio não poderia ser sindicado, nem processado, Antônio Raposo Tavares não se conformou com a sentença, dela recorreu para o ouvidor, com alçada nas capitanias do sul – Francisco da Costa Barros, – que lhe deu razão e mandou que servisse o seu ofício de ouvidor até o fim do triênio (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 507 e 509) § 2º ITATINES, TAQUARI, PARAGUAI Enquanto fazia intérmina e dolorosa travessia por terra para o sul do Iguaçu, recebeu o Pe. Roiz de Montaya convite do tenente de Santiago de Xerez para ir doutrinar os infiéis, que andavam nas terras vizinhas. Santiago de Xerez fora fundada pelos anos de 1580, pelo Capitão Ruy Dias de Gusman em altura de 19° sul, em lombada próxima às margens do rio Mbotetei; foi constituída cabeça da província dos nuarás e a que chamaram Nueva Viscaya, em honra da pátria de João de Garay. O lugar era mau pela insalubridade do clima. Porém reconhecendo a necessidade aí de um posto espanhol o governador D. Fernando Larote havia despachado a Ruy Dias de Gusman, capitão hábil no manejo das armas e da pena (foi o autor da História Argentina) em 1593, que antes a havia fundado, para mudá-la para outro lugar, à margem do Mondego; mas as mesmas causas, que despovoaram a primeira, fizeram ainda mudar a segunda Xerez, por 1625, para uma chapada da serra do Amambaí, chamada então Ilanos dei Jaguary, próximo às nascenças do rio Pardo. Foi dessa cidade, que pouco lustre teve, que o Tenente D. Diogo do Rego mandou convidar o Pe. Antônio Roiz de Montoya, para lá continuar a sua missão evangelizadora. Não podendo ir, enviou os p.p. Justo Mansilla e Diogo Rançonnier que fizeram uma exploração na vasta província dos Itatines, que jazia entre os rios Paraná e Paraguai, confinando ao norte com Xerez ou mais proximamente com o rio Mbotetei e ao sul com Maracaju, ou como diz Chalevoix, desde os 19° graus de latitude sul até os 22º. 388 Washington Luís Antes que os retirantes tivessem atravessado o varadouro do salto do Paraná, voltaram os dois padres muito contentes com o acolhimento dos espanhóis de Xerez e das boas disposições dos Itatines. Com estas boas novas foram designados para esta missão, esses mesmos dois padres e mais dois outros, Inácio Martines e Nicolau Henart (este antes fora pagem de Henrique IV, rei de França) que logo partiram com os ornamentos necessários e as sagradas alfaias para o sacrifício da missa e administração dos sacramentos. Foram juntos até as montanhas do Taraguipita onde se espalharam a pregar o evangelho e a dar princípio a novas reduções: S. José, Anjos, S. Paulo e S. Pedro, esta última junto ao Paraguai e Nossa Srª da Fé, a 16 léguas mais ou menos por terra adentro, em 20º. Tendo, sem dúvida, notícia das novas missões fundadas nos Itatines, as bandeiras dirigiram para lá as suas armas vitoriosas e em fins de novembro de 1632, destruíram as reduções recém-criadas, tomaram e destruíram a cidade Santiago de Xerez cujo Tenente, Dom Diogo do Rego e outros moradores principais estavam de conivência com eles. Nos arquivos locais só se encontram dois documentos que podem ter relação com essa região. Em julho de 1637 Jerônimo Bueno e sua bandeira estavam acampados nas margens do rio Taquari, afluente do Paraguai. No seu arraial morrem entre outros, Manuel Preto, João Preto, seus sobrinhos, e Gaspar Fernandes; os respectivos bens são arrematados em leilão, conforme o uso, por outros bandeirantes, que apresentam como fiadores outros companheiros, 7 que com eles lá estavam (Invent. e Test., vol. 11, págs. 162, 175 e 213). Em 1637, outra bandeira ao mando de Fernão Dias Pais e de Garcia Roiz (Vide representação de Francisco Dias Taño) estava também no Rio Grande, denominação, que, segundo Taques, os espanhóis 7 Por essas arrematações e fianças, e pelas testemunhas e escrivão do testamento, sabe-se que faziam parte da bandeira de Jerônimo Bueno: Henrique da Cunha, Francisco de Siqueira, Lázaro Bueno, Antônio da Cunha, Bernardo da Motta, Sebastião Fernandes Preto, Francisco Cubas, Antônio Ribeiro, Diogo de Aros, Manuel da Cunha, Domingos Garcia, Miguel Rodrigues, Antônio Bueno, Miguel Rodrigues Garcia, João Pais, Pedro Vidal,... Cardoso, Amador Bueno, Manuel Antunes de Siqueira, Sebastião Ramos, Estêvão Gonçalves, Antônio Dias Carneiro, Antônio Fernandes Malio, Sebastião Mendes, Cristovão Mendes, João Fernandes Camacho. Na Capitania de São Vicente 389 davam ao rio Paraná. Essa denominação – Rio Grande – era dada a diversos rios. O próprio Tamanduateí foi assim chamado. Efetivamente Fernão Dias Pais, de 2 a 19 de abril de 1638 es8 teve acampado no sertão do Rio Grande, com uma bandeira , (Invent. e Test., Vol. 11, págs. 239 e 253). Em 12 de maio de 1637, Francisco Bueno, irmão de Jerônimo Bueno, tinha também o seu arraial no sertão, com uma bandeira de que era cabo (Invent. e Test., vol. 11, pág. 200). Por morte de Estêvão Gonçalves, se fez o seu inventário, sem se declarar o nome do sertão, e foram vendidos em leilão os bens apresentados por seu pai Baltasar Gonçalves 9 Malio. É possível que fosse o sertão do rio Taquari . Já as bandeiras dirigindo-se para oeste tinham chegado ao rio Paraná, tinham-no atravessado segundo as narrativas jesuíticas, e a Santa Cruz de la Sierra, que hoje é boliviana, preparando o caminho para o norte do continente. Os padres da Companhia pediram socorro ao Governador de Buenos Aires, D. Mendo de la Cueva y Benavides, e este em 2 de janeiro de 1638 fez correr bando para acudir as reduções ameaçadas pelos portugueses de S. Paulo. Esse socorro, que se compôs de 11 espanhóis, sob o mando do mestre de campo Gabriel Insaulrade, em março de 1638, só pôde atestar que chegaram aos campos da redução destruída, onde souberam que mais três tinham sido também destruídas e outras três tinham sido obrigadas a mudar-se para sítios mais seguros (Brabo). 8 9 Dela faziam parte entre outros Antônio da Silveira, Romão Freire, João Nunes da Silva, Valentim de Barros, Luís Dias Leme, Pero Dias Leme, Sebastião Gil, o moço, Pascoal Leite Pais, Pero Agulha de Figueiredo, Salvador Simões, João de Santa Maria, Pascoal Leite Fernandes, Cristóvão de Aguiar Girão, Gaspar da Costa, Maurício de Castilho, o moço, Manuel de Castilho, Sebastião Antônio, o moço, Antônio Gonçalves Perdomo, Paulo da Costa, João Favacho, Fructuoso da Costa, Domingos Leme da Silva, André Fernandes, Mateus Leme, Lu... Marinho, Domingos Barbosa, João de Oliveira, Pascoal Ribeiro. Dessa bandeira, além das pessoas acima indicadas, faziam parte Manuel da Cunha, escrivão do arraial, Gregório Ferreira, Cristovão Mendes, Francisco de Siqueira, Pero Vidal, João Pais Malio, o moço, Bernardo da Mota, João Fernandes, Camacho Antônio de Siqueira, Antônio de Botelho, Domingos Carda, Francisco da Cunha, Henrique da Cunha, todos arrematantes ou fiadores. 390 Washington Luís Com a mesma perseverança com que os jesuítas fundavam novas reduções no sul, as bandeiras com a mesma persistência as iriam desfazer. Lá mesmo, abaixo do rio Iguaçu, com os mesmos fundamentos ou com análogos propósitos, continuaram a perseguição e a conseqüente destruição das reduções. Em 1631, já existiam aí missões: S. Nicolan de Barí na margem esquerda e perto da foz do Piratini, no Uruaguai, fundada em 1626, Candelária de Caazapaminin, entre o Ijuí e o Piratini. Haviam fundado mais, em 1631, S. Carlos de Caapi, Apóstolos, S. Pedro, e S. Paulo de Caapaguaçu, aquela porém a noroeste do Iguaí-guaçu e esta à margem direita do Ijuú-mirim; e em 1632, Natividade, à margem direita do Aricá e S. Miguel ao norte do Itianhi (Inianhi). Tendo maior número de missionários, após a evacuação do Guairá, fundaram, em 1633, Jesus Maria à margem direita do rio Pardo (Jequi ou Verde), S. Joaquim à margem esquerda desse rio perto das cabecerias, Stª Ana à margem esquerda, no passo do Jacuí, Stª Thereza, próximo à nascente do Jacuí, S. Tomé à margem direita do Itu (Tebicuari, afluente Ibicuí), S. José de Itaquatiá, ao norte do Ibicaí, onde também em 1634 foi fundada a mais ocidental de todas, S. Cosmo y S. Damian. Nesse mesmo ano à margem direita do rio Pardo foi fundada a mais oriental: S. Cristobal. 10 Em 1636 tinham eles aí 15 reduções . Em 1635 o capitão-mor de S. Vicente, Pero da Motta Leite deu licença a uma bandeira tendo por cabeças Ascenço de Quadros, Pero de Oliveira e João Missel Gigante, composta de mais de 200 homens, para ir aos Patos (Atas, vol. IV, págs. 252 e 253). Nos Inventários e Testamentos, publicados pelo Arquivo Público do Estado de S. Paulo, encontram-se diversos testamentos feitos nesse sertão; e, em alguns, declarações expressas que permitem identificar diversos lugares, em que foram eles lavrados, e os nomes dos capitães que os determinaram. 10 Damos a situação e datas de fundação, conforme o Barão do Rio Branco que se serviu do mapa nº I-A, e para a data da fundação da carta annua, assinada em Córdova de Tucumã em 12 de novembro de 1628, por Nicolau Duran, provincial do Paraguai, dirigida a Múcio Viteleschi, Geral da Companhia de Jesus, e também da História do Paraguai por Nicolas Del Techo (Liege, 1673). Na Capitania de São Vicente 391 Assim o testamento de Juzarte Lopes foi feito a 10 de julho de 1635, e o codicilo dois dias depois, no sertão dos Patos. Juzarte repetiu no seu codicilo (vol. 10, págs. 464 e 469) que se achava doente em 11 casa do Principal Aracambi, no sertão dos Patos . Estas bandeiras avulsas, apesar de não ter ligação direta entre si, eram, por assim dizer, as avançadas do grosso das forças paulistas. No inventário de Pascoal Neto, Filho bastardo de Álvaro Neto, o velho (vol. XI, pág. 135) no qual se vê que a bandeira do capitão-mor Antônio Raposo Tavares em 20 de dezembro de 1636 estava “no sertão, onde chamam Jesus Maria de Ibiticaraíba, sertão dos Arachãs, e lá mandou fazer inventário da fazenda que ficou desse Pascoal Neto, por correr tal fazenda perigo em lugar público”. Aí Pascoal Neto fez o seu testamento a 9 de dezembro de 12 1635 (Idem, págs. 144 e 149) . O Iguaí que, como se sabe, é hoje o Jacuí, recebe o Jequi ou rio Pardo, em cujas margens estavam S. Cristobal e Jesus Maria. Nesse sertão estiveram acampadas as forças paulistas sob o comando do capitão-mor Antônio Raposo Tavares e comandava um 13 dos terços o capitão Diogo Coutinho de Melo, como já disse. 11 Faziam parte desta bandeira, que lá assinaram como escrivão e testemunhas do testamento os seguintes: Luís Dias Leme, Fernando de Camargo, Domingos Vieira, Domingos Dias, Cristão de la Cruz, Francisco de Oliveira, Francisco de Camargo, João de Santa Maria, Sebastião Leitão, Pedro Lopes de Moura, Estêvão de la Cruz, João Rodrigues de Moura. 12 Faziam parte dessa bandeira de Antônio Raposo Tavares, Rafael de Oliveira, o moço, Estêvão Fernandes, o moço, Alberto de Oliveira, Gaspar Vaz Madeira, Domingos Borges de Cerqueira, Luís Feyjo, João Maciel Bassão, Gaspar Maciel Aranha, testemunhas do testamento; Luís Leme, escrivão, Silvestre Ferreira, Mateus Neto, João Rodrigues Bejaran, João Machado, Paulo Pereira, João Nunes Bicudo, Pascoal Leite, Baltasar Gonçalves Vidal, Antônio Pedroso de Freitas, que assinaram como arrematantes e fiadores da fazenda do morto; Luís Leme que foi escrivão do inventário. 13 Dela faziam parte além de outros Antônio de Faria Albernaz, José de Camargo, Brás Glz., João de Godoy, Fernando de Godoy, Balthazar de Godoy, Simião da Costa, Miguel Nunes, Jeronymo Roiz, Duarte Borges, Luís Feyo, Francisco de Chaves, Baltasar Glz. Vidal, João Maciel Bassão. 392 Washington Luís Em 10 de outubro de 1636 esse terço do capitão Diogo Coutinho de Melo fez um assalto nesse sertão, fora do lugar onde se achava o capitão-mor Antônio Raposo Tavares. Em dezembro de 1636, as forças sob o comando de Antônio Raposo Tavares atacaram e destruíram a redução de Jesus Maria, que ele apelidava de Ibiticaraíba, sertão dos Arachãs, saquearam e incendiaram S. Cristobal, a duas léguas, bem como a de Santa Ana, no passo do Jacuí. A 20 de dezembro de 1636 estava o arraial desse capitão-mor 14 no lugar que chamam Jesus Maria de Ibiticaraíba. Em junho de 1637 estavam de volta à S. Paulo as Bandeiras paulistas, porque em 27 de junho é iniciado nessa vila o inventário de Brás Glz., falecido no assalto de 10 de outubro de 1636, sob o comando de Diogo Coutinho de Melo, em 20 de junho, desse mesmo ano. Pero Leme, o moço, escrivão do arraial de Antônio Raposo Tavares apresenta ao juiz de Órfãos o testamento de Pascoal Neto feito no sertão. Ainda na mesma publicação do Arquivo de S. Paulo (vol. 26, pág. 44 e seguintes), encontra-se o inventário, a que já me referi, mandado fazer pelo capitão Diogo Coutinho de Melo, no sertão dos carijós, chamados Arachãs, por morte de Brás Gonçalves, aos 10 de outubro de 1636, declarando expressamente, que assim procedia, por estar ausente 15 o capitão-mor Antônio Raposo Tavares, em um assalto. Eis o que informa o Padre Lozano sobre os índios arachanes e a sua situação no sul: 14 Faziam parte dessa bandeira os soldados, Pero Lemos que era o escrivão do arraial, Paschoal Neto, Silvestre Ferreira. Estêvão Fernandes, Gaspar Maciel Aranha, Alberto de Oliveira, Rafael de Oliveira, o moço, João Maciel Bassão, Gaspar Vaz Madeira, Domingos Borges Cerqueira, Antônio Roiz, Mateus Neto, João Machado, João Nunes, Pascoal Leite, Baltasar Glz. Vidal, João Roiz, Benjamim Paulo Pereira, Antônio Pedroso de Freitas, cujos nomes constam como arrematantes e fiadores dos bens do morto. 15 Nessa bandeira tomaram parte também João de Godoy, que foi escrivão do inventário, Antônio de Faria Albernaz e José Ortiz de Camargo, Miguel Nunes, Jerônimo Rodrigues, Baltasar Gonçalves Vidal, Duarte Borges Coluntreiro, Luís Feyho, Francisco de Chaves, Fernando de Godoy, João Massiel Bassão, como arrematantes e respectivos fiadores da fazenda do morto, ida a leilão. Na Capitania de São Vicente 393 “Los portugueses de uma vila chamada Santo Antonio, que agora, ha 30 anos se povoou sobre esta Lagoa dos Patos, e que a negligência dos que deveriam defender os direitos do nosso católico monarca, deixou tomar corpo. Toda a região tinha multidão de gado, que aí se criou, há menos de um século, pela destruição de algumas doutrinas (reduções) que haviam sido fundadas pelos padres, e que foram bárbara e cruelmente assoladas pelos mamelucos do Brasil. Em altura de 32 graus tributa ao mar seu caudal do norte, o rio chamado rio Grande, que merece este nome, porque se descarrega tão poderoso, que torna difícil a entrada de embarcações que o querem navegar, e experimentam tão rápida quão copiosa corrente. Forma-se de dois grandes rios, chamados Cayyi e Igai, que correm do norte para o sul nascendo na serra que chamam do Tape e vêm a se encontrar em altura de 30 graus. As margens férteis desses rios eram povoadas antes da invasão dos mamelucos por mais de 20.000 índios chamados Arachanes, não porque tivessem costumes e língua diferentes dos demais, mas porque traziam o cabelo revolto e encrespado. Era gente belicosa e estava sempre em guerra com os Charruas, que povoavam as costas do rio da Prata, e com os Guayanás do interior. A 22 léguas do Rio Grande o rio de Martin Afonso de Sousa, do nome do que comandou a frota que levou para as Índias o grande Apostolo S. Francisco Xavier, e que ao rio chegou 16 percorrendo as costas do Brasil. Já as bandeiras paulistas se haviam aposseado do território, que constitui hoje o Estado de Santa Catarina e da maior parte do norte do atual Estado do Rio Grande do Sul. A documentação local a respeito do território ao sul do Iguaçu e norte do Uruguai, é pequena. Os paulistas foram, porém, muito além deste último rio, pois que combateram os Patos, nome que até hoje conserva a formosa lagoa que se estende da cidade do Rio Grande, até a capital Porto Alegre. Em fins de 1638 os paulistas em número de 500, com 2000 índios tupis, auxiliares, sob o comando de Antônio Bicudo desceram 16 Padre Lozano, Conquista do Rio da Prata, vol. 1º, pág. 17, publicação feita por Andrés Lamas. 394 Washington Luís mais para o sul em direção às missões jesuíticas e em 19 de janeiro de 1639, puseram cerco à redução de Apóstolos de Caazapaguaçu durando o combate dois dias. O Governador do Paraguai D. Pedro de Lugo y Navarro achava-se de visita às reduções do Paraná, que pertenciam ao seu distrito, tomou parte com sua escolta no combate, e deu armas de fogo aos índios. O Pe. Diogo Alfaro, que comandava os índios das reduções em número de 4.000 foi ferido e morreu no combate. Ambos os lados se declararam vencedores, o qué quer dizer que não houve vencedores nem vencidos. Lozano conta que foi tão grande a vitória que de 2.500 que eram os agressores 17 foram aprisionados e o resto pereceu, só 30 a S. Paulo voltando. D. Pedro Lugo, porém, retirou-se do combate o que tornou o seu resultado indeciso. Dos paulistas 17 efetivamente ficaram prisioneiros, entre eles Pascoal Leite Pais, e foram levados para Assunção, e daí para Buenos Aires, de onde a 16 de junho de 1640, já se haviam escapado e se dispunham a passar para o Brasil, segundo declarou um bando do Governador de Buenos Aires D. Mendo de la Cueva. Depois da ação de Caazapaguaçu, os jesuítas em 1639 evacuaram o território dos Tapes, que ficou em poder dos paulistas. Os jesuítas, porém, já estavam autorizados, e autorizaram, o uso de arcabuzes, escopetas e com elas armavam os seus índios, e não desistiram de reconquistar os Tapes. A cédula real não só autorizava o uso de armas de fogo, como também o de fazer exercícios militares (Documentação espanhola – Anais do Museu Paulista,. v. 5º, págs. 140, 156, 158). “Nos diversos povos se faziam sentinelas e exercícios para acostumar os índios a combates, que a todo o momento se esperavam, e se mantinham espias nas fronteiras desde muito tempo.” As Bandeiras foram aos Tapes e estavam nas cabeceiras do rio Uruguai. Da chegada ao rio Uruguai foram os jesuítas avisados pelo Pe. Diogo de Boroa, que enviou ajuda para a guerra e prêmios para os soldados. Mas quando este aviso chegou, já alguns padres com rumo diferente iam para a serra acompanhados de mil índios. Na Capitania de São Vicente 395 Dois outros padres foram para Stª Thereza com duzentos índios, ambos os grupos com armas de fogo. Voltaram todos. Abandonando, segundo as informações, o caminho de terra, que trilhavam as expedições anteriores, os paulistas vinham agora pelo rio Uruguai, fora dos lugares onde havia espias. A 8 de janeiro de 1641, o Pe. Cláudio Ruyer fez convocação apenas de 2.000 índios dos povos, ficando a maior parte das forças de prontidão, com ordem de se juntar todas ao primeiro aviso e com eles seguiu para Acaraguá com a intenção de aí fazer frente ao inimigo. Daí mandou os padres Cristobal Altamirano, Diogo de Salazar, Antônio de Alarcone e o irmão Pero Sadone, com bom número de índios, fazer, rio acima, um reconhecimento sobre o intento, número e posição dos paulistas, não perdendo, porém, ocasião, se a encontrassem boa, de atacá-los. § 3º TAPES E MBORORÉ Na Esquisse de l’”Histoire du Brèsil” 17 assim narra o Barão do Rio Branco que “Antônio Raposo Tavares, largou de S. Paulo com sua Bandeira (set. 1636) e a 3 de dezembro depois de combate de seis horas, foi tomada Jesus Maria de Jequi (Rio Pardo). As reduções S. Cristovão, S. Joaquim e Santa Ana foram evacuadas, mas os atacantes fizeram grande número de prisioneiros, e repetiram um ataque dos indios dirigido pelo Padre Romero. A redução de Natividade de Araricá foi abandonada e só ficou aos jesuitas, no território dos Tapes, a colonia de Santa Tereza de Ibituruna, que lhes foi tomada no ano seguinte em 1637. Em 1638 as bandeiras paulistas completaram a destruição dos estabelecimentos espanhoes a oriente do Uruguay. Vencedores em Caaro e em Caazapaguassú, onde o combate durou dois dias, e em S. Nicolau, elas forçaram os jesuitas a emigrar com os indios, que puderam escapar a essa catástrofe, e se foram incorporar às reduções entre o 17 Le Brèsil em 1889, págs. 130 e 131. 396 Washington Luís Uruguay e o Paraná, ou formar novas nessas paragens, que mais uma vez tomaram os nomes das que foram destruidas. Com esse nome – Tapes – o Barão do Rio Branco designou, para facilidade de sua exposição, todo esse território, a oriente do Uruguai. A conquista e a posse do território ao sul do rio Uruguai foram, entretanto, completadas mais tarde, quando Portugal querendo chegar ao golfão do Prata, como sua fronteira natural na América, para isso criou, na Banda Oriental, a Colônia do Sacramento que não conseguiu conservar. Desde essa margem esquerda do Uruguai, Portugal tentou ir até a Colônia do Sacramento. Só no tempo de D. João V foram para lá mandados mais de 4.000 casais de açorianos, para colonizá-la. As bandeiras, depois de irem aos Tapes, desceram o rio Uruguai. Já Antônio Raposo Tavares nelas não tomou parte. Às 3 horas da noite os defensores das reduções, que foram por terra, voltaram com 16 índios, que vinham fugindo dos paulistas, e que contaram que o intento desse era irem ao Paraguai. Talvez uma traça de guerra. Entretanto, estes foram, uns a Conception por Stª Thereza e outros pelo Uruguai abaixo em canoas com intuito de separar as forças jesuíticas. O corpo de gente enviada pelos jesuítas subiu 2 léguas acima do Salto e achou todos os povos e portos desertos, pelo que concluiu que os paulistas já os tinham atacado, dispersado, e voltado a seu país. Receosos, porém, de que eles tornassem pelos campos e tomassem o caminho habitual, voltaram para o Mbororé afluente da margem direita do Uruguai. Os espias foram mantidos por mais de mês e meio sem novidade, até que em 25 de fevereiro, índios que se achavam na Açaraguá, levaram ao Pe. Cristobal Altamirano, aviso certo da vinda dos portugueses, de cujo poder se tinham escapado. Dobraram-se os espias, foram postos 200 índios em diversos pontos, deram-se ordens de prontidão para as tropas. O Pe. Cláudio Ruyer voltou do Paraná. O Pe. Altamirano, mandou 8 canoas rio acima a fazer um reconhecimento. Ao amanhecer avistaram o inimigo, os quais também avistando-os lançaram 6 canoas ligeiras em sua perseguição, que as aprisionariam, se outras canoas das reduções em emboscadas, Na Capitania de São Vicente 397 distribuídas pela margem do rio, não disparassem arcabuzes. Receosos de alguma cilada as canoas ligeiras dos bandeirantes retrocederam. Não querendo aceitar combate em Acaraguá, os padres com todos os índios evacuaram a redução e desceram para o Mbororé. Apesar da chuvarada intensa, que caiu na noite de 8 de março, os paulistas puseram cerco, por terra e por água, à redução de Acaraguá, e ao amanhecer do dia seguinte acometeram-na, mas encontraram-na desertas em um só alma. No rio, porém, 250 índios em canoas, sob o comando do Pe. C. Altamirano, e do Capitão Inácio Abiaru começaram com as avançadas inimigas um tiroteio, que terminou logo, dando o Pe. Altamirano ordem de retirada para o Mbororé, onde chegaram sem perda alguma. O dia 9 de março de 1641, sábado, foi todo ele um temporal desfeito. Os paulistas, em número de 350 homens brancos, com arcabuzes, escopetas e mosquetes, e 1.300 índios auxiliares, sob o comando geral do capitão-mor Manuel Pires se quedaram no Acaraguá nesse e no dia seguinte. Comandava um dos terços das tropas paulistas, o capitão 18 Jeronimo Pedroso, um dos maiores velhacos na opinião dos jesuítas. Enquanto os paulistas se quedavam no Acaraguá, os padres concentravam toda a sua gente no Mbororé e consumiram todos esses dias a ajuntar os índios e soldados cujo número passava de 3.000. O Pe. Pedro Romero deveria dirigir a guerra, porém, estando com terçãs em S. Nicolau, a 3 léguas de Mbororé, só chegou no segundo dia. Em seu lugar ficou o Pe. Pedro de Mola. 18 Desse terço faziam parte Sebastião Gonçalves, João Correia, Domingos Cordeiro, Valentim Cordeiro Malio, Francisco Mattoso, Gaspar Correia, Antônio Borges, Fernando Dias Borges, Antônio Rodrigues, Domingos Pires, Francisco Barreto, Mathias Cardoso, Pedro Cabral de Melo, João Leite, João de Pinha, João Dias Peres, Antônio da Cunha, Mateus Alves Grou, Francisco de Siqueira, Antônio de Carvalhaes, Antônio de Aguiar, Antônio Fernandes Sarzedas, Jorge Dias, Domingos Pires Valadares, Sebastião Pedroso Bayão, Manuel de Moraes, Pero da Silva, Francisco...................., Pero Lourenço, Amador Lourenço, Simão Borges, João Pires Monteiro, Gonçalo Guedes, Pero Nunes Dias, Baltasar Gonçalves, Domingos Furtado, Bartolomeu Alves, Miguel Lopes, Antônio Pedroso de Barros, Clemente Álvares (Vide Inventários e Testamentos, vol. 11, pág. 497). A qualificação dada a Jerônimo Pedroso encontra-se na narrativa jesuítica. 398 Washington Luís A armada jesuítica do rio constava de 70 canoas, com 300 homens dos quais 57 com arcabuzes e o resto com flechas, e mais uma balsa forte, na qual bem acomodada com seus parapeitos, estava uma colubrina de pequeno calibre, tudo sob o comando do capitão Inácio Abiaru. Do exército de terra assumiu o comando o irmão Domingos de Torres. O Irmão Pedro Sadomi ficou encarregado do Hospital de Sangue, onde prestou serviços inestimáveis. Os outros padres ficaram com os trabalhos espirituais. Segunda-feira, 11 de março de 1641, às duas horas da tarde, as diversas sentinelas e espiãs deram alarme da aproximação do inimigo e, de fato, numa volta do rio, começou ele a mostrar-se ostentado seu poder e arrogância. Ao avistar o casario do Mbororé, arribou a sua armada a uma chácara que estava na margem do rio, e todos começaram a ajuntar as canoas. Saltaram alguns em terra para reconhecimento, contanto aí descansar. Começou então a desenvolver-se o plano de batalha concebido pelos padres. Dom Inácio Abiaru, com 5 canoas e antes mesmo que o inimigo descansasse, obrigando-o a combater nesse mesmo dia, arrojou-se para a frente e começou a desafiar os paulistas; logo os outros índios saíram com as outras canoas em ordem e em cuja forma de meia-lua, levando na vanguarda a colubrina, em cuja balsa ia arvorada a bandeira de S. Xavier. Pondo-se em 130 canoas com quase 300 homens e 600 índios, em ordem, os paulistas decidiram a batalha que logo se travou com brava coragem de parte a parte. Os índios dão o primeiro disparo de artilharia, com tão bom acerto, que transtornou três canoas adversárias, matou dois paulistas, e feriu e matou a muitos tupis. A luta continuou forte durante algum tempo, até que os índios das reduções pareceram fraquejar e se foram retirando rio abaixo, porém em boa ordem, com o intento, que conseguiram, de separar os inimigos que, perseguindo-os, se iam distanciando uns dos outros. Na Capitania de São Vicente 399 Para uma paliçada, que parecia abandonada, na margem do rio, passando montes e um arroio grande, se dirigiu o capitão Jerônimo Pedroso, com 30 homens, para tomá-la. Mas os índios que aí se achavam escondidos, com mosquetes e arcabuzes desmascararam o porto, com grande vozerio, fizeram tremular as suas bandeiras e em uma rociada de mosquetes. O destacamento de Jerônimo Pedroso atacou violentamente matando a 3 dos índios e ferindo a mais de 30, mas vendo mortos 5 dos seus e feridos muitos, inclusive ele próprio capitão (que mais que outros, queriam os índios matar), foi forçado a se afastar. Ao ruído das escopetas, três canoas paulistas, investiram contra a paliçada, mas foram recebidas com mosquetaria tão nutrida, parecendo granizo, que as obrigou a se retirar, perdendo um mameluco e todos ou quase todos os remadores. A armada, que se retirando tinha conseguido levar parte da dos invasores a grande distância rio abaixo, a armada voltando-se repentinamente atacou com denodo o inimigo, que se viu entre dois fogos. A mosquetaria nutrida de terra, os tiros de artilharia, o arcabuzar e flechar das canoas, caindo certeiramente sobre as canoas bandeirantes, que na perseguição tinham abandonado a linha de batalha, sofreram imenso dano. A noite veio acabar essa jornada fatal aos paulistas. Durante ela estes desembarcaram e em terra se entrincheiraram com fortes paliçadas. Pela manhã os índios sob a direção dos padres, em armadas de canoas, vieram a desafiá-los a combate no rio. No dia 13 de março, os chefes paulistas vendo a situação precária em que se achavam, tendo perdido muito dos seus em uma batalha, cujo plano os surpreendeu, encontrando adversários bem armados com armas de fogo e até com peças de artilharia, que manejavam bem, resolveram a parlamentar. O capitão Manuel Pires, a 13 de março de 1641, dirigiu aos padres longa carta em que expunha que a sua intenção não era guerrear, mas conhecer a sorte dos homens que os padres tinham prendido no ano anterior, entre eles Pascoal Leite Pais, e por essa razão pedia que os padres se fossem entender com ele no arraial, contando com resposta 400 Washington Luís diferente da que os padres haviam dado a Antônio Raposo Tavares, em Jesus Maria. Atribuindo esta carta a traça de guerra com o fim de com perguntas e respostas entibiar o ânimo dos índios, e tornar suspeitos os padres, estes publicamente rasgaram um traslado da carta e determinaram imediatamente dar combate por água e por terra, acabando-os dentro da própria paliçada. E, não obstante a bandeira branca, que fora arvorada, puseram-se em ordem 3.000 índios, e, por um mato espesso e com grande silêncio, chegaram a tiro de arcabuz da paliçada contrária começando famosa carta de arcabuzaria e flecharia, ao mesmo tempo que por água, seis balsas cobertas, protegendo os índios, que nelas estavam, e com mosquetes e peças de artilharia atacaram o inimigo com grande dano deste. Vendo os bandeirantes tão apertado cerco, fizeram uma sortida, mas logo se encolheram. O combate nesse dia durou 3 horas. No dia seguinte foi feito ataque ainda mais forte e cruel. As seis balsas cobertas não cessaram de inquietar os paulistas de dia e de noite, com uma mosquetaria infernal impedindo-os de qualquer ação. Nessas contínuas refregas gastaram dias até 16 de março, dia em que os paulistas tentaram de novo parlamentar, mas sem sucesso. Chegaram do Paraná mais 1.200 índios por ordem do Pe. Pero Romero, e tendo impedido o passo pelo Uruguai arriba, caso quisessem os bandeirantes ir para Acaraguá e aproximando-se a fome, pois até o milho acabara, só de palmitos se alimentando, tendo muitos mortos e feridos, os paulistas arrasaram as canoas, que tinham no rio, e resolveram a retirada. Logo que o inimigo desapareceu foi enviada gente ao Acaraguá a saber qual o rumo tomado; mas a retirada foi feita por tão extraordinários caminhos, como os das serranias, que deles não se soube ao certo. A gente que foi ao Acaraguá queimou todas as coisas de sustento, achadas nas rancharias, onde encontraram muitos portugueses mortos. No sexto dia, porém, próximo do Acaraguá, como meia légua curta sentiram o inimigo na margem do Uruguai. Foram enviados os padres Pedro de Mola, Cristobal de Altamirano, Juan de Parros, Miguel Gomes e Dom Suares com 1200 índios em perseguição. Na Capitania de São Vicente 401 19 Mas os paulistas se foram retirando e abandonaram o campo . De fato, carregando os feridos, abandonaram pela madrugada a paliçada, e tomaram caminho em direção às serranias. O exército das missões saiu-lhes em perseguição alcançando-os às 5 horas da tarde, quando já se tinham fortificado em uma nova paliçada; mas muito de manhã levantaram acampamento. Quando os índios das reduções tal perceberam foram em seguimento. Ao aproximarem das serranias, ao sopé destas, os paulistas tomando escudos e espadões fizeram face aos índios das reduções, enquanto os feridos e o resto da chusma passavam as serranias. A resistência foi heróica enquanto o ataque fora formidável. O choque foi terrível, confundiam-se os combatentes, transformando-se o combate em verdadeira luta corpo a corpo. Foi colhido o capitão-geral Don Nicolas Neengiru, que foi logo acudido por sua gente. O capitão D. Inácio de Acaraguá já era arrastado para os portugueses, sendo, porém, livrado por um padre. O capitão Francisco Mbayroba de S. Nicolau quase foi aprisionado. A confusão era terrível. Com a retirada e perseguição, a ação durara desde às seis da manhã até às duas e meia da tarde desse dia 19 de março sem que se encontrassem, em segurança, diz o padre que fez a resenha do combate, quedando solos dois de los nuestros muertos em toda la guerra sustentada por espacio de ocho dias continuos contando-se casi sessenta portugueses muertos e quasi todos heridos. Apesar, porém, da vitória a redução do Mbororé foi imediatamente evacuada. E os jesuítas desceram mais para o sul. Mbororé talvez seja o afluente do Uruguai que, no mapa nº 5-A, parte inferior, que acompanhou a exposição do Barão do Rio Branco ao árbitro, e que é aqui reproduzido, está designado como Mbororo. Os nomes indígenas são quase sempre deturpados nos mapas e nas descrições. 19 Descrição baseada em carta minuciosa, mas confusa, escrita na redução de S. Nicolau a 6 de abril de 1641 pelo padre Cláudio Ruyer, e que se pode ler na R.I.H.G. de S. Paulo, vol. 10, págs. 529 a 552. 402 Washington Luís Essa narração é aqui feita com todas essas particularidades, porque Mbororé marca o desbarato das Bandeiras paulistas ao sul do continente americano, e com ele o termo de suas conquistas nessa parte. Nesse combate tomaram parte forças militares espanholas, pois o Cônego J. P. Gay, dando na sua República Jesuítica no Paraguay (Rev. Inst. Hist. Geog. Brasil, vol. 26, primeira parte, pág. 43) relação dos Governadores de Buenos Aires, informa que D. Ventura Mogica governou pouco tempo e “ganhou uma grande batalha em Mbororé, no Uruguai, contra os tupis e os portugueses de S. Paulo, morrendo na ação 160 destes”. *** Nesse 1641 a situação dos bandeirantes, dos padres, dos espanhóis já era inteiramente diferente. Portugal, então havia proclamado a restauração de sua independência, com a aclamação do Duque de Bragança, como seu rei, sob o nome de D. João IV. Essas Entradas deixavam de ser lutas locais, em possessões do mesmo rei, para tornar-se ataque de rebeldes, combates em guerra internacional entre dois países. Espanha, não obstante já muito enfraquecida na Europa, não poderia tornar-se indiferente a essas invasões em territórios que ela considerava de suas conquistas nas Américas. Os governadores dessas conquistas deveriam defendê-las, sob pena de sua inação transformar-se em traição à pátria, defesa que faziam por iniciativa própria, sem ordens diretas da metrópole, mas antes esperavam com o escrúpulo e receio de se intrometerem nas províncias de outros governadores nomeados pelo mesmo rei. A descrição feita pelos jesuítas do combate de Mbororé, embora muito confusa, mostra que aí já houve plano militar, dirigido por militares profissionais. É ainda para notar que os paulistas, embora acostumados a atravessar grandes extensões pelo sertão, tinham que percorrer centenas de léguas e léguas num deserto descaroável até ao rio Uruguai sem provisões para alimentação e para cura, sem abastecimento de armas e de munições, sem poder contar com reforços. Na Capitania de São Vicente 403 Muitos teriam morrido pelo caminho, de doença que Deus dava, ou mordidos de cobras ou devorados por onças. Está em tudo isso a explicação da sua derrota. Aí, porém, parou a conquista bandeirante ao sul; mas, os paulistas já tinham também conquistado no oeste até o rio Paraguai. Los terribles bandeirantes, cuyo solo nome infundia pavor in las missiones jesuiticas y en los poblados del Paraguay, fueron los hacedores de una grande nacion. Solo a ellos los deve el Brasil la amplitud enorme de sus fronteras, y solo elles, cuando nadie pensava levantar colonias en las selvas virgenes, convertiam la soledad salvage de las llanuras em magníficos ingenios de azucar y en esplendidos yerbales” (Henrique de Gandia, Las Missiones Jesuiticas y los bandeirantes paulistas, págs. 84 e 85). Diante da confusão geográfica do sertão, do vago das bulas papais e do impreciso do Tratado de Tordesilhas, quando mais tarde Espanha e Portugal tentaram fazer tratados de paz, foi o uti possidetis, na América, o critério adotado por ambos os contratantes, o melhor critério – o único – que respeitando as povoações respectivas dos dois países, definiu-lhes as fronteiras, estabelecendo entre essas nações a segurança para seu desenvolvimento. Foi apoiado nessas conquistas e destruição, como se vê, narradas por jesuítas espanhóis e apoiado em documentos de origem espanhola que o Barão do Rio Branco também apoiado no uti possidetis conseguiu provar a posse do Brasil sobre esses territórios. A Questão das Missões, proposta pela Argentina e Brasil, sucessores de Espanha e Portugal, perante um árbitro escolhido, o Presidente Cleveland, dos Estados Unidos, foi decidida a favor do Brasil, reconhecendo brasileiro o Território das Missões, a oeste do Pepiri e do Santo Antônio. Hoje, conhecimentos exatos da geografia dessa região mostram, que, pelas bulas papais e pelo Tratado de Tordesilhas, o domínio desse território pertenceria às conquistas da coroa de Espanha, dos quais os espanhóis com fundação de vilas e de reduções espanholas já dele iam tomando a posse. Foi, por essas conquistas das bandeiras e por essa posse, que grande parte do Estado de Mato Grosso, do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, e mesmo de S. Paulo, fazem parte do Brasil. Fac-símile aumentado da Gravura Original no tomo XXI, Pág. 229, das “Lettres e’Difiantes et Curieuses Écrites des Missions Etrangeres, par quelques Missionaires de la Compagnie de Jesus, Pariz”, 1734. (Copiado de um mapa apresentado pelo Barão do Rio Branco ao árbitro Cleveland, na questão das Missões entre o Brasil e Argentina). Na Capitania de São Vicente 405 Também é verdade que eles, os espanhóis, por sua parte, não respeitavam tais bulas e tal tratado, porque no Oriente se iam apossando de territórios, que deveriam pertencer à conquista da coroa de Portugal, os quais, naquele tempo pelas suas riquezas tinham incomparavelmente valor superior aos sertões da América do Sul, habitados por selvagens nus e antropófagos. As bandeiras paulistas foram cruéis em suas ações. Mas em que parte da terra se faz guerra sem crueldade e sem horrores? Nos países mais civilizados, e de uma civilização de que a humanidade se orgulhou, ninguém ainda se esqueceu dos modernos campos de concentração, dos bombardeamentos aéreos de cidades abertas, das explosões das bombas atômicas, que destruíram, de uma só vez, cidades inteiras e, com elas crianças e mulheres, velhos e enfermos e hospitais, e talvez amigos dos atacantes. Fizeram os paulistas na América selvagem devastações em reduções de catequese religiosa; mas naquele tempo, na Europa civilizada se queimavam homens, em autos-de-fé, por motivo de crenças religiosas; e, nos nossos dias, as nações mais adiantadas, perseguiram, prenderam, torturaram e mataram por motivo de raça e de religião. A contribuição dos paulistas, porém, foi grande para tornar maior o Brasil, então parte de Portugal e depois seu herdeiro. As bandeiras agiram de acordo com a moral do tempo, que, entretanto, se irritava veementemente com a escravização do selvagem da América e não se incomodava com a escravidão do selvagem da África, ou melhor, dela se aproveitava cobiçosamente. Negros, vermelhos, amarelos, brancos, todos têm direito à liberdade, desde que conscientes a saibam defender. Não há razão para só condenar os bandeirantes de um crime, que todos, então, praticavam em diversos lugares, sendo que aqui os criminosos se tornaram obreiros obscuros, quase anônimos de uma grande obra – a formação do território brasileiro – cujo latejar embrio20 nário já se sentia . 20 A destruição das reduções jesuíticas pode ser lida com minudências em Insignes Missioneros e em Roiz Montoya em Índias por Jarque, em Hist. Prov. Paraguarice por Del Techo, Hist. du Paraguay por Charleroix, em Inventário de las Missiones por Xavier Brabo e em outros. Há, nessas narrativas confusas, contradições e até fábulas e muitas exagerações. O Barão do Rio Branco ocupou-se magistralmente do assunto, quando representante do Brasil na Questão das Missões. Desses escritos me servi para este trabalho. 406 Washington Luís *** Em S. Paulo a luta contra os jesuítas portugueses rebentou nessa época com violência nunca vista. Vindo de Roma o padre Francisco Dias Taño, que pertencia à Missão do Paraguai, chegara ao Rio de Janeiro e dera publicidade a um breve do Papa Urbano VIII, pelo qual a direção dos índios ficaria pertencendo exclusivamente aos padres da Companhia de Jesus. No Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, que então o governava, era pelos jesuítas. Em S. Paulo, a Câmara teve conhecimento que o Ouvidor Geral ia fazer devassa contra os moradores da capitania, que tinham ido ao sertão a descer gentio, “conforme o uso e costume da capitania, uso e costume sem os quais não podiam viver e permanecer os moradores” dizia-se na vereação de 7 de janeiro de 1640 (Atas, vol. 5º, págs. 8 e 9). A ameaça da execução do breve do papa exasperou os povos. Aos 2 do mês de julho de 1640, em sessão da Câmara os oficiais desta (7) juntos com as pessoas da governança da terra com o mais povo (124), ao todo 131 pessoas, resolveram pôr em execução o que em S. Vicente, cabeça da capitania, havia sido resolvido, e que consistia em expulsar da capitania os padres da Companhia de Jesus. Foram todos ao colégio dos padres da Companhia de Jesus e intimaram “ao reverendo padre Reitor Nicolau Botelho que dentro de seis dias todos os padres despejassem a vila e se recolhessem ao colégio do Rio de Janeiro para segurança de suas vidas, honras e fazendas, por causa do levantamento do gentio, e por outros motivos que levariam ao conhecimento de Sua Santidade e de Sua Majestade” (Atas, vol. 5, págs. 8 e 9, de 25 a 28). A 7 de julho, por ser acabado o prazo concedido, o povo requereu a execução da medida; mas foram ainda concedidos mais três dias sendo encarregado o escrivão de fazer aviso da prorrogação. A 10 de julho, fizeram terceira notificação, em nome das duas capitanias de S. Vicente e da Vila de Conceição, dando mais dois dias peremptórios. Em S. Paulo se juntaram os moradores às vilas de S. Paulo e S. Vicente, os procuradores das vilas de Parnaíba e de Mogi-mirim Na Capitania de São Vicente 407 (Mogi das Cruzes) e todos fizeram idêntica notificação ao Padre Antônio Ferreira que, na ausência do Reitor, estava encarregado da direção do mosteiro. A 13 de julho, com grande clamor e ameaças de violências, 215 pessoas foram tornar efetiva a intimação para que saíssem “os reverendos padres da capitania”. A 24 de julho de 1640 os padres se retiraram e constituíram procurador para cuidar dos bens, que possuíam na capitania, ao padre Manuel Nunes, vigário e ouvidor da vara (Atas, vol. 5, págs. 25 a 28, 30, 33, 35 a 43). Os jesuítas ainda tentaram negociar a permanência, dizendo que estavam na capitania havia mais de 90 anos, ao que se recusou a Câmara, lembrando que eles, colonos, estavam havia mais de 100 anos. *** 1653. Os padres da Companhia de Jesus voltariam mais tarde, em Segundo Azevedo Marques (Apontamentos, verbo Jesuítas) voltaram em composição amigável. O caso teve solução em virtude do Alvará de D. João IV de 7 de outubro de 1647 que resolveu conceder perdão aos moradores da vila de S. Paulo de todas e quaisquer culpas que tivessem cometido na expulsão dos jesuítas, reservando-lhes (aos jesuítas) para demandarem no cível perdas e danos, com a declaração de que o perdão concedido só teria efeito “depois de restituídos os padres da Companhia de tudo que tinham na capitania (Documento publicado na Rev. do Inst. Geog. de S. Paulo, por Leite Cordeiro, vol. 51, pág. 300, extraído do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa). A 12 de maio de 1653 os oficiais da Câmara – os Juízes Domingos Garcia Velho e Domingos Rodrigues de Mesquita, os vereadores Calixto da Motta e Francisco Cubas e o procurador do conselho Gaspar Correia, o Ouvidor Geral da Repartição do Sul, Doutor João Velho de Azevedo – “considerando a falta que os reverendos padres da Companhia de Jesus fazem nesta vila, para o serviço de Deus como para 408 Washington Luís a conservação dos moradores da vila e mais capitanias, paz e quietação sua, e outras particulares conveniências, resolvem a volta dos padres, aceitando o padre Reitor as sete condições estipuladas, entre as quais figuravam expressamente a desistência de qualquer ação por perdas e danos, recuperando todos os seus bens, obrigando-se a não recolher nem amparar em seus mosteiros e fazendas, os índios que fugissem aos moradores, e a não darem publicidade ao breve que diziam terem de Sua Santidade o Papa, sobre a liberdade dos índios como tudo se pode ler a fls. 24, 25 e 26 do volume 6º de Atas”. Comunicada essa resolução aos padres da Companhia de Jesus, e por eles aceita, foi lavrada a escritura a 14 de maio de 1653, na vila de S. Vicente, assinada pelos oficiais desta vila, cabeça da capitania, e pelo padre Provincial Francisco Gonçalves, pelo padre Francisco Pais, Reitor do Colégio de S. Paulo, pelo padre Francisco Madeira, Reitor do Colégio de S. Miguel, conforme escritura transcrita por Azevedo Marques. Apontamentos, verbo Jesuítas, pág. 17, 2ª parte. *** Para os padres da Companhia de Jesus, na Província do Paraguai, a destruição das reduções jesuíticas no sul do continente, nas quais eles evangelizaram abnegadamente, foi um mal irreparável e uma grande decepção, por não se verem ajudados pelas autoridades espanholas, assim impedidos de espalhar tranqüilamente a mansa e doce doutrina de Cristo por todas essas partes. Sob o aspecto moral, não se pode negar que, nesse tempo, o concurso religioso, que deram os jesuítas, foi grande para a catequese cristã do aborígine e para a doutrinação dos colonos, concorrendo para formar uma sociedade que se iniciava, embora, em parte, indígena. Sob o aspecto político, nada se pode concluir sobre a catequese, porque os jesuítas nada realizaram, que permanecesse, para que se possa fazer comparações. Sob este aspecto eles fracassaram em toda a parte; no Canadá com os franceses, na Nova Inglaterra com os ingleses, nas costas do Brasil com os portugueses, no sertão do continente da América do Sul com os espanhóis. Na Capitania de São Vicente 409 Para a Espanha, até 1640, o bandeirismo foi apenas uma perturbação interna da ordem, sem maiores conseqüências. Para as coroas de Espanha e de Portugal, concorreu ele poderosamente, já que nenhuma delas respeitava o Tratado de Tordesilhas, para a adoção do uti possidetis a fim de se estabelecer suas fronteiras na América. O Brasil, sob o aspecto territorial, lucrou enormemente com a conquista dessa parte, na qual se alargaram e se fizeram províncias e se constituíram estados federados. A escravidão, as guerras, os motins, as revoltas, as revoluções são fases da evolução social, demonstrando atraso de elementos da nacionalidade. A derrota do Mbororé levou definitivamente as Bandeiras a continuar a sua faina para o norte e noroeste, no descobrimento das minas de ouro do Cuiabá e de Goiás, e das Minas Gerais de que já tratei rapidamente na Capitania de S. Paulo. Definitivamente também ficou delimitado o campo de ação da catequese religiosa, e o Brasil estabeleceu as bases de uma nação. Sumário Na Capitania de São Vicente, de Washington Luís, foi composto em Garamond, corpo 12, e impresso em papel vergê areia 85g/m2, nas oficinas da SEEP (Secretaria Especial de Editoração e Publicações), do Senado Federal, em Brasília. Acabou-se de imprimir em março de 2004, de acordo com o programa editorial e projeto gráfico do Conselho Editorial do Senado Federal.