A SITUAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE: o exemplo do filme Terra Fria Lidiane Aparecida Silva de Souza* Os resquícios de uma sociedade em que os conceitos masculinos se sobrepunham a vontades e direitos femininos ainda resvalam na vida das mulheres atualmente. A legislação brasileira é uma prova disso. Somente em agosto de 2006, o Governo federal sancionou a norma que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. O preconceito e imposição dos direitos exclusivamente masculinos ainda são presentes até nas sociedades que declaram ser democráticas. O filme “Terra Fria”, da diretora Niki Caro, mostra como, nos Estados Unidos da década de 80, as mulheres ainda não tinham seus direitos igualmente respeitados pelos homens. Na história, Josey Aimes sai de casa por causa das agressões do marido e volta para sua cidade natal para morar com os pais. No entanto, seu pai não concorda com a decisão da filha e a acusa de ser a culpada pelo fim do casamento. Josey, aconselhada por uma amiga, arruma um emprego em uma mineradora, onde a maioria dos funcionários são homens. Lá, ela passa a ser discriminada e sofre assédio sexual dos colegas. Para reaver os direitos ignorados pelos integrantes do quadro de funcionários da mina, ela procura a Justiça. Mesmo desacreditada por outras pessoas, Josey faz seus direitos valerem. Durante o julgamento, descobre-se que ela tinha uma trajetória de agressões desde a adolescência. O filme, que, em sua maioria, apresenta uma narrativa não linear, começa com cenas de Josey arrumando suas coisas e as de seus dois filhos para abandonar a casa. A seqüência é montada com cenas em que a personagem principal apanha. Em nenhum momento, mostra-se o rosto do agressor, mas a violência domiciliar é subentendida pelo cenário do crime que é a cozinha de uma casa. Josey sai correndo de sua residência com os dois filhos: uma menina de aproximadamente 7 anos e um adolescente de 16 anos. Eles pegam a estrada e vão parar na cidade natal de Josey, no norte do estado de Minnesota (EUA). Os três são bem recebidos * Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduanda do primeiro período do curso de Direito das Faculdades Integradas Vianna Júnior. Resultado do Projeto em comemoração ao Dia Internacional da Mulher – realizada na 4ª Subseção. OAB/MG. Orientado pela Profª Vera Carmem de Avila Dutra e Drª Valquíria Valadão, Secretária Geral da OAB. pela mãe da protagonista. Mas o pai não concorda com a mudança da família. Ao ver que Josey tinha marcas de agressão no rosto, conclui que ela tinha traído ou feito algo contra o marido e que, merecidamente, havia apanhado. A protagonista promete que não ficará na casa dos pais e que, por conseguinte, não trará despesas. Ela afirma que quer arrumar um emprego. O pai não acredita que ela vá conseguir. Ao passear pelas ruas da cidade, Josey encontra uma amiga da época em que ainda morava com os pais: Glory. A mulher explica que a mina onde trabalha está recrutando novos funcionários e pergunta se Josey não estaria interessada em uma das vagas. Mas faz questão de ressaltar que as mulheres que trabalham lá precisam ser fortes para agüentar a pressão psicológica que os colegas fazem sobre elas, já que consideram que o trabalho na mina é exclusivamente masculino e que as mulheres que ali estão tiraram a oportunidade de um homem ter emprego. O pai de Josey, Hank, é um dos funcionários e tem o mesmo pensamento. Ainda assim, a protagonista decide aceitar o desafio. Ao chegar no local, ela e outras mulheres escolhidas no processo seletivo são apresentadas ao trabalho e vão conhecer a mina. Ao voltarem ao vestiário, têm as primeiras provas do preconceito e da agressão moral: os homens picham xingamentos nas paredes do local. Durante os dias, ela e as colegas são motivos de brincadeiras de mal gosto e assédio sexual dos colegas. Josey passa a ser alvo dos ataques de um ex-namorado, que faz questão de lhe “passar cantadas” e chamá-la de nomes de baixo calão. Ela reclama com o chefe do departamento, mas ele diz que ela é quem está no lugar errado e que se quiser permanecer no emprego tem que aceitar o que os outros fazem com ela. A personagem principal do filme tenta mobilizar as colegas para evitar novas agressões. No entanto, elas demonstram que são conformadas com a situação e que não acreditam que as coisas possam ser mudadas. Além de enfrentar problemas no trabalho, Josey ainda é obrigada a encarar o preconceito tanto do pai quanto do filho dentro de casa. No desencadear da história, descobrese que o menino, Sammy, não é fruto do relacionamento dela com o ex-marido. Em cenas de flashback, apresenta-se imagens de Hank conversando com Josey ainda adolescente e a garota afirmando estar grávida e não saber quem é o pai. Em outras cenas, já da época da narrativa, personagens secundários fazem comentários sobre a fama de Josey quando era mais nova, falando que ela teria tido relacionamentos com diversos homens. O ápice dos problemas familiares de Josey acontece durante uma partida de hokey da qual Sammy participava. Apesar de o garoto ser um bom jogador, os colegas de time dizem que não fariam com que Sammy participasse das jogadas devido à fama ruim da mãe dele. Durante o intervalo do jogo, ela e um amigo vão comprar um lanche. Neste momento, Josey escuta alguém chamando seu nome. Uma mulher que se identifica como esposa de um dos mineradores a xinga e afirma que Josey se insinua para os homens com quem trabalha. Todas as pessoas que estão no ginásio escutam a discussão, inclusive Sammy. Ao terminar a partida, o garoto pede para que sua namorada avise Josey que ele não voltaria para casa. Desesperada, a mãe arranca o filho à força do carro da namorada. É neste momento que ela se dá conta de que o preconceito e a violência não está somente em seu ambiente de trabalho. Ela percebe que não consegue respaldo nem nos homens de uma nova geração, que é o caso do filho, nem mesmo nas colegas que se conformam com a realidade vivida por muitas mulheres da cidade. No entanto, surge a partir daí, um contraponto. Bill White é um amigo de Glory e seu marido e aparece em cena pouco antes do desenvolvimento das confusões vividas por Josye. Mas é no instante da briga com seu filho que ele ganha importância na seqüência cinematográfica. Bill é um advogado e ex-jogador de hokey conhecido na cidade. Ele se torna o ponto de apoio da protagonista e é a prova de que nem todos os homens a tratariam mal e que ela poderia contar com a Justiça para reaver seus direitos. No início do filme, Josey está em uma lanchonete com os filhos quando é reconhecida pelo dono da mina. O homem se apresenta a ela e diz que, quando precisar, pode procurá-lo. Após observar o comportamento dos colegas de trabalho, ela decide marcar uma reunião com o proprietário da mina para contar-lhe o que acontece lá. No entanto, ao chegar ao escritório é surpreendida com a presença do chefe de departamento na sala da diretoria. Durante a conversa, os dois falam que ela quer assinar a demissão. Ao negar o fato, a mulher é acusada de subverter os colegas. Os dois dizem que ela só permanecerá no emprego se passar a se comportar. Josey volta para sua cidade e procura Bill pedindo para que ele a represente judicialmente, já que quer abrir um processo de assédio sexual contra a empresa e seus colegas. Apesar de recusar a causa no primeiro instante por ser algo inédito, ele decide ajudar a amiga. Josey procura as colegas de trabalho e pede para que elas concordem com o processo e façam uma ação de classe. Mas, não consegue o apoio. A mãe de Josey resolve ficar ao lado da filha e, cansada dos comentários maldosos do marido, sai de casa. Josey não se cansa e age mais uma vez. Durante a reunião do sindicato, pede a palavra e diz que todos ali deveriam ter respeito pelas mulheres. Vaiada, ela tenta continuar o discurso. Hank não suporta ver a filha ser humilhada e pede silêncio. Ele afirma que ela tem direito de falar já que é sindicalizada como os outros presentes. Este é o momento em que o pai muda de lado e passa a apoiar a filha. Todo o filme é entremeado com cenas de um tribunal. Mas é, no final que o local torna-se o principal cenário. Durante o julgamento, os advogados de acusação afirmam que Josey estaria mentindo em relação às tentativas de estupro e assédio sexual, justificando que, no passado, ela já teria se relacionado com diversos homens. Tanto que ninguém saberia quem era o pai de seu filho mais velho. Bill utiliza o argumento e a presença de um dos acusados de ter assediado Josey para reverter o caso. Ele faz com que o colega da protagonista, que também fora namorado da mesma no passado, confirmasse a declaração de que Josey teria sido estuprada por um professor, quando ainda era adolescente. Ele confirma que viu o fato, mas sempre acreditou na versão de que ela teria um “caso” com o ex-professor. Nesta relação, ela ficou grávida. Bill só conseguiu a confirmação do homem após chamá-lo de covarde, por não ter ajudado a garota enquanto ela era violentada. O fato despertou a atenção de outros presentes ao julgamento. Apesar das revelações, Josye ainda não tinha alcançado seus objetivos. O juiz disse que se ela conseguisse arrumar três testemunhas que confirmassem o assédio dentro da empresa, venceria a ação. Ela já tinha conseguido o apoio do pai e de Glory que, apesar de estar doente e não poder falar sem a ajuda de aparelhos, fez questão de estar presente ao tribunal para ajudar a amiga. Após mexer com o brio dos presentes, Bill faz com que as colegas de trabalho assumam que também passaram por problemas dentro da empresa. Outros homens confirmam o fato. Josey vence a ação e abre precedente para que se crie uma política contra assédio sexual. Assim como citou a ex-secretária de Educação do município de Juiz de Fora, Tereza Leite, durante o evento em homenagem ao Dia Internacional da Mulher na sede da OAB, em março de 2007, fatos como o de Josey são freqüentes em nossa sociedade até hoje. Diariamente, mulheres procuram a delegacia especializada para relatar as agressões que sofrem dentro de casa. No entanto, algumas não agem contra a violência domiciliar. Muitas aceitam a situação por dependência financeira, outras por medo de que as agressões se tornem mais fortes. No entanto, a polícia tem buscado conscientizar essas mulheres de que é preciso denunciar, em especial agora em que há uma legislação específica para os crimes cometidos dentro de casa. Mas vale ressaltar que não é somente a violência física que deve ser denunciada pela mulher. Josey é um exemplo de que a violência ocorre em todos os níveis. Quando jovem, ela foi estuprada e, após começar a trabalhar na mina, foi “agarrada” por um de seus colegas. No entanto, não foi somente isso que fez com que ela entrasse na Justiça contra os funcionários e a empresa. Xingamentos e insinuações contra a moral de Josey é a prova de que as mulheres ainda enfrentam problemas relacionados à moral. O Estado tem consciência de que a mulher ainda tem dificuldade de exercer seu papel na sociedade, em especial pelo preconceito. Tanto é que, em 13 de setembro de 2002, o Governo promulgou o decreto nº 4.377 em que afirma saber que “a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade” Durante a palestra, Tereza afirmou que “ser feminista é ser contra a cultura estabelecida”, em que os conceitos machistas se sobrepõem. Não é necessário conhecer os conceitos feministas ou ser adepta deles para se defender os direitos. O que as mulheres querem é que a regras sejam seguidas, com o cumprimento do inciso I e do caput do art. 5º da Constituição Federal em que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” e onde “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.