AS APROPRIAÇÕES DA OBRA DE GABRIEL SOARES DE SOUZA NO DISCURSO DE GILBERTO FREYRE Autor: Fabrício Meira de Oliveira Orientador: Professor Doutor Magnus Roberto de Mello Pereira Palavras-chave: Gabriel Soares de Souza, Gilberto Freyre, recepção. O objeto deste estudo monográfico versa sobre a recepção da obra “Tratado Descritivo do Brasil em 1587” de autoria de Gabriel Soares de Souza, e a construção do discurso historiográfico brasileiro da década de 30 do século XX, tomando como referência um autor representativo do período que exerceu influência historiográfica de relevância e da obra que o consagrou nesta mesma época. No caso específico, Gilberto Freyre e a obra Casa-Grande e Senzala, publicada originalmente no ano de 1933. A monografia se divide em duas partes. Na primeira parte, focaliza-se o contexto no qual se insere a produção da obra de Gabriel Soares de Souza, situando a Europa e Portugal, que, no início da modernidade, passam pelo processo de difusão da leitura a partir do advento da imprensa. Nesta mesma época, as grandes navegações possibilitam o desenvolvimento de uma literatura de viagens que abordava temáticas referentes ao que era desconhecido ao olhar europeu, ou seja, o Oriente e América. Por isso mesmo, os textos que abordavam estes temas tinham grande receptividade. Na passagem do século XVI para o XVII, já existia uma ampla gama de produções impressas – ou não – que circulavam entre os leitores, e que focalizavam a América. Citando exemplo: Além do próprio Gabriel Soares de Souza, Fernão Cardim - Tratados da Terra e gente do Brasil; Jean de Léry (calvinista) - Viagem à Terra do Brasil; Frei Vicente do Salvador - História do Brasil (1550 - 1627); Hans Staden - Duas Viagens ao Brasil; Pero de Magalhães Gândavo - (1570) - Tratado da Terra do Brasil; Michel de Montaigne; Frei Bartholomé de Las Casas entre outros. Por conseguinte, depois de situar o contexto de produção da obra, o estudo se dirige para o próprio autor de “Tratado descritivo do Brasil em 1587”, realizando breve levantamento sobre quem foi Gabriel Soares de Souza. A biografia de Gabriel Soares de Souza é cheia de lacunas, sabe-se que era português de nascimento, possivelmente da cidade de Lisboa, onde habitavam suas duas irmãs viúvas. Por volta de 1567 (ou 1570?), acompanhando Francisco Barreto à Monomotapa, Soares resolve parar na Bahia (Cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, também denominada genericamente como Bahia até meados do século XX). O termo Bahia também podia ser aplicado a todo o entorno da Bahia de Todos os Santos e regiões próximas, o denominado Recôncavo Baiano. Portanto, a região citada em textos antigos, nem sempre corresponde à divisão política e administrativa, por vezes denominada de Capitania da Bahia ou que nos tempos do Brasil Império respondia pelo nome de Província da Bahia e em tempos republicanos pelo nome de Estado da Bahia. Apesar de ser constantemente citado por Soares o uso do termo "Cidade do Salvador" não foi sempre o mais corrente ao longo do tempo.Até até meados do século XX, era comum que os naturais do atual Estado da Bahia se referissem à capital Salvador como sinônimo de Bahia, vício este praticado por baianos do recôncavo e do sertão desde tempos imemoriais. Por isso, muitas vezes as referências à Bahia, podem estar relacionadas na verdade à cidade de Salvador, especificamente. Parte do que é descrito por Gabriel Soares, e denominado por ele como Bahia, há muito tempo, já está inserido no sítio urbano da Cidade de Salvador. 2 Estabelecido nesta região, Gabriel Soares fez fortuna tornando-se senhor de um grande engenho nas proximidades do Rio Jequiriçá. Por ocasião da morte de seu irmão João Coelho de Souza, que havia percorrido os sertões por três anos e descoberto “metaes” preciosos, Gabriel Soares recebeu por intermédio de um portador de confiança, o itinerário da expedição de seu irmão. De posse deste valioso documento, Gabriel Soares embarca em direção à Península por volta do mês de agosto de 1584, com o intuito de conseguir concessões régias e privilégios que lhe pudessem ser úteis para viabilizar sua empreitada pelos sertões com o aval da Coroa. Em 1587, publica a obra Tratado Descritivo do Brasil, dedicando a obra a Dom Cristóvão de Moura -homem de estado - cuja influência poderia ser de grande valia para a obtenção de concessões. Os trâmites são demorados e o autor permanece na Península até receber o despacho em dezembro de 1591. Em sete de abril do mesmo ano, já na condição de “capitão-mor e governador da conquista e descobrimento do Rio de São Francisco.", Soares de Souza parte de Lisboa em direção as terras do Brasil a bordo da Urca flamenga Grifo Dourado, conduzindo um total de trezentos e sessenta homens entre os quais quatro carmelitas. O "projeto" de Gabriel Soares sofre os primeiros infortúnios antes mesmo de chegar à terra firme. Por volta do mês de junho, a embarcação veio a naufragar na altura da foz do Rio Vaza Barris, região que havia sido recentemente colonizada por Cristóvão de Barros. A maior parte da tripulação conseguiu salvar-se. Depois deste acidente, Gabriel Soares retorna à Bahia (cidade de Salvador), onde recebe o auxílio de Dom Francisco de Souza. Após estar refeito da tragédia que se abateu, Soares de Souza volta para suas terras para buscar provisões de carne e farinha para continuar sua expedição. A malograda expedição de Gabriel Soares teve início subindo o Rio Paraguaçu, pela margem direita. Fundou um arraial denominado de João Amaro, pois tinha ordens para fundar povoações a cada cinqüenta léguas. No percurso até o dito arraial, muitos dos que o acompanhavam adoeceram assim com muitos animais foram perdidos devido ao ataque de morcegos. Passadas mais cinqüenta léguas, Soares de Souza resolve fundar um segundo arraial, contudo o cansaço e a doença o venceram quando muitos já esmoreciam. Pouco tempo depois veio a falecer nesta mesma localidade. Ainda na primeira parte da monografia é feita uma reconstituição da história do livro até sua publicação por Varnhagem no ano de 1851, além da análise do próprio teor de sua obra. A obra Tratado Descritivo do Brasil não teve grande repercussão no século XVI, embora já se tenha notícia da circulação dela em Portugal no ano de 1599, a obra foi citada por Pedro Mariz, e segundo Varnhagen no século XVII, foi copiada e em parte usada nos trabalhos de Frei Henrique de Salvador e de Frei Henrique de Jaboatão. Varnhagen também cita cópia e aproveitamento da obra em Simão de Vasconcelos. A primeira edição completa e impressa que se tem notícia é de 1825, publicada pela Academia Real das Ciências de Lisboa. Na edição portuguesa, a dedicatória da obra (carta) dirigida a Dom Cristóvão de Moura, está contida na obra, porém nas palavras do próprio Varnhagen: “As mesmas cópias por desgraça foram tão mal tiradas, que disso proveio que o nome do autor ficasse esgarrado, o título se trocasse e até na data se cometessem enganos!”. Ou seja, Varnhagen reconhece a importância da publicação portuguesa, no sentido de reconhecer a importância do trabalho e torná-lo conhecido (inclusive para ele próprio), porém, no parecer de Varnhagen, a edição portuguesa por se valer das ditas cópias, traz erros de data (1589) e omite o autor. Observação esta, de fácil verificação, ao se consultar a edição portuguesa de 1825. O mesmo Varnhagen cita a localização das demais cópias manuscritas, as que teve acesso, e as que não teve. 3 O autor Gabriel Soares já se refere a sua obra, como sendo um tratado, no entanto, é “trabalho de Varnhagen”, o título atual, pelo qual a obra é conhecida: “Tratado Descritivo do Brasil em 1587”. Em relação à compilação e a ordenação da obra publicada em 1851, Varnhagen parece ter compilado dois escritos do mesmo autor em uma só obra que viriam a ser respectivamente as partes do Tratado descritivo do Brasil em 1587: Roteiro Geral da Costa Brasílica, que segundo Varnhagen só compete à primeira parte. Ainda segundo Varnhagen é de autoria dele próprio a organização do índice da segunda parte. Veja o que escreveu o próprio Varnhagen a respeito: “O que sim fizemos a benefício dos leitores foi redigir um índice lacônico e claro, introduzindo nele, por meio de vinte títulos, a divisão filosófica da segunda parte, sem em nada alterar a ordem e numeração dos capítulos. Cremos com este índice, que será publicado em seguida destes comentários, ter feito ao livro de Soares um novo serviço.” Já sobre a restituição da verdadeira autoria da obra ao próprio Gabriel Soares de Souza, veja o que diz Varnhagen: O público sabe já como este livro corria anónimo, sendo que Cazal, Martins e outros o iam quase fazendo passar por obra de um tal Francisco da Cunha, quando as Reflexões Críticas, para acusar dele o autor, idade e título, chamaram a atenção dos literatos sobre o que haviam consignado: 1. °) a Biblioteca Lusitana (Tomo 2.°, p. 321); 2.°) a obra de Nicolau Antônio (Tomo 1) . Sobre esta fonte ainda se pode acrescentar que Varnhagen inseriu no final da obra comentários explicativos, que não constam na edição portuguesa, ou mesmo em nenhuma das cópias manuscritas analisadas por ele. Estes comentários visam principalmente dar esclarecimento maior ao leitor, para a compreensão de determinadas expressões utilizadas por Gabriel Soares. Em alguns momentos, porém Varnhagen elabora determinadas críticas ao teor da obra, levantando possíveis equívocos cometidos por Gabriel Soares. Não podemos deixar passarem despercebidas determinadas coincidências entre as datas das edições com determinados momentos históricos específicos. Em 1825, o Estado Português havia sido expulso definitivamente por intermédio das guerras de Independência do Brasil, Bahia (1823), Pará e por último da Cisplatina em 1824, o que vem a tornar prática às palavras contidas na declaração de Independência, atribuída ao infante português filho de Dom João VI, que desde 1822 se declarava Imperador do Brasil. Situação esta ainda não plenamente aceita e reconhecida por Portugal que ainda possuía esperanças de restaurar a unidade do seu antigo Império, visto que, aquilo que já esboçava a conformação de dois Estados soberanos diferentes, ainda estava sob o domínio de uma mesma casa monárquica, e o filho do velho Dom João, que se arrogava como paladino da Independência do Brasil, era na realidade o herdeiro da própria Coroa Portuguesa. Dentro deste contexto, é plenamente plausível que Portugal buscasse evidenciar e resgatar os seus laços históricos com o Brasil, resgatando a obra esquecida (por mais de dois séculos) de um colono português, fiel súdito de EL Rey, que se toma de paixões pelo Brasil e não pensa em subtrair a fortuna aqui adquirida para o Reino. A história de um português também dá testemunho de outros "bons" portugueses que procederam da mesma forma. Simulando a idéia de um só povo português (Soares, católico fervoroso, não faz menção a brasileiros, mas sim há portugueses, cristãos e súditos – ou seja - A fé, a lei e o rei.), uma só religião e um só Império separado apenas pelo mar. Esta linha de raciocínio estabelecida por mim, está fundamentada em determinadas notas da edição portuguesa de 1825, que de forma alguma pertencer ao escrito original do século XVI. A edição portuguesa intitula a obra - NOTÍCIA DO BRAZIL, DESCRIÇÃO VERDADEIRA DA COSTA DAQUELE ESTADO, QUE PERTENCE A' COROA DO REINO DE PORTUGAL, 'SITIO DA BAHIA DE TODOS OS SANTOS. - o que entra em 4 contradição com o que é escrito pelo autor no século XVI. Gabriel Soares fala em “terras marítimas da coroa de Portugal e Castela”. O que demonstra que a Coroa portuguesa ainda não havia reconhecido a independência do Brasil por época da publicação, além do evidente anacronismo (provavelmente proposital), visto que na época em que Gabriel Soares dedica sua obra a Dom Cristóvão de Moura, em 1° de março de 1587, ele escreve em Madri e não em Lisboa. E por esta época, não havia na prática Coroa Portuguesa, conforme está escrito na publicação portuguesa de 1825. Gabriel Soares fala de uma “coroa de Portugal e Castela”, e a historiografia brasileira irá se referir mais tarde a este período utilizando o termo “União Ibérica”. A versão produzida por Varnhagen é produto do exame e comparação de várias cópias do mesmo manuscrito, enquanto que a versão portuguesa é produto do exame de uma única cópia, além das interferências e anacronismos produzidos pelos editores da edição portuguesa, com o intuito de demonstrar uma relação de pertencimento do Brasil (já independente) em relação à Coroa Portuguesa, observações estas, que não podiam evidentemente pertencer ao espectro de preocupações do autor quinhentista. A edição comentada e organizada por Varnhagen, em 1851, está em um contexto diferente, pois a Independência já é um fato estabelecido e inquestionável. Desta vez a apropriação de Gabriel Soares de Souza será feita por brasileiros e para brasileiros, a exemplo do que já havia ocorrido na mesma época com obras e relatos que reproduziam o passado "Nacional", e interpretava o Brasil segundo uma construção intelectual, que criava uma nova “história oficial”, sob os auspícios do nascente Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, patrocinado e politicamente organizado segundo os interesses do poder moderador. O resgate e revisão da obra, por Varnhagen estão relacionados à necessidade de construção e legitimação do Estado Nacional Brasileiro, à procura das raízes que pudessem ser interpretadas como legitimamente brasileiras. A necessidade de providenciar fontes que permitissem a construção de um discurso histórico que dessa identidade própria ao passado brasileiro dissociando-o da idéia de ser este passado um mero capítulo da Historia Portuguesa. Finalizando a primeira parte é feita uma breve revisão bibliográfica enfatizando o fato de que desde fins do século XVI, a obra de Gabriel Soares de Souza tem sido apropriada por inúmeros historiadores, porém, quase sempre com a finalidade de reiterar as suas idéias sem que haja intenção de verificar qual é a parte construída por Gabriel Soares. Por isso, em sua primeira parte, este estudo se dedica a recompor a narrativa de Gabriel Soares, bem como identificar alguns de seus usos pela historiografia. Depois de citados brevemente os autores da historiografia colonial que se utilizaram de Gabriel Soares até Varnhagen - seu mais famoso comentador. Procura-se estabelecer um debate pontual em torno de questões específicas com alguns autores de relevância do século XX e XXI, que se apropriaram de “Tratado Descritivo do Brasil em 1587”, a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e mais recentemente John Manuel Monteiro, buscando as possíveis divergências de uma visão histórica sobre um mesmo passado. Na segunda parte, o estudo se dirige exclusivamente para as apropriações de Gabriel Soares de Souza empreendidas por Gilberto Freyre em Casa-grande e Senzala. Além da importância de Gilberto Freyre na Historiografia Brasileira, pesou como critério de escolha da obra historiográfica a ser estudada, o fato do autor Pernambucano ter feito um largo uso da obra de Gabriel Soares como fonte primária. Aliás, Tratado Descritivo do Brasil em 1587 é a fonte mais citada no livro de Freyre. Em essência, o que se busca é a verificação do grau de importância da obra de Gabriel Soares de Souza (século XVI) no discurso de Gilberto Freyre (século XX). Ou melhor, de que forma o discurso historiográfico do século XX se apropria do discurso produzido nos XVI, para reconstruir a gênese de uma suposta "brasilidade". Neste sentido 5 há de se estabelecer uma "via de mão dupla", comparando o que foi escrito por Gabriel Soares com aquilo que foi apropriado por quem o interpretou. Este procedimento se faz necessário por compreender que o autor e seu intérprete, falam de diferentes contextos históricos, com interesses que são pertinentes unicamente ao seu próprio tempo. Não se busca evidentemente, com isso, estabelecer qual dos discursos é o mais verdadeiro, o da historiografia do século XX ou a do século XVI, visto que "o conhecimento histórico é historicamente produzido" e que a história, enquanto conhecimento é uma construção - uma representação da realidade - e não o real em si próprio, tal como é, ou foi algum dia. A partir de uma leitura prévia de Casa-Grande e Senzala, teve-se a impressão de que Freyre sustentava boa parte de sua obra em Gabriel Soares, utilizado para referendar suas teses, e para contrapor argumentos de outros estudiosos e informações contidas em outras fontes primárias, ou ainda preencher determinadas lacunas na ausência de outra documentação disponível. Aparentemente, através das primeiras leituras, ficou a impressão de que Freyre era um dos autores que se valia dos escritos de Gabriel Soares com mais rigor, atribuindo-lhe as idéias e conhecimentos que são normalmente atribuídas ao senso comum em detrimento de existir autoria, tomando-o como testemunho preferencial, e sempre reproduzindo o discurso do autor quinhentista em conformidade com o próprio teor da obra Tratado Descritivo do Brasil. Após uma pesquisa mais aprofundada, comparando as duas obras, chegou-se à conclusão de que boa parte da hipótese inicial se confirmava, porém, em determinados passagens Freyre, recortava trechos que entravam em conformidade com sua teoria e omitia trechos correlatos de Gabriel Soares que comprometiam a validez de seu discurso. E por fim valia-se de polissemias para atribuir a Gabriel Soares conclusões que eram apenas suas.