Manuel Joaquim Pinho Moreira de Azevedo O ensino secundário na Europa, nos anos noventa O neoprofissionalismo e a acção do sistema educativo mundial: um estudo internacional. Dissertação de Doutoramento em Ciências da Educação sob orientação do Prof. Doutor António Nóvoa. Universidade de Lisboa Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Lisboa,1999 iii “Através do sociólogo - agente histórico historicamente situado, sujeito social socialmente determinado - a história, isto é, a sociedade na qual ele subsiste, volta-se por um momento sobre si própria e faz uma reflexão; e, através dele, todos os agentes sociais podem saber um pouco melhor o que são e o que foram”. Pierre Bourdieu “Nós não sabemos o que se passa e é isso justamente o que se passa”. Ortega y Gasset “A realidade não é claramente legível. A nossa realidade não é mais do que a nossa ideia da realidade”. Morin e Nair “As revoluções não são aceleradores da história, mas travões para refrear uma evolução que, entregue a si mesma, leva à catástrofe. Trata-se de fazer melhor, evitando o pior”. Walter Benjamim iv v Agradecimentos Registamos uma palavra de gratidão para com pessoas e organizações que nos apoiaram directa e tecnicamente na realização desta investigação. Aos nossos interlocutores em cada um dos países, que nos abriram muitas portas: Jens Pehrson, Inspector Geral de Educação, da Dinamarca; Alejandro Tiana Ferrer, Professor da UNED, na altura Director do INCE, da Espanha; Jukka Sarjala, Director Geral do Ministério da Educação, da Finlândia; Alain Michel, Inspector Geral da Educação, de França; Mark Frequin, do Ministério da Educação da Holanda; Ugo Panetta, do Ministério da Educação da Itália; Morten Lauvbu, do Ministério da Educação da Noruega; Ulf Lundgreen, da Agência Nacional para a Educação, da Suécia; Michel Rohrbach, da Confederação Suiça dos Directores Cantonais da Instrução Pública. Ao CIDE-Centro de Investigación y Documentación Educativa do Ministério da Educação de Espanha e à sua Biblioteca, sempre disponível no apoio bibliográfico. À Associação Industrial Portuense, pela disponibilidade que me proporcionou e pelo apoio logístico oferecido. Aos meus amigos José Matias Alves e José Maria Azevedo, pelas sucessivas leituras de textos mais ou menos dispersos e pelo seu incentivo contínuo. E, por último, uma especial palavra de agradecimento ao meu orientador, Prof. Doutor António Nóvoa, pela sua enorme disponibilidade, pela sua atenção gratuita e pelo seu efectivo apoio científico ao longo do estudo e uma última palavra para recordar a minha família, sempre presente e sempre disponível. vi vii Resumo Na primeira metade dos anos noventa, ocorreram, em vários países da Europa Ocidental, processos de reforma educativa que visaram integrar percursos e modalidades de ensino e de formação de nível secundário e desespecializar as formações de tipo técnico e profissional. Tendo por objecto de análise as reformas neoprofissionalistas do ensino e da formação de nível secundário, em nove países europeus, esta investigação ergue-se com base em quatro hipóteses: (i) estas reformas são uma expressão de uma crise política generalizada acerca da função social do ensino e da formação de nível secundário e evidenciam a presença de conflitos entre as racionalidades configuradoras das políticas para este sector; (ii) as reformas seguem preferentemente o funcionalismo técnico -económico, como motor da acção política, e o ensino geral académico, como modelo de organização; (iii) ao seguirem o modelo do ensino geral académico, as reformas neoprofissionalistas especializam o ensino e a formação de nível secundário na função propedêutica de estudos posteriores, legitimando uma ordem social existente, mais do que um outro modo de promoção de uma formação de base, mais aberta e promotora do desenvolvimento de cada ser humano; (iv) os decisores políticos nacionais, no palco europeu, agem simultânea e similarmente, sob o efeito do sistema educativo mundial, que exerce um efectivo poder estruturante das retóricas e das políticas educativas nacionais. A investigação sustenta-se em contributos teóricos da sociologia da educação e da sociologia do trabalho e segue um percurso que contempla uma análise da evolução histórica do ensino secundário na Europa e uma viii pesquisa que se realizou em dois tempos e modos: o primeiro consistiu na análise documental das reformas educativas dos nove países europeus escolhidos e o segundo traduziu-se na realização de um inquérito junto de um conjunto de actores sociais relevantes, seleccionados em cada um dos nove países. A investigação decorreu de modo sequencial entre 1993 e 1998 e teve como principais motivações tanto a experiência política do autor, na área educativa, quer no plano nacional quer no plano da representação do país a nível internacional, como a sede de desocultar e conhecer o que realmente se passa, sob a aparência do que se está a passar. ix Abstract During the first half of the nineties, processes of educational reform occured in several Western European countries, aiming to integrate upper secondary education and training pathways and modalities and to de-specialize technical education and training. This research project’s subject of analysis deals with neovocationalist reforms of education and training at upper secondary level, in nine European countries, built upon four hypothesis: (i) these reforms are the expression of a general political crisis regarding the social role of education and training at upper secondary level; highlighting conflits between rationalities that shape the policies for this sector; (ii) these reforms follow mostly technical-economic functionalism, as the motor of political action and the general academic education, as the educational organizational model; (iii) the neovocationalist reforms, by following the general academic education model, specialize the upper secondary education and training in the propedeutic function for further education, thus legitimating an existing social order, more than another form of promoting a basic training, more open and able to promote the development of every human being; (iv) national policy-makers act, in the European set, simultaneously and similarly, under the effect of the world educational system, which actually has a structuring impact on the national education rethorics and policies. This research is based on the theoretical contributions from educational sociology and labour sociology, including an analysis of the historical evolution of secondary school in Europe and a research carried out in two x phases and under two methods: firstly, a documental analysis of school reforms developed in the nine selected countries; secondly, an empirical research based upon a survey targeted to a set of relevant actors selected in each of those nine countries. This research took place sequencially from 1993 to 1998 and its main motivations were the author’s political experience in the field of education, at national level and as national representant abroad, as well as the will to unveil and learn how reality is really like beyond the illusionary process of keeping up appearances. xi Sumário Prefácio Um acto perguntador Capítulo 1 A ordem e a desordem no ensino secundário Uma selva sem identidade? Os principais modelos de referência Os modelos escolar, dual e não-formal Tipos de ensino e de formação Tipologia de diversificação curricular Diferentes modelos de integração Uma polarização dominante Tensões entre finalidades Profissionalismo e neoprofissionalismo Desespecialização e desprofissionalização Capítulo 2 Introdução geral à investigação Reformas integradoras e desespecializadoras xix-xxv 1 1 3 6 13 24 31 35 40 45 49 55 59 As hipóteses de partida 64 Principais opções metodológicas 70 Um estudo internacional 72 Delimitação do campo de análise 79 A pesquisa documental 82 Questionário: objectivos e limites 85 Pesquisa empírica : quem inquirir e como inquirir 89 O questionário e as suas partes 92 Capítulo 3 A educação e a economia: desocultar a força de um encadeado ideológico 3.1. A sociologia da educação e a correspondência entre educação-economia O funcionalismo e a teoria do capital humano 97 98 98 Uma evidência sempre interrogada 105 A reprodução das relações sociais de produção 109 As credenciais e a sua função de informação 115 xii Uma “falácia” chamada ensino profissional 120 Um desajustamento “praticamente inevitável” 124 Um alargado desajustamento estrutural 132 As teorias da não-correspondência 138 3.2. A sociologia do trabalho e os novos mandatos da economia 146 As novas tecnologias e o pós-fordismo 149 Da crise ao pós-fordismo, passando pelo neo-fordismo 153 A produção flexível e a flexibilidade 163 Qualificação, requalificação e desqualificação 170 Teorias da segmentação do mercado de trabalho 182 Das qualificações às competências: o que muda? 186 O ensino geral como modo de especialização 194 3.3 A globalização e o sistema educativo mundial 200 A globalização, um processo multidimensional 202 A educação, uma instituição mundial 209 A teoria do sistema mundial 211 Convergência e divergência 215 A construção e a acção dos modelos educacionais A consolidação do Estado-nação e a expansão da escolarização 223 225 de massas Expansão da ideologia da modernização 233 A evolução do sistema económico mundial 236 O sistema de comunicação científica 239 A acção prolongada das organizações internacionais e o caso 245 da UE A educação comparada e internacional 250 A externalização dos sistemas nacionais 261 A construção do sistema educativo mundial 264 Capítulo 4 O ensino secundário na Europa (1945 1995) 271 Os anos dos grandes mitos e a expansão da oferta e da 272 A unificação e o ensino de massas 283 Os “choques” dos anos 70 e os anos de crise 288 Um profissionalismo crescente 294 Anos 80 e 90: ensino secundário, uma alternativa 309 xiii Um novo mandato económico internacional 319 Uma retórica optimista e valorizadora da formação geral 324 Capítulo 5 As recentes reformas do ensino e da formação de nível secundário (anos 90) 339 O caso da Dinamarca 341 O caso da Espanha 354 O caso da Finlândia 369 O caso da França 378 O caso da Holanda 389 O caso da Itália 404 O caso da Noruega 417 O caso da Suécia 430 O caso da Suiça 447 As reformas da integração e da desespecialização 453 Uma acentuada desespecialização nos Anos 90 457 Concluindo 479 Capítulo 6 O neoprofissionalismo em questão 483 O ajustamento face ao desemprego 486 Um ajustamento à procura social 488 O ajustamento face às novas competências 493 O ajustamento ao mundo empresarial 497 O impacto do sistema educativo mundial 503 Processo de unificação e função propedêutica: ligações 506 Um conflito entre mandatos societais 511 O corpo das hipóteses de investigação 517 Capítulo 7 O inquérito e os seus resultados 527 As motivações e os objectivos das reformas 531 A atracção pela formação geral e a desespecialização da 550 A decisão política: pressões internas e externas 565 Adesão-resistência às reformas 574 Conclusão geral 578 xiv Capítulo 8 Reflexão final e conclusões Um desequilíbrio -reequilíbrio entre racionalidades 584 A evolução da economia e da procura social 589 A “formação geral” como modo de especialização 595 A acção do sistema educativo mundial 602 A ambiguidade das reformas neoprofissionalistas 608 Síntese de um percurso em espiral 612 Principais conclusões da investigação 616 Limites da investigação e sugestões para novas aborgagens 631 Nota final, em jeito de pósfacio 637 Bibliografia Anexos 647-680 Questionário Quadros complementares Lista dos respondentes, país por país Ficha 583 683 701-706 707 719 xv Relação de quadros, gráficos e figuras Quadro 1.1. Quadro 1.2. Quadro 1.3. Quadro 1.4. Figura 1.1. Figura 3.1. Quadro 3.1. Quadro 3.2. Quadro 4.1. Quadro 4.2. Quadro 4.3. Quadro 4.4. Quadro 4.5. Quadro 4.6. Quadro 4.7. Gráfico 4.2. Figura 5.1. Quadro 5.1. Figura 5.2. Síntese comparativa entre modelos de ensino e de formação dominantes no ensino secundário (grupo etário 16 - 19 anos). Comparação entre países da Europa relativamente à duração da escolaridade obrigatória e ao início da diversificação escolar (1995). Tipologia da incidência da diversificação escolar. Tipologia de sistemas de ensino secundário segundo o grau de integração/diversificação. Polarizações dominantes exercidas sobre o ensino secundário inferior e superior. Hierarquia dos espaços da empresa e seu diferente posicionamento face à mudança. Do fordismo ao neo e pós-fordismo: caracterização de modelos de desenvolvimento nacional. Dimensões do processo de globalização. Taxa de crescimento do número de alunos inscritos no ensino secundário superior em alguns países europeus 1960-1970. Proporção da população de dois grupos etários que terminou pelo menos os estudos secundários de segundo ciclo (1992). Taxas de desemprego de jovens em países da OCDE. Evolução da distribuição das frequências segundo o tipo de ensino secundário. Os investimentos do Banco Mundial no Ensino Técnico e Profissional (1963-1988). Evolução das taxas de escolarização de estudos superiores (1980 - 1992). Taxas de desemprego juvenil (15-24 anos) em países da OCDE. Do triângulo ao hexágono. Organigrama do sistema escolar da Dinamarca -Ensino Secundário. Distribuição da população escolar após a escolaridade obrigatória, na Dinamarca, entre 1981/82 e 1990/91. Organigrama do sistema educativo Espanhol - LOGSE (1990). 13 26 27 34 39 157 164 207 276 277 291 307 309 313 314 323 342 343 357 xvi Figura 5.3. Quadro 5.2. Figura 5.4. Quadro 5.3. Articulação entre o sistema de ensino geral e o sistema de formação profissonal específica (FPE). Evolução da frequência da FPI, FPII, Ciclos Formativos de grau Médio e de Grau Superior, em Espanha, entre 1987 e 1997. Organigrama do Sistema Edcuativo da Finlândia-Ensino Secundário. Novas Áreas de formação técnico-profissional no ensino secundário na Finlândia (reforma de 1991). 361 366 370 373 Figura 5.5. Processo de Experimentação entre 1991 - 1999. 375 Figura 5.6. Organigrama do sistema educativo em França. 380 Quadro 5.4. Distribuição da frequência do ensino secundário superior em França 1992/1993. 382 Figura 5.7. Organigrama do sistema escolar holandês. 391 Frequência dos estabelecimentos de ensino secundário de 1970 a 1990. Fluxos de transição dos alunos entre modalidades de ensino e escolas. Distribuição das frequências do ensino secundário superior em Itália por tipo de escola (1991/92). 394 Figura 5.10. Sistema educativo em Itália. 408 Quadro 5.6. Componentes de formação dos cursos dos Institutos Profissionais. 412 Quadro 5.7. Estrutura de áreas de formação adoptadas em Itália. 413 Quadro 5.5. Figura 5.9. Gráfico 5.9. Quadro 5.8. Quadro 5.9. Figura 5.11. Situação (a 1 de Outubro de 1992) dos jovens que concluiram a escolaridade obrigatória na Primavera de 92, na Noruega. Progressão do número de especializações dentro do ensino secundário superior na Noruega (1994). Nova organização do ensino secundário na Noruega. Oferta educativa da escola secundária superior integrada na Suécia. Percentagem de alunos que tendo terminado a escolaridade obrigatória se matricularam no ano lectivo Quadro 5.10 seguinte no ensino secundário superior (escolas públicas), na Suécia. Alunos no ensino secundário superior (local, regional e Quadro 5.11. independente) segundo o tipo de estudos que frequenta (1988-1992), na Suécia. Figura 5.12. 393 405 419 423 425 432 435 435 xvii Figura 5.13. Quadro 5.12. Figura 5.14. Quadro 5.13 Quadro 5.14. Quadro 5.15. Quadro 5.16. Quadro 5.17. Gráfico 5.15. Quadro 5.18. Gráfico 5.16. Quadro 7.1. Quadro 7.2. Quadro 7.3. Quadro 7.4. Quadro 7.5. Quadro 7.6. Quadro 7.7. Quadro 7.8. Distribuição dos alunos do 1º ano do ensino secundário 436 superior, na Suécia (outubro de 1993). Novas áreas de formação/programas nacionais de 443 ensino secundário na Suécia. Organigrama do sistema educativo da Suiça - ensino 448 secundário. 454 Elevação do nível de formação geral, entre 1960 e 1990, dos que saem do sistema de ensino secundário. 456 Matriz comum aos percursos de formação sistemática pós-obrigatória em Portugal (1992). Desespecialização no Esino Técnico e Profissional na 459 Europa. Evolução da participação dos jovens de 16 e 17 anos no 466 ensino e na formação. Evolução da distribuição das frequências segundo o tipo 468 de ensino secundário (Tempo inteiro + parcial). Evolução das frequências do ensino secundário “Geral” 469-471 e “Técnico e Profissional”, entre 1970 e 1995. Tendências da evolução do ensino secundário ”Geral”, 472 na Europa (anos 90). Evolução do desemprego na área da OCDE (1950480 1996). Distribuição dos respondentes por país e segundo o tipo 528 de actor social. Questionário enviados e recebidos, por país e por actor social. Pincipais razões que levaram os responsáveis políticos a desencadearem as reformas. Aspectos mais relevantes (entre “os muito relevantes”) que levaram os responsáveis políticos a desencadear as reformas, segundo os actores inquiridos. Em poucas palavras, a reforma do ensino secundário visou essencialmente o seguinte objectivo. As reformas escolares, para além do modo como foram veiculadas pelos decisores políticos, correspondem efectivamente, na opinião dos actores sociais, a um processo centrado sobre. Qual das afirmações traduz melhor a finalidade principal das reformas em análise. Valorização de afirmações sobre a relação escolaempresa. 529 535 539 541 543 547 549 xviii Quadro 7.9. Quadro 7.10. Quadro 7.11. Quadro 7.12. Quadro 7.13. Quadro 7.14. Quadro 7.15. Quadro 7.16. Quadro 7.17. Motivos a que se fica a dever a redução do número de especializações no ensino e na formação ao nível do ensino secundário. Resultados esperados para as reformas de desespecialização e de integração curricular, considerando a história de cada País. Porquês da promoção da ampliação dos troncos comuns, da desespecialização e da integração curricular no ensino secundário, na óptica dos actores sociais. Modos como os actores sociais valoram a formação”geral” e o ensinotécnico-formação profissional antes das reformas. Pressões internas sobre as reformas do ensino e da formação ao nível secundário. Organismos internacionais que influenciaram as reformas nacionais. Em que é que, do ponto de vista do conteúdo, foi mais notória a influência de organismos internacionais. De que modo concreto é que a influência internacional se exerceu. Comparação entre o peso das influências internas e externas sobre a decisão política das reformas. Quadro 7.18. Adesão e resistência às reformas. Quadro 7.19. Quadro 8.1. As resistências sociais à reforma empreendida partiram sobretudo de que sectores. Elementos de compreensão do modo de funcionamento do sistema educativo mundial. 555 557 559 562 567 569 572 573 574 576 577 630 xix Prefácio Um actor perguntador Não é só a razão que comanda os impulsos em direcção à investigação. Talvez nunca o tenha sido, mas, como um dia ouvi dizer, esse é um segredo não revelado. Talvez seja bem mais determinante a torrente das águas impetuosas que inundam o leito da existência de cada um. O autor desta investigação, durante duas décadas de vida profissional no campo da educação, embrenhou-se por entre práticas e crenças, formulou políticas e executou projectos, enleou-se em enigmas e em evidências, na tentativa de se situar na desordem envolvente, consciente da sua condição de actorautor, balanceando permanentemente, como todos os outros actores e autores, entre o nascimento e a morte. Ao longo dos anos, manteve os ouvidos e os olhos abertos para uma imensidão de vozes, diversas e conflituosas, debaixo de um manto de consensos que porventura nunca terão existido. Habituou-se a navegar num mar de perguntas, inúmeras e desordenadas, não como prática de investigador mas como atitude permanente diante das coisas e da vida. À medida que os anos iam passando, a arca das perguntas enchia-se, a par de uns quantos papéis e notas que parecia darem contributos pertinentes para a compreensão dos fenómenos que o actor e autor observava e em que participava. Às perguntas do estudante e do dirigente estudantil sucederamse as do professor, nos fins dos anos setenta. Depois veio o olhar, o ouvir e o sentir do técnico de planeamento regional da área da educação e o contacto com um território, o norte de Portugal, as suas gentes, as suas inquietações, anseios e projectos, vieram as equipas de trabalho e os primeiros estudos no terreno: os abandonos escolares em áreas rurais, o xx ensino técnico e profissional, o papel e a imagem dos professores, as opções escolares e profissionais dos jovens. E aí, cada uma das perguntas de partida transformava-se num emaranhado de questões de percurso e, sempre, em novas perguntas à chegada. Tínhamos muito gosto em fazer essa escalada que vai da informação até ao conhecimento e, por vezes, durante breves segundos, ousávamos pensar ter alcançado a sabedoria. Seguiram-se, nos últimos dez anos, a experiência de activa participação na construção de uma "reforma educativa", o período de direcção da administração pública no domínio da educação, em particular no ensino secundário, e a fase da governação, na mesma área. Paradoxalmente, aquele que parecia ser o tempo privilegiado das respostas, da sobrelevação das crenças e das soluções estruturadas, pouco mais foi do que o tempo da experimentação dos maiores limites, o terreno fértil de novas e bem mais demolidoras constatações e interrogações. O tempo primordialmente predestinado ao fazer destinou-se mais ao ouvir. A torrente das perguntas, supostamente em "stand by", irrompia no momento mais inoportuno. Em contrapartida, a visão ampliava-se, percorria caminhos insuspeitados, novos ângulos de abordagem se impunham e um sem número de evidências eram abaladas e, quantas vezes, desmoronavam-se, caindo, por vezes espectacularmente, no mais calado silêncio, como se a vida fosse sobretudo o defluir de um filme sem som. Os palcos internacionais de encontro na área da educação sucederam-se, anos a fio, com destaque para os cenários da UNESCO, da União Europeia e da OCDE, particularmente do CERI-Centre d´Études et Recherches sur l´Innovation. As políticas de educação e de formação passavam velozmente a ser tomadas como instrumento de tecnologia social e as políticas nacionais de educação começavam a ficar cada vez mais submersas pelo peso compressor das dinâmicas de reflexão e pelas sucessivas recomendações e até iniciativas políticas dos organismos internacionais. xxi O nascimento de novas perguntas significava o esquecimento e a morte de umas quantas anteriormente enunciadas. E, assim, lentamente, sem rumo definido, sem sobredeterminação racional aparente, renovaram-se os "stocks" de interrogações, mudaram-se os olhares, fizeram-se e refizeram-se planos de pesquisa, que por três vezes se encetaram, entre 1987 e 1994. O ensino secundário foi o terreno que se impôs pela sua centralidade na experiência pessoal do autor, embora a escolha do objecto de investigação tenha apenas surgido após sucessivos actos eleitorais interiores. Dentro da problemática das reformas do ensino secundário emergiu paulatinamente um problema particularmente interessante. Ao mesmo tempo que uns países continuavam a investir na profissionalização do ensino secundário superior, criando até novas vias de especialização técnica e profissional, muitos outros empreendiam várias reformas que apostavam claramente na desespecialização e na unificação de percursos escolares, até então separados por vários ramos e até por diferentes tipos de escolas. A paixão por este problema não resultou de uma escolha muito objectiva e racionalizada. Como em todas as paixões, o que sabemos é tãosimplesmente que estamos apaixonados, raramente sabemos quando, onde ou como foi que isso aconteceu. Os discursos reformadores e os seus relatórios políticos de suporte eram lidos com avidez. Neles emergia, como no laboratório fotográfico, uma inquietante convergência na consideração da necessidade de se proceder a um urgente reforço da formação "geral", ao abandono das vias de especialização, à desprofissionalização do ensino secundário e a um "regresso em força à cultura geral", como se afirmava. Documento atrás de documento e conversa atrás de conversa levantava-se um rol de interrogações sem resposta. xxii Em Phoenix-Arizona, por ocasião de um seminário internacional da OCDE sobre os novos papéis do ensino técnico e da formação profissional, em Março de 1991, uma questão sobrepôs-se a tantas outras, em páginas e páginas de notas: porquê este movimento, aparentemente tão inesperado e drástico, de desespecialização e de unificação porque é que ele ocorrerá simultaneamente e tão similarmente em tantos países do continente europeu? Como seria de esperar, o terreno da acção política e da participação cívica foi, por força das águas deste rio, o terreno da emergência de uma pergunta que não mais abandonaria o núcleo das motivações pessoais. É este terreno que, ao mesmo tempo, abre e fecha e caracteriza o olhar do autor e disso se dá conta, sem rodeios. Ao longo destes anos os materiais continuaram a recolher-se e a acumularse: artigos de revistas, livros, publicações oficiais de muitos países, e até estudos oferecidos e ainda por publicar. As conversas em roda da questão sucederam-se, muitas vezes com interlocutores bastante qualificados, em encontros, seminários e conferências internacionais. Estes contactos pessoais revelam-se, revistos agora da frente para trás, como um elemento decisivo na fabricação do olhar do sujeito sobre o objecto a investigar. E, uma vez conseguida a necessária disponibilidade, iniciou-se um novo ciclo de relacionamento com a problemática seleccionada, o ciclo da investigação. A questão de ontem já não era a questão de hoje; ela surgia agora envolvida por satélites de conceitos, tais como novo sistema produtivo, desemprego estrutural, globalização, mercados de trabalho, requalificação e desqualificação, procura social de ensino, credenciais escolares, unificação escolar, unificação curricular e unificação institucional, mimetismo social, convergência internacional e sistema educativo mundial. xxiii A pergunta de partida reformulava-se, fazendo surgir novos contornos no objecto de investigação. A desespecialização e a desprofissionalização que marcam, de modo similar e simultâneo, vários países europeus, mormente os seus percursos de ensino técnico e profissional do ensino secundário, corresponderão a um objectivo de reforço das competências humanas dos cidadãos ou traduzirão sobretudo uma nova etapa na subordinação dos sistemas de ensino aos mandatos da economia, agora em profunda reestruturação? Assiste-se efectivamente a uma reorientação das finalidades educativas do ensino secundário ou antes se reforça, agora com um novo rosto, a sua finalidade produtiva? Como é que os actores sociais se apropriam destas novas orientações? Que sentido lhes atribuem? Que rumos gerais norteiam a evolução do ensino secundário na Europa, às portas do Séc. XXI? A construção da União Europeia viria a realçar, ano após ano, nos anos noventa, a perspectiva de que está em lenta construção um sistema educativo europeu. As intervenções cada vez mais numerosas e mais orientadoras e sustentadas da Comissão Europeia nos domínios da formação profissional, do ensino técnico e da educação escolar, em geral, configuram um terreno propício à manifestação de processos isomórficos e de homogeneização supranacional capazes de influenciarem vigorosamente a evolução dos sistemas educativos dos países membros ( e até dos não membros). A constituição, em 1997, do Europasse-formação constitui talvez o facto mais paradigmático da evolução que se está a desenhar, como que imperceptivelmente1. É este o problema que sucessivas interrogações, formuladas anos a fio, a tempo e a destempo, foram resgatando à voragem dos dias. Uma vez retirado do fluxo ininterrupto das coisas e da vida e em ordem a conferir-lhe 1 Cfr. documentação produzida pela Direcção Geral XXII sobre esta matéria, em 1997. xxiv um outro sentido, decidimos reinscrevê-lo em novas lógicas de inteligibilidade potencial (Berthelot, 1996). Em resumo, foi no seio de uma acção política concreta e pessoal que se ergueram, como uma bola de neve, certas evidências e alguns enigmas em torno dos novos rumos do ensino secundário na Europa, uma longa série de perguntas sem resposta ou com respostas insatisfatórias, demasiado envoltas no verniz dos discursos políticos. Ao assinalá-lo o autor quer tornar bem explícito o facto de que esta experiência pessoal impõe um certo modo de ouvir, de olhar, de pensar e de comunicar, que se assume com todos os seus limites e todas as suas virtualidades. O rasto de conhecimento que se empreendeu e de que aqui se dá conta, destrói uns enigmas e reconstrói outros e porventura constrói novas evidências. Mas é assim. Ambos são o vento que anima os dias que correm, céleres, aparentemente sem princípio nem fim. Deste modo, o objecto da investigação foi eleito no seio de uma experiência pessoal de acção social, e aí andou envolto no jogo dos actores em que o autor se envolveu. Ao vincar este percurso pessoal o autor quer tão-só assinalar, como primeiro passo de enunciação metodológica, a emergência do observador no objecto observado: ele determina a natureza da observação e influi no fenómeno observado. Desde a eleição do próprio objecto, da sua descrição e explicação, passando pela escolha dos campos teóricos de análise, pelos modos de interrogar a problemática, até às escolhas metodológicas, em todos os passos se respira a subjectividade do investigador. O autor simultaneamente reconhece, com Boaventura Sousa Santos (1987), que o conhecimento adquirido no exercício profissional é um saber com um sabor indisciplinado e indisciplinar que, embora capaz de lançar perguntas xxv ao objecto, tem muita dificuldade em romper com o conhecimento existente, um saber que navega nas águas de um rio imensamente fluente que é o rio da retórica política, sempre evidente, convincente, prático e superficial. O autor reconhece também que a manifestação inequívoca da personalidade do observador no observado e da união íntima e inexpurgável de quem estuda aquilo que estuda, marca o processo de investigação com vários riscos, entre os quais se encontra o de tomar como resultados da investigação as suas opiniões, resultantes de uma grande e contínua familiaridade com o objecto em análise. Partiu-se, assim, para a construção de um percurso pessoal de investigação que favorecesse um forte distanciamento crítico em relação ao tipo de conhecimento anteriormente construído sobre o objecto, sujeito à irrupção fácil de preconceitos e de falsas evidências. Desse percurso se dá conta nas páginas que se seguem. Com todos os seus limites, e são muitos, ele enriqueceu muito o autor. Fica-lhe particularmente registada a necessidade de maior rigor analítico permanente, a consciência da complexidade do real e dos grandes limites ao seu conhecimento profundo, a consciência de que somos um elo na cadeia do conhecimento humano e de que a solidariedade é a massa invisível com que se forja a ciência. E, como diz Karl Popper "quando nos damos conta de que não podemos trazer o céu à terra, mas tão-só melhorar as coisas um pouco, também vemos que só podemos melhorá-las pouco a pouco". 1 Capítulo 1 A ordem e a desordem no ensino secundário. A análise da problemática (aqui entendida como uma organização rudimentar de um campo de fenómenos que permite identificar problemas, em ordem a uma investigação) da crescente integração curricular e da desespecialização que ocorrem simultaneamente no ensino secundário na Europa, com particular ênfase nos anos noventa, reclama antes de mais a procura, entre a ordem e a desordem que o caracterizam, de um "espaço de visibilidade" próprio (Almeida e Pinto, 1995:18) e uma definição conceptual estável, em torno de termos cujo controlo semântico se torna crucial, tanto mais que se empreende uma abordagem de âmbito internacional. Os termos da linguagem comum relativos ao ensino secundário superior2 são de uma enorme variedade e amplitude semânticas e, frequentemente, os mesmos termos apresentam significados muito diversos, em função dos contextos sociais e históricos nacionais, dando lugar a um emaranhado bastante informe de significações. É com a caracterização deste tipo de ensino e de formação, em que se apresentam as suas diversas faces, e com a definição dos principais conceitos que mobilizaremos no presente estudo, que iniciamos o percurso de um conjunto de patamares analíticos que visam reconhecer e atribuir espessura e complexidade a uma problemática que consideramos crucial e profundamente actual nos sistemas educativos, em todo o mundo. Uma selva sem identidade? A diversidade patente no segmento do ensino secundário superior é enorme, 2Utilizaremos a designação de "ensino secundário" como equivalente à de "ensino secundário superior" ou de "ensino secundário de segundo grau", uma vez que, em Portugal, a primeira forma é a que corresponde às restantes, em outros países europeus. A delimitação destes conceitos é explicitada já em seguida. 2 o que lhe tem motivado a atribuição dos mais contundentes epítetos por parte de vários autores. Um relatório inglês sobre a situação do ensino pósobrigatório no Reino Unido, referenciado por Pedró (1992), descrevia o panorama de possibilidades que eram oferecidas aos jovens no ensino secundário como uma verdadeira "selva". O mesmo termo é referido por Leclercq (1992), conjugando-o com uma "impressão de complexidade excessiva e desencorajante". Por sua vez, J. Lesourne (1988), ao analisar as relações entre educação e sociedade, sublinha que é ao nível do ensino secundário de massas que se põem com mais acuidade as questões relativas a programas de estudo e a pedagogia. A amplitude dos problemas de conjunto que enfrenta hoje o ensino secundário e a profunda influência que sobre ele terão os desafios do futuro fazem dele "potencialmente a parte mais frágil do nosso sistema educativo" (Lesourne,1988:249). Depara-se, assim, ab initio, com a ausência de uma definição unívoca e comum (Pedró,1996) e com uma classificação algo paradoxal do ensino secundário, representado ao mesmo tempo como uma selva e uma parte frágil do sistema escolar. Ibarrola e Gallart (1994), embora situadas perante o contexto latinoamericano, referem ainda que este grau de educação "carece de identidade própria", o que é comungado por muitos outros autores europeus. Por um lado, porque é permanentemente atravessado e influenciado pelas políticas da educação básica e superior, seja enquanto prolongamento da escolaridade obrigatória seja como percurso propedêutico do ensino superior e ocasião de selecção daqueles que lhe devem aceder. Por outro, porque evoluiu de um ensino só para elites para um ensino de massas, que se confronta em permanência com a atribuição social de objectivos muito diversos e, em parte contraditórios ou, no mínimo, muito divergentes. É o caso, por exemplo, das funções de orientação e de selecção ou o caso das funções de preparação para a continuação de estudos superiores e de preparação para o exercício profissional imediato, a par das funções de 3 desenvolvimento das capacidades individuais e da formação de cidadãos responsáveis. Estamos, de facto, perante um segmento do sistema educativo onde existe uma irrecusável diversidade de situações e onde impera a dispersão da oferta escolar, contrariamente ao ensino básico, segmento onde, em geral, predomina o modelo unificado. Esta dispersão espelha a presença de uma multiplicidade de objectivos e de funções atribuídas ao ensino secundário superior. Garrido (1992) e Leclercq (1992) assinalam que esta diversidade é acompanhada por uma hierarquia entre percursos institucionais e entre cursos, hierarquia que se estabelece não só entre as formações escolares gerais e as formações técnicas e profissionais, mas também entre as diferentes modalidades destas últimas. Esta percepção comum acerca da multiplicidade de funções sociais do ensino secundário remete necessariamente para um terreno onde se confrontam diferentes racionalidades, não só em termos de opções políticas que se formulam para este nível de ensino, como também no que se refere às representações sociais que em torno dele se movimentam. É face a esta diversidade de racionalidades que se impõe começar por proceder à definição dos conceitos-chave que aqui se vão utilizar e, se possível, fazer ressaltar em categorias a variedade existente. Se este empreendimento tem a desvantagem de reduzir a complexidade e os particularismos, comporta em si mesmo a vantagem de revelar as grandes tendências que os estruturam e de sublinhar as diferenças nucleares que se mantêm entre os países europeus. Com base nestes conceitos e categorias cremos que será bem mais rigorosa esta empresa analítica. Os principais modelos de referência Na Europa, o ensino secundário compreende geralmente dois ciclos: um 4 primeiro ciclo ou grau, inferior, normalmente integrado na escolaridade obrigatória e sequencial em relação ao ensino primário, e um segundo ciclo ou grau, de nível superior, situado entre a formação geral , universal e básica e o ensino superior. O primeiro ciclo, regra geral, é unificado e o segundo ciclo é diversificado, não só em termos curriculares, mas inclusive do ponto de vista institucional. Podem tomar-se, por isso, como sinónimas as designações "ensino secundário de segundo ciclo", "ensino secundário superior", "ensino secundário de segundo grau". É este o ciclo escolar que aqui analisamos e que optamos por designar apenas por ensino secundário, que é aliás a designação actualmente usada em Portugal.3 No panorama europeu, o segmento do ensino secundário é o que apresenta a maior diversidade de situações nacionais e também o que maior controvérsia tem suscitado nos últimos trinta anos. Define-se como a componente dos sistemas educativos em que se englobam as modalidades de ensino e formação que são oferecidas no nível pós-obrigatório e os vários tipos de instituições formativas em que aquelas normalmente se desenvolvem - liceus, escolas secundárias, escolas técnicas e escolas profissionais. Exclui-se deste conceito o conjunto das modalidades de formação permanente, mas integra-se nele também uma série de iniciativas de qualificação inicial dos jovens que têm em vista facilitar a sua inserção socioprofissional, incluídas no que se costuma designar por sector de educação não-formal ou por programas de formação-emprego. Opta-se, assim, por um conceito abrangente de ensino secundário, pois nele não se abarcam apenas as tradicionais vias de ensino, a mais conhecida das quais é o liceu, mas um leque multifacetado de percursos de ensino e de formação profissional inicial. 3 Note-se, todavia, que o facto de tomarmos estas designações como equivalentes não significa que se desvalorizem as diferenças que lhes subjazem. Na verdade, o simples facto de o ensino secundário se iniciar no termo do ensino primário ou no termo da escolaridade básica e universal reflecte uma intencionalidade política, orientações e modos de organização diversos, de sistema educativo para sistema educativo, de país para país. 5 A oferta da educação secundária destina-se ao grupo etário 16-18/19 anos, variando em função do número de anos de duração da escolaridade básica e dos seus próprios cursos. O património analítico desta problemática considera que o ensino secundário de segundo ciclo se organiza em três sectores principais, a saber: o escolar, o dual e o não-formal ( cfr., por exemplo, Garrido, 1992; Pedró, 1992; OCDE, 1985). O sector escolar do ensino secundário compreende as instituições que oferecem, a este nível e para esta população, cursos normalmente estruturados em três percursos: o geral ou académico, o técnico e o profissional. O sector encontra-se sob tutela da administração educativa, havendo evoluções recentes em direcção a uma partilha de responsabilidades com outros departamentos da administração e com outros actores sociais. O sector dual ou de "aprendizagem" corresponde a uma oferta de formação profissional inicial que decorre ao mesmo tempo em centro de ensinoformação e em empresa. A tutela é mista, dos empresários e da administração pública, e os cursos conduzem à obtenção de certificações reconhecidas por ambas as partes. O sector não formal compreende uma panóplia de programas de formação e de formação-emprego, desenvolvidos com a intervenção do Estado e das empresas, que integra cursos de duração superior a um ano e cursos de curta duração. Este sector visa constituir uma alternativa aos estudos escolares e ao desemprego, abarcando, por isso, jovens que já saíram do sistema escolar e que procuram uma qualificação específica para ingressar no mercado de emprego. Ele não se confunde, todavia, com a educação informal, uma vez que se trata de formações organizadas e sistemáticas, com carácter deliberadamente qualificante e devidamente planificadas, 6 destinadas normalmente a grupos específicos da população. Adopta-se esta categorização na medida em que ela nos permite não só definir mais rigorosa e separadamente cada sector, que tem uma história e uma racionalidade próprias, como também ler melhor a diversidade inter e intranacional existentes na Europa. Será no ensino e na formação que se inscrevem no modelo escolar que esta investigação se irá centrar, como veremos mais adiante. Os modelos escolar, dual e não-formal Àqueles três sectores correspondem três modelos organizativos do ensino secundário, cuja predominância varia de país para país e cujas características importa definir. Aos diversos modelos organizativos da escolarização secundária subjazem diferentes modos de percepcionar a função social do ensino secundário e, consequentemente, modos diferenciados de seleccionar e de organizar os conteúdos e os processos educativos. Nesta selecção e organização intervêm também as culturas próprias de cada país, os seus modos de organização social e produtiva e o peso da estruturação tradicional do ensino secundário, segmento do sistema educativo dirigido anteriormente a uma pequena elite da população. Hoje, praticamente em todos os países europeus, encontramos os três modelos dominantes, mas, de país para país, difere a relevância de cada modelo, fruto também de tradições históricas diversas e de uma grande variedade de políticas nacionais e de políticas educativas. O modelo escolar tende a constituir-se como o modelo aglutinador de quase 7 todas as formas de escolarização pós-obrigatória no seio dos sistemas formais de ensino e aquele que melhor tem favorecido uma escolaridade pós-obrigatória de massas e a tempo completo. Ele agrupa os mais variados tipos de escolas ou institutos de ensino secundário, desde os liceus mais tradicionais, até escolas técnicas e escolas profissionais, conforme os países. Desenvolvido inicialmente nos EUA, este modelo de escolarização do grupo etário 16-19 anos, após a II Guerra Mundial, teve uma grande expansão em países como a Bélgica, a Suécia, a Noruega, a Dinamarca, a Holanda e a Finlândia, países onde, já em meados dos anos 80, mais de dois terços dos jovens de 17 anos estavam escolarizados. Este modelo é igualmente dominante em países que apresentam, no contexto europeu, as mais baixas taxas de escolarização, como a Turquia, a Grécia, a Espanha e Portugal, países estes onde o modelo dual coexiste com o modelo escolar, embora apresente sempre uma diminuta expressão. De forma muito pertinente, Husén (1990:40) identifica, na sua matriz, dois submodelos incluídos neste modelo mais geral. Para este autor sueco, tendo presente a estrutura e o currículo dos diversos subsistemas de ensino secundário, o modelo escolar comporta um submodelo bipartido e um submodelo compreensivo. O primeiro é um submodelo europeu tradicional em que as escolas académicas e as escolas técnicas ou profissionais coexistem como escolas paralelas; diferem bastante no "background" social da população que as frequenta e existe tradicionalmente um baixo grau de mobilidade entre elas. O segundo compreende escolas com uma enorme diversidade curricular em que todos os cursos estão sob o mesmo tecto. O tipo clássico da escola compreensiva é a "high school" americana, a que se veio juntar, segundo o mesmo autor, a "gymnasium school" da Suécia, onde a diversidade é acolhida num único tipo de escola. A certificação escolar a que se acede neste modelo está intimamente 8 associada à perspectiva de "transfer" ou de “transporte”, ou seja, à abertura das portas para o prosseguimento de estudos ainda que, em alguns casos, a certificação tenha o rosto de um diploma técnico ou profissional. A este modelo escolar, em que predominam diversas modalidades de formação a tempo inteiro e uma orientação em relação ao prosseguimento de estudos, está subjacente uma cultura "educacionalista", para usar a expressão de Kämäränien (1996), em contraponto com uma cultura "profissionalista", próxima do modelo dual, eminentemente articulada com a renovação da força de trabalho e assente na cooperação estreita entre escolas e empresas. O modelo de formação escolar dominante na Europa é o que contempla a diversificação institucional, havendo uma sulco histórico de separação, geralmente bastante rígida, desde os programas, aos tipos de docentes e aos diplomas, entre centros ou escolas de formação profissional inicial e escolas de ensino secundário geral ou liceus. Um dos mais sérios problemas de política educativa, nos países onde predomina o modelo escolar de organização do ensino secundário, prendese com a sua incapacidade em acolher, nas tradicionais modalidades escolares, a totalidade do grupo etário correspondente, deixando de fora uma percentagem mais ou menos significativa de jovens. Estes "grupos residuais" (Gordon, 1990) ou grupos resultantes do "insucesso da escola" (Banks, 1994), que podem atingir em casos extremos mais de 30% dos jovens do respectivo grupo etário, têm vindo a ser alvo de múltiplas iniciativas políticas nos domínios da formação e do emprego, que mais se aproximam dos modelos não-formal e dual , o que admite, desde logo, a enunciação da hipótese de que talvez se esteja, nos anos 90, perante um novo cenário em que terá deixado de existir o modelo escolar, puro e tradicional, passando a haver combinações diversas entre os modelos 9 organizativos, neste caso sempre sob a predominância do modelo escolar e geralmente sob o controlo das administrações educativas. O modelo dual, caracterizado por um forte segmento de formação em regime de aprendizagem, formação em alternância escola-empresa, é predominante na Alemanha, na Suiça, no Luxemburgo e na Áustria, onde a maioria dos jovens de 17 anos o frequentam, e é significativo em países como a Dinamarca e a Holanda. Esta é a forma mais antiga de combinar formação e trabalho. Nos anos 80, este modelo de organização do ensino e da formação esteve muito em voga e quase todos os países o adoptaram, assistindo-se actualmente à existência de uma grande variedade de estatutos e de tipos de qualificações sob a designação de "aprendizagem". Nos países do sul da Europa, este modelo, pela ausência de condições sociais e produtivas idênticas aos países onde é predominante e ainda pelo seu carácter de modelo migrante em contexto cultural "educacionalista", é minoritário e destina-se frequentemente a grupos populacionais "insucedidos" no sistema escolar formal, assumindo-se como alternativa ocupacional às tradicionais escolas técnicas ou profissionais. Pode considerar-se ainda dentro deste modelo a tradição dos cursos "sandwich" das escolas técnicas do Reino Unido, cursos estes que compreendem seis meses de estudos a tempo completo, alternados com períodos longos de trabalho em empresa, dentro de um quadro geral de estreita cooperação entre as escolas e a indústria local. A principal característica específica deste modelo de organização da formação, que é repetidamente ensaiada em novos países, é o envolvimento activo e directo das empresas na concepção, selecção, organização e transmissão da formação. A empresa é o elemento central do processo formativo. Combina-se no mesmo processo formativo a socialização escolar mais tradicional com a socialização para o trabalho, fazendo envolver 10 geralmente dois "locus" sociais habitualmente separados nos outros modelos, a escola e a empresa. Tal prática revela um potencial de ajustamento entre a formação e o exercício profissional que, à partida, tem sido tomado como um instrumento útil para a formulação de políticas de ensino técnico e de formação profissional que visam, antes de mais, melhorar o ajustamento entre a formação inicial e o mercado do primeiro emprego. A certificação profissional atribuída pelos parceiros sociais, em sede de concertação social, é reconhecida ipso facto no mercado de emprego, além de comportar também uma equivalência escolar. A formação em aprendizagem, ao nível pós-obrigatório, tem, por isso mesmo, um cunho predominantemente terminal e uma natureza ocupacional. Retomando a designação de Kämäränien, há uma coerência cultural "profissionalista" que envolve e estrutura o modelo dual de organização da oferta educativa. O país onde o modelo organizativo não-formal está mais presente, embora sem ser dominante, é o Reino Unido. Aqui as modalidades pós-escolares de formação e ocupação englobam um quinto da população do grupo etário 1617 anos. No entanto, estas modalidades não-formais de formação têm vindo a desenvolver-se um pouco em todos os países, nomeadamente naqueles onde existe ainda um potencial de crescimento do atendimento escolar e formativo do grupo etário 16-19 anos, sobretudo após a constatação do fracasso do sistema de ensino e formação na qualificação de todos os jovens e diante da persistência de elevados índices de desemprego juvenil. O seu incremento surge, muitas vezes, associado à expansão de modalidades de ensino profissional ligadas a experiências de trabalho, com uma predominante intencionalidade ocupacional. Nos anos 80 e 90, as múltiplas configurações de que se revestem as 11 modalidades aqui incluídas, de formação-emprego, de formação para a inserção socioprofissional, de articulação ensino profissional e trabalho, começam a revestir-se de uma durabilidade tal que as catapulta para um estatuto de alternativa formativa permanente, ora próxima do modelo escolar ora adstrita à lógica dual. Esta última versão tende, entretanto, a ser a configuração predominante, pois o que está em jogo é principalmente a formação de um mercado de primeiro emprego mais vasto, capaz de funcionar como um verdadeiro mercado de pré-contratação ou mercado de substituição do emprego, para uma boa parte dos jovens. Tomando como referente uma categorização de Pedró (1992), este modelo não-formal integra três funções sociais relevantes, variando de país para país: a de "transição" entre o sistema escolar e o emprego, desempenhando um papel social ocupacional, que visa combater os longos períodos de desemprego juvenil; a de "recuperação" ou remedial, na medida em que se visa completar uma formação de base para aqueles adolescentes e jovens que abandonaram prematura e/ou desqualificadamente a escola; a de "complementaridade" face ao ensino formal, o que se traduz na oferta de uma enorme diversidade de especializações curtas, estágios, experiências de trabalho. Esta multiplicidade de funções da formação inicial não-formal assenta num cruzamento conflituoso de percepções acerca do papel social das formações integradas no ensino secundário. Neste cruzamento destacam-se, no entanto, não só a tradicional retórica da preparação dos jovens para o exercício profissional qualificado, mas sobretudo o efeito social de parqueamento juvenil, como imperativo de uma economia que oferece cada vez menos emprego. Estas formações não são, por regra, conferentes de uma certificação reconhecida à partida quer pelo sistema escolar quer pelo sistema 12 profissional e visam sobretudo conferir competências práticas e imediatamente utilizáveis num contexto profissional concreto, uma vez encontrado um emprego. Em síntese, os modelos organizacionais dominantes de ensino e de formação para o grupo etário 16-19 anos, na Europa, podem caracterizar-se, como se evidencia no Quadro 1.1, pela finalidade principal dos cursos, pelo "locus" privilegiado onde decorre a formação, pela tutela e pelo controlo da iniciativa da oferta de formação e pelo tipo de certificação a que conduz. Sublinhe-se ainda que, actualmente, quase todos os países da Europa adoptam os três modelos de organização do ensino secundário, numa grande variedade de configurações nacionais. A necessidade de fazer expandir a oferta e de responder à procura massificada do nível secundário conduz quase inevitavelmente a um tal cenário. De certo modo e nesta óptica, o ensino e a formação de nível secundário de qualquer país europeu, nos anos noventa, é escolar, dual e não-formal, um sistema combinado, com predominâncias diversas, palco de tensões inevitáveis entre culturas educacionalistas e profissionalistas. 13 Quadro 1.1 Síntese comparativa entre modelos de ensino e formação dominantes no ensino secundário (grupo etário 16-19 anos) 5 Características Modelo Escolar Dual Não-formal Finalidade principal dos cursos "Locus" privilegiado de formação Iniciativa/Tutela Certificação Formação escolar a tempo completo Tutela da administração educativa Certificação escolar e, por vezes, profissional Educativa e de "transporte” (2) Formação profissional inicial, alternando escola e empresa Orientação comum da administração educativa e das empresas Certificação escolar e profissional Ocupacional(1) e terminal Formação profissional inicial de curta duração de acesso ao emprego, em escola e empresa Tutela de organismos tripartidos e de empresas Normalmente não há certificação (ou ela é apenas profissional e própria de cada entidade) Ocupacional(1) e terminal (1) Ocupacional = quando a finalidade principal é a capacitação para o emprego imediato (2) Transporte =as modalidades de ensino e de formação aqui incluídas asseguram o transporte para o prosseguimento de estudos, no ensino e na formação de tipo pós-secundário e superior. Tipos de ensino e formação É habitual considerarem-se, no ensino secundário de segundo grau, três grandes tipos de ensino e formação: o ensino geral, o ensino técnico e o ensino profissional. Vejamos pormenorizadamente cada um destes tipos de ensino, tendo em vista esclarecer o que dizemos quando usamos os termos geral, técnico e profissional. O ensino secundário geral compreende as formações tradicionalmente ligadas à preparação para o prosseguimento de estudos pós-secundários e superiores, o que abarca uma multiplicidade de percursos escolares. Esta variedade engloba desde percursos dominados pela perspectiva académica, a mais comum no ensino secundário liceal tradicional, até percursos escolares mais articulados com o mundo do 14 trabalho. O termo "geral" aplicado ao ensino secundário é frequentemente tomado como sinónimo de liceal. Seria porventura assim no passado, mas, ao longo do séc.XX, o ensino secundário, tradicionalmente elitista, foi-se transformando; ocorreu um processo vasto de massificação escolar, o ensino liceal evoluiu para novas configurações e o ensino "geral" já não se pode confundir mais com ensino liceal. No entanto, a educação geral esteve sempre muito ligada, no ensino secundário, à preparação para o prosseguimento de estudos superiores, tal como à educação profissional "especializada" sempre se atribuiu a função de preparação para o trabalho. Ao ensino geral cabe sobretudo o papel de assegurar o "transporte" dos alunos entre os estudos obrigatórios e os estudos pós-secundários e superiores. Enquanto o ensino geral se organiza para exercer esta função de continuidade, sendo por isso profundamente condicionado pela racionalidade própria do ensino superior e, de certo modo, obrigado a identificar-se com ele, o ensino profissional organiza-se predominantemente sob um paradigma de descontinuidade face a estudos ulteriores e tende a estabelecer as suas bases de identidade e de legitimação identificando-se com o ambiente profissional e as necessidades do sistema produtivo. Por isso, em boa verdade, ambos os tipos de ensino são especializados, cabendo ao currículo "geral" o papel especializado de assegurar o acesso ao ensino pós-secundário e superior. Para se apreender a actual complexidade em torno do conceito de ensino geral é mister explicitar algumas das significações mais importantes que lhe foram atribuídas, ao longo deste século. Assim, as políticas de ensino secundário desenvolvidas em todo o mundo têm subjacentes, mais implícita do que explicitamente, várias perspectivas de educação geral. Segundo Lauglo (1983), existem três perspectivas dominantes, a académica, a pragmática e a politécnica, que passamos a descrever, em ordem à sua 15 apropriação pelo quadro analítico em construção. A perspectiva académica está muito identificada com a tradicional função do ensino secundário de preparação para a universidade, através da transmissão de uma "cultura geral", que constitui o substracto de uma formação moral, em sintonia com a tradição racionalista e com o enciclopedismo. Os saberes cognitivos e teóricos são elevados à excelência dos saberes escolares, como libertadores do erro e fundadores da virtude e dos valores, em geral. Este modelo de educação geral tem sido criticado por três motivos principais, a saber: (a) os currículos estão "intrinsecamente ligados à cultura das classes altas", o que pode traduzir-se em dificuldades concretas acrescidas ao nível da eficiência, na actual escola secundária de massas; (b) o currículo escolar menospreza a integração na comunidade e os saberes necessários ao desempenho social de qualquer cidadão; (c) os planos curriculares esquecem a importância e o valor formativo de algumas "forças extrínsecas de motivação para a aprendizagem", absolutizando os "sistemas intelectuais estabelecidos", as disciplinas. A perspectiva pragmática tem origem no pensamento norte-americano e baseia-se num modelo de ensino-aprendizagem centrado em problemas e na "education for life", distinguindo o conhecimento "useful" do conhecimento "ornamental". Segundo o autor que nos serve de referência, Dewey influenciou muito esta perspectiva curricular, nomeadamente ao propor que a educação deve desencadear-se com base em "problemas reais" e que são ilimitados os recursos para aprender, se o currículo for centrado nos interesses, preocupações, necessidades e potencialidades criativas que o próprio aluno tem em si. Este modelo encorajou as escolas a incluir nos planos de estudos uma grande variedade de cursos, módulos e de opções formativas, nos domínios da educação para a saúde, para a qualidade de vida, para a participação 16 comunitária e para o exercício profissional. Criticado pela sua permissividade curricular e pela sua débil consideração da coerência e da sequência curriculares, este modelo seria particularmente atacado, pelo menos na sua modalidade mais "soft", na sequência do lançamento do Sputnik, no início dos anos 60. Gerou-se, nos EUA, um movimento que enfatizou a necessidade de impor um currículo que fomentasse o desenvolvimento de competências práticas e mensuráveis, que valorizasse a aprendizagem da Matemática e das Ciências Naturais e não se limitasse a uma difusa "preparação para a vida" ou a um vago "learning by doing". Este movimento viria a tornar mais consistente uma divisão entre, por um lado, as características da educação pré-escolar e básica e, por outro, do ensino pós-obrigatório, reservando a este último o desenvolvimento de actividades teóricas e conceptuais autónomas dos "problemas reais", os saberes disciplinarmente organizados, as atitudes de trabalho, persistência e concentração. A perspectiva politécnica da educação geral foi desenvolvida nos países do leste europeu e sublinha a importância do trabalho e da realização de experiências de trabalho no seio da formação geral proposta pelo currículo escolar. Khrushchev, em 1958, acusou as escolas soviéticas de estarem "divorciadas da vida" e ordenou a aplicação do princípio da integração das aprendizagens escolares com a participação na produção, como o mais importante postulado organizativo da escola secundária. A educação politécnica seria formulada, em primeiro lugar por N. Krupskaya, esposa de Lenine, com base em três elementos centrais: (a) o maior volume possível de conhecimentos científicos e tecnológicos deve ser ensinado e integrado no treino de competências manuais; (b) é criada a nova disciplina de "organização do trabalho" para facilitar a ligação da escola com a envolvente económica e política; (c) o trabalho produtivo dos alunos é desenvolvido, lado a lado, com os trabalhadores das fábricas e dos campos. 17 Este modelo, que se expandiu bastante nas políticas escolares de outros países europeus, seria criticado sobretudo pelas contradições reveladas na forma como foi aplicado: os locais de produção não estavam preparados para serem locais de aprendizagem escolar, os problemas que surgem na produção aparecem de modo desordenado e exigem soluções em um tempo e a um ritmo que ignoram as necessidades pedagógicas e, além disso, as práticas de ensino continuaram em grande parte a pautar-se pelas tradicionais formas de ensinar, muito intelectual-académicas e pouco experimentais. A crítica ao romantismo desta visão da educação levou à progressiva criação de "centros escolares politécnicos", separados dos contextos de produção, onde se desenvolviam práticas de produção, a formação pelo trabalho e até o ensino acerca da produção (Lauglo,1983:292). O movimento de unificação escolar que se espalhou por toda a Europa contém uma clara "interface" com esta perspectiva de educação geral, tendo esta sido adoptada tanto no termo do ensino obrigatório e universal como no currículo do ensino secundário pós-obrigatório, através da introdução de experiências de trabalho produtivo. Estes três modelos desenvolveram-se, de modo dominante, como paradigmas internacionais de educação geral. A seu lado assistiu-se à adopção de outros modelos localizados, como o do humanismo e do idealismo romântico de cariz nacional, como o que se associa historicamente às "folk high schools" da Noruega. Assinale-se, em tempo, que, nas políticas educativas adoptadas na Europa, não existem compartimentações muito estanques entre estas perspectivas. É, aliás, a combinação entre a perspectiva pragmática e a perspectiva politécnica que mais parece influenciar a proliferação da escola polivalente na Europa, nos anos 50 e 60 (Pedró,1992 e Papadopoulos,1994). Existe 18 como que uma dupla herança, que se começa a desenhar e a concretizar, logo após a I Guerra Mundial, tanto nos EUA como na URSS, num novo tipo de oferta escolar, geral e comum, para a população até aos 15-16 anos. A pertinência deste quadro de inteligibilidade acerca do ensino geral é elevada, sobretudo quando, muito frequentemente se associa ensino geral a ensino académico, o que afasta aquele do ensino profissional e lhe retira, logo na matriz conceptual, muitas potencialidades de enriquecimento por força da integração de múltiplas valências do conhecimento e de várias facetas do desenvolvimento de competências. Além do ensino secundário geral, é comum identificarem-se também os ensinos técnico e profissional. Estes apresentam uma tradição de grande ligação aos contextos oficinais e produtivos, onde se aprendia um ofício ou mester. Sob orientação de um mestre, os aprendizes realizavam a sua aprendizagem, recorrendo sobretudo ao acto de imitar e de fazer pelas suas próprias mãos. A transferência da educação técnica e profissional do local de trabalho para o tecto escolar processou-se, na Europa, ao longo dos séculos XVIII e XIX. Adoptando a perspectiva de Bruno Belhoste (1989), quatro factores favoreceram de modo significativo esta passagem: (a) a crise do modelo de aprendizagem, que era o modo tradicional de transmissão dos saberes-fazer técnicos, crise esta que está muito ligada à evolução do papel das corporações de artífices e ao nascimento de novas actividades fora do quadro das corporações; (b) o reconhecimento, sob a nova visão das Luzes, da cultura técnica como um género de cultura erudita, condição necessária para a escolarização das formações para as profissões manuais e mecânicas; (c) o papel do Estado que, desde o séc. XVIII, adopta a formação escolar como modo de produção dos quadros técnicos de que carecia, tanto nas forças armadas como na administração do território; (d) a transformação progressiva e simultânea dos modos de produção e dos processos de 19 trabalho, com a expansão da esfera mercantil, o desenvolvimento da maquinaria aplicada à produção e com a proletarização crescente dos trabalhadores. O capitalismo industrial, embora desempenhe um papel determinante nas transformações que ocorrem na educação técnica e profissional, não pode ser lido apenas como a causa, isolada ou não, do desenvolvimento deste tipo de educação, uma vez que este tipo de educação estatal, nomeadamente as escolas superiores técnicas que se vão criando, também favorecem o arranque dos processos de industrialização em alguns países da Europa. Ao longo do séc. XIX, como assinala Benavot (1983), consolida-se um movimento lento de assunção, por parte de empresas e organizações colectivas de industriais e por parte de entidades estatais, de uma oferta de programas públicos de formação profissional. Por um lado, externalizava-se a função aprendizagem, tendo em vista aumentar a produtividade do trabalho industrial, mormente do trabalho em série. Por outro, criava-se uma oferta escolar para preparar profissionalmente os filhos dos trabalhadores da produção, para uma indústria trabalho-intensiva que desabrochava. Finalmente, os referidos promotores acreditavam que o ensino público, se estivesse ligado às necessidades da economia nacional, podia desempenhar um importante papel no desenvolvimento nacional. Na primeira metade do séc.XX, desenvolveram-se na Europa, a par dos "liceus" tradicionais, novos segmentos de ensino e formação; em alguns casos combinava-se o exercício profissional na empresa com a instrução técnica e profissional e noutros casos incorporavam-se novas escolas no sistema educativo público, escolas técnicas, comerciais e industriais. Existe, efectivamente, uma distinção entre ensino técnico e ensino profissional (o que, em língua inglesa, se designa por "vocational education" e por "vocational training"). Por ensino profissional entende-se aqui a 20 preparação para ocupações profissionais qualificadas e altamente qualificadas, compreendendo usualmente os estudos práticos e profissionais oferecidos em escolas profissionais, a formação em aprendizagem e também outras formas de combinação entre a formação em escola e na empresa, os programas de formação-emprego. O ensino profissional apresenta várias configurações, que se distribuem pelos três modelos de ensino secundário acima definidos. Mas, no modelo escolar, cabem apenas as formações profissionais essencialmente escolares, promovidas geralmente pelo Estado, através do Ministério da Educação, e realizadas a tempo inteiro. O ensino profissional, para além de ser oferecido no âmbito do ensino secundário superior, é-o também no ensino secundário de primeiro ciclo, por exemplo, na Holanda e na Alemanha, e no ensino pós-secundário, como é o caso do Japão e dos EUA. O conceito de ensino técnico que aqui se emprega refere-se aos programas e aos cursos que preparam para profissões técnicas e altamente técnicas, todas elas oferecidas após o nível obrigatório da escolaridade, geralmente de maior duração que os anteriores. A sua frequência requer níveis mais elevados de formação à entrada e os cursos têm uma orientação teórica e científica mais forte e as mais das vezes qualificam para a entrada no ensino superior, por vezes de modo equivalente aos cursos e diplomas do ensino geral. Dada esta situação, é oportuna e pertinente a observação de M. McLean (1995) ao apontar para a existência de dois tipos de "ensino profissional" na Europa: um ensino profissional estatal-escolar (o que aqui designamos por ensino técnico) e um ensino profissional empresarial-laboral. No primeiro vemos a marca da cultura educacionalista e da intervenção estatal no planeamento económico, e ainda a dominação de uma cultura enciclopedista, que faz migrar as tradicionais disciplinas, ditas gerais (tais como Matemática, Língua Materna, Ciências Naturais, Ciências Sociais e 21 Filosofia), do ensino geral académico para o ensino profissional. O segundo está centrado sobre o local de trabalho e é dominado pela intervenção directa dos empregadores, corolário de uma cultura profissionalista. Aqui, o ensino profissional é válido por se desenvolver autonoma e firmemente separado do ensino geral. As referências tradicionais do ensino técnico são, por exemplo, o "enseignement technique", em França, o ensino técnico ou técnicoprofissional, em Portugal, ou ainda o "insegnamento tecnico", em Itália. Pode também incluir-se neste tipo de ensino de base escolar, o modelo da Suécia, da Noruega e da Finlândia (Lauglo, 1983). Na Suécia desenvolveu-se a mais radical tentativa de promover o ensino de tipo técnico-profissional em íntima articulação com a educação geral. A este último tipo de ensino secundário, o ensino técnico, está também associada uma perspectiva de "transporte", orientada para uma continuação da formação, enquanto que ao primeiro surge acoplada uma perspectiva mais terminal. As diferenças entre os dois tipos de programas de formação e as distinções sociais que sobre eles recaem variam substancialmente de país para país e, em parte, são responsáveis pela enorme diversidade de fluxos na sua procura social. Os ensinos técnico e profissional podem ser entendidos, como em Garrido, Pedró e Velloso (1992), como um conjunto de formações directamente orientadas para a preparação para o trabalho e para o exercício de uma ocupação profissional. Deste modo, os ensinos técnico e profissional constituem tipos especializados de formação, que se apresentam como sequência e visam completar formações mais gerais e básicas. Refira-se ainda que se empregam, por vezes, os conceitos de ensino profissional e de formação profissional como conceitos equivalentes. São-no, 22 na medida em que na sua concepção e na sua implantação, no sistema educativo, predomina uma perspectiva ocupacional e terminal, a preparação para o exercício profissional mais imediato. Existe, no entanto, uma diferença, mais vincada em uns países do que em outros, que consiste no facto do ensino profissional estar normalmente concebido sob a luz do modelo escolar e das suas formações mais gerais e tradicionais, também designado por “vocational education”, enquanto que o conceito de formação profissional está geralmente mais distanciado dos referentes escolares, dos seus planos de estudo, das suas normas de avaliação e de certificação. A este conceito está associado o termo training e um contexto de educação menos formal e, as mais das vezes, exclusivamente não-formal e nãoregular. Assim, além dos termos de ensino técnico e profissional, usar-se-á isoladamente o termo formação profissional, sendo este mais recorrentemente aplicado por referência ao sector não-formal. Entre estes três tipos de ensino secundário- geral, técnico e profissionalexiste uma hierarquia de prestígio ligada a múltiplos factores, cada um deles com diferente relevância de país para país: estatuto social da população que neles ingressa, funções sociais atribuídas pelos decisores políticos, credenciais que conferem e tipos de reconhecimento social destas credenciais, mormente para efeitos de exercício profissional, tipo de empregos e nível no sistema de remunerações, tipos de escolas, centros de formação e tipos de docentes e formadores e ainda modos de avaliação e de selecção. Mesmo onde não são maioritários em termos de oferta educativa e de procura social, as formas organizativas escolares constituem a referência tradicional e dominante de estruturação do ensino secundário na Europa e, dentro delas, predomina a referência ao ensino geral, o mais enraizado e o que se destina, tradicional e inequivocamente, a promover a passagem para estudos ulteriores, nomeadamente para o ensino superior. Os modelos escolares são os mais abrangentes e podem abarcar, na sua 23 oferta, desde tipos de ensino geral a tipos de ensino técnico e profissional. A sua amplitude e a sua elasticidade interna são notáveis e, em alguns países, desdobram-se em tipos e em instituições de ensino tão diversos que, incorporando modalidades de formação dual e não-formal, as reduzem a segmentos meramente residuais e desvalorizados, como sucede em França, Espanha, Bélgica ou em Portugal. Nos países onde a formação profissional inicial não tem uma base escolar, antes derivando de uma forte responsabilização empresarial pelos processos de aprendizagem, como é o caso da Alemanha ou da Suíça, a hierarquia de prestígio entre os percursos escolares não deixa de existir. No entanto, como aquela formação é baseada numa relação fortemente instituída entre o sistema de formação e o emprego e como os mercados internos de trabalho valorizam o modelo de formação profissional instituído, participando na sua definição e promoção e reservando-lhe um papel estruturante, a sua função social é diversa, o seu prestígio é maior e a sua procura "encantada" é mais acentuada. Um pouco mais adiante analisa-se mais pormenorizadamente esta hierarquia de prestígio, procurando-se indagar os seus sentidos, os conflitos subjacentes e as suas consequências sociais. Refira-se, no entanto, que é comummente reconhecida ao ensino técnico e à formação profissional inicial, sobretudo nos países europeus em que esta oferta se centra no campo escolar, uma marca de estigmatização social e que grande parte das medidas de política que lhe foram direccionadas no pósGuerra visaram libertá-lo do estigma das vias de formação para os deserdados. Pedró (1992) descreve, em cinco elementos sintéticos, o quadro da estigmatização destes tipos de ensino e formação, construindo o círculo vicioso em que eles se encontram submersos, em particular nos modelos escolares da Europa do Sul. Os elementos referidos constituem um encadeado que se pode descrever com a seguinte ondulação: este tipo de formações é mais caro do que o ensino geral e normalmente não lhe são afectos mais 24 recursos; os empregadores valorizam, regra geral, as mais altas credenciais escolares; os diplomas profissionais detêm um escasso valor no mercado de emprego e dão acesso aos empregos com menor remuneração; o ensino técnico e a formação profissional inicial reúnem um escasso prestígio social, que conduz a uma fraca e até desencantada procura social; e, finalmente, o acesso a estas formações é baseado em características sociais e académicas dos alunos, fazendo parte de uma orientação negativa por parte dos jovens, das famílias e das escolas. Associa-se, assim, ao ensino técnico e à formação profissional inicial, particularmente no conjunto de países já referido e diferentemente do que acontece em outros países do Europa do Norte, um ambiente sociocultural de escassez, desvalorização e estigmatização. Este ambiente parece relacionar-se, antes de mais, com o facto de ser generalizada a constatação social de que as probabilidades de obtenção de um emprego e de um estatuto socioprofissinal elevado são maiores entre os jovens que possuem diplomas do ensino geral e do ensino superior, em particular do ensino superior universitário (OCDE, 1995; Verdier,1995; Bourdon, 1995). O mercado de emprego utiliza a hierarquia dos títulos escolares como sinal adequado de hierarquização dos postos de trabalho. Provam-no muitos estudos da sociologia da educação, promovem-no as estratégias de recrutamento dos empregadores e lêem-no os ambientes e as decisões familiares, construídas em boa parte sobre as representações acerca daquelas probabilidades. Assim, também a hierarquização das formações escolares no seio do ensino secundário parece inelutável (Leclercq, 1992 e 1994). Por outro lado, o sistema escolar desempenha um importante papel orientador e selectivo dos diversos percursos escolares dos alunos. Para a problemática em apreço é particularmente relevante o momento do términus da escolaridade obrigatória. Aí, o acesso às diferentes vias posteriores de formação é regulado por práticas de orientação e por disposições administrativas que relevam de orientações e opções políticas e que consagram geralmente uma "orientação 25 pelo fracasso". Como refere, em 1976, o relatório da OCDE sobre as transformações estruturais no segundo ciclo do ensino secundário (OCDE, 1976), os alunos que seguem os estudos técnico-profissionais são aqueles que já foram excluídos da admissão ao ensino geral e os que apresentam níveis socioeconómicos mais baixos. A esta função selectiva está ligada uma função de participação dos sistemas escolares na produção de uma hierarquia de poder e de prestígio no sistema produtivo e no sistema social, em geral. Tipologia de diversificação escolar As características do ensino e da formação de nível secundário estão relacionadas também com a sua inscrição em cada um dos sistemas educativos nacionais, onde ocupam diferentes posicionamentos e desempenham funções diferenciadas. É um facto que a diversificação está presente em todos os sistemas escolares, embora de modos diferenciados. A diversificação escolar pode analisar-se sob dois prismas principais: o momento em que ocorre e o modo como ocorre. Quanto ao momento, ela pode considerar-se precoce ou tardia. Ela é precoce se ocorre dentro do período da escolaridade obrigatória, que é uma escolaridade geral e comum, na generalidade dos países europeus. Ela é tardia quando surge após o termo da escolaridade obrigatória. O quadro 1.2 apresenta a situação europeia em 1995. 26 Quadro 1.2 Comparação entre países da Europa relativamente à duração da escolaridade obrigatória e ao início da diversificação escolar (1995) País Escolaridade Idade em que se obrigatória inicia a (a tempo inteiro) diversificação escolar Duração Idade em que (anos) termina Alemanha 10 15/16 10 Áustria 9 15 10 Bélgica 10 16 12 Dinamarca 9 16 16 Espanha 10 16 16 Finlandia 9 16 16 França 10 16 15(1) Grécia 9 15 15 Holanda 11 16 12 8-9 15 12 Itália 8 14 14 Noruega 9 16 16 Portugal 9 15 15 R.Unido 11 16 12 Suécia 9 16 16 Irlanda Fonte: Comission Européenne (1997) (1) Existe uma possibilidade de orientação para percursos técnicos, nos últimos dois anos do “collège”. Quanto ao modo, a diversificação pode ser apenas curricular, ou seja, gerase no seio de percursos e modalidades, dentro de um mesmo tipo de instituição educativa, e institucional ou estrutural, quando diferentes percursos de formação são oferecidos a um mesmo grupo etário em diferentes instituições (ex. liceus, escolas técnicas, escolas profissionais, centros de formação profissional). Tomaremos em consideração, neste 27 trabalho, apenas a diversificação curricular claramente diferenciada em percursos e modalidades e não aquela que existe, por vezes escamoteada, em percursos ditos comuns, sob a designação de opções ou de percursos de orientação. Esta delimitação permite situar a diversidade de situações existentes em torno de quatro grandes tipos. É o que se apresenta no Quadro 1.3. Quadro 1.3 Tipologia da incidência da diversificação escolar Diversificação Precoce Tipo A1 Características A diversificação ocorre logo no termo do ensino primário ou no início do 1º ciclo do ensino secundário inferior. Países-Tipo Alemanha Áustria Tipo A2 Diversificação tardia Tipo B1 A diversificação A diversificação ocorre ao longo ocorre no ensino do ensino secundário superior. secundário inferior ou na sua fase terminal . Holanda (diversificação institucional) França (diversificação curricular) Suécia Portugal Tipo B2 A diversificação ocorre sobretudo no ensino superior. Japão EUA Alguns países mantêm a ocorrência da diversificação escolar institucional em níveis etários correspondentes aos anos subsequentes ao termo da escolaridade primária. É o caso da Alemanha e da Áustria, em que as escolhas se têm de fazer aos 10 anos, e os casos da Holanda, Bélgica e Irlanda, em que se produzem aos 12 anos. Neste conjunto de países, a 28 diversificação é precoce e institucional, o que denota a existência de uma função selectiva desde o ensino secundário inferior. No entanto, na maioria dos países europeus, o momento da diversificação é tardio, na sequência de uma unificação progressiva do ensino básico e do ensino secundário inferior4. O conjunto destes países subdivide-se em duas grandes tendências. Por um lado, aqueles em que a escolaridade básica e universal de nove ou dez anos é assegurada por um mesmo tipo de escola (Grundskola, na Suécia, a Peruskoulu, na Finlândia, a Folkeskole, na Dinamarca, o Ensino Básico, em Portugal5). Nestes países não existe o ensino secundário inferior enquanto tal, uma vez que o nível secundário se inicia após a formação geral de base, universal e obrigatória, e restringe-se por isso apenas ao ensino secundário superior, sendo geralmente de três anos de duração, promovido em diferentes tipos de escolas e subdividido em vias gerais, técnicas e profissionais. Por outro lado, existe um grupo de países em que há um ensino secundário inferior, geral e comum, promovido seja num mesmo tipo de escolas - é o caso da Educacion Secundaria Obligatoria, em Espanha (de 4 anos), o Collège, em França (de 4 anos), a Scuola Media, em Itália (de 3 anos)- seja em escolas diferentes, embora com um programa geral de base comum, como é o caso da Holanda, com quatro tipos de escolas diferentes e um programa inicial comum de três anos de duração. Curiosamente, a diversificação curricular pode ocorrer dentro de um mesmo tipo de escola, como acontece nos dois últimos anos do Collège, em França, e uma certa unificação curricular avançada pode coexistir com a diversificação institucional, como é recentemente o caso da Holanda. A nossa investigação irá incidir sobre alguns países em que há uma ténue diversificação precoce e, geralmente, sobre países de diversificação tardia. 4 A evolução histórica da unificação escolar será mais pormenorizadamente desenvolvida e avaliada no capítulo quarto. 5 No caso português, embora os alunos transitem de escola para escola (p.ex. 1ºciclo, C+S ou EB 2,3) frequentam o mesmo tipo de ensino geral e comum, dividido em três ciclos sequênciais, de 4+2+3 anos.. 29 No contexto europeu do pós-Guerra, marcado pela predominância dos regimes políticos democráticos, a ênfase da função selectiva foi sendo sucessivamente adiada para níveis etários que, segundo o discurso político, são tidos como mais consentâneos com escolhas mais fundamentadas entre percursos escolares. As ideologias igualitárias sobrepuseram-se, nas políticas de educação, às ideologias elitistas, embora se deva sublinhar que o ascendente não resulta do facto de ter sido eliminada a função de selecção e distribuição de poder inerente às sociedades estratificadas, mas assenta quer no diferimento temporal da diferenciação precoce quer na diminuição do número de vias diferenciadas de formação (Hopper, 1978). Entretanto, alguns países tendem também a integrar e a unificar os seus segmentos do ensino secundário (como veremos pormenorizadamente no capítulo quinto). Nestes países, à medida que evolui a integração e a unificação curricular e até institucional deste segmento do sistema de ensino, a diversificação tende a deslocalizar-se para o nível subsequente, o ensino pós-secundário e superior, que tem vindo a ser sujeito à introdução de uma série de novas modalidades de formação e de diplomas. Levin (1978) já tinha assinalado que mais unificação no nível secundário conduz necessariamente a mais diversificação nos níveis subsequentes. Quando o ensino superior era apenas acessível a uma elite muito restrita e seleccionada, como acontecia aliás com o ensino secundário na Europa, na primeira metade deste século, ele desempenhava a sua função social de produção de uma elite dirigente, sem que fosse necessário recorrer a processos muito desenvolvidos de "tecnologia social" estratificadora. Mas, quando a ele acederam grupos populacionais mais vastos e heterogéneos, o ensino superior reorganizou-se para preparar os estudantes para a hierarquia dos empregos, uma vez que, ao longo do percurso escolar, o 30 exercício dessa função foi sendo sucessivamente adiado. A diversificação e a estratificação das credenciais escolares será, portanto, matricial e intransponível. As escolas tenderão a reproduzir a hierarquia dos requisitos laborais para as relações desiguais existentes na sociedade (Levin,1978). Mas não é apenas por esta razão que a diversificação é inevitável: a população escolar, sendo mais heterogénea na sua composição social, transporta necessariamente para o terreno escolar uma maior gama de interesses e de expectativas. As políticas de educação e de formação tendem a traduzir esta realidade na construção de uma oferta educativa mais ampla e plurifacetada. A ligação entre a diversificação escolar e a desigualdade de acesso e de usufruto das diferentes vias e dos seus diplomas estratificados é igualmente intransponível. Bem o demonstram as políticas educativas europeias ao longo do século XX: um combate contínuo, embora com ritmos diferenciados e com configurações ideológicas diversas, entre a promoção de maior igualdade de oportunidades sociais através da escola e o cumprimento do mandato de selecção social para o qual o sistema educativo continua a estar também orientado. A integração institucional e curricular e a desespecialização que aqui queremos analisar, nos países em que é dominante o modelo escolar de organização do ensino secundário, que se enquadram normalmente em políticas educativas que são produzidas em nome da democratização do ensino e da formação, deverão, no entanto, ser interrogadas enquanto políticas efectivamente democráticas, não só no seu enunciado político, mas também nos seus efeitos concretos. Como observou oportunamente Conceição Alves-Pinto (1990), pode suceder que a integração que actualmente se opera no ensino secundário não se traduza em adiamento do efeito de selecção mas na sua substituição e actualização, agora que há uma procura de massas do ensino e da formação a nível secundário. 31 Diferentes modelos de integração Leclercq e Rault (1992) propõem, num registo mais fechado e mais técnico, à semelhança do que já havia feito Husén (1990) e como já referimos, uma outra classificação do ensino secundário baseada na combinação de dois critérios, o modo de relação entre os diferentes tipos de formação e o grau de equivalência entre os diplomas. Os sistemas nacionais são, assim, divididos em duas grandes categorias, os modelos dicotómicos e os modelos integrados. Os modelos dicotómicos são aqueles em que se regista, desde logo, uma clivagem entre as diferentes fileiras de formação, tanto nos seus cursos como nos seus diplomas, podendo a oferta repartir-se seja em dois pólos separados, um académico e geral e outro profissional e prático, em que o primeiro prepara para o prosseguimento de estudos e o segundo para a vida activa - modelos de dissociação, como a Alemanha ou o Reino Unido -, seja em várias modalidades sobrepostas e similares, mas conferentes de diplomas conducentes a destinos diferentes - modelos de justaposição, como a Holanda ou a Bélgica. Os modelos integrados, por sua vez, prevêem o acolhimento de todos os alunos em estruturas comparáveis, susceptíveis de obterem diplomas de valor equivalente. Nuns casos esta integração é teórica, noutros casos é efectiva. Nos primeiros, a frequência de estabelecimentos do ensino secundário de segundo ciclo equivalentes não elimina, na prática, as clivagens no futuro imediato escolar e profissional, como acontece nos EUA e no Japão. Nos segundos, as qualificações a que conduzem as diferentes 32 formações oferecidas sob o mesmo tecto não são, de facto, ocasiões de segregação, como é o caso da Suécia. Esta classificação tem a virtualidade de sublinhar a conotação dicotómica que está presente como uma marca profunda no ensino secundário em todo o mundo, com uma clara ascendência na procura social dos percursos de ensino geral, bem como o interesse em destacar os movimentos crescentes de integração curricular e institucional, o que se revela da maior pertinência e oportunidade na economia deste estudo. Adopta-se aqui o pressuposto de que os modelos efectivamente integrados, em que os diversos diplomas não conduzem a posteriores diferenciações, não existem. Existem, quando muito, políticas educativas que procuram caminhar nesse sentido, mas, as mais das vezes, quedam-se, para já, numa integração institucional mitigada, entre a justaposição e a integração, pois continua real o valor estratificador dos seus diplomas, seja posteriormente no ensino superior e nas suas diferentes modalidades seja de seguida no mercado de trabalho e na sua capacidade de discernir credenciais. A marca de prestígio do ensino geral, que é o tipo de ensino tradicionalmente elitista, constitui um dos travões ao desenvolvimento dos modelos integrados e unificados ou, para usar os conceitos que Kämäräinen (1995) aplica aos modelos escolares dos países nórdicos, as reformas de "unificação estrutural" promovidas no ensino secundário visando integrar as diversas modalidades de ensino e de formação têm dado lugar, na prática, a reformas de "convergência subestrutural", uma vez que apenas se consegue obter uma aproximação entre diferentes modelos institucionais de ensino e formação, as vias técnicas, profissionais e liceais. Os objectivos anunciados previam, como na Suécia, com a integração num só tipo de escola "gymnasieskola" -, uma convergência de tipo estrutural, ou seja, uma efectiva unificação das diferentes vias e estruturas de ensino e de formação, o que não veio a suceder. Por outro lado, as inúmeras alterações e reformas 33 curriculares globais e paradigmáticas que se tem procurado alcançar, que requerem uma total reorientação dos contextos e dos processos de ensino e de aprendizagem, quedam-se muitas vezes por revisões curriculares limitadas e pragmáticas, que mantêm frequentemente, sobre novas bases comuns, opções verticalizadas. As racionalidades históricas subjacentes a cada via de ensino e de formação parece prevalecerem, mesmo em processos de reforma em que se faz desaparecer, por via legislativa, essas mesmas vias de ensino e de formação. Esta delimitação teórica é igualmente pertinente e oportuna neste contexto da análise. Face à matriz multidimensional do ensino secundário, impõe-se uma melhor explicitação, a começar pelos conceitos de integração e de unificação, com o apoio daquele mesmo autor. O conceito de integração do ensino secundário a que aqui se recorre representa o movimento de aproximação entre os vários percursos e cursos existentes neste nível de ensino, que se traduz na criação de articulações e vínculos entre eles, tanto verticais como horizontais, visando estabelecer uma maior coerência entre si. Nesta ordem de ideias, o conceito de integração pode ter um equivalente no termo convergência. A unificação é o movimento que visa homogeneizar os diversos percursos e cursos, aproximando os diferentes planos de estudo, programas, objectivos e métodos, tendo em vista não só proporcionar a aprendizagem de saberes iguais ou equivalentes, mas também evitar ou reduzir as diferenças entre eles, tornando-os mais polivalentes. Teoricamente pode haver, portanto, uma enorme amplitude no campo das articulações entre as dimensões curriculares e institucionais presentes no ensino secundário. Ela poderá ir desde a maior divergência entre fileiras e cursos diferenciados, até à mais conseguida redução das diferenças entre cursos e percursos. A este segundo extremo falta-lhe muito provavelmente espessura social, uma vez que o excesso de liofilização de todas as formas de variedade, parece ser insustentável diante da diversidade de públicos e 34 interesses individuais e de finalidades sociais. Geralmente, o ensino secundário europeu apresenta-se diversificado, registando-se, todavia, movimentos cada vez mais insistentes e dirigidos, que têm como alvo a aproximação entre os vários percursos e cursos e a consequente redução da diversidade. Estão neste caso, por exemplo, as recentes reformas que tendem a reduzir as especializações das vias técnicas e profissionais e que procuram aumentar as disciplinas curriculares relacionadas com o ensino geral académico. A reflexão empreendida permite um novo esforço de categorização, em redor da questão da integração-unificação-diversificação. É o que se procura realizar através da construção do Quadro 1.4, onde se esquematiza a elasticidade de configurações existentes no ensino secundário na Europa. Quadro 1.4 Tipologia de sistemas do ensino secundário segundo o grau de integração/diversificação Grau de integração/diversificação no ensino secundário superior Sistemas totalmente unificados Modo de integração Países representativos Total. Um só tipo de escola e de cursos _________________ 5 Sistemas estruturalmente integrados, mas apenas parcialmente unificados. 5 Um só tipo de escola; cursos com troncos comuns iniciais (1 ou 2 anos) e posterior especialização Noruega Suécia 5 Sistemas subestruturalmente integrados, com percursos diferenciados. 5 Escolas e cursos diferenciados, sob orientações curriculares comuns Finlândia Holanda Portugal 8 Sistemas diversificados de fileiras diferenciadas. Reduzido. Algumas iniciativas de aproximação entre ensino geral e ensino técnico e formação profissional 5 Alemanha Itália Espanha 35 Note-se ainda que, com base na observação de Kämäräinen (1995), muito frequentemente, as tentativas de integração e de unificação traduzem-se apenas numa melhor justaposição entre os diferentes percursos e cursos, seja por uma aproximação nominalista seja pela convergência entre os planos de estudo, sem que isso altere significativamente as relações entre diferentes fileiras e tipos de escolas e, sobretudo, entre tipos de diplomas e arquitecturas de prestígio a eles associadas. A pertinência desta delimitação de conceitos em torno da aproximação de cariz integradora, entre diferentes instituições, percursos e cursos do ensino secundário, relaciona-se com a problemática nuclear desta investigação, ou seja, o facto de ocorrerem várias reformas do ensino secundário em vários países europeus, nos anos 90, visando aproximar instituições de ensino e de formação, esbater as diferenças entre percursos de formação, integrar cursos e estabelecer troncos comuns de formação entre eles. Uma polarização dominante Neste momento, impõe-se constatar, neste rendilhado de caracterização e de delimitação conceptual, que a já referida atractividade do ensino dito geral, no ensino secundário, não lhe advém sobretudo de si próprio ou de quaisquer qualidades intrínsecas. Se os saberes do ensino geral são os socialmente eleitos, em alguns países europeus que vamos estudar, não é pelos seus saberes em si mesmos que eles são eleitos, mas porque algo os elegeu e essa eleição conferiu-lhes um estatuto que, este sim, atrai e domina a procura social. A racionalidade dominante do ensino ensino secundário encontra-se, em boa parte, formulada fora de si, alojada no ensino superior, particularmente no ensino superior universitário. 36 J.M.Domenach (1989) assinala que o ensino secundário não é um fim em si mesmo, representa uma passagem onde se circula para trás (restauração das bases) e para a frente (vida activa, ensino superior, formação contínua), em continuum. Esta visão não capta, no entanto, com suficiente profundidade, a distinção entre as diferentes polarizações a que estão submetidos os dois tipos de ensino secundário, inferior e superior. Assim, na maior parte dos países europeus, o ensino secundário inferior é parte integrante do ensino básico e legalmente está sujeito aos objectivos e às normas da obrigatoriedade escolar. A democratização do acesso à educação, a promoção do sucesso escolar para todos, em igualdade de oportunidades, o desenvolvimento pessoal e social de cada indivíduo, a integração social e a formação para a cidadania, são alguns dos objectivos que geralmente se atribuem à educação básica obrigatória. Em Portugal, por exemplo, o ensino secundário inferior constitui o 3º ciclo do ensino básico e não o primeiro ciclo do ensino secundário. Pretende-se que a polarização, ou seja o núcleo predominante das suas finalidades e a sua área principal de atractividade, seja determinada essencialmente pelo "ensino primário", nível que é geral e normalmente comum para todos os cidadãos. Como se disse atrás, a propósito dos diversos tipos de diversificação, a sua manifestação precoce na arquitectura sequencial dos sistemas escolares relaciona-se com uma maior acentuação da selectividade própria dos mesmos sistemas; do mesmo modo, as políticas que têm promovido o adiamento sucessivo da diversificação são sustentadas em objectivos de promoção da democratização do acesso à educação e do reforço da igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos. A polarização por parte do “ensino primário” ou “ensino elementar”, com todos os atributos políticos e sociais que são apanágio do ensino básico, geral e universal, parece ser tanto mais consequente quanto mais distanciado estiver o momento da diversificação. 37 Em todo o caso,há um conflito permanente entre funções educacionais6 e funções selectivas. Na prática, porém, em muitos países, o ciclo terminal do ensino básico obrigatório, qualquer que seja o seu figurino específico, já está referido ao ensino superior, compreendendo uma forte compartimentação disciplinar, normas de avaliação muito selectivas, diversificações curriculares mais ou menos explícitas e, num caso ou noutro, estabelecimentos escolares diferenciados. Mas, o ensino secundário superior, segmento que escapa já à obrigatoriedade escolar, está fortemente polarizado pelo ensino superior, havendo uma tendência ainda mais nítida para que este ordene "regressivamente" aquele (Pires,1989). Ou seja, a articulação interna entre o ensino secundário de segundo grau e o ensino superior constroi-se tomando o segundo como determinante e o primeiro como determinado ou subordinado, sem autonomia. A sequencialidade escolar edifica-se de modo regressivo, sendo o ensino superior e as suas finalidades próprias a imporse ao ensino secundário, que se vê, assim, submetido ao cumprimento de uma selectividade instrumentalmente imposta pelos níveis e diplomas do ensino superior, selectividade esta intrínseca ao ordenamento hierárquico social. É por isso que Eurico Lemos Pires se refere ao ensino secundário como o conjunto de “estudos menores de preparação para o ensino superior” (1997:54). Mas a aparente fraqueza do ensino geral, dentro do ensino e da formação de nível secundário, ao surgir como contínuo, não terminal, não autoreferenciado, não conferente de uma qualificação profissional concreta, é, 6 Entende-se aqui por objectivo central da educação escolar o desencadear no ser humano a irrupção de todo o seu potencial de protagonismo, tanto no processo do seu próprio desenvolvimento, como no processo do seu desenvolvimento em sociedade, pela mobilização dos mais variados meios. A educação escolar, nesta óptica, pode ser entendida como o contributo social mais valioso em ordem à realização de cada pessoa que, na sua totalidade multifacetada, aprende a ser. 38 todavia, a sua maior força. Ao ser subordinado, o ensino secundário geral adquire o estatuto de subordinante, na medida em que essa sujeição constitui o próprio acto de aquisição do poder de subordinação dos demais tipos de ensino e de formação do mesmo nível. O ensino geral, deste modo, torna-se o ensino eleito na exacta medida em que ele é a via privilegiada -e, por vezes, única- de acesso às mais altas credenciais escolares, as mesmas que tradicionalmente são as mais prestigiadas em termos sociais e que conferem habitualmente as maiores recompensas socioeconómicas. Não obstante uma certa crise deste referente credencialista, que abordaremos mais adiante, é em torno deste eixo que se ordenam, numa hierarquia de prestígio social, as várias modalidades de ensino secundário. Nos modelos escolares de ensino secundário, em geral e na medida em que haja, no seu seio e como oferta educativa diversificada para o mesmo grupo etário, diferentes modalidades e percursos, estes tenderão a ser comparados em função não só da sua relação de proximidade (subordinação) com o ensino superior, mas também da sua relação de proximidade (e também de subordinação) com o tipo de ensino secundário mais vincadamente préuniversitário. Para além desta polarização dominante no ensino secundário, este grau está também frequentemente polarizado a jusante pela obtenção de um diploma técnico e pela expectativa de ingresso imediato no mercado de emprego, assumindo neste caso os percursos técnicos e profissionais um carácter terminal, mas em todo o caso não necessariamente mais autónomo face ao ensino superior. Se no ensino secundário inferior conflituam funções selectivas e funções promocionais de todos os alunos, tendendo a ser dominante um discurso 39 que valoriza uma lógica autónoma, democrática e universalista, de promoção de todos os cidadãos, no ensino secundário de superior predomina muito mais abertamente uma lógica de selecção daqueles que terão acesso ao ensino superior, às diferentes fileiras dentro do ensino superior e a outros destinos sociais( Fig. 1.1). 40 Figura 1.1. Polarizações dominantes exercidas sobre o ensino secundário inferior e superior Núcleo polarizador Núcleo polarizador Ensino Secundário Ensino Primário Ensino Secundário Inferior Escolaridade Obrigatória Ensino Superior Superior Escolaridade não-obrigatória Ora, este ordenamento intervém na regulação dos fluxos da procura social, condicionando as escolhas, de modos diversos de país para país. Existem diversas leituras sociais e diversos modos de apropriação social da hierarquia associada a esta polarização que determinam, em boa parte, as estratégias de optimização que comandam a procura social de educação por parte dos vários estratos populacionais. Por outro lado, da relevância analítica deste princípio de ordenamento regressivo do ensino secundário por parte do ensino superior resulta lógica a admissão do facto de que, à medida que o ensino superior se massifica e se diversifica, oferecendo uma vasta gama de oportunidades de formação a uma população socialmente mais heterogénea, o ensino secundário passa a ser mais liberto da pressão do exercício da sua função selectiva, que desliza para um patamar superior. Esta será ainda uma prova do mesmo 41 ordenamento regressivo e, ao mesmo tempo, uma provável variável de explicação das tendências de redução das especializações e de integração curricular e institucional que ocorrem no ensino secundário europeu7. Tensões entre finalidades Prolongada a escolaridade universal e obrigatória até aos 15-16 anos de idade, o ensino secundário ainda é o segmento do sistema escolar onde, actualmente, se concentra a maior diversificação estrutural e subestrutural. Subjacente à diversidade de escolas, vias, cursos e programas que continua a existir, encontra-se a diversidade e o conflito de finalidades políticas e sociais que são consignadas ao ensino secundário. O seu ordenamento formula-se em torno de uma hierarquia de prestígio e na dependência de uma função social selectiva. É a esta luz que importa destacar a quádrupla função que se atribui a este tipo de ensino:(a) a de contribuir para formar a mão-de-obra requerida pelo desenvolvimento da economia, ou seja, a função profissionalizante, também designada função produtiva ou terminal; (b) a de preparar os jovens para prosseguirem estudos de nível pós secundário ou superior, isto é, a função propedêutica (c) a de promover o desenvolvimento pessoal e social dos jovens, pelo fomento das suas capacidades, apetências, aspirações e expectativas, que são muito diversas, ou seja, a função formativa e (d) a de, ao mesmo tempo, formar cidadãos responsáveis e assegurar a igualdade de oportunidades e a mobilidade social à vasta maioria dos jovens, ou seja, a função eminentemente social e política. O ensino secundário desenvolve-se geralmente num clima conflituoso de 7 Apesar de ser predominante o movimento de aproximação das modalidades de ensino técnico e de formação profissional em direcção ao ensino geral, não se ignora a relativa importância do movimento de aproximação do ensino 42 procura de equilíbrio entre esta pluralidade de funções sociais, equilíbrio porventura sempre instável. O equilíbrio que, em cada momento, prevalece em cada país é geralmente atribuído a três forças: uma dada "coerência societal" que é atributo histórico de cada país, a adaptação nacional (dos mercados, do sistema produtivo, das tecnologias, do sistema financeiro) face à evolução da economia internacional e a orientação política governamental dada ao sistema educativo. A história recente deste segmento do sistema escolar evidencia que existe uma forte tensão entre as suas múltiplas finalidades. A estas correspondem diferentes racionalidades, ou seja, diferentes funções sociais e diferentes dimensões de prestígio, que variam segundo modos de apropriação diferenciados dos seus benefícios sociais pelos diversos grupos populacionais e ainda segundo os matizes dos diversos percursos sociohistóricos, que variam dentro de cada país, ao longo do tempo, e de país para país, no contexto europeu. Autores há que expressam em termos de "incompatibilidade básica" esta tensão entre funções (Levin, 1978) ou que destacam a marca de conflito que trespassa o ensino secundário (Papadopoulos, 1994). Este último sublinha a existência de um combate ideológico permanente entre modelos "aparentemente contraditórios" de organização deste grau de ensino, ao qual subjazem opções diferenciadas seja por um modelo determinado de relações entre o sistema educativo e a sociedade seja por uma certa visão acerca do papel do ensino secundário na promoção da igualdade social. As duas primeiras funções assinaladas, a terminal e a propedêutica, apresentam características mais evidentemente utilitárias, a saber, preparar os jovens para ocupar um posto de trabalho e para prosseguir estudos. No fundo, ambas as funções se subordinam à funcionalidade instrumental de preparação de mão-de-obra para ingresso no mercado de emprego, dito "geral" em direcção ao ensino técnico e profissional. 43 correspondendo apenas a diferentes patamares de saída do sistema escolar, uma mais imediata outra mais diferida no tempo, a que correspondem títulos escolares diferenciados hierarquica e socialmente. Assim, estas funções são o corolário não só de uma matriz escolar que ordena a distribuição diferenciada dos estudantes dentro do sistema escolar, preparando-os para o desempenho de diferentes papéis no sistema produtivo, mas também de uma identificação dos sistemas escolares com os imperativos do crescimento económico. A hierarquia de prestígio surge, assim, como um facto inelutável. Enquanto esta matriz funcionalista e instrumental predominar na concepção do ensino secundário, a diversificação entre modalidades e tipos de ensino, com a chancela de uma hierarquia de prestígio associada, será inevitável. Ora, a ser assim, três conclusões se impõem. Em primeiro lugar, a de que todos os percursos escolares e formativos e modalidades de ensino secundário superior que, nos países em que predomina o modelo escolar, não estão destinados ao acesso privilegiado a estudos superiores, tendem a ser identificados como originariamente marcados pelo desprestígio social. Em segundo lugar, a diversificação curricular e institucional, antes e mais do que corresponder a uma resposta escolar à diversidade de motivações e aptidões dos alunos, constitui, pois uma inevitabilidade intrínseca à função selectiva dos sistemas escolares e ocorrerá sempre, independentemente do nível escolar em que ocorra. Se é comum verificar a sua maior ocorrência no segmento pós-obrigatório, não será nada estranho constatar a sua deslocação para o ensino pós-secundário, o que já acontece em grande parte nos EUA e no Japão. O que, sim, seria estanho era o seu desaparecimento total, em virtude de desaparecer de um dado segmento do sistema escolar. Em terceiro lugar, por mais vasto que seja o leque da oferta educativa, o modelo escolar polarizado pelo ensino superior tenderá sempre a estender o seu manto de prestígio sob as outras formas de educação escolar, mais ou menos formais. Nesta ordem de ideias, é provável que nas reformas dos segmentos de ensino técnico e profissional esteja presente um 44 movimento de aproximação e quase identificação com o referente principal, o modelo escolar assim polarizado e assim prestigiado. O debate ideológico que atravessa transversalmente as políticas educativas nacionais tem-se mantido preso no conflito entre o papel dominante do modelo do ensino geral e pré-universitário e o papel relevante atribuído no discurso político ao ensino técnico e à formação profissional. Apesar deste último tipo de ensino e de formação profissional ser objecto de inúmeros investimentos no ordenamento das políticas de ensino e de formação, sobretudo nos países em que perdomina o modelo escolar no secundário, aquele factor estrutural continua a influenciar muito as escolhas, como acima referimos, com o seu "rationale" de ensino eleito, acesso privilegiado às mais altas e prestigiadas credenciais escolares, quer atraindo um número crescente de jovens para as suas fileiras quer atraindo as outras fileiras para a sua própria órbita, como acima referimos. A fileira geral mantém outras iniciativas e algumas novas medidas de política, nomeadamente as relativas ao ensino e à formação profissional, na sua "dependência simbólica" (Verdier, 1995). O desemprego crescente de diplomados pelo ensino superior, apesar de ser geralmente menor do que o que ocorre para os diplomados pelos outros níveis inferiores (ver p. ex. capítulo referente à história do ensino secundário entre 1945 e 1995), veio transmitir alguma fragilidade aos mitos credencialistas, tão sólidos e inquestionáveis eles pareciam estar ao nível do senso comum. Além disso, há países onde, por força de um ordenamento social diferente, em que os empresários, os trabalhadores e a administração pública regulam e credibilizam socialmente os diplomas profissionais a níveis que não apenas os equivalentes ao ensino superior, em ambientes culturais "profissionalistas", existe um outro equilíbrio entre estas funções, em que o ensino técnico e a formação profissional acabam por partilhar do prestígio 45 associado aos mais elevados diplomas escolares. Entretanto, é mister constatar-se que este segmento do sistema escolar cumpre também outras funções sociais relevantes que escapam ao determinismo económico e às leituras positivistas que, de tal modo sobrevalorizaram esta subordinação instrumental, que a foram tornando tendencialmente exclusiva. Este é também visto geralmente como um ciclo de orientação de escolhas posteriores e como um importante ciclo do desenvolvimento humano, sobretudo agora que se tem vindo a alongar a fase da adolescência e de preparação para a vida adulta, sobretudo por força do adiamento do início do exercício profissional. Espera-se que os jovens, durante estes anos de permanência no sistema escolar, possam desenvolver individualmente um leque amplo de conhecimentos, atitudes e valores susceptíveis de os enriquecer pessoalmente e os fazer desabrochar como seres únicos e irrepetíveis, além de os preparar também para o exercício de uma cidadania responsável, exercendo múltiplos e importantes papéis sociais, entre os quais estará, muito provavelmente, o exercício profissional. Aliás, o facto de se tender a prolongar mais e mais a moratória de transição entre a formação inicial e a entrada no mundo do trabalho, em virtude da dilatação do tempo de "protecção" escolar e formativa, também contribui para dotar de mais oportunidade e centralidade sociopolítica a função educativa global do ensino secundário. Assim, a formação pessoal e o desenvolvimento moral dos jovens, em processo de escolarização no ensino secundário, são chamados à ordem do dia. A relevância e a actualidade deste ponto tem sido também sustentada pelo facto de os sistemas escolares europeus, perante uma longa crise da economia de mercado (razão económica), diante da aplicação generalizada das novas tecnologias e do desemprego que se lhes associa (razão tecnológica), perante os riscos de exclusão social de importantes segmentos da população (razão social), diante da emergência de novas sociedades 46 multiculturais, multiétnicas e multiconfessionais (razão cultural), face à crise ambiental crescente (razão ambiental) e diante de uma rara indefinição acerca do papel da União Europeia no concerto das nações (razão política), os sistemas escolares europeus, repita-se, serem chamados a desempenhar um relevante papel de refundação de um desenvolvimento humano global (Carneiro, 1993) . Todavia, o mandato económico e a selectividade que ele transporta parece que ensurdeceram o sistema escolar, perdido no cumprimento de funcionalidades várias e mais ou menos óbvias, reduzindo drasticamente a sua capacidade educativa de acolhimento da diversidade humana e das preplexidades dos jovens de hoje, os mesmos que a ele crescentemente acorrem. Finalmente, a existência e a compreensão deste permanente jogo de equilíbrios entre distintas racionalidades também se torna um elemento central na análise, na medida em que qualquer inovação institucional que ocorre no ensino secundário está sujeita a esta tensão entre finalidades, que ora concorre para o sucesso das inovações, ora as neutraliza, no todo ou em parte, pelo predomínio de outras racionalidades que não as esperadas, como oportunamente sublinharam Maria Ibarrola e Maria Gallart (1994). Profissionalismo e neoprofissionalismo Na análise que vamos empreender mobilizam-se também dois conceitos elementares e recorrentes na literatura sobre o ensino secundário e sobre as suas reformas mais recentes, a saber, profissionalismo e neoprofissionalismo. Na literatura portuguesa sobre esta matéria, recorre-se muitas vezes ao termo “vocacionalismo” para falar do profissionalismo (Stoer, Stoleroff e Correia,1990; Stoer, 1994). Trata-se de uma incorrecta adaptação do termo inglês “vocationalism”, que deriva do termo “vocational” e é aplicado habitualmente nas expressões “vocational education” e 47 “vocational training”. O termo “vocação” é de outro valor semântico na língua portuguesa. Designa uma inclinação ou uma progressão natural, uma escolha, um talento, que podem ou não relacionar-se com as profissões. Em português, além disso, não existe o termo “vocacionalismo”, como derivado da mesma raíz latina “vocatione”. Existem os termos profissional e profissionalismo cuja semântica é a que mais se aproxima da semântica relativa à aplicação dos termos “vocational” e “vocationalism” na literatura inglesa aplicada à educação e, mais especialmente, à formação profissional. Esta literatura, no que se refere à formação e à orientação vocacional, recorre aos termos “career education”, “career training” e “ career guidance”. E quando os referidos autores recorrem ao termo “vocacionalismo” é ao profissionalismo que se referem. Por exemplo:”o termo ‘novo vocacionalismo’ pode ser considerado como uma forma conveniente para glosar um conjunto completo de desenvolvimentos inter-relacionados (...) que têm em comum uma dinâmica geral, no sentido de uma integração “ocupacionalista” entre o sistema educativo e o sistema ocupacional...” (1990:20) ou “na noção de ‘novo vocacionalismo’ está implícita a ideia de um ‘novo’ instrumentalismo ou um ‘novo’ economicismo na tutela do Estado face à relação entre sistema educativo e o mercado de trabalho” (1990:21). O termo profissionalismo, em sentido geral e nesta investigação, designa o conjunto das perspectivas teóricas e das medidas de política educativa que advogam que a educação deve tornar-se mais relevante na satisfação das necessidades da economia, da evolução do mercado de emprego, do trabalho e das profissões.Usa-se frequentemente em oposição à visão tradicional "liberal-humanista" que defende que a educação escolar é autoreferenciada no seu sujeito e nas suas finalidades, como meio de realização do potencial humano de cada aluno. A ideologia profissionalista, na continuidade das teorias do capital humano dos anos cinquenta e sessenta, pretende ver reforçada a eficiência 48 económica dos sistemas escolares e de formação, através do desenvolvimento de competências adequadas a uma economia em reestruturação.No caso do ensino secundário europeu, o profissionalismo tem um sentido lato e um sentido restrito. No primeiro caso, ele expressa o conjunto das propostas políticas dos governantes procurando estreitar as fronteiras entre educação e emprego-trabalho. No segundo, representa a concepção e a aplicação de medidas concretas de reforço da formação em domínios ocupacionais específicos. O profissionalismo, neste último sentido, promove-se habitualmente por cinco vias distintas: (a) orientando todo o currículo, no sistema formal de ensino, para a preparação para o trabalho e para a inserção profissional; (b) criando instituições de formação paralelas, com a exigência de uma frequência a tempo inteiro, mas vocacionadas para a qualificação da mão-de-obra requerida pela economia; (c) injectando nos currículos gerais já existentes componentes de pré-profissionalização e articulações com as empresas, tendo em vista desenvolver atitudes e comportamentos úteis para uma posterior inserção socioprofissional; (d) desenvolvendo sistemas não-formais de formação para o emprego, geralmente destinadas a jovens que abandonam o sistema escolar regular; (e) aumentando a participação dos empresários e das associações profissionais na definição dos currículos de ensino e de formação (Lillis e Hogan, 1983; Ishumi, 1988). O profissionalismo tem, regra geral, dois suportes que se adoptam como justificação para a sua aplicação teórico-prática pelos governos, um de tipo económico e outro de tipo político. O primeiro concentra-se no valor de troca da educação e argumenta que a educação e a formação devem reformar-se para acompanhar permanentemente a evolução económica, adaptando a produção de qualificações com os requisitos do mundo da produção e do trabalho em geral. O segundo é o que sustenta que é necessário alterar os currículos escolares para estancar a progressão do desemprego juvenil, uma vez que a existência deste se deverá fundamentalmente à inexistência de 49 pessoal devidamente qualificado aos vários níveis em presença na hierarquia das relações sociais de trabalho, segundo as necessidades do mercado de emprego em cada momento. Mesmo em contexto de elevado desemprego o profissionalismo justifica-se, neste sentido, como uma via para aumentar a competitividade entre os indivíduos para ocuparem os postos de trabalho disponíveis ou para criarem o seu próprio emprego. Alguns autores assinalam o surgimento, nas políticas de educação e de formação, nos anos noventa, de um conceito novo de profissionalismo, que designam por "profissionalismo liberal", em contraposição ao profissionalismo "pragmático" dos anos oitenta (Silver e Brennan, 1988; Evans, 1994). O profissionalismo liberal vê a educação para o trabalho num sentido social mais lato, social, económico e tecnológico, com ênfase no desenvolvimento das capacidades de iniciativa e de empreendimento laboral. Os governos europeus estariam a orientar os sistemas educativos para maximizar as capacidades humanas para lidar com as necessidades e as oportunidades de um futuro muito incerto, atribuindo ao ensino secundário um serviço à comunidade que não se confunda com os pedidos do mercado. Este conceito de profissionalismo liberal abre exactamente sobre o que se designa geralmente por neoprofissionalismo. Este representa um movimento mais recente das políticas educativas europeias que abarca um conjunto de medidas configuradoras de um novo profissionalismo. Entre estas destacamse quatro: (a) a redução do número de especializações técnico-profissionais que existem no sistema de ensino e de formação, evoluindo para planos de estudo mais nucleares e polivalentes; (b) instalação e reforço dos troncos comuns de formação, obrigatórios em todos os percursos de ensino e de formção, e aumento significativo da formação geral académica em todos estes percursos; (c) estabalecimento de novos sistemas de equivalências entre cursos e entre percursos de ensino e de formação de tipo geral e de tipo técnico e profissional e criação de passadeiras entre estes mesmos 50 cursos e percursos; (d) desenvolvimento de uma vasta panóplia de cursos e de modalidades de ensino e de formação, ao nível do ensino secundário, criando um novo e amplo mercado de formação para o grupo etário 16-18/19 anos. É igualmente atribuída ao neoprofissionalismo uma marca social que se traduz na crença acerca das potencialidades da flexibilização curricular e das novas formas de interpenetração entre as componentes geral e profissional, seja enquanto antídotos para um certo determinismo técnico, abrindo para uma nova compreensão do trabalho e das suas configurações éticas, culturais, políticas e económicas, seja pelo facto de pretender acolher no sistema educativo uma maior diversidade social de jovens, através de uma ampliação da oferta. A ideologia neoprofissionalista partilha com o profissionalismo duas importantes características: por um lado, está imersa numa retórica optimista acerca do valor de troca do ensino técnico e da formação profissional e de toda a formação para o trabalho e para o exercício profissional, mantendo o sistema educativo no círculo funcionalista e ocupacionalista, agora já mais como um importante factor de empregabilbidade; por outro, mantém uma visão dicotómica entre ensino geral e ensino técnico e formação profissional, orientando as várias medidas de política para esbater a separação entre as componentes geral e profissional. Proporemos, a seu tempo, o recurso a um outro conceito que se encontra na fileira dos anteriores e que procura dar conta da superação de alguns dos dilemas com que eles se debatem, o pós-profissionalismo. O pósprofissionalismo corresponde a uma outra fase na evolução dos sistemas educativos em que o aluno-formando já não é considerado como o objecto central do jogo de interrelações entre a economia e a produção das qualificações, mas o sujeito que também é capaz de construir o seu lugar 51 social e um outro tipo de relação entre aqueles campos sociais. A perspectiva pós-profissionalista interroga e põe em questão o neoprofissionalismo, mesmo na sua formulação de aproximação do ensino profissional ao ensino geral académico, adoptando um quadro realista na análise da relação educação-economia. Desespecialização e desprofissionalização Para Martin Carnoy, nas últimas décadas, o ensino secundário surge como o segmento do sistema de ensino no qual se processam mudanças estruturais mais vastas e sensíveis (Carnoy,1996). Os últimos vinte anos têm sido de progressiva massificação do ensino secundário de segundo grau. Com o desenvolvimento deste processo de progressivo aumento da procura e de generalização da oferta, a população escolar deste nível de ensino tornou-se socialmente mais e mais heterogénea. Para fazer frente a um conjunto de novos desajustamentos sociais, a agenda política dos vários governos europeus, com evidentes descompassos entre os países, mais cedo ou mais tarde foi integrando como prioritárias as reformas do ensino secundário. Por um lado, à medida que o emprego escasseia e que o mercado do primeiro emprego se torna mais fechado e mais lento no seu funcionamento e, consequentemente, governos e famílias convergem no adiamento da saída do sistema de ensino e de formação inicial, os equilíbrios entre vias académicas, técnicas e profissionais tornam-se muito instáveis. Por outro lado, agudizam-se os conflitos entre as finalidades do percurso formativo entre os 16 e os 18 anos, sendo manifesta uma clara preponderância da função propedêutica do ensino secundário, uma vez que a própria procura social tende a eleger a continuação de estudos como o destino mais desejado após a conclusão do ciclo secundário, como se verá melhor mais adiante, no capítulo terceiro. 52 Assim, o conjunto de medidas de política que visam reestruturar o ensino secundário emergem nesta instabilidade, ora mantendo ora desfazendo as tradicionais segmentações entre as diversas vias, reorientando-o para novas funções, objectivos e finalidades, gerando necessariamente novos equilíbrios no seio do ensino secundário. A desespecialização e a desprofissionalização das formações e a integração entre percursos diferenciados representam três destas medidas, que parecem afastar crescentemente o ensino secundário da função específica de preparar técnicos qualificados para o ingresso no mercado de emprego. Por desespecialização entende-se aqui o conjunto dos processos normativos, de iniciativa das administrações educacionais, de redução, mais ou menos profunda, do número de fileiras e de especializações técnicas e profissionais no seio do ensino secundário, nas suas diversas vias de estudos, com destaque para as que se destinam a preparar os jovens para um ingresso mais imediato no mercado de trabalho. Como se demonstra na descrição dos casos nacionais aqui considerados, estes processos de redução são vastos e generalizados (cfr. o capítulo quinto). Por sua vez, o conceito mais vasto de desprofissionalização, que engloba o processo anterior, compreende o movimento plurifacetado - que vai desde a retórica técnico-política, ao enunciado legislativo dos diversos Estados, às mudanças na morfologia do sistema escolar, até à evolução da procura social e à própria formulação do senso comum - que se dirige principalmente para a reestruturação dos currículos do ensino secundário de tipo técnico e profissional, aproximando-os dos perfis formativos das modalidades de ensino geral. Todavia, este movimento apresenta uma grande diversidade de configurações concretas, como veremos, podendo englobar não só uma redução do número de especializações, a desespecialização, como e sobretudo uma aproximação curricular muito nítida aos percursos do ensino 53 geral académico, a que alguns chamam "generalização" (Leclercq, 1994; Pedró, 1992 e 1996) ou integração curricular. Contribuem para tal quer a substituição de disciplinas muito práticas e até oficinais por disciplinas dos cursos do ensino geral académico, tais como Língua Materna, Língua Estrangeira, Matemática, Estudos Sociais, Filisofia e História quer a integração e a aproximação entre diferentes tipos de escolas, até então mais afastadas entre si (cfr. capítulo quinto). Em alguns países, os cursos técnicos e profissionais são assim gradualmente desprofissionalizados, com base numa retórica de cariz essencialmente económico, sendo certo que neste processo eles parece perderem mais e mais a função social de preparação de técnicos qualificados para ingressar de imediato nas actividades económicas. Estes processos deixam em aberto também a necessidade de esclarecer, antes de mais, o que significa destinar o ensino secundário a preparar predominantemente para o prosseguimento de estudos, pós-secundários ou superiores, e o que isto quer significar em termos da relevância educativa e formativa global do ensino secundário. Convirá interrogar os movimentos de desespecialização e de desprofissionalização do ensino secundário, enquanto medidas de reforço da democratização do ensino e da formação e de adiamento da sua função selectiva. De facto, o reforço da formação dita "geral", na medida em que equivalha ao reforço da tradicional formação académica liceal, pode conduzir sobretudo à substituição do modo de selecção, mais do que ao abandono da função de selecção e de estratificação que o ensino e a formação ao nível secundário continuam a desempenhar. Em segundo lugar, pode-se questionar o que é hoje o ensino técnico e a formação profissional inicial e em que medida preparam os jovens para ingressar no novo mercado de emprego, nos anos noventa. Qual o lugar das aprendizagens técnicas e profissionais à luz das mutações em curso na economia e nas novas dinâmicas sociais de inserção socioprofissional dos jovens? Não estarão os percursos de formação técnica 54 e profissional capacitados, mediante um certo conjunto de critérios e condições, para competir com os percursos académicos na preparação para estudos posteriores e, mais importante do que isso, na produção das elites? Talvez fosse importante percepcionar o papel daqueles percursos para além de uma mera tecnologia social estratificadora, uma vez que há evidências de que exercem outras funções educativas relevantes. Promovida esta precisão de conceitos, a que habitualmente se recorre para analisar o ensino secundário, e esclarecido o sentido dos termos principais que vamos usar ao longo desta investigação, embora não se tenha eliminado a ordem e a desordem que permanecem na realidade social do ensino secundário, cremos que, deste modo, mais facilmente a poderemos compreender, nas suas múltiplas facetas, nos seus conflitos internos e nas suas correntes reformadoras. Passaremos, por isso, a apresentar de modo genérico o percurso de toda a investigação para que se apreenda, desde já, o seu sentido, as suas hipóteses, os seus passos e a sua arquitectura metodológica. 55 Capítulo 2 Introdução geral à investigação É no seio desta ordem desordenada e deste quadro problemático, descrito na sua linguagem natural e no nível de inteligibilidade originário, que se inscreve o problema central da investigação que empreendemos. No presente capítulo vamos apresentar o problema e o seu contexto, as hipóteses de que partimos, as principais opções metodológicas e ainda as partes estruturantes do trabalho.Orienta-nos um conjunto ordenado de procedimentos de trabalho que visam interrogar e descobrir a realidade e enunciar a sua interpretação. Dentro do ensino secundário europeu, que, como vimos, é uma realidade multifacetada com diferentes configurações organizacionais, emerge um movimento de integração entre várias modalidades e percursos do ensino e da formação e de uma certa desespecialização das formações técnicas e profissionais. Este movimento é patente particularmente nos países em que é dominante o modelo escolar de estruturação do ensino e da formação ao nível secundário. É dentro deste modelo e deste movimento que nos vamos situar, conscientes de que esta limitação do campo de análise deve estar sempre presente, mormente no momento de elaborar quaisquer conclusões. Refira-se desde logo que, na Europa, o meio século decorrido sobre o fim da II Guerra Mundial tem sido um tempo de forte crescimento da procura do ensino secundário. De um tipo de ensino para poucos, sobretudo destinado aos que pretendiam prosseguir estudos universitários, tornou-se um ensino de massas, procurado actualmente, na generalidade dos países, por mais de oitenta por cento da população do respectivo grupo etário. Esta mutação estrutural tem originado um clima de crise de sentido acerca do lugar e das funções sociais do ensino e da formação de nivel secundário e, 56 simultaneamente, um ambiente propício à sua reorientação política. Esta realidade foi acompanhada, sobretudo após as crises económicas dos anos setenta, por novos fenómenos sociais com enorme impacto sobre as políticas de ensino e de formação. O desemprego começou a apresentar-se como uma dinâmica social estrutural, afectando particularmente os mais jovens e os menos qualificados. O ensino e a formação consagraram-se como instrumentos preciosos de mobilidade social e como trampolins cada vez mais imprescindíveis para acesso à actividade profissional. Tornava-se evidente para os jovens e para as suas famílias que o acesso às mais altas credenciais escolares representava um investimento rentável, sobretudo diante de um adverso mercado do primeiro emprego. Para os governos, o crescimento da procura era acompanhado pelo crescimento da oferta, seja pela extensão das modalidades de ensino e de formação e dos tipos de escolas já existentes seja através da criação de uma grande variedade de percursos e programas de ensino e de formação e de formação-emprego. Deste modo, os niveis etários em que se acedia ao mercado de emprego iam sendo sistemática e continuamente diferidos, ao longo da segunda metade do século XX. O sistema de produção industrial passava, no mesmo período, por importantes mutações organizacionais, financeiras, técnicas, de mercados e de gestão da mão-de-obra. A economia terciarizou-se continuamente e assistiu-se à introdução massiva de novas técnicas, tanto ao nível da produção, como nos níveis da comercialização e do consumo. Alguns sectores mais inovadores e competitivos da economia aceleraram os processos de reestruturação empresarial e de internacionalização, reforçaram a concorrência recorrendo a novas formas de organização do trabalho, ao lançamento de novos produtos e a novas estratégias de comercialização no espaço mundial. O liberalismo económico afirmou-se, mormente após a queda do Muro de Berlim, como o grande referencial de expansão económica em todo o planeta. Muitos autores e organismos 57 internacionais, num quadro geral de grande optimismo em torno destas transformações económicas, referem a emergência de um modo póstaylorista de produção, o modo de produção flexível. A ele associam o requisito generalizado de uma mão-de-obra mais qualificada e, em geral, altamente qualificada, uma vez que ao novo tipo de organização se associam tarefas profissionais mais complexas e mais amplas, novos modos de trabalho em equipa, grande capacidade de adaptação à mudança, uma maior participação e criatividade, uma maior autonomia e responsabilidade das equipas de trabalho. Embora este movimento de reestruturação económica seja protagonizado apenas por alguns sectores de actividade e por algumas empresas, o seu impacto social é bastante vasto, sendo particularmente visíveis várias das suas repercussões sociais, nomeadamente sobre o emprego: o desemprego cresce continuadamente, a mão-de-obra terciariza-se, um importante caudal de vínculos contratuais precariza-se, as mudanças de emprego e de profissão são muito mais frequentes, a incerteza associada às trajectórias profissionais é geralmente bastante mais elevada, nascem novas formas de trabalho, como o teletrabalho, incrementa-se a criação do autoemprego e cresce o emprego associado a funções mais qualificadas e mais conhecimento-intensivas. É neste contexto preciso que se formulam e anunciam permanentemente novos requisitos para o ensino e a formação profissional inicial, tanto por parte de empresários como por parte de organismos internacionais e de peritos. Estes requisitos deveriam concentrar-se no desenvolvimento de um leque de "novas competências" entre as quais é habitual destacar as capacidades de comunicação, de trabalho em equipa e de resolução de novos problemas, a iniciativa e a criatividade, a capacidade de adaptação à inovação permanente e de aprendizagem ao longo de toda a vida, a capacidade de uso e tratamento da informação e de realização de projectos 58 (Azevedo, 1991). Organizações de cooperação internacional como a OCDE, o Conselho da Europa, a União Europeia, o Banco Mundial e a OIT, são fontes de tratamento e importantes veículos de transmissão destes requisitos, a par de redes de peritos e de organizações internacionais de empregadores. A enunciação destes requisitos, que importará interrogar no quadro desta investigação, enquadrando-os na evolução histórica e na leitura sociológica, comporta igualmente orientações mais ou menos explícitas sobre a necessidade de reformular e sobre o sentido da reformulação da organização, do conteúdo e das funções do ensino e da formação profissional inicial. Entre elas sobressai a perspectiva de que é necessário aumentar o nível geral das qualificações escolares e profissionais da população, investir no desenvolvimento de uma sólida formação geral de base e fomentar a capacidade de adaptação dos jovens a um novo contexto económico, incerto, em permanente reestruturação, e a uma sociedade em que as mudanças são amplas e ocorrem a um ritmo muito intenso. Esta mensagem é veiculada constantemente e por todo o mundo como uma ideologia irrecusável e como uma espécie de caminho de sentido único. Como que se impõem, de fora para dentro, orientações precisas para as reformas educativas nacionais, tendentes a fazer evoluir os sistemas educativos nacionais em direcção ao seu cumprimento. Na verdade, as medidas de política de ensino e de formação sucedem-se umas atrás das outras, em muitos países da Europa. Parece ser sobre estas componentes dos sistemas sociais que recaem as responsabilidades de fazer face à "modernização" económica e de preparar a população para enfrentar as suas principais exigências e os seus principais efeitos. Importará interrogar, no entanto, nesta investigação, não só o sentido destas orientações como o modo como elas se geram e veiculam no espaço internacional, os modos como os governos e os actores sociais nacionais delas se apropriam e ainda 59 o modo como as articulam com as outras funções sociais relevantes do ensino e da formação ao nível secundário. De facto, a racionalidade que enforma estas orientações, de cariz essencialmente económico e vinculada à ideologia da modernização e da globalização, não esgota, como vimos, o universo de racionalidades que orientam estas políticas de ensino e de formação8. A manifestação contínua e bastante sustentada dos princípios de uma dada ordem económica9, como as vias estruturantes destas políticas, gera certamente novas tensões entre as várias racionalidades, ao mesmo tempo que alterará as funcionalidades adstritas quer às diversas modalidades de ensino e de formação de que o nível secundário se compõe (por ex. formação geral académica, formação científica, formação técnica e formação profissional) quer aos vários tipos de instituições de ensino e de formação que o estruturam (por ex. liceus, escolas técnicas, escolas profissionais, centros de formação profissional, escolas e centros públicos e escolas e centros privados). Será importante perceber se se está efectivamente a gerar e qual é o novo modelo de equilíbrio entre estas racionalidades complementares que povoam o ensino e a formação profissional inicial. A predominar nas reformas educativas nacionais a perspectiva de uma mera adaptação dos sistemas educativos nacionais aos novos requisitos da economia, estaremos provavelmente em presença de uma significativa crise de sentido acerca do lugar e do papel do ensino e da formação ao nível secundário. Reformas integradoras e desespecializadoras 8 Referimos inicialmente quatro grandes finalidades que se encontram habitualmente em tensão no ensino e na formação de nível secundário: produtiva, propedêutica, formativa e social ou política. 9 Mais adiante explicitaremos que esta ordem económica, dominada pelo liberalismo, é também uma certa ordem política, ligadas de modo inextricável. 60 No fim dos anos oitenta e de modo muito especial nos anos noventa, em vários países europeus, em que é preponderante o modelo escolar ao nível secundário, os governos empreenderam políticas de reforma que visavam, entre outros aspectos, uma integração mais ou menos extensa e profunda entre modalidades de ensino "geral" e de ensino e formação técnica e profissional e uma desespecialização dos percursos de ensino técnico e de formação profissional inicial de base escolar. Este movimento reformador de integração e de desespecialização ao nível secundário surge sensivelmente ao mesmo tempo em vários países e apresenta-se, na sua formulação política, de modo similar nos mesmos países10. Há uma retórica política comum que suporta a tomada de medidas de política educativa semelhantes, sendo certo que ambas ocorrem num contexto de evidente e comprovada diversidade de políticas sociais e educativas nacionais, ancoradas em culturas e sociedades historicamente construídas por vias muito diversas e próprias. A desespecialização que tem ocorrido no ensino e na formação de tipo técnico e profissional tem sido muito acentuada. Países como a Dinamarca, a Suécia, a Itália, a Finlândia, a França, a Noruega e Portugal, reduziram o leque de especializações em processos de reforma que se produziram ao longo dos anos noventa. O movimento é significativo e drástico: de quinhentas, nuns casos,ou de trezentas especialidades, noutros casos, o leque reduz-se para duas ou três dezenas. Normalmente estes processos são acompanhados por duas outras medidas. Uma consiste na criação de "troncos comuns" de formação no primeiro ou nos primeiros anos dos cursos, frequentemente comuns a várias modalidades e percursos de ensino e de formação de nível secundário. A outra traduz-se na manutenção de um certo grau variável de especialização, como nos casos da Dinamarca, da Finlândia e da Noruega, que ocorre somente após o ou os anos do tronco comum ou 10 É este movimento que se apresenta e analisa no capítulo quinto. 61 de base. A primeira destas medidas aproxima-se já da referida tendência integradora. Esta tendência percorre diversos caminhos e apresenta várias gradações. Retomando a grelha apresentada no capítulo anterior, a integração escolar apresenta por vezes, mas muito raramente, características estruturais, uma vez que poucas vezes se pretende instituir um sistema unificado de ensino e de formação de nível secundário, integrando num só vários tipos de escolas pré-existentes. As mais das vezes, a integração é de tipo subestrutural e traduz-se na instalação de vários tipos de articulações entre modalidades e cursos diferentes. Estão neste caso: (i) o estabelecimento de uma estrutura curricular comum para diversos tipos de modalidades e de cursos, em que os conteúdos de algumas das componentes curriculares (formação geral ou formação científica) são também comuns; (ii) criação de conjuntos de opções comuns a várias modalidades e cursos, tendo em vista facilitar a permeabilidade entre eles; (iii) alteração do número de anos de duração dos cursos de formação técnica e profissional e alargamento do tipo de disciplinas, incluindo algumas das mais características do ensino "geral" académico; (iv) criação de novos sistemas de equivalências legais entre diplomas obtidos tanto pelas modalidades mais gerais como pelas mais profissionais; (v) alteração do sistema de acesso a cursos pós-secundários e superiores e criação de novas modalidades de ensino e de formação técnica a estes níveis; (vi) admissão da possibilidade de um aluno do secundário poder frequentar mais do que um tipo de escola, combinando diferentes oportunidades e saberes. Alguns autores falam mesmo de um regresso ao "generalismo" no ensino e na formação de tipo técnico e profissional (Levin, 1978; Jallade, 1988; Santos, 1989; Pedró, 1992; Leclercq e Rault, 1992; Garrido, Pedró e Velloso, 1992; Papadopoulos, 1994), dado o quadro social de reestruturação económica contínua e de mutação frequente tanto dos perfis profissionais 62 como das necessidades locais e nacionais em recursos humanos qualificados. Disciplinas como Ciências Sociais, Matemática, Língua Materna e Línguas Estrangeiras são introduzidas no âmbito de reformas curriculares em que se reduz o número de especializações e se criam anos de base de formação comum para modalidades de ensino e de formação até então estanques (geral, técnico e profissional). A retórica oficial que acompanha estas medidas de política refere constantemente a necessidade de oferecer uma formação mais sólida e polivalente, capaz de desenvolver um leque mais alargado de competências, diante de um contexto social e económico caraterizado por mudanças imprevisíveis e por uma cada vez maior valorização do conhecimento em todas as actividades profissionais. Outras perspectivas de análise sublinham que a procura social se encaminha cada vez mais para as modalidades de ensino "geral" académico, as que tradicionalmente estão mais ligadas ao acesso ao ensino superior, como acto integrado na sua estratégia de alcance das mais altas credenciais escolares. A pertinência desta e de outras visões do problema será verificada mais adiante. Entretanto, a similitude da retórica política que informa e dá forma a estas reformas e a sua simultaneidade são factos muito salientes que requerem uma interrogação e uma verificação adequadas. As retóricas nacionais parece beberem a sua seiva na retórica expandida pelas organizações internacionais que operam nos domínios económico-sociais. Há como que uma construção política supranacional que é a grande fonte inspiradora destas reformas e que se vai expandindo internacionalmente, tanto pela acção das ditas organizações como por múltiplos encontros de peritos e seminários internacionais, por estudos comparados, por produções estatísticas e pela constante referência nacional às estatísticas de outros países. No âmbito da União Europeia, a força desta acção supranacional é particularmente visível através de um conjunto de programas e acções 63 transnacionais e de sistemas de cofinanciamento europeu de políticas nacionais. O poder, aparentemente invisível, desta intervenção transnacional está, em grande parte, por avaliar, mas parece notório o seu poder predictivo e uniformizador dos enunciados políticos nacionais. Os governos nacionais europeus, a braços com sistemas nacionais de educação cada vez maiores e de mais difícil controlo e com crises sociais de grande impacto, como o desemprego crescente, parece recorrerem a estes enunciados políticos supranacionais como quem pretende alcançar bases seguras (tábuas de salvação?) de legitimação das suas próprias políticas locais/nacionais. Entretanto, uma coisa podemos reter: este é o problema preciso e circunscrito que sucessivas perguntas, formuladas anos a fio, a tempo e a destempo, foram resgatando à voragem dos dias. Uma vez retirado do fluxo ininterrupto das coisas e dos acontecimentos, para lhe conferir sentido, vamos reinscrevê-lo em novas lógicas de inteligibilidade potencial (Berthelot, 1996). Estamos conscientes de que este é um terreno multidimensional, profundamente dominado por ideologias poderosas e resistentes ao tempo e por mitos entranhados nas culturas europeias e envolto numa actualidade económica e política muito complexas e, em boa parte, incompreensíveis. Deste terreno pretende-se progredir para um outro, predominantemente teórico, tendo em vista desencadear um trabalho de "apropriação teórica do problema de partida", accionando para tal vários elementos típicos da prática científica (Almeida e Pinto, 1995:15), aptos a enfrentar as complexidades e as "falsas racionalidades" (Morin e Nair, 1997:22). A integração do objecto num outro discurso far-se-á passo a passo, progredindo em espiral para campos teóricos cada vez mais amplos, capazes de estabelecer outros laços e outras articulações entre os factos, capazes de construir outras regularidades e sequências, uma espiral de 64 abordagens teóricas ancoradas sobretudo nos contributos sedimentados da sociologia da educação e da sociologia do trabalho. Do sincretismo para a representação científica, dos termos da linguagem comum para a fixação controlada de significação, das dimensões dispersas e dos indicadores perdidos para os conceitos estruturados e a visão diacrónica, das ideologias e mutilações da realidade para abordagens mais abertas e multidimensionais, da observação técnica para a selecção de técnicas de pesquisa referentes ao objecto e às teorias que o constroem, do problema social ao problema sociológico, tal é o sentido do caminho que se empreende de seguida. Temos, no entanto, consciência de que o invisível e o nunca descoberto estão mais presentes na realidade do que aquilo que conhecemos. O real está carregado de ilegibilidade, uma ilegibilidade entranhada em mitos, atitudes, aspirações, sonhos, relações humanas e interrelações. O real escapa-se-nos por entre as ideias que sobre ele vamos construindo, a sua complexidade é "irremediável"11. Avançamos, por isso, com estas limitações bem presentes, mas igualmente aptos a mobilizar práticas científicas capazes de as enfrentar, pelo menos em parte, tendo em vista construir um conhecimento científico sobre o problema de partida. As hipóteses de partida A estruturação rigorosa da investigação passa necessariamente pela formulação de um conjunto de hipóteses. As hipóteses desempenham nesta investigação uma função de organizar percursos de descoberta, conduzindoos com ordem e rigor, fornecendo-lhe um fio condutor eficaz (Quivy e 11 Tomamos aqui como referente principal, na análise da complexidade do real, as perspectivas de Edgar Morin (1981 e 1997). 65 Campenhoudt, 1992; Bravo, 1986). Elas constituem proposições provisórias que se tornam essenciais como critério de selecção de abordagens teóricas e de verificações empíricas. Pretende-se que a sua formulação contenha sufucientemente os elementos que permitam a sua verificação e, desse modo, tanto a sua comprovação como a sua negação. As principais hipóteses que construimos para ordenar o percurso analítico constituem enunciados que derivam sobretudo da formação e da experiência do autor, por isso carregadas tanto de limitações como de virtualidades, que não pretendem ser mais do que pontes entre um saber "menos científico" e um saber "mais científico", retomando uma expressão de Quivy e Campenhoudt (1992:136). Em primeiro lugar, há uma multiracionalidade explicativa para as reformas do secundário de pendor integrador e desespecializador e para a sua similitude e simultaneidade no espaço europeu. Não nos parece ser possível lançar a hipótese de que há um factor que se destaca (o económico?) como capaz de desvendar o emaranhado de ideologias, de paradigmas e de razões menos óbvias que lhes são próprios12. Cremos ser mais viável empreender este esforço de desocultação do problema através do enunciado de um conjunto de quatro hipóteses explicativas interconectadas. Primeira: pelo efeito conjugado e conflituoso de várias dinâmicas sociais, entre as quais se destacam as novas formas de organização do trabalho e as marcas de instabilidade e de incerteza que caracterizam os trajectos profissionais à entrada do mercado de emprego, o desemprego estrutural que afecta particularmente os jovens, uma procura social crescente e eminentemente credencialista de mais e mais educação e os novos requisitos para a força de trabalho enunciados pelos empresários e pelo 12 Explicitamos os conceitos de ideologia e de paradigma. Ideologias são sistemas de ideias que nos permitem e nos proporcionam visões do mundo: dar forma, estruturar e dar sentido ao real e nele se referenciar. Paradigmas são princípios de distinção-ligação-oposição entre algumas noções mestras que comandam e controlam o pensamento, ou seja, que controlam a constituição de teorias e a produção de discursos. 66 sistema económico em geral, produz-se uma crise prolongada acerca do lugar e do papel do ensino e da formação de massas ao nível do secundário. Esta crise é particularmente visível nos contínuos debates e nos conflitos permanentes entre as várias racionalidades em presença na estruturação do ensino e da formação a este nível, acima referenciadas. As medidas de política que se traduzem nas reformas educativas em análise devem ser consideradas desde logo como sinais desta crise e expressão deste conflito de racionalidades. De facto, a verificação deste conflito de racionalidades, como manifestação de diversos modos de optar e agir perante as novas dinâmicas sociais em presença, deve tornar-se um procedimento essencial desta investigação. As reformas educativas em análise, desencadeadas em diferentes países do espaço europeu, apresentarão muito provavelmente um fundo relativamente comum de problemáticas sociais e um fundo relativamente diverso de opções políticas e ideológicas. A percepção desta diversidade requer que a análise das reformas integradoras e desespecializadoras não se quede pelo estudo dos referenciais produzidos pelos governos, mas também procure ouvir um conjunto de actores sociais nacionais significativos. Segunda: dando mais um passo, supomos que as reformas do ensino e da formação ao nível do secundário, aqui consideradas, assentam em dois grandes referentes principais. Um, de provocação ou de incitamento à reforma, que são os processos de reestruturação da economia europeia e mundial. Outro, de modelização e de organização, que é o ensino geral académico. Quanto ao primeiro referencial, sempre presente nas políticas de ensino e de formação, importa sublinhar que é a formulação de um novo mandato económico para os sistemas educativos que surge como a sustentação mais explícita das medidas de política. Estaremos, assim, perante um movimento 67 de actualização das políticas passadas no que se refere à relação entre o ensino e a formação, por um lado, e o emprego e o trabalho, por outro. Enquanto que antes a economia requeria do ensino e da formação de nível secundário, entre outros aspectos, a especialização de uma mão-de-obra capaz de satisfazer as necessidades das empresas, agora estas mesmas empresas requerem uma mão-de-obra polivalente, menos especializada, portadora de competências "gerais e transferíveis", como habitualmente se nomeia na documentação sobre o tema. Ainda quanto a esta preponderância da retórica económica, ela parece traduzir um quadro ideológico em que as políticas dos governos nacionais se despolitizam e as suas políticas se confinam à cooperação com a economia, a saber, à adopção de um liberalismo em expansão mundial. A racionalidade económica e produtivista parece sobrepor-se a todas as outras como a grande força legitimadora e mobilizadora das reformas em análise, liofilizando o campo de referenciais das medidas de política de reforma do ensino e da formação de nível secundário. Por outro lado, o percurso educativo íman que parece atrair os esforços reformadores como capaz de responder aos novos desafios sociais é o ensino geral académico, o que em vários países se confunde com a tradicional via liceal. Esta orientação resulta de um processo complexo em que, de um lado, tende a prevalecer no ensino e na formação de nível secundário uma função propedêutica, de passagem para estudos posteriores, função esta reforçada por uma procura social que se encaminha para o acesso às mais altas credenciais escolares, diante de um mercado do primeiro emprego muito adverso, e em que, de outro lado, os governos tendem a confundir o requisito de novas competências gerais e transferíveis com a necessidade do reforço das componentes de ensino mais generalista e mais relacionado com as tradicionais aprendizagens básicas (tais como Línguas, Matemática, Ciências Sociais, Filosofia) e em que, finalmente, as próprias vias de ensino geral são as que historicamente têm desempenhado 68 a função propedêutica do ensino secundário, embora antes o tivessem feito num ambiente em que o acesso a este nível de ensino e de formação estava reservado a uma elite social. Acresce ainda que a combinação de ambos os referenciais se traduz também no real adiamento da entrada dos jovens no mercado de emprego, protelando esse momento-choque para uma idade cada vez mais próxima dos vinte anos, o que convirá mais a uma economia que cresce regredindo no emprego disponível, do que a razões que relevam da ordem do desenvolvimento humano. Terceira: alguma atracção crescente pelo ensino geral académico, tanto do lado da oferta como do lado da procura de ensino e de formação, ao acantonar-se na reposição do velho modelo liceal, corresponde a um novo modo de especialização do ensino e da formação ao nível secundário. A academização dos currículos do ensino e da formação espelha, assim, uma estratégia defensiva dos governos e das suas políticas educativas face às pressões sociais e económicas que se exercem sobre os Estados-nação e corresponde não a uma função de melhoria da qualidade da educação, mas a uma função de "transporte" massivo dos jovens para estudos superiores. Assim pressionados e a braços com uma procura social crescente, os governos tendem a encontrar soluções políticas viáveis decalcando-as no "discurso internacional" mais moderno, enunciado pelos países mais modernos e pelas organizações de cooperação internacional mais influentes politicamente, tanto no plano nacional como no internacional e, a este respeito, uns e outras insistem na necessidade de reforço de uma formação geral para todos os jovens que percorrem o nível secundário. Uma vez operacionalizado este "mandato" em reforço da formação geral académica, o ensino e a formação de nível secundário especializam-se agora na função 69 social de encaminhar um caudal crescente de jovens para estudos póssecundários e superiores, tornando o ensino secundário académico como o referente do nível secundário de massas. Quarta: a similitude das orientações e a simultaneidade destes movimentos reformadores, nos anos noventa, na Europa Ocidental, resultam da integração das reformas educativas nacionais em projectos reformadores globais, pan-dinâmicas reguladas por paradigmas e ideologias construídas e veiculadas por organismos e agências internacionais (tais como Comissão Europeia, OCDE, Conselho da Europa, UNESCO, OIT), por redes de peritos, presidentes de grandes empresas multinacionais e organizações internacionais de empresários e de trabalhadores, por congressos e todo o tipo de encontros internacionais, por publicações e por estatísticas. As correntes de pensamento e de acção assim geradas e comunicadas transportam uma pressão homogeneizante, no quadro de uma sociedade e de uma economia de mercado cada vez mais globalizadas e de uma diluição da diversidade e da relevância política de actuações políticas autónomas dos Estados nacionais. Formula-se no plano internacional como que um "sistema de altas pressões", fundamentalmente ideológico, que orienta os esforços reformadores nacionais (movimento do global para o nacional), ao mesmo tempo que lhes dá a possibilidade de se sentirem legitimados (movimento do nacional para o global). As suas orientações são tomadas como naturais, são inevitáveis e irrecusáveis e, em grande parte, invisíveis. A sua invisibilidade constituirá, aliás, um dos seus principais atributos e uma importante base do seu poder de isomorfização internacional. O recurso crescente a esta fonte de legitimidade, voluntário e involuntário, funciona não só como um importante mecanismo de superação das dificuldades que cada Estado-nação encontra em reestruturar os seus sistemas educativos nacionais e como resposta à crise de sentido por que passa o ensino secundário, mas também para fazer 70 face às reestruturações económicas em curso. Não se adopta a perspectiva de que o efeito deste sistema mundial seja arrasador. A diversidade de traços que caracteriza as reformas em apreço, que surgem aparentemente como políticas originais e desconexas, resultam quer de tradições históricas e culturais diversas quer dos movimentos nacionais de apropriação e adaptação das perspectivas e das orientações formuladas no plano transnacional às histórias, culturas e opções políticas nacionais. Estes movimentos nacionais provocam aliás descontinuidades evidentes nas políticas de ensino e de formação de nível secundário, na Europa. No entanto, reconhecendo a existência e a importância destas descontinuidades, a nossa hipótese centra-se sobre os efeitos deste sistema ideológico mundial sobre as representações dos decisores políticos e sobre os principais actores sociais, exercendo um poder estrutural e estruturante das suas políticas e das reformas educativas nacionais. Este processo encontrar-se-á fortemente relacionado quer com a preponderância do factor económico sobre a formulação das políticas quer com a necessidade dos governos encontrarem, fora dos contextos e dos organismos nacionais, as fontes de legitimação das suas políticas educativas, ultrapassando desse modo as crises de orientação política do ensino e da formação a nível secundário e a crise de legitimação em que se encontram mergulhados. É a esta luz que se compreende que por vezes as políticas enunciadas e executadas transcendam as realidades locais e nacionais e os seus problemas específicos e se sustentem numa retórica muito genérica e agregadora, sensivelmente a mesma em cada um dos países. Principais opções metodológicas Para analisar este problema e verificar estas hipóteses e, por esta via, construir uma abordagem crítica e científica do problema, procedemos ao 71 delineamento de um percurso metodológico próprio, formulando um conjunto de procedimentos, cujas principais características pretendemos agora apresentar. O primeiro e decisivo passo é o da releitura do problema à luz dos contributos teóricos das ciências sociais. Optamos por mobilizar um conjunto de contributos teóricos, teorias e perspectivas teóricas13, que interpretam a relação entre educação e economia e, mais concretamente, entre ensino e formação, por um lado, e trabalho e mercado de emprego, por outro. Esta matéria tem sido objecto de importantes esforços analíticos, ao longo do século XX, o que, como alguns autores sustentam14, não tem sido suficiente para edificar um corpo teórico relativamente sedimentado e estável. É no âmbito da sociologia da educação e da sociologia do trabalho que vamos encontrar os quadros teóricos de referência para sustentarmos este passo. Quanto à sociologia da educação, a análise a empreender girará em torno dos conceitos-chave de correspondência e de não-correspondência entre os dois campos referidos e dedicará especial atenção à desocultação do encadeado ideológico funcionalista, esse sim bem sedimentado, que abraça a relação entre educação e economia. Em íntima conexão com aqueles conceitos estão importantes quadros analíticos propostos pela sociologia do trabalho. Entre eles destacam-se as teorias da evolução dos modelos de produção e de desenvolvimento nacional, as perspectivas teóricas da qualificação, requalificação e desqualificação e as teorias da segmentação do mercado de trabalho. Este percurso sendo necessário, perante as hipóteses enunciadas, não é todavia suficiente. De facto ele não permite 13Nem todos os contributos teóricos que vamos mobilizar se apresentam como teorias. Por teoria entendemos, tomando por base a reflexão de Edgar Morin, um sistema de ideias que estrutura, hierarquiza e verifica o saber, de forma a justificar a ordem e a organização dos fenómenos que considera. Uma teoria é um sistema aberto, porque procede a verificações e se sujeita a revisões, e, por isso, é igualmente um sistema perecível, pois pode ser invalidado por novas verificações. Procuraremos considerar, ao longo do trabalho, esta definição. 14 Autores como Gallart (1992), Husén (1990) Berthelot (1996) assinalam o facto de ainda não haver um corpo de teorias que sustentem a análise desta relação educação-economia-trabalho. 72 abordar a problemática da similutude e da simultaneidade que caracterizam as decisões políticas de reforma educativa que aqui estudamos. Por isso, num segundo tempo, vamos inscrever o problema de partida em quadros de leitura do processo de globalização, nas teorias do sistema mundial e nos quadros teóricos da análise societal da evolução dos sistemas educativos nacionais. Neste âmbito propomo-nos desenhar um novo quadro de análise da evolução dos sistemas educativos nacionais enquanto construções do sistema educativo mundial. Este percurso de abordagem teórica não pode ignorar, no entanto, um dado fundamental desta investigação, a saber, o facto de empreendermos um estudo internacional, contemplando países europeus muito diversos, e o nosso propósito de estudar um objecto que em todos eles está similar e simultaneamente presente. Este dado requer uma fundamentação rigorosa pois o quadro analítico escolhido condiciona profundamente o modo de ver as diferentes reformas educativas nacionais e toda a análise empírica que dele defluirá. Um estudo internacional A passagem da abordagem teórica para o terreno da observação e do trabalho de campo requer uma mediatização, neste caso intransponível, uma vez que subsistem por explicitar os caminhos que decidimos percorrer diante do problema que representa para esta investigação o facto de estarmos face a um estudo internacional, contemplando países europeus muito diversos e o propósito de estudar um objecto de análise que em todos está presente. Impõe-se, por isso, esclarecer como vamos construir validamente uma análise de um objecto que requer a consideração de um conjunto de 73 reformas desencadeadas num conjunto de países da Europa, cuja diversidade histórica e cultural é patente. Em todos os casos aqui em estudo são nítidas as diferenças entre os contextos sociais em que as reformas são empreendidas. Subjacente a esta diversidade está a realidade histórica e cultural de cada nação. Como propõe Marc Maurice (1989), existem "coerências societais" que subjazem e explicam as descontinuidades entre a evolução dos sistemas educativos dos vários países. Joelle Plantier (1990) assinala também que é na lógica de funcionamento de cada sistema de educação e de formação de cada país que se estabelecem as diferenças entre os países, ou seja, é na estrutura interna das relações entre os fenómenos sociais que se forma o sentido das diferenças inter-nacionais. Tomamos como dado adquirido que as relações sociais não se constroem nem se combinam do mesmo modo em dois tipos de sociedades diferentes. Os estudos promovidos pela equipa de investigadores do Laboratoire d'Économie et de Sociologie du Travail-LEST, de Aix-en-Provence, evidenciam, por exemplo, o diferente modo de dirigir a oferta e de canalizar a procura social do ensino secundário em França e na Alemanha e as diferentes relações entre os sistemas de ensino e formação e os tecidos produtivos, quer na produção de qualificações quer no seu reconhecimento, no quadro dos mercados profissionais de trabalho. Como assinalam as teorias da "coerência societal" (que retomaremos mais adiante com maior profundidade) existe uma rede de relações sociais - de formação, organizacionais, industriais, de ordem colectiva - que permanece consistente intra-nacionalmente e que varia significativamente quando analisada inter-nacionalmente (Schriewer, 1995). As instituições nacionais de educação e de formação, que se inscrevem em padrões nacionais específicos, operam como sub-sistemas largamente autónomos que, construindo o seu ambiente social, induzem outros sub-sistemas a 74 adaptarem-se (como as empresas industriais). Muitos estudos comparativos revelam que estas redes de relações, social e culturalmente determinadas, influenciam diferenciadas formas e estratégias de utilização subsequente das novas tecnologias, mantendo a rica diversidade de padrões históricoculturais. Esta perspectiva permitiu ultrapassar tanto uma análise meramente funcionalista (cross-national), em que a comparabilidade se funda sobre um princípio que supõe uma continuidade entre os fenómenos que se comparam, termo a termo, em cada país, como uma análise culturalista (cross-cultural), que evidencia as descontinuidades entre os países assentes nos diferentes universos culturais e nos diversos percursos históricos nacionais. A análise societal, no entanto, revela alguma fragilidade na capacidade de integrar as novas dinâmicas sociais de reestruturação das sociedades e das suas interrelações, sob o efeito da mundialização comercial e cultural. A própria difusão transnacional e transcultural de conhecimento, de modelos organizacionais, de padrões de resolução de problemas e de políticas ocorre com uma intensidade e uma continuidade processos de internacionalização e de globalização cultural - que influencia a referida evolução dos padrões nacionais específicos. No entanto, assim como as análises culturalistas tendem a menosprezar os efeitos do sistema mundial sobre as redes de relações sociais intra-nacionais, também as teorias do sistema mundial tendem a depreciar os modos como os grupos sociais nacionais e culturais recebem, se apropriam e adaptam os modelos tansnacionais e transculturais. A re-formulação nacional e local é, de facto, como acentua Schriewer, um importante processo social que ocorre no jogo local de interesses, situações e necessidades. Todavia, não será de desvalorizar, nos anos noventa, seja pelo efeito do incremento da globalização da economia de mercado seja pelo crescimento incontido da circulação da informação e dos modelos culturais 75 dominantes, uma crescente interdependência inter-nacional dos modelos sociais e educacionais estandardizados transnacionais, mormente na União Europeia. Há muito que a Educação Comparada e Internacional se debatem com o problema metodológico da unidade de análise a privilegiar. Historicamente, o Estado-Nação constituiu a unidade de análise por excelência. O mundo era visto como um vasto conjunto de sociedades nacionais autónomas, com distintas coerências socio-históricas. Mas, hoje, como acabamos de referir, a globalização económica, cultural e política e a implantação do liberalismo económico em quase todo o mundo requerem que se proceda a releituras que apreendam as dimensões macro, meso e micro que estão contidas nos processos históricos da evolução dos sistemas educativos. Como sugere António Nóvoa (1995), a Educação Comparada e Internacional precisam de romper com o estudo limitado à dimensão inter-nacional dos sistemas educativos, alargando-o também tanto aos processos de globalização como aos fenómenos locais. O sistema mundial constitui uma unidade pertinente de análise, a par dos sistemas educativos nacionais e dos espaços educativos e escolares locais, pela simples razão de que o local e o nacional já não escapam ao global e o global não apaga o nacional e o local. As três dimensões de análise fazem parte de um mesmo processo histórico. Não nos parece pertinente, nesta análise, ficarmos contidos no debate entre “melhoristas” e “académicos”, no campo tradicional da Educação Comparada, porque, na actualidade, os campos de análise cruzam-se permanentemente e abrem necessariamente o campo da compreensão da historicidade dos fenómenos educacionais. Na Europa Ocidental, os sistemas políticos organizados territorialmente parece serem cada vez mais irrelevantes nas redes de comunicação e de interdependência; o sistema mundial é uma realidade autónoma e exterior que, como diz Schriewer (1995), tem as suas próprias leis de movimento que determinam também as realidades económicas, sociais, políticas e culturais, das sociedades 76 nacionais que ele abarca15. Nesta área específica do globo, a União Europeia, pode mesmo afirmar-se que os problemas sociais mais relevantes em cada país são comuns à generalidade dos países. Ora, este facto político e educacional requer que se tomem como referência novos lugares da tomada de decisão em matéria de educação (Nóvoa, 1995). Como já haviam salientado os teóricos da análise societal, as diferenças entre os sistemas educativos nacionais revelam, por um lado, que existem "campos de práticas" diferentes e "espaços" diferentes de enunciação e de aplicação, culturas profundamente diversas e que, por outro, estas diferenças nacionais se inscrevem, em parte, num espaço e num campo de práticas mais gerais, o que se compatibiliza e faz luz sobre a similutude e a simultaneidade de várias reformas do ensino secundário que ocorrem na Europa, em deferentes países. A sua análise sociológica há-de ser tanto mais profunda quanto mais estas reformas forem lidas como fenómenos sociais que relevam simultaneamente da evolução do sistema educativo mundial e da evolução do sistema educativo nacional, sempre inseridos em redes de relações sociais inter-nacionais e intra-nacionais mais vastas. Aliás, estas reformas do campo educacional, tanto no plano inter-nacional como no plano intra-nacional, são também processos indissociáveis da evolução dos sistemas económicos e produtivos e, como se explicitará adiante, em boa parte deles dependentes. O Acto único Europeu, os Tratados de Maastricht e de Amesterdão, ao colocarem na ordem do dia e apontarem para passos decisivos na construção da União Europeia, constituem peças fundamentais para a redução das diferenças entre os quinze países e para o crescimento das compatibilidades inter-nacionais. A comparabilidade entre os países europeus não pode ficar prisioneira das diferenças irredutíveis entre as 15 Esta investigação constitui um primeiro passo para a compreensão do modo de constituição e acção do "sistema” educativo mundial, ficando muito longe de alcançar as "leis" do seu movimento próprio. 77 "culturas nacionais", revelando a sua debilidade para pensar os novos contornos sociais que se desenham. De facto, estão em construção, agora acelerada, políticas comuns, nomeadamente de educação e formação, o que faz irromper uma "coerência comunitária das diferenças nacionais" (Plantier, 1990) que também importa compreender no ambito dos estudos internacionais de educação. Além das diferenças inter-nacionais, existem estruturas e modos de funcionamento mais ou menos diversos que são chamados e incentivados a desempenhar, no plano nacional, funções sociais comuns, comunitárias, ditadas em boa parte por medidas transnacionais e por esforços comuns de coesão inter-nacional europeia. As diferenças internacionais já não são apenas diferenças que se podem comparar entre si, mas também são parte de um todo que é a rede de relações sociais e de obrigações existentes dentro da União Europeia e nas relações dela com o resto do globo. Este todo constitui, pois, um novo objecto de estudo na investigação educacional de âmbito internacional. Desenha-se assim, um quadro de idênticos dilemas e de idênticos conflitos entre racionalidades divergentes e inscritas em cada espaço nacional de modo diferenciado. O conflito de racionalidades que habita os sistemas de ensino secundário em cada um dos países da União Europeia - e por tradição e arrastamento, de cada um dos países da Europa - é cada vez mais um conflito comum, em boa parte regulado globalmente, de fora para dentro de cada país europeu, racionalidades estas que se manifestam também de modos diversos no campo das relações sociais de cada país, também elas cada vez mais aproximadas. Bastará trazer à colação o cumprimento das normas e das metas económicas comuns, estabelecidas no quadro da adopção da moeda única, o euro, e o concomitante plano de convergência nominal, as manifestações comuns e europeias de protesto contra as políticas de emprego ou ainda as medidas tendentes à adopção de um “passaporte” comum de formação. 78 Ultrapassam-se assim as visões que enfatizam apenas a importância da história e da cultura locais ou nacionais, sem desvalorizar, no entanto, o papel das redes de relações sociais locais e nacionais, antes colocando-as num plano de interacção permanente com os efeitos societais globais, interacção essa que percorre caminhos vastos e sinuosos de identificaçãorejeição entre os modelos e as políticas oriundos tanto dos modelos educacionais transnacionais e das suas relações com a economia global, como do sistema educativo nacional e das suas relações com a economia e a cultura locais e nacionais. A história e a cultura locais coexistem com uma história e uma cultura que se constroem e disseminam pelo mundo, provocando um campo de interconexões em que as primeiras não resistem à interferencia das segundas, antes as acolhem e convertem de modos diferenciados, em função de variados factores, entre os quais estará certamente o lugar de cada país no espaço económico mundial, as políticas culturais nacionais e a posição geoestratégica na cena política internacional. O nosso esforço de análise vai para uma visualização mais complexa desta interpenetração e interdependência no campo educativo, pela análise das reformas educativas nacionais relativas ao ensino secundário não só como percursos de modernização social e configurações socioculturais específicas, mas também e irrecusavelmente como processos históricos de recepção, apropriação e adaptação de orientações transnacionais e mundiais. Recorrendo aos termos empregues por Marc Maurice (1989), existe continuidade e descontinuidade entre os países a observar e estas continuidade e descontinuidade situam-se numa temporalidade e num espaço transnacional que também as explicam. As coerências societais nacionais são também aqui consideradas, por isso, expressões particulares de um modelo transnacional que as constrói e que elas ajudam a construir. A leitura inter-nacional das reformas educativas do ensino secundário que aqui propomos assenta, assim, por um lado, na vertente exógena que existe 79 nas reformas adoptadas, sem negar, antes reconhecendo também, a componente endógena que as liga necessariamente a cada contexto societal nacional e, por outro lado, na homogeneidade e, consequentemente, na continuidade social que se manifesta entre os diversos países, sem negar, no entanto, a heterogeneidade e as descontinuidades que existem entre eles. Mais do que nos lançarmos numa comparação termo a termo, que encontraria enormes dificuldades em explicar quer as semelhanças quer as diferenças entre os países, optamos por avançar para uma abordagem inter-nacional cuja metodologia valoriza o lugar relevante das ligações sociais que se estabelecem entre os actores sociais nos planos nacionais e a vaga de referências recíprocas e comuns em que o seu pensar e o seu agir se sustentam. O que se perde em informação contextualizada, ganha-se em informação comparada e esta, como vimos, está cada vez mais na ordem do dia, seja nas organizações internacionais seja nos centros de investigação. Para além de uma análise, caso a caso, dos enunciados normativos que enformam as reformas educativas nacionais relativas ao ensino secundário, procederemos ainda a uma análise acerca do modo como em cada um dos países os diferentes actores sociais em jogo interpretam e se relacionam com as mesmas reformas educativas. É evidente que o método escolhido para esta segunda abordagem, o questionário, patenteia grandes fragilidades na compreensão das redes de relações sociais entre os actores nacionais. Temos plena consciência de que se trata, tão-só de um primeiro passo e do único passo possível, por agora, dadas as limitações com que deparamos para proceder seja à realização de entrevistas presenciais, menos fechadas no modo de perguntar e sobretudo no modo de responder, seja à observação no terreno . Além destas limitações específicas, estamos conscientes de outros riscos inerentes à opção que constitui o percurso desta investigação: a história do ensino secundário em cada país tem uma identidade própria, ainda que 80 apresente alguns traços idênticos e comuns; os tipos de escolas e centros de formação a nível do secundário, as várias modalidades formativas e os conceitos usados, ainda que idênticos, não são necessariamente os mesmos, sendo possível entrar em deslizes semânticos de controlo difícil, uma vez que estamos perante um conjunto de nove países que se expressam em oito línguas diferentes; finalmente, ainda que as reformas educativas se apresentem com um discurso e uma formatação idênticas, é provável que o que as determinou, o jogo social dos actores que as envolveu e os seus objectivos precisos não reunam o mesmo nível de identidade. A consciência destes riscos implicou algumas precauções metodológicas apropriadas que a seguir se explicitarão, certos de que eles não ficam ultrapassados, nos limites desta investigação. Delimitação do campo de análise Impõe-se também uma delimitação espacio-temporal do campo de análise. Ou seja, de que reformas se trata, do que se trata nas reformas que se pretende analisar, que países são envolvidos e qual o período a que reporta a análise. As reformas em apreço são as que ocorreram entre 1990 e 1996 e que incidiram sobre o ensino e a formação ao nível secundário, no seu todo ou em alguma das suas principais componentes, desde que marcadas por medidas de reestruturação curricular e/ou organizacional de cariz integrador e/ou desespecializador. Admite-se, no entanto, que os períodos de gestação destas reformas possam ter ocorrido durante os anos oitenta, o que efectivamente sucedeu em vários casos. Um outro esforço de delimitação centrou-se na análise dos processos de reforma. A definição dos aspectos a considerar, em função do objecto de 81 investigação, conduziu-nos à selecção de um certo tipo de análise e de certas fases dos referidos processos. Assim, optou-se por uma visão macropolítica, tendo-se excluído a análise dos processos micropolíticos que sempre estão presentes na tomada de decisões políticas socialmente tão relevantes. Este tipo de enfoque, por sua vez, incidiu apenas sobre as fases de preparação e concepção das medidas de política, mais ou menos acompanhadas de processos de participação social alargada, e ainda as fases de construção normativa e de experimentação, caso esta tenha tido lugar. Esta decisão fundamenta-se no facto de a análise destas fases ser a mais relevante e ser suficiente, na economia deste estudo, uma vez que é durante elas que se produzem as grandes opções políticas, tanto no que se refere aos seus fundamentos (os porquês) como quanto aos seus objectivos (os para quê). Este período é, assim, tomado como o mais significativo para compreender quer as opções políticas de cada governo nacional quer as razões que lhes subjazem. De fora deste ângulo de visão ficam os processos de implementação das reformas, os modos da sua aplicação no terreno, o seu impacto, o seu acompanhamento e a sua avaliação.16 Deste modo, não cabe nesta investigação a análise dos diferentes processos de apropriação nacional e local e de interpretação, no terreno da execução das políticas educativas, dos modelos educacionais transnacionais. Quanto à selecção dos países a incluir na investigação adoptaram-se quatro critérios, que se cruzaram. O primeiro consistiu na restrição da análise à Europa Ocidental. A exclusão da Europa de Leste deve-se ao facto de se pretender manter um bom nível de homogeneidade no que se refere ao contexto geopolítico e económico. Ora, os países do Leste Europeu, além de terem constituído durante décadas um bloco económico e político autónomo e diferenciado, atravessaram mutações profundas durante o fim dos anos 16 As fases enunciadas referem-se a um modelo de reformas educativas estatais e oriundas do centro para a periferia do sistema educativo. Embora se reconheça que há outros modelos de reformas educativas, crê-se que este foi o que predominou nos países em apreço e que, portanto, seria o quadro de referência de todos os interlocutores com quem teríamos de contactar. 82 oitenta e a primeira metade dos anos noventa. Por idênticas razões, a mesma separação já não se pretendeu instituir, na Europa Ocidental, entre os países que já integram a União Europeia e os restantes. Por outro lado, a escolha dos países recaiu sobre aqueles em que, dentro deste espaço geopolítico e económico, ocorreram, desde 1990, reformas ao nível do ensino secundário, no seu todo ou em alguma das suas principais componentes, como o ensino técnico e a formação profissional. Admite-se que o período de gestação destas reformas possa ter tido início durante os anos oitenta. Exclui-se desta compilação, embora nela se enquadre inteiramente, o caso português. Esta exclusão, já esclarecida no prefácio, prende-se sobretudo com a opção do autor desta investigação de se querer distanciar do seu envolvimento directo na reforma do ensino secundário português17. Entende-se que, deste modo, a análise pode ser realizada com maior objectividade, evitando ter de recorrer a mecanismos de autojustificação, ainda que implicitamente. É certo, no entanto, que muito do conhecimento informal que fomos adquirindo sobre a problemática em análise tenderá a envolver-se na construção científica que dela queremos empreender. O terceiro critério de delimitação do espaço geográfico de análise corresponde ao tipo de conteúdo e de objectivos destas reformas. Elas teriam de apresentar uma clara incidência curricular, uma extensão dos troncos comuns do ensino e da formação, uma orientação em ordem à polivalência e à integração curricular, nos termos já descritos. O quarto critério é o da ocorrência simultânea de movimentos de redução, mais ou menos drástica, do número de cursos técnicos e ou profissionais especializados, o que designamos por desespecialização. 17 Ao excluirmos o caso de Portugal também excluímos, em boa parte, as referências bibliográficas com ele correlacionadas, pese embora o facto de as conhecermos. 83 A pesquisa documental Em primeiro lugar, procedemos a uma recolha documental acerca das opções políticas subjacentes às reformas educativas nacionais que incidiram no nível secundário. Os enunciados normativos e as leituras governamentais dessas decisões políticas foram submetidas a um processo hermenêutico18 de análise. Explicitemos o modo como equacionamos este passo metodológico (descrito no capítulo quinto). Com base nos critérios já acima explicitados, procedeuse à selecção e identificação dos países e das reformas sobre os quais incidiu a nossa análise. A aplicação daqueles critérios originou a identificação de nove casos, a saber: Dinamarca - Uma lei de Junho de 1990 veio reformular o ensino secundário profissional de segundo ciclo, na sequência de idêntica reformulação operada anteriormente no ensino profissional de primeiro ciclo. Espanha - Reforma do ensino secundário, na sequência da LOGSE, de 1990, alargamento do tronco comum de formação, criação de um novo "Bachillerato" e concomitante reforma das modalidades de Formação Profissional. Finlândia - Desde 1990, está em curso a criação de uma nova escola secundária superior unificada. França - Em 1992, foi lançada uma reforma dos liceus em que o número de fileiras é reduzido e os cursos do ensino secundário são reestruturados em dois ciclos. Holanda - Reforma de todos os tipos de ensino secundário, que se 18 Hermenêutica é aqui entendida como o processo de decifração e de compreensão dos textos oficiais, um “encontro histórico” (Palmer, 1989) entre os documentos e o esforço de interpretação pessoal. 84 prolonga por toda a década de noventa, tendo-se iniciado em 1993. Itália - Reforma dos Instituti Professionali, designada por "Progetto’92", que decorreu entre 1988 e Abril de 1992, momento em que terminou a sua fase experimental. Noruega - Reforma do ensino secundário, chamada "Reforma 94", preparada desde o fim dos anos oitenta e lançada entre 1992 e 1994. Suécia - Reforma do ensino secundário, preparada ao longo da segunda metade dos anos oitenta, consagrada em Lei de Junho de 1991, entrou em vigor em 1993/1994. Suíça - Um plano de reforma de 1992 revê as condições de acesso ao Certificado de Maturidade e outra medida institui uma nova via de acesso a este Certificado, a "maturidade profissional". Pela pesquisa que empreendemos estas terão sido as reformas do ensino secundário que, a par da de Portugal, aconteceram neste período de tempo, na Europa, e que reuniram as características enunciadas. As outras medidas analisadas, nomeadamente as iniciativas do governo britânico relativas aos programas de formação emprego para os jovens e as medidas de redução das especializações no sistema dual alemão, embora se possam inscrever em tendências globais comuns, não reúnem as características ou não se enquadram nos limites enunciados. Há três destes casos em que, embora ocorra uma efectiva reforma do ensino e da formação ao nível do secundário, com incidência curricular, com extensão dos troncos comuns de formação e orientada para a polivalência e a integração curricular, não se verifica o cumprimento do quarto critério, ou seja, não ocorre simultaneamente uma desespecialização nos cursos de tipo técnico e profissional. Apesar disso, a opção pela consideração dos casos da Espanha, da Holanda e da Suíça no presente estudo deve-se ao facto de se entender que as reformas empreendidas apresentam, ainda assim, características gerais idênticas, cumprindo os outros critérios referidos. 85 O processo de recolha dos dados relativos às reformas educativas do ensino secundário, país por país, decorreu entre 1986 e 1996. Ao longo dos anos e à medida que as diferentes reformas eram planeadas, arquitectadas, debatidas, adoptadas e experimentalmente executadas, fomos reunindo documentos, ideias e preocupações sobre as reformas em questão. Os encontros internacionais, os seminários europeus, as reuniões internacionais de peritos nacionais, constituíram a principal base para a recolha dos documentos oficiais dos Ministérios da Educação nacionais relativos às reformas. Optou-se por centrar a análise destas medidas de política no estudo das fontes primárias, os textos oficiais publicados pelos respectivos Ministérios, tendo-se restringido fortemente a consulta de fontes secundárias, como estudos mais ou menos descritivos ou críticos sobre os mesmos processos de reforma. Para completar alguns elementos em falta e para actualizar a informação, foram sendo dirigidos, ao longo dos anos, pedidos oficiais de informação aos Ministérios da Educação nacionais. Ao mesmo tempo, entre 1994 e 1996, juntaram-se àqueles primeiros elementos um conjunto de descrições oficiais dos sistemas nacionais de ensino secundário. Estão nesta linha a série de publicações do Conselho da Europa sobre os sistemas nacionais de ensino secundário, a série de publicações do CEDEFOP sobre os sistemas nacionais de formação profissional, a série de relatórios nacionais elaborados para a Comissão Europeia, relativos às medidas de política tendentes a prevenir o abandono e o insucesso escolares e, em alguns casos, as descrições dos sistemas nacionais de educação escolar inscritas nas publicações da OCDE referentes aos "Exames às Políticas Educativas Nacionais". A unidade de todos estes documentos reside no seu carácter oficial. Independentemente da sua apresentação (folheto de divulgação, relatório, 86 estudo comparado), eles traduzem as posições políticas dos governos nacionais. Deu-se sempre prioridade, em todo o caso, aos documentos de fundamentação e de divulgação pública emanados dos Ministérios da Educação nacionais. Eles constituem um importante recurso para a investigação exactamente por usarem uma linguagem "natural", declarativa e normativa, embebida na retórica política habitual. A análise da documentação recolhida para cada um dos países obedeceu a uma grelha geral constituída pelos aspectos seguintes: (i) enquadramento do ensino e da formação de nível secundário superior no sistema de educação e formação de cada um dos países; (ii) consideração da amplitude do desemprego juvenil; (iii) identificação das medidas de política tomadas relativas a este nível de ensino e de formação; (iv) identificação do núcleo de princípios gerais e específicos enunciados como fundamentadores das medidas de política em análise; (v) breve caracterização dos processos seguidos de envolvimento de comissões e grupos de trabalho, de estabelecimento de novos dispositivos legais e de participação de parceiros sociais nas mesmas medidas. O Capítulo 5 dá conta dos resultados obtidos para cada um dos países e resume as principais conclusões quer quanto à delimitação do objecto da investigação quer quanto à verificação das hipóteses. Questionário: objectivos e limites O inquérito foi eleito, como se referiu, como o instrumento de análise empírica das questões centrais da investigação e de verificação da pertinência das hipóteses enunciadas (descrito no capítulo sétimo). Estiveram na mira da realização do inquérito os seguintes objectivos: (i) identificação dos princípios gerais e específicos que sustentam, na óptica 87 dos actores sociais, as reformas do ensino e da formação ao nível do secundário; (ii) verificação da opinião dos actores acerca dos processos de desespecialização inscritos nas reformas; (iii) verificação do modo como os actores analisam as influências das dinâmicas transnacionais sobre as reformas dos sistemas educativos nacionais; (iv) identificação das principais pressões e resistências internas (nacionais) à adopção das medidas de reforma do ensino e da formação; (v) compreensão dos papéis dos diferentes actores sociais nos processos complexos de apropriação nacional das ideologias orientadoras das reformas. O inquérito por questionário foi o método seleccionado para a inquirição e recolha de dados junto de um conjunto predeterminado de actores sociais. O inquérito funciona aqui como substituto da observação e do diálogo aberto com os interlocutores, uma vez que o uso destes meios se tornou difícil e até impraticável. Após uma exaustiva análise dos documentos emanados dos Ministérios da Educação de cada país, documentos com carácter oficial e que enunciam sobretudo objectivos e metas, envoltos numa linguagem necessariamente retórica e correspondente à política governamental, procura-se agora complementar a visão sobre as medidas de política em questão com a recolha de dados junto de vários actores sociais, mais ou menos envolvidos nesses complexos processos sociais. Este instrumento de recolha de dados, baseando-se exclusivamente numa interacção verbal entre o investigador e os respondentes, corre sempre o risco de conter momentos e áreas, quase sempre incontroláveis, de desajustamento entre dois discursos, o do investigador e o dos inquiridos. Aquele interroga em função de um quadro teórico e de conceitos que derivam da sua apreensão do fenómeno em análise e interroga pela intermediação de um conjunto seleccionado de palavras e de perguntas e 88 aqueles respondem o que querem e podem responder, em função das representações que fazem da situação em apreço e dos seus próprios objectivos ou os do organismo que representam que, em todo o caso, não coincidem necessariamente com os do investigador. Estamos conscientes de que o inquérito e o seu suporte exclusivamente verbal é o resultado de escolhas, contém teorias subjacentes e expressa uma determinada semântica (Ghiglione e Matalon, 1993). O autor tem consciência desta limitação. Mas também é na linguagem escrita que circulam, se apropriam e se podem transmitir com rigor as atitudes, as opiniões, as preferências e as representações. É sobretudo pela palavra que, a este nível, se constrói e se transmite significado. A apreensão do real é possível por intermédio da resposta a um conjunto de perguntas-indicadores, construídas depois de o autor ter ouvido, anos a fio, os respectivos actores e depois de ter auscultado longamente o modo como descrevem e falam das suas actividades, sem prejuízo do ruído que existe sempre na comunicação entre dois seres humanos. Neste caso, procurou-se ainda controlar os níveis de desajustamento pelo recurso a um pré-teste junto de um conjunto de actores sociais, idêntico ao que se pretendia inquirir em cada país. Este teste decorreu em Novembro de 1996 e incidiu sobre o caso português, ou seja, a reforma curricular do ensino secundário, que decorreu entre 1988 e 1993, nas suas fases de concepção, construção normativa e de experimentação. O objectivo deste pré-teste foi o de validar a sua arquitectura geral, a pertinência das suas perguntas, a adequação da sua formulação e a sua compreensão por parte dos respondentes. Foram inquiridos os mesmos tipos de actores sociais, organizações e pessoas, num total de onze. Obtiveram-se apenas três respostas. Delas resultou a alteração da formulação de algumas perguntas (por haver repetições, por deficiente explicitação do conteúdo, por necessidade de acréscimo de novos elementos de resposta), a eliminação 89 de uma pergunta e a revisão da introdução aos questionários a enviar para os diversos países. Apesar de o número de respostas ter sido reduzido, o processo de validação foi oportuno e útil, uma vez que contribuiu para uma importante revisão da primeira versão, o que terá facilitado certamente o processo mais generalizado de recolha da informação junto dos interlocutores de outros países. O facto de o objecto do inquérito comportar, dentro de uma problemática genérica comum, processos de reforma efectivamente distintos de país para país colocou necessariamente problemas acrescidos à elaboração do questionário. Como se referiu acima, este constitui um dos pilares da presente investigação: abordar processos de reforma do ensino secundário ocorridos em diferentes países europeus, com a similitude e simultaneidade já repetidamente sublinhadas. Além das dificuldades e das opções enunciadas, os riscos de deslizes semânticos são bem evidentes, carecendo, por isso, de um controlo muito rigoroso. Os conceitos e os termos a que se recorre, ainda que remetidos a uma única língua, o inglês, que permite controlar em boa parte aqueles deslizamentos, foram trabalhados operativamente, em cada país, em oito línguas e culturas diferentes. Diante desta diversidade, de que se tomou consciência, optou-se por colocar os questionários todos em inglês, situar cada uma das reformas educativas em apreciação, em cada caso, no início de cada questionário e explicitar qual o nosso entendimento sobre cada um dos conceitos-base que são empregues no corpo do questionário. Crê-se ter de algum modo reduzido os riscos de deslizamento semântico, embora de modo sempre precário, uma vez que não se podem apagar culturas distintas só porque se usa uma mesma língua e se explicitam os conceitos em uso. A espessura cultural que subjaz, em cada país, às palavras em que cada cultura se expressa será sempre irredutível a qualquer processo deste tipo. Todavia, também estamos cientes de que os termos a que se recorre, em língua inglesa, são já 90 frequentemente usados pelos inquiridos, em boa parte habituados a ler relatórios em inglês e a participar em encontros e outras dinâmicas internacionais. Pesquisa empírica: quem inquirir e como inquirir O questionário é dirigido, como se referiu, a um conjunto seleccionado de actores sociais19. A escolha recaiu, por um lado, sobre os organismos que representam os principais parceiros sociais que estão habitualmente envolvidos, directa ou indirectamente, numa interacção social habitual neste tipo de medidas de política, ou seja, os que representam os pais, os professores, os partidos políticos, os empresários e os sindicatos e, por outro, sobre individualidades que tiveram uma acção directa na génese, na elaboração e na tomada de decisão, ou seja, governantes e peritos, intervenientes a título pessoal ou como membros de partidos ou de comités criados para este fim. Para manter um quadro comparável de análise entre os vários países, optou-se por inquirir um conjunto determinado e estável de actores, assim definido: - peritos que suportaram os governos na adopção das medidas (membros influentes de comissões, centros universitários de investigação, comités e personalidades independentes); - responsáveis políticos governamentais que assumiram e lideraram politicamente essas mudanças; - representantes dos professores (em ligação com as centrais sindicais 19 Tomando por referência contributos teóricos da sociologia da acção, actores sociais são aqui considerados os diversos polos das relações sociais que se estabelecem em cada país em torno das medidas de política de reforma educacional. Os actores sociais que, numa relação de cooperação conflitual, cooperam nos processos de reforma tanto podem ser individuais como colectivos. Estes últimos são, por ex., os sindicatos de professores, as associações de pais, as confederações patronais e sindicais, os partidos políticos e os centros de investigação e os primeiros são os peritos, oriundos geralmente do meio universitário. 91 mais significativas); - representantes dos empresários (confederações patronais mais significativas); - representantes dos pais e encarregados de educação (e dos jovens do ensino secundário, caso haja); - representantes dos trabalhadores ( principais centrais sindicais nacionais). Esta escolha tem dois elementos centrais de fundamentação. De um lado, está a necessidade de auscultar intervenientes sociais na génese das medidas de política, uma vez que se procura indagar sobre quais as opções que lhes estiveram subjacentes e que se crê que a mera audição das opiniões dos governos ou dos políticos não dá suficientemente conta dos diversos modos de apropriação social nacional dos modelos educacionais transnacionais20. Do outro, importa ouvir a opinião, em princípio mais distanciada do processo de tomada de decisão, de parceiros sociais, alguns dos quais se organizam em movimentos ideológicos diferenciados e até opostos, cuja leitura dos movimentos reformadores no ensino secundário será, por isso, relevante porque potencialmente mais crítica. Neste caso, pretende-se também perceber em que medida as opiniões sobre o mesmo processo variam de actor para actor, se há convergência ou divergência entre os parceiros a inquirir. Não se perseguiu, assim, qualquer busca de representatividade na amostra seleccionada. Este critério foi substituído, cremos que com vantagem, pelo da adequação face aos objectivos enunciados. Tornou-se, por isso, imprescindível ouvir os porta-vozes eleitos e mais qualificados das instituições e os políticos e peritos que mais intervieram nos processos de decisão, evitando-se o recurso à audição de agentes que fossem meros 20 Como se referiu, o processo de apropriação nacional destes modelos é aqui analisado apenas num primeiro nível, o da tomada da decisão política, em cada país. 92 funcionários das organizações. Procurou-se sempre ouvir os informadores privilegiados. O objectivo da recolha de dados junto destes interlocutores é o de, obviamente, retirar conclusões de carácter geral sobre a opinião dos parceiros sociais e dos decisores sobre os aspectos de política educativa já enunciados. O facto de se inquirirem actores sociais do mesmo tipo, em nove países diferentes, poderá contribuir sustentadamente para esse fim. Os inquiridos são, assim, um público muito heterogéneo, não só dentro de cada país como entre os países, mesmo tratando-se de parceiros sociais do mesmo tipo, como, por exemplo, representantes de pais e encarregados de educação de alunos ou representantes de professores. Apesar disso, procura-se que estes diferentes actores, que exercem diferentes papéis, nomeadamente em função da regulação dos mecanismos de participação social que existem em cada país, se pronunciem explicitando a sua opinião sobre medidas de política que contêm alguns traços comuns, ao longo da Europa Ocidental. Um outro passo que era necessário dar referia-se ao modo de inquirição destes actores sociais, em nove países diferentes. Organizou-se um sistema de rede de cooperação não só para a detecção dos organismos e pessoas a inquirir em cada país, como para a obtenção das respostas no tempo oportuno. É este processo que convém explicitar, pois foi sobre ele que repousou a administração do questionário. A escolha das pessoas a inquirir em cada país contou com a cooperação de um interlocutor nacional em cada um deles. Este mediador foi escolhido pelo autor entre personalidades que representam cada país em instâncias internacionais, a nível da União Europeia e da OCDE, e com quem o autor mantinha relações pessoais. Este mediador, uma vez na posse dos elementos fundamentais relativos à investigação, cooperou na identificação dos organismos e das pessoas a inquirir e na elaboração de uma lista de respondentes, que confrontou com o investigador. Depois, de modos 93 diversos, funcionou como o "pivot" nacional na distribuição e na recolha dos questionários. Identificado e elucidado o interlocutor nacional acerca dos objectivos e do método da investigação, através de encontros pessoais que o autor teve oportunidade de realizar com cada um, procedeu-se à recolha das opiniões. Esta desenrolou-se de formas diversas, uma vez que os interlocutores-pivots nacionais aceitaram intervir de modos diferenciados no processo. Assim, houve dois tipos de procedimentos: (i) mediante uma carta em que era, agora formalmente, descrito o âmbito e o processo, os tipos de organismos e pessoas a inquirir e a quantidade de inquéritos a realizar em cada caso, os interlocutores-pivots nacionais elaboraram uma listagem e enviaram-na para o investigador. Este seleccionou o conjunto das entidades e pessoas a inquirir, recorrendo por várias vezes a clarificações adicionais acerca da natureza das entidades e das pessoas listadas. Seguidamente, os questionários foram enviados pelo correio, de Portugal para cada um dos potenciais respondentes, a quem era solicitada a sua devolução para o remetente; (ii) mediante o mesmo processo o interlocutor nacional elaborava a listagem, o investigador revia-a e confirmava-a e era, depois, o próprio interlocutor nacional que distribuía os inquéritos no seu país, incentivando os inquiridos a responder atempadamente e a devolvê-los ao remetente. Como seria de esperar, sempre que ocorresse um menor protagonismo do interlocutor nacional, o nível de respostas seria necessariamente mais fraco. Foi o que veio a suceder nos casos da Dinamarca e da Suécia. Considerou-se, no entanto, que o recurso a estes interlocutores nacionais seria decisivo para a consecução dos propósitos da investigação. Tal perspectiva veio a revelar-se acertada pois foi, de facto, a acção concreta de cada um dos interlocutores que permitiu obter um nível razoável de respostas e, sobretudo, uma qualidade de respondentes à altura dos objectivos do estudo (a lista dos respondentes apresenta-se no Anexo, país 94 por país). O questionário e as suas partes Apresentam-se agora as principais opções metodológicas relativas à construção do questionário, uma vez explicitado quem se inquiriu e como se inquiriu. Optou-se por elaborar um questionário "fechado", em que o leque de respostas possíveis foi geralmente fixado previamente, havendo sempre lugar, no entanto, para o respondente acrescentar outro aspecto ou critério relevante e que não tivesse sido listado. A opção por este tipo de questionário constitui também um modo de evitar uma grande dispersão semântica, capaz de impedir uma leitura conjunta e global das respostas dadas. Incluem-se também duas perguntas abertas, contempla-se a hipótese do respondente assinalar outros aspectos, para além dos codificados, e procura-se seguir um percurso em "árvore" (Ghiglione e Matalon, 1993), para que cada respondente seja levado a atender apenas às perguntas que lhe são pertinentes. Crê-se, deste modo, conseguir estabelecer um certo "compromisso" entre o questionário totalmente fechado e o questionário aberto, e assim melhor colher a opinião dos inquiridos. Pensamos que o facto de se inquirir um conjunto de interlocutores bastante qualificado limita também e bastante os riscos inerentes à aplicação de um questionário "fechado", incluindo o da imposição da problemática. Por outras palavras, ouve-se a opinião de interlocutores que, por regra, a têm e as questões colocadas, para usar as palavras de Pierre Bourdieu, são questões que habitualmente estes inquiridos já se colocam, por força do seu papel social. São dirigentes de organizações ou peritos que produzem, regra geral, uma reflexão sobre as medidas de política do campo escolar. 95 Para evitar o efeito da imposição do questionário e para recolher a maior riqueza opinativa possível, procurou-se ainda dar outros passos de natureza metódica: (a) combinar respostas de teor negativo e de teor positivo nas listagens que se seguem às perguntas; (b) em boa parte das perguntas, permite-se o preenchimento de todos os aspectos elencados na resposta, pelo recurso a uma escala de valoração aposta em cada um dos aspectos listados; (c) noutros casos sugere-se a escolha de duas ou três respostas, de entre o leque elencado; (d) e, conforme se disse, inclui-se em cada pergunta, por regra, uma hipótese aberta de resposta, através da inclusão do termo "Outra razão. Qual?", o que permite ao inquirido interrogar-se sobre a pertinência dos aspectos listados e avançar, sem problemas, para outro tipo de resposta. Deste modo presume-se que os respondentes foram o menos possível induzidos a dar a boa resposta ou a resposta "políticamente correcta", embora o risco de isso acontecer continue a existir e seja de assinalar. O questionário que foi construído dividiu-se em três partes: uma breve introdução, em que se explicitam os objectivos do trabalho, um conjunto de variáveis de identificação do respondente e os indicadores de recolha de opinião acerca do problema em estudo. O questionário organiza-se em grandes categorias, a saber: 1.Introdução e apresentação do objecto 2.Determinantes sociais: 2.1. Identificação do respondente 2.2. Identificação do organismo - sua participação no processo de reforma em análise 3.Indicadores de opinião: 3.1. Orientações que subjazem à medida de política 96 3.2. Desespecialização e integração curricular 3.3. Intervenção de organismos internacionais 3.4.Adesão e resistências à reforma em análise 4. Controlo semântico de termos A aplicação do questionário iniciou-se em Abril de 1997 e decorreu até Outubro do mesmo ano. Foi necessário, em todos os casos, salvo muito raras excepções, enviar segundo pedido de resposta e, em bom número de casos, foi necessário enviar faxes e realizar repetidos telefonemas. No termo do processo, cremos que o objectivo foi alcançado e que a qualidade e a quantidade das respostas é adequada. Os resultados do questionário são apresentados pormenorizadamente e em separado, no capítulo sétimo. Explicitados estes passos relativos à metódica, é mister apresentarmos a espiral da pesquisa empreendida. Iniciamos a apresentação pela explicitação dos principais contributos teóricos mobilizados, quer no campo da sociologia da educação quer da sociologia do trabalho quer ainda na teoria do sistema mundial, tendo em vista inscrever o problema de partida em quadros conceptuais relativamente estáveis e, desse modo, esclarecer e orientar o percurso analítico. De seguida, num outro voltear ascendente da espiral, procedemos à inclusão do problema na "longa duração", empreendendo uma análise da história do ensino secundário na Europa Ocidental, na segunda metade do Séc.XX. Após estes grandes capítulos de enquadramento teórico (capítulo 3 e 4), apresentamos as recentes reformas do ensino secundário, nos nove países seleccionados e procedemos a uma primeira sistematização das principais tendências e problemas do ensino secundário na Europa, nos anos 90 (capítulo 5). Logo de seguida (capítulo 6) abrimos uma primeira parte da discussão do problema de partida quer à luz dos contributos teóricos oportunamente eleitos quer à luz dos resultados do trabalho de análise 97 documental empreendido. Na posse desta armadura analítica realizou-se o questionário, procedeu-se à sua administração e à recolha e análise dos seus resultados. Disso se dá conta no capítulo 7. As voltas da espiral prosseguem depois com uma reflexão final e com a apresentação das principais conclusões. Apesar de se concluir aqui este processo de investigação, sabemos que a espiral continua aberta, a voltear noutras dimensões e direcções que outros, em outros tempos e lugares, certamente também quiseram, querem e quererão apreender, em nome do nosso bem-ser e bem-estar. Finalmente, apresenta-se a bibliografia que foi sendo mobilizada ao longo da pesquisa e ainda um Anexo com alguns "produtos" de suporte ao trabalho que se desenvolveu. 99 Capítulo 3 A educação e a economia: desocultar a força de um encadeado ideológico Prosseguindo este voltear na espiral ascendente da análise do problema de partida, é mister, no caminho, ancorá-la no património analítico da sociologia da educação, num primeiro tempo, e da sociologia do trabalho, num segundo tempo. De facto, a relação entre educação e economia e entre ensino e mercado de emprego têm sido objecto de importantes esforços analíticos, ao longo do século XX, o que permitirá situar esta investigação dentro de uma quadro teórico relativamente estável. Pretende-se, neste momento da pesquisa, mobilizar um conjunto de quadros conceptuais que analisam esta relação entre a educação e a economia, a formação e o emprego, tendo em vista iluminar o problema de partida e o conjunto das hipóteses de trabalho. A disparidade de perspectivas coligidas transporta complexidade e espessura analítica, condições imprescindíveis à compreensão dos fenómenos sociais. Num terceiro tempo deste capítulo procedemos ainda a uma busca e a uma selecção de referenciais teóricos para explicar a hipótese que enunciamos para a similitude e a simultaneidade das várias reformas empreendidas nos vários países europeus. Para já, num primeiro momento, faz-se uma revisão das teorias da correspondência, tanto funcionalistas como críticas, das teorias da nãocorrespondência e das teorias de inspiração Weberiana, com destaque para as teorias sobre o credencialismo. É este primeiro passo que agora se apresenta. 100 3.1. A sociologia da educação e a correspondência entre educaçãoeconomia Os conceitos de correspondência e de não-correspondência subjazem, como grandes quadros de análise, às relações entre a educação e a economia. As teorias da correspodência, desde o funcionalismo até às teorias da reprodução, inscrevem-se numa perspectiva de funcionalidade mais ou menos linear e de uma sequencialidade mais ou menos mecânica entre a educação e a economia e o emprego. Estas teorias, filhas da sua época, constituiram também uma importante base de sustentação dos chamados processos de modernização, como um corpo ideológico coeso construído sobre a evidência presumida dos benefícios económicos da educação escolar. A evidência dos não-benefícios ou dos prejuízos económicos da educação também nunca se manifestou, circunstância a que não será alheia a longevidade da ideologia funcionalista. Esta corrente ideológica impregnou tão decisivamente a segunda metade do séc. XX, propagando-se em cadeias infindáveis de opinião, que qualquer problematização desta evidência imediatamente se coloca num movimento suspeito de contra-corrente. Vejamos como se desenhou este encadeado de ideias e como elas são postas em causa. O funcionalismo e a teoria do capital humano Durkheim foi o mais importante percursor do moderno funcionalismo, para usar uma expressão oportuna de Cândido Gomes (1985). O sociólogo francês procura inserir o processo educativo no contexto da sociedade, identificando vários contextos históricos em que a educação se estrutura de modo a assegurar a sobrevivência da sociedade. O autor destaca as funções-chave que a educação assegura em ordem à integração social, as 101 funções homogeneizadora e diferenciadora da educação; no primeiro caso, a educação visa a integração do indivíduo no contexto social, transmitindo valores e desenvolvendo atitudes comuns; no segundo caso, a educação diferencia, em correspondência com a divisão social do trabalho. A função básica da educação, entendida por Durkheim como a acção exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social, tendo como objecto susucitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais, é a de transmitir os valores morais de uma dada sociedade. A função social da educação é, assim, a integração moral. Ora, no pós-Guerra, esta abordagem funcionalista e integradora em termos sociais, servia um contexto sociohistórico de crescimento demográfico e económico e de crescente competição internacional. Através da educação formal, um poderoso meio de integração na sociedade, tanto do ponto de vista moral como ocupacional, as pessoas podem adquirir conhecimentos e comprometer-se numa dada ordem de valores sociais, competindo-lhe assegurar também a selecção dos talentos para a ocupação dos diversos papéis sociais. Os funcionalistas dos anos cinquenta e sessenta fizeram ressaltar, longe ainda da análise do papel do poder e do conflito no funcionamento da sociedade, a contribuição do sistema educativo para a manutenção da ordem social. Nesta ordem a educação é um garante fundamental da coesão social seja porque transmite códigos culturais e de conduta inscritos numa cultura comum, um consenso em torno dos valores e das crenças, seja porque selecciona e qualifica os recursos humanos adequadamente para o mercado laboral, assegurando a provisão adequada dos postos de trabalho que são requeridos por uma economia em expansão. Bastará para tal que a escola seleccione os mais esforçados e os mais capazes para ocuparem os melhores lugares na diferenciada estrutura ocupacional. 102 O lastro da ideologia que se expandiu acerca da forte relação positiva e linear entre educação e economia encontra-se, em grande parte, inscrito no optimismo reinante no período de crescimento económico do pós-Guerra. Políticos e empresários, apoiados por académicos que mobilizavam os conceitos de sociedade tecnológica e de recursos humanos qualificados, procuraram suscitar novos e elevados investimentos em educação, a par da crença nos seus elevados proveitos em termos pessoais, sociais e económicos. Um momento emblemático na geração deste optimismo, em plena "guerra-fria", em que se produziu um choque emocional que galvanizou renovadas energias e vontades foi, para vários autores, o lançamento do satélite Sputnik , pela União Soviética, em 1957 ( p.ex. Berg, 1970). A partir dos EUA, gerou-se uma corrente, polarizada na relação de conflito EUA-URSS, no quadro da Guerra-Fria, que desencadeou um novo ímpeto na competição científico-tecnológica e económica internacional e tornou prioritários enormes investimentos em educação escolar. Numa época de crescimento económico e de realização de importantes investimentos em tecnologias aplicadas à produção, no dizer de B. Clark, eram necessários exércitos atrás de exércitos de técnicos qualificados e de peritos profissionais e, à tarefa de os preparar convenientemente, estava o sistema educativo crescentemente dedicado (citado em Karabel e Halsey, 1978:9). O funcionalismo tecnológico respirava o espírito da época e sustentou, em boa parte, o crescimento da educação escolar nos anos que se seguiram ao termo da II Guerra Mundial. Outros autores se podem juntar a Clark, na formulação e defesa da teoria técnico-funcionalista, tais como Parsons, Turner, e Trow. Como se pode verificar pelas suas principais características, esta teoria aproxima-se, hoje, de uma ideologia do senso comum: (a) as constantes mudanças técnicas no sistema produtivo requerem uma crescente incorporação de novas tecnologias e de processos mais sofisticados de produção de bens e de 103 serviços; (b) a mão-de-obra que se requer para o mesmo sistema tem de ser necessariamente cada vez mais qualificada; (c) o sistema educativo formal e processos formativos específicos asseguram a qualificação da mão-de-obra, o que obriga o sistema escolar a seguir o ritmo e o modo da evolução tecnológica. A teoria tecnico-funcionalista, como derivação da teoria funcional mais geral, parte do princípio de que os requisitos de competências dos empregos, nas sociedades industriais, estão em constante crescimento, devido às transformações e inovações técnicas, para advogar que cabe à educação escolar proporcionar as qualificações requeridas, seja no domínio das competências gerais seja no âmbito das competências específicas. Uma vez que os requisitos de qualificação estão em constante aumento, cada vez mais, mais largas camadas da população, são chamadas a permanecer mais longos períodos na educação escolar. Esta teoria assenta, assim, em grande parte, na evidência da contribuição directa das qualificações escolares para a ocupação imediata de um posto de trabalho e para a produtividade do mesmo trabalho, o que equivale a dizer que pressupõe um elevado grau de correspondência entre a educação e a economia, entre, por um lado, a actuação dos empregadores e a evolução das empresas e, por outro, a actuação dos sistemas escolares, a produção de qualificações e a emissão de diplomas. Os economistas corroboraram este processo proclamando que as despesas em educação eram um bom investimento para o crescimento económico, o que se erigiu em bom argumento para fazer crescer a oferta e a procura de educação, aumentando desse modo a reserva permanente de recursos humanos qualificados a serem aparentemente insaciáveis da economia. absorvidos pelas necessidades 104 De facto, se a sociologia forneceu um "rationale" de referência, suficientemente convincente para sustentar a expansão e diferenciação escolares, que se tornaria dominante ao longo do século XX, ela não foi capaz, sem o contributo da economia, de responder à questão de saber até que ponto se tratava de um investimento lucrativo. E esta era a questão que povoava as cabeças dos políticos de quase todo o mundo, no pós-Guerra. Os economistas ergueram uma resposta e ela constituiu o núcleo central dos debates sobre o impacto social da educação, até aos nossos dias: a teoria do capital humano. Entre os vários economistas que surgiram a sustentar esta tese, destacamos Theodore W. Schultz e o seu "Investment in Human Capital", de 1961. Neste texto Schultz chega a demonstrar a sua proposta teórica com uma cena romanceada de Faulkner, em que um agricultor solitário, na sua quinta e no início de uma manhã, diz para si mesmo: "o homem sem capacidade e sem conhecimento encosta-se pavorosamente no nada" (Schultz, 1978:324). Este autor advoga um especial investimento, mesmo para os países em desenvolvimento, no aumento da qualidade do capital humano e das competências profissionais que lhe são requeridas para este se apropriar e usar eficientemente as superiores técnicas de produção. A riqueza económica de um país assentaria, mais do que no seu lugar e função na economia internacional, nas qualificações dos seus recursos humanos. Para este economista, o investimento em capital humano não só aumentava a produtividade individual como, fazendo-o, lançava as bases técnicas de um tipo de força de trabalho necessária ao rápido desenvolvimento económico. O "reservatório em capital humano" de uma sociedade, as competências e os saber-fazer dos seus membros, é concebido como a resultante de decisões racionais de investimento, realizadas pelos indivíduos e pelas empresas, e visam maximizar o retorno desse investimento. O Estado, ao financiar a educação formal inicial dos indivíduos, participa no investimento 105 individual, que tem retorno em benefícios tanto pessoais como sociais. Assim, os economistas vieram sublinhar a função técnica da educação ao assinalar que a educação aumenta a produtividade e produz os conhecimentos técnicos exigidos pelas mutações técnicas contínuas e pelo crescimento económico, conhecimentos estes que são formas produtivas de investimento dos indivíduos em si mesmos, em que qualquer país tem de investir para se desenvolver. Deste modo, o técnico-funcionalismo e a teoria do capital humano integram a ideologia que mais marcou até hoje a relação entre a educação e a economia, a ideologia da modernização. A educação é chamada a desempenhar o papel central de preparação técnica e motivacional dos indivíduos para o exercício adequado de papéis sociais, que vão evoluindo de sociedades tradicionais para sociedades modernas, assimilando atitudes e valores modernos, nomeadamente a "lógica da industrialização", que se vai impondo com características comuns em todo o mundo. À educação, no processo de modernização, caberá não só desenvolver as competências e as habilidades necessárias ao exercício de papéis sociais diferenciados, como, por esse meio, estabelecer a base dos diferentes “status” de uma dada sociedade, ou seja, a educação desempenha um papel central na construção de sociedades meritocráticas, democráticas e baseadas nas competências técnicas. Já nos anos 90, T.W. Schultz reafirma a sua tese de que é o capital humano que aumenta a produtividade do capital físico e da força laboral e que o incremento dos rendimentos das economias modernas se deve à proliferação do capital humano, sob uma matriz predominante de especialização (Schultz, 1992). Deste enunciado teórico derivaria a "manpower approach", que consiste na adopção de uma planificação da educação estatal, assente no pressuposto geral de que a formação é uma condição maior do crescimento económico e 106 visa responder às necessidades da economia (Vincens, 1977). O que implica, por um lado, que os fluxos de oferta de diplomados devem ser regulados pela procura previsional do sistema produtivo e, por outro lado, que os jovens qualificados podem esperar, à entrada no mercado de trabalho, empregos correspondentes ao nível de escolaridade e à especialidade da sua formação. E, é bom de ver, só um planeamento rigoroso e previsional pode suportar a obtenção destes resultados. O planeamento educativo segundo o modelo da "manpower approach" expandiu-se até aos anos setenta, sem grande contestação geral, durante uma época de acentuado e contínuo crescimento da economia capitalista e de forte incremento da procura do sistema educativo, época em que eram escassos e saltavam pouco à vista os desfasamentos entre a oferta crescente de diplomados e a procura do mercado. Os investimentos em educação e formação inicial eram sustentados no princípio formal -mas, como diz Verdier(1995), bem ancorados nas representações sociais -da correspondência termo a termo entre níveis hierárquicos de emprego e níveis de formação que era suposto responderem a estas necessidades. A teoria do capital humano tornou viável a aplicação do modelo económico neoclássico ao desenvolvimento da educação e dos recursos humanos, pela consideração da formação do capital humano como um investimento produtivo. Este "rationale", além de ter sustentado enormes investimentos educativos estatais, favoreceu a medida do seu rendimento, dominando o pensamento acerca do papel da educação e da economia, nos últimos trinta anos, (Arnove, neoclássico 1980; dominante Verdier,1995). apresentou-se Neste período, dividido entre o pensamento uma corrente conservadora e uma corrente liberal, tendo esta ganho mais terreno como sustentáculo de políticas de educação e de formação, até ao fim dos anos setenta. O debate produziu-se em torno da extensão da intervenção do Estado no fomento e desenvolvimento da oferta de educação, tendo os liberais defendido uma intervenção activa nos vários segmentos do sistema 107 de ensino, reconhecendo aos governos um papel activo na distribuição equitativa das oportunidades educativas e económicas. Posteriormente, acentuou-se uma visão neoconservadora (Arnove, 1980; Hobsbawm, 1996) que ganhou o terreno político com a defesa da perspectiva de que, na regulação da articulação entre educação e economia e numa ordem social fundada no mérito, os falhanços do mercado, quando ocorrem, são sempre menos graves do que os fracassos da acção dos governos, o que equivaleu a defender a deslocação de mais responsabilidades na promoção da educação e da formação para o sector privado da economia e a concomitante desintervenção do Estado. Em meados da década de oitenta, emergiria uma versão revista da teoria do capital humano. Ela afirma que deve melhorar-se prioritariamente o nível da educação geral, bem como o ensino superior especializado, sem que isso conduza necessariamente ao aumento da despesa pública, pois ao sector privado e às empresas caberá a assunção de um papel cada vez mais importante na oferta de formação aos níveis superiores e mais especializados. Para esta visão teórica neo-clássica muito contribuiram as perspectivas definidas pelo Banco Mundial e pela OCDE (como se explicita no capítulo quinto). Uma evidência sempre interrogada Apesar da longevidade do seu impacto social e político, a teoria do capital humano e o tecnico-funcionalismo cedo ficaram sob intenso fogo crítico. A formação do capital humano foi longa e excessivamente considerada como a variável independente por excelência do desenvolvimento, o que conduziu a uma inequívoca desvalorização dos contextos e das estruturas sociais. A perspectiva macroeconómica e tecnocrática da natureza funcional da 108 educação face ao desenvolvimento económico e social obnubilou quer as capacidades das populações locais para ler a estrutura das oportunidades de emprego quer os efeitos do processo educativo na relação entre a educação e a economia, aquilo a que Karabel e Halsey chamam os "efeitos da caixa negra da educação" (Karabel e Halsey, 1978), para além de se ter encerrado o investimento social educativo numa racionalidade económica muito restritiva. A complexidade socioeconómica envolvente e intrínseca à relação educação-economia foi liofilizada pela externalização de importantes dimensões como o funcionamento dos mercados de trabalho locais, as estratégias de recrutamento dos empregadores, as suas atitudes e comportamentos face à gestão da mão-de-obra, e ainda a dimensão política e o papel das ideologias, os elementos mobilizadores e os efeitos da procura social de educação e a própria dimensão cultural do desenvolvimento. O funcionalismo, em termos gerais, acabou por legitimar, em torno de um quadro escolar meritocrático, o papel exercido pelo sistema escolar de manutenção dos equilíbrios sociais estabelecidos, legitimando finalmente a segmentação e a estratificação do mercado de trabalho. Mas, por outro lado, os desajustamentos foram-se evidenciando. Tanto as focagens de tipo ocupacional como as que relevavam a relação custobenefício, foram questionadas como sendo "jogos de números", que não tinham em consideração as questões qualitativas, as deficiências e os desajustamentos, tendo acabado por provocar pouco mais do que a expansão linear dos sistemas escolares, sem provar nada em concreto sobre a sua pertinência (Coombs, 1985). Cedo se começaram a sublinhar os enormes desfasamentos entre as necessidades dos mercados, sempre locais e sempre diversos, e a qualidade e as proporções das qualificações produzidas (Foster,1965; Coombs,1968; Berg,1970; Campinos- 109 Dubernet,1995). De facto, as escolhas dos indivíduos formulam-se no seio de um complexo de influências mais vasto do que aquele que a teoria do capital humano acolhe: é a diversidade de mercados de trabalho locais; é o diferente acesso aos diplomas e o diferente uso deles nos mercados de trabalho, segundo a diferente origem social dos indivíduos; é o facto de os custos e proveitos medidos objectivamente não serem subjectivamente os mesmos para os membros de diferentes grupos sociais; é o facto de os rendimentos dependerem da profissão e do sector de actividade e não apenas das habilitações escolares; é o próprio facto do acesso a determinado nível de habilitações, dentro do sistema escolar, estar longe de ser determinado por critérios adstritos às necessidades dos mercados de trabalho; é ainda a dificuldade de medir os efeitos da educação sobre uma dada ocupação e sobre as atitudes dos trabalhadores; é, finalmente, o facto de o funcionamento real da economia capitalista ser sobredeterminado principalmente por elementos internos, como as técnicas, os produtos, os mercados, muito antes e muito longe de quaisquer elementos relacionados com a educação e a formação. Entretanto, a evidência presumida do impacto positivo e mecânico da educação sobre a economia cresceu e a primeira tornou-se quase um "anexo conceptual" da segunda, na expressão de Easton e Klees (1992). No entanto, a sua prova foi-se acantonando e reduzindo, ao ponto de, nos anos 80 e 90, se ter passado da euforia ao cepticismo e, em alguns casos, ao cinismo (Coombs,1985:238 ). Da falta de recursos humanos qualificados passou-se para um cenário de "exércitos" de excedentes e de penúria de empregos. O planeamento da mão-de-obra que defluiu da teoria do capital humano provou ser demasiado inflexível, num contexto socioeconómico que acelerou o ritmo das suas mutações e em que as previsões a longo prazo sobre necessidades ocupacionais já não podem ser feitas, pela simples razão de que deixaram de ter sentido. As próprias taxas de retorno, como instrumento de medida do investimento educativo, afundaram-se na 110 diferença entre as apreciações sociais e do mercado ( Finegold e Soskice, 1988). Finalmente, o técnico-funcionalismo e as teorias do capital humano são reconhecedoras de um importante papel social dos investimentos em educação e formação porque e na medida em que estas contribuem externamente com unidades produtivas, os indivíduos, para o desenvolvimento dos mercados e da economia. Assim, esta racionalidade económica que valoriza a educação e a formação dos seres humanos sobretudo pelas suas externalidades (Wilson e Woock,1995), tornando-as prisioneiras e servas obedientes daquela racionalidade, também desvaloriza quer o papel da educação e da formação no desenvolvimento humano quer a capacidade dos seres humanos autodeterminarem o sentido da sua vida e os seus destinos. Com Easton e Klees (1992), consideramos que as críticas mais comummente apresentadas face ao modelo proposto pela teoria do capital humano provêm da análise sociológica. Em síntese, destacam-se as seguintes: (a) os salários são, de per si, uma medida muito limitada não só dos reais benefícios sociais da educação como de compreensão das trajectórias profissionais nos diferentes níveis ocupacionais; (b) a conjugação do binómio eficiência-equidade foi sempre mal equacionada, seja porque ela se fez quase sempre em termos laboratoriais seja porque nela se ignoram, em grande parte, os reais efeitos das estruturas institucionais através das quais se opera também a desigualdade social; (c) adopta-se uma perspectiva positivista na análise económica, de que os modelos econométricos da análise da relação custo-eficácia e custo-benefício são um importante exemplo; (d) este modelo tem sérias dificuldades em explicar os presistentes fenómenos de discriminação social em torno do sexo, da raça e do grupo socioeconómico de pertença; (e) a teoria pressupõe, mais em particular, uma relação linear, directa e ingénua entre educação e rendimento, em que 111 trabalhadores educados e formados ocuparão mais ou menos automaticamente empregos que combinarão com a sua formação inicial e com a sua potencial produtividade, o que comporta o menosprezo pelas condicionantes da procura, tanto no que respeita ao funcionamento dos mercados de trabalho, como ainda, embora mais indirectamente, no que se refere à formulação das estratégias pessoais e familiares face ao trabalho e ao emprego. A fragilidade da teoria do capital humano é evidente: ao adoptar uma análise muito individual, menosprezando os condicionamentos sistémicos, análise essa em que se valorizam as taxas de retorno privado dos investimentos em educação e se desvalorizam os seus vastos benefícios sociais, a teoria do capital humano obstaculiza uma abordagem do investimento educativo em termos do fomento do desenvolvimento de competências pessoais e sociais (ligadas também à família, à fruição cultural, à participação cívica e à realização pessoal de cada ser humano) e dificilmente dá conta de efeitos "perversos" do investimento em educação e formação, tais como a sobrequalificação ou a baixa de salários e rendimentos por força do excesso de oferta de diplomados de um dado nível. A reprodução das relações sociais de produção Diante deste "rationale", uma autêntica ortodoxia reinante, surgiram importantes perspectivas críticas, resultantes de um esforço contínuo de interrogação sobre o social. Este labor traduziu-se na emergência de correntes teóricas bastante críticas, simultâneas ao próprio apogeu das teorias do capital humano. A elas nos referiremos de seguida. Em primeiro lugar, podem referenciar-se as teorias marxistas da reprodução, que surgem a partir de uma série de análises sociológicas, efectuadas no 112 início dos anos setenta, que vêm colocar o acento tónico nas relações entre as desigualdades de oportunidades no acesso ao ensino e as desigualdades sociais. Na linha geral do modelo funcionalista, estas teorias insistem na funcionalidade do sistema educativo na sua relação com o sistema produtivo, não lhe assegurando, todavia, o mesmo papel no fomento das oportunidades sociais. De facto, elas acentuam, não já num quadro essencialmente técnico mas sobretudo político, o papel do sistema escolar como reprodutor das desigualdades sociais, uma vez que lhe cabe sobretudo criar as condições sociais para que a cada um sejam dados os conhecimentos e as competências, leia-se os diplomas, que correspondem à sua origem social e configurem, desse modo, o seu futuro lugar na hierarquia social, nomeadamente na hierarquia dos empregos. O sistema escolar socializa diferentemente as crianças e os jovens, subordinando-se ao ordenamento que emana da divisão do trabalho na economia capitalista. Randall Collins, por exemplo, nos seus trabalhos de 1971 e de 1974, vem propor uma nova leitura para a expansão do sistema educativo americano. Esta derivou não de uma resposta às necessidades do desenvolvimento técnico da economia, mas sobretudo dos efeitos de competição pelo poder, pelo prestígio e pelo acesso aos benefícios sociais, entre grupos com estatutos específicos. São os interesses em conflito e não as necessidades sistémicas que vão construindo o sistema escolar, ou seja, a escolarização crescente é mais o efeito do desenvolvimento das estratégias dos grupos sociais, uns para manter e outros para mudar e melhorar a sua posição social, de uma dinâmica social, portanto, mais do que uma resposta organizada e racional da sociedade ao desenvolvimento das tecnologias aplicadas à produção e do sistema produtivo, em geral. O autor constata, aliás, a ineficiência da escolarização como meio de formação de trabalhadores qualificados (1978:123). 113 No dizer de Karabel e Halsey (1978), esta "espiral de dinamismo social" na procura de educação escolar corresponde a requisitos do mercado de trabalho, não tanto porque este os enuncia prévia e rigorosamente, mas sobretudo na medida em que as organizações laborais usam os diplomas e os estatutos educacionais como modo de distribuir e hierarquizar as pessoas nos empregos disponíveis, com diferentes estatutos e rendimentos. Os grupos sociais dominantes distribuem as posições privilegiadas entre si e os grupos sociais mais desfavorecidos encontram no mesmo sistema escolar um importante instrumento de mobilidade, pelo acesso directo a posições de prestígio ou a novas posições sociais. Enquanto o funcionalismo tradicional baseava a procura social de educação e a própria concepção da instituição educativa nas mutações técnicas e nos seus requisitos de mais elevadas qualificações, as teorias do conflito, numa abordagem neofuncionalista, baseiam essa procura por parte dos indivíduos no estímulo que eles encontram na elevação ou manutenção de um dado estatuto social, constituindo a educação escolar um investimento rentável e um precioso instrumento de mobilidade social. Seria, no entanto, o funcionalismo "radical", de inspiração neo-marxista, que romperia mais decididamente com as perspectivas tradicionais. As teorias da reprodução desenvolveram-se num contexto político-social que valorizava os esforços societais em ordem à democratização social e à inerente redução das desigualdades, e espelham, ao mesmo tempo, um certo pessimismo perante as possibilidades de reconstrução social constantes nos programas políticos liberais dos anos sessenta e setenta. Os trabalhos de Bowles e Gintis, Bourdieu e Passeron e de Baudelot e Establet vieram sublinhar que o sistema escolar visa ensinar a conformidade com o "status quo" social, servindo claramente os interesses das elites dominantes, pelo exercício de um controlo social e pelo reforço das 114 desigualdades existentes. O sistema escolar serve os interesses da ordem capitalista da sociedade moderna, não escapando, por isso, a promover as desigualdades de classe e a reproduzir os valores, os comportamentos e as características de personalidade necessárias a uma sociedade repressiva. Deste modo, o sistema educativo é uma agência de formação de estruturas mentais que são decisivas para a manutenção das desiguais relações de poder existentes na sociedade. Os trabalhos dos pesquisadores franceses Bourdieu e Passeron sublinharam a importância da educação formal na reprodução da estrutura social dominante e de um dado sistema de poder. O sistema escolar transmite a "cultura legítima", cultura esta que é interiorizada pelos eleitos como um "habitus", os princípios culturais que conformam as suas percepções, representações e práticas, e que conduz os dominados a interiorizar a legitimidade da cultura dominante e a iligitimidade da sua própria cultura. Através da escola exerce-se um importante domínio simbólico que perpetua o poder estabelecido e o seu domínio económico e político. Assim, no mercado de emprego, o valor dos diplomas é muito mais função do capital social e económico de quem os possui, do que do seu valor facial. Os grupos dominantes controlam os significados culturais mais valorizados socialmente, mormente os que o sistema escolar elege e seleccionam as possibilidades de mobilidade social com base num capital simbólico, o capital cultural. O importante conceito de capital cultural, referente às competências cultutrais e linguísticas socialmente herdadas, permitiu aos autores analisar a sua desigual distribuição entre os grupos sociais e facilitou a constatação de que o currículo escolar, ao valorizar um certo tipo de capital cultural, reproduz um certo tipo de desigualdades sociais. O capital cultural é um bem económico e por isso os grupos sociais conflituam entre si, adoptando diferentes estratégias de mobilidade social com base no sistema escolar, susceptíveis de reproduzirem ou de elevarem um certo 115 “status” social. A sua análise valoriza a evolução da procura social de educação por parte dos diferentes grupos sociais como a valorização de estratégias seja de acesso a novos privilégios seja de acumulação de capital cultural e de manutenção de “status” já herdados. Os economistas e pesquisadores norteamericanos Samuel Bowles e Herbert Gintis, dentro da mesma orientação neomarxista, sublinharam por sua vez a correspondência entre as relações sociais de produção e as de educação, uma vez que cabe à educação reproduzir as desigualdes económicas e subordinar a sua empresa educativa à produção da força de trabalho, tal como a economia capitalista a requer. Ao habituar os alunos às relações escolares, o sistema escolar habitua a um certo tipo de relações de trabalho. O sistema escolar, na sua óptica, produz uma mão-de-obra passiva, adequada à divisão do trabalho nas empresas, distribuindo os alunos segundo as suas origens sociais e os lugares que irão ocupar de futuro no sistema de produção. À medida que a estrutura de produção evolui, assim também ocorrem mudanças no plano educativo. Bowles e Gintis, em 1977, analisam, por exemplo, o apoio que os empresários e importantes capitalistas deram, no fim do séc XIX, ao "movimento da educação profissional", num momento em que a educação de massas chegava às escolas secundárias, levando desse modo um grande número de crianças filhas de trabalhadores e de imigrantes para a escolaridade obrigatória, nos EUA. A formação profissional é agarrada pelos empresários como um meio para formar os técnicos, gestores e capatazes necessários para controlar os operários e quebrar o seu poder, dentro da "gestão científica" protagonizada por F.W.Taylor, em que a maioria das tarefas tinha de ser reduzida à execução de directivas simples e explícitas (Bowles e Gintis, 1982). A educação escolar, nesta óptica, não é socialmente válida pelos conhecimentos que proporciona e pela selecção de talentos que possa 116 promover, mas pela submissão à ordem estabelecida que ensina e pelo convencimento que exerce sobre as pessoas de que tal selecção é meritocrática, legitimando o processo de selecção que se baseia, isso sim, na origem de classe. As escolas introduzem, deste modo, uma racionalidade para o facto das crianças privilegiadas à partida tenderem a ocupar as posições mais prestigiadas na divisão social do trabalho. Na alocação dos indivíduos às desiguais posições sociais existentes na hierarquia das relações sociais de produção, tomando "a educação como um mecanismo de colocação ocupacional" ( Collins,1978:127), o sistema escolar intervém não tanto pelos elementos cognitivos, mas sobretudo pelos factores não cognitivos associados a perfis de "personalidade" necessários no exercício de funções desiguais nessas mesmas relações de produção da economia capitalista (Karabel e Halsey, 1978). Assim, ao analisar o sistema escolar, onde os tecnico-funcionalistas viam a geração de oportunidades de mobilidade e um equilíbrio entre educação escolar e economia, as teorias do conflito vêem a perpetuação organizada de um sistema de desigualdades sociais, deslocando, embora não anulando, a funcionalidade do sistema escolar, mas agora em subordinação ao processo capitalista de acumulação. Por sua vez, as teorias da "reprodução cultural", de Bourdieu e Passeron, embora não contrariem a perspectiva de que o sistema escolar ( "aparelho escolar") participa na reprodução das relações sociais, sublinham que ele actua numa esfera cultural própria, considerada independente da esfera produtiva. Por vezes, este desfasamento é tão acentuado que o sistema escolar evolui em direcções autónomas que não vão de encontro à evolução das exigências do sistema produtivo. Esta prespectiva começa a aproximarse das teorias da não-correspondência entre o sistema escolar e o sistema económico. Além destes autores podemos referenciar ainda Michael Young e a "nova 117 sociologia da educação", para quem o conhecimento aprovado e adoptado pelo sistema escolar e incluído no currículo formal resulta de uma selecção que, mais do que qualquer outro modelo mais ou menos quantitativo, explica as correspondências entre a educação e a estratificação social. Os conteúdos curriculares são seleccionados e distribuídos a diferentes grupos sociais em diferentes propostas curriculares, estratificadas segundo uma hierarquia de prestígio. Há, por isso, áreas do conhecimento escolar com elevado “status”, que estão associadas a maiores recompensas e que estão reservadas para os alunos "mais capazes". Young associa o conhecimento de elevado “status” com o facto de não se relacionar com a vida diária e com a experiência quotidiana, uma vez que apela para elevados níveis teóricos e de abstracção. Neste quadro teórico, a educação profissional, em que o conhecimento prático tem um particular destaque face ao conhecimento escolar abstracto, é um ramo reservado aos alunos "mais fracos", o que lhe confere, dentro de uma hierarquia de prestígio entre os cursos e os percursos escolares, um lugar pouco desejado, dadas as fracas recompensas sociais que lhe são associadas (Gomes, 1985). E, neste mesmo quadro, relembra Pierre Bourdieu, a ideologia das competências tão em voga nos anos noventa, ao assentar no dado de que e ao fazer crer que são os mais competentes que obtêm emprego, legitima que os que não têm trabalho são incompetentes, reforça a autoridade da educação escolar enquanto produtora social de competências e funda a ordem e as actuais disparidades sociais entre os que têm e os que não têm emprego “ na crença na hierarquia das competências escolarmente garantidas” (1998 : 114). As credenciais e a sua função de informação Ainda no interior das teorias da correspondência, embora já inscritas na 118 fronteira do funcionalismo, situam-se as perspectivas credencialistas. Estes contributos teóricos, na esteira da análise empreendida por Max Weber, valorizam a existência de um mercado de credenciais oriundas da educação escolar, cujo valor varia em função das colocações no mercado de trabalho, mercado este que se serve essencialmente das mesmas para seleccionar os candidatos aos postos de trabalho. As escolas são analisadas como lugares onde se podem obter certificados que são tomados como passaportes para aspirar à ocupação de lugares no mercado de emprego. A função educativa da escola é deste modo superada pela exigência de que esta examine, diferencie, certifique e, em termos práticos, estratifique os efectivos humanos de cada geração e outorgue aos seleccionados nos vários patamares escolares os diplomas correspondentes. Por outro lado, como o certificado que se obtém determina muito provavelmente a posição social que se ocupará ao acabar os estudos, a "febre dos diplomas" impulsiona uma escalada competitiva em direcção aos títulos superiores, os mais prestigiados. Este processo, além de acompanhar uma massificação escolar crescente, provoca uma também crescente e contínua desvalorização dos certificados de nível inferior. O credencialismo de Randall Collins, por exemplo, baseia-se na perspectiva de que os títulos escolares são tomados pelo mercado de colocações principalmente como sinais e não propriamente pelo seu conteúdo em conhecimentos e competências. Os empresários, preocupados em melhorar a produtividade do trabalho e na incerteza sobre o perfil de competências de quem o procura, utilizam o referencial das credenciais escolares como um sinal da potencial produtividade dos indivíduos. A educação escolar desempenha, assim, um papel de delicada e minuciosa estratificação de títulos, que se revela socialmente relevante, uma vez que eles se transformam em referente dominante em ordem à distribuição ocupacional 119 das pessoas e à regulação social. Além disso, as credenciais escolares são usadas genericamente, nas sociedades desenvolvidas, como instrumentos de luta pela elevação ou manutenção do “status” dos grupos sociais. A educação formal é procurada, independentemente da sua eventual função de qualificação, para defender ou alcançar vantagens materiais e simbólicas no (e apesar do) mercado de trabalho, como sublinha Mariano F.Enguita (1986). Os títulos são, assim, procurados pelos indivíduos, dentro de estratégias credencialistas, como franquias para assegurar mobilidade na hierarquia dos empregos futuros. Num tempo de escassez de lugares no mercado de emprego e de precarização de vínculos contratuais, fenómenos que afectam particularmente os cidadãos que saem do sistema escolar com diplomas elementares ou mesmo sem diploma da escolaridade obrigatória, é bem provável, segundo o credencialismo, que aumente a competitividade entre os indivíduos, tendo em vista alcançar vantagens, traduzidas em títulos escolares, “ab initio” das suas trajectórias profissionais. Dale e Pires (1984) referem que a composição do "pacote" de requisitos necessários para se obter um emprego é determinado não apenas pela oferta de atributos mas também pela procura de atributos que os empregadores insistem em reclamar para os vários mercados de trabalho existentes. Além de se estabelecerem diferentes relações entre os diplomas escolares e o mercado de trabalho, em cada nível a que se processam as admissões, os autores sublinham que os empregadores, no processo de selecção, dão preferência a critérios não académicos. E argumentam que as componentes não-educacionais do "pacote" de requisitos para o acesso aos empregos são, em muitos casos, tão importantes como as qualificações educacionais e que, deste modo, os diplomas ou credenciais escolares 120 podem ser dominantes ou irrelevantes na obtenção de um emprego, sendo esta relação pouco mecânica, contrariamente ao que acentuam as teorias da correspondência, mas antes é moldada por uma grande variedade de situações sociais, como a variedade de capital social, as redes de relações e os diferentes atributos pessoais. As credenciais escolares desempenham um importante papel, como os autores destacam, mais centrado quer na expansão da escolarização quer no reforço do controlo do Estado sobre o ensino. Secante com esta perspectiva é a perspectiva do “filtro” que sublinha a atitude individual e racional dos futuros candidatos ao primeiro emprego que, independentemente da procura e da situação do mercado de emprego, competem entre si para se munirem com o máximo de títulos escolares e com títulos escolares máximos, tendo em vista vir a ocupar um lugar mais à frente na fila de espera do emprego. Os títulos académicos funcionam como filtros para os empregadores seleccionarem os indivíduos e estes, agindo no seio desta racionalidade, adquirem credenciais escolares, conscientes de que estão a emitir sinais aos empresários acerca da sua capacidade produtiva, embora, como refere Blaug (1981) o ensino nada acrescente à capacidade produtiva dos estudantes. Como o essencial do julgamento qualitativo dos diplomas o empregador, em geral, só o pode fazer ex-post, as escolhas que ele realiza são feitas, em geral, pela avaliação do nível e do tipo de diploma, e não pela avaliação do indivíduo que o exibe. Num quadro social largamente credencialista, as qualificações educacionais diferenciadas funcionam como um "sinal" acerca da potencial produtividade geral dos que procuram trabalho e que os empregadores usam, minimizando os custos e os riscos do recrutamento, da selecção e da admissão. Por esta razão, Lassibille (1995) coloca esta perspectiva teórica no plano de uma adaptação das teorias da informação à análise do mercado do trabalho, mercado este cuja imperfeição 121 de funcionamento fica patente, afastando-a desse modo da teoria do capital humano e das perspectivas funcionalistas, e assinala que o rendimento social da educação provém sobretudo da capacidade dos empregadores conjugarem os candidatos com os postos de trabalho onde serão mais produtivos. No entanto, o uso que os empregadores fazem das qualificações e dos diplomas, como alertam Breen, Hannan e O' Leary (1995) e Myriam Campinos-Dubernet (1995), varia muito de país para país, de sector de actividade para sector de actividade, o que reforça a crítica à perspectiva determinista mais geral de que a educação determina a produtividade dos postos de trabalho. Ora, estas teorias começam a evidenciar uma outra faceta da relação entre a educação e a economia, assente exactamente na falta de correspondência entre ambos os campos sociais. Como refere Mark Blaug, citando F.Welch, a única conclusão a retirar de centenas de estudos é a de que "a associação entre escolaridade e rendimento não é falsa" (1981:92). De facto, são patentes inúmeros elementos que peturbam a linearidade subjacente às relações entre o sistema escolar e o sistema económico, em particular o mercado de emprego. Os empregadores valorizam as credenciais escolares quando as valorizam e, nestes casos, fazem-no sobretudo porque essa via lhes poupa um processo oneroso de selecção, uma vez que geralmente os empregadores têm concepções muito imprecisas sobre o perfil de competências dos empregos disponíveis. Passados poucos anos de actividade profissional dos indivíduos, os efeitos das credenciais diluem-se e anulam-se em grande parte no funcionamento dos mercados internos de trabalho (Blaug, 1981). 122 Ora, estes elementos apontam já para um outro quadro de análise: aquelas relações entre subsistemas são complexas e, em grande medida, imprevisíveis, porque são cruzadas por outras práticas sociais com enorme significado e impacto. Entre elas podem-se coligir as seguintes: (a) a diversidade de ambientes familiares, em termos socioculturais e económicos e no que respeita à formulação de expectativas de mobilidade social ascendente por via escolar; (b) a quantidade de estratégias de recrutamento de novos trabalhadores mobilizadas pelos empregadores e que escapam a esta subordinação às credenciais escolares, sendo condicionadas sobretudo por relações pessoais (Rees,1989); (c) a diversidade de mercados de emprego existentes intra e internacionalmente; (d) o excesso de mão-deobra qualificada e a penúria de empregos em oferta no mercado do primeiro emprego neutralizam em grande parte o efeito de rendimento diferencial que se associa à obtenção de títulos escolares elevados. Como dizia muito friamente Philip H.Coombs, no seu primeiro estudo sobre a situação mundial da educação escolar, de 1968, "a procura social de educação incrementou-se inexoravelmente sem ter nada em conta a situação da economia e os recursos disponíveis para a educação" ou, por outras palavras, mais situadas teoricamente, o sistema escolar continua a preparar os indivíduos para os empregos sobretudo "porque os prepara para um certo tipo de relações sociais, porque os prepara para uma ordem social" fundada na segmentação do trabalho subordinado. Estes últimos apontamentos abrem para a abordagem de um outro campo teórico que se tem revelado crucial para a análise das relações entre o sistema escolar e o sistema económico, em particular o emprego. Antes de o abordarmos em pormenor é útil, na economia desta busca teórica, evidenciar um conjunto de contributos analíticos que, ao longo das últimas décadas, têm argumentado que existe um desajustamento estrutural entre os campos da educação e da economia e entre a formação e o emprego, contribuindo todos eles para reforçar a tese da não-correspondência entre formação e 123 emprego. Uma "falácia" chamada ensino profissional Se é verdade que foi a crença nos benefícios dos ensinos técnico e profissional sobre a economia e sobre o emprego que mais sustentou as políticas que o suportaram e o fizeram crescer, nomeadamente quando os governos perfilharam as teorias funcionalistas e, em particular, a teoria do capital humano, também é no âmago dessa relação entre a educação e a economia que se encontram alguns dos principais pressupostos da "falácia do ensino profissional", para regressar à expressão de Philip Foster, no seu célebre estudo de 1965. Com efeito, manteve-se, no pós-Guerra, um veio crítico que afirmou sempre a inevitabilidade do desajustamento estrutural entre educação e economia-emprego.Vejamos, por exemplo,a abordagem deste norteamericano, Philip Foster, uma das que atravessaram de modo proeminente as últimas décadas. Este autor, na altura professor na Universidade de Chicago, escreveu, em 1965, um artigo que ficaria como uma referência, na análise da relação educação-emprego. O que mais o terá lançado para a notoriedade talvez tenha sido a sua capacidade de contrariar evidências não provadas e, entretanto, transformadas em senso-comum e fazê-lo numa época de plena expansão económica nos países industrializados, onde a prova da não evidência surgia profundamente contra a corrente. A análise por si empreendida, nessa altura, baseou-se em estudos sobre países em desenvolvimento e, particularmente, sobre o Gana. A crença generalizada no importante papel da educação e, em particular, do ensino profissional, no desenvolvimento económico era, como vimos, um dos motores do investimento em educação escolar. A produção de qualificações 124 escolares era facilmente tomada como sinónimo de satisfação das necessidades dos empregos. Aqui se situava a base do reconhecimento da superioridade do ensino profissional sobre o ensino geral. Aliás, aqui radicava também a concepção de que o desenvolvimento do ensino geral tinha contribuído para a progressão de problemas sociais como o êxodo rural, o imobilismo da agricultura ou o desemprego crescente de diplomados. Neste contexto, invocar a falácia da profissionalização do ensino era, no mínimo, paradoxal. Foster começa logo por colocar em evidência o facto indesmentível da existência de uma maior procura do ensino "académico". Ora, em sua opinião, os que criticam a natureza "irracional" deste tipo de procura - note-se que Foster recorre ao mesmo vocábulo que R. Grégoire usa no seu relatório para a futura OCDE, também de 1965!-, em oposição à do ensino profissional, enganam-se no reconhecimento de que a força do ensino académico repousa precisamente no facto de que este é que é um ensino eminentemente profissional, ao proporcionar o acesso aos empregos com maior prestígio e, ainda mais importante, aos mais bem pagos, neste caso na economia do Gana. Não deixa de ser preocupante, argumenta, ver os defensores do ensino técnico criticar a falta de frequência das fileiras técnicas nas escolas secundárias, enquanto, ao mesmo tempo, os "produtos" de tais instituições técnicas experimentam mais dificuldades em obter emprego (Foster,1978:358) Esta espécie de "desperdício" de mão-de-obra qualificada é considerada endémica em países em desenvolvimento. Foster ataca particularmente a perspectiva, muito divulgada entre os mentores do incremento dos ensinos técnico e profissional, segundo a qual as aspirações profissionais das crianças podem ser alteradas pela transformação massiva do currículo, pela mudança da natureza da formação escolar inicial. Não passa de um argumento folclórico, com pouca justificação empírica, diz o autor. Efectivamente, Foster prova que as aspirações são 125 determinadas em grande parte pela precepção individual acerca da estrutura das oportunidades da economia local e que as escolhas feitas pelas famílias e pelos alunos são realistas e resultam de uma lúcida reacção aos incitamentos da economia. A natureza da instrução educacional terá pouco que ver com a formulação do processo decisional, residindo este sobretudo na estrutura de incentivos e no apoio à actividade empresarial que se desenvolve no sistema económico, em cada momento. Quando, quase trinta anos depois, em 1992 e após um longo percurso profissional, P.Foster, desta vez pela mão do director da revista "Perspectives", da UNESCO, volta a reflectir sobre esta problemática, não o poderia fazer de modo mais paradoxal. O Banco Mundial acabava de produzir "uma mudança radical na sua maneira de abordar a controvérsia educação-desenvolvimento", segundo a visão de Foster, auto-propondo-se uma revisão crítica da sua análise sobre o lugar e o papel do ensino profissional, incitando os governos a atribuir a prioridade política à qualidade do ensino primário e do ensino secundário geral. Os investimentos em educação passaram, assim, a ser considerados não já na perspectiva da "economia do desenvolvimento" e no âmbito da doutrina dos recursos humanos, mas através da referida visão neo-clássica inscrita numa teoria do capital humano que faz apelo ao jogo do mercado. O que quer dizer que numa economia de mercado, o Estado deveria limitar a sua intervenção na educação à melhoria da qualidade do ensino geral, deixando para o sector privado a formação especificamente orientada para o emprego, uma vez que se crê que este sector assegurará programas de formação melhor adaptados às realidades dos mercados locais. Embora se continue a reconhecer um importante contributo da educação para o desenvolvimento, a perspectiva económica neo-clássica procura maximizar o investimento educativo no quadro de uma economia de mercado 126 abertamente centrada sobre a iniciativa empresarial, sendo necessário por isso abandonar o modelo da planificação central e tecnocrática da formação dos recursos humanos qualificados, assente em projecções, a longo prazo e incertas, sobre necessidades futuras de mão-de-obra, em que as escolas secundárias desempenhavam um papel de reservatórios passivos da mãode-obra estimada necessária. Este modelo seria substituído por políticas baseadas quer no incentivo à iniciativa local das empresas quer na satisfação descentralizada de necessidades reais dos mercados locais de emprego. O desenvolvimento da educação passaria, assim, a ser baseado na "procura" e não na "oferta" (Foster,1992:171). George Psacharopoulos, do Banco Mundial, advoga também, em artigo de 1991, que procura rever as incidências práticas dos investimentos passados realizados em ensino técnico e profissional, que não é viável qualquer planeamento do ensino técnico e profissional, que é necessário retirar do ensino secundário a especialização profissional, adiando-a, que é necessário investir o mais e o melhor possível na educação de base e que é ainda preciso promover a oferta de ensino técnico e profissional fora do sistema escolar (sublinhado do autor do artigo), pois é fora que a especialização é "mais rápida, mais barata e mais fácil" (Psacharopoulos, 1991:198). Entre 1965 e 1991, muitas outras perspectivas críticas se foram desenvolvendo. A que se acabou de referir reúne um carácter emblemático que, por isso, se quis destacar, como um zoom dentro deste olhar diacrónico mais vasto. Vejamos algumas outras. Um desajustamento "praticamente inevitável" A norte americana Louise Fitzgerald passou em revista muitos estudos em 127 torno da problemática da relação entre educação e emprego, com particular destaque para os que se debruçaram sobre a empregabilidade dos diplomados pelo ensino profissional. As duas principais "meta-conclusões" que são retiradas são as seguintes: (a) o ensino profissional traz magras, se não mesmo nenhumas, vantagens aos seus graduados para além das que são conferidas pelo ensino geral. Chega-se a esta conclusão quaisquer que sejam os critérios utilizados; (b) constata-se uma quase universal relutância em reconhecer a conclusão anterior (1986). Esta autora refere estudos de Carbine, de 1974, e de Mertens, de 1980, para com eles sublinhar que parece não haver benefícios significativos de empregabilidade atribuíveis ao ensino secundário profissional, nem diferenças nos níveis de desemprego e de rendimento entre diplomados do ensino secundário profissional e nãoprofissional. Em face destes resultados, é com algum desconcerto que ela constata o contínuo optimismo com que eles são geralmente interpretados. A autora nota, entretanto, que vários estudos assinalam a existência, no processo de inserção profissional, de uma diferença inicial a favor dos diplomados pelo ensino profissional, diferencial esse que vai desaparecendo com o tempo. E todas as pequenas e subtis diferenças que alguns investigadores vão assinalando não permitem dizer senão, parcimoniosamente, que não há diferenças. A preparação para a vida profissional e para o trabalho, assinala mais adiante, não é sobretudo um problema de conteúdos de ensino, geral v.s profissional, mas uma questão de processo educativo, ou seja, atitudes, comportamentos e competências. Jean Vincens (1977), ao estudar esta mesma relação, procede a uma tipificação da correspondência entre formação e emprego. Esta tão desejada correspondência processa-se em quatro planos: (a) a correspondência entre a especialidade da formação e a especialidade do emprego; (b) a correspondência entre o nível de formação e o nível de emprego; (c) a correspondência entre a formação inicial, o emprego e o salário; (d) a correspondência entre a formação dada e a formação adquirida e entre a 128 formação adquirida e a formação utilizada. Mas o autor conclui que a correspondência propriamente dita acaba por não se verificar, seja quando a economia continua a incorporar um importante volume de mão-de-obra nãoqualificada e indiferenciada seja quando o desemprego cresce e os fluxos de diplomados perdem o ajustamento com os fluxos de empregos oferecidos ou ainda quando os perfis dos empregos se tornam imprevisíveis e quando a evolução verificada na divisão do trabalho nas empresas, resultante da acção dos empresários, em pouco ou em nada se relaciona com a evolução do conteúdo curricular e da produção de níveis escolares no interior do sistema de ensino e formação. A profunda marca da ideologia da correspondência entre ensino/formação e emprego muito deve à planificação da educação desenvolvida no pósGuerra, como vimos. A formação de recursos humanos qualificados era considerada uma condição central do crescimento económico e devia corresponder o mais possível às necessidades da economia. Assim, como dissemos, os fluxos da oferta de diplomados deviam ser regulados pela procura previsível do sistema produtivo, pelo que só uma planificação rigorosa e previsional podia sustentar o obtenção dos resultados de ajustamento esperados. Ora, numa época em que a oferta de diplomados deixou de ser inferior à sua procura pelo mercado de emprego, esta ideologia da correspondência colapsou e com ela cai também a pertinência das previsões e dos ajustamentos, tal como se desenvolveram de modo predominante durante todo o pós-Guerra. Com o correr dos anos, outras perspectivas críticas das teorias da correspondência ganharam corpo. Os espanhóis J.L. Garcia Garrido, Pedró e Velloso (1992) lembram que se a formação profissional escolar pretende estar ligada ao mundo do trabalho, também a sua evolução, os seus objectivos e conteúdos deveriam responder à evolução do mundo laboral. Ora, o que sucede é que esta suposta relação mecânica não existe. E 129 apontam três motivos: (a) as categorias que se encontram nos sistemas de formação não correspondem estritamente às categorias profissionais; (b) a mão-de-obra está sujeita a mecanismos de mobilidade e substituição que escapam ao controlo e à selecção que se supõe que os diplomas e as qualificações venham a exercer; (c) na medida em que a educação e a formação inicial procuram escapar à excessiva especialização na preparação para lugares concretos no mercado de trabalho, na mesma medida distanciam-se do mundo laboral. José Luis Garcia Garrido tinha analisado, na mesma altura e numa outra obra sua, as relações educação-emprego, no seio da sua análise dos problemas mundiais da educação. Nessa obra, o comparatista afirma que o desajustamento entre formação e emprego é "praticamente inevitável" (1992:224). A educação, em geral, caminha com permanente atraso em relação ao emprego. De facto, as mudanças que se operam no trabalho e no emprego exercem uma influência sobre a estrutura da educação e da formação, que se preocupam em adaptar o melhor e o mais depressa possível àquelas mutações. Mas esta reacção é sempre demorada e tornase geralmente tardia, deixando as suas novas marcas no mercado de emprego no momento em que, muito provavelmente, nele já aconteceram novas mudanças que o tornaram diferente daquilo que era. O autor explicita este desajustamento permanente no conflito entre mudança e estabilidade, como "atitudes" típicas do campo do emprego e do campo da formação, respectivamente. Assim, enquanto que a evolução do mercado de emprego requer da formação uma capacidade constante de adaptação, a formação para o emprego, ao adaptar-se, toma sempre como referência um momento desse processo de mudança e concretiza-se tomando necessariamente como estável essa referência. É como se o campo da formação requeresse do emprego uma atitude estática no tempo, exactamente durante o tempo suficiente para que as estruturas de formação possam responder às mutações no emprego. 130 Ao proceder a um estudo comparativo da evolução do ensino técnico e da formação profissional nos países da OCDE, Olivier Bertrand constata um desajustamento progressivo entre a evolução da procura da formação e a economia. A tendência pesada para o prolongamento da frequência escolar pode entender-se como o resultado benéfico de uma procura social crescente e, simultaneamente, de uma procura de mais elevadas qualificações por parte das empresas, mas as consequências do desenrolar de ambas as tendências ao mesmo tempo podem traduzir-se em elevados desajustamentos. Por um lado, os jovens são incitados a obter mais elevadas qualificações apenas porque o excesso de oferta de diplomados leva os empregadores a subir constantemente os níveis de admissão e não porque efectivamente isso corresponda a uma transformação significativa do conteúdo dos postos de trabalho disponíveis ou da organização das empresas. Por outro lado, "os novos diplomados acabam por estar em grande parte a ocupar postos de trabalho para os quais se encontram sobrequalificados e o mercado de emprego continua a ter falta de mão-deobra qualificada para os níveis de execução" (Bertrand, 1994:8). Ao constatar um crescimento da procura dos ensinos técnico e profissional, este autor adverte para o facto de que este crescimento pode significar sobretudo o resultado de uma maior selectividade ocorrida nas vias do ensino geral, o que atribui à procura daqueles tipos de ensino o estigma da segunda escolha. Tal como P. Foster, Bertrand refere que a maior procura do ensino geral reflecte uma análise racional dos mecanismos do mercado de trabalho e a sujeição a uma hierarquia de prestígio que é, em boa parte, formulada pelos próprios empregadores, pelas suas estratégias de recrutamento, de gestão das carreiras profissionais e de relação salarial. Esta perspectiva analítica reforça as teorias do conflito quando estas desvalorizam o papel dos factores cognitivos na alocação dos indivíduos nas diferentes fileiras de formação e sublinham que a escola é um palco de conflitos de interesses que reproduz um sistema de desigualdades. 131 Também McCulloch (1989), ao olhar as inovações empreendidas na Inglaterra, nos anos oitenta, para reforçar as interfaces entre educação escolar e trabalho, entre as quais se destaca a criação da Manpower Services Comissin-MSC e a Technical and Vocational Education InitiativeTVEI, procura sublinhar que este processo de reforma se limitou, em grande parte, a repetir o falhanço já verificado, nos anos quarenta e cinquenta, com o lançamento das Secondary Technical School - STS. A falta de interesse efectivamente demonstrado pela indústria em relação às STS, num quadro em que a retórica pressupunha a intervenção do sector industrial para o desenvolvimento de uma educação mais "prática" e mais interligada com o mundo do trabalho, exemplifica, segundo o autor, que o relacionamento entre a educação e a indústria não se desenrola dentro de um quadro nãoproblemático. Esta relação é, com efeito, "altamente problemática" (1989:79) e os representantes do "mundo do trabalho" acabaram por ser os que mais resistentes se mostraram ao desenvolvimento de um ensino secundário mais prático, numa perspectiva de educação mais orientada pela indústria. Estes estiveram mais interessados nas "public schools" e nas "grammar schools" como alvos preferenciais para recrutar o "tipo certo de rapaz" para as posições de liderança na indústria. "Contra os desejos de muitos professores e de muitas LEA [Local Educational Authority], foram os industriais que viraram as costas às STS" (1989:93). O autor conclui que o fracasso desta "aventura" se deve, no fundo, ao facto do ensino técnico ser parte integrante do sistema educativo e não parte integrante e importante do sistema industrial, desligando-se do esforço de ancoragem destas iniciativas em redes locais de interesses, quer económicos, quer culturais, escolares e políticos. Aliás, o funcionamento dos mercados locais de emprego situa-se no âmago deste processo sociológico de desajustamento. Por exemplo, as práticas sociais locais de recrutamento são particularmente analisadas por Rees 132 (1989), que propõe que as estratégias de recrutamento sejam consideradas como "construção da procura de trabalho" compreendendo a definição das qualidades desejadas nos trabalhadores, o uso de diferentes canais de recrutamento da mão-de-obra apropriada e a selecção de indivíduos com as características desejadas. De facto, não só a procura de mão-de-obra não é em si não-problemática, como também entre a procura e a oferta de mão-deobra existe uma série de mecanismos de filtragem que servem para estruturar as características daqueles que entram para os postos de trabalho existentes. O autor conclui que o processo de recrutamento é dominado por um conjunto de critérios sociais, muito ligados à própria dinâmica sociocultural local, sem que se encontre geralmente um "rationale" a presidir à verificação por parte do empregador das "condições sociais" que o candidato reune. A formação inicial de que o candidato é portador secundariza-se frequentemente, em detrimento da consideração de um conjunto de atributos sociais, tais como idade, sexo, etnia,atitudes perante o trabalho, sentido de responsabilidade e confiança e, além disso, subentende-se que a adequação do candidato ao posto de trabalho terá sempre de fazer-se na empresa, no seu caldo cultural. Finalmente, constata-se também que há um desajustamento profundo entre as estratégias locais de recrutamento e as políticas e programas nacionais de formação; de facto, enquanto que a estes preside uma conceptualização normativa, necessariamente generalista e idealista, aquelas são dominadas pela procura de adequação a cada situação concreta ou a cada mercado local de emprego. C. Prieto e O. Homs (1995), na sua análise sobre a evolução das políticas de formação profissional em Espanha, destacam "o papel complexo da formação nas estratégias dos actores sociais sobre o mercado do trabalho" (1995: 570). As formações "profissionalizantes" são ocupadas por alunos de diferentes grupos sociais, em função das variações da oferta de empregos, 133 utilizando-as como estratégias de resistência sobre o mercado de emprego ou de melhoria do poder de negociação. Referem ainda que os resultados de alguns estudos revelam que o impacto dos estudos "profissionalizantes" sobre os empregos ocupados é muito fraco e que o domínio onde se verifica um impacto positivo da formação, ainda que limitado no tempo, é sobre as probabilidades de encontrar um emprego. A este propósito, os autores sublinham que o facto mais saliente do últimos anos, em Espanha, é a incorporação massiva sobre o mercado do trabalho de jovens com níveis médios e superiores de formação. A existência e o peso desta população mais qualificada, as suas atitudes e comportamentos face ao mercado do trabalho são factor de forte pressão em ordem à mudança das políticas empresariais de gestão dos recursos humanos, embora ainda seja cedo para avaliar o impacto deste fenómeno sobre o emprego e a sociedade. O mesmo talvez se possa afirmar em relação a outros contextos sociais europeus em que se processou uma rápida massificação do ensino secundário e do ensino superior. Ainda quanto à falta de correspondência entre educação e emprego, alguns autores vão mesmo mais longe e, tal como Francesc Pedró (1992), referem a irrelevância das titulações escolares para o mercado de emprego, admitindo que a educação pode considerar-se um critério arbitrário para a ocupação de postos de trabalho. O sistema educativo nunca foi responsável por criar lugares no mercado de trabalho, antes, numa perspectiva histórica, foi responsável pelo adiamento do acesso da maioria dos jovens ao mercado de trabalho. A procura social crescente da educação, uma vez radicada na crença do poder das titulações escolares, não sendo por isso orientada por quaisquer aspirações específicas face ao emprego, leva também Lillis e Hogan a considerarem ser um exagerado optimismo esperar a coincidência daquelas 134 aspirações com as oportunidades de emprego. Ora, este desajustamento tem inevitáveis consequências sobre a motivação dos estudantes, sobre aquilo em que eles devem investir em termos escolares e "sobre o que eles esperam da vida profissional" (1983:103), colocando o ensino secundário superior numa rota de colisão entre expectativas sociais contraditórias, finalidades sociais amalgamadas e racionalidades em tensão. Os mesmos autores, coligindo bastantes pesquisas sobre a diversificação escolar e sobre a relação educação-emprego, em vários contextos geoeconómicos, apontam algumas conclusões que se orientam nesta mesma perspectiva de desajustamento. Assim, verificam que as tentativas de reformar o ensino secundário, como principal medida de política de certos governos para combater o desemprego e o subemprego dos jovens, se têm revelado inconsequentes. Se se deseja obter resultados e ser eficiente com estas medidas, elas deverão ser acompanhadas por mudanças nas convenções de trabalho e de salários, nos procedimentos de recrutamento e nas orientações de política social e de apoio à criação de postos de trabalho. Um outro elemento nuclear na fabricação do desajustamento entre a educação e o emprego situa-se no próprio campo da expansão da procura social de educação. Esta expansão quantitativa, com uma dupla expressão não só ao nível do número crescente de cidadãos que acede à escolarização, mas também no que se refere ao número de anos de escolaridade que eles realizam, evoluiu tão rapidamente que rompeu um equilíbrio que sempre se estimou existir, conduzindo a processos massivos de sobrecertificação escolar em relação com a hierarquia social (Tedesco, 1995), o que se articula com a desvalorização dos diplomas e com a procura desencantada da educação e da formação e vinca muito significativamente um traço de desajustamento estrutural entre a evolução da educação e a 135 evolução do emprego. Um alargado desajustamento estrutural Vários outros autores analisam esta mesma relação que aqui procuramos discernir, estudando de modo mais incisivo a correspondência entre o ensino secundário técnico e profissional e o mercado de emprego, mas fazem-no num quadro analítico em que não só estes estudos e as suas conclusões se referem geralmente a modelos escolares de formação, não incidindo sobre modelos não-formais ou duais de ensino e de formação profissional inicial, mas também em que a sua maioria incide sobre contextos não europeus. A sua relevância e oportunidade nesta análise relacionam-se com o facto de se situarem num quadro teórico idêntico ao de outros estudos já referidos, que incidem sobre o campo europeu ou norteamericano. Watson (1994), cuja análise não focaliza o campo europeu, conclui que se começa a reconhecer actualmente que não só alguns dos objectivos consignados aos ensinos técnico e profissional eram "irrealistas", mas que também há grandes problemas na relação educação e economia que não podem ser resolvidos pelo incremento desses tipos de ensino e que podem até "agravar-se" por causa deles. Psacharopoulos (1991), citado por Watson identifica sete razões para o que apelida de "falhanço dos cursos dos ensinos técnico e profissional". Estas razões são, sinteticamente, as seguintes: (a) a maior parte das famílias e das crianças vê estes cursos como segunda escolha, inferiores à via académica. As crianças estão, além disso, psicologicamente impreparadas para o trabalho manual; (b) a velocidade da mudança tem 136 revelado que há provadas dificuldades para preparar estudantes para mercados de trabalho imprevisíveis; (c) o modelo de planeamento que se seguiu tem demonstrado dificuldades notórias, não só pelo que se referiu em (b), mas porque bases de dados inadequadas tornaram impossíveis previsões correctas e ainda porque muitos dos empregos e competências requeridas se basearam em conceitos ocidentais de emprego e falharam na sua capacidade de tomar em consideração as dinâmicas culturais locais; (d) os cursos de requalificação requeridos pelas mudanças nas tecnologias não foram as mais das vezes concretizados; (e) foram os governos, mais do que os pais, que tomaram habitualmente a decisão de expandir os ensinos técnico e profissional, o que remete a decisão e as reformas educativas concomitantes para a esfera política; (f) os professores deste tipo de ensino estão invariavelmente mal formados ou simplesmente não estão formados; (g) os custos são pelo menos duas vezes superiores aos do ensino geral, devido à necessidade de equipar salas oficinais e porque a formação de professores técnicos é muito mais cara (Watson,1994:91). E aquele especialista, com base em dados comparativos, conclui que não há qualquer espécie de relação entre a intensidade da profissionalização da educação e o peso das ocupações manuais do mercado de trabalho. O falhanço dos currículos profissionalizantes é também analisado por Lillis e Hogan, tendo como referente a evolução da educação técnica nos países em desenvolvimento, contextos onde se prolongam os modelos dos países desenvolvidos e das potências coloniais. O problema residirá no tipo de expectativas que foram historicamente fomentadas "acerca do que constitui o conhecimento escolar válido". O processo legitimado de escolarização parece colocar barreiras sérias aos ensinos técnico e profissional. "A evidência africana parece sugerir que a "educação" é vista como bastante restringida ao ler e escrever e à educação académica". O desenvolvimento de habilidades profissionais ocorre "naturalmente" no exercício profissional e não na escola. Nesta ordem de ideias, o ensino profissional "corre sempre o 137 risco de ser visto como uma extensão ilegitimada do conceito de "educação" e as escolas profissionais correm risco idêntico ( Lillis e Hogan,1983:92). Os autores reúnem nove "clusters", todos interligados, que designam como sendo barreiras que se costumam colocar quando se introduz uma inovação de diversificação do ensino de tipo profissional. O primeiro são os pesados factores estruturais socioeconómicos que se relacionam com a dificuldade em criar os novos empregos esperados, porque o desenvolvimento industrial e as reformas da agricultura não absorvem normalmente os novos diplomados. O segundo refere-se às atitudes e valores dos grupos de interesse da elite nacional que são pautados pela educação académica. O terceiro prende-se com o facto de o modelo escolar académico dominar o acesso à escolaridade pós-primária e de este nível estar ligado à formação das elites no poder, sendo reservados os percursos técnico-profissionais para aqueles que falham no processo de selecção escolar, construindo-se assim como uma mera via alternativa. Em quarto lugar, a formação dos professores é dominada pelos critérios académicos e o ensino profissional é colocado num desajustamentos estatuto inferior. curriculares, pois Em a quinto lugar, concepção apontam-se pré-estabelecida os e predominante acerca do que conta como conhecimento válido na escola afasta-se das condições consideradas como relevantes para uma formação de tipo profissional, tais como flexibilidade pedagógica, experiências de trabalho, articulação com os empregadores locais e diversidade de horários. Aqui reside, em grande parte, o facto da irrelevância destas formações para os empregadores. O sexto elemento relaciona-se com os recursos. O alto custo de equipamentos e tecnologias apropriadas e actualizadas tem um fraco retorno, quando comparado com outros tipos de educação secundária. O sétimo diz respeito à avaliação pedagógica e à inadequação das suas formas e pressupostos, normalmente dependentes de uma lógica de selecção para estudos superiores. O oitavo refere-se à diferença de percepções acerca do estatuto escolar para os pais e para os empregadores. 138 Para os pais, este estatuto advém mais do número de diplomados que sequencialmente obtém acesso ao ensino superior do que do número de empregos encontrado. Por outro lado, os empregadores preferem frequentemente dar primazia à educação geral e à adaptabilidade, em detrimento dos produtos das vias vocacionais e nada garante que, quando um tipo de formação profissional é mais procurado pelos pais, o seja também pelos empregadores. Por último, as expectativas de emprego alimentadas na e pela formação escolar colidem com uma realidade laboral onde os empregos não existem ou, se existem, frustram os candidatos por não corresponderem ao perfil ocupacional para que se sentiam preparados. Também V. Chinapah et ali (1989) constatam a enorme dependência que tem existido por parte dos planificadores do sistema de ensino relativamente às teorias do capital humano, o que tem gerado, em seu entender, um pensamento educativo prisioneiro de "critérios puramente económicos, para tentar determinar o papel e a função da educação, ou seja, do sistema escolar formal como fonte de competências, de qualificações e de diplomas conformes às necessidades da produção" (1989:21). Muito raros são os países em desenvolvimento cujo sistema educativo consegue fornecer o número de pessoas qualificadas com o perfil requerido, com as qualificações desejadas e no momento adequado. Além de constatarem o desajustamento, os autores opinam que este seguidismo "deformou" inclusive a concepção que havia acerca do lugar do elemento humano nos processos de desenvolvimento. Jamil Salmi (1990) e Daniel Sifuna (1992), ao passar em revisão o desenvolvimento da diversificação escolar e do ensino profissional em países árabes e africanos, respectivamente, concluem que os objectivos que lhes foram consignados não foram atingidos. Daniel Sifuna aponta os seguintes problemas comuns que a diversificação curricular enfrenta: elevados custos unitários, ausência de clareza nas intenções e nos 139 objectivos, escassez de professores qualificados para leccionar as disciplinas profissionais e o baixo estatuto como é apreciado pelos estudantes e pela comunidade (1992:12). Assumindo-se na mesma linha de P. Foster(1978 e 1992), estes autores relembram que as aspirações dos alunos são dominadas quase exclusivamente por factores externos às escolas e que os esforços empreendidos na criação de escolas técnicas e profissionais de pouco valem para romper com os ciclos de êxodo rural ou com o desemprego e para melhorar as taxas de crescimento económico. No cerne da questão estará, em sua opinião, sobretudo a necessidade de reformular o que constitui o conhecimento escolar válido. Também Maria Ibarrola e Maria Gallart analisam, para o espaço latinoamericano, a "vinculação da escola com o sector produtivo" para registarem uma estrutural falta de correspondência entre as "lógicas da instituição escolar e as dos processos produtivos" (1994:71). E enumeram algumas dessas "lógicas contraditórias que só com muitas dificuldades e com equilíbrios muito finos se podem conciliar", como sejam o objectivo central que perseguem, a rentabilidade económica e a aprendizagem dos alunos, o sentido da participação em cada uma das organizações, o tipo de organização hierárquica entre os colectivos das organizações. Nestas diferentes racionalidades radicam grande parte dos desajustamentos evidenciados. Por outro lado, as autoras sublinham que "a lógica que rege o ensino do trabalho é muito distinta da que rege o ensino académico" e aquela, a racionalidade produtivista, está em permanente competição com esta, eleita à excelência dos saberes escolares. Podemos concluir que a história das relações entre educação escolar e 140 emprego consiste num desajustamento entre os dois subsistemas sociais, aqui retomado em oito pontos: (a) a procura social de educação e de formação não é sobredeterminada por necessidades específicas de emprego, mas é fortemente condicionada por diferentes estratégias de diferentes grupos sociais, tendentes a promover mobilidade social e a escapar à situação de desemprego ou à precaridade do emprego; (b) sempre foi difícil e é, cada vez mais, praticamente impossível prever a evolução dos postos de trabalho e proceder a um planeamento a prazo da produção de qualificações; (c) em caso algum a escola consegue proporcionar uma formação tão especializada que se possa adequar à diversidade dos empregos e à sua rápida evolução; (d) a maioria dos trabalhadores, na mesma ou em várias empresas, vai ver-se repetidamente deslocada de um trabalho para outro ou terá de se adaptar a várias alterações no mesmo posto; (e) a maioria dos postos de trabalho requer um número limitado de habilidades e de conhecimentos específicos, que se adquirem em pouco tempo e, melhor do que em qualquer outro espaço ou por qualquer outro processo, no posto de trabalho; (f) o mercado de trabalho e as estratégias concretas de recrutamento por parte dos empregadores não são suficientemente transparentes para que, se fosse possível, os trabalhadores mais indicados ocupassem os postos de trabalho mais adequados às suas capacidades pessoais; (g) o mercado de emprego não se orienta predominantemente, na procura de mão-de-obra, pelo tipo de qualificações que os sistemas educativos produzem; (h) a procura social crescente de educação e de altas credenciais escolares tem aumentado o desajustamento entre a produção de diplomados e a hierarquia dos empregos efectivamente disponíveis. É certo, como veremos mais longamente no capítulo seguinte, que os ensinos técnico e profissional têm vindo a manter e, em alguns casos, a ampliar os seus níveis de oferta, amplamente sustentado, mas não só, na ideologia da modernização económica e nas "velhas" teorias do capital 141 humano. De facto, existe também uma racionalidade educativa para o crescimento da formação tecnológica e profissional nos sistemas educativos, a par da racionalidade económica omnipresente. Aquela racionalidade sustenta a oferta e a procura de educação em vários países europeus, onde é, aliás, maioritária a procura e a oferta de percursos tecnico-profissionais ao nível do secundário. Manuel Sarmento (1991:431), por exemplo, situando esta outra relação entre educação e economia numa perspectiva “relativista”, sublinha que “o sucesso recente das novas políticas do ensino tecnológico e profissional se deve prioritariamente à sua “função simbólica”, isto é, à incorporação do trabalho como valor e dos valores do trabalho em toda a educação escolar” . O mesmo ponto de vista é defendido por Augusto Santos Silva (1991:14) quando refere a possibilidade de encararmos “a centralidade da educação tecnológica em todas as dimensões e níveis do sistema”, desde que se refira a educação tecnológica a cenários amplos de desenvolvimento social e não apenas ao desenvolvimento económico ou empresarial. Mais adiante voltaremos ao debate desta questão. No entanto, se é verdade que os ensinos técnico e profissional continuam a ser parte integrante e importante dos "catálogos" educativos nacionais, é necessário atentar nos processos que se têm vindo a desenvolver no seu seio, que parece estarem a conduzi-los para novas configurações, embora sob a mesma designação envolvente. Estão neste caso as tendências crescentes para a desespecialização e para a integração curricular e até institucional dos vários percursos formativos correspondentes ao ensino secundário superior. Faltará perceber até que ponto o aludido e "exigido" investimento em "cultura geral" se enquadra em qualquer novo mandato societal ou apenas exprime uma actualização do sistema escolar em resposta à mesma racionalidade produtivista, como que um neoprofissionalismo escolar. De facto, também convém deixar desde já enunciada a leitura da crescente oferta e procura da formação “geral” como uma nova manifestação da racionalidade económica na sociedade actual. A 142 ordem educativa “geral”, herdeira de uma perspectiva liceal de organização do ensino e da formação, pode corresponder, na actualidade, à melhor resposta educacional ao fomento da conformidade ideológica com a ordem económica preponderante nos nossos dias. As teorias da não-correspondência Expostos os resultados de um assinalável volume de estudos, podemos concluir que as teorias da submissão do aparelho escolar à função capitalista e à sua lógica de acumulação também são redutoras e de certo modo economicistas na explicação do processo de desenvolvimento dos sistemas escolares, uma vez que não deixam espaço à visão de importantes conflitos e desajustamentos que existem entre o sistema escolar e o sistema capitalista. Estes estudos, em boa medida, subsumem-se analiticamente nas teorias da não-correspondência, que argumentam que a educação escolar tem um carácter multifuncional face à sociedade e à economia. Para o constatar basta percorrer a evolução do sistema escolar na Europa, nos últimos cinquenta anos, e verificar quer o persistente esforço de democratização social que através dela se levou a cabo quer a imensidade de falhas de correspondência que se geraram entre a educação e a economia (já referidas), nomeadamente por força dos rumos que a educação escolar empreendeu seja por acção das políticas governamentais seja por pressão da procura social. Raymond Boudon (1973) forneceu um importante contributo teórico neste sentido, em particular com a teoria da procura individual de educação. Boudon, na mesma linha de Lester Thurow, vem demonstrar que a influência do crescimento dos índices de escolarização, aos seus mais variados níveis, 143 e da diminuição das desigualdades face à educação sobre a mobilidade social é praticamente nula. A construção da sua teoria da mobilidade social regista de facto uma diminuição das desigualdades educativas, que acompanha o crescimento da procura social de educação, mas regista também que este processo não está unido a uma diminuição das desigualdades no que se refere às oportunidades sociais. Ou seja, a estrutura da mobilidade social não muda correlativamente com a expansão das oportunidades educativas. Esta leitura interroga o mito e as análises deterministas acerca dos impactos sociais dos processos de democratização da educação empreendidos no pós-Guerra, na medida em que subsiste uma forte hierarquização profissional no trabalho, se mantém uma muito significativa relação entre a origem social e o estatuto socioprofissional de cada um e o sistema escolar continua a encarregar-se de transformar em diplomas desiguais as desigualdades sociais. Boudon assinala que existem diferentes sistemas de expectativas e de processos de decisão, derivados de diferentes posições sociais, que se reflectem fortemente sobre a desigualdade de oportunidades e que o aumento generalizado da procura de educação nas sociedades industriais é sobretudo uma consequência de factores endógenos, o que quer dizer que as alterações que se observam na estrutura educacional não são congruentes com as alterações da estrutura socioprofissional. O que mobiliza a procura é o facto de haver uma relação efectiva entre as aspirações sociais dos indivíduos, que diferem segundo a posição que ocupam no sistema de estratificação social, e o nível educativo que cada um acaba por alcançar. A partir desta perspectiva de não-correspondência desenvolveu-se o modelo de análise multifuncional, em que se argumenta que a relação entre a 144 educação e o emprego é conflituosa, uma vez que a educação tem um carácter multifuncional, está sustentada numa não-correspondência generalizada entre ambos os campos e contém funcionalidades que extravazam muito o campo das relações educação-emprego-trabalho. O modelo multifuncional, desenvolvido por Carnoy e Levin, vem sublinhar que a educação não deve ser remetida para o estatuto de variável dependente e que a economia ou a evolução da procura social não devem continuar a ser consideradas como as variáveis independentes, o que as coloca na posição de mandatárias do ordenamento escolar. A educação tem, antes, um carácter multifuncional, registando-se inclusive frequentes conflitos entre as suas múltiplas funções, o que a torna um "sítio de conflito" (Levin,1988). Estes autores salientam importantes argumentos que sustentam a não correspondência e até o conflito entre a evolução da educação escolar e o desenvolvimento da economia. Destacam-se alguns deles. Por um lado, a educação escolar, nas sociedades democráticas e capitalistas, ao mesmo tempo que reproduz as desigualdades sociais também conflitua com elas ao empreender uma educação de massas generalizada e prolongada, que desempenha um papel social de democratização, que se afasta dos requisitos mais directos da economia. De facto, ao expandir-se a educação de massas, que já avança pelo ensino superior e por novas formas de ensino e formação não tradicionais e extraescolares, modificou-se, nesse mesmo processo político e social, o uso social da educação. Muitas crianças e jovens, que prolongam mais e mais a sua escolarização, fazem-no, em boa parte, usufruindo do acesso a um benefício social, à revelia dos requisitos dos empregadores e da economia. Ao mesmo tempo que a educação escolar reproduz as desigualdades sociais, também conflitua com elas e, no desenrolar desse conflito, afasta-se 145 de uma mera subordinação aos imperativos económicos. Os longos caminhos entre as origens e os destinos tornam-se cada vez mais convulsos e mais imprevisíveis, dando mesmo a impressão de que alguns passos dados nesse caminho, nomeadamente nos processos de inserção socioprofissional, não são necessariamente irreversíveis, com o nota Lynne Chisholm (1995). Estão neste caso, por exemplo: (a) o contínuo crescimento da procura social individual de educação, que atinge níveis mais e mais elevados e que se concentra nas vias de ensino mais directamente conducentes à obtenção de graus superiores, aparentemente fora do alvo das expectativas da generalidade do tecido produtivo da economia capitalista; (b) o enorme impacto sobre a sociedade e sobre o mercado de trabalho causado pelas transformações culturais concomitantes com a elevação dos níveis da educação de massas, que, entre outros efeitos, causam grandes disfuncionalidades entre diplomas e empregos, remunerações, condições de trabalho; (c) a geração de uma gama diversificada de expectativas sociais e culturais na população escolarizada, que extravazam muito as meras expectativas face ao emprego e à profissão e que cria novos tipos de comportamentos sociais, entre eles o de dar novos usos ao espaço social escolar; (d) os modelos de planeamento global das necessidades de mãode-obra, além de "pontualistas e autoritários" (Paul, 1993), perderam consistência interna e externa face à evolução rápida das técnicas de produção, face ao reordenamento das organizações produtivas e face à globalização da economia capitalista, tornando praticamente inviáveis as previsões de necessidades de formação e de colocação, por sector e por especialidade; (e) o alargamento do campo de actuação do sistema educativo a uma panóplia de modalidades de formação pós-escolar, de ensino a distância, de formação permanente, envolvendo jovens e adultos, ao longo de toda a vida; (f) os desajustamentos entre a formação e o emprego tendem a ser mais graves nos países em que o Estado é o grande promotor desta formação, inclusive da maior parte da própria formação 146 profissional inicial, e o principal regulador central entre os dois campos (Erbès-Seguin, 1990). Ora, as teorias da não-correspondência abrem um quadro de análise que sustenta que, por um lado, a construção social das funções do sistema escolar não está prisioneira de uma correspondência finalista face à reprodução das relações desiguais inerentes à produção capitalista dominante e que, por outro, os desajustamentos entre os sistemas escolar e económico são evidentes e crescentes. As perspectivas funcionalistas revelam-se frágeis na sua capacidade de explicação do nosso problema e, na procura de focalizações teóricas mais válidas, os modelos multifuncionais de análise surgem com maior pertinência. Aqui chegados podemos concluir que, face à constatação de um tão vasto campo de desajustamentos, evidentes e inevitáveis, como refere Mariano Enguita (1992:28), o conceito de correspondência mantém a sua pertinência enquanto explicação global, com algumas importantes repercussões concretas, para uma adequação entre o sistema escolar e o sistema económico, em particular no que concerne à reprodução das desigualdades sociais e à preparação dos cidadãos para uma certa ordem social. Já a procura constante de adaptação do sistema escolar à evolução da economia, sendo certo que representa uma tentativa permanente de ajustamento, aliás sustentáculo do discurso que subjaz a muitos processos de reforma da educação, não passa justamente de uma tentativa permanente e nunca alcançada por parte do Estado. Se é verdade que as teorias tecnico-funcionalistas e do capital humano explicaram em grande parte a leitura da evolução da relação entre a educação e a economia no pós-Guerra, também é forçoso constatar que estão longe de explicar a amplitude e a profundidade dos efeitos da escolarização de massas que se verificou na Europa. A estreita ligação entre 147 educação e ocupação é um dado, mas a educação apresenta actualmente uma paleta de funções sociais, que em alguns casos são factor de desajustamento e de conflito social, com destaque para os resultados dos efeitos ideológicos sobre a população agora massivamente escolarizada. De facto, a escolarização de massas, que passou a englobar a totalidade da população e a separá-la da actividade produtiva, durante cada vez mais anos para um cada vez maior número, contribuiu poderosamente para o desenvolvimento de interesses, necessidades e expectativas que implicam com a relação dos cidadãos com toda a organização da sociedade e com o próprio Estado. Por outro lado, aos sistemas educativos, nos anos de forte reestruturação económica, os anos oitenta e noventa, têm sido cometidas novas funções seja de substituição do mercado de emprego seja de formação permanente ao longo de toda a vida, dentro de um novo quadro social em que o sistema escolar tradicional se reposiciona como um dos meios educativos e formativos, no seio de uma multiplicidade de fontes de conhecimento. Assim, parece-nos oportuna e pertinente a mobilização de um quadro teórico de correspondência crítica entre a educação e a economia, que valorize as relações de não-correspondência e que escape à redução das políticas educativas aos ajustamentos ordenados pela evolução da economia e pela preponderância crescente do liberalismo económico à escala mundial. Tratase, igualmente, de buscar um outro pensamento capaz de apreender a multidimensionalidade das realidades, de conhecer os jogos de interacções sociais e, neste caso, apto a conceber as políticas educativas fora da centralidade do desenvolvimrento técnico-económico. Como sugere Edgar Morin, esta centralidade advém do efeito conjugado de duas forças: de uma imposição do económico sobre o político, em que a economia se politiza e a política se dedica cada vez mais à orientação e à estimulação económica; de uma “despolitização da política que se autodissolve na administração, na técnica, na economia, no pensamento quantificante” (Morin e Nair, 1997:21). 148 A centralidade e o poder do económico, reforçados pela expansão do liberalismo a todo o planeta, provocam um efeito de redução do pensamento político e de regressão do pensamento e da acção cultural diante do económico e um efeito de imposição contínua e poderosa do pensamento técnico-económico sobre as ideias políticas e sobre as dimensões culturais das sociedades humanas. Ora, no quadro da multifuncionalidade e da correspondência crítica assim enunciados, as recentes políticas de ensino e de formação de nível secundário podem ser equacionadas, na sua formulação, não só como políticas subordinadas ao referente económico, mas também como nãopolíticas, no que respeita aos referentes políticos e culturais mais gerais em que é possível pensar o desenvolvimento e a acção educacional, ou seja, a formação e o desenvolvimento pessoal dos indivíduos. Estes, na sua maioria, é como consumidores que interessam ao desenvolvimento económico. Para além deste primeiro passo de enquadramento teórico do problema de partida, mais confinado às abordagens tradicionais no domínio das ciências da educação, é possível e necessário dar outros passos, a começar pela área da sociologia do trabalho, uma vez que aqui se tem vindo a dar particular atenção à evolução social da relação educação-trabalho-emprego. 149 3.2. A sociologia do trabalho e os novos mandatos da economia De facto, as reformas educativas que os governos europeus têm desencadeado nos últimos anos relativamente ao ensino e à formação de nível secundário auto-fundamentam-se numa retórica fortemente valorizadora da existência de novos requisitos das empresas e dos empregos, formulados sobretudo no pressuposto da evolução do modelo fordista para um modelo pós-fordista de produção. Este novo modelo seria atractor de novos perfis de competências requeridas aos trabalhadores, em que a adaptabilidade e a flexibilidade surgem como conceitos chave, conceitos que aqui e agora importa interrogar. A sociologia do trabalho tem, na verdade, permitido pensar esta problemática de modo assaz oportuno, enriquecendo muito o património teórico em que é possível equacionar a referida relação entre educaçãoformação e trabalho-emprego. Assim e ainda dentro do que poderíamos chamar o quadro teórico global da não correspondência, pode situar-se a perspectiva teórica da desqualificação do trabalho. Segundo esta abordagem, os avanços constantes e as mudanças rápidas nas técnicas aplicadas à produção têmse traduzido num processo de desqualificação substantiva dos postos de trabalho (Berg,1970; Braverman, 1974; T.T. Silva, 1991), ou seja, há uma efectiva diminuição das competências necessárias no seu exercício e, concomitantemente, assiste-se a uma restrição da autonomia e do controlo dos trabalhadores sobre os mesmos postos de trabalho. No entanto, as inovações técnicas permanentes, promovidas sobretudo pelos avanços da microelectrónica e das suas aplicações às tecnologias da informação e da comunicação, têm originado sobretudo uma cristalização da crença de que existe uma relação linear e imediata entre os processos de 150 mutação técnica nas empresas e a necessidade de incorporação de mão-deobra mais qualificada. Ora, a complexidade técnica crescente, por mais sofisticação que comporte - e também por causa disso - pouco nos informa acerca da complexidade das qualificações dos postos de trabalho. Ao incorporarem grande parte dos saberes profissionais dos postos de trabalho, as novas técnicas, segundo estas perspectivas, provocam sobretudo uma desqualificação do trabalho. Levin e Rumberger (1988 e 1989) constatam que, para o caso norteamericano e contrariamente às expectativas e até às previsões governamentais de crescimento do volume de novos empregos em torno de profissões mais altamente qualificadas, em função também da incorporação de novas técnicas de produção, se veio a registar, nos anos oitenta, um aumento significativo de postos de trabalho, mas em profissões que requerem níveis pouco elevados de qualificação profissional de base. Concluem que "não é provável que o uso generalizado de computadores e de outras novas tecnologias aumente as exigências de qualificação da maioria dos empregos" (1988:127). Em inúmeras situações, os requisitos em novas qualificações, que surgem agregados à introdução de novas técnicas, não carecem de mais do que umas escassas horas de readaptação, na maioria dos empregos. Também mais recentemente Barbier (1998), no seu relatório ao B.I.T., assinala, para o caso dos EUA, que “os empregos são ainda muito taylorizados” e que mesmo nos serviços (que cobrem 73,1% dos empregos civis), os empregos são pouco qualificados, fora do campo dos serviços financeiros (1998:18) Para algumas perspectivas neomarxistas este processo de desqualificação é parte integrante da cadeia de esforços empreendidos pela economia capitalista para reforçar a dominação e melhor refazer a lógica de 151 acumulação (T.T. Silva, 1991). Vários autores têm vindo a sublinhar, no entanto, que ao analisarmos o impacto das inovações técnicas e organizacionais sobre as qualificações do trabalho, podemos confundir desqualificação com mudança de qualificação, no mesmo ou em postos de trabalho periféricos. Aquele impacto tanto tem incidências sobre o aumento como sobre a diminuição dos requisitos de qualificação. Podem surgir desqualificações que mais não são do que qualificações diferentes, qualificações que se geram perifericamente em relação ao ordenamento profissional e produtivo anterior, qualificações que se reorientam em função de profundas mudanças organizativas. Assim, se assistimos a processos de desqualificação “tecnológica”, deparamos ao mesmo tempo e porventura no mesmo lugar com processos de qualificação “tecnológica”ou até comportamental ou organizacional. É isto, aliás, o que ocorre em vários processos de reengenharia empresarial, em que certas reestruturações técnicas são acompanhadas por fortes reformulações organizacionais, de espaços, de funções, de actividades, e onde, por vezes, se assiste a processos de requalificação profissional dos operadores. Além disso, pode suceder que fenómenos sociais simultâneos sejam tomados como encadeados em relações causa-efeito. Assim, o facto de ocorrer uma intensa incorporação de novas técnicas na produção de bens e de serviços e, ao mesmo tempo, se assistir à elevação dos requisitos para acesso aos empregos, não nos permite explicar linearmente o segundo pelo primeiro fenómeno. Pode acontecer que esta elevação dos requisitos se relacione sobretudo com o facto de se assistir a uma elevação generalizada dos níveis dos diplomas, por força das oportunidades sociais abertas, nas últimas décadas, pela escolarização de massas e pela procura individual crescente de elevadas credenciais escolares e ainda por força do fechamento do próprio mercado do primeiro emprego. Neste caso a pertinência teórica do credencialismo sobrepõe-se à pertinência da 152 perspectiva da desqualificação. As novas técnicas e o pós-fordismo Importantes contributos analíticos têm também sido desenvolvidos em torno da problemática da adopção generalizada de novas técnicas na produção de bens e de serviços, da consequente afectação dos esquemas organizacionais e de gestão das empresas, da globalização crescente da economia capitalista e das novas exigências em termos de qualificações profissionais, derivadas destas mutações na economia. A tese mais comum consiste em salientar que se assiste a uma crise do modelo taylorista e fordista de produção, que está a ser substituído por um modelo pós-taylorista e pós-fordista ou de "produção flexível", em contraposição ao modelo de produção em massa ( Kovacs, 1991 e 1993, que retoma o conceito de Michael Piore e Charles Sabel, 1989). Do novo modelo constaria ainda a incorporação de uma mão-de-obra possuidora de um novo tipo de qualificações profissionais. De certo modo, estaríamos diante de uma retoma dos modelos funcionalistas, agora sob um novo discurso formulado sob um novo contexto socioeconómico, já não de crescimento mas de reestruturação e de crise. Antes de analisar e criticar estes contributos, convém precisar o conceito de modelo que aqui se vai considerar, aplicado aos modelos de produção. Com Pierre Veltz (1993), adopto a perspectiva de que um modelo não é uma espécie de pronto-a-vestir que se aceita ou se recusa, mas um quadro de definição e de avaliação das racionalidades da acção, normalmente mais implícito do que explícito, dotado de historicidade, produzido e reproduzido por actores sociais, que, uma vez constituído se impõe aos mesmos actores como um referencial de esquemas-tipo de resolução de problemas-tipo. A 153 história tem demonstrado que estes conjuntos de esquemas existem como modelos de organização sociotécnica e de eficiência socioeconómica, modelos que revelam uma notável estabilidade temporal. Ora, estas características de historicidade e de durabilidade são nucleares quando se perspectiva a reflexão em torno da mudança de sistemas produtivos. Se um modelo produtivo comporta uma complementaridade e uma coerência entre princípios de gestão, organização interna das empresas e relação salarial, então um sistema produtivo é estruturalmente estável (Boyer, 1993:33). É que daqui decorrem importantes apontamentos teóricos sobre as mudanças de um sistema produtivo a um outro, entre os quais sublinhamos os seguintes: (a) o sistema instalado tende a integrar parte das inovações que se vão produzindo, além de rejeitar parte delas, encarregando-se de renovar as condições concretas em que se desenvolve em cada sociedade; (b) um sistema produtivo não pressupõe uma completa homogeneidade de princípios e de práticas organizacionais, antes requer uma complementaridade entre princípios diversos, impondo a sua dinâmica ao conjunto do sistema (Boyer, 1993a); (c) são despropositados, porque ahistóricos, os cortes arbitrários entre modelos de produção que permanentemente se efectuam em muitas análises oriundas da gestão e da economia; (d) a simples adopção de novas técnicas de gestão pouco diz acerca da mudança de um modelo de produção e do correlativo jogo de forças que se desencadeia na espessura da organização produtiva (Veltz, 1993); (e) as crises ou as mortes anunciadas dos modelos instituídos podem ser processos muito longos, em que mesmo o seu reconhecimento é muito difícil e lento (Boyer, 1993a); (f) a passagem de um modelo a outro é complexa e difícil também devido às numerosas complementaridades e indivisibilidades que ligam um sistema produtivo à economia e à sociedade na qual ele se desenvolve. Ora, o modelo predominante de organização do trabalho, na segunda 154 metade do séc. XX, tem a sua origem nas transformações em torno da divisão do trabalho operadas no início do mesmo século. Nelas intervieram de modo decisivo as contribuições de F.W. Taylor (1856-1915) e H. Ford (1863-1947). Taylor começou por estudar os gestos efectuados pelos operários, de cronómetro na mão, de modo a introduzir sinplificações e melhoramentos, como se de um processo de investigação em laboratório se tratasse. O seu método de "organização científica do trabalho" inaugura uma divisão parcelerizada do trabalho de cada trabalhador. Taylor introduziu, nos tradicionais meios de organização do trabalho e de melhoria da produtividade, um sistema coerente, exterior e objectivo, de controlo sistemático dos tempos mortos. Na sequência da análise científica dos tempos, uma norma é ditada do exterior, fruto da intervenção de especialistas, para ser aplicada pelos trabalhadores como o melhor dos métodos de produção. O modelo de organização científica do trabalho propagou-se nos EUA e na Europa entre as duas guerras. Entretanto, Henry Ford montava,nas fábricas da Ford de Detroit, a primeira cadeia de montagem automóvel, em 1913. O que Ford procurava, para além de prosseguir o objectivo de combater os tempos mortos existentes nos postos de trabalho, tal como Taylor, era diminuir drasticamente os tempos mortos entre os postos de trabalho, numa abordagem mais horizontal do processo de produção. A cadeia de montagem, ao levar o trabalho até cada trabalhador e articulando mecanicamente dezenas de postos de trabalho até então fragmentados, permitiu reduzir, de imediato, de doze horas e vinte e oito minutos para uma hora e trinta e três minutos o tempo necessário para montar um chassi do célebre Ford T. Esta organização da produção baseava-se na montagem de peças 155 standartizadas e intermutáveis, integrada num modelo de produção em série, capaz de reduzir os custos de produção e os preços e de aumentar o consumo de massas. O modelo fordista assenta em três princípios: (a) reduzir os tempos das operações elementares, racionalizando o trabalho e mecanizando-o o mais possível; (b) estabalecer uma forte hierarquia entre as funções de concepção, produção e venda, em função de um comando superior; (c) produzir em grande série e a baixo custo, fomentando o consumo de massa e fazendo assentar a concorrência sobre os preços. A organização da produção é fortemente burocrática e caracteriza-se pela centralização da maior parte das decisões, pela integração vertical e ainda pela existência de redes de subcontratação que funcionam como amortecedores das variações da procura. O trabalho subordinado é muito especializado e pouco qualificado e está sujeito a um forte controlo hierárquico. A combinação entre a organização do trabalho, a produção e o consumo de massas, estão fortemente ligados no modelo fordista. Este deve ser, por isso, equacionado não só como um novo método de organização da produção mas como o sustentáculo de um novo surto económico, em que as economias de escala originadas pela produção em série viabilizam, simultaneamente, um abaixamento dos preços dos produtos, um aumento dos salários e a ocupação de vastas camadas da população. O quadro macroeconómico que se seguiu à II Guerra Mundial, os chamados Trinta Gloriosos (1945-1975) ou a Era de Ouro, em que se descreveu uma curva de crescimento forte e regular, com uma boa capacidade de previsão da evolução do consumo, favoreceu a persistência deste modelo centralizador e hierárquico. Nele se inscreve um importante modelo de "compromisso salarial" em que é aceite o tipo de racionalização e de mecanização do trabalho e se estabelecem regimes de retribuição do 156 trabalho assentes em fórmulas salariais que garantem não só uma certa progressão, capaz de compensar pela remuneração um trabalho monótono e, quantas vezes, árduo, como uma eficaz integração na esfera do consumo. Este modelo produtivo, como outras realizações históricas, encontraria, no seu sucesso, os elementos do lento esgotamento do seu potencial de expansão. O modelo produtivo e o modo de regulação social em vigor esboçaram sinais de crise e outras práticas começaram a instalar-se, como vias de superação de novos desequilíbrios e contradições, e a ser tomadas como características da evolução em direcção a um novo modelo de produção. Após um ciclo virtuoso fordiano, o seu paradigma sociotécnico entra em crise, devido sobretudo a uma crise da acumulação capitalista, que transparece em factos tão importantes como o esgotamento dos ganhos de produtividade na indústria, o esgotamento da norma de consumo, o desenvolvimento do trabalho improdutivo, no privado e no público (Boyer e Durand, 1993). Para outros autores esta evolução afecta toda a sociedade: as relações salariais são mais precarizadas e as negociações contratuais mais duras e o terciário já não pode fazer crescer a sua produtividade para compensar a estagnação da produtividade industrial. Será em torno de conceitos como o de neofordismo e de especialização flexível que se procurará equacionar esta crise no modelo capitalista de produção. Da crise ao pós-fordismo, passando pelo neo-fordismo O modelo taylorista-fordista apresentava importantes limitações, que se foram revelando nos anos sessenta e setenta. Por um lado, a burocracia 157 taylorista torna excessivamente pesadas as relações de trabalho e a fragmentação fordista das funções e dos postos de trabalho dificulta novos ganhos de produtividade, as avarias e os desperdícios passam a ser avultados e as condições de trabalho vão-se deteriorando. As rotinas, as fortes cadências das linhas de montagem, o exercício profissional alienante e os acidentes de trabalho provocam, por sua vez, uma maior conflitualidade laboral. Movimentos sociais diversos reclamam, neste período, uma maior harmonização do trabalho, na linha das críticas já anunciadas por C. Chaplin, em 1936, nos “Tempos Modernos”. O sindicalismo operário, a acção social da Igreja Católica, os novos movimentos culturais como o Maio de 1968, constituem aspectos reveladores de um clima social propiciador da construção e da aceitação social de alterações no modelo taylorista-fordista. A revolução científico-técnica, acelerada nas décadas de cinquenta e de sessenta, e os conhecidos "choques" macroeconómicos dos anos setenta, provocaram um forte abalo nos sistemas produtivos de produção em massa, sistemas muito dependentes da intensidade energética. O modelo fordista, perante a iminência de um esgotamento acelerado, evolui para novas configurações, o que tem levado alguns autores a referir que se assiste, nos anos noventa, a uma mudança de modelo produtivo. A concorrência económica acentua-se e já não se baseia apenas na quantidade mas também na qualidade e ainda na faculdade do modelo de produção acolher mudanças céleres de produtos e variações sensíveis na procura. Ora, o fordismo produtivo revelava uma rigidez excessiva e constituía ele mesmo um entrave aos ganhos de produtividade, em contexto de flutuação da procura e de mutação técnica acelerada. As características habitualmente mais sublinhadas para demonstrar esta evolução são a introdução de novas formas de organização do trabalho, mais descentralizadas e participativas, tais como as equipas de trabalho 158 semi-autónomas, a nova divisão internacional do trabalho, com destaque para a deslocalização da produção dos países mais avançados para os menos desenvolvidos, as novas relações sociais de trabalho, interactivas e cooperativas (Kovács, 1993) e, é evidente, as significativas modificações das técnicas aplicadas à produção, que se repercutem na sua automatização crescente. O conceito de produção flexível, que é contraposto ao de produção em série ou produção de massa, é mobilizado para abarcar esta evolução do modelo. Ele compreende descritores tão importantes como a produção de produtos de alta qualidade e diversificados, que apelam a elevados graus de inovação, uma organização flexível, pouco hierarquizada e descentralizada do trabalho, a introdução de novos equipamentos automatizados e a criação de unidades produtivas mais pequenas, uma concorrência assente na qualidade, na individualização e na inovação constante e, ainda, a existência de operadores qualificados e polivalentes. Será, aliás, uma justaposição permanente e generalizada entre a introdução de novas técnicas e, de modo mais genérico, entre a evolução de um novo modelo de produção flexível, por um lado, e a exigência de uma nova organização do trabalho, absorvente de uma mão-de-obra mais qualificada, por outro, que se propagará como traço ideológico dominante, nos anos oitenta e noventa. Como exemplo concreto deste novo modelo é comummente apontado o toyotismo, tomando-se este como uma organização alternativa da produção fundada no "just-in-time", em que a procura comanda a produção, e na autonomização, em que as máquinas funcionam de modo autónomo, parando face a uma avaria. As relações de trabalho são igualmente alteradas, com destaque para a polivalência multifuncional dos trabalhadores, cujo trabalho é racionalizado em equipas, e para o recurso 159 constante à subcontratação. Com o toyotismo opera-se sobretudo um esmagamento dos custos de produção - no que prossegue as tendências fordistas-, sob o constrangimento de uma procura muito diferenciada e de qualidade, recorrendo-se a uma nova capacidade de incorporação rápida das inovações que advêm da investigação aplicada, à integração de funções como concepção, fabrico, controlo e marketing, à integração da capacidade de produção numa firma alargada, que vai desde a empresa contratante, à subcontratada e à empresa fornecedora, e ao aumento das qualificações dos trabalhadores. Quanto a este último aspecto, recorre-se ao conceito de engenharia simultânea para significar a mobilização simultânea de saberes, saberesfazer e inteligências individuais, residentes em diferentes profissionais numa dada organização, integrados em diferentes equipas, que se articulam em direcção a um produto e objectivos finais. Um dos principais debates em torno desta perspectiva é o que concita argumentos a favor e contra a ideia de que se está perante a emergência de um novo modelo de produção. Ora, muitos autores têm vindo a sustentar que o toyotismo é apenas uma derivação do fordismo, pois os paradigmas da produção de massa continuam a ser dominantes ( Boyer, 1993; Durand, 1993; Houben e Ingham, 1995). Para Roger Boyer assiste-se a um refinamento do fordismo; este autor avalia o "just-in-time" como não sendo mais do que um salto qualitativo hiperfordiano e sustenta que uma correcta avaliação do grau de mudança numa empresa requer a consideração de vários níveis de resistência à mudança, que vão desde a interface com outras empresas e fornecedores, passam pela estruturação interna da empresa e atingem, por fim, o núcleo da organização do trabalho (ver Figura 3.1). 160 161 Figura nº 3.1 Hierarquia dos espaços da empresa e seu diferente posicionamento face à mudança Pressões do mercado e, em particular dos concorrentes Interface com o espaço Estruturação interna das funções da empresa Organização do trabalho Nota: Adaptado de Boyer e Durand (1993:137). Se no primeiro nível, com mais visibilidade e mais capacidade de adaptação às mudanças, há uma membrana fina de resistência às pressões do mercado e da concorrência, no segundo nível, a estrutura interna de repartição de poderes já é mais dificilmente permeável às mudanças, embora se encontre em muitos casos aberta à experimentação de novos esquemas de integração de funções ou à incorporação de novos métodos e equipamentos de trabalho. O núcleo duro do edifício empresarial, a organização do trabalho, é ainda mais resistente à mudança, o que não quer dizer que não se assista frequentemente à adopção de técnicas de gestão participada e à mobilização de equipas integradas de trabalho. Elas traduzem-se, no entanto, no que o mesmo autor apelida de taylorismo flexível, que dá conta quer da abertura aos novos ventos quer da permanência do ordenamento 162 organizacional prévio. O modelo taylorista-fordista é como que um lastro vasto e fossilizante que impregna as organizações e ordena os conflitos, acolhendo, no seu largo e elástico seio, algumas inovações, por exemplo de tipo integrativo, de automação e de reforço da comunicação horizontal, mas com recuo suficiente para sobrepor a sua matriz estruturante às periferias condescendentes e facilitadoras da inovação. O modelo organizacional experimentado pela Volvo em Uddevalla e em Kalmar, tal como é tomado por Boyer e Durand (1993), sendo excessivamente distanciado do modelo dominante, só poderia conduzir a pouco mais do que a experimentação, mesmo que esta fosse bem sucedida. Por isto é que Stephen Wood (1993) prefere referir-se à japonização do fordismo, fenómeno que vem dos anos cinquenta, que permitiu em parte ultrapassar limitações evidentes de desenvolvimento do modelo de produção de massa. Nesta acepção, inovações como o fluxo tenso e o "just-in-time" deverão ser tomadas como elementos de regeneração fordista, sinais de renovação, mais do que esgotamento ou a tempo de o evitar, uma vez que aspectos fundamentais do sistema como o estudo científico do trabalho, as linhas de montagem, a produção de massa e o marketing de massa não foram abandonados. Aliás os seus "transplantes" na Europa e nos EUA provam-no, uma vez que se inserem no modelo dominante, sem que se alterem necessariamente as regras do jogo. Jean-Pierre Durand (1993) alinha com esta perspectiva ao destacar as dificuldades da economia francesa em “aplicar” um novo modelo produtivo. Entre elas assinala a estruturação muito rígida e fechada das empresas, o que trava a mobilidade dos assalariados, o facto de estes por sua vez estarem organizados por grupos profissionais, muito estruturados internamente à volta das suas especificidades, a esclerose da divisão em 163 categorias profissionais reproduz fortes desigualdades salariais que desencorajam as iniciativas dos assalariados em ordem à mobilidade, e ainda o facto de haver vários sectores produtivos e segmentos de sectores colocados perifericamente face à concorrência internacional, onde as resistências ainda são mais fortes. Se uma modificação significativa do modelo produtivo requer o envolvimento não só dos técnicos e especialistas mas dos operadores, a tarefa compreende não só a alteração do imaginário que povoa a empresa, mas de todo o imaginário que voga na sociedade em torno dela, como por exemplo o que engloba as representações acerca do papel do ensino técnico e profissional. Já para Houben e Ingham (1995) a superioridade do toyotismo é reconhecida sobretudo na sua capacidade de eficácia económica no escalão da empresa, o que se mantém como o critério mais decisivo no actual sistema concorrencial. É, de facto, ao nível do processo de produção que se concentram os sucessos do toyotismo e que o levam ao plano mais elevado do mimetismo internacional. A sua superioridade reside em aspectos como a economia de recursos e a eliminação de desperdícios em material, equipamentos, salários, stocks e efectivos, ou a racionalização do trabalho em grupo, sobre uma base de racionalização do trabalho individual, ou ainda a capacidade de adaptação mais rápida às necessidades do mercado ou a gestão mais rigorosa dos defeitos de fabrico, a informação obtida mais rapidamente e melhor alocada e a organização mais leve e mais integrada de funções. Assim, a tradição do fordismo é prolongada e não substituída. Como diz Jean-Pierre Durand (1993) , ainda não apareceram reunidas as condições de um novo regime de acumulação. As rupturas no modelo produtivo dominante devem tomar-se, entretanto, como melhoramentos do modelo. Não será estranha a esta leitura a categorização que Ilona Kovács (1993) propõe para abordar as tendências de desenvolvimento dos sistemas produtivos no novo paradigma sociotécnico: o neo-taylorismo ou taylorismo informático, a produção automatizada, com trabalho reduzido para todos, o 164 trabalho revalorizado para alguns, com segmentação social e o póstaylorismo ou o trabalho revalorizado para todos. Adopta-se, assim, a perspectiva de que estamos diante de um quadro social em que coabitam os modelos produtivos neo-fordista e pós-fordista e assume-se a perspectiva da continuidade e não da ruptura do modelo de produção. Sendo assim, ainda estamos longe de um quadro social dominantemente pósfordista, que implicará certamente um novo tipo de compromisso salarial, de vastas repercussões societais. Philip Brown e Hugh Lauder (1996) sistematizam bem este modelo de análise no Quadro 3.1. 165 Quadro 3.1. Do fordismo ao neo e pós-fordismo: caracterização de modelos de desenvolvimento nacional Fordismo Neo-fordismo Pós-fordismo Competição global através de ganhos de produtividade, redução de custos (salários, margens) Competição global através da inovação, qualidade e valor acrescentado de bens e serviços Investimento interno atraído pela “flexibilidade do mercado” (redução dos custos sociais do trabalho e do poder dos sindicatos) Investimento interno atraído por mão-de-obra altamente qualificada envolvida na produção de valor acrescentado O antagonismo como orientação do mercado: remover impedimentos para a competição no mercado. Criação da “cultura de empresa”. Privatização do Estado de bem-estar Objectivos de base consensual: “política industrial” associativa. Cooperação entre governo, empregados e sindicatos Produção de massa de produtos estandartizados / baixa qualificação, alto salário Produção de massa de produtos estandartizados/baixa qualificação, baixo salário, produção”flexível” e “sweatshops” Sistemas de produção flexível, pequenas séries, nichos de mercado; evolução para altos salários, empregos altamente qualificados Organizações burocráticas hierárquicas Organizações mais magras com ênfase na flexibilidade “numérica” Organizações mais magras com ênfase na flexibilidade “funcional” Funções laborais fragmentadas e estandartizadas Redução da demarcação sindical laboral Especialização flexível / trabalhadores multi-competentes Emprego estandartizado de massa (masculino) Fragmentação/polarização da força de trabalho; “core” de profissionais e força de trabalho”flexível” (ex. part-time, tempos, contratos, carreiras portfolio) Manutenção de boas condições para todos os trabalhadores. Não há um “core” de trabalhadores recebendo formação, benefícios, salários comparáveis, representação própria Divisões entre gestores e trabalhadores/relações de pouco confiança /contratação colectiva Ênfase no direito dos “gestores” para gerir. Relações industriais baseadas em relações de pouca confiança Relações industriais baseadas em elevada confiança/elevada liberdade de acção e participação colectiva Fraco nível de formação em serviço para a maioria dos trabalhadores “Procura” de formação dirigida/fraco uso de políticas de formação industrial Formação como investimento nacional / Estado actua como formador estratégico Mercados nacionais protegidos in Brown e Lauder (1996:6) 166 Existem, portanto, dois tipos ideais de desenvolvimento económico nacional, para além da persistência do fordismo.O primeiro, o neo-fordismo, que pode ser caracterizado como uma mudança em direcção à acumulação flexível, baseada na criação de uma força de trabalho flexível, ligada a baixasqualificações e baixos-salários, a emprego temporário e em part-time e a organizações mais magras, por força de uma flexibilidade numérica, competindo globalmente sobretudo através de ganhos de produtividade e de reduções progressivas de custos. O segundo e em alternativa, o pósfordismo, que se baseia numa mudança em direcção a uma produção por medida e de "alto valor", sustentada pela inovação, pela qualidade e pelo valor acrescentado de bens e serviços, pelo recurso a trabalhadores altamente qualificados e multi-competentes e com altos-salários e por organizações mais magras, por adopção de uma flexibilidade funcional. Assim, o mercado de trabalho, na Europa dos anos noventa, é atravessado por movimentos neofordistas e por alguns importantes traços pós-fordistas, geralmente minoritários e adstritos a sectores económicos mais modernos e mais competitivos. Uns e outros procuram usufruir do conhecimento e da inteligência humana de modo bem diferenciado, num ambiente social profundamente marcado pela correspondência crítica entre o mundo da educação e o mundo do emprego. A ideologia do pós-industrialismo e do pós-fordismo, que grangeou consensos apressados em torno de palavras-chave como produção flexível e novas e mais elevadas competências, tem contribuído fortemente para esconder diferenças fundamentais no modo como as nações, os sectores de actividade, as regiões, os modelos de contratação colectiva, o tipo dominante de empresas e de empregadores, reagem à globalização económica, em cada momento, como também salientam Brown e Lauder. Para combater este determinismo ideológico basta lembrar o impacto decisivo das opções políticas seguidas em cada país, em cada momento, 167 sobre a intervenção do Estado na economia e na justiça social e o quanto estas mesmas opções influenciam uma evolução mais vincadamente neofordista ou mais claramente pós-fordista. Esta perspectiva crítica dos discursos que tão facilmente se deixam encantar com o belo canto pós-fordista pode ainda ir um pouco mais longe se alargarmos a análise da relação educação-economia às desigualdades sociais, especialmente de rendimento e de oportunidade, e não nos limitarmos à análise da evolução dos empregos, das profissões e das qualificações. O investimento nos recursos humanos de um país, por maior que seja, esbarrará sempre com o nível de desigualdades sociais existentes, qualquer que ele seja. Estas terão um inegável impacto sobre a procura social de educação, sobre os níveis de qualificação atingidos pela população e, inevitavelmente, sobre a economia de cada país. Além destes aspectos, a crítica à retórica pós-fordista carece de um aprofundamento em torno de alguns conceitos nucleares nesta investigação, a começar pelo da flexibilidade. Esta crítica revela-se pertinente sobretudo se considerarmos, com Edgar Morin, que o liberalismo económico que lhe está associado se constitui, no âmago do processo de globalização, como uma poderosa máquina de “manipulação de símbolos” ( Morin e Nair, 1997:107), com forte impacto cultural, que visa reproblematizar as referências fundamentais da ordem social ainda dominante, o que aqui se designa por neo-fordismo em transição. A produção flexível e a flexibilidade Na actualidade e no quadro das relações entre a educação e a economia, o termo "flexibilidade" inunda a linguagem natural, os discursos de inscrição, de expressão, de prescrição e de explicação ( Berthelot, 1996:20 ss). Ele 168 serve para qualificar a empresa, o trabalho, o emprego, o salário, a formação e a especialização, a tecnologia, a mão-de-obra, a organização e o modelo de produção. Em nosso entender, ele faz parte de um certo "profetismo globalizante" (Pollert, 1989:91), de generalização muito vasta, que deve ser analisado no quadro do processo de inteligibilidade que aqui empreendemos, sob pena de se nos impor como uma espécie de fim da história ou como um determinismo paralisante do labor analítico. Em poucas palavras, o termo flexibilidade usa-se, antes de mais, para significar a capacidade de adaptação da produção às variações da procura e, em termos mais gerais, a capacidade de adaptação das empresas ao conjunto das mutações técnicas, organizacionais, económicas e culturais . O reverso da flexibilidade é a instabilidade. O conceito surge associado à crise económica, desde os anos setenta, e refere-se à adaptabilidade das empresas face à intensificação da concorrência, face às mutações mais constantes nos mercados, seja pela sua expansão seja pela sua contracção ou ainda pela alteração radical de produtos e de mercados, face às mais frequentes inovações científico-técnicas, derivadas sobretudo da aplicação dos novos processamentos microelectrónicos, tudo isto a desenrolar-se num contexto de internacionalização crescente da economia capitalista. A flexibilidade surge como um valor recorrente no mercado de trabalho, tanto interno como externo. Mas a sua utilização é muito mais vasta e avassaladora, significando para uns um desejo, para outros um mar de oportunidades e para outros ainda um oceano de ameaças (Dahrendorf,1995). Segundo este autor, em termos políticos, ela pode abarcar os processos de desregulamentação e todas as medidas tendentes a diminuir a acção do Estado, substituindo este pelo mercado, em termos culturais, ela pode significar a capacidade crescente de todos aceitarem as mudanças tecnológicas e a elas se adaptarem com rapidez, em termos de sistema de produção, ela traduz-se pela perda de uma série de 169 constrangimentos do funcionamento do mercado de trabalho e do sistema de contratação e, finalmente, em termos de mercado, ela traduz-se numa movimentação de tudo em torno das oportunidades. Como o mercado é cada vez mais global, pessoas e empresas podem travar ou potenciar os efeitos da flexibilidade, mas não lhe podem escapar. Sinal destes tempos é a afirmação do presidente sindical da CFTC-França, no início de 1997, perante cenários governamentais de flexibilização laboral, de que "somos todos coreanos do Sul". O âmbito preponderante de aplicação do conceito de flexibilidade - da organização da produção, da hierarquia das qualificações, da mobilidade dos trabalhadores, da formação dos salários ou das formas de protecção social (Kovács, 1993; Rodrigues, 1994) - e aquele que queremos aqui aprofundar é o que incide sobre a capacidade das empresas tornarem "flexível" o trabalho, desde a constituição da "fábrica mínima" até à criação de um sistema laboral elástico, inscrito numa outra divisão do trabalho, em que a subcontratação empresarial assume papel relevante. O trabalho está, assim, no âmago da problemática da flexibilidade e constitui o principal condutor da elasticidade dos movimentos de adaptação das empresas. A flexibilidade laboral apresenta geralmente duas faces, uma funcional e outra numérica (Pollert, 1989; Brown e Lauder, 1996)21. A flexibilidade funcional refere-se ao processo de trabalho, mais precisamente à abolição de fronteiras entre funções, à plurifuncionalidade e à elasticidade dos tempos de trabalho, tendo em vista uma adaptação às exigências da produção. A flexibilidade numérica relaciona-se com o volume de trabalho e pode ser utilizada de modo temporário ou irregular ou ter apenas que ver com a subcontratação. A este último tipo de flexibilidade está claramente associada a precarização dos vínculos de trabalho. 21 Maria João Rodrigues (1991) usa os conceitos de flexibilidade interna e externa que aqui são também retomados dentro dos conceitos de flexibilidade funcional e numérica. 170 A empresa flexível é, ao nível micro, a expressão de um mercado de trabalho dual, já observado por Friedmann nos anos 60 e retomado mais recentemente por vários autores (Pollert, 1989; Kovacs, 1991; Stroobants, 1993; Reich, 1993; Green, 1994), em que existe, por um lado, um núcleo central de trabalhadores internos, estáveis e qualificados, afinal aqueles que têm acesso ao mercado de trabalho primário (Finegold e Soskice, 1988), e, por outro, uma massa de trabalhadores periféricos, externos, menos qualificados e indiferenciados e sujeitos aos movimentos de expansão e contracção das necessidades produtivas. O trabalho encontra-se bipolarizado entre aqueles que fazem parte de uma "escolha estratégica" (Pollert, 1989), relacionada com a actividade central da empresa e da organização, e os que são recrutados no mercado geral de trabalho, onde se encontram completamente disponíveis. A flexibilidade numérica associa-se, assim, a uma flexibilidade de mercados e a uma flexibilidade financeira, em que estas comandam aquela, tornando-a o centro de um eixo sobre o qual roda a própria flexibilidade organizacional. Se considerarmos o carácter estável do núcleo central de trabalhadores, devemos considerar também a flexibilidade não só como qualificativo adstrito principalmente ao outro polo e ao seu regime contratual, mas também a flexibilidade contratual como um recurso de mais fácil acesso e uso do que a flexibilidade funcional. Piore e Sabel (1989) e a sua teoria da especialização flexível insistem nestes mesmos pontos, inscrevendo a flexibilização numa crise do fordismo e fazendo-a equivaler a uma contracção salarial e a uma versátil disponibilização de mão-de-obra. É oportuno lembrar que no Japão e na evolução do seu sistema de produção, tomado como referente por muita literatura e por muitos discursos 171 políticos, a flexibilidade do trabalho é a forma mais característica de gestão do emprego, muitas vezes indissociado das escolhas tecnológicas. É sobre uma gestão rígida dos recursos humanos que incide a flexibilidade: agindo sobre o volume de efectivos ou sobre a duração do trabalho (horas suplementares, trabalho em equipas sucessivas, trabalho de fim-de-semana, contratos a termo certo, recurso a estagiários, a interinos, a temporários, subcontratação, desemprego parcial), agindo sobre as remunerações (salários ligados aos resultados da empresa ou aos desempenhos individuais) e, também, sobre a organização do trabalho, ou seja, sobre diferentes formas de polivalência (Stroobants, 1993a). Várias perspectivas críticas têm sido ventiladas na análise do conceito de flexibilidade. Uma primeira denota o seu carácter impreciso e confuso (Castillo, 1994; Pollert,1989), uma vez que todos os sistemas produtivos comportam, em cada momento, a rigidez e a flexibilidade e quando esta última se acentua não quer dizer que aquela seja abandonada, embora este movimento surja normalmente escondido sob a designação genérica, comummente empregue, de flexibilidade. Uma segunda perspectiva acentua a necessidade de evitar inscrever os discursos sobre a organização flexível num discurso geral e a-histórico, em que este modelo concreto aparece dotado de um determinismo de superioridade em termos de organização óptima dos sistemas produtivos. Nada pode ser considerado como sendo melhor sem referência a um contexto socioeconómico concreto e situado. O modelo da organização flexível é uma questão organizacional e social equivalente a tantas outras que fizeram parte da evolução histórica dos sistemas produtivos ( Boyer e Durand, 1993). A produção flexível pode também ser criticamente observada como mais um salto na velha finalidade produtiva da economia dos tempos, prosseguida 172 persistentemente ao longo de todo o século pela economia capitalista. Num momento como o que se seguiu à já referida crise económica dos anos setenta, em que a velocidade de adaptação passou a constituir um objectivo central da produção, o combate aos tempos mortos foi mantido e ampliado, agora através de novas combinações entre as tecnologias, a organização empresarial e a gestão da mão-de-obra. Stephen Wood (1993) vai mais longe ao distanciar-se da visão que muitos pósfordistas têm da flexibilidade. Estes ligam tendencialmente pós-fordismo e flexibilidade como ligam fordismo e rigidez. Ora, este autor vem lembrar, por exemplo, a flexibilidade numérica ou externa do fordismo, na sequência da definição rigorosa das funções produtivas e da subsequente determinação de tempos de formação muito curtos. Em seu entender é necessário distinguir entre diferentes tipos de flexibilidade e referir sempre de que flexibilidade falamos quando falamos tão facilmente de flexibilidade. Se estabelecemos uma fronteira entre fordismo e pós-fordismo com base na oposição entre flexibilidade e falta de flexibilidade, criamos dificuldades acrescidas à verificação da rigidez que permanece nas práticas de produção, por exemplo no toyotismo. A clivagem entre trabalho masculino e feminino é, a título exemplificativo, muito esquecida nos discursos pós-fordistas. Ora, neste caso, como no que se refere à idade e ao tipo de formação inicial, a fronteira entre flexibilidade e segregação carece de uma verificação mais rigorosa. O fordismo evoluiu muito e hoje já não se apresenta apenas como aquele que se cataloga com o epíteto "você pode ter o carro que quiser desde que seja preto", porque ele combina produção em massa com produção por medida, numa torrente contínua de esmagamento dos custos, na tentativa nunca acabada de controlo dos tempos mortos, num quadro essencialmente neo-fordista, como vimos anteriormente. 173 Por outro lado, esta "nova flexibilidade" (Collin e Watts, 1996) ou adaptabilidade gera nos indivíduos, sobretudo nos mais jovens e nos menos qualificados, um efeito de desnorteamento, provocando movimentações cíclicas entre séries de projectos temporários de ocupação laboral. Segundo estes autores, o “contrato psicológico" (1996:390) entre as organizações e os indivíduos está em mudança profunda, passando-se de um tempo em que predominava o contrato relacional de longo prazo para um outro em que tende a ser dominante o contrato transacional de curto prazo, baseado agora na pura troca económica. Finalmente, a produção de tão frequentes, optimistas e inflamados discursos sobre a flexibilidade pode considerar-se como fazendo parte integrante de um certo tipo de discursos políticos legitimadores da precarização dos vínculos contratuais, escondendo, desse modo, a frequente opção das "empresas flexíveis" pela substituição do investimento em novas tecnologias e em formação qualificante por trabalho temporário, desqualificado e barato (Pollert, 1989:93). Estamos, neste caso, perante um discurso modernista a sustentar a manutenção de "mercados de trabalho secundários" e equilíbrios produtivos baseados nas baixas qualificações (Finegold e Soskice, 1988). Segundo aquela mesma autora, em período de crise de acumulação capitalista e em período simultâneo de "declínio e retirada sindical", o discurso flexibilista serviria sobretudo para desviar a atenção de um conjunto de opções a que o patronato deita mão para aumentar as suas margens de produtividade e de lucro. Refira-se ainda que é no quadro de uma economia em que a troca mundial de capitais, bens e serviços se acelerou muito rapidamente que muitos decisores políticos e empresários europeus procuram imprimir um ritmo também mais intenso à flexibilização laboral, o que tem colocado na agenda política da União Europeia a problemática do futuro da "Europa social", a 174 que mantém importantes mecanismos de protecção social do trabalho e dos trabalhadores e sustenta significativas e históricas interacções de solidariedade social, face a outros mercados concorrenciais e socialmente muito mais desprotegidos. Independentemente do facto de se impor uma análise mais aprofundada destas perspectivas críticas, torna-se necessário dotar os discursos de teor flexibilista da espessura da análise social, verificando a evolução complexa e concreta dos processos produtivos, desde os postos de trabalho, das empresas, até ao conjunto do sistema, territorializando e contextualizando os processos produtivos concretos, analisando a dimensão social mais geral da vida dos trabalhadores, o funcionamento dos vários segmentos dos mercados de emprego, tendo em vista não incorrer tão facilmente no risco de alimentar sobretudo discursos de expressão e de explicação, não fazendo assim mais do que dar vida, como humoriza Juan José Castillo (1994:64), à "secção de propaganda" do discurso pós-fordista. No entanto, na economia desta investigação, retenha-se desde já o facto deste discurso optimista e inflamado acerca da flexibilidade impregnar ideologicamente a retórica política sobre vários campos da acção social, podendo estar a exercer um papel determinante na elaboração da própria retórica legitimadora das reformas escolares do ensino secundário e, por esse meio, no rumo e na formulação prática das próprias medidas de política de educação e de formação. Um dos vectores que carece, sem dúvida, desta análise pormenorizada é o que relaciona com a permanente junção mecânica que se promove entre o sistema de produção flexível e o potencial requalificador das empresas e dos empregos e as reformas escolares. Ora, na economia do cruzamento de problemáticas sociais aqui empreendido, esta é uma importante questão a aprofundar. 175 Qualificação, requalificação e desqualificação Com efeito, tem-se propagado muito a evidência de uma relação causaefeito entre a incorporação na produção de novas tecnologias da informação, da robótica e da automação em geral, e o aumento concomitante e generalizado das qualificações. Associa-se mesmo à produção flexível a flexibilidade profissional, ou seja, no novo sistema produtivo emergem automaticamente trabalhadores com perfis profissionais descritos como multivalentes e polivalentes, onde a iniciativa e a responsabilidade pessoais aumentam (Kovacs, 1991; Rodrigues, 1991). Ao mesmo tempo, as perspectivas críticas da sociologia do trabalho têm sublinhado continuamente, com mais ênfase na segunda metade do século, que a incorporação destas tecnologias também se tem traduzido e visa traduzir-se num processo desqualificador do trabalho. Mas o que é que efectivamente muda quando se diz que mudam as qualificações? A qualificação o que é e sobre o que é que incide? Sobre o posto de trabalho ou sobre o desempenho do trabalhador? Estas e outras questões semelhantes povoam o labor analítico de muitos investigadores, desde há décadas, tornando-se assim possível concitar aqui algumas perspectivas pertinentes. Antes, porém, refira-se que o conceito de qualificação é um conceito empírico que resume um certo número de realidades concretas que préexistem em relação às teorias. Tanto é aplicado à previsão de necessidades de formação, em função da suposta evolução dos empregos, como à organização do trabalho nas empresas. A qualificação enquanto instrumento usado para realizar a planificação de necessidades é um conceito operatório que tende a ser esvaziado de qualquer dimensão relativa e conflitual, que 176 surge geralmente despojado de espessura social. Por seu turno, a qualificação na organização do trabalho é tomada sobretudo como um instrumento de classificação que conjuga as qualidades requeridas ao trabalhador com as características do posto de trabalho, determinando por essa via um certo tipo de trabalho e uma certa remuneração. O reconhecimento atribuído à qualificação no trabalho releva simultaneamente da qualidade do trabalhador e das características do posto de trabalho, expressando uma relação entre os indivíduos e os postos de trabalho. A qualificação é assim um conceito movediço e fluído, presente em várias abordagens da sociologia e da economia e uma categoria ainda mais presente nos debates sociais quotidianos, estando em grande parte por aprofundar a natureza daquela relação. Para Zarifian (1986:235) a qualificação é uma construção social que estabelece uma dupla relação: uma relação entre as capacidades analisadas como correspondendo à obtenção de um emprego numa empresa e as capacidades julgadas detidas pela pessoa que pode ocupar esse emprego e uma relação hierarquizada entre os diferentes empregos e, assim, entre as diferentes pessoas que os ocupam. Geralmente a qualificação não exprime mais do que uma combinação anárquica entre as qualidades requeridas e as qualidades postas em prática na realização de um trabalho, o que engloba não só as competências profissionais, ou seja, os saberes e os saber-fazer, as capacidades operatórias mobilizadas, mas também os comportamentos e as representações, os saber-ser, as atitudes demonstradas pelos indivíduos no exercício profissional concreto. A qualificação como que se subsume em modos diferenciados de profissionalização, com formulações dependentes tanto dos postos de trabalho disponíveis como das qualidades individuais mobilizadas, ambos inscritos num determinado relacionamento entre os sitemas escolares, os sistemas produtivos e os mercados de emprego, que 177 varia com o espaço social concreto em que esse relacionamento se configura. A análise do conceito de qualificação requer, de facto, que se saia do contexto de cada empresa concreta, de cada processo de trabalho concreto e se equacione num espaço social mais vasto. Na verdade, o "mapa de conhecimentos" (Stroobants, 1991) mobilizados pelos trabalhadores é a combinação das competências adquiridas no sistema escolar, com os conhecimentos adquiridos em outras instâncias sociais de produção formal e sobretudo informal de conhecimento, com o conhecimento objectivado na maquinaria e com o perfil pessoal e profissional de cada indivíduo no trabalho. Ora, esta combinação, apesar de apenas se poder expressar em cada situação individual e organizacional, sendo irredutível a esquemas simples e rígidos ou a um mapa-tipo, e por causa disto mesmo, deve ser analisada fazendo intervir o mais possível a complexidade que lhe subjaz. Desde finais dos anos sessenta, período de grande visibilidade e disponibilidade para a análise das dinâmicas sociais e dos conflitos que lhes são parte constitutiva, que se desenvolveu uma perspectiva analítica que sublinhou o efeito desqualificador geral do trabalho dos novos dispositivos automatizados aplicados à produção industrial. Braverman, Friedmann e Freyssenet são alguns dos autores que se destacaram no desenvolvimento da teorias da desqualificação e da polarização. Para as teorias críticas todo o processo de reestruturação produtiva deve ser analisado como um processo de encadeamento de estratégias de que o capital lança mão para fazer face à crise económica e para manter e assegurar a dominação (T.T. Silva, 1992:164). Na esteira das perspectivas marxistas, Braverman, nos anos setenta, analisa o taylorismo como mais uma etapa na divisão do trabalho e no processo de controlo do trabalho pelo capital. O trabalhador é expropriado do seu 178 conhecimento pela gestão capitalista, que o especifica e decompõe para melhor o controlar. Segundo este autor, esta tendência desqualificadora está a ser estendida aos trabalhos de escritório e aos serviços. Muitos outros estudos procuraram, na sequência deste, analisar a natureza e a intensidade do processo de desqualificação do trabalho. Georges Friedmann (1881-1963) denunciou os efeitos negativos da organização científica do trabalho, que tinha dominado a produção industrial no séc. XX., bem como as ilusões das ideologias do progresso técnico, uma vez que a inteligência das operações de produção tende a ser constantemente transferida dos operadores para as novas máquinas e para fora das oficinas. Os trabalhadores vêem-se, assim, desapropriados de um saber essencial para a afirmação do seu poder no interior das relações de produção. Friedmann foi um dos autores que mais investiu, desde os anos cinquenta, na reflexão sobre "o futuro do trabalho humano", arquitectando uma visão pessimista da própria evolução dos processos de produção, nomeadamente para a automatização, tendo sustentado que a educação e a formação deveriam proporcionar uma aprendizagem "completa e polivalente" e uma "cultura profissional" para proteger os operários do desemprego e para acrescer as suas possibilidades de plasticidade profissional. A par da perspectiva da desqualificação, surge uma cambiante que se designa por teoria da polarização. Michel Freyssenet desenvolve esta mesma teoria, já construída por Friedmann, e afirma que, desde a origem do modo de produção capitalista, a divisão do trabalho se efectua pela desqualificação do maior número de trabalhadores e pela sobrequalificação de um pequeno número (Freyssenet, 1974, citado por Campinos-Dubernet e Marry, 1986:202). A redução da actividade intelectual no trabalho e a separação crescente entre o trabalho manual e o trabalho intelectual 179 integram-se na modalidade necessária e única de divisão do trabalho no modo de produção capitalista. O autor mantém a visão pessimista sobre os processos de automatização, atribuindo-lhes a capacidade de afastar cada vez mais o operário das fontes do saber, a máquina e a matéria, reduzindo-o desse modo a um mero "vigilante de autómatos". Assim, não se pode ver a qualificação do trabalho associada à incorporação de novas técnicas, quando este trabalho deprecia a mobilização intelectual e visa apenas respeitar as prescrições inscritas ou adjacentes ao equipameto automático. Freyssenet não evita a contradição que aparece inscrita na sociedade actual e que se prende com o crescente e contínuo desenvolvimento dos processos de escolarização, por um lado, e com os simultâneos processos de desqualificação do trabalho, por outro. Para o autor francês, esta contradição é o sinal da crise do conteúdo do ensino, pois ela espelha a perda da eficácia social dos diplomas, uma vez que o crescimento do desemprego de diplomados, nomeadamente de diplomados do ensino técnico, e a diminuição das probabilidades de um titular de um diploma obter um emprego qualificado correspondente testemunham essa crise. Esta, todavia, não deixa de ser uma visão bastante redutora dos efeitos sociais dos diplomas e das relações entre o sistema escolar e o sistema produtivo. A progressiva restrição da autonomia dos trabalhadores e a bipolarização referida por Friedmann são consideradas por Freyssenet como uma tendência contínua, massiva e inelutável. A própria sobrequalificação carece de ser vista a esta luz; ela favorece apenas temporariamente um núcleo dos trabalhadores, pois este mesmo núcleo será atingido mais tarde pelo mesmo efeito desqualificador. Por outro lado, a "requalificação" que é atribuída generalizadamente aos operadores e que resultaria da automação industrial, das relações de trabalho mais cooperativas e da organização descentralizada da produção, é igualmente considerada como relativa e temporária, contrariamente a muitos discursos que a rotulam de 180 diversificadora e enriquecedora do trabalho. Relativa, porque não reenvia para uma actividade que exija mais inteligência, pois corresponde à mera justaposição de funções esvaziadas do seu conteúdo. Temporária, porque algumas destas funções simplificadas estão condenadas a desaparecer ou a ser ainda mais reduzidas, se a forma social actual de automatização prosseguir (Freyssenet, 1993:256). O determinismo a que esta corrente adere não é simplesmente tecnológico, pois reconhece-se que as relações sociais precedem as tecnologias e as suas aplicações. As máquinas são instrumentos de controlo e de extorsão dos saberes-fazer na medida em que servem a ordem das relações de produção capitalista e os seus inexoráveis princípios de degradação do trabalho, de dominação e de consequente desqualificação dos trabalhadores. Assim como estas perspectivas sociológicas tendem a reduzir a qualificação à tecnologia, numa visão substancialista da qualificação, também os economistas neoclássicos a reduzem ao salário. Este representa, na óptica assinalada, o equivalente da contribuição produtiva do factor trabalho, não sendo considerado como expressão de uma qualificação mas como um resultado do controlo exercido sobre as modalidades de partilha da massa salarial (Campinos-Dubernet e Marry, 1986). A qualificação, neste quadro teórico, desaparece como objecto ou conceito autónomo, sendo reduzida à tecnologia e ao salário. Entretanto, no âmbito da sociologia do trabalho, uma outra perspectiva teórica desenvolveu uma concepção relativista e conflitual acerca da qualificação. Esta varia e evolui com o tempo e é determinada pela relação salarial. 181 Desde os anos cinquenta que Naville sublinha que a qualificação não é a qualidade do trabalho, mas uma relação entre certas operações técnicas e a apreciação do seu valor social, reconhecido através do salário e do "prestígio" social. Na qualificação intrevêm a formação, ou seja, uma certa duração da formação, que é determinante na sua constituição e avaliação social, e o salário, pois é ele que determina a estrutura hierárquica própria à diversidade de qualificações (Campinos-Dubernet e Marry, 1986). Assim, as funções e a qualidade do trabalho não determinam a maneira como as competências dos trabalhadores são valorizadas em termos de qualificações, pois há uma clara separação entre o trabalhador e o seu trabalho, sendo o posto comandado pela organização técnica da produção. Se a uma alta qualificação académica se associa um elevado prestígio, essa apreciação deriva menos da sua tecnicidade e mais dos elevados rendimentos que ela apresenta no mercado de emprego. O salário e os conflitos que ele origina entre trabalhadores e empregadores constituem as questões centrais da qualificação. Quanto ao "efeito desqualificador", Naville refere que há uma dijunção entre a actividade da máquina, mais ou menos automatizada para a transformação dos produtos, e a actividade do ser humano. O que a automatização provoca é a deslocação dos saberes requeridos aos operários para funções de controlo e não o seu alargamento ou o seu desaparecimento. O facto de as máquinas, particularmente os computadores, exercerem funções mais inteligentes e integradas, em ambiente mais flexível, diz pouco acerca do acréscimo de inteligência e de flexibilidade no trabalho humano. A própria integração de funções e a polivalência das equipas de trabalho não equivalem à integração de funções e à polivalência dos seus membros. Estes continuam muitas vezes a exercer um trabalho especializado e parcelarizado, integrado agora numa outra cadeia, o que está longe de significar o fim da divisão do trabalho (Stroobants, 1993b). 182 Para Naville, as características reveladas no local de trabalho pertencem de facto aos trabalhadores. Mas não são as suas capacidades, sem mais, que determinam a qualificação; é o modo como socialmente são avaliadas, em função do "tempo de formação", que elas qualificam os indivíduos. Para os substancialistas, no entanto, o tempo de formação se é adequado para o planificador é inadequado para o sociólogo, pois este deve apreender a qualificação de modo mais complexo, a partir do próprio trabalho, uma vez que a qualificação é sobretudo um atributo do posto de trabalho. Alain Touraine procurou, desde 1965, combinar estas perspectivas desenvolvendo uma análise capaz de dar conta das formas complexas e compósitas de organização do trabalho que coexistem na actualidade. Admitindo que a qualificação não advém directamente das circunstâncias de trabalho e que os tempos e os custos da formação não comandam estas circunstâncias, Touraine propõe uma tipologia de análise em três etapas. Na fase A, a que corresponde ao antigo "sistema profissional", em que há uma separação entre a oficina e a direcção da empresa, o trabalhador tem uma larga autonomia no processo de produção e aí a sua qualificação depende sobretudo das suas qualidades. A fase B, intermédia, a do reino tayloristafordista, em que se esboroa o sistema anterior, é a do trabalho em pedaços e dos operários qualificados, dos operários especializados e dos técnicos e engenheiros. A qualificação dos operários qualificados seria determinada pelo seu nível de conhecimentos e a dos operários especializados pelo seu rendimento (Stroobants, 1993a). Na fase C, a do novo "sistema técnico", não há intervenção directa do operário sobre a matéria e a produção é assegurada sobretudo por via da automatização, de forma independente dos operários. Neste caso, a qualificação dos trabalhadores depende menos da sua competência técnica e mais das suas competências comunicacionais e dos seus traços de personalidade. Na nossa óptica, esta tipologia capta melhor a complexidade do trabalho actual, em que coexistem diferentes 183 formas de organização do trabalho e diversificados modos de mobilização de competências profissionais e, por isso, representa um esforço de sistematização que entendemos reter de modo particular. Distanciando-se do conceito de efeito desqualificante da maquinaria, alguns autores desenvolveram o conceito de qualificação tácita, para dar conta das formas de conhecimento e das competências que os trabalhadores mobilizam e que não são redutíveis aos sistemas automatizados e informatizados. S. Wood refere que aquelas teorias descritas dificilmente apreendem a qualificação enraízada no saber tácito ("tacit skill"), tais como procedimentos de trabalho, processos mentais, capacidades pessoais adquiridas ao longo da vida e experiência acumulada nos locais de trabalho. De facto existe um vasto leque de competências e de saberes que nem sequer são susceptíveis de serem mobilizados por qualquer máquina, como a iniciativa, competências a criatividade, e saberes o saber relacionar-se com os outros, que oferecem campos ilimitados de desenvolvimento do trabalho e da sua produtividade. Embora estes saberes escapem a uma categorização formal, revelam-se cruciais no exercício profissional concreto. O mérito deste contributo teórico é a valorização daquilo a que também se chama por vezes "qualificação social" e que compreende um vasto e significativo conjunto de competências não declarativas, do foro procedimental, relacionadas com as capacidades de comunicação, de trabalho em equipa, de iniciativa, de auto-estima, de confiança, entre outras. Estas são competências inscritas na qualificação “real”, mais do que na classificação formal, no trabalho efectivo, mais do que no trabalho prescrito, na experiência da tarimba, mais do que na formação escolar inicial. A acentuação do mérito desta perspectiva não implica, contudo, qualquer menosprezo pelo lugar da qualificação técnica ou formal, nem equivale a remeter esta perspectiva para o terreno da flexibilidade 184 produtiva e para o ambiente decorrente da aplicação das novas tecnologias. Mas traduz, na economia desta investigação, a necessidade de relativizar o determinismo das teorias da desqualificação, e alerta-nos para a necessidade de equacionar a qualificação profissional individual como uma plataforma onde se cruzam saberes formalmente adquiridos, por via das mais diversas formas escolares de aprendizagem, com aptidões, saberes e competências adquiridos por via de outras fontes informais de aprendizagem, e ainda com os saberes e competências adquiridos no próprio exercício profissional e no decurso da vida, em geral (o que, em francês, se designa por "les acquis"). Outros autores procuraram enriquecer também a abordagem da problemática da qualificação empreendendo uma "saída da fábrica" e atribuindo uma maior importância aos sistemas de relações sociais. Estes autores consideram, muito oportunamente, que a relação entre o valor de troca da força de trabalho (salário) e o seu valor de uso (qualidades mobilizadas nas situações de trabalho) é mediatizada pelo sistema escolar e pela organização do mercado de trabalho. Encontram-se no primeiro caso, por exemplo, as condições de acesso de diferentes categorias sociais à educação, a hierarquização dos títulos e a produção de diplomas, e no segundo, as normas e os regulamentos de admissão de trabalhadores, as estratégias locais de recrutamento por parte dos empregadores. Esta ampliação do campo da análise é prosseguida e consolidada pela perspectiva societal da qualificação. Autores como Marc Maurice, F. Sellier e J.-J. Silvestre (1982) procuraram compreender o fenómeno hierárquico na empresa no quadro mais vasto e coerente das especificidades próprias de cada país no seu modo de constituição dessas hierarquias, a que chamam o "efeito societal". Prossegue, assim, o rompimento com a abordagem funcionalista e com o determinismo tecnológico e emerge o novo conceito de "espaço de qualificação" (Maurice, 1989; Prost,1995; aplicado ao caso de Espanha por Prieto e Homs, 1995), ou seja, o lugar onde se desenvolvem as 185 interdependências entre processos de socialização, de qualificação, de organização e de regulação, interdependências estas que contribuem para estruturar os actores e desenhar os traços das suas relações sociais. A abordagem do paradigma societal vem salientar que nem certas formas de divisão do trabalho associadas a certos tipos de tecnologias determinam de modo linear e absoluto as formas de estratificação e os modos de organização do trabalho, nem a relação entre o sistema de formação e o nível de formação da população (relação profissional), por um lado, e a configuração do emprego no e pelo aparelho de produção de um país (relação organizacional), por outro, respondem a mecanismos universais e comuns a todos os países. Cada um, pela sua história, acaba por criar um modelo específico de relação institucionalizada entre os dois espaços sociais ( Prieto e Homs, 1995), o que, note-se, não significa que os diferentes países impeçam as influências recíprocas, recusem as políticas comuns, como no caso da União Europeia, ou que travem todos os efeitos de mimetismo tão presentes num mundo informacional e economicamente globalizado. Nesta perspectiva teórica, que retomaremos adiante, as diversas vias em que o sistema escolar se divide, por exemplo as fileiras técnicas e profissionais e as fileiras gerais, estão articuladas, em cada país, aos caminhos da mobilidade dos indivíduos que passam por elas, assim como às regras e práticas das empresas em matéria de admissões, de classificação, de promoção e de remuneração e, por outro lado, às relações de cooperação/conflito que as diferentes categorias profissionais desenvolvem na empresa e fora dela. É assim que aqueles autores franceses, em 1982, na tentativa de compreender as assinaláveis diferenças na constituição do fenómeno hierárquico na empresa na França e na Alemanha, definem predominâncias diversas dentro do espaço de qualificação: na Alemanha predomina o espaço qualificacional e em França é dominante o espaço 186 organizacional22. É no âmbito destas perspectivas teóricas, que abrem a percepção das qualificações muito para além do determinismo tecnológico e da relação ser humano-máquina-contexto de produção e das categorias formais, que se tem procurado abarcar mais amplamente outros conhecimentos mais gerais, todas as aquisições pessoais e outras competências mais globais e complexas do que as que tradicionalmente se envolviam na leitura do acto técnico e na tecnicidade dos actos e das tarefas profissionais. Nos anos noventa, esta outra percepção da relação ser humano-contexto de produção anda a par com a propagação da ideia de que o novo sistema de produção flexível requer um novo tipo de trabalhador, não só mais "qualificado" como sobretudo pessoalmente mais rico em "competências". Como se procurou evidenciar, a literatura sociológica assinala três tendências no que se refere à evolução das qualificações: a desqualificação, a requalificação ou reprofissionalização e a polarização/dualização entre trabalho muito mais qualificado e trabalho desqualificado. Além disso, não se pode ignorar que não existe um mercado de trabalho-tipo, mas uma variedade de configurações de organizações de produção de bens e de serviços, localmente situadas, como também destacaram Piore e Sabel (1989:212), assim como não se pode esquecer as dificuldades que existem em percepcionar o papel dos sistemas escolares na formação das pessoas ajustadas à imensidade de mercados locais de trabalho. Como salientam Bengtsson (1993) e Maria João Rodrigues (1991:128) "não há trajectórias tecnológicas únicas nem implicações organizacionais unívocas" e os mercados de trabalho locais estão povoados de uma enorme diversidade de 22 A distinção tem a seguinte explicação: para os autores, a noção "espaço qualificacional" conceptualiza a construcção de uma certa continuidade profissional entre os diversos níveis de qualificação profissional existentes na Alemanha, favorável à cooperação profissional. Este espaço é o lugar adequado às mobilidades dos trabalhadores, o lugar de reconhecimento de estatutos profissionias fortes e o lugar onde a formação profissional operária representa um elemento fundamental de estruturação. Ao analisarem o "modelo" francês de produção e de uso das qualificações profissionais, os autores recorrem à noção de "espaço organizacional" para darem conta da importância que aqui tem a hierarquia dos postos de trabalho e a sua gestão "administrativa", o que coexiste com o carácter residual das formações profissionais de base no sistema educativo e com o seu fraco reconhecimento pelas empresas (retomamos, para esta explicitação, o mesmo referencial de Campinos-Dubernet e Marry (1986)). 187 aproveitamentos dos novos mercados, das novas tecnologias e das novas qualificações. É aliás neste quadro que se compreende a pertinência das teorias da segmentação do mercado de trabalho. Retoma-se, finalmente, o conceito acima exposto de qualificação profissional, como plataforma em que se cruzam diversos tipos de saberes, para lhe acrescentar dois elementos. Primeiro, com base na pertinência das análises da “coerência societal”, que esse cruzamento não ocorre apenas entre saberes, mas que estes saberes se cruzam com situações históricas, tempos e lugares, espaços de qualificação e de organização, que os valorizam de modos bastante diferenciados. Segundo, retomando a perspectiva do “sistema técnico” de Touraine, que no seio desse cruzamento complexo de saberes e de competências que constituem as qualificações profissionais adquirem importância crescente, não as competências técnicas, mas as competências pessoais e sociais ou tácitas, que são mobilizadas nas atitudes e nos comportamentos pessoais nos contextos profissionais. Teorias da segmentação do mercado de trabalho Em meados dos anos sessenta surgiu uma importante abordagem sociológica do mercado de trabalho, que permitiu analisar de um modo mais complexo a relação entre a qualificação e o trabalho, além de estabelecer um distanciamento crítico face à teoria neoclássica do funcionamento do mercado de trabalho. Esta teoria, desenvolvida nomeadamente por Piore, Dolringer e Berger, nos EUA, aponta para a inexistência do “mercado de trabalho” como o lugar da articulação entre a força de trabalho e o salário; existem, isso sim, mercados de trabalho com funcionamentos relativamente diferenciados e relativamente articulados entre si, tanto em termos de produção, como de distribuição e de internacionalização. 188 Segundo estes autores, existe um mercado de trabalho dual. Um segmento primário, constituído por empregos mais prestigiados, melhor remunerados, localizados em grandes empresas e mais modernas, preferentemente orientadas para a produção de massa, e um segmento secundário que agrupa os empregos menos bem pagos, indiferenciados, exercidos em piores condições de trabalho, em pequenas empresas, ocupados predominantemente por minorias étnicas e por mulheres. Cada segmento é constituído por um fluxo de variáveis, numerosas e interligadas, funcionando em autonomia e em complementaridade. De facto, verifica-se, por um lado, que há descontinuidades entre eles e, por outro, que o sector mais tradicional sobrevive na dependência do segmento mais moderno. Ao segmento secundário é atribuído um importante papel de regulador do conjunto do sistema económico. É aqui que se movimentam os arcos da flexibilidade do sistema económico e é também este segmento que se reserva para a prática de um tipo de gestão da mão-de-obra caracterizado pela precarização dos vínculos contratuais e pelo, já assinalado, equilíbrio das baixas qualificações e dos baixos salários. Os dois segmentos apresentam, assim, segmentos de mão-de-obra com formações bastante diferenciadas. A segmentação dos mercados de trabalho é vasta. Para além de uma diferenciação baseada nas condições de trabalho, em geral, entre mercados primários e mercados secundários, Jacques Lesourne (1997) aduz outras segmentações que reforçam a pertinência do conceito. No que se refere às estratégias de recrutamento, há os mercados internos e externos, em que ora se recruta por mobilidade interna ora se recruta sobretudo do exterior; no que se relaciona com a concorrência e a competitividade internacionais, há os mercados expostos e os mercados protegidos; no que se refere à mobilidade geográfica dos trabalhadores há mercados locais que apresentam diferentes comportamentos quanto à mobilidade da mão-de- 189 obra, ora sendo fechados ora sendo abertos. As teorias da segmentação do mercado de trabalho enriqueceram bastante a análise social, tanto no plano das economias nacionais como da economia mundial e abriram brechas para novas abordagens interdisciplinares. Na economia deste labor analítico pode destacar-se, por exemplo, a proposta de Ashton, Maguire e Spilsbury (1990) de segmentação do mercado de trabalho jovem, conceptualizado como integrando oito segmentos, sendo quatro segmentos-base, divididos pelo género: um segmento mais elevado, constituído pelas profissões científicas e técnicas, administradores e gestores; um segundo segmento, que consiste em empregos de escritório, secretariados,etc.; um segmento manual qualificado, composto por cabeleireiros, artesãos,etc. e um segmento mais baixo que integra os operadores da indústria, pessoal de limpeza e de segurança. Em "O Trabalho das Nações", Robert B. Reich (1993) avança uma categorização particularmente útil para o nosso terreno de análise. Assinala a emergência de três novas categorias de trabalho, para além das categorias tradicionais, que continuarão a agrupar a maioria da mão-de-obra norteamericana e que reunem grupos como agricultores, mineiros, funcionários públicos, empregados de sectores regulados e trabalhadores cuja actividade é financiada pelo Governo. As três novas categorias são os serviços de produção de rotina, os serviços interpessoais e os serviços simbólico-analíticos. Na nova economia global, o “analista simbólico” detém uma posição dominante, uma vez que é o que, para além do acesso a factos, códigos, fórmulas e regras, tem "a capacidade de utilizar eficaz e criativamente o conhecimento" (1993:260). Os serviços de produção de rotina dizem respeito ao tipo de tarefas repetitivas e tanto se encontram entre actividades subordinadas como entre actividades de gestores e de supervisores, espalhando-se tanto pelos 190 sectores mais tradicionais da economia como no seio da economia mais moderna, "entre o brilho da alta tecnologia", como observa Reich. As principais virtudes destes trabalhadores são a fiabilidade, a lealdade e a capacidade de ser dirigido. Os serviços interpessoais incluem também tarefas simples e repetitivas e não requerem elevadas qualificações de base. São exercidos, no entanto, numa relação pessoa a pessoa, implicam uma relação directa com clientes específicos e por isso não são vendidos à escala mundial. Além das virtudes atribuídas em comum com os trabalhadores da produção de rotina, aos fornecedores de serviços interpessoais é exigida ainda uma boa aparência, bom humor e a capacidade de transmitir confiança. Estas duas categorias englobam, nos anos noventa, cerca de 55% dos postos de trabalho americanos, estando os efectivos da primeira a descer e os da segunda a crescer rapidamente. Os serviços simbólico-analíticos incluem as actividades de identificação e de resolução de problemas e de intermediação estratégica, o que engloba uma grande parte das profissões científico-técnicas. Os analistas simbólicos exercem a sua actividade manipulando símbolos, através do recurso a ferramentas psicológicos, específicas, argumentos como legais, princípios científicos, expedientes conhecimentos financeiros, processos publicitários, sons e imagens, algoritmos matemáticos. O seu sucesso depende da sua originalidade, qualidade, esperteza e da rapidez na resolução dos problemas. Ocupam cerca de 20% dos postos de trabalho norteamericanos. Este contributo teórico reforça a pertinência da teoria da segmentação do mercado de trabalho, sublinha a importância teórica da distinção entre neofordismo e pós-fordismo e abre novas perspectivas de análise daquilo que aqui temos considerado como a formação de um novo segmento do mercado de trabalho no seio da economia mundial, altamente qualificado e muito bem pago, segmento esse para quem se reclama um novo tipo de ensino e de 191 formação inicial e a formação de “novas competências”. Finalmente, para a conclusão deste empreendimento analítico, centrado na abordagem de alguns quadros teóricos, consideramos necessária e inultrapassável uma crítica ao deslizamento a que, actual e permanentemente, assitimos, do conceito de qualificação para o conceito de competência. É o que faremos de seguida, certos de que esta análise se impõe como crítica aos discursos políticos dos governos, que sistematicamente recorrem à nova semântica das competências. Das qualificações às competências: o que muda? Como se disse, é inegável a generalização da associação entre desenvolvimento técnico e automatização da produção com a elevação das qualificações dos trabalhadores. Os discursos dominantes tendem a situar este processo de requalificação na alteração dos critérios de definição da actividade do trabalho, agora requerente de um novo “corpus” de competências. Na verdade, associado aos discursos dos economistas, dos gestores e dos decisores políticos europeus, têm surgido insistentemente, a par da tão propagada flexibilidade, as noções de competência e de “novas competências”. Por vezes, estes conceitos substituem os de qualificação. São termos que funcionam como "atractores estranhos", como sugere Guy le Boterf (1994). Alguém os assemelhou a conceitos catavento, pois eles como que captam os rumos dos ventos de mudança, afirmam-se socialmente como transportadores de novos ambientes socioeconómicos e impõem-se por si mesmos, sem demonstração. Por isso, e dada a sua actual relevância nos discursos políticos educacionais, também se impõe aqui um esforço de desocultação destas noções. A ideologia das competências não integra 192 certamente um discurso político neutro. No momento em que ocorrem diversos processos de reestruturação nas empresas que, como referimos, afectam particularmente o sistema de trabalho, assiste-se a uma deslocação progressiva da noção de qualificação para a de competência. À primeira associam-se organizações empresariais estáveis e relações profissionais inscritas em complexos e rígidos sistemas de contratação colectiva, ou seja, um quadro mais próximo do fordismo. O conceito de qualificação releva do domínio do ter e da lógica do diploma, prestando-se prontamente à classificação, à hierarquização e à medida constante (Dugué, 1990). Trata-se de um conceito pouco apto para a negociação individual e para servir a plasticidade que caracteriza as relações de trabalho que emergem daqueles mesmos processos de reestruturação. A noção de competência surge como um conceito subordinado às práticas da flexibilidade inscritas nas reestruturações produtivas e ao mesmo tempo insoburdinado face às tradicionais classificações e objectivações e visa dar conta de uma outra relação negocial, mais individual e implícita. Dir-se-ía que há um modelo de produção flexível assistido pela noção de competência. Ela tende a escapar às categorizações, seja porque releva mais do domínio do ser ou do saber-ser, seja porque se define como uma relação que mobiliza, por um lado, um indivíduo e a sua história, feita de aprendizagens e saberes múltiplos e, por outro, uma situação profissional concreta. Esta relação só é, assim, objectivável num dado contexto de trabalho concreto em que cada trabalhador actua. Como assinala Stroobants (1993a), privilegia-se, na análise social, as representações locais dos actores, mais do que as estruturas sociais. Num quadro em que se apresenta por todo o lado uma multiplicidade de 193 itinerários profissionais imprevisíveis, mormente para os que possuem menores habilitações escolares, gerais e profissionais, onde é crescente a precarização, a desvinculação e a rotação na ocupação dos lugares disponíveis, ainda que se lhe chame flexibilidade, o novo modo de medida do trabalhador pelas competências é o que mais e melhor serve a crescente individualização das relações de trabalho e a desestruturação do sistema de negociação e reivindicação, sistema este em que a qualificação detinha um lugar central. A competência nasce,assim, no seio familiar da flexibilidade, na mesma medida em que esta é o rosto visível das reestruturações produtivas em curso na economia capitalista, em processo de acelerada globalização. Além disto, a noção de competência dá também conta de uma diferente articulação entre uma dimensão experimental, composta pelos saberes que se desenvolvem com a experiência pessoal e com longos anos de percursos profissionais individuais, e uma dimensão conceptual, onde cabem os tradicionais saberes teóricos e de base escolar, em que os primeiros são cada vez mais valorizados a par dos segundos. Estes, saberes de experiência feitos, são saberes-fazer mas são também saberes-ser, ou seja, atitudes e comportamentos que se interiorizaram e desenvolveram no interior das experiências pessoais, entre as quais estão as práticas profissionais. Para Guy le Boterf (1994), a competência não pode ser reduzida a uma soma de saberes, saberes-fazer e saberes-ser, mas deve ser considerada como uma noção mais integrada e complexa que compreende um saber mobilizar os saberes em contextos específicos, um saber combinar de modo pertinente o manancial de saberes disponíveis, um saber agir e reagir face a acontecimentos e situações complexas, um saber transferir, pela via da evolução dos saberes e pela inovação em novos contextos, e um saber partilhar, articulando transversalmente competências e cooperando com outros trabalhadores. 194 Outros autores associam também à valorização do campo das experiências individuais, inscrita num novo modelo produtivo pós-taylorista, práticas de trabalho mais autónomas e participativas (Levin, 1988; Kovács, 1991 e 1994). Já vimos que esta associação e todas as que ligam mecanicamente desenvolvimento técnico e automatização crescente com a requisição generalizada de um novo “corpus” de competências, são geralmente apressadas e têm de ser mediatizadas pelas segmentações existentes no mercado de trabalho e ainda pelo facto de não estarmos actualmente diante de uma ruptura entre fordismo e pós-fordismo, mas, as mais das vezes, perante um quadro produtivo em que o fordismo, o neo-fordismo e o pósfordismo coexistem como estratégia de sobrevivência de sectores, mercados, regiões, modelos de contratação e de relações sociais, no seio da economia de mercado. Autores há que mantêm sérias reservas diante desta leitura optimista e voluntarista, ao verificarem que os saberes que são agora mais valorizados são-no apenas porque se reconhece que eles são agora necessários nos limites claros impostos pela actual divisão do trabalho. Por exemplo, a "capacidade de iniciativa" também se exerce sob controlo e a "participação pessoal" é a que se coaduna coerentemente com os objectivos e práticas de cada empresa, que se interioriza em cada contexto de trabalho (Dugué, 1994). Jean-Pierre Durand (1993) chega mesmo a propor que estas práticas, ditas de autonomia e de participação, talvez demasiado simplificadamente, sejam consideradas como um "remake taylorista". Pode constatar-se, entretanto, que é certo que o atributo competência tem surgido no discurso sociológico dissociado e distante dos temas do conflito social. O conceito de qualificação, dada a textura de relações sociais em que se inscrevia, era "uma arma" ao serviço dos assalariados e parte integrante da negociação, colectiva e explícita. A negociação, na lógica da competência, torna-se individual e implícita e pouco dada a categorizações, uma vez que emerge numa multiplicidade de trocas individuais que se 195 processam no seio dos postos de trabalho, “locus” do reconhecimento da competência. Neste novo quadro social e nesta tecitura laboral diversa, muito mais factora de "trabalhadores independentes", a competência surge numa visão unificada da actividade empresarial, valorizadora tanto dos interesses comuns dos assalariados como dos da empresa, integradora tanto das exigências da organização (e da sua direcção) como dos saberes detidos pelos assalariados, formalizados e tácitos. Resta a questão de saber até que ponto as contradições terão desaparecido, terão sido transfiguradas ou apenas sido dissimuladas, estando o campo sociológico, por agora, pouco apto a dar conta das relações sociais, seja de dominação seja de autonomia, aí inscritas. Sublinha-se, para já, pela sua pertinência para esta análise, a emergência de um movimento de crescente individualização profissional do trabalho e das qualificações, que está inscrito na retórica da flexibilidade e das novas competências e que expressa a deslocação de importantes pólos de conflito social do tradicional terreno das organizações para o dos indivíduos. De certo modo, a nova competição entre os indivíduos, em torno dos empregos e das competências, esbate e substitui a anterior dinâmica de conflito aberto entre assalariados e patrões. O campo da educação e da formação (nomeadamente da formação ao longo da vida) é um cenário onde se desenrolam novos focos de tensão entre os indivíduos pela posse dos títulos e pela certificação das competências, ao longo de toda a vida, numa sociedade onde o conhecimento se tornou um redobrado factor de competitividade. Entretanto, os sistemas de ensino e de formação, desde os anos oitenta, têm visto dificultada a sua tarefa de definir os perfis de formação adstritos a perfis profissionais devidamente adaptados a sistemas de trabalho mais instáveis, fluídos, locais, digámo-lo, flexíveis, e têm assimilado tão mais facilmente o discurso generalista dominante, optando por favorecer o que 196 designam por "adaptabilidade profissional" ou por investimento na formação de "competências gerais e transferíveis", quanto mais resistem a evoluir estruturalmente. Não sendo agora desejável estabelecer perfis de formação especializados, em ligação com competências definidas com base na especialização dos postos de trabalho, cuja existência amanhã não está garantida, procura-se defini-los segundo "famílias profissionais" e saberes profissionais comuns a grupos de profissões. Por outro lado, na medida em que os sistemas de educação e formação aceitam e incorporam o discurso determinista segundo o qual se assiste à substituição do modelo produtivo taylorista - como se se assistisse ao fim da divisão do trabalho -, e à requalificação dos trabalhadores, também assumem que é sua nova missão ampliar uma qualificação inicial, "social" e geral, em detrimento das tradicionais qualificações técnicas e profissionais específicas. É assim que se assiste a um movimento de "back to basics", de regresso ao que é fundamental (Reich,1993), em que a "formação geral" é revalorizada e em que se atribui uma importância redobrada à formação nas áreas comportamentais, no fomento de atitudes e competências que derivam mais de uma profissionalidade geral do que de um perfil profissional especializado23. Opera-se uma deslocação do arco de sustentação das políticas de ensino e de formação inicial da produção de qualificações ordenadas para o domínio de processos de trabalho concretos, para o desenvolvimento de um leque de competências reordenadas segundo os requisitos de um "novo profissionalismo". Este "valoriza competências metacognitivas e horizontais de eficácia alargada e resistente à usura quer do tempo quer da mudança acelerada", passando as prioridades educativas a situar-se "no foro da 23 O "back to basics" toma-se aqui mais como sinónimo de regresso ao ensino básico e geral, do que como expressão de um retorno ao "ler, escrever, e contar", ao ensino elitista tradicional e fortemente selectivo, embora, como veremos, o regresso ao ensino básico e geral possa ser, na prática e em parte, um retorno ao elitismo e à selectividade. 197 construção de competências" (Carneiro, 1996:48). Assim, já não é a partir do interior da empresa, da análise das cadeias de produção e dos seus diferentes perfis profissionais que se constroem os perfis de formação; estes edificam-se com base numa espécie de novo mandato social geral e de um mandato do sistema económico em reestruturação, em particular, logo instável e de evolução imprevisível, incapaz de esboçar, no entanto, algo mais do que um discurso genérico ou de uma ideologia global da "reprofissionalização" do trabalho, em que alcança particular destaque o marco ideológico da formação ao longo da vida. No quadro societal dominado pelas relações tayloristas de trabalho, estava solidificada a ideia de que se sabia quais eram as necessidades do mercado, a que níveis e em que ramos profissionais era necessário qualificar a mãode-obra e isso constituía um esteio de sustentação das políticas de ensino e de formação profissional, embora pudesse tratar-se, em muitas circunstâncias, de uma mera ilusão útil. O Estado previa, planeava, projectava, quantificava e estabelecia medidas de política. Ora, no quadro neo e pós-fordista, o papel planificador do Estado está posto em causa, como enfatiza Michel de Virville (1996). O discurso da planificação das necessidades de mão-de-obra cede o lugar ao da formação aberta e polivalente, ao da valorização do desenvolvimento de novos perfis de competências, ao da validação das competências adquiridas no exercício da cidadania e no exercício profissional. Tudo se passa como se as políticas de ensino e de formação caminhassem aceleradamente atrás da retórica da flexibilidade, ou seja, como se a flexibilização neo-fordista e pós-fordista constituisse, na actualidade, o principal "rationale" dessas políticas. Neste sentido, as novas políticas dos sistemas de educação e formação, de fomento de uma nova profissionalidade, pouco mais seriam do que o cumprimento à risca dos novos requisitos do sistema económico. Há autores que avaliam este processo como um mero alinhamento seguidista e acrítico dos sistemas de educação e formação no processo geral de desqualificação 198 dos trabalhadores, que visa reforçar a lógica de dominação do capitalismo (ex. T.T. Silva, 1992; Enguita, 1992). O "novo profissionalismo", que estará associado aos modelos de produção neofordistas, embora já estivesse bem presente, por exemplo, nas propostas de uma "cultura profissional" de Friedmann, nos anos cinquenta, é lido por esta corrente crítica da sociologia como mais uma prova da inevitabilidade do efeito desqualificador da aplicação generalizada das novas tecnologias na produção capitalista, efeito esse inscrito numa matriz de reforço da dominação sobre o trabalho. Uma vez desapossados os trabalhadores das suas qualificações, saberes, saberes-fazer e saber-ser, mais não restará ao velho aparelho social escolar reprodutor do que liofilizar a sua missão e acantoná-la num currículo mínimo que, no limite, caberia em pouco mais do que o ler, escrever e contar. Concorrem para o reforço desta tese certas perspectivas de política educativa desenvolvidas nos anos noventa, como o "retranchment", que remetem os sistemas escolares públicos para uma formação de base, de duração mínima, cabendo ao sector produtivo oferecer a formação inicial especializada e a formação contínua ao longo da vida. Estes contributos teóricos têm o mérito de sublinhar, quase sempre por omissão, a manutenção de um sistema de ensino e de formação estruturalmente imutável, um sistema fabril e fordista de produção de qualificações e de diplomas, em que as reformas educativas em curso devem ser lidas como "remakes tayloristas", para retomar a expressão de JeanPierre Durand. São, no entanto, contributos que não escapam ao determinismo desqualificador, de que acima nos distanciamos. Para outros autores estas novas políticas educativas, ao fomentarem a assimilação de "capacidades de ordem superior", estarão a "contribuir 199 activamente para a emergência de uma nova renascença produzida pela intersecção entre a tecnologia e as artes, a economia e o humanismo, a eficácia e os valores universais, as ciências "duras" e "moles", a razão e o mistério" (Carneiro,1996:48). Nesta ordem de ideias, as novas relações entre o sistema de ensino e de formação e a economia deveriam estabelecer-se já não num quadro de desqualificação educacional mas num quadro de requalificação educacional, em que constitui imperativo a "reengenharia" do modo fabril e taylorista de ensino e aprendizagem. Ora, esta é uma perspectiva que importa sublinhar no quadro de uma nova visão acerca da missão redistributiva dos sistemas educativos, na actualidade, distante das funções reprodutivas tradicionalmente assinaladas pela sociologia da educação. O ensino geral como modo de especialização Resumindo esta incursão em busca de referentes teóricos para a nossa investigação, é mister sublinhar aqueles que iremos mobilizar nas fases seguintes, uma vez que os consideramos os mais apropriados para ler o objecto em questão. Em primeiro lugar, tomamos como pertinentes as teorias que assinalam que o pensamento e a acção política que subjazem à relação entre a educação e a economia têm sido profundamente marcados por perspectivas macroeconómicas e por visões tecnocráticas que advogam a natureza funcional da educação. A racionalidade dominante, inscrita no técnico-funcionalismo e nas teorias do capital humano, encerrou e encerra o investimento social em educação numa matriz essencialmente económica, de resposta às necessidades do sistema produtivo. Na actualidade, tudo leva a crer que as políticas educativas europeias e, consequentemente, as reformas dos sistemas de ensino e de formação de nível secundário tomam como principal referencial um novo mandato formulado pelas mais recentes evoluções da economia, adoptando o novo modelo pós-fordista de produção 200 como a sua nova ideologia modernizadora global. Em segundo lugar, consideramos pertinentes as teorias da não correspondência entre sistema de ensino e formação e sistema económico, constatando a permanência de um desajustamento crónico entre a evolução de um e de outro. Apesar de se demonstrar teoricamente a permanência deste desajustamento, como o fizemos neste capítulo, as relações entre educação e economia são generalizadamente equacionadas num quadro de forte correspondência. Continua por provar quer a capacidade do ensino técnico e da formação profissional para criar emprego quer a bondade da relação mecânica que é estabelecida entre a expansão da sua oferta e a sua empregabilidade. Aliás, a expansão do ensino e da formação técnicoprofissional nos anos das mais aceleradas reestruturações da economia e de crescimento do desemprego, não se tem traduzido em redução dos volumes de desemprego juvenil. Os empregadores, como evidenciam as teorias críticas, seleccionam os trabalhadores mais pelos títulos e diplomas e não tanto pelo conteúdo curricular dos mesmos, escolhendo, em período de excesso de oferta e em geral, os mais elevados, independentemente dos requisitos específicos dos postos de trabalho disponíveis. O sistema educativo tem funcionado para o sistema económico como um filtro e uma fonte de informação relevante, não tanto pelas competências gerais e específicas que contribui para que os cidadãos desenvolvam, mas mais pelo que transmite aos empregadores de útil sobre os níveis de qualificação e os diplomas e os estatutos sociais e culturais que lhe estão associados. Estes contributos teóricos reforçam também a pertinência da perspectiva credencialista de compreensão da evolução da procura social do ensino secundário. A população e os seus diferentes grupos sociais procedem a análises racionais dos mecanismos de funcionamento do mercado de trabalho e socorrem-se de estratégias credencialistas como instrumentos de elevação e de manutenção de status social, como instrumentos de alcance 201 de franquias para assegurar mobilidade na hierarquia dos empregos disponíveis. A evolução da procura das diferentes modalidades de ensino secundário, nomeadamente da formação “geral”, deve pois ser vista também segundo esta óptica. Em abono das teorias da não correspondência entre educação e economia está sobretudo o facto de mudar o uso social da educação à medida que mudam na sociedade diferentes fenómenos sociais que, por vezes, estabelecem com os campos educativo e económico relações contraditórias. Além das mais comummente referidas mutações técnico-económicas e da evolução dos requisitos dos empregadores, temos de sublinhar a evolução da procura social, que não obedece aos mesmos critérios nem visa os mesmos objectivos, a expansão da oferta pública e privada de ensino e de formação, quantas vezes totalmente alheia a quaisquer critérios económicos ou produtivistas, a diversidade de relações que se estabelecem entre as escolas e os centros de formação e os seus contextos sociais locais, a formulação das políticas de ensino e de formação que frequentemente são determinadas por critérios e objectivos políticos, seja de democratização social ou de natureza eleitoral ou por necessidades de resposta imediata a certas pressões sociais, que dificilmente se podem relacionar com o contexto produtivo, a evolução do papel do Estado, da administração central e dos partidos políticos na regulação entre a economia e a educação, e ainda as alterações que se processam nas expectativas sociais destas mesmas novas gerações de jovens, agora altamente escolarizados. O exemplo mais marcante talvez seja o facto de estar a aumentar muito rapidamente o número de jovens possuidores de cursos de nível secundário e de nível superior, não como resultado de uma qualquer planificação orientada segundo as necessidades de mão-de-obra, mas como produto de comportamentos da procura social e de reacções institucionais e políticas ao 202 aumento constante da procura, o que se traduz em muitos casos em "sobrecertificaçao”24, desemprego de diplomados, impossibilidade de articulação entre os "outputs" do sistema educativo e as necessidades de mão-de-obra das empresas. O que evidencia também um desajustamento das empresas face às qualificações disponíveis. O cenário é de conflito de critérios, de perspectivas e de interesses, não é, de facto, um palco de ajustamentos. Muito para cá do intuito de criar empregos para os jovens, os sistemas de ensino e de formação talvez estejam na actualidade a desempenhar o importante papel social de afastar os jovens do elevado desemprego e da enorme instabilidade profissional, procurando mantê-los num ambiente protegido, dirigido supostamente à realização de aprendizagens significativas e à sustentação de uma aprendizagem ao longo de toda a vida. Por outro lado, as teorias da segmentação do mercado de trabalho dão relevantemente conta de uma vincada dualidade existente nos mercados de trabalho do continente europeu e abrem a análise sobre a necessidade de se considerar a diversidade de mercados de trabalho, não só no plano europeu como no plano nacional, onde coexistem modelos tayloristas-fordistas, neofordistas e pós-fordistas, variando com os sectores de actividade, as regiões, os tipos de empresas e as prioridades políticas nacionais e regionais. O facto de as mais recentes políticas de ensino e formação ao nível secundário adoptarem como referente principal a retórica pós-fordista, ignorando geralmente a segmentação que subjaz aos mercados de trabalho nacionais, vinca a perspectiva de que estamos perante um fenómeno que extravasa qualquer busca de correspondência entre sistema educativo e sistema produtivo, surgindo como mais pertinente a perspectiva teórica que afirma que os governos transfiguram crises económicas e impasses societais em 24 Entende-se aqui por sobrecertificação o desajustamento, ainda que momentâneo e localizado, entre o nível dos diplomas escolares, elevados, e os tipos e os níveis das qualificações que alguns empregadores procuram e não 203 problemas do foro educativo, tendo em vista, em primeiro lugar, a ocultação, o adiamento e a superação dessas crises e impasses e, só depois e nem sempre, o desenvolvimento de condições concretas para erguer uma nova política de ensino e de formação, com novos contornos teóricos e práticos. Neste sentido e no quadro de uma crise do Estado e da sua capacidade de formular políticas educativas alternativas, o discurso modernizador sobre o pós-fordismo e os requisitos de novas e muito elevadas competências vai impregnar o discurso político sobre as reformas educativas, transfigurando flexibilidade produtiva em flexibilidade curricular, e correndo o risco de aumentar a capacidade de o sistema escolar e o sistema económico permanecerem desajustados, embora fornecendo porventura ao ensino e à formação novas possibilidades de seleccionar a minoria de analistas simbólicos de que carecem os sectores mais modernos e competitivos da economia capitalista. Tendo presentes os contributos críticos aqui acabados de mobilizar, importaria determinar com mais rigor o que é que realmente muda na evolução recente da relação entre educação e economia e sociedade, nomeadamente quanto à natureza da produção das qualificações iniciais e quanto à capacidade de desenvolver perfis de formação mais "sociais" ou "gerais", aptos a fomentar, mais do que os perfis mais técnicos e especializados, o desenvolvimento humano em geral e o fomento de certas atitudes e competências mobilizáveis no exercício profissional e nos novos contextos produtivos. O fomento de uma nova profissionalidade e de um desenvolvimento humano global parece querer acantonar-se cada vez mais no estreito terreno escolar, cada vez mais distante do mundo do trabalho, e, aí, dentro do terreno escolar, o "novo profissionalismo" parece refugiar-se na aquisição de saberes "gerais", abstractos e teóricos. Ou seja, é necessário interrogar este processo de revalorização da formação geral de novas encontram, geralmente associados a baixas qualificações escolares. 204 competências, que tem em vista reforçar a adaptabilidade e fazer face à imprevisibilidade profissional, uma vez que ele pode representar pouco mais do que o regresso a uma formação "liceal", isto é, uma mera adaptação funcional do sistema escolar aos novos requisitos da economia em rápida reestruturação, pela adopção de novas modalidades curriculares de especialização flexível. O reforço do ensino e da formação “geral” poderia representar, nesta perspectiva, um novo modo de especialização do ensino secundário, tendo em vista seleccionar o mercado de trabalho primário, tanto pelas vias liceais como pelas vias técnicas e profissionais. O tecnico-funcionalismo mantém, no fim da segunda metade do século XX, um lugar muito importante na legitimação das exigências sociais face ao sistema escolar e continua a desempenhar um papel central na durabilidade e na persistência da ideologia das virtualidades económicas da educação, seja como ideologia determinante para a expansão do sistema seja como racionalidade central para a sua estruturação, desde os seus objectivos, à sua organização e ao seu conteúdo. O fomento de um novo profissionalismo ainda continua a esbarrar com reformas do ensino e da formação que se nutrem de uma retórica modernizadora, secante com os discursos pósfordistas mais festivos, mas incapazes de sustentarem reformas estruturais profundas e duradouras do modelo escolar "bancário" (para retomar o termo de Paulo Freire), fabril e taylorista. Estes dois passos de leitura teórica do problema de partida, cuja re-leitura faremos no capítulo sexto, ainda não iluminam suficientemente as questões da similitude retórica e da simultaneidade temporal que marcam também as reformas educativas aqui consideradas. Por isso, empreendemos um terceiro passo que visa proceder a essa tarefa fundamental. 205 3.3. A globalização e o sistema educativo mundial Assim, é mister enfrentar uma questão recorrente desta investigação e que consiste em explicar o movimento de integração curricular e de desespecialização do ensino secundário, que ocorre sensivelmente ao mesmo tempo, em vários países da Europa, interrogando agora quer o facto de ele evoluir dentro de uma aparente convergência internacional quer a sua "surpreendente homogeneidade" (Meyer,1992a). Porque é que diferentes países, com culturas nacionais diversas, níveis de desenvolvimento socioeconómico diferenciados e diferente localização na sociedade mundial e na divisão internacional do trabalho, se aproximam aparentemente no modelo de ensino secundário superior que estão a construir, no início dos anos noventa? Dificilmente se tratará de uma mera coincidência. Há alguns contributos teóricos que analisam e explicam estes fenómenos, mormente como pan-dinâmicas estruturadoras dos múltiplos esforços reformadores empreendidos pelos Estados-nação. Nesta parte do trabalho vamos mobilizar quer os contributos teóricos que os institucionalistas propõem para explicar o desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais quer a adaptação ao campo educativo da teoria do sistema mundial, enunciada por economistas. Adoptando boa parte dos elementos teóricos propostos por este caminho, o nosso objectivo é o de construir um quadro próprio de explicação do modo de construção e de acção do “sistema educativo mundial”. Tal quadro será essencial para a compreensão das reformas educativas em análise, mormente para a sua formulação política idêntica e simuntânea, no palco europeu. Há que recordar, em primeiro lugar, que a análise das reformas escolares aqui empreendida se limita à sua componente formal e de enunciação normativa, o que embora não apouque a análise do efeito isomórfico e de adesão ideológica, constitui apenas um grau, talvez o primeiro, como lembra 206 McNeely (1995), na investigação do impacto do “sistema educativo mundial” na institucionalização dos sistemas educativos nacionais. Quer a similitude da retórica subjacente - as exposições de motivos, as contextualizações sociais e os objectivos gerais - cujos traços principais quase se decalcam de país para país, quer a simultaneidade da sua enunciação, são factores que evidenciam, desde logo, não só um relativo consenso ideológico entre políticas educativas nacionais de diferentes países, mas também um elevado grau de estandardização de estruturas organizativas e de modelos curriculares. Vários autores começam por constatar e sublinhar estas tendências no que se refere à problemática que nos ocupa neste trabalho, ou seja quanto à crescente atracção pela formação geral, à integração entre formação geral académica e formação profissional, à desespecialização e à desprofissionalização. Lembremos Lauglo (1983), Inkeles e Sirowy (1983), Enguita (1986), Keeves (1987), Jallade (1988), Husén (1990), Garcia, Pedró e Velloso (1992), Pedró (1992), Leclercq e Rault (1992), Kovács (1993), Papadopoulos (1994) e Rico (1995), para citar alguns. Uma boa parte destes e ainda outros autores não ficam por aqui e revelam que, ao mesmo tempo, se processa uma convergência crescente entre os sistemas educativos que assim se reformam e reordenam. Torsten Husén denota uma "crescente convergência" entre os três modelos de ensino e de formação, pelo menos nos países industrializados (1990:40). Garrido, Pedró e Velloso, no seu estudo sobre a actual evolução da educação na Europa, referem que as recentes e cautelosas reformas curriculares que se desenvolveram nos últimos anos, mantendo embora diferenças institucionais, "aproximaram em extremo" os conteúdos de todos os alunos do ensino secundário, independentemente da denominação do centro onde realizam os seus estudos, e concluem que é de prever que o futuro traga uma maior convergência curricular (1992). Inkeles e Sirowy, 207 apesar de sublinharem a existência de divergências entre as políticas nacionais de educação nos diversos países, realçam também a tendência dos sistemas educativos nacionais para a convergência, seja em estruturas seja em práticas comuns, rotulando-a de "alargada, profunda e frequentemente em aceleração"(1983:303). Outros autores apontam para a existência de fenómenos de convergência no palco social europeu, por exemplo ao nível dos sistemas de emprego (Rodrigues,1994), o que nos conduz à necessidade de considerar a convergência no domínio educativo num processo social mais amplo. Dir-se-ía que existe algures um centro emissor e difusor de normas e de padrões de institucionalização dos sistemas educativos nacionais, que estas reformas educativas relativas ao ensino secundário tomam como referente principal, antes de qualquer realidade nacional específica, uma mesma realidade social geral, a sociedade mundial do fim do século XX. O referencial em questão existe e é apresentado em múltiplas facetas, desde as técnicas e económicas, às culturais e humanas, sobressaindo entre elas o peso avassalador do processo de globalização. A globalização, um processo multidimensional Por globalização, os discursos dominantes e mais comuns entendem o galopante fenómeno de interdependência das economias e dos mercados a nível mundial, espaço de conflito e de acrescida competitividade no seio da economia de mercado, cujos efeitos se estendem a todas as áreas da vida social. A globalização, tanto na sua génese como nos seus efeitos, é apresentada geralmente como uma inevitabilidade social dos tempos que correm, uma vez verificada a queda do Muro de Berlim e a derrocada do bloco económico soviético, uma vez desencadeadas as duas revoluções de grande impacto social, a das tecnlogias da informação e a dos mercados 208 financeiros, uma vez colocadas as sociedades perante uma combinação assaz eficiente entre pressões derivadas da expansão dos mercados, das inovações técnicas e das mudanças organizacionais. Outros autores destacam também como parte integrante deste mesmo processo a galopante competitividade internacional, o desemprego de massa, o crescimento das desigualdades sociais e da exclusão. Todos verificam, no entanto, um imenso campo global de estruturas mundiais e entidades transnacionais, de empresas que operam à escala mundial e de consumidores que consomem, cada vez mais, "produtos globais", bem como a proliferação de sistemas de comunicação cultural universal contínua. É evidente o predomínio da vertente financeira e económica nos discursos enunciadores da globalização e parece também crescer, como irrecusável, a perda de poder económico e político nacional, a favor de instâncias de regulação transnacional. O caso da União Económica e Monetária e a criação da moeda única e do Banco Central Europeu constituem um exemplo paradigmático do que acabamos de referir. Para Giddens, "a modernidade é inerentemente globalizante" (1996:44), e o capitalismo industrial, como ordem económica, tem tido uma influência globalizadora decisiva e fundamental. A capacidade do industrialismo em transformar e difundir universalmente as tecnologias da comunicação condicionou decisivamente "o nosso próprio sentimento de viver num "só mundo"( Giddens,1996:54). Em torno da vertente económica formulam-se novos "dogmas", como sejam a incessante competitividade mundial, o novo modelo de produção flexível, a inexorável concentração monetária e o incontornável poder dos mercados financeiros, ou ainda o optimismo emergente das novas tecnologias e é tão vincada, acrítica e consensualmente que se apresentam os dogmas da globalização, que há autores que criticamente ousam anunciar que estamos a assistir, no plano mundial, à formação de "regimes globalitários" (Ramonet, 1997) ou à redução cultural ao "pensamento único" (Morin e Nair,1997). 209 A expansão do liberalismo económico, facilitada como dissemos pela queda do Muro de Berlim e do império soviético e pela revolução das tecnologias da informação à escala planetária, dá forma ao rosto mais visível, predominante e avassalador do processo de globalização. Esta expansão tende a vincar, por um lado, um efeito homogeneizador, de unificação à escala planetária, em que parece haver um só mundo e tudo ser interdependente, e por outro, um efeito de persistência das diferenças e de fechamento das diversidades sobre si mesmas. A globalização económica e financeira, representando o motor do processo de globalização, constitui, no entanto, apenas uma dimensão de um processo multidimensional - cultural, político, social, estratégico - de elaboração de um conjunto complexo e civilizado (Morin e Nair,1997). De facto, a economia contemporânea apresenta-se como um sistema complexo, que não se pode perceber nem como um simples conjunto de economias nacionais nem como uma realidade completamente mundializada, pois nela se entretecem, de modo hierarquizado, variadas redes internacionais, transnacionais, plurinacionais, continentais, regionais e locais e nela se cruzam diversas actividades económicas muito diferentemente internacionalizadas. A globalização náo é um "processo total", ou seja, encontra resistências diversas e muitas restrições em diferentes planos, desde os internacionais aos locais. Além disso, a globalização económica não é um processo social circunscrito ao período posterior aos "trinta gloriosos", antes deve ser analisado como um movimento que se inscreve tanto num ciclo curto (os últimos vinte anos) como num ciclo longo (o da evolução do capitalismo nos séc. XIX e XX) Neste sentido, a globalização é um fenómeno ao mesmo tempo de continuidade com o passado e de ruptura com o mesmo passado. A internacionalização das economias iniciou-se há muito tempo e foi-se intensificando ao longo de muitas décadas. O que é característico dos 210 últimos decénios, anos oitenta e noventa, é a aceleração do processo de globalização, em que se destaca um surpreendente e constante enfraquecimento dos constrangimentos do espaço e do tempo nas interconexões planetárias. A "revolução" nas comunicações, tendo por base as novas tecnologias da informação, tem sustentado quer uma inesperada aceleração da internacionalização de muitas dimensões da vida social, incluindo as relações económicas, tecnológicas, ideológicas, políticas e culturais quer uma maior interdependência entre elementos aparentemente dispersos, como salienta Stewart (1996), tais como o comércio de capitais, os investimentos multinacionais e os elementos ideológicos. Assim, a globalização pode também ser definida como "a intensificação das relações sociais de escala mundial, relações que ligam localidades distantes de tal maneira que as ocorrências locais são moldadas por acontecimentos que se dão a muitos quilómetros de distância, e vice-versa" ( Giddens, 1996:45) e ainda como a aceleração das relações globais de interconexão mundial nos campos da comunicação social e a harmonização transnacional dos modelos e das estruturas sociais (Schriewer,1995). Dir-se-ía que emerge um objecto novo, em cada quotidiano social local e em quase todas as sociedades, e esse objecto é o mundo, o globo, a escala planetária ou o espaço mundial, como dizem Edgar Morin e Sami Nair (1997). Neste processo, tanto a construção de sentido, em termos individuais e sociais, como a sua apreensão, fazem parte cada vez mais de uma dinâmica que opera dentro de um fluxo permanente entre o local e o global, de difícil discernimento individual e societal. A globalização como fenómeno social reveste-se de um conjunto de características e de padrões de pensamento e de acção que, de facto, influenciam de modo incisivo e alargado os modos de pensar e de agir, mesmo que local e individualmente. Existe mesmo um certo fascínio e uma atracção cultural em torno do que é mundial e global. Há e sempre terá 211 havido, aliás, um encanto humano em redor do universal e do global, compreensível face à natureza passageira, única e mortal do ser humano; há, por isso, muita disponibilidade humana para acolher o que nos supera muito, o que é muito mais largo e muito mais alto, o que tem muito mais brilho nos meios de comunicação social mundiais, os produtos globais, os discursos globais, quaisquer enunciados globais, tudo isto atrai e inebria como se fosse uma espécie de fonte suplementar de vida que povoa e enche um imaginário sedento e, quantas vezes, interrogador e sem respostas, vazio, como o enfatiza Lipovetsky. Neste sentido, a globalização como ideologia, mesmo na sua vertente mais dura de mercado neo-liberal, nutrese também da transacção deste imaginário que, como qualquer senso comum, possui uma poderosa força persuasiva, que dispensa e aniquila argumentos, repetindo palavras-slogans até à exaustão e escondendo continuamente os seus múltiplos sentidos. A globalização é, pois, um processo que ultrapassa muito uma dimensão económica restrita. Tomando por base um contributo de A. Little (1996), os padrões de globalização podem dividir-se em três categorias principais (ver Quadro 3.2). Esta categorização tem a vantagem de sublinhar a pluridimensionalidade da globalização e a vasta gama dos seus efeitos. Entre os que mais se poderão mobilizar nesta investigação, será útil reter três: o global passa a constituir um importante referente de análise, de pensamento e de acção; assiste-se a uma forte reestruturação do lugar e do papel do Estado-nação; a ideologia da globalização possui um forte impacto sobre o regional e o local, produzindo novas tensões e reconstruções sociais. 212 Quadro 3.2. Dimensões do processo de globalização Dimensões económicas da globalização • Mercados financeiros instantâneos, descentralizados e “menos estatais”; • Redução do investimento directo estrangeiro ao mínimo; • A importância económica e produtiva de uma dada localidade é determinada pelas suas vantagens físicas e geográficas à escala internacional; • Liberdade de troca entre localidades, com fluxos determinados; • Aumento do livre movimento do trabalho. • Flexibilização dos locais de produção. Dimensões políticas da globalização • Crescimento de múltiplos centros de poder aos níveis global, intermédio e local e perda de soberania do Estadonação; • Análise de problemas locais tendo como referente a comunidade local; • Predomínio de poderosas orgnaizações internacionais sobre organizações nacionais; • Fortalecimento de valores políticos comuns e globais e enfraquecimento do valor atribuído ao Estado-nação; • Centralidade nacional das questões do Estado e do modelo social. Dimensões culturais da globalização • Mosaico religioso desterritorializado; • Alargado consumo de “produtos globais” e de simulações e representações globais; • Distribuição global “on-line” de imagens e de informação; • Mundialização acelerada da iedologia da modernização, após a queda do Muro de Berlim e do império soviético; • Crescimento do multiculruralismo em cada local do mundo. • Fonte: Adaptado a partir de Angela Little (1996:428). No intuito de centrar esta abordagem no terreno da nossa reflexão podemos dizer que a globalização afecta a educação escolar no plano nacional e que 213 a educação escolar nacional afecta o processo de globalização, como aliás sublinha Stewart (1996). É comummente aceite que o desenvolvimento da educação e da formação em cada país, ao longo do tempo, afecta a produtividade do trabalho e, desse modo, a capacidade dos diferentes países cooperarem e competirem nos mercados internacionais. Além disso, os sistemas nacionais de educação e de formação evoluem em grande parte sob o impulso da evolução dos ciclos económicos e por ajustamento às forças do mercado e estes processos estão cada vez menos dependentes de políticas económicas configuradas nos planos nacionais, como bem se pode verificar no caso europeu e na construção da União Económica e Monetária. Mas, por outro lado, o nível de desenvolvimento educacional da população de um dado país afecta de igual modo a capacidade dos países competirem internacionalmente, uma vez que essa característica condiciona fortemente a atracção da tecnologia e do capital internacional. O baixo custo da mão-deobra não é factor de competitividade internacional se o nível geral de educação e de formação da população não for elevado. Se este nível já era um factor crítico no plano do desenvolvimento nacional, é agora um factor determinante no contexto de uma economia globalizada, onde se esboroam constrangimentos de espaço e de tempo, seja em países em desenvolvimento seja entre países desenvolvidos. O processo social de globalização é agora parte integrante dos sistemas educativos locais e a sua evolução dificilmente se compreenderá em termos meramente locais e nacionais. Por outro lado, o processo multifacetado da globalização, conduzido pelas empresas mais competitivas, num contexto de aceleração da concorrência internacional, também engloba necessariamente uma face oposta, não competitiva, contribuindo desse modo para acentuar a dualização social. O processo de globalização surge como mais homogeneizante. Como lembra António Teixeira dualizante do que Fernandes, os que não acedem ao mercado de trabalho altamente competitivo, em condições de 214 nele singrar, “situam-se com um nítido défice de relações sociais e de sentido” (1998 : 28). A ideologia da globalização em cujo lastro vivifica a já referida ideologia das competências, segundo este sociólogo, “reforça o carácter meritocrático das nossas sociedades e acelera o apelo aos mecanismos individuais de mobilidade social” (1998 : 28). Os mais competentes são os que obtêm os melhores empregos e, no limite, os competentes são os que obtêm emprego, o que não só radicaliza o fosso entre os diplomados pelos mais altos títulos escolares e os que abandonam o sistema escolar, seja precocemente seja ao longo do percurso, mas em níveis não superiores, como acentua o nível de competitividade dentro do sistema escolar. A ideologia das competências não faz parte, como dissemos acima, de um discurso político neutro acerca da educação. Tendo presente este elemento central constitutivo da contemporaneidade e dada a importância de que se reveste o verificado consenso ideológico internacional, como parte integrante das reformas educativas nacionais, torna-se necessário interrogar mais profundamente, à luz dos contributos das ciências sociais, a interdependência transnacional no campo da educação. A educação, uma instituição mundial Saltam à vista de qualquer observador atento às problemáticas da educação escolar não só as diferenças mas também as semelhanças entre os sistemas educativos dos diferentes países europeus. As suas principais características são, aliás, bastante idênticas em qualquer parte do mundo. A educação é, como sintetiza Hüfner, uma instituição mundial (1992). Para lá da simples evidência,vários estudos de âmbito internacional têm concluído que existe uma efectiva tendência entre as nações e os sistemas educativos 215 nacionais para convergir para estruturas e práticas comuns. Segundo Inkeles e Sirowy (1983), esta tendência é vasta e profunda. Apesar da diversidade de culturas e sociedades humanas, os investigadores podem deslocar-se por todo o mundo e estudar um dado grau ou nível educativo, pois como lembra Hüfner, há "uma redução da complexidade humana, construída sobre a base de ideias científicas racionalistas"(1992:367). Nos últimos dois séculos desenvolveu-se um modelo de escola moderna de relevância mundial, um subsistema adoptado por qualquer país em processo de modernização, um modelo transnacional e universalmente aplicável (Hüfner,1992). A emergência destes sistemas escolares modernos inscrevese numa dinâmica histórica de longa duração. O conceito de "longue durée", que F. Braudel expôs num célebre artigo de 1958, na tradição dos pioneiros da escola dos Annales, opunha ao acontecimento, que remetia para o tempo curto, a "mais enganadora das durações", o modelo do tempo longo, o das décadas e dos séculos, o tempo das inércias, das resistências e das "prisões de longa duração". Este último era o tempo próprio da história, o único capaz de apreender a quase intemporalidade das mentalidades e dos comportamentos humanos e os seus mitos. Como lembra M. Vovelle (1978), a história política vai abandonando a trama dos acontecimentos para poder formular os problemas sociais que só se concebem na duração, nomeadamente o problema do Estado. A história económica foi pioneira na fuga à prisão do tempo curto do acontecimento e propôs uma modulação em três níveis: o tempo curto das crises, o tempo médio dos interciclos e o tempo longo da “longa duração”. No plano da história social este modelo revelava-se pouco útil ao não dar suficiente conta da multiplicidade de tempos que se cruzam e entrelaçam no tempo histórico, o que constituiu um apelo à redescoberta do acontecimento 216 numa outra relação entre o tempo curto e o tempo longo. No dizer de P. Vilar, do "tempo medianamente longo". O moderno modelo de educação escolar é um sistema histórico que se inscreve na longa duração e que resulta do entrelaçar de tempos históricos económicos, políticos, sociais e culturais não isoláveis e que se desenvolveu ao longo dos últimos duzentos anos, a partir da Europa. Se o desenvolvimento económico se tornou factor de propagação deste modelo, como referimos, a evolução sociopolítica e das mentalidades constituiu importante factor da sua lenta e contínua adopção em todo o mundo. Inkeles e Sirowy (1983) sustentam a sua análise das tendências de convergência e de divergência entre os sistemas educativos na observação dos padrões de mudança, ao longo do tempo, em várias dimensões, verificando que ora a mudança é lenta, ora é rápida, ora ela é convergente, ora divergente, fazendo lembrar a expressão de Braudel da história "sinfónica", onde os diferentes ritmos de mudança se entrelaçam num todo convergente ou na manifestação das divergências. A teoria do sistema mundial Alguns autores mobilizam o conceito teórico de sistema mundial para explicar os processos de homogeneização acima referidos. As estruturas e práticas comuns aos vários sistemas de educação escolar pelo mundo fora fazem parte do sistema mundial moderno e seguem basicamente um modelo transnacional global de tipo moderno de educação (Adick,1993; Hüfner, Meyer e Naumann,1992). As ciências sociais identificaram e estudaram o sistema mundial como uma unidade de análise: ele abarca mais do que qualquer sociedade organizada estatalmente, contém uma dinâmica histórica e uma lógica em si mesmo, a qual não se pode deduzir das suas partes 217 componentes. O sistema mundial de que falamos, na esteira dos estudos económicos de Wallerstein, é um subsistema histórico que se tem desenvolvido em torno quer da expansão de um sistema de produção transnacional mundial, o mercado mundial capitalista, quer da expansão do modelo sociopolítico do Estado-nação. Esta evolução transporta em si modelos culturais mundiais entre os quais se destaca o moderno sistema de educação escolar. Este sistema mundial tem a força do espaço mundial e o peso da longa duração, o que, pelo menos aparentemente, é suficiente para, com o tempo, neutralizar eventuais divergências ou tentativas para afirmar vias educativas alternativas. Assim, cada sistema educativo moderno só se chega a compreender à luz do "sistema mundial moderno". Todas as sociedades que se modernizam adoptam subsistemas de educação escolar de contornos semelhantes. Verifica-se a existência de uma tendência secular, historicamente prolongada, para o desenvolvimento de sistemas escolares nacionais e com características estruturais semelhantes (Adick, 1993: 401). No entender da mesma autora, a expansão da escolarização no Terceiro Mundo esteve ligada às esperanças gerais em vencer os desafios do desenvolvimento, mediante o investimento na alfabetização e no ensino. Ao fazê-lo, cada país passava por um processo de adaptação local a uma nova situação, esta com características transnacionais, e esta adaptação não podia deixar de se inscrever numa passagem dos sistemas de educação prémodernos para os sistemas de educação modernos. A novidade da educação moderna generalizada não é a adopção de um sistema de instrução formal mas sim "uma nova qualidade da escolaridade, como parte de um projecto de desenvolvimento nacional num contexto mundial novo" (Adick, 1993:409). 218 Christel Adick, na mesma linha da equipa de Stanford, constituída por Boli, Meyer e Ramírez, sublinha que aquilo que a educação é (a sua ontologia), o modo como se organiza (a sua estrutura) e aquilo por que tem valor (a sua legitimidade) são características que evoluem primeiramente ao nível da cultura mundial e dos sistemas económicos mundiais (Adick, 1993:398). A escola moderna segue um modelo global, um modelo internacionalmente válido para os sistemas educativos organizados pelos Estados-nação. O modelo transnacional de tipo moderno de educação -que se opõe a qualquer tipo pré-moderno de educação e de instrução- expandiu-se em todo o mundo e conduziu à estruturação de sistemas nacionais de educação escolar muito similares, unificados e sistematizados. John Boli e Francisco O. Ramirez, da Universidade de Stanford, têm estudado em particular a disseminação do modelo de institucionalização escolar. As características estruturais deste modelo são, em sua opinião: - uma organização administrativa geral fundada e controlada pelo Estado; - um sistema escolar internamente diferenciado segundo níveis sucessivos, cursos e correspondentes exames finais; - a organização do processo de ensino e aprendizagem na sala de aula, em função de distintos grupos etários e de unidades de tempo uniformes; - a regulação governamental ou pública de tais processos de ensino e aprendizagem, através de requisitos inscritos em programas, directivas e provas de exames; - a edificação de papéis distintos para professores e alunos e a profissionalização dos professores e dos métodos de ensino; - o uso de certificados, diplomas e credenciais para ligar as carreiras escolares com as carreiras ocupacionais, conectando a selecção escolar com a estratificação social (Schreiwer, 1995). 219 Estes sistemas escolares têm revelância mundial, por três motivos: porque são uma componente do sistema mundial moderno e um subsistema de qualquer país em modernização; porque as suas principais características e funções sociais são relativamente inespecíficas do ponto de vista cultural e são uniformes em todo o mundo; e porque este modelo de escola moderna, novo, moderno e universalmente aplicável, é e será de longa duração (Adick, 1993). Os esforços nacionais e historicamente situados de desenvolvimento económico e social são eles próprios processos de inscrição em tendências mais pesadas das sociedades e das economias mundiais. Do mesmo modo, as mudanças operadas nos sistemas educativos dos países em desenvolvimento, são eles mesmos processos de integração na sociedade mundial moderna. Assim, os processos nacionais de reforma educativa são, em geral, processos de aproximação, e não de distanciamento, às caracteristicas e às virtualidades da "instituição educativa da sociedade mundial". Nesta óptica, as próprias disparidades que existem nos sistemas educativos, os seus impasses ou conflitos mais importantes, não serão tanto fenómenos locais e parciais, mas elementos de um “sistema educativo mundial” hierarquizado. Estes processos são conflituosos e traduzem-se normalmente pela dominação de um mesmo e "universal" modelo de escolaridade: sistemas escolares gerais, selectivos, normalizados, profissionalizados, controlados pelo Estado, hierarquizados em diplomas e certificados. Assim, as já referidas características estruturais da escola moderna espalham-se por todo o mundo; produz-se um "discurso escolar mundial" que influencia as unidades sociais que operam em níveis inferiores - Estado, empresas, partidos políticos, associações de professores e de pais, comissões de reforma, grupos sociais-, amarrando-as ideologicamente de tal modo que elas não actuam independentemente deste discurso. Aliás, a 220 relevância mundial deste discurso aduz evidência local à acção destes agentes sociais. A aparição, adesão e expansão da cultura política mundial que favoreceu a emergência do Estado-nação e que provocou a escolarização de massas não pode ser considerada uma inevitabilidade histórica, mas antes uma vaga de fundo de reestruturação cultural do Ocidente que, durante décadas, ao longo do séc.XIX e XX, reordenou a vida pública. Neste reordenamento desempenhou papel preponderante a adopção, lenta mas contínua, nação após nação, por imposição ou por cópia, "dos princípios do Estado-nação territorial e da cidadania individual" (Ramírez e Ventresca, 1992:126); aos sistemas nacionais de educação escolar coube a especial missão social de veicular estes mesmos princípios, consagrando um modelo dominante de modernidade. Explicitemos, antes de mais, em que quadro vamos considerar este processo de tensão e conflito, de imposição e de resistência, de imitação e de autonomia. Convergência e divergência A teoria da convergência, segundo Halls (1990), é uma permissa da Educação Comparada e constitui uma especificidade sua, uma vez que lhe pertence exclusivamente25. Segundo esta teoria, aplicada às relações educacionais internacionais, quanto mais numerosos forem os contactos internacionais entre os vários países do mundo, maiores são as perspectivas destes países virem a cooperar e a consentir abandonar a sua autonomia cultural. Os acordos de cooperação bilateral e multilateral, os tratados da União Europeia e os acordos para o reconhecimento mútuo de diplomas são alguns dos exemplos que ilustram a convergência de interesses e o seu 25 A exclusividade não pertencerá à Educação Comparada mas a todas as áreas do conhecimento científico que se sustentam em boa parte na comparação e nos estudos internacionais. 221 contributo para uma crescente harmonização entre os sistemas educativos dos vários países. Os exemplos são mesmo numerosos e as evidências parecem, de facto, convincentes. Os institucionalistas John Meyer e David Kamens diziam que os sonhos de raíz nacional, pelo mundo fora, são mais homogéneos na sua celebração da modernização económica do que na sua valoração das tradições políticas e culturais específicas (1992a). O mesmo autor sublinha que o modelo moderno de educação escolar, sendo tão necessário como instrumento do progresso individual e social, é adoptado onde o progresso tem lugar e será adoptado onde o progresso for um objectivo importante ou principal, ou seja, em todo o mundo, actualmente. A concepção moderna de "sociedade", como um emaranhado de acções individuais interdependentes, assenta em grande parte nas disposições e capacidades dos indivíduos e na ideia de que do seu aperfeiçoamento e desenvolvimento resultará o desenvolvimento social. Tal ideologia contribuiu decisivamente para uma programação educacional racional, promovida crescentemente pelo Estado, em que o desenvolvimento humano é assistido por um sistema racional que melhora o desempenho pessoal, social e produtivo dos indivíduos. Por isso, a educação de massas faz parte integrante do modelo básico da modernidade, como refere Meyer (1992a). A expansão da educação escolar vai-se tornando um investimento social de primeira importância em todo o mundo, com base numa série de relações causais que, mais do que sustentadas em qualquer evidência real, são supostas. Entre elas podem elencar-se: adultos educados geram mais desenvolvimento social; crianças e jovens mais educados diminuem os riscos quer de doença quer dos acidentes rodoviários ou da gravidez das adolescentes; mais qualificação profissional acarreta melhor inserção profissional e mais fácil acesso ao emprego; sistemas de ensino selectivos são considerados desigualitários e sistemas "compreensivos" são 222 considerados mais democráticos; não há desenvolvimento económico sem recursos humanos qualificados pelo sistema escolar; a produtividade do trabalho evolui à medida que evolui a qualificação dos recursos humanos das empresas; a aplicação das novas tecnologias nas empresas requer uma mão-de-obra muito qualificada. A evidência destas relações causais tem-se revelado, em geral, de difícil prova. No entanto, à medida que os países mais desenvolvidos (do centro) adoptam certas medidas e essas medidas se apresentam como convergentes entre si, cria-se um poderoso factor de homogeneização mundial. Se faltam provas para a proliferação de tantas evidências, no plano internacional, em torno dos impactos da educação escolar sobre o desenvolvimento pessoal e social ou a igualdade de oportunidades, sobre a produtividade das empresas, sobre os níveis de participação social ou ainda sobre a humanização da sociedade, também se torna difícil, como referimos, a sua recusa social e política, no plano nacional, pois sobejam vantagens para a cópia dos modelos dos países mais desenvolvidos e com melhor nível médio de rendimento. No entanto, sem negar a existência desta convergência, Inkeles e Sirowy (1983) e Scott e Kelleher (1996) alertam, de modo muito pertinente, para a necessidade de se aprofundar este conceito. Na perspectiva destes autores, o facto de existir um movimento comum direccionado para o mesmo ponto, não equivale, ipso facto, à existência de convergência entre os países. No seu entender, a semelhança entre os sistemas educativos nacionais diz pouco acerca da convergência entre eles, ou seja, acerca da movimentação de diferentes posições em direcção a um ponto comum, como se se registasse uma muito pequena variação em torno da tendência central. Ora, predominantemente sustentada na observação empírica, a noção de convergência explica como se caminha da diversidade para a semelhança, tanto do ponto de vista institucional como no plano dos valores ou das 223 atitudes. As análises que são fomentadas sob a protecção desta perspectiva teórica estendem-se desde os elementos das organizações sociais mais e menos convergentes, aos factores que facilitam os movimentos de convergência e até à medição dos padrões de convergência. Mas a análise a que aqueles primeiros autores procederam sobre os padrões de mudança, em redor de um conjunto de dimensões -natureza e ambições da educação, estrutura organizativa, demografia, administração e finanças e dinâmicas interpessoais e institucionais- permitiu-lhes concluir que todas as nações se movimentam em direcção a novos estandardes e que, ao mesmo tempo, permanecem dispersas em redor da nova norma, tal como o estavam à volta da anterior. Também se constatam movimentos em que os sistemas divergem mais do que convergem, com a passagem do tempo. Operam, assim, em nosso entender, duas forças contrárias. A convergência é favorecida, no campo da educação, pela pressão de outros elementos do sistema social, nomeadamente pelo desenvolvimento da economia e pelo seu peso avassalador no espaço mundial e pelo enorme poder disseminador da "opinião" da elite internacional - líderes políticos, peritos, agências internacionais e consultores técnicos. A divergência, por sua vez, é alimentada seja pelas diferenças no nível de desenvolvimento económico ou na diferenciação de sistemas políticos (é o caso da Espanha e de Portugal, na Europa, longamente sob o efeito social da ditadura), seja pela persistência de valores e de tradições históricas com expressão social coerente e formal ou ainda pela disparidade dos recursos disponíveis e afectos à educação escolar. Todavia, nem a noção de convergência nem a noção de divergência dão suficientemente conta de um dado fundamental da actual realidade social europeia, elemento este que Scott e Kelleher (1996) identificam do seguinte modo: os sistemas nacionais de educação europeus estão a percorrer, com soluções diversas, caminhos de resposta a um conjunto comum de pressões e problemas. Dir-se-ia que em três importantes 224 canais por onde pode circular a convergência entre os sistemas educativos dos diferentes países, como são (i) as pressões políticas ao nível da União Europeia e a sua influência sobre as reformas nacionais, (ii) as subsequentes mudanças efectivas nas políticas nacionais de ensino e de formação e (iii) as reais adaptações nas estruturas dos sistemas educativos nacionais, se verificam movimentos simultâneos de convergência e de divergência, que evoluem de uma maior convergência para uma maior divergência, à medida em que se analisam os três tipos de veios referidos pela ordem assinalada. É necessário, por isso, formular uma teoria mais geral que explique o que estas duas não chegam a entender. Jürgen Schriewer, na linha da já assinalada teoria da "coerência societal", propõe muito oportunamente a mobilização do conceito de reinterpretação nacional ou local. Apesar de sublinhar o elevado grau de estandardização global que se atingiu nas estruturas organizacionais, nos modelos políticos e nos discursos reformadores, Schriewer sugeriu, mais recentemente, uma leitura mais atenta da reinterpretação nacional das "orientações" do sistema educativo mundial. No seu entender, vários estudos comparados permitem afirmar que existe também uma significativa interdependência intra-nacional entre padrões nacionais específicos. Estas interdependências desenvolvemse como "redes de interconexão que, permanecendo consistentes intranacionalmente, variam significativamente quando examinadas inter- nacionalmente" (Schriewer, 1995: 19). Um exemplo destas interdependências entre padrões nacionais específicos: os que operam entre a organização do trabalho industrial ou a estrutura das qualificações da força de trabalho e a mobilidade e a progressão nas carreiras. Aliás, Schriewer foca especificamente as pesquisas relacionadas com as interconexões entre os sistemas de ensino técnico e profissional, a estrutura das qualificações da mão-de-obra e a organização do trabalho, 225 para assinalar que o ensino técnico e profissional e a utilização do trabalho humano "são, mesmo dentro de sociedades industrializadas tecnologicamente avançadas, definidas em larga medida, por factores societais e culturais" nacionais. Podemos referir, em particular, as estruturas das qualificações, que são em boa medida construções sociais locais, e o modo como estas são mobilizadas pelos empregadores. Primeiramente, o modo como são definidas é profundamente afectado pelo menos por três factores: as crenças dos diferentes tipos de empregadores acerca da eficácia de diferentes formas de organização do trabalho, a capacidade das organizações representativas dos trabalhadores influenciarem a produção das qualificações e as características dos sistemas educativos nacionais, eles próprios influenciados pelas políticas dos governos nacionais. Em segundo lugar, o modo como são empregues depende muito de múltiplos factores, com destaque para o tipo de organização do trabalho, onde a estrutura orgânica das empresas difere muito, atribuindo-se papéis diferentes a categorias profissionais igualmente designadas. O caso mais vezes apontado na literatura ocidental europeia é o da comparação entre empresas industriais da França e da Alemanha, tomando por base empresas do mesmo ramo de actividade, com o mesmo tamanho, o mesmo tipo de produção e de tecnologias e sujeitas à mesma competitividade nos mesmos mercados. Acontece que elas estruturam a sua força de trabalho e organizam-se "de acordo com distintos padrões nacionais de organização empresarial e de divisão do trabalho" (Schriewer,1995:19). Manifestam-se, assim, culturas de empresa e modos de estruturação do mercado interno de trabalho que são nacionalmente divergentes. Os sistemas nacionais de educação e formação operam, neste contexto, como subsistemas "largamente autónomos, que constroem o seu meio social e induzem outros subsistemas à adaptação". É o caso do sistema de formação 226 profissional dual na Alemanha e da formação profissional de base escolar em França. Como assinalamos atrás, já Maurice, Sellier e Silvestre (1982) tinham identificado, estudando os mesmos países, a importância dos diferentes "espaços de qualificação" como jogos de interdependências entre processos sociais de socialização, de organização e de regulação, que contribuem para configurar diferentemente os papéis e as acções dos actores sociais. Maurice (1989) e o grupo de sociólogos de Aix-en-Provence tinham mobilizado o conceito de "coerência societal" (retomado depois por muitos autores, por exemplo, por Plantier,1990) para o estabelecimento de critérios de comparabilidade internacional, nomeadamente no campo da educação e da formação. Também Michel Piore e Charles Sabel, ao analisarem o modo como os EUA, a Alemanha, a França e o Japão reagiram em termos económicos, no rescaldo da II Grande Guerra, constatam que estes países progrediram em termos tecnológicos e produtivos na mesma direcção, mas não convergiram pelo menos num domínio, a saber, o modo de organização do trabalho (1989:212). Estes diferentes modos de organização foram ditados, em seu entender, por compromissos diversos que variaram segundo a experiência que cada país fez da guerra, da inflação e das ameaças de crise económica. Boaventura Sousa Santos também referia, em 1985, que "a inclusão de uma dada sociedade numa categoria transnacional deve acautelar a especificidade do processo histórico de cada sociedade. Pese embora o impacte globalizante da lógica do sistema mundial, as diferentes sociedades evoluem segundo processos históricos diferentes, obedecendo a ritmos e direcções também diferentes" (1985:873). O mesmo autor acrescenta que esta lógica global se alimenta dessas diferenças localizadas em diferentes segmentos do sistema. Ora, consideramos que nesta análise é pertinente argumentar que a evolução - os ritmos, as direcções - destas diferenças 227 localizadas se alimenta também da mesma lógica global. É certo que diferentes sociedades, quando atravessadas por um corte temporal semelhante, podem apresentar soluções ou características apenas aparentemente idênticas, mas com "significados sociológicos muito distintos", como adverte Boaventura Sousa Santos (1985:873). No caso vertente, diferentes reformas educativas que ocorrem no espaço social europeu, num corte temporal idêntico, em nível educativo e formativo semelhante, apresentam necessariamente, sob uma aparente similitude, diferenças historicamente sustentadas. Todavia, ao mesmo tempo, a similitude e a simultaneidade evidenciadas revelam também uma construção operada sob o ritmo e a direcção de modelos educacionais transnacionais. Dois outros campos de estudo onde se pode proceder à mesma leitura são o que analisa as relações entre educação, modernização e desenvolvimento e o que advoga a prevalência global do modelo pós-fordista. Quanto ao primeiro: apesar de um linearismo reinante, as relações entre estas conexões não são nada mecânicas, mas, pelo contrário, bastante problemáticas, como já largamente demonstrámos. A educação é vista nesses estudos como simultaneamente determinada e determinante na sociedade em que se insere (p. ex. Fagerlind e Saha, 1985). Uma instituição de modernização como a "escola moderna" não arrasta linearmente, como o sugerem os defensores de uma racionalidade universal adstrita ao industrialismo e de todo o tipo de funcionalismos, nem valores modernos, nem comportamentos modernos, nem desenvolvimento económico. Como Schriewer sublinha, não há determinantes universais; os processos históricos são "demasiado numerosos, demasiado complexos e, com efeito, demasiado independentes uns dos outros", o que questiona fortemente todas as teorias de validade universal, sejam elas a da modernização, a da dependência, o funcionalismo estrutural ou o marxismo (Schriewer, 1995:20). Quanto ao segundo: como já esclarecemos, a teoria da implantação global 228 do modelo pós-fordista de produção, como discurso resultante de um consenso geral e abstracto, com real força mobilizadora da acção política no plano das nações, esbarra com imensas manchas, mesmo no palco europeu e nos seus países mais desenvolvidos, onde prevalece um sistema local de produção taylorista, por vezes profundamente desfasado em relação à ideologia dominante, manchas estas todavia cada vez mais incluídas funcionalmente numa economia de mercado globalizada. Estas pesquisas nos campos sociais e educativos evidenciaram, assim, o contraste entre a difusão e a adopção global de modelos educacionais transnacionalmente estandartizados e a persistência de variadas redes de interconexão socio-cultural nacional e local. O caso da expansão do modelo da Universidade Europeia é, talvez, o mais convicente. Ele desenvolveu-se por todo o mundo, sem alternativas. No entanto, à medida que se alarga e desenvolve, também diverge nacionalmente, em vez de convergir crescentemente. Tal fenómeno radica, para Schriewer, nos "procedimentos de reinterpretação e de adaptação promovidos por grupos culturais e nacionais receptores" (1995:20). Em cada novo meio e à medida que as instituições do ensino superior perdem o seu carácter fortemente elitista, os modelos veiculados transculturalmente, são seleccionados, reinterpretados e reelaborados de acordo com interesses localmente prevalecentes, com necessidades específicas, segundo "linhas de cultura" e "lógicas de adaptação" diferenciadas. Retemos, assim, para o âmbito deste trabalho, a complexidade inerente ao desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais, considerando-os parte importante da construção europeia da modernidade. Regista-se, por um lado, a pertinência da teoria do sistema mundial, ao valorizar a acção de modelos educacionais transnacionais como modelos culturais globais, internacionalmente válidos, veiculadores e veiculados não só pelo sistema de produção transnacional mundial, a economia capitalista, como também 229 pela expansão do modelo socio-político do Estado-nação e por uma multiplicidade de pressões, que analisaremos mais pormenorizadamente de seguida. Por outro lado, anota-se a importante observação dos limites de um universalismo linear e determinista, uma vez que persistem fortes "coerências societais" que configuram, no espaço nacional-local, assinaláveis divergências no seio da constatada convergência, resultantes de um labor de reintrepretação nacional-local promovido tanto pelos decisores políticos como pela jogo dos actores sociais. Convergência e divergência são, assim, dinâmicas sociais simultâneas, ora mais ou menos conflituosas entre si. A construção e a acção dos modelos educacionais transnacionais Para a economia desta investigação importa ainda questionar de modo muito particular o conceito de “sistema educativo mundial”, o que faremos recorrendo a alguns contributos das abordagens sistémicas dos sistemas sociais. Como definição de sistema, consideramos aqui mais pertinente a adopção de uma perspectiva lata que o caracteriza como um conjunto de dimensões ou variáveis que são dotadas de autonomia e que simultaneamente interagem entre si, interligando-se por um conjunto de relações. Outras visões, que o entendem como totalidade organizada por elementos solidários que podem definir-se apenas uns em relação aos outros, aplicam-se mais dificilmente à análise das interelações presentes no sistema educativo mundial. Um sistema, mormente um sistema social, pode definir-se em torno de quatro pilares principais e pode descrever-se sob dois principais ângulos, um estrutural e outro funcional. 230 Quanto aos pilares eles são: a interacção entre as dimensões que compõem o sistema; a globalidade, uma vez que o todo não é redutível às partes e estas só se compreendem, no todo ou em parte, inseridas no todo; a organização, que abarca os processos pelos quais as variáveis se reunem, combinam, ordenam e optimizam; e a complexidade, pois existem sempre múltiplas combinações entre os elementos e a incerteza paira sobre os modos como elas se estabelecem, em cada momento. O sistema educativo mundial, como modelo sociocultural transnacional, que se espalha, copia e impõe em todo o mundo, compreende um conjunto de dimensões cuja identificação provisoriamente situamos em torno das sete seguintes: a expansão da escolarização de massas no Estado-nação, a expansão da ideologia da modernização e do progresso, a externalização dos sistemas educativos nacionais, a globalização económica, cultural, e política, o sistema de comunicação científica, a acção das organizações internacionais, a educação comparada e internacional. Antes de as descrevermos, importa ainda referir que este sistema, sob um ângulo estrutural, deve comportar um certo território delimitado ou fronteira, um conjunto de dimensões bem identificadas e analisadas, uma rede de intercomunicações e centros de armazenamento e alimentação do sistema. Sob um ângulo funcional, o sistema pode analisar-se sob a perspectiva dos diferentes fluxos que circulam nas redes de ligação, sob a perspectiva dos centros de decisão e de regulação dos fluxos, sob a óptica das modalidades de retroacção que permanentemente alimentam a decisão e ainda quanto aos tempos de intercomunicação e decisão. O sistema educativo mundial é um sistema aberto, em que interagem o conjunto de dimensões acabado de identificar, que deve ser considerado uma unidade pertinente de análise dos fenómenos educativos nacionais e locais. Vejamos, em primeiro lugar, cada uma destas dimensões e algumas 231 das suas interacções para, na sequência, procedermos à sua abordagem mais global. A consolidação do Estado-nação e a expansão da escolarização de massas Podemos partir de um dado de base já explicitado: desenvolveram-se em todo o mundo sistemas de educação escolar que seguem uma matriz muito semelhante. Eles são, na sua grande maioria, controlados pelos Estados nacionais, declarados obrigatórios e seguem um modelo transnacional moderno de educação, que se vem sobrepondo lentamente, durante décadas e décadas, a todas as formas pré-modernas ou não formalizadas de educação. Durante algum tempo defenderam-se teorias que ancoravam o incremento dos modernos modelos de educação escolar quase exclusivamente no industrialismo crescente. A educação escolar era um instrumento de preparação e formação da mão-de-obra necessária ao desenvolvimento do modo de produção capitalista. Por um lado, havia que assegurar a integração socioprofissional de todos os indivíduos e, por outro, especializálos em função dos lugares que iriam ocupar na nova divisão do trabalho, em conformidade com as exigências da sociedade industrial. Nesta óptica, a escola de massas emerge com a sociedade industrial e expande-se por todo o mundo à mesma medida que a economia de mercado o faz. Ora, vários estudos económicos questionaram esta relação linear e unidimensional. Por um lado, como referiu o historiador Hobsbawm, nem a industrialização inglesa assentou no suposto recurso sistemático a novas competências escolares, nomeadamente tecnico-profissionais, nem outros países de industrialização tardia ficaram à espera do incremento do modo de 232 produção capitalista para desenvolverem sistemas escolares modernos com enorme impacto social, como no caso da Suécia, estudado por Boli (1992). As teorias marxistas mobilizaram, entretanto, outro instrumental teórico que se relaciona com o contributo da escola moderna para a reprodução das relações sociais de produção no seio da economia capitalista. Estas perspectivas permaneceram, como já referimos, prisioneiras de uma abordagem funcionalista entre a educação escolar e a economia, desvalorizando não só a eclosão de desajustamentos entre os dois campos, como a multifuncionalidade da educação escolar, a diversidade de comportamentos da procura e a relativa autonomia da sua acção social. A teoria institucional, desenvolvida por J. Meyer e F. Ramirez, viria trazer uma proposta mais consistente de análise da expansão da escolarização de massas à luz dos processos mais globais de expansão e consolidação do Estado-nação. São as alterações nos domínios político, económico, religioso e cultural, em que assumem papel relevante os "mitos legitimadores", que integram e explicam a construção da forma moderna de instituição escolar. Ao evoluirem de formas pré-modernas para formas modernas de organização social, todas as sociedades adoptam o modelo dos sistemas educativos escolares modernos. Tem sido sobretudo em torno da análise do processo da escolarização de massas que se tem desenvolvido a teoria institucionalista. A escolarização de massas é um fenómeno global não só no seu alcance, mas também por estar altamente institucionalizada a nível mundial (Ramirez e Ventresca, 1992). Ela tem um estatuto mundial como entidade altamente legitimada, não só pelos benefícios que ela confere aos indivíduos e às sociedades nacionais, mas também pelo seu papel na formação de uma sociedade mundial, na qual a escola para todos resultará no entendimento global e na paz mundial (ibidem). 233 Várias tendências mundiais no desenvolvimento organizativo dos sistemas de escolarização de massas ilustram a pertinência da perspectiva institucionalista. Os mesmos autores conferem particular destaque a três: a expansão das matrículas na escola primária, a elaboração de mandatos legais relativos à escolaridade obrigatória e o estabelecimento de uma autoridade centralizada em matéria de política educativa, os Ministérios da Educação. Os períodos estudados oscilam entre 1870 e 1980, no primeiro caso, e entre 1810 e 1990, nos outros dois. E concluem que, desde meados do Séc. XIX, se encontram tendências regionais supreendentemente parecidas, que produzem sistemas de escolarização de massas expandidos, declarados obrigatórios e sujeitos a uma competência estatal nacional (Ramirez e Ventresca, 1992: 135). A adesão nacional à escolarização massiva é analisada por Boli (1992), para o caso da Suécia. Segundo este autor, a escolarização de massas é uma inevitabilidade da modernidade que emergiu nos diferentes países euroamericanos "porque surgiu na civilização ocidental, como uma consequência lógica e até necessária" (Boli, 1992:73) em todo um complexo civilizacional. A cidadania está nas origens da escolarização de massas como um vector fundamental. A natureza e o conteúdo da socialização da infância ligou-se intimamente à natureza das regras da cidadania que ligam os membros da sociedade à sua comunidade mais vasta. O indivíduo, por sua vez, tornou-se a unidade elementar da sociedade, um potencial cidadão, apto a participar inteiramente na comunidade, sendo esta tutelada racionalmente pelo Estado. O Estado foi substituindo as Igrejas como estrutura dominante de autoridade e a comunidade nacional secularizou-se, reconceptualizando-se como um projecto social unificado, orientado para o progresso e para o sucesso colectivo, através da acção individual de cidadãos, “competentes e leais” (Boli,1992:69). Construir este tipo de cidadãos, implicava retirá-los dos seus 234 tradicionais núcleos de socialização e formá-los no seio de uma nova estrutura formal, distinta e disciplinada. O afluxo generalizado dos cidadãos suecos a uma socialização conduzida pelo Estado, fora de casa, a escolarização de massas, deve-se ao facto de que "todos eles estavam inspirados pelo mesmo imperativo institucional" (Boli,1992:72). Uma visão altamente idealizada de cidadão piedoso, produtivo e disciplinado acompanhava a perspectiva de que só um processo de socialização formal converteria "estas pequenas bestas brutas" no tipo "certo" de participantes na comunidade nacional. Uma fé generalizada na escolarização impulsionou todos os sectores da sociedade em direcção à escolarização de massas (Boli,1992). Embora não houvesse qualquer evidência de que a escolarização de base de massas produzisse melhores cidadãos do que a casa, a igreja ou o local de trabalho, todos assumiam que a escolarização o podia e devia fazer. É neste mesmo sentido que Hüfner, Meyer e Naumann (1992) falam da educação escolar moderna como uma "construção científica", que não surge articulada a tradições primordiais da sociedade, mas como uma "tecnologia geral" formatada para alcançar o progresso. Sendo este assumido em quase todo o mundo como um objectivo "fundamental e legitimado", a escolarização de base de massas tornou-se uma "tecnologia de alcance mundial" que, em nenhuma parte do mundo, se confunde com uma "instituição nacional localista" (1992: 347). Como acabamos de ver para o caso da Suécia, o movimento mundial da construção dos modernos Estados-nações sustentou-se, em boa parte, na instituição mundial da escolarização de massas. A adesão ao Estado moderno ou seja, os novos modelos de organização da soberania, e à nação moderna, ou seja, à organização da sociedade tendo por base o cidadão individual como a principal unidade social, implicou a adesão ao princípio 235 normativo e à realidade organizacional da escolarização de massas (Meyer, Ramirez e Soysal, 1992). O Estado-nação, segundo os mesmos autores, pode considerar-se ele mesmo "um modelo cultural transnacional" no seio do qual a escolarização de massas se tornou um importante mecanismo para desenvolver actividades sociais através das quais se formam as ligações simbólicas recíprocas entre os indivíduos e os Estados. Assim, o modelo institucionalizado de escolarização disseminou-se como uma ideologia intrínseca à modernidade europeia. Desde o Séc.XIX que os objectivos educacionais reflectiram princípios guias desta modernidade expandida globalmente, tais como o desenvolvimento da personalidade individual, da cidadania e das competências de participação social, a igualização de oportunidades sociais e políticas, o desenvolvimento económico nacional e a ordem política garantida pelo Estado-nação (Schriewer, 1995). Por outras palavras e recorrendo ao léxico informático, o “software” da escolarização de massas expandiu-se graças às virtualidades da sua aplicação no “hardware” da forma moderna de soberania, o Estado-nação, e esta desenvolveu-se graças, em boa parte, às virtualidades da escolarização de massas. De facto, a instituição mundial da escolarização de massas desenvolveu-se e consolidou-se como um "modelo cultural", com um conjunto cada vez mais familiar de princípios ideológicos e de medidas organizativas. Este modelo vinculou-se ao princípio ascendente do Estado-nação e a conexão entre a escolarização de massas e o Estado-nação "converteu-se num axioma" (Schriewer,1995). 236 Neste processo, a perspectiva institucional sublinha a surpreendente capacidade de penetração do isomorfismo ideológico e organizativo. Seguindo DiMaggio e Powell (1983), os autores destacam três fontes deste isomorfismo: a coerção, a imitação e a adesão a critérios normativos e ou cognitivos. No seu universo explicativo dos processos isomórficos, eles enfatizam os processos normativos, defendendo "a aparição de uma cultura mundial que favoreceu a forma estatal-nacional de organização da acção colectiva e da estrutura social e que provocou a escolarização de massas como meio de formar membros de uma sociedade nacional" (citado por Boli, 1989:125). A crescente adesão nacional aos modelos mundiais de escolarização de massas produziu também este efeito isomórfico avassalador. Apesar das diferenças explícitas e presentes em muitas características específicas das sociedades nacionais, "a escolarização de massas institucionalizou-se globalmente" (Boli, 1989:135). Ao nível curricular, também Meyer analisa a "surpreendente homogeneidade" que existe à volta do mundo (Meyer, 1992a). Mais uma vez, a análise empreendida incide sobre a escolarização de massas da população ao nível do ensino primário. A evolução do currículo, conclui-se, é um processo mundial, mais do que nacional. É certo que os currículos nacionais, sendo prescritos pelos Estados, reflectem necessariamente interesses e necessidades particulares locais e nacionais. Mas Meyer aduz: também reflectem forças mundiais. E acrescenta o argumento superior de que os interesses e necessidades locais, ao prosseguirem e definirem a escolarização de massas, tendem a ser filtrados pelas forças culturais espalhadas por todo o mundo. É aqui que radicará o facto de encontrarmos frequentemente mais homogeneidade e estandardização entre os currículos prescritos pelos Estados-nações do que se poderia esperar ( Meyer, 1992a: 2). 237 À medida que os diversos países se aproximavam da moderna política mundial dos Estados-nações, tornavam-se aptos a desenvolver sistemas educativos de massas, independentemente das condições sociais locais (Meyer, Ramirez e Soysal, 1992). Estes autores, na senda de Wallerstein, analisam a expansão mundial da escolarização de massas e, em função da sua aproximação àquele modelo, dividem os países na conhecida categorização: centro, periferia e periferia afastada. A conclusão é a seguinte: o nível de adesão ao sistema mundial de educação de massas é afectado estruturalmente pela localização na sociedade mundial. A análise do processo de construção do Estado-nação e da expansão da escolarização de massas, em mais de cem países, desde meados do Séc. XIX, permitiu verificar que o crescimento das frequências escolares rondou os 5% por década, até 1940. Após a II Guerra Mundial o ritmo de crescimento subiu para cerca de 12% por década. Apontam-se dois factores como causas salientes deste incremento. Por um lado, a pressão política internacional para instaurar em toda a parte o modelo do Estado-nação; por outro, a legitimação da relação estreita entre o modelo do Estado-nação e a escolarização de massas, relação suportada pelas teorias do capital humano e da modernização política (Meyer, Ramirez e Soysal,1992). Há, assim, uma lógica histórica na expansão dos modelos educacionais mundiais. Não se trata de uma moda ou de um mero isomorfismo mimético, para usar a expressão de DiMaggio e Powel. Por um lado, o modelo estatal de educação escolar é um subsistema social que todas as sociedades que se modernizam adoptam. Por outro lado, o modelo de escola moderna inscreve-se na história contemporânea como um fenómeno de dimensão universal de longa duração. 238 Mais recentemente, com a expansão do processo de globalização, o Estadonação vai perdendo importância referencial, sobretudo no plano económico (e dentro deste, no plano financeiro), a favor de um "espaço mundial" cada vez mais presente no palco internacional e local. A retórica nacional, mediatizada pelo Estado-nação, que sustenta as reformas educativas nacionais, parece também ser em boa parte substituída por uma retórica mundial, de maior poder persuasivo, legitimador e desproblematizador. Nesta perspectiva, pode suceder que a globalização acelere a emergência de modelos educacionais mundiais estruturados e reforce o seu poder de rarefacção das diferenças, enfraquecendo mais o papel mediatizador dos Estados. Ora, o modelo de análise aqui proposto para a expansão da escolarização de massas é susceptível de ser aplicado às reformas do ensino secundário, que se apresentam quer com idênticas características em vários países da Europa (e não só) quer com uma surpreendente simultâneidade. As reformas nacionais nascem e afirmam-se recorrendo a uma retórica construída supranacionalmente que traduz, antes de mais, o recurso à construção científica e à tecnologia geral da educação escolar moderna. O modelo cultural transnacional do Estado-nação, para se continuar a desenvolver nacionalmente, tem necessidade de recorrer a ideologias globais e a modelos transnacionais gerais de educação, no seio dos quais são veiculadas correntes e perspectivas de reforma que atravessam o mundo inteiro e que afectam, desde logo, os países mais desenvolvidos. Os currículos nacionais e as suas alterações são, nesta óptica, expressões, dificilmente recusáveis, de modelos transnacionais gerais de educação e das ideologias que os sustentam. As diferenças com que possam surgir aqui e ali, se são reveladoras de adaptações à diversidade e de apropriações 239 nacionais específicas, podem também ser encaradas como variações sobre uma ideologia global e globalizante e sobre um modelo geral comum. Expansão da ideologia da modernização Na modernidade vai-se construindo um modo muito racionalizado de olhar os seres humanos e este olhar, por sua vez, constroi a própria modernidade. A educação escolar está no fulcro desse olhar e dessa construção. Este "bem geral", quase inquestionado na sua bondade, foi-se institucionalizando, originando um "sistema estandardizado racionalizado de investimentos e de resultados" (Hüfner, Meyer e Naumann, 1992: 364), enraízado numa ideologia mundial e universalista de modernização. A educação é uma componente central da tecnologia do progresso e da modernização e esta apresenta-se como um desiderato social e político na generalidade dos países do mundo. A expansão da ideologia da modernização constitui, pois, outro fio condutor da expansão do modelo mundial geral de educação ( Stoer, Stoleroff e Correia, 1990; Ottone, 1996; Garrido,1996; Carneiro, 1996). Hüfner, Meyer e Naumann identificam três revisões do conceito de modernização, entre o Séc.XIX e a actualidade. Inicialmente, a modernização surgiu associada à afirmação da sociedade liberal burguesa, que punha a sua tónica na liberdade política, económica e cultural, incluindo religiosa, e na emancipação do indivíduo. A este conceito de individualismo liberal viria a juntar-se uma autoridade pública intervencionista e responsável pela institucionalização do Estado. Após a II Guerra Mundial, com os processos de descolonização, ocorreu uma ampliação do privilégio da cidadania aos povos e raças não brancas e uma expansão da ideologia universalista da igualdade de direitos humanos. 240 A modernização assentava no pressuposto da igualdade entre os Estados e na sua soberania, tendo as Nações Unidas constituído o foco de irradiação desta ideologia. Simultaneamente, desenvolveu-se a doutrina dos benefícios económicos específicos da educação, através de uma rápida expansão da teoria do capital humano, que apoiou a extensão dos sistemas educativos nacionais e reforçou a emergência do moderno sistema mundial. Na década de 70, institucionalizou-se, no plano político e entre a comunidade científica mundial, o paradigma do "mundo único e interdependente". O desenvolvimento ou a modernização dos Estadosnações processa-se em clima de conflito, de desigualdade e de interdependência, registando-se acentuadas disparidades entre os países. A ideia de uma Nova Ordem Económica Mundial surge, então, associada à perspectiva da redução das desigualdades entre os países e à percepção mundial da educação como um factor crucial do progresso nacional e da igualdade entre as nações. Neste "processo cumulativo", reforçado pela aceleração da globalização dos finais do Séc. XX, a educação foi-se expandindo permanentemente, os discursos reformadores alargaram-se ao mundo inteiro e a comparação internacional em educação não parou de crescer. Num número cada vez maior de países, tanto os objectivos educacionais como os "mandatos gerais" sobre a infância, a família e a educação, são determinados por princípios-guias gerais, de validade mundial e subsumidos, desde o Séc. XIX, na interpretação europeia de modernidade. A retórica da modernização, "instrumento de produção de consensos sociais alargados e elemento estruturante da sintaxe do discurso educativo dominante" (Stoer, Stoleroff e Correia, 1990), é construída geralmente por referência a sistemas económicos mais desenvolvidos, modernos e competitivos, forjando-se deste modo um efeito mimético, que parte dos 241 países periféricos em direcção aos países do centro do sistema económico mundial, efeito este que vai moldando novas políticas nacionais "consensuais" de educação e de formação. Estes consensos gerais e abstractos, traves mestras e indeléveis dos referidos discursos, fomentam a existência de um clima de opinião que se revela particularmente útil na formulação das políticas educativas nacionais, quer pela sua capacidade de atracção e de criação de convergência entre a diversidade de opiniões e os conflitos de interesses em presença quer pela sua inerente capacidade de ocultação dessa mesma diversidade e desses mesmos conflitos. Como assinala Popkewitz (1988), as retóricas reformadoras no campo educativo são muito sensíveis a estes consensos gerais. Entre as principais correntes ideológicas que subjazem ao desenvolvimento dos sistemas educativos, também J.L. Garcia Garrido identifica, para além do nacionalismo e do optimismo escolar, a concepção progressista ou desenvolvimentista. Segundo a sua formulação, o desenvolvimento do homem ou da sociedade são concebidos numa ordem fundamentalmente materialista que situa os sistemas escolares e as instituições que os compõem numa atitude de serviço prevalecente, quando não exclusivo, ao progresso económico e ao bem estar material das sociedades e dos indivíduos (Garrido, 1996:21). Desenvolveu-se, assim, o que Roberto Carneiro apelida de "modelo industrial de educação", ou seja, sistemas escolares inspirados no sistema económico de referência e cuja "missão suprema" era apoiá-lo, "sem ousar beliscar na sua inexorável marcha" (Carneiro, 1996:38). A expansão dos sistemas escolares ancorou-se, em grande parte, nesta outra componente do modelo cultural moderno: a educação escolar é, antes de mais, um instrumento decisivo do crescimento económico, identificado como privilegiado para a difusão e aceitação da racionalidade económica, da eficiência produtiva, do progresso técnico e da unificação social pelo 242 consumo. As teorias do desenvolvimento sustentaram-se nesta base ideológica e os seus compêndios encheram-se de cálculos de taxas de rentabilidade do investimento educativo, provando à saciedade os retornos aos respectivos financiamentos (Carneiro,1996). A ideologia do capital humano, a sua enorme expansão e o seu vastíssimo e hegemónico poder, inscreve-se como a “joia da coroa” da própria expansão da ideologia mais vasta da modernização, um consenso geral abstracto que serviu de arco ideológico de sustentação da expansão da escolarização ao longo da segunda metado do séc. XX. Finalmente, refira-se que, acoplada a este bloco ideológico desenvolvimentista, sempre surgiu a defesa da expansão da escolarização como instrumento de reforço da cidadania e da democracia. De facto, os sistemas de ensino e formação cresceram também sob uma legitimação política generalizada, decorrente da crença no facto da escolarização contribuir para formar cidadãos mais críticos, participativos da vida social, mais livres, conscientes dos seus direitos e respeitadores dos direitos dos demais concidadãos. Estes direitos e estas capacidades eram politicamente tomadas, contudo, como valores colectivos que o sistema escolar estaria apto a formentar. A evolução do sistema económico mundial Outros autores enfatizam também a emergência dos modelos educacionais mundiais estruturados no quadro da evolução do mercado mundial capitalista. As mudanças que ocorrem nos países em desenvolvimento e que visam a adaptação dos sistemas educativos locais ao processo de internacionalização homogeneizadora, devem ser vistas, segundo Adick, "no mais amplo contexto de dominação crescente dos sectores modernos da economia e da sociedade no processo da sua integração na sociedade 243 mundial moderna". Para esta perspectiva da teoria do conflito, a escola moderna, sendo parte do sistema mundial moderno, é expressão do modo capitalista de produção, por essência globalmente expansivo. Assim, a expansão daqueles modelos educacionais transnacionais não é neutra, antes corresponde a processos de dominação da cultura "ocidental", que mais não são do que a própria expansão do "unilateralismo capitalista" (Adick,1993). A esta perspectiva deve acrescentar-se a precisão introduzida por Morin e Nair (1997), a saber, é o liberalismo económico que se mundializa, não é o capitalismo na sua versão social, mais ou menos keynesiana. O que quer dizer que as políticas que fomentaram os modelos sociais assentes num "compromisso histórico" entre capital e trabalho, bem presentes no palco europeu, estão a ser postas em causa pelo processo de globalização económica em curso. Também Ginsburg e Cooper (1991) analisam os movimentos reformadores em diversos países e concluem que existem dinâmicas paralelas na educação, ocorrendo em diferentes países, aproximadamente ao mesmo tempo. Os autores relacionam-nos com "movimentos transitórios no seio do sistema económico mundial" e sustentam que só uma leitura global e local da crise da economia capitalista e da crise de legitimação do Estado permitem contextualizar devidamente quer as retóricas quer as acções reformadoras nacionais. Os movimentos de reforma educativa que ocorrem em países muito diferentes, desde meados dos anos 70, devem também ser inscritos num "período de recessão global ou de crise no sistema económico mundial" (Ginsburg e Cooper,1991:376), devendo ser lidos também num contexto global. Segundo esta perspectiva, se há problemas propriamente educativos a resolver, normalmente lá continuarão por resolver no essencial, uma vez 244 concluídas as reformas. Assim, tendo presente a prevalência do referente económico, os movimentos reformadores na educação derivam também de um "trabalho ideológico" desencadeado pelos grupos sociais em tensão, pelos decisores políticos e pelos actores sociais, que transfiguram problemas e conflitos sociais, económicos e políticos em problemas do foro educativo. Estes passam a carecer, assim, de reformas urgentes e vastas, muito mais urgentes e vastas do que as reformas de que continuam a carecer as estruturas básicas da economia ou do Estado. Cremos, no entanto, que é, sobretudo, um certo discurso macro-económico que prevalece a nível internacional e é veiculado pelas grandes organizações internacionais (a que nos vamos referir já de seguida), como um bloco ideológico e uma retórica política que actuam como legitimadores de um sem número de reformas empreendidas aqui e ali, por todo o mundo. Esta retórica, formulada com base num contexto de incerteza, que predomina quer no que respeita à evolução das taxas de juro e de câmbio quer quanto às perspectivas de crescimento económico e de endurecimento da concorrência internacional, confere superioridade a um "novo modelo produtivo" emergente e flamejante, o modo de produção pós-fordista, e torna mais eficiente a adesão a princípios retóricos e, em parte, a-históricos, como a inovação permanente, a empresa comunicante, polivalente e organizada em rede, que vende produtos de alta qualidade e de alto valor acrescentado no mercado mundial, e que requer inapelavelmente altas qualificações, garantindo altos salários e preservando em geral o emprego (Boyer, 1994). Muitos destes princípios são exactamente os que são transfigurados em axiomas ideológicos que, em qualquer parte do mundo, acentuam a necessidade de reformas tendentes a desespecializar e integrar os cursos e os programas escolares no ensino secundário, moldando fortemente as recentes reformas educativas europeias. Passando por cima das reais, e por vezes socialmente inquietantes e 245 conflituosas, segmentações do mercado de trabalho e mergulhados numa grande vaga de imprevisibilidade sobe a evolução do trabalho, do emprego e da sociedade, os governos, os sindicatos e as associações patronais tendem, mais do que nunca, a tomar como referentes securizadores e seguros os traços de uma retórica, enunciada antes de mais no plano internacional, acerca do presente e do futuro e das novas funções dos sistemas de educação e de formação. As novas dinâmicas da globalização cultural e de comunicação contínua, “on-line”, entre as várias partes do mundo, não fazem mais do que acelerar e precipitar a adopção da vaga ideológica do pós-fordismo, da flexibilidade, das “novas” competências, em qualquer parte do globo. Como já se explicitou neste capítulo, esta retórica tende a subsumir-se, hoje, no "slogan" da globalização (como antes se subsumia no da modernização), como a palavra-chave que abre todas as portas para a explicitação da evidência da ascendência da dimensão económica entre as dimensões que podem estar a influenciar as recentes reformas do ensino secundário. O sistema de comunicação científica A disseminação da semântica da modernização e do correspondente modelo de escola moderna também não teria sido possível sem o recurso a uma infraestrutura social e institucional assegurada por um sistema internacional de comunicação e publicação no domínio das ciências sociais e da educação. Organizações internacionais que operam em grande escala, tais como a OCDE, a UNESCO ou o Banco Mundial, fornecem orientações "para um imenso estabelecimento educativo internacional" (Schriewer,1995:13)26. Por outro lado, poderosas companhias multinacionais de edição controlam a 26 No ponto seguinte será dado especial relevo à acção prolongada das organizações internacionais. Aqui são apenas consideradas a par de outros agentes de activação da comunicação científica sobre educação e formação, à escala 246 produção e a distribuição dos resultados das pesquisas em educação. Mais recentemente, a Internet veio acelerar e facilitar os fluxos de comunicação e de divulgação também no campo científico. Desde 1925, o Bureau International d´Éducation - BIE tem apoiado os estudos comparados e a disseminação de informação no domínio da educação. O BIE tornou-se, em 1929, a primeira organização intergovernamental a operar neste domínio, tendo passado a fazer parte integrante da UNESCO, desde 1969. As suas edições bibliográficas especializadas sobre temas de actualidade, as suas avaliações regulares sobre acontecimentos em curso, a sua rede internacional de informação sobre educação e a organização bienal da Conferência Internacional da Educação, em Genebra, constituem os elementos que lhe permitem contribuir de modo particular para a comunicação científica internacional no domínio da educação. Fora do âmbito específico das grandes organizações internacionais operam associações autónomas e não-governamentais cuja relevância, no campo da educação, é mundialmente reconhecida. Após a II Guerra Mundial, nos EUA, constituiu-se a Comparative and International Education Society, em 1956 (com a designação inicial de Comparative Education Society of America), em 1961, em Londres, formou-se a Comparative Education Society in Europe e, em 1970, no 1º Congresso Mundial de Educação Comparada, no Canadá, formou-se o Conselho Mundial das Sociedades de Educação Comparada. Estas associações desde cedo apostaram na edição de publicações periódicas que se tornaram incontornáveis referências para qualquer investigador do mundo da educação e da formação, em qualquer parte do mundo. Em 1957, surgia a Comparative Education Review e, em 1964, a Comparative Education. Em 1959 criou-se também a International Evaluation of Educational internacional. 247 Achievement - IEA, entidade que se imporia internacionalmente pelos seus estudos internacionais sobre os resultados e o desempenho escolar dos alunos em áreas disciplinares específicas. Estas grandes associações internacionais serviram de modelo à criação de muitas outras associações regionais e nacionais, algumas delas fora do âmbito hegemónico da expressão anglófona, como é o caso da Association Francophone d´Éducation Comparée, criada em 1973, e as suas edições constituiram modelos para dezenas de outras publicações internacionais e nacionais. Apartir de 1970, os Congressos Mundiais de Educação Comparada tornaram-se importantes foruns mundiais de comunicação científica, organizados nos cinco continentes, como expressão da mundialização dos estudos comparados e internacionais no domínio da educação. Este sistema de comunicação científica encontra-se bastante hierarquizado: no centro está sobretudo a produção e distribuição anglo-americana e nas áreas periféricas encontra-se a restante comunicação científica da área. Deste modo, o que é predominantemente veiculado como conhecimento científico relevante, através do mundo, está impregnado de uma visão particular do mundo que, assim, é universalizada (um exemplo marcante é o da "International Encyclopedia of Education"). Os investigadores tendem a especializar-se e a privilegiar o olhar em direcção aos centros internacionais, muito mais do que aos seus colegas nacionais, como adverte Lauglo (1995). Nas redes de comunicação científica no domínio da educação, a comunicação é predominantemente vertical e hierárquica e, portanto, desigual. Apesar de vulgarmente indexarmos ao funcionamento das modernas redes informáticas e à Internet, em particular, a horizontalidade, como característica quase matricial, é também a verticalidade que domina 248 nos fluxos de comunicação, da periferia para os centros, das outras línguas nacionais para o inglês, dos vários países para os grandes “motores de pesquisa” mundiais. O nosso argumento é o de que o sistema de comunicação científica, alargado e permanente, favorece a harmonização geral entre todos os sistemas escolares modernos. Na verdade, à medida que aumenta o número de países que, apoiados por cientistas, técnicos e pesquisadores da educação, promovem reformas educativas, os diferentes sistemas educativos tendem a mover-se na mesma direcção e a tornar-se mais homogéneos. Como referem Meyer e Kamens (1992), o que é assim veiculado como funcional, é-o em todo a parte. Nos braços deste sistema cada vez mais acelerado de comunicação científica internacional transportam-se e difundem-se ideologias. O técnico-funcionalismo é quase uma ideologia hegemónica no sistema educativo moderno, sublinham estes investigadores. O que é tido como adequado para as metrópoles centrais é-o também para as periferias. Nestas, por sua vez, é muito raro algum perito evidenciar argumentos que sustentem caminhos divergentes e, quando o fazem, vêem o seu discurso ser ignorado por ausência da legitimidade e esta é conferida quase exclusivamente ao sistema mundial institucionalizado. Vejamos, a título de exemplos, as conclusões de dois estudos empíricos. Em 1996, Pam Chriestie, no seu estudo sobre a reforma do ensino secundário (superior) na África do Sul, evidenciava o forte impacto das orientações globais contidas nas mais recentes publicações da União Europeia sobre as necessidades e interesses locais e sobre o rumo da referida reforma educativa, assinalando inclusivamente algum anacronismo daí resultante, contido na incoerência entre a retórica fundamentadora da reforma e a realidade económica e produtiva local ( o pós-fordismo de um lado e a produção taylorista do outro). Também McNeely (1995), após estudar o modo como recomendações e normas de organizações internacionais 249 trespassam e impregnam os princípios orientadores das políticas nacionais de educação, com destaque para o caso da UNESCO, conclui que o intercâmbio internacional de ideais e de informação educacional constitui uma base legitimada que sustenta a organização do sistema educativo de cada país. Idêntico papel disseminador científico-ideológico é desempenhado não só pela deslocação de muitos milhares de estudantes do ensino superior e de pós-graduação em direcção aos mesmos países do centro do sistema económico e da produção científica mundiais, que depois retornam, em parte, aos seus países periféricos de origem, mas também por congressos e seminários internacionais, encontros bilaterais entre países e por redes de peritos; de um modo mais informal, estes meios de comunicação influenciam a amplitude e a direcção das mudanças que ocorrem nos sistemas institucionais de educação. Vários autores sublinham a relevância de alguns dos referidos encontros internacionais. Vejamos alguns exemplos. Husén, Tuijnman e Halls (1992) defendem que a perspectiva de que a educação escolar é um factor primordial do progresso social e económico foi largamente veiculada, nos anos sessenta, por duas importantes conferências internacionais. A primeira teve lugar em Washington, em Outubro de 1961, sob o patrocínio da OCDE, tendo sido seguida por um eco desta, no mesmo ano, em Kungalv, na Suécia. A segunda ficou conhecida como a Conferência de Williamsburg, na Virgínia-EUA e decorreu em 1967, reunindo pedagogos e líderes políticos de todo o mundo. Neste encontro P. Coombs, apresentou, pela primeira vez, o seu célebre relatório sobre "The World Crisis in Education", exactamente um ano antes das movimentações estudantis que agitaram socialmente a Europa. Mais recentemente, pode assinalar-se, com relevância na economia deste estudo, a Conferência Internacional de Santa Bárbara-Califórnia, em 1993, 250 sobre o investimento em capital humano e a performance económica. Buechtemann e Soloff (1995), ao fazerem um balanço deste encontro, constatam que os representantes dos diferentes países se confrontavam com os mesmos desafios, dentro daquela temática geral, e assinalam que a crescente “generalização” do ensino e da formação constituiu uma "preocupação central" dos conferencistas. Podem considerar-se, assim, seis tipos de facilitadores da comunicação e da cooperação que actuam internacionalmente em matéria de construção de referentes sobre educação escolar. Em primeiro lugar, existem as associações internacionais e as redes de peritos. Entre elas destacam-se as já referidas Associação Internacional para a Avaliação do Rendimento Escolar - IEA e o Conselho Mundial das Sociedades de Educação Comparada. Um segundo tipo é constituído pelos seminários e conferências internacionais, subdividido entre iniciativas regulares e iniciativas irregulares. Entre as primeiras destaca-se a já referida Conferência Internacional da Educação, institucionalizada pela UNESCO e que se desenrola em Genebra, e entre as segundas pode referir-se, além das já citadas, a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, que decorreu em Jomptien, em 1990. Um terceiro tipo resulta da deslocação anual de estudantes dos países periféricos para o centro, para efeitos de graduação, e do seu retorno aos países de origem. Um quarto tipo é o que consiste na edição de publicações de difusão e impacto mundial, que se devem subdividir em relatórios internacionais, em enciclopédias e em indicadores estatísticos. Como exemplos proeminentes refiram-se, respectivamente, a "Crise Mundial da Educação" de Philip Coombs, com edições em 1968 e 1985, a Enciclopédia Mundial de Educação e a Enciclopédia Internacional de Educação, a publicação referente aos indicadores estatísticos da OCDE, "Olhares sobre a educação" ou as publicações similares da UNESCO ou da União Europeia (“Os números-chave da educação na União Europeia”). O quinto tipo de 251 facilitador é constituído por programas institucionalizados de cooperação internacional, bilateral e multilateral, desenvolvidos por quase todas as organizações internacionais que operam neste domínio do ensino e da formação e que movimentam avultados recursos financeiros e fazem circular sobre o planeta e intercomunicar continuamente milhares de especialistas de diversas partes do mundo. Na União Europeia, este tipo de acções é particularmente relevante, desde meados dos anos oitenta. O sexto e último é o das redes electrónicas de comunicação, entre as quais se destaca a Internet. Este meio tornou-se, em poucos anos, um poderoso instrumento facilitador da intercomunicabilidade a nível mundial. Sendo usada como uma rede de comunicação horizontal entre investigadores e demais interessados na problemática educativa, a Internet não escapa a um fluxo dominante do centro para a periferia, embora em interconexões novas, cujo alcance dificilmente se vislumbra na actualidade. A comunidade científica internacional exerce, em resumo, um duplo e relevante papel na institucionalização dos modelos educacionais transnacionais: por um lado, porque, de uma perspectiva técnica, geram pessoal qualificado, dados e técnicas, concebem modelos de investigação e produzem publicações; por outro, porque formulam concepções teóricas da educação enquanto "instituição abstracta, estandartizada e racionalizada, concepções essas que fazem com que o estudo comparado pareça útil e necessário (Hüfner, Meyer e Naumann, 1992), o que internacionaliza, ipso facto, a instituição educativa. A acção prolongada das organizações internacionais e o caso da UE Uma certa conformidade estrutural e o isomorfismo organizacional dos sistemas de educação escolar no mundo têm sido igual e particularmente 252 assegurados, na segunda metade do Séc.XX, pela acção prolongada de organizações internacionais. Entre elas avultam a UNESCO, o Banco Mundial, a OCDE, o Conselho da Europa, fundações filantrópicas como as Fundações Ford, Rockfeller e Carnegie ou a Fundação Europeia da Cultura, bem como as suas respectivas redes de assistência técnica internacional. As organizações internacionais adquiriram grande importância na promoção de investigações comparadas sobre educação (Hüfner, Meyer e Naumann, 1992), contribuindo deste modo para a "construção científica" da educação. Elas funcionam como uma espécie de "transportadoras" organizadas dos modelos mundiais, exercendo uma real pressão global em ordem à harmonização. Vários autores assinalam a influência das organizações internacionais sobre as políticas educativas nacionais. No caso português, podem referir-se, por exemplo, Sacuntala de Miranda (1981), Stoer, Stoleroff e Correia (1990). Mas, raramente esta influência é considerada de modo dinâmico. Na verdade, é no movimento de referências internacionais recíprocas que se gera a mundialização da educação. Não há apenas um movimento de fora para dentro, ainda que dotado do poder que vem do centro para a periferia, existe um importante movimento de dentro para fora, destinado a captar significação complementar. Vejamos, sucintamente, alguns traços mais salientes da acção das organizações internacionais, com particular ênfase para o caso da Comissão Europeia. A OCDE influenciou particularmente a região europeia, americana e a área do Pacífico Ocidental, enquanto que os organismos das Nações Unidas, com destaque para o Banco Mundial e para a UNESCO, influenciaram sobretudo os países em vias de desenvolvimento. Nas últimas três décadas, estas organizações expandiram a ideologia da modernização, sublinhando sobretudo os efeitos positivos dos investimentos em educação sobre os aspectos demográficos, sanitários, sobre a alfabetização, a esperança de 253 vida e os comportamentos de consumo. Além dos sistemas educativos nacionais terem evoluido com bastante homogeneidade, evoluiram também com um notável optimismo associado. Este baseia-se na crença de que "as pessoas educadas transformam a estrutura de oportunidades da sociedade" (Meyer,1992a). Para a apropriação deste conceito muito contribuiram os estudos monográficos incidindo sobre um só país, além dos estudos analíticos e estatísticos destas pan-organizações. Com a queda do Muro de Berlim e do império soviético o seu alcance tornou-se planetário e global. A prática de publicação sistemática de estudos monográficos nacionais sobre a educação havia sido iniciada pela OCDE, após deliberação tomada em 1961, tendo-se publicado já várias dezenas de "Exames às Políticas Nacionais de Educação", que se têm revelado particularmente significativos na sua capacidade de influenciar o continente europeu. Hüfner, Meyer e Naumann (1992), muito pertinentemente, sublinham que os estudos monográficos nacionais são um bom exemplo dos modos de construção de um sistema educativo mundial e isto por dois motivos. Por um lado, a sua elaboração orienta-se por um conjunto aparentemente invisível de conceitos e de noções partilhadas e são comuns nas suas normas; por outro, os seus resultados são mobilizados para sustentar conclusões gerais sobre política educativa. A OCDE, além destes estudos monográficos, desenvolveu vários programas e múltiplas actividades. Em 1968, criou o CERI - Center of Educational Research and Innovation, com sede em Paris, organismo que desenvolve uma intensa actividade no domínio dos estudos internacionais sobre educação e formação, alimentando ao longo dos anos um caudal bastante intenso de publicações em inglês e françês. Recentemente, a OCDE promoveu, por exemplo, uma actividade internacional de reflexão sobre os novos rumos do ensino técnico e da formação profissional, face às mudanças verificadas tanto na economia como na procura social (VOTEC, 254 era a designação da actividade). Desde 1989 e durante cinco anos, reuniram-se peritos dos vários continentes numa série de Seminários realizados sequencialmente na Suiça, nos EUA, em Portugal e em França, além de se terem escrito e divulgado vários documentos elaborados por especialistas na matéria, alguns dos quais seriam publicados posteriormente como documentos oficiais da OCDE, alguns dos quais foram entretanto traduzidos noutras línguas que não o inglês e o francês. A UNESCO é a organização que há mais tempo fomenta a cooperação internacional no domínio da educação. Entre outras iniciativas de âmbito internacional, promove regularmente a já citada Conferência Internacional da Educação, iniciativa que reune muitos ministros da educação, peritos e organizações nacionais e internacionais, de mais de cento e vinte Estadosmembros. Para Juan Luis Camblor (1989) esta Conferência é um observatório mundial acerca do estado de saúde da educação a nível planetário. A Conferência de 1986, por exemplo, debruçou-se sobre o ensino secundário, temática aliás recorrente nestas iniciativas, e adoptou uma significativa recomendação (nº75) dirigida aos ministérios da educação nacionais e relativa ao “melhoramento do ensino secundário, nos seus objectivos, conteúdos, estruturas e métodos”. Além disso, a UNESCO mantém fluxos internacionais regulares de seminários e de publicações sobre educação (ex. a revista “Perspectives”, publicada em três línguas) e suporta a existência de organismos que actuam ampla e activamente no campo da educação e da formação, como o Instituto Internacional de Planeamento da Educação (Paris) e o Instituto para a Educação (Hamburgo) e os organismos de coordenação regional (continental) da Unesco. A educação moderna, como instituição mundial altamente estandartizada, deve muito ao labor de comparação promovido, anos a fio, por estas 255 estruturas organizativas, que souberam aliar à ajuda financeira a assistência técnica. Mesmo na União Europeia, onde a área da educação tem estado relativamente ausente das fortes dinâmicas de harmonização em curso no plano da economia, dos mercados ou do sistema monetário, vários são os autores que reconhecem haver uma certa "desnacionalização", a começar exactamente pela área do ensino e da formação profissional. Na economia desta investigação importa perceber mais pormenorizadamente como é que as tendências reformadoras assinaladas são de certo modo veiculadas e ampliadas no palco europeu. A. Costa Rico (1995) constata a existência, na década de noventa, de uma maior convergência do que no passado, apontando para tal o que designa como o "projecto educativo europeu", ou seja, um conjunto articulado de programas de financiamento comunitário na área da formação e de animação de intercâmbios e de parcerias, que vão configurando sistemas escolares nacionais cada vez mais aproximados entre si. Husén, Tuijnman e Halls (1992) assinalam o ano de 1989 como o início de uma fase de harmonização entre os sistemas escolares da União Europeia, processo este orientado, mais do que por qualquer determinação formal, por uma espécie de "agenda oculta" (Husén, 1992). Para esta contribuem o ajustamento estrutural da economia e dos mercados de trabalho e, sobretudo, o seu efeito de arrastamento sobre outros domínios sociais, entre os quais está necessariamente a educação e a formação. Como refere Husén, mesmo que o objectivo não esteja explícito, alguma harmonização se terá de produzir e, se é verdade que no campo escolar as resistências culturais se manifestarão, não é menos importante contar com os efeitos nacionais da adopção pelos vários países de princípios e práticas, económicos e políticos, ora comuns ora convergentes. Ainda antes da celebração do novo Tratado da União Europeia entre os 256 países da Comunidade Económica Europeia, que teve lugar em 1992, desenvolveram-se muitas actividades de cooperação nestes domínios. O Tratado de Roma, de 1957, incluía três artigos relativos à problemática educativa, todos eles centrados ou na necessidade do reconhecimento mútuo de diplomas e de certificados, ou na importância do estabelecimento de princípios gerais para uma política comum de formação profissional,como refere o artigo nº 128. Tanto este enunciado normativo como as políticas de concretização que se lhe seguiram evidenciam o facto de prevalacer, desde o início, uma concepção duplamente redutora da acção comum no campo educativo, uma vez que este se restringe à formação profissional e esta visa apenas promover o ajustamento dos recursos humanos dos vários países ao mercado comum em expansão. Em todo o caso, o processo de cooperação foi lento. Só em 1963 é que o Conselho adoptou a primeira decisão relevante, estabelecendo uma série de princípios para a elaboração de uma política comum de formação profissional, e a primeira reunião dos Ministros da Educação dos países comunitários apenas se realizou em 1971. O relatório Janne, "Pour une politique commune de l'éducation", elaborado em 1973 por um grupo de peritos na sequência desta reunião, representa uma primeira e importante iniciativa no sentido de reorientar os esforços de cooperação para o campo educativo mais vasto, evitando separar ensino e formação profissional. O segundo surgiria em 1974, na resolução dos Ministros da Educação sobre "Cooperação no sector educativo". No entanto, só em 1976 é que o Conselho e os Ministros da Educação, reunidos em conjunto, adoptam o "Primeiro Programa de Acção da Comunidade Europeia em Educação" e criam um Comité de Educação com carácter permanente. Dados estes vários passos, a cooperação em matéria de educação e formação queda-se sempre como uma dinâmica a desenvolver entre os 257 Estados membros, não envolvendo os principais orgãos comuns de decisão. Além disso, expressa-se com muita clareza o respeito pelas especificidades nacionais e esconjura-se com rigor e veemência o objectivo da harmonização de políticas. Entretanto, só na segunda metade dos anos oitenta é que se viriam a dar passos mais acelerados na cooperação em matéria de educação e de formação. Em 1980, cria-se a rede de informação em matéria de educação, a Eurydice, em 1981 a área da educação migra da DG XII, onde estava alojada há dez anos, para a DG V, onde cohabita com a formação, os assuntos sociais e o emprego, em 1983 é revisto o Fundo Social Europeu e em 1986 celebra-se o Acto Único Europeu. Apesar do longo caminho percorrido, a educação continuava a não constituir um terreno de acção comum e a formação profissional permanecia sobredeterminada pela dependência face à evolução do mundo do trabalho e das necessidades do mercado de emprego. A rede de informação sobre educação Eurydice tem vindo a desenvolver um importante trabalho ao nível dos estudos comparados. Particularmente após 1992, têm sido produzidos diversos estudos temáticos comparados, por exemplo nos domínios dos segmentos da educação pré-escolar e do ensino primário e das temáticas do tempo escolar, da formação de professores, do combate ao insucesso escolar, da administração e do financiamento dos sistemas educativos. Além disso, a rede Eurydice, em cooperação com os serviços da Comissão, possui a base de dados Eurydos e tem vindo a publicar, nos últimos anos, grossos volumes de descrição comparada das estruturas dos sistemas de ensino e de formação inicial de todos os Estados membros e, mais recentemente, um importante e novo anuário de estatísticas-chave sobre a educação na Europa. Este labor, que conta, em cada país, com uma Unidade Nacional da rede 258 Eurydice, desempenha inevitavelmente um silencioso e contínuo efeito de aproximação de discursos e de procedimentos, de eleição comum de prioridades e de definição comum de políticas. A cidadania europeia, consagrada no Tratado de Maastricht, constrói-se também nesta rede de informação, o que representa, convém sublinhá-lo, um enorme esforço de superação de tensões e conflitos entre países e culturas nacionais, superação esta que sustenta, por sua vez, a formação de novos círculos, cada vez mais largos, de uma política educativa comum, ou seja, a lenta institucionalização de um sistema educativo europeu. Por outro lado, existe um permanente vaivém entre peritos de todos os países da UE, que se encontram à volta das mais variadas mesas, para debater aspectos particulares e gerais das políticas de educação e de formação. Tece-se, paulatinamente, uma malha de relações pessoais e institucionais que consolida um tecido comum. A própria criação permanente de parcerias inter-nacionais, financeiramente suportadas pela União, no âmbito dos mais variados programas, de que se destacam, desde 1995, o Sócrates e o Leonardo, reforça enormemente esta tessitura, só na aparência totalmente desorganizada e desconexa. Mas, talvez seja este o processo que mais eficientemente contribui para viabilizar uma construção identitária comum, nomeadamente pelo facto de assim, neste aparentemente ingénuo funcionamento em rede, se facilitar a libertação do jogo de tensões e de conflitos, sempre latente, sem que isso corresponda a qualquer espécie de imposição de mandatos e normas, que rapidamente conduziriam a impasses mais ou menos insanáveis. Refira-se ainda um conjunto de esforços da Comissão Europeia, através da DG XII, no sentido do fomentar a realização de estudos e investigação nos domínios da educação e da formação. A decisão do Conselho que aprova 259 esta iniciativa27, atribui-lhe os objectivos de "apoiar os Estados membros nos seus esforços para reforçar os laços entre a investigação, a educação e a formação, melhorar os seus sistemas de educação e de formação graças à investigação e à difusão de boas práticas e da inovação" (Comission Européenne,1996). financiamento Os campos distribuem-se específicos curiosamente que por serão objecto importantes de domínios altamente potenciadores de harmonização internacional, a saber, (i) a eficácia das políticas e das acções e a unidade e a diversidade europeias, (ii) os métodos, os instrumentos e as tecnologias, qualidade e inovação em matéria de educação e de formação e (iii) educação, formação e crescimento económico. Entretanto, prosseguiram os esforços tendentes à harmonização das qualificações e dos diplomas, tendo em vista facilitar a circulação do mão-deobra no espaço europeu. Apesar de remontarem aos anos sessenta os primeiros trabalhos tendentes ao estabelecimento de sistemas de reconhecimento mútuo de diplomas, demorou dezasseis anos a estabelecer a directiva para os farmacêuticos e dezoito para a dos arquitectos, isto no âmbito das profissões regulamentadas, e só em 1988 é que o Conselho adoptou a primeira directiva geral sobre os diplomas do nível pós-secundário (Directiva do Conselho 89/48/CEE), tendo a segunda directiva sido adoptada apenas em 1992, após um muito longo e penoso processo de negociação. A segunda metade dos anos oitenta é a época dos progamas de cooperação no domínio da educação e da formação: em 1986 surge o COMETT, para a cooperação universidade e empresa, na formação no campo das novas tecnologias; em 1987, surge o ERASMUS, para a mobilidade entre os estudantes e professores universitários; no mesmo ano surge o PETRA, para apoiar a preparação de jovens para a inserção na vida adulta e profissional; 27 Trata-se do âmbito II do programa TSER, de 15 de Dezembro de 1994. 260 em 1988, surgem o DELTA, para o desenvolvimento da aprendizagem através do avanço tecnológico e o YES para a Europa, destinado ao intercâmbio de jovens; em 1989 surgem o LINGUA, para o fomento da aprendizagem das línguas estrangeiras, o FORCE, para estimular os investimentos na formação profissional, a rede NARYC, para incentivar o reconhecimento de títulos e créditos académicos entre os Estados membros e o EUROTECNET, para fomentar a inovação tecnológica no domínio da formação profissional. Se é certo que estes programas e os esforços financeiros que os sustentaram representaram um significativo incremento da cooperação europeia em termos de educação e formação, é forçoso referir, por um lado, que a sua criação não foi pacífica, tendo deflagrado conflitos que o Tribunal de Justiça foi chamado a derimir e, por outro lado, que se manteve e reforçou a perspectiva economicista na abordagem da cooperação em matéria de educação. Dois elementos, entre outros, sustentam esta perspectiva: (i) a própria decisão do Tribunal de Justiça, que viabilizou o arranque dos dois primeiros programas mencionados, e que se teve de refugiar na sustentação de que se tratava de cooperação enquadrada na política comum de formação profissional (Tratado de Roma, de 1957); (ii) na reorganização da Comissão Europeia de 1989 as questões educacionais foram enquadradas da novo em uma "Task-force" relativa a "Recursos Humanos, educação, formação e juventude". Após a crise económica dos anos setenta e face à sua prevalência e acentuação na segunda metade dos anos oitenta, mormente perante o crescimento do desemprego juvenil e a perda de competitividade internacional da economia europeia, a retórica e as práticas comunitárias em matéria de educação subordinaram-se crescentemente à sua funcionalidade económica imediata, embora nunca se tenha perdido de vista a reafirmação da importância da educação na construção da coesão social europeia. Entretanto, foram sendo criados diversos organismos que viabilizavam e ampliavam o efeito desta política comunitária. Entre eles está o Comité 261 Consultivo para a Formação Profissional, que reúne os parceiros sociais e emite pareceres e recomendações, a criação de um Grupo de Trabalho do IRDAC- Comité Consultivo para a Investigação e o Desenvolvimento Industrial, especificamente destinado às questões da educação e da formação, na sua ligação com o desenvolvimento industrial e a competitividade, que emite pareceres e elabora relatórios difundidos em larga escala nas várias línguas da União, o Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação Profissional-CEDEFOP, que exerce uma importante acção quer de estudo e de comparação entre os sistemas nacionais quer de elaboração de sistemas de correspondência e comparabilidade de qualificações. Mas é efectivamente à assinatura do Tratado da União Europeia (1992), que se deve uma viragem (Nóvoa,1995 a; Rico, 1995; Garrido,1996) no modo de encarar as problemáticas da educação e da formação na construção da União Europeia. O anterior Título III que se dedicava à “política social” foi substituído pelo novo Título VIII sobre “política social, de educação, de formação profissional e de juventude” e, no seio deste, o capítulo 3 refere-se à “educação, formação profissional e juventude”. O Tratado constitui uma peça chave nesta evolução ao consagrar aqui, nos seus artigos 126º (educação) e 127º (formação), uma dimensão europeia para a educação e para a formação profissional, incentivando a cooperação entre os Estadosmembros, criando espaço para a intervenção da União no apoio e no complemento à acção destes Estados e contribuindo para o desenvolvimento de uma educação de qualidade à escala europeia. Criou-se, deste modo, um terreno político propício para a germinação de uma gama muito mais vasta de actividades e para uma cooperação mais profunda. Corolário desta decisão são os Livros Brancos da Comissão Europeia sobre "Crescimento, Competitividade e Emprego", de 1993 e sobre "Ensinar e Aprender. Rumo à Sociedade Cognitiva", de 1996, a declaração, em 1995, do ano 1996 como “Ano Europeu da educação e da formação ao longo da vida”, bem como os 262 novos programas comunitários Leonardo (formação profissional) e Sócrates (educação). Para além dos Estados nacionais, crescem dinamismos metanacionais que condicionam e configuram em grande parte as políticas nacionais de ensino e de formação. O Programa Leonardo da Vinci, relativo à cooperação no domínio da formação profissional na União Europeia, engloba actividades antes dispersas pelos Programas FORCE, COMMET, PETRA, EUROTECHNET, IRIS e o programa Sócrates, relativo à cooperação no domínio da educação, agrupa actividades anteriormente contidas nos programas ERASMUS, LINGUA, nas redes EURYDICE E NARYC. Este Programa, dotado de avultadas verbas para o período entre 1995-1999, reforça e torna mais próximas as políticas educacionais, na senda do Tratado de Maastricht e dos Livros Brancos. As redes de cooperação que entretanto se desenvolveram entre os Estados-membros da União tecem malhas de significados e de representações, poderosas interconexões de pensamento, em que os diversos intervenientes de diversos países vão desenhando redes complexas de objectivos, planos e projectos, necessariamente interligados, forjando assim bases europeias para a orientação dos sistemas nacionais de educação e de formação. Como oportunamente assinala Chisholm (1995), há conceitos (como mobilidade, competitividade, coesão social) que lentamente se vão tornando conceitos políticos-chave, que informam e enformam as políticas comunitárias e nacionais. Apesar da lentidão da evolução da cooperação comunitária em matéria de educação, os programas bi e multilaterais constituem instrumentos efectivos e poderosos factores de harmonização entre os Estados membros da União. As inúmeras séries de projectos já desenvolvidos, as parcerias concretizadas e os consórcios entre regiões já efectivados contribuem de vários modos neste sentido. Por um lado, pelos produtos que geram, que disseminam e que entram em uso um pouco por todo o lado (bases de dados, informações, 263 dossiers temáticos, métodos), por outro, pelas redes de contactos, redes de projectos e redes de peritos, e ainda pelas análises comuns que fabricam, seja em termos de conceitos e definições, seja em termos de currículos nucleares comuns que se adoptam, seja ainda por metodologias comuns que se integram nas actividades (Gordon, 1995). De uma tentativa demorada e pouco sucedida para criar sistemas completos e complexos de correspondência e comparabilidade entre certificados e sistemas nacionais de educação e formação, caminha-se para a via da "transparência", ou seja, procura-se compreender o diferente, transmitir e trocar informação, construir uma miríade de pequenos projectos comuns multilaterais, sob o efeito de um "ideal regulador" (Nóvoa, 1995a) das políticas nacionais dos diversos Estados-nação. É o que sustenta igualmente Hargreaves (1989) quando, ao analisar o impacte das deliberações comunitárias em matéria de ensino e de formação profissional sobre a evolução das respectivas políticas no Reino Unido, assinala a existência de nítidas ligações entre ambas as políticas, a comunitária e a nacional. Embora, como refere, estas ligações não sejam evidentes na literatura oficial, elas estão presentes para além desta, nas políticas concretas que se formulam e executam ao longo dos anos. Garcia Garrido (1996) antevê, por força da janela que se abriu com o Tratado da União Europeia, um panorama futuro bem diferente do existente até então. Dentro de algum tempo, prognostica o comparatista espanhol, poderemos estar perante um "sistema escolar europeu", respeitador da diversidade de estruturas e da riqueza cultural existente nas nações e regiões europeias. O Conselho da Europa, por sua vez, tem vindo a desenvolver, nos anos noventa (1991-1996), uma importante actividade designada "Um Ensino Secundário para a Europa", tendo sido abordadas, em sucessivos simpósios e posteriormente em monografias, questões tendencialmente harmonizadoras, tais como os objectivos e as finalidades do ensino 264 secundário, a formação de professores e do pessoal não-docente, e educação multicultural ou o papel da comunidade local. Além disso, o Conselho da Europa, que se autodenomina "forum paneuropeu intergovernamental" em matéria de cooperação educacional, tem vindo a publicar estudos monográficos sobre o ensino secundário em cada um dos países membros, estudos estes que obedecem desde logo a uma matriz comum de apresentação e através dos quais perpassam tanto as diferenças nacionais como as tendências de convergência internacional. Em 1997, os ministros da educação dos quarenta e sete países do Conselho da Europa, reunidos na Noruega, culminando uma década de reflexão sobre o ensino secundário, adoptaram uma recomendação específica e comum sobre este nível de ensino, convictos de que "a cooperação educativa na Europa pode desempenhar um papel determinante para fazer face aos novos desafios (a aceleração e imprevisibilidade das mudanças económicas e tecnológicas, o multiculturalismo e os perigos da intolerância, o cepticismo e a apatia face à vida política), no respeito pelos valores fundamentais comuns" (Conselho da Europa, 1997:9). As associações filantrópicas privadas também estão na primeira linha desta construção, mormente após a sua cimeira em Bellagio-Itália, em Maio de 1972, pois promovem e mantêm redes internacionais de peritos e programas de assistência técnica, que tornam mais activamente presente o sistema educativo mundial. Na Europa destacamos, por exemplo, a Fundação Europeia da Cultura, instituição que apoia organismos e institutos de investigação, redes de informação europeias sobre educação e a edição de livros e revistas sobre educação e formação, e a Fundação Van Leer, que apoia projectos locais de desenvolvimento da educação, em vários países do mundo. Em síntese, a acção contínua e prolongada das organizações internacionais que operam no âmbito educacional participa activamente na construção e na 265 acção do sistema educativo mundial.Como refere António Nóvoa , "trata-se, por um lado, de construir categorias de pensamento, de organizar linguagens, de mostrar soluções que se tornarão esquemas dominantes para aproximar os problemas educativos; e, por outro lado, de agir sobre um conjunto de campos (o emprego, a formação, as qualificações, etc.) que desencadeiam reconfigurações do sistema educativo" (1995 a:18). A educação comparada e internacional No campo da educação, a interdependência internacional é um dado da história contemporânea mundial. A análise do "sistema mundial" veio sublinhar a necessidade que há em considerar o pano de fundo das relações de interdependência, que abarcam todo o mundo, para se compreenderem as macroestruturas sociais actuais. Como diz Arnove (1980), se fechamos a análise da educação no contexto nacional, falhamos a compreensão da posição do país no sistema internacional, o que equivale a esquecer um importante elemento que condiciona os efeitos dos factores económicos, políticos e socioculturais intranacionais na educação. O desenho da instituição educativa da sociedade mundial deve-se também ao labor contínuo da Educação Comparada e Internacional, fora e dentro da acção da Sociedade Mundial de Educação Comparada, dos seus Congressos e das suas publicações. E a educação é uma instituição tão internacional que os organismos nacionais académicos e de investigação têm mantido um permanente interesse pelo trabalho comparativo (Hüfner, Meyer e Naumann, 1992). A este interesse nacional há que acrescentar ainda o envolvimento das redes internacionais de peritos, as relações bilaterais entre os países e a acção do "sistema mundial de organizações internacionais". Ora, estes investimentos continuados no trabalho comparativo tornam a educação, por essa via, ainda mais uma instituição 266 mundial. Como refere C. Adick (1993), o labor analítico da educação comparada vai, em termos de longo prazo, desenhando a escola modelo como uma instituição educativa da sociedade mundial. O tipo moderno de educação, ao participar activamente na ideologia da modernização como ingrediente central do alcance do progresso, como referimos acima, tornou mais fácil e mais atractivo o trabalho comparativo. Os modelos educativos veiculados são de tal modo estandardizados e internacionais que a investigação comparada deve considerar-se elemento integrante do sistema. A diversidade de sociedades e de contextos não constitui, por isso, um entrave significativo ao labor comparativo. A complexidade está enormemente reduzida pelo teor marcadamente "homogéneo, racionalista e moderno" de que se reveste a noção de educação que é incorporada por todas as sociedades que se modernizam e progridem. Estes autores assinalam a existência de um "sistema de classificação formal estandardizado a nível mundial" que é simultaneamente resultante e produtor da análise comparada internacional. Assim, a emergência do sistema educativo mundial resulta também de um corpo de investigação que se tem vindo a acumular com base em estudos empiricamente sustentados. A investigação comparada, como campo apropriado à descoberta e à disseminação de ideias e ideologias do mundo científico e profissional, é "parte intrínseca do sistema" (Hüfner, Meyer e Naumann, 1992:366), mormente ao definir programas, ao analisar problemas e ao propor recomendações e soluções. Por outras palavras, as mudanças e os movimentos reformadores nacionais são válidos nacionalmente também porque validados internacionalmente, pela comparação e pela sua adopção, como princípios orientadores, pelos países economica e culturalmente dominantes. Mais uma vez se constata que, se é certo que as circunstâncias 267 locais determinam a adopção deste ou daquele percurso formal da educação escolar de um país, também é crucial o tomar como garantidas as virtudes do moderno modelo de educação que é espalhado por todo o mundo através de ideologias e teorias tidas em comum (Meyer, 1992). As políticas educacionais e a evolução dos sistemas educativos de uma nação são normalmente mais afectados por critérios externos estandardizados do que por critérios especificamente internos. Como se referiu, cientistas e investigadores da área da educação, encontros internacionais, redes de peritos e organizações internacionais destacam-se como veículos difusores do " consenso abstracto" de que fala Meyer (1992:23). Os modelos copiamse continuamente ao longo dos anos e das décadas e a estandardização não pára de crescer. Na última década, como vimos, várias têm sido as organizações internacionais que têm contribuído para este labor comparativo, mormente através da produção de estudos monográficos sobre os sistemas educativos nacionais, com base em grelhas comuns de análise e através da produção estatística, área em que o poder de harmonização talvez exceda qualquer outro domínio de acção internacional. Ramírez e Ventresca (1992), que analisam este processo de "isomorfismo ideológico e organizativo" e a sua surpreendente capacidade de penetração, também fazem eco da abundante literatura comparada que incide sobre as variações entre os sistemas educativos nacionais. Anotando brevemente as "interessantes descobertas" que tais estudos produziram, os autores assinalam que eles ignoram ou menosprezam as poderosas forças supranacionais que se exercem sobre os sistemas educativos nacionais e que, lentamente, vão configurando sistemas estandardizados, instituições educativas nacionais que são simultaneamente instituições educativas da moderna sociedade mundial. 268 Para Adick (1993) esta perspectiva analítica da educação comparada e internacional apresenta as seguintes vantagens: favorece uma visão histórica de longo prazo e de nível macro; adopta uma perspectiva não eurocêntrica, global e compreensiva; centra-se em torno de um objecto teoricamente bem definido, a saber, como descrever e explicar as origens e a expansão mundial das estruturas da escola moderna. A externalização dos sistemas nacionais A externalização apresenta-se como um outro modo de particular afirmação do sistema educativo mundial e de construção de homogeneidade nos sistemas educativos nacionais, ou seja, desenvolvem-se comparações com modelos estrangeiros e com situações mundiais, mobilizam-se indicadores internacionais e visitam-se outros países, no intuito de captar ideias e estímulos para o desenvolvimento da política interna. Através deste processo, de cariz político, os países recorrem, na expressão de Schriewer, a uma "contemplação transnacional". Ou seja, o olhar para fora das fronteiras próprias, para países comparáveis, constitui um acto de "absorção de significação suplementar" (Schorb, citado por Schriewer, 1995). Esta contemplação transnacional não é alheia à crise do Estado-nação (Morin, 1981, Stoer, Stoleroff e Correia, 1990; Ginsburg e Cooper, 1991). A globalização, nas suas várias facetas, veio vincar uma crise de legitimação dos Estados nacionais, sobretudo pelo modo como põe em causa e relativiza o papel das soberanias nacionais. A área económica, em particular no domínio financeiro, é a mais sensível aos ditames internacionais sobre os Estados nacionais. Como vimos, as próprias políticas nacionais tendem a enunciar-se sob o efeito e cada vez mais com a retórica típica da economia e, em particular, dos seus sectores mais competitivos. Este fenómeno de despolitização da política (Morin e Nair, 1997) tende a encerrar os 269 enunciados políticos nacionais dentro de uma mesma vaga de fundo mundial do liberalismo económico, a tecnologia geral de alcance mundial de que falavam Hüfner, Meyer e Naumann (1992). Sendo esta vaga conduzida, no caso da União Europeia, pela Comissão Europeia, e no caso mundial, pelos EUA, é provável que a externalização se apresente para muitos países como uma “atitude” intransponível e necessária, além de ser útil para a legitimação das políticas nacionais perante as respectivas populações. Entre os processos de externalização, destaca-se aqui o da produção estatística. Desde os anos setenta que existe uma acção conjugada entre a UNESCO (U), a OCDE (O) e a União Europeia (C, então Comunidade Europeia), chamada UOC, que tem como finalidade articular as temáticas e compatibilizar os procedimentos de recolha e de divulgação estatística sobre educação. Após um longo período de relativo marasmo, o projecto INES(International Educational Standards), da OCDE, veio, já nos anos oitenta, dar um novo impulso à recolha e ao tratamento estatístico de dados internacionais sobre educação e formação. Em 1994, a antiga acção conjunta ganha novo fôlego, agora sob a designação de UEO ( o E vem de Eurostat), e as agências internacionais procedem, nos anos noventa, à revisão do ISCED (International Standard Classification of Levels of Education). Nos últimos anos, a OCDE tem publicado, como produto do projecto INES, volumosos estudos estatísticos, intitulados muito sugestivamente "Olhares sobre a Educação", em que se procede a um laborioso trabalho de síntese comparativa entre os sistemas educativos dos países da organização. Em cada ano que passa, esta publicação tem um maior impacto junto da opinião pública dos países desenvolvidos, tendo-se inventariado, por exemplo, por um processo que está longe de ser exaustivo, cerca de cento e setenta notícias de jornal, em dezassete países diferentes, em torno do lançamento da edição de 1996 dos “Olhares...”, em Paris, em Dezembro de 1996. 270 Também a União Europeia, através da rede Eurydice, deu um novo impulso à difusão estatística dos dados relativos à educação e à formação, através da publicação "Les chiffres clés". É óbvio que existe, tanto no caso anterior como neste, um labor de base que é nacional, existindo células nacionais de produção estatística, adstritas e síncrones com estas unidades transnacionais. Decorrido este processo produtivo, defluem dois resultados. De um lado, o espaço de maior visibilidade e de maior valoração das estatísticas nacionais passa a ser o espaço internacional e, do outro, à medida que se desenvolve e diversifica o labor estatístico, mais cresce o campo da harmonização internacional entre os sistemas educativos nacionais. Estes tendem a adaptar e até a mudar a sua realidade para a tornar estatisticamente mais próxima e, assim, mais comparável. Schriewer identifica os três principais efeitos internos dos processos de externalização para situações mundiais: eles envolvem a minimização das diferenças socioculturais pela sugestão de uma orientação em direcção a "sociedades de referência" no plano internacional; eles objectivam os "rationale" indispensáveis às políticas reformadoras; eles neutralizam a obrigação de recurso imediato a valores ou a ideologias baseadas em valores, por referência a padrões de cientificidade. As externalizações ocorrem numa vasta trama de interconexões no seio do sistema mundial, tal como o define a perspectiva institucionalista. Com efeito, a constante externalização para situações mundiais imbrica num processo de auto-reflexão de um sistema educativo que se confronta com outros sistemas educativos e com os seus próprios processos de autoreflexão. Acumulam-se, assim, relações de observação ilimitadas interEstados que fazem emergir "uma trama de referências recíprocas que recebe a vida de si própria, movendo, reforçando e dinamizando a universalização, por todo o mundo, das ideias, modelos, padrões 271 educacionais e opções para as reformas"(Schriewer, 1995). Esta trama de processos de externalização contribui decisivamente para sustentar e legitimar, no plano nacional, acções simbólicas de reforma educativa em qualquer país do mundo. Ginsburg e Cooper (1991) referem que grande parte dos conflitos nacionais em torno das reformas educativas radica nos conflitos despoletados e explicáveis nas dinâmicas externas do sistema mundial. A retórica reformadora que ocorre em diferentes países ao mesmo tempo e com contornos tão semelhantes, como no caso da desespecialização e integração curricular no ensino secundário, requer continuamente uma contextualização no plano global, plano onde ocorrem as crises e se enunciam as políticas para a sua superação. Os processos de externalização, deve ainda referir-se, uma vez que se constituem em relação a "sociedades de referência", derivam em processos de aproximação das periferias em relação ao centro, sendo este constituído pelos países mais ricos, mais desenvolvidos e com sistemas educativos tidos como mais performantes nas comparações internacionais. No entanto, o contexto das relações que se estabelecem no plano internacional não cabem numa apreciação tão mecânica entre centro e periferia. A realidade do relacionamento inter-Estados é bem mais complexa e, advertem os institucionalistas, comporta uma multiplicidade de tipos de relacionamento que induzem um amplo leque de influências, que vai da dominação, à competição e à aliança, o que, não sendo aqui objecto de aprofundamento, se pretende assinalar devidamente. A construção do sistema educativo mundial Uma conclusão se impõe: o sistema mundial pode ser, como referimos, uma unidade pertinente de análise dos fenómenos educativos. No presente 272 estudo internacional ela revela-se particularmente importante. Segundo a teoria do sistema mundial, as macroestruturas sociais do fim do Séc. XX só podem ser adequadamente compreendidas tendo em consideração o contexto global das relações de interdependências que se intensificaram por todo o mundo de um novo modo (Ginsburg e Cooper, 1991; Schriewer, 1995). A posição de um país dentro do sistema mundial condiciona os efeitos dos factores económicos, políticos e socioculturais internacionais, tanto no desenvolvimento como no subdesenvolvimento do sistema educativo (Arnove, 1980). Albert Bergesen, citado por Schriewer, refere que, estando nós já longe dos anos 50 e das formações iniciais do sistema mundial, produzidas em torno da teoria da dependência, é agora tempo de conceber o sistema mundial como uma realidade “sui generis” que emerge como uma "realidade colectiva exógena às nações", tal como o é o mundo e o espaço mundial de que falam Morin e Nair. Nesta mudança de paradigma, prossegue Bergesen, o momento final chegará quando invertermos a estrutura de análise do sistema mundial, que vai das partes para o todo, e a orientarmos para um paradigma que vai do todo para as partes. Nesse caso, o sistema mundial teria as suas próprias leis de movimento que, por sua vez, determinam as realidades sociais, políticas e económicas das sociedades nacionais. Embora não aceitando ir, como Bergesen, ao ponto de propor a substituição da sociologia pela "globologia", ciência da "realidade colectiva da ordem mundial", cremos que este derradeiro percurso através da teoria do sistema mundial e dos modos de construção e de acção do sistema educativo mundial constitui um novo arco analítico que nos permite voltar a olhar de um modo mais consistente o problema de partida, o que faremos mais adiante, de modo mais integrado. Em síntese, a construção do sistema educativo mundial é um processo 273 histórico, em que necessariamente predominam os fluxos e os efeitos de longa duração. Esta construção social é um jogo cruzado e, em larga medida, imperceptível, de um conjunto de factores, entre os quais acabamos de destacar sete, que retomamos agora de modo resumido e global. Antes porém refira-se que estas dimensões identificam o sistema educativo mundial como um modelo sociocultural transnacional específico e entre elas estabelecem-se as mais variadas interconexões e redes de interdependências, sob a acção de diversos centros de alimentação do sistema, entre os quais destacamos a acção continuada das organizações internacionais, de fora para dentro e de cima para baixo, o sistema de comunicação científica, a educação comparada e internacional e a externalização dos sistemas nacionais para o sistema mundial, agora de dentro para fora, de baixo para cima e de perifieria para o centro28. Em primeiro lugar, a teoria institucionalista recorre ao conceito de sistema educativo mundial como um "consenso abstracto" de que se socorrem as diferentes sociedades nacionais, como elemento intrínseco e factor de enorme relevância na construção da sua modernidade. No modelo sociocultural transnacional moderno, seguido pela generalidade dos países, ao longo dos séculos XIX e XX, os sistemas escolares modernos desempenharam um importante papel como veículos sociais por excelência da ideologia do progresso social e da modernização económica, da construção da cidadania e da coesão nacional dos Estados-nação e, ainda, do optimismo inerente às perspectivas de mobilidade social ascendente, que os mesmos sistemas supostamente transportam em si. Ao exercerem este crucial papel social, os sistemas escolares seguiram sensivelmente o mesmo modelo, em todo o mundo moderno, uma tecnologia 28 Embora se tenham identificado as dimensões deste sistema e algumas das combinações e optimizações do seu funcionamento, não cabe no âmbito desta investigação proceder a um aprofundamento da sua complexidade estrutural e 274 social de alcance mundial, o sistema educativo mundial. Os Estados conduziram este processo recorrendo a um modelo cultural transnacional, praticamente idêntico em todo o mundo. Por isso, a força das reformas escolares empreendidas e a base para o incrementalismo nos investimentos nos sistemas públicos de educação não hão-de procurar-se apenas em qualquer particularismo nacional, por mais nacionalista que se apresentem as retóricas reformadoras de cada Estado, mas também nas tendências que se afirmam no sistema educativo mundial. Para a solidificação desta matriz e para a sua disseminação, processos altamente interligados, contribuem em particular, como vimos, a expansão da ideologia da modernização e a expansão mundial de modelos de escolarização, o sistema de comunicação científica, a acção prolongada das organizações internacionais, o labor dos técnicos e dos cientistas da educação comparada e internacional e a externalização patrocinada pelos poderes políticos nacionais. O rendilhado do sistema educativo mundial, tal como uma teia de aranha, é uma construção muito lenta, contínua, silenciosa e quase imperceptível, sob certos ângulos de visão mais apressada, tecido em que laboram dezenas de organizações internacionais, milhares de peritos e cientistas da educação, cerzido em centenas de revistas e de livros, na rede Internet, em comunicações e encontros que decorrem pelo mundo fora e em permanentes e prolongadas contemplações transnacionais entre os países, olhares estes predominantemente dirigidos da periferia para o centro do sistema mundial. Assim se enquadram, espalham e apoiam os padrões de institucionalização educacional, com as ideologias que os sustentam. Tudo se passa como quando olhamos para o ceú, azul e limpo, e não vemos nada mais do que um imenso azul. Todavia, invisível e estranhamente, o céu está permanentemente crivado por uma importante rede de corredores de funcional. 275 passagem dos aviões que provêm e se dirigem para vários países do planeta. Apesar de não os vermos, esses corredores existem e desempenham um papel crucial na regulação do tráfego contínuo de muitos milhões de pessoas por todo o mundo. Assim parece ser com o sistema educativo mundial. As escolas locais e os responsáveis políticos nacionais, quando lançam reformas educativas e quando olham para o seu firmamento de modelos e de ideologias, têm dificuldade em vislumbrar a acção do sistema educativo mundial. Por vezes até rejeitam a ideia da sua presença, em nome da identidade nacional e local. Mas ele não deixará, por isso, de estar presente e actuante, sendo construído inclusivamente pelas mãos daqueles que podem negar a sua acção. Apesar disso, reconhece-se que existe em cada contexto nacional um conflito específico de interesses entre grupos sociais e uma "coerência societal" nacional que importa não menosprezar. Esta assenta em tradições e culturas históricas diferenciadas, bem como em múltiplos jogos de relações entre subsistemas nacionais, tais como as empresas, a educação e a formação, o compromisso salarial e a concertação social. A perspectiva de Schriewer, a que melhor convive com a teoria do sistema mundial, que se refere à reinterpretação e reelaboração nacional das "orientações" do sistema educativo mundial, com base na interdependência nacional entre padrões nacionais específicos, é a que, em nosso entender, melhor dá conta da historicidade própria da divergência que existe no seio de um processo de homogeneização crescente. Como Cantor (1989) destaca, como conclusão do seu estudo internacional dos sistemas de ensino técnico e de formação profissional, o mais óbvio e pertinente a assinalar é o modo como cada sistema reflecte fielmente as características das sociedades de que são parte. Deste modo, ao mesmo tempo que se propaga em cascata uma retórica transnacional e o seu virtuosismo, nomeadamente em torno da emergência 276 do novo sistema produtivo, o modo de produção pós-fordista e flexível, discurso este de tipo voluntarista, optimista e concomitante com uma época de reestruturação da economia capitalista e de fragmentação das referências culturais, permanece no plano local um sem número de contradições, conflitos e modos de regulação, que divergem de país para país, que chamam à atenção para a necessidade de não trocar o desejo e o cenário transnacional pela realidade concreta das relações sociais envolventes num dado território, que apelam para uma atenção redobrada face aos efeitos preversos derivados do facto de se tomar, por vezes, como referentes fundamentais, simplificações estatísticas excessivamente liofilizadas e demasiado afastadas da espessura dos tecidos sociais locais. A convergência ideológica internacional aqui sublinhada, bem como as suas consequências no plano educativo nacional convivem, no quotidiano e nos múltiplos territórios sociais europeus, com marcadas diferenças, anteriormente também evidenciadas, desde os mercados de trabalho segmentados e sistemas produtivos diferenciados, até sistemas escolares com fundações organizacionais díspares, modos diversos de regulação da ligação escola-emprego e ainda múltiplos tipos de representações sociais e de expectativas socioprofissionais. Pelo exposto neste capítulo, é forçoso constatar-se a tensão permanente entre a força centrípeta e homogeneizadora da globalização e a força centrífuga da preservação da diversidade local e nacional. Enquanto que o sistema mundial concebe e organiza a difusão dos modelos, como sistemas sociais virtuosos (Meyer, 1993), enformadores das reformas educativas nacionais, segundo uma hierarquização que corre do centro para a periferia do sistema mundial, as elites do sistema local ou nacional desencadeiam sobretudo os processos de recepção e organizam a sua própria apropriação desses modelos. É certo, no entanto, que o seu poder e sua legitimidade se ampliam pelo recurso à retórica geral e aos modelos mundiais padronizados, gerando-se habitualmente um silencioso consenso no plano nacional diante 277 da sua virtuosidade, como que cienticizada. O "grau de estandardização global" que se atingiu nos discursos reformadores, nas medidas de política e, em certa medida, em estruturas organizacionais é tal que "talvez não exista outra área das políticas públicas, nem mesmo na economia, nem nas políticas sociais e ambientais", onde se tenha aprofundado tanto o processo de internacionalização e de globalização. Os sistemas educativos e a investigação educacional são, ainda no dizer de Schriewer, componentes desse processo "especialmente susceptíveis às dinâmicas de incremento da internacionalização" (Schriewer, 1995: 15). Importará, por tudo isto, determinar de que lugar é que se olha a diversidade nacional e local, se de um ponto de vista local, se de um ângulo nacional, se de uma perspectiva global. Nós, aqui, optamos por esta terceira via. Além disso, restará saber, o que importa investigar na análise empírica, quais os efeitos da globalização sobre a evolução dos sistemas educativos nacionais, seja pela perda contínua do referente estatal nacional seja pelo recurso crescente a retóricas legitimadoras, oriundas do espaço mundial, seja ainda pela sensação, poucas vezes explicitamente partilhada, de que os decisores políticos, à míngua de orientações e recursos para a resolução dos problemas nacionais e locais, preferem lançar processos de reforma educacional carregados de tensões entre o global e o local. Em todo o caso e retomando a metáfora do céu azul, é muito provável que não seja fácil vir a obter descrições promenorizadas e confissões profundas, por parte dos governos nacionais e dos vários actores sociais nacionais, acerca das suas atitudes de “contemplação” internacional e mundial. 279 Capítulo 4 O Ensino secundário na Europa (1945 - 1995) Ao investigarmos uma recente tendência das políticas educativas na Europa devemos, por princípio, procurar escapar às rasteiras a que a nossa brevidade histórica nos submete a cada momento. De facto, a brevidade da nossa vida deve ser compensada com a duração, o tempo que foi o de outros, porque, como diz José-Luis Garcia Garrido, “em educação, como em quase tudo, a história explica muitas coisas que aparentemente surgem injustificadas, complexas, inextricáveis” (1993:25). Os novos rumos da integração e da desespecialização do nível secundário devem passar o teste da longa duração e da temporalidade para, no fio do tempo e de um modo diacrónico, serem devidamente revistos. Tanto podem fazer parte de vagas de fundo, fios condutores e continuidades históricas, como constituirem descontinuidades, novos caminhos e rupturas, mais ou menos pronunciadas. A prova do tempo pode reconfigurar a nossa visão do problema de partida e trazer à tona da investigação contornos desconhecidos, trajectórias inimagináveis. Por isto, o segundo passo da reflexão teórica é o da reinserção do objecto seleccionado no tempo, pois só assim se lhe pode restituir, no ensejo de o conhecer, parte da sua espessura sociohistórica. A indexação do objecto ao tempo representa, portanto, um esforço de conhecimento e não uma mera formalidade processual, eventualmente dispensável. A desespecialização e a integração que ocorrem no ensino secundário superior constituem um acontecimento cuja análise requer que ele seja situado numa cadeia de acontecimentos históricos que lhe conferem sentido e, sobretudo, em novas lógicas de conhecimento que as ligações diacrónicas viabilizam. Procura-se compreender a evolução do ensino secundário superior na 280 Europa Ocidental, desde o após-Guerra (1945-1995). Mais do que uma inventariação exaustiva de dados, pretende-se discernir as principais linhas de força que condicionaram a oferta e a procura de ensino secundário, com particular realce para os percursos de ensino técnico e de formação profissional inicial, tendo presente, na medida do possível, a diversidade de modelos educativos em presença, fruto da diversidade de contextos culturais nacionais. Não se menospreza esta diversidade, antes se recorre a uma análise histórica mais geral da evolução do ensino secundário, como passo inultrapassável de inteligibilidade. A este capítulo segue-se um outro que descreve e analisa o movimento de desespecialização e de integração curricular que ocorre, nos anos noventa, em vários países da Europa. Os anos dos grandes mitos e a expansão da oferta e da procura Após o difícil período das guerras, que afectaram particularmente a Europa na primeira metade do século XX, o mundo industrial expandiu-se durante várias décadas, sem crises estruturais, tendo como principal referente geral a ideologia do progresso, em que se dava por garantido que a crescente dominação da natureza pelo homem era a verdadeira medida do avanço da humanidade, e tomando como principal referente concreto o modelo de sociedade capitalista industrial norteamericano, em que se combinavam o liberalismo económico e a social-democracia, na linha do New Deal proposto por Roosevelt (Hobsbawm, 1996). A produção mundial de produtos manufacturados quadruplicou, entre o início dos anos cinquenta e o início dos anos setenta, e o comércio mundial destes produtos cresceu dez vezes. Expandiu-se o modelo de produção industrial de massa e a economia beneficiou de uma revolução tecnológica 281 profunda que contribuiu para sustentar as décadas de ouro deste século. Eric Hobsbawm, historiador inglês, destaca três marcas profundas no defluir destes anos, na sequência da revolução tecnológica: (a) a vida quotidiana transformou-se "totalmente", com mais ênfase nos países ricos, sobretudo pela insuspeitada generalização de novos produtos técnicos como a televisão, os discos vinil, o rádio portátil, o telefone, o frigorífico, a máquina de lavar, o automóvel, os produtos plásticos; (b) a complexidade tecnológica associa processos de inovação que requerem esforços de investigação cada vez mais aturados; (c) as novas tecnologias são capital intensivas e dispensam o trabalho humano, sendo os seres humanos mais importantes, numa economia deste tipo, como consumidores de bens e de serviços (Hobsbawm, 1996). Com este salto na estruturação do capitalismo, a sua Idade de Ouro, na expressão do mesmo autor, gerou-se e propagou-se a ideia de que estes benefícios do desenvolvimento e da "modernização", e o bem-estar a eles associado, chegariam a todos. Lentamente se foram construindo, assim, sociedades de bem-estar, protegidas pelos governos nacionais, em que predominava um clima de quase pleno emprego e de consumo de massa, por parte de uma população, em geral, crescentemente bem paga e melhor protegida em termos sociais. É neste clima genérico que ocorre a grande expansão escolar da história europeia. Logo após a II Grande Guerra Mundial, os países da Europa colocaram a educação como uma das prioridades dos processos de reconstrução social, política e económica. Os anos cinquenta e sessenta foram um período de extraordinária expansão escolar. No plano da iniciativa particular, os pais acreditavam na promessa de que a frequência escolar representava um futuro melhor para os seus filhos. No plano da iniciativa pública, este esforço societal esteve baseado também em duas convicções principais. A primeira consistia na assunção, por parte da maior parte dos governos, da ideia de 282 que o melhor modo de um Estado democrático superar as desigualdades sociais era através da extensão massiva da educação escolar. A segunda apoiava a primeira e acrescentava que o desenvolvimento de um país defluía do progresso técnico e do aumento da produtividade laboral, dependendo esta do fornecimento de mão-de-obra qualificada por parte do sistema educativo (Coombs, 1985). Este quadro socioeconómico favorável, um clima de esperanças e promessas, é descrito por Husén, Tuijnman e Halls (1992:34) como sendo aquele em que talvez pela primeira vez, na história da Europa, as aspirações dos indivíduos jovens e de seus pais corresponderam ao que, nesse tempo, era socialmente percebido como a necessidade de uma mão-de-obra bem educada e qualificada. O tempo do "baby boom" do pós-Guerra era vivido num ambiente de confiança social nas enormes potencialidades da educação para promover o bem-estar social. A ideologia do Estadoprovidência assegurava com tranquilidade intervenções estatais crescentes na organização da sociedade, mormente na educação dos cidadãos, erguendo poderosos sistemas educativos nacionais, poderosos já pela dimensão que adquiriram, poderosos já pela expressão da força da acção dos Estados. Sustentados pela teoria do capital humano e apoiados por planificadores da educação, que tinham por missão fixar centralmente as necessidades profissionais futuras das economias, os Estados nacionais esforçaram-se por oferecer constante e crescentemente recursos humanos qualificados para apoiar o crescimento económico, tomado como um insaciável sorvedouro desses recursos. A generalidade dos governos aumentou de modo significativo as despesas públicas com o ensino, contribuindo, assim, para uma mais rápida evolução da escolarização da população. Esta vaga, povoada de crenças e de evidências sem necessidade de prova, 283 iria provocar o prolongamento da escolarização da generalidade da população, incluindo os adolescentes e os jovens saídos de meios tradicionalmente pouco escolarizados. Como observa René Rémond, "o fim da 2ª Guerra Mundial marca bem, em relação à 1ª Guerra Mundial e ao período entre as duas guerras, uma etapa decisiva sobre a via de uma democracia política e social mais completa e efectiva" (1974:189). Este clima social e este pano de fundo ideológico são de enorme importância e serão eles os principais sustentáculos do acelerado crescimento da oferta e da procura de educação escolar; eles precedem-no e comandam-no. R.Grégoire, Director da AEP - Agence Européenne de Productivité, criada em 1953, ainda antes da constituição do actual figurino da OCDE, sublinhou no seu relatório sobre "a educação profissional" que as medidas de desenvolvimento educativo foram tomadas independentemente das necessidades da economia, constituindo medidas do foro político e, em boa parte, resultantes da pressão social "frequentemente irracional" que se exercia sobre os poderes públicos ( Grégoire, 1967:73). Também P. H. Coombs, em 1968, referia que "a procura social de educação se incrementa de modo inexorável sem ter nada em conta a situação da economia e dos recursos disponíveis para a educação" (Coombs, 1985:60). Finalmente, E. Hobsbawm observa que a escala da explosão escolar excedeu de longe as estimativas do planeamento racional, pois as famílias, onde tinham a escolha e a oportunidade, levavam os seus filhos até ao ensino superior, uma vez que esse era de longe o melhor modo de os conduzir a um melhor rendimento e, sobretudo, a um melhor estatuto social (1996:293). Sustenta-se, assim, na Europa, sobre esta matriz sociocultural e política, uma tendência de longa duração para o aumento da procura social de educação, movimento esse que não cessou de se prolongar nas décadas seguintes, por força não já apenas do acesso, mas sobretudo de um prolongamento contínuo da permanência dos jovens no sistema escolar. 284 A duração da escolaridade obrigatória foi sendo sucessivamente prolongada e o número de inscritos no ensino secundário aumentou, entre 1960 e 1970, em alguns países, na ordem dos 230% ( cfr. Quadro 4.1). Quadro 4.1 Taxa de crescimento do número de alunos inscritos no ensino secundário superior em alguns países europeus 1960-1970 Países Crescimento entre 1960/1970 % Alemanha 160 Áustria 195 Dinamarca 200 Espanha 233 França 238 Holanda 168 Itália 216 Portugal - Suécia 192 Fonte: OCDE ("Annuaire Statistique de l’Enseignement", Paris, 1974) Podemos estimar também este crescimento da procura social do ensino secundário avaliando a percentagem dos que concluiram pelo menos esse nível de estudos e que têm entre 55 e 64 anos, em 1992, e comparando-a com os que se situam, no mesmo ano, entre os 25 e os 34 anos, em idênticas circunstâncias. É o que o Quadro 4.2 procura evidenciar. As disparidades intracontinentais são enormes, apesar do generalizado aumento do acesso da população ao diploma do ensino secundário de segundo ciclo. 285 286 Quadro 4.2 Proporção da população de dois grupos etários que terminou pelo menos os estudos secundários de segundo ciclo (1992) % País Grupo 25-34 anos Grupo 55-64 Incremento percentual Alemanha 89 69 30 Áustria 79 49 30 Bélgica 60 24 36 Dinamarca 67 44 23 Espanha 41 8 33 Finlândia 82 31 51 França 67 29 38 Holanda 68 42 26 Irlanda 56 25 31 Itália 42 12 30 Noruega 88 61 27 Portugal 1 15 4 11 R.Unido 81 51 30 Suécia 85 46 39 Suiça 87 70 17 Turquia 21 5 16 1 - Dados de 1991 Fonte : OCDE (1995) Entre 1960 e 1970, os efectivos do ensino secundário superior mais do que duplicam, nos países europeus. A taxa de escolarização a tempo completo dos jovens de 17 anos evoluiu de 14 para 20% na Alemanha, de 30 para 53% na Bélgica, de 10 para 32% na Dinamarca, de 15 para 30% na Itália, de 18 para 61% na Suécia, de 30 para 45% na França e de 11 para 26% no Reino Unido (OCDE: 1976:30). Nos EUA, na mesma época, esta variação foi de 75 para 86% (ibidem). Alguns autores sublinham o momento do lançamento do primeiro satélite 287 artificial, pela União Soviética, o Sputnik, em 4 de Outubro de 1957, como o ponto de condensação ou o "ponto de viragem" (Husén et ali, 1992; Berg, 1970, já citado) na percepção, por parte dos políticos e da população, do papel crucial da educação escolar e do conhecimento científico-técnico para o desenvolvimento das sociedades ocidentais (Miquel,1991). O clima de guerra-fria que se instalava favoreceu uma enorme capitalização deste acontecimento, muito particularmente nos EUA, para efeitos de mobilização interna da sociedade norteamericana para o investimento em inovação científico-técnica e em educação e formação. A expansão escolar vai incidir, nos países mais desenvolvidos da Europa, no alargamento contínuo da capacidade de acolhimento dos jovens no ensino secundário, tanto inferior como superior. Coombs (1985:101) assinala pertinentemente que o "ponto de arranque" para esta expansão foi o "ensino secundário de tipo académico". O tradicional e dominante ensino secundário elitista, estruturado para servir uma pequena fracção de privilegiados, a caminho da realização de estudos superiores, foi expandido "linearmente" para responder aos imperativos de uma massificação escolar sem precedentes, de sentido político democrático . Como refere o autor dos dois conhecidos relatórios sobre a "crise mundial da educação", o tipo de escolas não se alterou substancialmente, elas apenas se tornaram muito maiores. Com a massificação do ensino secundário e o prolongamento da escolarização do primeiro para o segundo grau, prolongam-se igualmente os principais debates políticos em torno do seu lugar e papel no sistema de ensino. Uma questão nuclear que sobressaía era a da conciliação entre as tradicionais vias "académicas" deste nível de ensino e as vias profissionais, de preparação para o trabalho. Na importante Conferência internacional de Williamsburg, Virgínia, em 1967, um dos debates principais centrou-se nas consequências da explosão das frequências escolares, em particular sobre a diversificação escolar. Como referem Husén, Tuijnman e Halls (1992:38), a 288 questão dominante foi a de saber se, e se sim como, os estudantes das escolas secundárias deveriam ser diferenciados entre programas de estudo "académicos" e "profissionais". O tipo de debate, inevitavelmente com diversos cambiantes ao longo dos países e do tempo, e o confronto entre políticas educativas ora mais defensoras da vertente unificadora, ora mais propositoras de um ensino diferenciado e, consequentemente, de um papel e de um lugar importante para o ensino e a formação profissional, vão prolongar-se no palco europeu ao longo de toda a segunda metade do século XX. De um lado, vai afirmar-se o movimento em prol de um ensino secundário profissional, capaz de acompanhar e de servir o processo de crescimento económico em curso. Do outro, vai procurar estender-se o modelo do ensino primário aos ciclos de ensino seguintes. Vejamos o primeiro movimento. No após-Guerra era dominante na Europa uma organização taylorista-fordista do sistema de produção capitalista. Como já vimos, esta baseava-se na produção em série, articulada mecanicamente, numa mão-de-obra intensiva e, em geral, com baixas qualificações, incorporando uma elevada componente de rotinas. A produção organizava-se de modo fortemente hierarquizado entre as funções de concepção, produção e comercialização, sob orientação de um comando central forte. A grande maioria das funções subordinadas eram fortemente especializadas, limitadas e isoladas e assentavam na simplicidade e na repetição. O crescimento económico gerava uma procura de mão-de-obra que absorvia a quase totalidade da oferta disponível. Neste contexto, o ensino secundário geral tinha como principal função servir de passagem para o ensino superior universitário, dirigindo-se a uma minoria de estudantes, e o ensino secundário técnico e profissional, bem como a aprendizagem, tinham por missão qualificar os técnicos intermédios necessários a uma organização 289 diferenciada e fortemente hierarquizada do trabalho produtivo. A regulação dos fluxos da procura escolar era planificada centralmente pelos governos, por intermédio do recurso a estudos de previsão de necessidades de mão-de-obra, de forte pendor quantitativo e econométrico. A ideologia do capital humano, como se referiu, serviu de principal sustentáculo mobilizador e revelou-se, ao longo da segunda metade do século, um inegualável cimento capaz de ligar historicamente a equação educação-trabalho. A evolução do ensino secundário profissional e do ensino superior, profissional por excelência, seguiu de perto a reestruturação das economias nacionais no quadro da própria evolução do capitalismo industrial (Benavot, 1983). Agências internacionais como a UNESCO, o Banco Mundial, a OCDE e a OIT desempenharam, no período do após-Guerra, um papel relevante no desenvolvimento do ensino profissional, dentro de um ensino secundário diferenciado ( Benavot, 1983:65). As conferências internacionais e regionais sucederam-se, desde 1946 e 1950 (OIT), a 1961 e 1970 (UNESCO) e, através delas e da orientação dada ao financiamento internacional, propagavam-se ideologias que legitimavam e favoreciam, com autoridade, o desenvolvimento do ensino secundário diferenciado. Como vimos, o conceito mais recorrentemente usado para qualificar este movimento em direcção ao desenvolvimento dos aspectos profissionalizantes do sistema de ensino e de formação e ao reforço das capacidades produtivas dos indivíduos que se formam é o de profissionalismo. Ele contrapõe-se ao de ensino geral ou ensino "liberal", este último usado na linguagem anglosaxónica. A defesa do profissionalismo escolar assenta em três tipos de argumentos: um macroeconómico, um de ordem social e outro de ordem política. 290 O primeiro refere-se à teoria, amplamente difundida, que advoga a existência de uma relação directa entre o investimento em ensino e formação profissional, o que se chama a qualificação escolar e profissional da mão-deobra, e a melhoria do desempenho da economia. Esta perspectiva comporta ainda um argumento escolar que concorre no mesmo sentido e que sustenta que o currículo geral tradicional dos liceus não é o lugar mais adequado para fomentar o desenvolvimento de competências profissionais, dado o seu pendor académico e abstracto, completamente desligado do mundo do trabalho. Segundo esta mesma teoria, o crescimento do volume de desemprego dos jovens diplomados, inclusive pelo ensino superior, resulta antes de mais de um défice de qualificações e de um desajustamento entre a produção de qualificações escolares e o emprego disponível. O segundo argumento relaciona-se com a crescente importância do elemento técnico nas nossas vidas e nas nossas sociedades, que tem estado na base de importantes transformações sociais, e na concomitante perspectiva de que ao sistema escolar, através da formação tecnológica, cabe o inelutável papel de preparar os cidadãos com as competências adequadas ao uso e usufruto das novas e permanentes conquistas da técnica. Defende-se ainda que a qualificação técnológica dos escolares constitui um relevante valor de troca, ou seja, um investimento altamente rentável na disputa para a ocupação dos lugares disponíveis no mercado de emprego. O terceiro argumento é o que sublinha a valorização das políticas de ensino e de formação profissional e da panóplia de programas de melhoria da transição entre a formação e o emprego como instrumentos sociais de primeira importância na luta contra o desemprego juvenil. A qualificação profissional inicial da mão-de-obra transforma-se numa prioridade política dos governos, em particular numa prioridade educativa, mormente em períodos de recessão do emprego, em geral, e do emprego juvenil, em 291 particular. Com esta base desenvolveu-se uma crença muito expandida em torno dos benefícios do investimento educativo no ensino técnico e na formação profissional, tanto sobre a economia, como sobre os empregos e sobre os indivíduos. A ideologia profissionalista irá desenhar uma pressão permanente e de longo prazo sobre os sistemas educativos das sociedades industriais para adoptarem formas mais directamente profissionais de ensino e de formação, tendo em vista criar uma força de trabalho mais competitiva, num quadro de crescente internacionalização dos mercados e dos capitais e de acréscimo contínuo da concorrência na economia mundial (Hickox, 1995). Todavia, o incremento do profissionalismo dos sistemas educativos não escapou a fortes movimentos críticos, como já tivemos oportunidade de evidenciar. Por outro lado, gera-se um outro movimento: desde o fim da I Guerra Mundial que se tinha vindo a desenvolver e a espalhar pelo mundo ocidental uma vaga de fundo que estendia o modelo do ensino primário, enquanto ensino geral e comum para todos, ao ensino secundário de primeiro grau. A expansão escolar que se verifica após a II Guerra Mundial vai encontrar-se socialmente com a trajectória deste movimento em formulação. Esta trajectória unificadora dos vários tipos de escolas e de programas escolares, muito devedora de uma perspectiva política democratizadora, que visa alcançar uma mais efectiva igualdade de oportunidades, irá estar também particularmente presente no pós-Guerra e durante as décadas seguintes como um sulco utópico que marca visivelmente o século XX. De facto, o modelo escolar e dentro dele o ensino geral académico constituiram, em vários países, as vias eleitas para o investimento educacional, nos anos sessenta e setenta, em nome da opção pela democratização social e pela igualdade de oportunidades e em nome da 292 rejeição de uma escola estratificada e diferenciadora, que reproduzia as relações de desigualdade social. Se esta opção provocava ou não disfuncionalidades na relação entre as aprendizagens escolares e as necessidades do mercado de emprego era uma preocupação social que não se inscrevia no espírito do tempo. A época era de optimismo e nenhum referente se acomodava melhor a este espírito do que um funcionalismo sem reservas, racionalidade social tão radicalmente optimista. A unificação e o ensino de massas Até aos anos setenta, só os EUA conheciam um ensino escolar a tempo completo de duração prolongada. Mais de 70% dos jovens americanos de 17 anos estavam inscritos numa "high school" (Grégoire, 1967). O prolongamento da duração da escolaridade obrigatória fez-se, na Europa, mantendo a diferença institucional entre escolas, até ao início dos anos 60. A Suécia tomou a dianteira na criação de uma escola unificada, a "Grundskola", cuja frequência era obrigatória para todos os cidadãos dos 7 aos 15 anos de idade. Tinha sido após a I Guerra Mundial que se tinha iniciado o processo lento de generalização de um novo tipo de oferta escolar unificada, que se tornaria um veículo privilegiado para a generalização do acesso dos jovens à escolarização no período pós-obrigatório, na Europa. O modelo seguido foi o da escola polivalente, inicialmente desenvolvido nos EUA e na URSS, que propunha uma formação geral e comum para toda a população até aos 15-16 anos de idade. Durante três décadas, este modelo iria ser subsumido pelas políticas educativas dos vários países europeus, com ritmos diferenciados e sob influências políticas diversas. Os dois pontos de partida para este percurso longo e ziguezagueante são, de facto, os EUA e a URSS, logo após o termo da I Guerra Mundial. 293 Em 1918, nos EUA, o Gabinete Federal de Educação publicava um documento de orientações sobre o ensino secundário, que constituiu a base da criação das "junior high schools" e que rompeu com o modelo organizacional radical de 8+4, substituindo-o pelo novo modelo 6+3+3. Pretendia-se desenvolver um ensino secundário intermédio, de três anos de duração, aberto a todos os cidadãos, independentemente do seu objectivo de prosseguir estudos ou de ingressar na actividade laboral, assente, portanto, numa perspectiva democratizadora (Pedró, 1996). O novo modelo aplicou-se inicialmente apenas no Estado de Ohio, envolvendo 7% do total de alunos. No entanto, em 1950, 80% dos alunos já seguia esta nova fórmula. Simultaneamente, um ano após a Revolução de Outubro, são instituídos na URSS os princípios elementares da Escola Unitária do Trabalho. Optava-se por um modelo organizativo 5+4, em que o ensino era integrado e aberto a todos os cidadãos e enfatizava-se o seu carácter politécnico e polivalente. A similitude com o novo figurino norteamericano deve-se, em grande parte, à admiração que havia, no início da Revolução Russa, pelo movimento pedagógico progressista dos EUA. John Dewey teve oportunidade de se deslocar à URSS para tomar contacto com a nova realidade de leste e para divulgar as suas perspectivas educacionais. Mas, o grande momento de incremento dos modelos de ensino unificado chegaria com o fim da II Guerra Mundial, tanto sob a influência internacional, como sob o impulso nacional. As Forças Aliadas cuidaram de combater veementemente as ideologias que tinham facilitado e conduzido o conflito armado e, tanto na Alemanha como no Japão, procuraram erguer modelos educativos escolares que favorecessem a transição das mentalidades locais para novos modelos e, logo, sob o efeito de uma certa normalização. Os 294 valores da democracia e da liberdade individual e a expansão da economia aberta e de mercado, o capitalismo, estiveram subjacentes, como eixos estruturantes, ao novo quadro político e socioeconómico imposto. No Japão, em 1947, impôs-se uma nova Lei Fundamental da Educação, que se inspirava numa nova escala de valores, em contraposição aos valores da sociedade tradicional, a coeducação, a independência de espírito, a igualdade sem distinção de sexo, estatuto ou origem familiar (Pedró, 1996). Na Alemanha, com a divisão do território, observou-se uma imposição do modelo soviético no território da RDA, o sistema da escola unificada, e assistiu-se a idêntica imposição do modelo norteamericano ( 6+3+3 ) em todos os territórios sob supervisão dos EUA, da França e do Reino Unido, também em 1947. No entanto, aquilo que se viria a revelar um sucesso, através da rápida evolução nipónica para um ensino secundário de massas, no caso da RFA traduziu-se por um relativo fracasso. Os Länder mantiveram o modelo tradicional, um dos emblemas europeus da diversificação escolar, mantendo quatro tipos de escolas diferenciadas, desde o termo do ensino elementar: o Gymnasium, a Realschule, a Hauptschule e, desde os anos setenta, a Gesamtschule. Só a partir dos anos sessenta é que se assistiria a uma significativa expansão do modelo unificado através da Europa, sob a batuta dos sistemas sueco e britânico. Esta era uma época de crescimento da economia capitalista, de alargamento do "Wellfare State" e de predomínio da ideologia socialdemocrata nos governos europeus (Pedró,1996). Na Suécia, a escola geral básica de nove anos de duração, obrigatória e comum a todos os alunos, a Grundskola, começou a ser preparada em 1946, por uma Comissão Parlamentar, e seria generalizada entre 1950 e 1962. O modelo inglês, fortemente diferenciado em três tipos de escolas, viria a encaminharse, sob impulso geral do Estado central e por acção determinada das 295 Autoridades Educativas Locais, para a reunião dos três tipos de escola sob um mesmo arco institucional e, mais tarde, para a criação de uma única escola secundária para todos os alunos, com um tronco comum e uma progressiva diferenciação, a chamada "comprehensive school". Fomentada pela Lei Callaghan, de 1976, esta escola unificada abrangeria, quatro anos volvidos, cerca de 90% dos alunos que frequentavam o ensino secundário em Inglaterra e em Gales. Em 1965, em Viena, os ministros europeus da educação convidaram a OCDE a examinar a evolução do ensino secundário, em particular a aparição da escola polivalente e, em 1969, na Conferência de Versailles, declararam, já após a análise de um relatório pedido à OCDE, que o ensino secundário se deveria centrar sobre um largo programa comum (Papadopoulos,1994:106). A escola polivalente lançada na Suécia e na Noruega, desde o início dos anos 50, implantou-se nos dez anos seguintes em quase todos os países europeus, seguindo o princípio geral de uma experiência educativa comum para todos os adolescentes. As mudanças ocorreram sobretudo no ensino secundário de primeiro grau, através da mudança de conteúdos e da criação, em alguns casos, de novas instituições escolares. É o caso do tronco comum de nove anos, na Noruega e na Suécia, da Scuola Media, em Itália, e do Collège, em França. Outros países, como a Holanda ou Portugal, só em 1975 adoptariam idêntico procedimento de unificação escolar. Note-se ainda que, em algumas destas reformas curriculares, também está presente a influência da perspectiva politécnica, tal como foi adoptada na RDA, ou seja, incluem-se nos planos de estudo "um conjunto de matérias orientadas para vincular conhecimentos adquiridos na aula com a realidade do mundo laboral" (Pedró, 1992:55). Este modelo foi introduzido pela Lei do Sistema Educativo Socialista Integrado e pretendia cumprir o objectivo de 296 oferecer a todos os alunos uma educação geral ampla, dentro da qual a formação e a informação sobre o trabalho tinham um papel privilegiado (Pedró, 1992). Trata-se, com efeito, de uma formação propedêutica da inserção socioprofissional, sem um cunho típico da formação profissional escolar. Em 1969, este modelo passou para a RFA, sob a designação de "Arbeitslehre", tendo sido adoptado de modos diversos de Länder para Länder. Em 1979, foi introduzida na "scuola media" italiana a chamada "educação técnica" que visava "valorizar o trabalho como exercício de operatividade, a par da aquisição de conhecimentos técnicos e tecnológicos". Em 1975, na Dinamarca, contempla-se a existência de "estudos profissionais" (Arbejdskendskab) na lei sobre a "Folkeskole" e, em Portugal, é criada a disciplina da Educação Cívica e Politécnica no novo ensino unificado. Em 1985, é introduzida a disciplina de "Technologie" no plano de estudos dos Collèges franceses. A unificação impôs-se, assim, como o modelo escolar dominante da escolarização de massas no segmento do ensino secundário inferior, sob o impulso determinante da ideologia da democratização, da igualdade de oportunidades e do incremento da mobilidade social. A diferenciação escolar adiou-se para os 15-16 anos e para o ensino pós-obrigatório. Como vimos, o crescimento da procura neste último segmento da oferta educativa escolar foi-se intensificando nos anos 60 e 70, tendo duplicado os efectivos. Lentamente, a escolarização de massas vai chegando ao nível pósobrigatório do ensino e da formação e aos seus diversos ramos e fileiras. Alguns países houve onde, no entanto, a diversificação escolar se manteve nos 10 -11 anos de idade, como é o caso da Alemanha. "Se a redefinição de objectivos e de estruturas da escolaridade obrigatória tinha constituído o grande problema estrutural dos anos 60, a reorganização 297 do ensino secundário de segundo grau iria tornar-se a grande prioridade a partir dos anos 70" (Papadopoulos, 1994:109). Com a massificação a ocorrer agora no ensino secundário superior, seria inevitável a deslocação, do nível obrigatório para o nível pós-obrigatório, do ensino secundário inferior para o ensino secundário superior, de uma parte importante das problemáticas nucleares. E se as problemáticas deslizam, tendencialmente avançam ainda mais depressa as soluções políticas já aplicadas anteriormente, no nível escolar inferior, para retomar um elemento chave da análise social de Crozier (Crozier, 1995). Entretanto, outros fenómenos sociais iriam condicionar fortemente a evolução da oferta e da procura do ensino secundário superior na Europa, a partir da década de 70. Os "choques" dos anos 70 e os anos de crise A crise económica que se desenrolou com os "choques petrolíferos", nos anos setenta, teve largos efeitos sociais e repercutiu-se fortemente nas políticas de ensino e formação, particularmente no ensino secundário europeu. Na sequência da alta brutal dos preços do petróleo - o primeiro "choque petrolífero" ocorreu em 1973-74 e o segundo em 1979-80 - e da subsequente explosão inflaccionista, inicia-se uma crise da economia capitalista, que se viria a revelar duradoura e cujo impacte está longe de estar concluído. As taxas de crescimento económico baixaram e as elevadas taxas de inflacção travaram o incremento da despesa pública e o crescimento dos rendimentos reais. Todavia, os "choques petrolíferos" são uma ponta do "iceberg" e como que o "take-off" de um conjunto de mudanças que estavam em curso na sociedade e na economia contemporâneas. Vários autores analisam as alterações 298 ocorridas e sublinham a sua intensidade e a sua profundidade. Crozier, ao olhar para as derradeiras décadas do século XX, constata que "o mundo mudou mais nestes últimos trinta anos do que durante todo o século precedente" (1995:22). Para muitos autores a sociedade industrial à qual tínhamos acabado por nos adaptar, entra em curso de desaparecimento. Para Hobsbawm, a história dos vinte anos, após 1973, é a de "um mundo que perdeu as suas referências e que resvalou para a instabilidade e a crise"(1996:395). Para outros autores, após a década de cinquenta e sessenta, em que se fizeram sentir de modo inequívoco os impactos previsíveis da generalização da microelectrónica, há uma nova sociedade em formação, onde o conhecimento detém um papel central na configuração de novas actividades e serviços, a "sociedade da informação" ou a "sociedade pós-industrial", como a designaram Daniel Bell e Alain Touraine, respectivamente. Enquanto que a sociedade industrial repousava sobre o modelo da racionalização das actividades, o que permitia aplicar o movimento perpétuo do crescimento, produção de massa-consumo de massa, na expressão de Crozier, a sociedade emergente caracteriza-se já pelo aparecimento de novas actividades económicas, como as actividades imateriais e os serviços de base relacional, já pela internacionalização crescente das actividades económicas e pelo aumento da concorrência e dos desequilíbrios internacionais, já pela incorporação generalizada das novas tecnologias, em particular novas tecnologias da informação e da comunicação, o que alterou significativamente os processos produtivos, provocando um efeito de reestruturação contínua da economia capitalista. Por outro lado, uma parte da produção de massa, devido ao novo ambiente concorrencial à escala mundial, deslocaliza-se dos países do centro do sistema capitalista para a periferia, para os países onde o custo da mão-deobra é mais baixo, contribuindo assim para uma maior internacionalização da 299 economia e para novas configurações na divisão internacional do trabalho. Na esfera da produção, por sua vez, tende-se a deslocar funções produtivas e industriais para funções terciárias, as mudanças tecnológicas são mais frequentes e o ciclo de vida dos produtos é mais curto. O sistema produtivo passa a requerer uma mais acelerada mobilidade da mão-de-obra e torna os próprios ciclos de pertinência das qualificações mais curtos, provocando mais céleres desactualizações de saberes e de competências. Neste quadro de mudança social, importa não menosprezar, no entanto, outros fenómenos sociais concomitantes como a urbanização, as mutações nas famílias e a própria explosão da procura de educação escolar. A urbanização está profundamente relacionada com as brutais transformações operadas no mundo agrícola no espaço europeu e com a deslocação contínua da mão-de-obra para o sector terciário e para as indústrias de serviços. A estrutura familiar tradicional alterou-se, seja por força do exercício de novos papéis sociais pela mulher seja pela acentuada descida do número de filhos por casal seja ainda pelo aumento dos divórcios e pelo crescimento de famílias monoparentais e de geometria variável. A escolarização de massas, por sua vez, tornou-se o principal veículo de mobilidade social e o trampolim elementar para as carreiras profissionais. Além disso, o mercado de emprego vai tomar crescentemente os diplomas escolares como o primeiro critério de selecção e recrutamento entre os que procuram trabalho (Husén, 1990). Mas foi, particularmente, com a descida das taxas de crescimento e com a crescente e contínua automação e com os novos ímpetos de reestruturação da economia capitalista que o desemprego iniciou uma subida, inabitual nas décadas imediatamente anteriores, afectando em particular os jovens e, entre estes, as raparigas. Lentamente, aquilo que parecia ter que ver com um fenómeno de conjuntura, um desemprego de tipo friccional ou mesmo um desemprego keynesiano e conjuntural (Lesourne, 1996), começou a assumir 300 contornos de fenómeno social estrutural. Efectivamente, a partir de meados da década de 70, as taxas de desemprego juvenil dispararam (cfr. Quadro 4.3) e só muito raramente voltariam a descer de modo significativo nos dez anos seguintes, pese embora a diversidade de situações existentes na Europa. 301 Quadro 4.3 Taxas de desemprego de jovens em países da OCDE 1970 1973 1976 1978 1980 1982 Alemanha Espanha EUA Finlândia França Itália 0.4 __ 9.9 3.2 3.2 10.2 1.0 5.1 9.9 4.7 4.0 12.6 5.2 10.7 14.0 8.5 10.1 14.5 4.8 18.6 11.7 16.6 11.0 24.8 4.2 28.5 13.3 10.0 15.0 25.2 10.3 36.9 17.0 11.6 20.3 29.8 Japão Noruega Portugal Reino Unido Suécia 2.0 __ 2.3 5.6 3.1 5.7 3.8 5.9 3.6 5.4 4.4 8.2 6.4 2.9 2.9 5.1 3.2 5.2 9.3 11.8 3.7 17.0 12.7 5.5 17.9 15.1 5.1 18.1 21.4 7.6 Fonte: OCDE (1995). Para o caso português a fonte foi o MQE – DE A persistência do fenómeno do desemprego, que afectava particularmente os mais jovens à entrada do mercado de trabalho, iria marcar profundamente a evolução da oferta e da procura do ensino secundário superior, na Europa, nos vinte anos seguintes, ainda que muitas vezes esta fosse, na retórica política, uma motivação mais ou menos silenciada. Muito frequentemente os problemas do desemprego juvenil serão transfigurados, por via de medidas reformadoras, em problemas educativos, como refere Lucie Tanguy na sua análise do caso da Grã-Bretanha (Tanguy, 1995) e tal como já Ginsburg e Cooper (1991) haviam assinalado na sua análise mais global da relação entre as contradições dentro e entre a economia, o Estado, a família e a educação, por uma lado, e a retórica reformadora no campo das políticas de educação, por outro. Os governos passam a adoptar sistematica e generalizadamente medidas de política educativa como suporte de políticas sociais de combate ao 302 desemprego crescente entre os jovens. Este tornar-se-ia o eixo central sobre o qual iriam rodar, a partir de meados dos anos 70, as políticas de educação e de formação, particularmente ao nível pós-obrigatório e para o grupo etário 16-19 anos, o que mais exposto estava, neste contexto de mutações vastas e imprevisíveis. As consequências para o sistema escolar seriam bastante profundas. Sob o efeito da alta do desemprego, desemprego de massa, em contexto de profunda reestruturação industrial, vai-se cristalizar a ideia de uma crise estrutural dos sistemas nacionais de educação; nascidos e incrementados para acompanhar a modernidade e mais recentemente destinados a promover o bem-estar e a mobilidade social, supostamente de uma forma assaz articulada e quase mecânica, os sistemas educativos passam a ser responsabilizados por não desempenharem devidamente a sua função de ajustamento face à evolução da economia e do mercado de emprego e, nessa medida, são responsabilizados pelo próprio desemprego juvenil. No novo contexto, o clima de opinião predominante muda substancialmente. Para J.-P. Jallade a crise de emprego dos jovens é a "prova comum" que os países europeus enfrentam. As respostas educativas, como que subordinadas a imperativos e a orientações comuns, desenvolvem-se em torno de dois eixos principais: (a) adaptar a formação ao emprego, para melhorar a empregabilidade dos jovens e (b) guardar o maior número possível de jovens em mecanismos de formação, uma vez que não haverá emprego "regular" para os menores de vinte anos (Jallade, 1991:44). De robusto trampolim para o desenvolvimento económico, para a mobilidade social e a igualdade de oportunidades e, nessa medida, fonte de promessas, o sistema escolar passaria a ser, a partir dos anos setenta, um gigante que muitos governos olham de soslaio, com a cabeça cheia de dúvidas e de suspeição. Perante o aumento da despesa pública, entretanto desencadeado 303 em todos os países mais desenvolvidos, e diante de níveis de desajustamento entre a oferta de qualificações escolares e a procura real dos empregadores, passa a admitir-se, oficialmente, que talvez se tenha sido demasiado optimista, nos anos cinquenta e sessenta, na previsão dos impactos positivos da educação escolar sobre a prosperidade económica, a igualdade e o bem-estar social. Com o início da recessão económica e com o crescimento do desemprego começa inclusivamente a questionar-se a amplitude dos benefícios sociais e privados oriundos do crescente investimento público em educação. A agenda política muda e, em especial, a agenda e o discurso em torno dos sistemas de ensino e de formação. O ambiente era propício ao surgimento das perspectivas mais críticas acerca dos efeitos sociais da educação. E elas surgiram de vários lados e com vários tons. Refira-se apenas, aqui e a título exemplificativo e extremo, as críticas contundentes de Illich e as suas propostas de desescolarização social. Se é certo que elas permaneceriam muito minoritárias e laterais, também não se pode escamotear uma lenta mas irreprimível alteração do discurso político da generalidade dos governos, recheando-o agora de problemáticas novas como a racionalização de recursos, análise custobenefício e eficiência do sistema, avaliação do desempenho e prestação de contas, controlo social e participação de outros actores sociais nas escolas. Também para Coombs (1985:243), após os anos setenta, "o clima mudou drasticamente". Esta expressão é, em toda a sua força, uma expressão pertinente, se atendermos a dois elementos: por um lado, havia cada vez maior abundância de recursos humanos qualificados, ao mesmo tempo que havia, no mercado de emprego, défices selectivos de recursos humanos qualificados; por outro, as escolas secundárias e superiores começavam a não cumprir as suas promessas de conferirem passaportes para satisfazer as necessidades de uma economia em crescimento. O "contrato tácito" entre a educação e a economia rompia-se e, deste modo, começava a desfazer-se 304 esse vinco implícito entre a sociedade e a educação escolar, após décadas de inquestionada crença nas virtualidades de um tal acordo. O desajustamento estrutural traduziu-se em perda de confiança social. Da euforia do pós-Guerra, transitou-se para um novo período, os anos oitenta e noventa, em que aquela cedeu o lugar ao cepticismo, à procura desencantada de educação e de formação e, de quando em vez, ao cinismo. Se admitimos que no núcleo duro da procura social da educação está a percepção da educação escolar como um instrumento de mobilidade social, o acesso a “status” social e até da imediata promoção profissional, teremos de admitir também que a procura social, a manter-se em níveis elevados e submetida a esta funcionalidade, desloque consideravelmente o seu núcleo essencial de motivações. Todavia, a relativa perda de confiança na validade social dos diplomas escolares, diante de um desemprego juvenil que se irá revelando cada vez mais estrutural, não irá, paradoxalmente, diminuir nem a procura social de educação nem o prolongamento generalizado do número de anos de permanência no patamar escolar. O que emerge de novo é o desencanto associado a esta procura e o inevitável aumento da competição dentro do sistema escolar, como forma óbvia de manter as aspirações de mobilidade social. Um profissionalismo crescente O desemprego seria, deste modo, uma importante condicionante social que iria fazer prolongar, desde finais da década de 70, a tendência para o crescimento do ensino secundário, já, como referimos, pelo aumento da procura social, confrontada com a escassez de lugares no mercado de emprego, já pela crescente diversificação dos percursos, cursos e programas formativos no seu interior. Por um lado, no que se refere à procura, as famílias e os jovens são incitados a ir mais além nos estudos, na busca de 305 uma melhor ocupação no emprego e de uma carreira profissional mais satisfatória, não estando em questão se os empregos concretos disponíveis vão ou não requerer esse tipo e nível de formação. Por outro lado, como refere Papadopoulos (1994), a problemática do emprego tomou a dianteira das preocupações sociais, sobretudo ao nível das políticas governamentais de ensino e de formação. O ensino secundário evoluiu, abriu-se, diversificouse. O que, logicamente, ocorreu de vários modos e em momentos diversos. É neste clima, em que um objectivo central das políticas educativas é o combate ao desemprego, nomeadamente entre o grupo etário 16-19 anos, que se processa também uma revalorização do profissionalismo dos sistemas educativos, em especial desde o termo dos anos setenta (Jallade, 1991; Bertrand, 1993; Papadopoulos, 1994; Hickox, 1995). Tornava-se comum concluir que já não bastava à generalidade dos Estados, na sua tarefa de expansão da escolarização, expandirem e prolongarem o modelo liceal e académico do ensino secundário. No seu balanço sobre a acção da OCDE no campo educativo, Papadopoulos refere que, no fim dos anos setenta, nomeadamente por alturas da publicação do relatório da OCDE "Éducation et vie active" (1977), tomou-se como tema central as políticas de ensino profissional, no seu entender "um domínio onde as questões da educação e do emprego se cruzam no nível operacional e um domínio até então relegado para segundo plano, em termos de estatuto social e de prestígio" (1994:163). Abalada a confiança na repetidamente anunciada relação directa entre frequência escolar e acesso ao mercado de emprego, o reforço da profissionalização do currículo surge como uma espécie de saída "natural" tendo em vista assegurar a eficiência económica dos investimentos em educação. A profissionalização do ensino secundário de segundo ciclo, como se referiu acima, desenhou-se num quadro conceptual marcadamente funcionalista, 306 traduziu-se em políticas educativas que seguiram orientações diversas e processou-se de diferentes modos, conforme se trate dos modelos escolar, dual e não-formal. Foram três as principais orientações seguidas: (i) por um lado, os governos preocuparam-se em criar uma panóplia de programas chamados de "formação-emprego", em que intervêm mais activa e, por vezes, predominantemente os empregadores, apresentando-se muitas vezes como uma garantia de formação de segunda oportunidade para populações em risco (Banks, 1994) e recorrendo com frequência ao paradigma da formação em alternância, referido quase sempre ao modelo "dual" alemão. Esta tendência alastrou a quase todos os países europeus e prolongou-se pela década de noventa; (ii) procedeu-se também, sobretudo nos países em que predomina o modelo escolar de ensino e formação, à abertura de novos lugares no ensino secundário através da diversificação do ensino secundário tradicional, criando-se novas vias profissionalizantes, e ainda pelo recurso à equiparação legal de certos percursos técnicos e profissionais ao ensino secundário geral (geralmente liceal), para efeitos de prosseguimento de estudos; (iii) por outro lado, em países onde predomina o modelo escolar e existe uma forte tradição de unificação dos segmentos do ensino secundário de primeiro ciclo, desenvolve-se a tendência para desfazer as barreiras entre os vários percursos de ensino e de formação ao nível do ensino secundário superior, promovendo-se a integração legal e institucional entre todos estes percursos. Ao mesmo tempo, cria-se uma aparentemente ilimitada possibilidade de cada jovem realizar aí um itinerário de formação personalizado, pelo acesso a um sistema opcional muito diversificado. Assim e quanto à primeira orientação, vários países dão prioridade ao incremento de uma panóplia de programas de formação-emprego, com maior ou menor intervenção das empresas, seja como prolongamento do efeito de "estacionamento" escolar do grupo etário 16-19 anos seja como forma de apoiar os processos de inserção mais directa dos jovens nos empregos e nas actividades efectivamente existentes. Estão neste caso períodos de 307 iniciação prática ao trabalho, o ensino em alternância, os programas e contratos de formação e emprego, como por exemplo o YTS-Youth Training Scheme, e todo um vasto conjunto de medidas que visam melhorar o acesso ao emprego dos jovens mais desqualificados do grupo etário 16-19 anos. Na verdade, uma das "respostas" educativas emblemáticas desta década foi a que o governo conservador inglês começou a construir, fora do controlo directo das autoridades educativas, com a criação, em 1974, da MSCManpower Services Comission, organismo tripartido a funcionar no âmbito do Departamento de Emprego. A esta Comissão incumbia a importante tarefa social de oferecer novas oportunidades de formação profissional dirigidas para a inserção social de jovens entre os 14 e os 18 anos. Em 1978, a MSC criou o YOP-Youth Opportunities Program, para encaminhar para desempregados; actividades formativas muitos milhares de jovens em 1983, esta primeira iniciativa desencadeou o surgimento do YTS-Youth Training Scheme. Este programa visava já oferecer a todos os jovens de 16 e 17 anos, que abandonaram a escola e se encontravam desempregados, um esquema de formação profissional ligado à ocupação de lugares concretos nas empresas e por estas providos. Criaram-se cursos de doze meses de duração e, depois, cursos de dois anos de duração, em que uma parcela de vinte semanas por ano era destinada à formação escolar, fora do local de trabalho. Todos os menores de 18 anos passaram, assim, a poder usufruir de uma oportunidade de formação, mesmo os não escolarizados no ensino regular. Esta intervenção governamental, essencialmente revestida de um cunho social, baseada nas necessidades do mercado e apoiada numa intervenção directa dos empregadores, constituiu uma das mais significativas acções políticas europeias em que o combate ao desemprego se sustenta no incremento do sector não-formal do sistema de ensino. 308 Como advoga L.Tanguy (1995) este dispositivo funcionou como a organização social de um tempo de ocupação dos jovens, exterior ao acto do trabalho, ou, como preferimos, actuou como um substituto de um mercado do primeiro emprego em drástica recessão. Nesta mesma medida, como refere a socióloga francesa, foi-se cavando uma divisão social entre a "educação" e a "formação" e, num quadro de relativo acordo social, estas medidas procuraram, fora das modalidades tradicionais de ensino e de formação, enquadrar os jovens desempregados. Muitos outros países desencadearam o mesmo tipo de "tecnologia social", visando em particular os grupos populacionais mais marcados pelo insucesso escolar e pelo abandono prematuro do sistema de ensino e de formação, jovens mais afectados por um desemprego "endémico" (Husén, 1990). Assim, estendeu-se por toda a Europa Ocidental, mormente sob o ímpeto globalizador da Comunidade Económica Europeia, durante os anos oitenta, uma vasta panóplia de programas de formação-emprego, destinados prioritariamente ao grupo etário 16-19 anos. É neste ambiente que o sistema "dual" alemão surge, entre as medidas de política de formação-emprego que valorizam a alternância escola-trabalho, como uma das alternativas mais debatidas e mais propagadas internacionalmente. A sua adopção e o seu crescimento serão, no entanto, muito díspares de país para país (Jallade, 1991:45), não tendo passado de uma moda passageira ou de um novo modelo embrionário, em alguns países, como em Espanha, Portugal, França e Itália. De facto, a propagação e a transposição de modelos formativos não incluem o transporte dos sistemas de interacção social entre a produção de qualificações e o acesso e a progressão profissionais nas empresas. Estas características intranacionais, já devidamente explicadas pela teoria da "coerência societal", revelam-se a principal fonte do seu fracasso no palco internacional. 309 Uma segunda tendência que se desenvolveu nas políticas educativas da Europa, nos anos 70, como referimos, foi a diversificação da oferta do ensino secundário tradicional, o que se fez particularmente pelo desenvolvimento de fileiras dos ensinos técnico e profissional no seio dos modelos escolares. Esta política era justificada principalmente por duas circunstâncias: pelo crescimento do número de jovens que saía do sistema escolar regular e se encontrava desempregado e pela necessidade de diversificar as vias de frequência e de saída do ensino secundário, agora que começava a ser procurado por percentagens cada vez mais elevadas do respectivo grupo etário, grupo este que transitava cada vez mais massivamente do fim da escolaridade obrigatória para estudos pós-obrigatórios. Esta diversificação correspondia também a uma política de orientação de uma parte dos jovens para percursos de formação que não defluíssem necessariamente no ensino superior. Desde a segunda metade dos anos 70, o aumento do peso relativo dos ensinos técnico e profissional incide sobretudo na expansão estatal da oferta dos cursos técnicos e também dos cursos profissionais quando estes são de base escolar (OCDE, 1985), o que corresponde a uma política de diversificação do modelo do ensino geral, mais do que à oferta de verdadeiras alternativas de ensino e de formação. Prolongando uma tendência que vem dos anos sessenta, os poderes políticos de vários países, mormente daqueles em que a oferta de ensino e formação pós-obrigatória é de base escolar, empreenderam sistemas de equivalências dos cursos profissionais aos cursos do ensino geral, para efeitos de acesso ao ensino superior. Lauglo (1983) considera estas medidas factores de "enorme mudança" dentro dos países da OCDE. Com elas pretendia-se diminuir, pela via de uma racionalidade técnica, a hierarquia de prestígio existente entre os dois tipos de formação e, por outro 310 lado, responder à recessão do mercado de emprego, com uma maior permanência na escola para um maior número de jovens, aumentando o número e diversificando a origem social e as características pessoais dos que estariam disponíveis para frequentar um percurso de índole técnica e profissional. Apesar destes desideratos, Lucie Tanguy observa que a expansão da "educação económico-técnica", que está ligada ao aumento da frequência do ensino secundário, se relaciona mais com uma mudança na relação entre o ensino académico e o ensino técnico do que com uma reorientação na hierarquia académica que regula esta mesma relação (Tanguy, 1985:29). Todavia, nem sempre a evolução se fará, nas décadas seguintes, numa perspectiva de manutenção ou de reforço desta relação hierárquica. Também para Papadopoulos (1994), até meados dos anos 80, continuou-se a dar prioridade, nos países da OCDE, ao grupo etário 16-19 anos, tendo-se conseguido um aumento da procura com base numa diversificação rápida da oferta das vias de ensino e formação, no termo da escolaridade obrigatória. Em sua opinião, qualquer que seja o modelo de ensino secundário que se queira considerar, "por todo o lado houve uma diversificação e não uma redução de programas" integração/diferenciação e tomava "pouco a a dianteira pouco sobre o problema da o problema dos estabelecimentos, no coração do debate sobre a política de formação pósobrigatória" (1994:189). É nesta mesma época que se acentua a função de "transfert" das vias técnicas e profissionais para o ensino superior, reduzindo-se o seu carácter terminal, o que se enquadra no quadro analítico que Martin Trow (1978) havia empreendido para o caso norteamericano. Após a fase em que o ensino secundário cumpriu a função de preparar uma elite para estudos superiores, através da frequência de um currículo geral académico, e da fase 311 em que, por força da massificação da procura, o ensino secundário passou a combinar o exercício da função propedêutica com a função terminal, este tipo de ensino entrou numa terceira fase em que a função propedêutica se torna predominante e tendencialmente única, quaisquer que sejam as vias de estudo em oferta. Este processo nem sempre foi isento de dificuldades, seja porque se corria o risco de diminuir a credibilidade dos diplomas técnicos e profissionais no mercado de emprego seja porque o ensino superior continuava a manter um monolitismo claro no que se refere às condições de acesso. Assiste-se, portanto, não só à emergência de uma nova educação geral no seio do ensino secundário superior, como ao estabelecimento de novas relações entre o ensino geral e o ensino especializado. Como sublinha Francesc Pedró (1992), não é apenas a formação profissional que é objecto de reformas, mas o próprio ensino geral que é substancialmente alterado neste processo de aproximação à evolução da economia, em particular nos países em que quase toda a formação pós-obrigatória é de incidência escolar. Diversificam-se também as vias de formação dentro do ensino geral, como forma de responder a uma procura em rápido crescimento, procura essa concentrada sobre os percursos escolares longos e tradicionalmente acoplados ao prosseguimento de estudos superiores (Pedró, 1992). É no decurso desta diversificação do ensino geral que surge a separação, considerada por alguns autores, entre um tipo de ensino geral académico e um tipo de ensino "propriamente geral"; o primeiro prepara em exclusivo para o acesso ao ensino superior e o segundo "pode significar uma multidão de coisas", tais como: preparação para a vida activa, preparação para aceder a uma formação profissional pós-secundária ou apenas um ponto final no processo de escolarização inicial. 312 O conceito de ensino pós-obrigatório geral não-académico compreende inúmeros percursos escolares que tanto podem conduzir a estudos superiores curtos em áreas técnicas, como a realizar estudos terminais ou ainda a empreender um percurso paralelo que reconduzirá, mais tarde, aos percursos académicos. Forma-se, assim, uma oferta escolar eminentemente ligada à preparação para a vida activa (Pedró, 1992) que não se situa nem na tradição académica nem na tradição profissional. É aquilo a que já se chamou uma "terceira via" estratégica, ou seja, o preenchimento do vazio provocado pela dicotomia entre a opção académica e a opção profissional e a preparação concomitante de uma mão-de-obra para o sector intermédio na área dos serviços. Também Leclercq e Rault (1992), além de constatarem de igual modo uma tendência para um investimento nas formações profissionais nos países europeus, com base na crença de que os jovens estariam tanto menos expostos ao desemprego quanto mais prosseguissem uma formação pósobrigatória e escolhessem uma via profissional, fazem notar, no entanto, que o aumento da frequência das fileiras profissionais se processou pelo incremento da procura das "fileiras técnicas" do ensino secundário superior, ou seja, aquelas que atribuem bastante importância ao ensino teórico e que, por isso, se aproximam mais das formações gerais, do que das formações profissionais e "têm uma melhor imagem de marca" junto da procura(1992:56). Por essa razão é mister registar, desde já, a necessidade de se interrogar esta diversificação do ensino geral, enquanto via privilegiada de reforço da profissionalização do ensino secundário superior. Finalmente, Halls (1994) constata também que o "profissionalismo" "grangeou sucesso" como alternativa para o currículo do ensino secundário tradicional, embora num contexto em que "não havia qualquer acordo" acerca do acento tónico a dar ao ensino secundário superior. Uns insistiam no currículo geral, outros na preparação para a profissão e outros em fazer 313 tudo ao mesmo tempo (1994:26). Dificilmente este grau de ensino foi perspectivado para outras finalidades educativas, que este autor considera relevantes, importantes aspectos da cultura e da civilização, como as artes, a música, o artesanato e "o conteúdo moral da educação, particularmente a dimensão cívica e social" (1994:28). Por seu turno, nos países em que o sistema dual é dominante na escolarização do grupo etário em questão e em que o Estado é um parceiro na definição das políticas de formação, exerce-se uma forte pressão quantitativa sobre os postos de aprendizagem disponíveis. Na Alemanha, estes lugares, oferecidos pelas empresas, vão crescer, entre 1976 e 1986, a um ritmo tal, que são criados anualmente entre 200.000 a 716.000 novos postos (OCDE, 1985). Nestes casos, as empresas participam activamente na formação do mercado de primeiro emprego para os jovens, de modo diverso do que sucede nos casos em que cresce a oferta não-formal baseada em programas de formação-emprego. Em síntese, o ensino geral evoluiu, abriu-se e diversificou-se, revestiu-se de novas configurações e desembocou em novas modalidades de ensino secundário superior. Esta "fragmentação" leva inclusive T. Husén a lembrar que muitos debates se passam a referir ao ensino secundário como a uma "zona de calamidade pública" (Husén, 1990:51). Registe-se sobretudo a tendência bastante generalizada das políticas educativas, empreendidas nos anos setenta e em grande parte nos anos oitenta, para ampliarem a base de oferta de formação pós-obrigatória, condição de captação de novos públicos e de resposta à crescente procura, através de uma tecnologia social de diversificação curricular que roda essencialmente sobre o modelo escolar do ensino secundário. Por vezes, esta diversificação chega a ser institucional, dando lugar à criação de novos tipos de escolas dentro do mesmo modelo de ensino. Outras vezes, a diversificação é subestrutural e confina-se aos cursos e planos de estudo, no seio das instituições escolares já existentes. É 314 certo que estes processos políticos de reconfiguração curricular e institucional do ensino secundário procuram acolher e captar o maior número de jovens do grupo etário 16-19 anos, reduzindo a fila de espera do primeiro emprego, cumprindo inequivocamente a missão social de "parqueamento" do grupo etário 16-19 anos e preparam para muitos deles uma saída para o trabalho que não passe pelo ensino superior. Mas já não é tão claro nem tão certo que estas medidas de política correspondam, apesar da sua semântica preencher a orla técnica e profissional, a necessidades concretas e precisas do mercado de trabalho. Esta reorientação iria provocar, no entanto, não só alterações mais ou menos significativas nos modelos de ensino secundário superior prosseguidos até então, como outras alterações a montante, nos esquemas de transição entre o ensino obrigatório e o ensino pós-obrigatório, e a jusante, na transição entre o ensino secundário e o ensino superior. Por um lado, procura-se alongar a escolaridade geral e obrigatória, como sucede na Europa do sul, em Portugal, Espanha, Itália29 e Grécia, e adiar a idade de escolha entre os vários tipos de formações gerais, técnicas e profissionais - Grécia, legislação de 1976; Bélgica, 1983; Portugal, 1986; Irlanda, 1989; Espanha, 1990; Luxemburgo, 1992; - e, por outro, estabelecem-se novas normas que permitem que as escolhas por estas vias não se traduzam na obtenção de diplomas sem prestígio e que instaurem novos fluxos de sequência de estudos, de tal modo que uma opção por um curso técnico ou profissional feita aos 15 anos possa conduzir aos níveis mais elevados de ensino e formação e facilite o ingresso em outras modalidades de ensino, em qualquer momento dos percursos formativos. 29 Em Itália, o debate sobre o prolongamento da escolaridade obrigatória, juntamente com o da reorganização do ensino secundário superior, prolonga-se há mais de vinte anos, sem que se tenha obtido uma votação consensual. Em 1985, o Senado aprovou o prolongamento da duração da escolaridade obrigatória para dez anos, mas o Parlamento não o aprovou. Em 1990, a Comissão Brocca preparou novo projecto de reforma do ensino secundário, que incluía o prolongamento da escolaridade obrigatória em dois anos, mas o projecto acabaria por ser bloqueado em 1992, no fim da 315 Na Grécia, após a opção por um curso de uma escola técnica e profissional, cursos mais curtos do que os dos liceus, pode-se ingressar num liceu técnico-profissional e daí aceder-se ao ensino superior, de tipo não universitário, aos Centros de Formação Profissional e Técnica Avançada. Em França, desde 1985, os detentores de um BEP-Brévet d'Études Professionnelles podem cursar o Bac Professionnel e, no seu termo, prosseguir estudos técnicos de nível superior ou aceder ao mundo do trabalho. Em Portugal, desde 1989, após a frequência de um curso tecnológico de uma escola secundária ou de um curso de uma escola profissional, os jovens podem candidatar-se ao ensino superior ou procurar trabalho. Também na Finlândia, no processo de reforma do ensino secundário, iniciado no período entre 1982-1988, se estabeleceu um sistema de equiparação entre ensino secundário geral e profissional. Esta nova perspectiva de paridade ficaria reforçada na reforma do ensino secundário de 1995. Na Suiça, em 1993, com a criação da "maturidade profissional" rompeu-se com uma longa tradição de existência de uma única prova de maturidade, exclusiva para alunos oriundos de um ensino liceal muito elitista, e abriu-se o acesso ao ensino superior às vias profissionais. Em ambos os casos, esta orientação política implicou um reordenamento do ensino superior e a criação de um segmento de ensino superior politécnico, a par do tradicional ensino universitário. A terceira tendência de que falamos consiste no desenvolvimento de um caminho quase oposto ao da segunda tendência, a saber, a integração institucional entre diferentes tipos de escolas e de percursos escolares. Na Noruega, por exemplo, estas preocupações conduziram, desde 1976, à lenta criação de um sistema integrado e tendencialmente universal de escolaridade pós-obrigatória. Os centros escolares passaram a oferecer três Xª legislatura. 316 vias, a geral, a profissional e uma mista, sendo obrigados a garantir um lugar a todo o jovem que o requeira, desde que tenha concluído a sua escolaridade obrigatória. Deste modo, o ónus da obrigatoriedade não recai já sobre o cidadão, mas sim sobre a autoridade local, que passa a tutelar as escolas secundárias. Evidencia-se um claro propósito de retenção e de adiamento, até aos dezanove anos, da entrada no mercado de emprego. Um outro país nórdico e de tradição de ensino secundário de base escolar, a Suécia, seguiu, na década de 70, um percurso semelhante, agrupando num só tipo de escola - Gymnasieskola - os vários percursos gerais e técnicoprofissionais, criando assim uma estrutura comum, mas verticalmente segmentada em opções escolares diversas. Esta tendência integradora, que arranca exactamente nos países de mais forte tradição unificadora nos segmentos do primeiro ciclo do ensino secundário (FolKshcule), apesar de seguir um caminho diferente daquele que descrevemos na tendência anterior, inscreve-se globalmente no mesmo tipo de política governamental dos Estados europeus que tende a substituir, pela via da escolarização, um mercado do primeiro emprego crescentemente fechado. Este mesmo caminho será seguido, no final dos anos oitenta, por vários outros países, deixando de ser uma política minoritária, para passar a constituir uma tendência política comum, como veremos adiante. Estas diferentes medidas de política procuraram responder a uma crescente procura social de educação. A OCDE assinala duas tendências neste fenómeno: de um lado, o maior crescimento dá-se pela expansão das frequências femininas e, do outro, as taxas mais elevadas de crescimento situam-se nos cursos de tipo técnico e profissional (OCDE, 1985:11 e 17). O crescimento da procura social de educação secundária não se processou de modo homogéneo, aliás como seria de esperar, face à diversidade de modelos e às variações entre os modelos predominantes de país para país, 317 havendo uns tipos de formação a beneficiar mais com o crescimento do que outros. O Quadro 4.4 procura ilustrar esta desigual distribuição do crescimento, país por país, registando-se, nos anos setenta e até ao início dos anos oitenta, simultaneamente movimentos tendentes a aumentar tanto a frequência no ensinos técnico e profissional (Austria, Bélgica, Itália, Espanha, Turquia, Reino Unido) como no ensino geral ( Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Holanda, Suécia e Portugal). 318 Quadro 4.4 Evolução da distribuição das frequências segundo o tipo de ensino secundário (Tempo Inteiro + Tempo Parcial) Países Alemanha Áustria Bélgica Dinamarca Espanha Finlândia França Grécia Holanda Irlanda Itália Noruega Portugal R.Unido Suécia Suiça Turquia EUA Japão Prof. 1970 Téc. Geral Prof. 1975 Téc. Geral Prof. 1982 Téc. Geral Técnico e Profissional 1992 Geral 75.5 10.2 14.3 70.4 12.0 17.6 68.7 10.8 20.5 79.6 20.4 66.0 11.1 22.9 67.7 13.8 18.5 63.5 19.1 17.4 76.0 24.0 11.4 31.0 57.6 18.1 30.3 51.6 27.7 27.8 44.5 59.2 40.8 47.4 19.3 33.3 37.8 22.1 40.1 21.3 38.4 37.5 56.2 43.8 8.4 _ 6.4 _ 85.2 _ 23.0 15.4 61.6 29.9 15.9 54.2 41.4 58.6 37.2 15.9 46.9 35.9 13.6 50.5 54.4 45.6 54.1 _ 45.9 _ 70.1 _ 29.9 _ 49.4 8.8 41.8 48.7 10.9 40.4 47.7 12.5 60.2 20.5 1.9 77.6 19.0 2.5 78.5 14.0 4.5 81.5 37.3 30.9 31.8 24.9 30.7 44.4 20.4 38.9 40.7 31.5 2.0 66.5 33.2 0.8 66.0 32.1 0.6 67.3 18.1 40.9 41.0 19.1 44.5 36.4 21.6 44.5 33.9 67.4 32.6 55.0 45.0 51.7 48.3 56.4 43.6 59.8 40.2 22.2 77.8 22.9 77.1 2 98 18 82 39.5 60.5 31.1 62.9 43.3 56.7 57.6 _ 42.4 _ 27.2 _ 11.1 47.2 _ 12.7 25.6 _ 76.2 19.0 52.9 28.1 13.9 56.1 30.0 68.8 6.0 25.2 66.8 8.3 24.9 73.2 26.8 15.2 68.5 _ 14.0 13.8 72.2 43.5 _ 56.5 _ 27.5 72.5 13.3 _ 24.0 76.0 41.5 58.5 37.0 63.0 24.0 76.0 30.3 69.7 Fonte: OCDE (1985, 1995)30 30 Para uma análise pormenorizada destes dados é importante consultar as fontes pois elas incluem um grande número de observações sobre os números e as datas. Para o caso português, corrigimos os valores de 1982 e 1992, com base nos dados do Ministério da Educação. 319 Apesar de se manter uma enorme diversidade de sistemas nacionais de ensino e de formação profissional inicial, não só porque eles assentam em tradições sociais diversas mas também porque as estruturas dos mercados de trabalho são diferentes, as políticas de ensino e de formação profissional constituiram um instrumento político central para os vários governos europeus, na medida em que permitiram aumentar a oferta de educação pósobrigatória e encorajar fortemente a procura (Chisholm,1995), atender uma procura social crescente e fazer face ao desemprego juvenil em ascenção, ao declínio da procura de mão-de-obra pouco qualificada e às preocupações europeias relativas à perda de competitividade na economia mundial (Wolf, 1995). Para além do espaço europeu, e considerando pertinente uma visão mais ampla e breve do problema, os ensinos técnico e profissional inscritos nos modelos escolares de ensino secundário foram também amplamente desenvolvidos e incentivados. Watson (1994) analisa o impacto destes "paradigmas ocidentais" sobre as políticas de educação dos países menos desenvolvidos, nomeadamente esta tendência para a diversificação curricular e verifica que algumas organizações e agências internacionais tiveram um importante papel na disseminação destes referentes. Destaca o papel da UNESCO, que promoveu uma conferência mundial sobre o ensino técnico, em 1976, em que aconselhou os países a diversificar o currículo do ensino secundário. Além disso, refere a influência do pensamento do Banco Mundial e da UNESCO sobre, por exemplo, o encontro de Ministros Africanos de Educação, em Lagos, no mesmo ano, tendo-se registado conclusões inequívocas a favor da introdução dos ensinos técnico e profissional nos níveis de ensino primário, secundário e superior. O mesmo autor assinala também que, nos anos oitenta, 40% da assistência multilateral na educação se dirigiu aos ensinos técnico e profissional e que o Banco Mundial foi responsável por 45% desse financiamento. Esta 320 organização teve, de facto, um papel de liderança na difusão destas perspectivas educativas, o que se traduziu num apoio constante, nos anos setenta e oitenta, à implantação daqueles tipos de ensino e formação, conforme se pode ver no Quadro 4.5. Quadro 4.5. Os investimentos do Banco Mundial no Ensino Técnico e Profissional (19631988) (em milhões de US$ dólares) 1963- 76 1977- 86 1987- 88 Dólares 969 % 100 Dólares 3223 % 100 Dólares 1176 % 100 Secundário diversificado 268 28 94 3 0 0 Secundário profissional Pós-secundário profissional Não-formal Sectores: Agricultura Indústria 248 26 609 19 172 15 202 21 940 29 102 9 251 26 1579 49 902 77 243 658 25 68 409 2591 13 80 302 588 26 50 68 7 222 7 286 24 Total Tipo de Ensino Serviços Fonte: Watson (1994) Anos 80 e 90: ensino secundário, uma alternativa ocupacional Descrito o longo arco do "ciclo do automóvel-petróleo" (1945-meados da década de setenta), para retomar tanto a expressão de J. Schumpeter como a perspectiva de ciclo longo de F. Braudel, instalou-se na Europa Ocidental um tempo de maior instabilidade e de uma muito maior imprevisibilidade. Nas duas décadas que se seguiram ao início da crise (1973-77) sucederam-se importantes mutações cujo impacte social, ora lento ora rápido, apresenta 321 configurações diversas em função das diversas sociedades e das suas características próprias. Assinalem-se, pela sua relevância para a nossa análise, algumas delas: a "década gloriosa da informática" (1975-1985) e o incontrolável crescimento dos seus campos de aplicação, nomeadamente no campo da produção de bens e serviços (Droz e Rowley, 1992); a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o processo de desmembramento do "mundo comunista" que lhe está associado, consequência e causa do colapso das grandes narrativas ideológicas profanas e securizadoras; a progressiva expansão da economia de mercado a todos os mercados do mundo, a concomitante e galopante globalização do liberalismo económico e os processos simultâneos de aceleração da concorrência internacional e da vincada segmentação dos mercados de trabalho; o progressivo alastramento das desigualdades sociais no mundo, entre nações e entre grupos sociais, com a emergência de novos fenómenos de exclusão social; a persistência do desemprego juvenil e o aumento absoluto das actividades e dos empregos de vínculo precário. As mudanças foram vastas e, em certa medida, ininteligíveis. Como refere Hobsbawm, "o facto fundamental das Décadas de Crise não é que o capitalismo já não funcionava tão bem como na Era de Ouro, mas que as suas operações se haviam tornado incontroláveis. Ninguém sabia o que fazer em relação aos caprichos da economia mundial, nem possuía instrumentos para a administrar"(1996:400). O Estado-nação surgia enfraquecido ao lado das novas dinâmicas do comércio internacional e perante o predomínio das perspectivas políticas neoliberais que atribuíam ao "mercado" actividades que, ao longo do século, se tinham concentrado nas mãos do Estado, em nome de uma melhor redistribuição do rendimento entre toda a população e em nome de uma maior eficácia no desempenho dessas actividades. O sistema de produção havia-se transformado, por força sobretudo da 322 revolução tecnológica, da globalização e transnacionalização da economia, e da inerente e crescente competição no mercado mundial, mas, desta vez, sem capacidade para criar de modo automático novos empregos para substituir os empregos perdidos. O número de trabalhadores diminuiu relativamente, absolutamente e rapidamente (Hobsbawm,1996:405). A sensação de insegurança no emprego foi-se transmitindo a sectores que, por tradição, eram estáveis e alcançou os próprios serviços públicos. Não foi fácil, nem se processou rapidamente a tomada de consciência social e política acerca da extensão e da profundidade das duas décadas de contínua reestruturação da economia capitalista e de vastas mutações sociais. Mesmo no tocante ao desemprego, alimentou-se durante algum tempo, pelo menos até à segunda metade dos anos oitenta, a perspectiva de uma retoma iminente, capaz de reabsorver os excedentes de mão-de-obra entretanto gerados. No entanto, eles mantinham-se e ampliavam-se, mesmo quando aumentava a capacidade produtiva e a produtividade. A "geração" dos governantes que enfrentava a "crise" cresceu dentro de um caldo cultural marcado por um longo período de crescimento económico contínuo e a nova "aceleração da história" gerava agora desorientação e perplexidade. A expressão "desajustamento estrutural" (OCDE, 1989) enchia os relatórios técnicos e os discursos políticos, como se deste modo tudo se explicasse, sem nada se dizer de muito relevante. Entretanto, como seria previsível, nos anos oitenta, mantém-se uma elevada pressão da procura das várias modalidades de ensino secundário por parte dos jovens de 16-19 anos e assiste-se, em alguns países, a uma primeira quebra do número absoluto de jovens que demandam este nível de escolarização, como corolário da quebra da natalidade. Chegados ao termo da escolaridade básica e obrigatória, as taxas de transição imediata para estudos ulteriores mantém-se elevada e atinge mais de 90% na Dinamarca, na Suécia e na Finlândia, no termo da década de oitenta. Na Noruega, em 323 1975, 25% dos alunos não prosseguia estudos após o termo da escolaridade obrigatória e um terço dos jovens de 17-19 anos estava registado como empregado a tempo inteiro; em 1992, 95% dos alunos transfere-se directamente da escolaridade obrigatória para o ensino secundário superior. Na Itália, entre 1970 e 1990, a procura do ensino pós-obrigatório aumentou 65%, o que se repercutiu na respectiva taxa de escolarização que passou de 44% para 70%. Em França, a evolução é particularmente rápida: em 1960, a percentagem de acesso ao nível Bac (nível IV de qualificação, em França) era de apenas 11%, em 1970 este valor ascende a 25%, em 1980 sobe para 33% e, em 1992, atinge os 61% (OCDE, 1996). Entre o fim dos anos 70 e o começo dos anos 90, a expansão da frequência do ensino secundário e no ensino superior processou-se a um ritmo muito intenso. Como evidencia Bourdon (1995), as taxas de escolarização de estudos superiores, entre 1980 e 1992, cresceram para o dobro, por exemplo em França e em Espanha, com particular destaque para as raparigas. Na totalidade da União Europeia, segundo a Eurydice, o número de estudantes no ensino superior duplicou em vinte anos (1975 – 1995), tendo sido Portugal e Espanha os países onde o progresso foi mais forte, 3,4 vezes e 2,8 vezes, respectivamente. Em meados dos anos noventa, na União, um em cada cinco jovens dos 30 aos 34 anos possui um diploma do ensino superior (embora com fortes assimetrias entre os países). Com este aumento tão rápido das taxas de escolarização de estudos superiores processam-se saltos enormes na capacidade dos sistemas escolares reterem durante mais tempo a população juvenil no ambiente escolar (Quadro 4.6). Neste mesmo período, o mercado de trabalho foi-se progressivamente fechando para os jovens e o ensino secundário tornou-se, como que inevitavelmente, uma alternativa "ocupacional". 324 Quadro 4.6. Evolução das taxas de escolarização de estudos superiores (1980-1992) 1980 1992 Países H M H M Alemanha 28.7 25.3 34.4 39.6 Bélgica 29.2 23.3 38.1 37.0 Canadá 54.5 6.5 88.1 101.1 Espanha 27.0 21.4 37.6 41.4 EUA 54.1 58.1 68.1 80.1 França 25.5. 25.3 41.1 50.3 Holanda 35.4 24.4 41.6 36.0 Itália 31.4 23.8 32.7 34.7 Fonte: Bourdon, 1995; o autor socorre-se do Anuário Estatístico da UNESCO, de 1994 Entretanto, enquanto a escolarização no ensino secundário e no ensino superior prosseguia a um ritmo crescente, o desemprego do grupo etário 1619 anos diminuía aqui e ali, que mais não fosse devido ao efeito directo da massificação deste segmento do ensino. Todavia, os níveis gerais de desemprego mantinham-se elevados e o seu carácter "estrutural" emergia com mais impacto do que se tinha previsto, no fim dos anos setenta (Papadopoulos, 1994:157). Na maioria dos países ele tinha subido e já atingia e ultrapassava os 10% e, em alguns casos, até os 20 e os 30% (Quadro 4.7.). Não será por acaso que Jacques Lesourne (1995:122) fala, a este propósito, da "recessão de 1990". 325 Quadro 4.7 Taxas de desemprego juvenil (15-24 anos) em países da OCDE Países 1983 1994 1996 Alemanha 11.0 8.2 9.6 Bélgica 23.9 18.4 22.9 Dinamarca 18.9 14.6 10.6 Espanha 37.6 42.8 41.9 Finlândia 10.5 30.9 35.3 França 19.7 27.5 28.9 Grécia 23.1 28.8 31.0 Holanda 24.9 10.2 11.5 Irlanda 20.1 25.1 18.1 Itália 30.5 30.6 33.5 Luxemburgo 6.8 4.4 9.1 Noruega 7.7 7.4 - Portugal 18.3 12.0 16.7 Reino Unido 21.4 17.3 15.5 Suécia 8.0 16.6 21.1 Suiça __ 5.7 - EUA 17.2 12.5 - Japão 4.5 5.5 - Fonte: OCDE (1992 e 1996) e Eurostat Este novo ímpeto das taxas de desemprego juvenil requer uma contextualização económica, em boa parte já realizada no capítulo precedente e que sumariamos de seguida. A economia de mercado espalhava-se por todo o mundo quase como uma referência económica implacável, sobretudo após a queda do Muro de Berlim e do desmembramento do império soviético. O mercado globalizava-se e desenvolvia-se um segmento empresarial de ponta, amplamente incorporador de novas tecnologias de informação e comunicação e altamente concorrencial, dominado por grandes empresas mundiais. Ao nível produtivo, a substituição tecnológica mantinha-se a um forte ritmo, os 326 processos eram racionalizados para diminuir os custos de produção e os níveis de desemprego associados não só se tornavam permanentes, como atingiam agora também os diplomados pelos mais altos níveis escolares. Além disso, a par do desemprego proliferava o subemprego de diplomados e, como o ensino superior se estava a tornar progressivamente um ensino de massas, esta tendência só se poderia ir reforçando (Halls, 1994). Também Juan Carlos Tedesco refere que a massificação dos ensinos secundário e superior tornava possível um efeito de "sobrecertificação" educativa, nomeadamente sempre que a evolução da hierarquia dos empregos não acompanhava a evolução dos novos níveis dos diplomas escolares, registando-se então um grave problema social de não correspondência entre níveis educativos e postos de trabalho (Tedesco, 1995). Neste quadro geral assinale-se também a progressiva expansão da desregulamentação dos vínculos laborais, assistindo-se por toda a Europa a uma proliferação de novos empregos ou "actividades", sustentados em vínculos contratuais precários. Para os jovens do grupo etário em apreço tornava-se cada vez mais difícil vislumbrar o momento de obtenção de um primeiro emprego, a duração desse emprego, a adequação do emprego à formação especializada entretanto realizada, a natureza do vínculo contratual, o número de vezes que teria de mudar de emprego ou de actividade ao longo da vida profissional e a quantidade e profundidade das actualizações de conhecimentos e competências que haveria que realizar ao longo da carreira profissional e, inclusivamente, começava a ser colocada a questão de saber se ainda tinha sentido falar-se em carreira profissional, nos termos tradicionais, ou seja, tendo como referênciais fundamentais a estabilidade, a segurança, a progressão vertical e a longevidade. Tudo levava a crer que era possível doravante assegurar o normal funcionamento da economia capitalista, e com os mesmos ou melhores níveis de produtividade e rendimento, mantendo à margem do mercado de emprego uma boa parte da 327 mão-de-obra disponível. Para os novos candidatos a diplomados pelas formações pós-obrigatórias, este universo problemático não deixaria certamente de influenciar a orientação das suas opções escolares e, em geral, as orientações da procura social. Mas, se se assegurava o normal funcionamento da economia, já o mesmo não se pode dizer do conjunto da sociedade. De facto, o trabalho tornava-se um bem escasso numa época em que, paradoxalmente, era possível, como nunca na história da humanidade, criar trabalho e, além disso, estabeleciamse no espaço europeu ameaças sérias à coesão social. Uma certa ruptura cultural parecia estar a desenhar-se quando a natural aspiração a uma vida de trabalho deixou de ser algo que impõe o seu domínio à existência de cada um e quando, ao mesmo tempo, se desvincula a necessidade de um jovem ter um futuro profissional dos processos de formulação e de legitimação das suas aspirações sociais (Droz e Rowley, 1992). Os itinerários profissionais imprevisíveis, esboçados caso a caso, como se de voos de borboleta se tratasse, representam o corolário de um vasto conjunto de mutações de base económica e são factor de níveis de insegurança e de individualismo que vincam bem significativas diferenças com as décadas anteriores. A retórica subjacente às políticas de educação foi mudando na transição das décadas de setenta e oitenta. A retórica da "grande ilusão" da promoção da igualdade de oportunidades por via do ensino e da formção foi cedendo lugar a um discurso mais centrado sobre a competitividade económica e sobre a eficácia social do ensino e da formação, revalorizando-se deste modo o papel da escola como produtora de mão-de-obra qualificada. Mas repisar esta função social dos sistemas de educação, no início dos anos noventa, e encetar um processo de reprofissionalização do currículo, parecia requerer o enunciado de novas políticas, uma vez que os contextos sociais 328 eram outros. Como sublinha Chisholm, se as décadas de setenta e oitenta foram aquelas em que mais se promoveu o ensino técnico e a formação profissional como a melhor defesa contra o desemprego, também foram o tempo em que os decisores políticos falharam em construir novas oportunidades de integração dos jovens no emprego remunerado e estável (Chisholm, 1995). No que se refere ao ensino e à formação profissional, um outro enfoque político estava a ocorrer. A rarefação demográfica e o envelhecimento da população, que tornavam mais acutilante a necessidade da economia dispor de uma mãode-obra adulta qualificada e adaptada às suas reestruturações, bem como as rápidas mutações técnicas e a inevitável necessidade de uma requalificação permanente, para evitar a progressão do iletrismo funcional entre os activos, constituiram um importante núcleo de factores que estiveram na origem de uma deslocalização do centro político da profissionalização do terreno do ensino e da formação inicial para a formação contínua de activos. A maior parte da mão-de-obra que estará activa nos próximos vinte anos é a que está activa hoje. Gera-se, assim, lentamente, uma deslocação dos olhares políticos para a formação permanente e ao longo da vida. Corolário desta tendência é a preparação, em meados dos anos noventa, de importantes relatórios internacionais, seja por parte da União Europeia, com o Livro Branco sobre a Educação, intitulado "Ensinar e Aprender. Rumo a uma sociedade cognitiva"(1995), seja por parte da UNESCO, com o Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI, intitulado "Educação: um tesouro a descobrir"(1996) e ainda por parte da OCDE, o Relatório sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida, aprovado pelos ministros da Educação em Janeiro e publicado em Abril de 1996, sob o título "Lifelong learning for all". Este processo parece provocar uma reorientação da própria função social da formação inicial, mormente a oferecida nos modelos de ensino secundário superior. 329 Os Estados europeus, continuando a tomar os sistemas de ensino e de formação como instrumentos políticos de primeira importância, encorajam a participação juvenil no ensino e na formação pós-obrigatórios, criando-se um clima não já de obrigatoriedade legal de frequência escolar, mas de obrigatoriedade social. Uma vez desvalorizado o diploma do ensino básico, constatado o fechamento do mercado do primeiro emprego, promovido o declínio da procura de mão-de-obra pouco qualificada, alargando e diversificando a oferta, os decisores políticos europeus instalam igualmente um clima de quebra da relação unívoca entre educação-formação e emprego, contexto este em que aquela obrigatoriedade social ganha toda a sua consistência. Em termos gerais, entre 1980 e 1992, verifica-se a persistência de movimentos contraditórios nos vários países europeus; uns reforçam as vias técnicas e profissionais e outros reforçam as vias de formação “geral” (cfr.Quadro 4.4). A grande maioria dos países considerados, doze em dezassete, apresenta índices de frequência predominantemente situados nas vertentes técnico-profissionais do ensino secundário, registando-se até uma deslocação da procura em direcção a estas áreas nos casos da Bélgica, da Itália, de Portugal e da França. A título de exemplo, neste último país o número de diplomados do ensino técnico e profissional passa, entre 1980 e 1991, de cerca de 314.000 para 426.000, no nível V, de 67.000 para 157.000, no nível IV, e de 37.000 para 86.000, no nível III, seguindo a estrutura de níveis de qualificação adoptados em França (OCDE, 1996a:74). A persistência das tendências mais pesadas não ocorre, no entanto, sem que se manifeste uma evolução com novos contornos. Além do já referido fenómeno de diversificação dos modelos escolares do ensino secundário geral, como via privilegiada de crescimento da oferta de ensino secundário técnico, verifica-se também que nos países em que, a par dos modelos 330 escolares predominantes, se introduziram modalidades de ensino profissional e até o modelo dual, se assiste a uma lenta e progressiva "escolarização" desses modelos. Esta aparece quer como um procedimento de resgate e de nobilitação aos olhos da procura social quer como uma consequência do irresistível alastramento da "forma escolar" de educação e de formação, tal como é definida por Vincent, Lahire e Thin (1994). A "forma escolar", e o modo escolar de socialização que lhe está associado, estende a sua capacidade ordenadora até à panóplia de instrumentos de formação-emprego do modelo não-formal, com um poder de atracção que lhe advém, entre outros motivos, daquilo a que chamámos polarização do ensino superior e das mais altas credenciais escolares e ainda da adopção generalizada dos modos de organização das aprendizagens, dos locais e dos programas de estudo, dos modos de avaliação e dos sistemas de certificação escolares. Sublinha-se, ainda, que, entre os países de ensino secundário de frequência maioritariamente situada em modos profissionalizados, existe uma vaga de progressivo aumento da procura de estudos gerais, como na Holanda, na Dinamarca (Banks, 1994) e na Alemanha (Leclerq,1992; Jonen,1995; Adler, Dybowski e Schmidt,1993; Wolf,1995), apesar de se tratar de sistemas tradicionalmente ancorados nos percursos profissionais. Mais adiante retoma-se esta questão, no quadro de uma leitura mais generalizada e aprofundada das recentes reformas do ensino secundário superior, na Europa. Um novo mandato económico internacional Como vimos, no momento da leitura das teorias sociológicas, o sistema de produção industrial passa, particularmente desde os anos setenta, por processos complexos e acelerados de mutação. Pudemos, nesse momento, 331 deixar claro que se desenvolve uma retórica tecnico-económica que obnubila a persistência de diferentes segmentos no mercado de trabalho, tanto no plano mundial como nos planos nacionais, retórica esta que ignora a complexidade das mutações em curso. No entanto, ela configura-se a nível mundial, expande-se como uma ideologia totalizante na leitura que promove da realidade, é veiculada por vários meios, desde empresas, a peritos, a organismos internacionais, e exerce uma notável influencia na formação do senso-comum e na formulação das políticas nacionais, nomeadamente no campo da educação e da formação. Pretendemos retomar agora alguns dos traços dominantes deste enunciado retórico para argumentar, num primeiro momento, que através dele se está a configurar um novo mandato económico, mandato este que exerce, em cada instante, uma enorme influência na tomada de decisão política e, num segundo momento, que este mandato se repercute de modo directo, poderoso e global sobre o campo das políticas públicas de educação e de formação. Passemos rapidamente em revista esta retórica optimista dominante. Os sectores mais competitivos e mais inovadores da economia configuram um novo tipo de indústrias e novas formas de organização do trabalho. Como vimos, alguns autores designam estes novos rumos da economia capitalista como pós-industriais. Este conceito, regra geral, engloba o novo dinamismo dos sectores de produção não-industrial de serviços e de bens imateriais (informação, design, marketing, publicidade, gestão, serviços financeiros...), a difusão e o impacto generalizados da informação e dos novos meios de comunicação social, o crescimento das interdependências socioeconómicas, a globalização dos mercados e a internacionalização contínua das actividades económicas e dos serviços financeiros, tudo isto envolto em crescentes pressões de índole ambiental. Assiste-se a uma crescente terciarização das economias (comércio, serviços às empresas, serviços financeiros, serviços pessoais, serviços de saúde e 332 administração, novos serviços de informação e de telecomunicações) e a uma introdução massiva das novas tecnologias, quer na produção quer na concepção, na comercialização e no consumo. Os microprocessadores (na robótica, nas tecnologias da informação, na biotecnologia, ...) favorecem a emergência de novos produtos, novos processos e novos empregos, além de provocarem evidentes modificações nas funções dos empregos tradicionais e actuais. Desenvolveu-se, pois, de há uns anos a esta parte, uma importante retórica técnica e política que, à luz da intensa reestruturação da economia, advoga que " a produção em massa e a organização taylorista do trabalho a ela associada tornam-se cada vez mais disfuncionais devido à sua rigidez e falta de adaptabilidade" (Kovacs, 1991:116). A economia capitalista evoluiria, assim, e como já evidenciámos no capítulo anterior, para sistemas de produção pós-tayloristas e flexíveis. Esta retórica tecnico-económica defende ainda que, com a passagem descontínua e progressiva de um modelo taylorista para um modelo póstaylorista de produção, assente na flexibilidade e caracterizado por um novo tipo de organização, as qualificações requeridas em determinados níveis do exercício profissional também registam evoluções muito significativas. Ao novo tipo de produção e de organização estará associado o exercício profissional de tarefas mais amplas e complexas, ao trabalho em equipa, ao auto-controlo de execução de tarefas pelas equipas de trabalho, à interligação das tarefas de concepção/controlo e de execução, à autonomia e à responsabilização das equipas de trabalho, recorrendo-se mais a conhecimentos técnicos e teóricos e empíricos mais amplos e à capacidade de adaptação de cada um às mudanças permanentes. Propaga-se, por via deste discurso dominante, uma visão particularmente optimista acerca do impacto da reestruturação da economia capitalista, dos 333 padrões de produção e de organização do trabalho. A estes são atribuídas novas características, geralmente sem quaisquer reservas ou efeitos negativos, que vão desde a organização do trabalho em equipa, até à criatividade, à iniciativa e ao recurso permanente ao conhecimento, até aos amplos poderes de decisão das equipas de trabalho e à inovação permanente. O "novo sistema produtivo" seria, assim, baseado no uso intensivo de conhecimentos e potencialmente gerador de maior realização humana pelo trabalho, agora requerente de uma nova "inteligência colectiva" ( Brown e Lauder, 1995). Este novo quadro repercute-se obviamente no emprego. As grandes tendências que se verificam são: (a) o crescimento do desemprego, atingindo valores acima dos 20% da população activa em vários países desenvolvidos; (b) uma terciarização extensiva da mão-de-obra e uma redução do emprego industrial; (c) o aumento do emprego associado a funções mais qualificadas e o incremento do recrutamento de quadros intermédios e de profissionais altamente qualificados; (d) o envolvimento do emprego e do exercício profissional por uma enorme mancha de incerteza: quanto aos tipos de profissões que se exercerão ao longo da vida profissional, quanto à duração e ao conteúdo de cada actividade profissional, quanto ao modelo de contratação; (e) uma progressiva precarização dos vínculos contratuais, uma maior flexibilidade na gestão das carreiras profissionais, maior mobilidade intra e interempresas; (f) uma tendência para uma valorização progressiva do autoemprego e do teletrabalho. Se, às transformações da esfera da produção adicionarmos as que resultam dos novos efeitos da acumulação, transmissão e utilização da informação e das que derivam, em geral, da aplicação das novas tecnologias da informação e da comunicação, somos compelidos a concluir, como J. C. Tedesco (1995:22) que "o facto mais importante é o consenso em reconhecer que o conhecimento constitui a variável mais importante na 334 explicação das novas formas de organização social e económica". Neste campo, o sistema escolar, enquanto produtor e distribuidor de conhecimentos e de credenciais, reveste-se de uma nova importância que o mesmo autor apelida de "históricamente inédita". Em França, por exemplo, no fim dos anos oitenta, o Alto-Comité EconomiaEducação estimava que, entre o ano de 1982 e ano 2000, a evolução da estrutura dos empregos na indústria provocaria uma mudança da demografia industrial, conhecida como a passagem do "triângulo" ao "hexágono". Gráfico 4.2 Do triângulo ao hexágono 1982 2000 Engenheiros, técnicos 30% 17% 38% Operários qualificados contramestres 45% Operários não qualificados 45% 25% Fonte: BIPE/HCEE, 1987 Pode reafirmar-se, em síntese, que face às reestruturações em curso na economia se formula uma retórica que valoriza o papel dos sistemas de ensino e de formação na produção de um conjunto de saberes e de competências gerais e profissionais que, tradicionalmente, os modelos formativos de preparação para o trabalho produtivo não desenvolviam, habitualmente demasiado preocupados com o desenvolvimento de 335 qualificações técnicas e concentrados no esforço de especialização profissional. A isto chamamos o novo mandato social, de cariz fortemente económico, sobre as qualificações requeridas aos trabalhadores, à entrada no mercado de emprego e, concomitantemente, sobre o sistema de ensino e de formação. Por mandato social entendemos aqui um conjunto articulado de requisitos que certos grupos sociais, organizações internacionais, redes de peritos e sectores de actividade social em geral identificam, de forma mais ou menos explícita e coerente, para sustentar um determinado ordenamento social global e o cumprimento de certas funções por parte de subsistemas sociais, como o do ensino e da formação profissional inicial. Uma retórica optimista e valorizadora da formação geral Este mandato não se esboça nos anos oitenta; ele formula-se lentamente, desde os anos sessenta, mas só se transforma em discurso social relevante no fim dos anos oitenta e, de modo inequívoco, nos anos noventa. Para a sua formulação contribuem, entre outros elementos, por um lado, o que se refere como sendo um leque de novos requisitos dos empregadores, em termos do perfil de competências desejáveis à entrada do mercado de emprego e, por outro, as recomendações insistentes de organismos e agências internacionais no sentido dos sistemas de ensino e de formação profissional inicial de cada país promoverem a desenvolvimento desse novo perfil de competências. Ambos os elementos interactuam e enformam um dircurso coerente e cada vez mais omnipresente. Ficou bastante claro, através dos estudos da sociologia do trabalho já referidos, que se trata de um mandato enunciado pelos sectores mais competitivos da economia, pelos sectores industriais mais modernos e pelas novas empresas de serviços, mandato este expresso de modo veemente e recorrente por agências e organismos internacionais, revestindo-se desse modo de uma envolvência transnacional e de uma autoridade mundial dificilmente contornáveis e questionáveis. Nesta ordem de ideias, os novos requisitos em termos de 336 competências profissionais, no termo da formação inicial dos jovens, derivam sobretudo de um conjunto de novas características requeridas pela evolução do sistema económico, terreno social onde, no entanto, se continuam a cruzar modelos de produção tayloristas, neotayloristas e póstayloristas. Quanto à emergência do novo perfil de competências profissionais requeridas pelos empregadores, perfil este integrado na referida retórica global, vários estudos empíricos aparecem como seus legitimadores e sustentáculos. Entre um imenso rol podemos citar os estudos de Carnevale (1988), sob encomenda do Departamento Federal do Trabalho, Emprego e Formação dos EUA, de H.M. Levin (1988), de H.M. Levin e Rumberger (1989), de Wellington (1986), do Michigan Department of Education (1989) e de L. Fitzgerald (1986). Esta autora, após uma leitura crítica acerca da necessidade de reforçar o ensino técnico e a formação profissional como forma de preperação para o trabalho, conclui que para se obter um "mínimo suficiente de sucesso", colocar-se no numa generalidade de ocupações, o acento deve desenvolvimento de "competências gerais de empregabilidade" e não de competências profissionais especializadas. Competências "generalizáveis e transferíveis", que correspondem a hábitos de trabalho, atitudes (responsabilidade, interesse, iniciativa), competências de relacionamento interpessoal, além do tradicional "bloco" das competências básicas de tipo intelectual como saber ler, escrever e calcular (1986:268). Mas, como vimos, é nas organizações de cooperação e de financiamento internacional que este novo mandato neoprofissionalista sustenta um dos seus principais pilares, quer no que se refere à sua construção quer no que respeita à sua disseminação. Organismos como a OCDE, o Conselho da Europa, a UNESCO, a UE, a Comissão Europeia, o Banco Mundial e a OIT são altamente responsáveis pela divulgação de um "catálogo" de novos requisistos societais face aos sistemas educativos, disseminação essa que é 337 feita através da realização de estudos comparados, monografias nacionais, conferências e seminários internacionais e da publicação de estatísticas, cujo poder homogeneizador e uniformizador deve ser, desde logo, reconhecido. Mais adiante voltaremos a esta última parte da questão e, de imediato, abordamos alguns traços das mais recentes recomendações das aludidas organizações sobre a problemática que nos ocupa. Face às acrescidas dificuldades de inserção dos jovens no mercado de trabalho, diante de uma muito lenta transformação da organização do trabalho e perante um contexto profissional cada vez mais instável e imprevisível, desenvolve-se, em particular, uma retórica optimista e valorizadora da formação geral. A OCDE, na sua análise acerca da relação entre educação-economia, no relatório sobre "A educação e a mudança estrutural", propõe, como desafio central ao nível do ensino pós-obrigatório, o reforço dos laços que foram progressivamente estabelecidos ao longo dos últimos anos entre os ensinos dispensados nos estabelecimentos escolares e as formações menos "formais" organizadas nas empresas ou no quadro das políticas de mão-deobra. Ao mesmo tempo defende o aumento da parte dos ensinos gerais e teóricos nas formações profissionais. "A tendência para uma convergência mais vincada entre as formações gerais e profissionais a todos os níveis deverá, assim, ser seguida com particular atenção em todos os países membros" (OCDE, 1989:9). E prossegue: "Ao longo dos últimos anos foi-se progressivamente dando conta de que uma boa qualidade dos conhecimentos e das competências permanece mais importante que nunca enquanto, ao mesmo tempo, o processo de aprendizagem tem um impacto considerável sobre a motivação dos alunos, a sua criatividade, o seu espírito de iniciativa e as suas atitudes, tão importantes, em termos de autonomia e de cooperação. 338 Simultaneamente, a ideia de um programa de ensino comum e de competências de bases comuns para todos suscita um interesse crescente nos países membros. Isto implica que se identifique um conjunto de aprendizagens às quais todos os jovens deveriam ter acesso, talvez sob formas diferentes, para ter em conta a diversidade dos seus interesses e das suas atitudes, deixando-lhes sempre algumas possibilidades de escolhas" (OCDE, 1989:9 e 10). No plano europeu, várias são as instâncias e diversos os momentos em que se reclama uma melhoria generalizada das qualificações para fazer face ao aumento da competitividade económica internacional. Vejamos alguns exemplos. O Conselho da Europa, por um lado, desenvolveu, ao longo dos anos noventa, uma importante actividade sobre o ensino secundário. Realizaramse vários encontros e seminários internacionais e publicaram-se monografias sobre o ensino secundário em cada um dos países, sob uma orientação metodológica comum. Esta actividade do Conselho da Europa viria a desembocar na aprovação de duas resoluções, por parte dos Ministros europeus da educação, numa conferência realizada em Kristiansand, em 1997. Os ministros concordaram em adoptar como orientação comum para as reformas do ensino secundário a "aproximação entre o ensino geral e a formação profissional", e a "redefinição da cultura geral num mundo cada vez mais complexo, imprevisível e em rápida mutação, onde o essencial é a formação global de uma personalidade equilibrada, motivada e autónoma" (Conselho da Europa, 1997: 3 e 4). A Comissão das Comunidades Europeias, por sua vez, adoptava, no seu relatório sobre os recursos humanos na Europa face aos anos 90, "Skills for a Competitive Europe, A Human Ressources Outlook for the 1990's", o seguinte enquadramento geral: "Os novos modelos de crescimento 339 acentuam que é o investimento intangível - na educação, formação e transformação tecnológica - que está no coração do processo de desenvolvimento"(1993:19). O investimento em "conhecimento" é visto como tão importante como o investimento em capital e afirma-se a imperiosa necessidade de se realizaram sempre de uma forma articulada. As mudanças estruturais, técnicas e organizacionais nas empresas europeias colocam os "gestores de competências" sob pressão, em ordem a promover as seguintes competências-chave: - competências de marketing (dentro e fora das organizações) - competências de comunicação e capacidade negocial - sensibilidade cultural - habilidade para reconhecer e alcançar resultados." E o relatório remata: "mais que tudo, os gestores (de competências) necessitarão de criar organizações aprendentes. Os gestores precisam de capacitar a mão-de-obra para aprender as técnicas da resolução de problemas e a capacidade para monitorizar a progressão. Todas as técnicas de gestão da qualidade estão a ser visadas para fazer da aprendizagem uma actividade sistemática das organizações". (1993:19) Finalmente, quanto às novas pontes a estabelecer entre educação e formação o relatório identifica as prioridades para uma melhoria dos conteúdos, dos mecanismos de acesso e da mobilidade geográfica e profissional: (i) esclarecer as possibilidades de cada indivíduo progredir dos estudos profissionais e técnicos para o ensino superior; (ii) estabelecer continuidades entre a formação inicial e de adultos através, p. ex., da transferência e acumulação de créditos; (iii) atribuir maior paridade no tratamento entre estudantes dos cursos de formação técnica e dos cursos académicos; (iv) promover a transferibilidade das qualificações, o que oferece a possibilidade de prosseguir a formação, mais tarde, para níveis 340 mais elevados (1993:34). O Memorando sobre "A formação profissional na Comunidade Europeia para os anos 90", construído pelo Comité Consultivo para a Formação Profissional, de composição tripartida, advoga que é na moderna reorganização do trabalho, em que se reduzem as formas tradicionais de divisão do trabalho, se descentralizam muitos poderes de decisão e as tarefas requerem trabalhadores capazes de prever, organizar e realizar o trabalho de forma mais autónoma e autocontrolada, que se sustenta "uma necessidade crescente de qualificações múltiplas ou cruzadas" (1991:8). Para o Comité Consultivo é na capacidade dos sistemas de formação profissional articularem a formação e o trabalho que está, em grande parte, a possibilidade dos jovens adquirirem, conservarem, alargarem e aprofundarem as suas qualificações profissionais como processo contínuo ao longo da vida activa. Para tal é necessário, ainda segundo o Memorando, garantir uma coordenação entre as aprendizagens e os contextos de trabalho concretos e a permanente consideração do trabalho e da empresa na formação profissional, inicial e contínua. Para as aprendizagens e para os parceiros sociais é recomendada uma maior participação activa na formação profissional. Também o Comité Consultivo da UE para a Investigação e o Desenvolvimento Industrial (IRDAC), no seu relatório sobre a "A carência das qualificações profissionais na Europa", de 1991, aponta para a necessidade de se agir com urgência no domínio da educação e da formação para enfrentar três "situações preocupantes": o inigualável envelhecimento da população europeia, a redução da entrada de jovens no mercado de trabalho e o desajustamento entre a formação de que são portadores e os novos perfis de emprego (1991:18). 341 Como principais conclusões e recomendações para o domínio da formação inicial sublinham-se as seguintes: (i) reavaliação das políticas e das prioridades,com ênfase para a formação contínua para todos, em ordem a melhorar as qualificações e actualizar periodicamente a mão-de-obra no activo; (ii) devem ser atraídos para as matemáticas e para as áreas científicas e técnicas mais alunos do ensino primário e secundário; (iii) nenhum jovem deve sair do sistema educativo sem uma compreensão básica da ciência e da tecnologia; (iv) na Europa, ninguém deve sair do sistema educativo ou de formação sem uma qualificação ou uma aptidão; (v) é preciso fazer um esforço estrutural na flexibilização da aprendizagem e da formação à distância; (vi) as novas tecnologias devem ser utilizadas, numa maior escala, na produção e no fornecimento dos suportes didácticos da formação. O Livro Branco sobre "Crescimento, competitividade e emprego" (1993), amplamente divulgado em todas as línguas dos países membros, estabelece as "grandes orientações" para a reforma dos sistemas de educação e de formação profissional para o resto da década de 90. O princípio central que é eleito é o da "valorização do capital humano ao longo de toda a vida activa, partindo do ensino básico e prosseguindo com a formação inicial para, em seguida, encontrar apoio na formação contínua". A Comissão Europeia apresenta com detalhe o seu entendimento acerca da relação entre formação e emprego. "Para lutar contra o desemprego dos jovens sem qualificações, o objectivo deverá ser a instauração de sistemas e fórmulas que permitam assegurar simultaneamente uma formação de base sólida, de nível suficiente, e a ligação entre a formação escolar e a vida activa. As competências fundamentais indispensáveis à inserção social e profissional abrangem ao mesmo tempo um perfeito domínio dos conhecimentos básicos 342 (conhecimentos linguísticos, científicos, etc.) e competências de carácter tecnológico e social: capacidade de evoluir e de actuar num ambiente complexo e de particularmente, grande pela densidade importância tecnológica, das tecnologias marcado, da mais informação; capacidades de comunicação, de contacto e de organização. Abrangem, sobretudo, a capacidade fundamental de adquirir novos conhecimentos e novas competências, de "aprender a aprender" pela vida fora. O percurso profissional efectuar-se-á numa lógica de progressão contínua das competências." (1993: 126) O Livro Branco "Ensinar e Aprender. Rumo à Sociedade Cognitiva"(1995) é peremptório na orientação que dá aos Estados membros da União Europeia: "o desenvolvimento da cultura geral, isto é, da capacidade para captar o significado das coisas, compreender e formular juízos, é o primeiro factor de adaptação à evolução da economia e do emprego" (1995:27). O relatório constata uma "convergência cada vez mais nítida" entre os mundos empresarial e da educação acerca da utilidade de conciliar ensino geral e formação especializada, sublinhando que se assiste mesmo "a um regresso em força da cultura geral", entendendo-o como um "instrumento de compreensão do mundo fora dos quadros do ensino". É, aliás, curioso e sintomático que a Comissão Europeia vá buscar uma posição da MesaRedonda dos Industriais Europeus, de Fevereiro de 1995, para sustentar a sua perspectiva, a saber: "a missão fundamental da educação consiste em ajudar cada indivíduo a desenvolver todo o seu potencial e a tornar-se um ser humano completo, e não um mero instrumento da economia; a aquisição de conhecimentos e competências deve ser acompanhada pela educação do carácter, a abertura cultural e o despertar da responsabilidade social"(1995:27). No fim de 1996, o "Grupo de Reflexão sobre a Educação e a Formação", constituído por peritos oriundos dos diversos países membros da União 343 Europeia, publicava um relatório que dedicava uma parte da reflexão à "relação entre formação geral e formação profissional". O Grupo considera que "a evolução rápida das profissões e a necessidade de conhecimentos de base requerem a adopção do seguinte princípio geral: nenhuma formação geral pode dispensar a preparação para uma competência profissional, nenhuma formação profissional pode dispensar a consolidação das competências de base que são dadas pelo ensino geral" (1996: 36). Entre outras recomendações, o relatório aconselha que as escolas e os professores devem centrar-se sobre a sua missão "que é a qualidade da formação geral" (1993:38), tendo aí tudo a ganhar, quer em termos de aquisição de saber quer em termos de desenvolvimento pessoal. Estabelece-se uma clara distinção entre quem é responsável pela formação geral tanto na escola como na empresa, os professores, e quem é responsável pela formação profissional tanto na escola como na empresa, os "monitores das empresas e outros formadores-engenheiros"(1996:38). Pelo seu lado, a UNESCO aprovou, em Novembro de 1989, na 25ª sessão da Conferência Geral, uma Convenção sobre o Ensino Técnico e Profissional em que reforça, a par da "aquisição de conhecimentos e técnicas indispensáveis ao desenvolvimento económico e social", a necessidade do ensino técnico e profissional cuidar "da realização pessoal e cultural do indivíduo na sociedade" (Artº2º, nº1). E quanto aos progressos do ensino técnico e profissional recomenda, na esteira da Recomendação sobre o Ensino Técnico e Profissional, aprovada em 1974 (parágrafo 26), que "devem responder às exigências do sector profissional a que respeitam e também assegurar a formação geral necessária ao desenvolvimento pessoal e cultural do indivíduo e compreender, entre outras, noções sociais, económicas e respeitantes ao meio ambiente, na sua relação com a profissão (Artº3º, nº3). Além disso, a Convenção afirma permanentemente a necessidade de 344 estabelecer as mais diversas pontes entre os sistemas de educação e formação e as empresas/locais de trabalho. No seu estudo internacional e comparado sobre a integração entre a formação geral, técnica e profissional, a UNESCO conclui que, não havendo uma solução para o problema da integração, uma vez que cada país encontrou uma estratégia adequada à situação local, “uma coisa, entretanto, é muito clara: há definitivamente uma tendência global em direcção à integração” (Unesco, 1986:307). Em 1991, na sua 26ª Conferência Geral, a UNESCO veio repisar que as transformações em curso na indústria e nos serviços produzem um aumento incessante do “conteúdo conceptual dos empregos”, o que requer “vastas competências gerais teóricas e a aptidão para trabalhar em equipa. É por isso necessário”- conclui o documento- “dar um lugar maior à formação geral teórica no ensino técnico e profissional” (Unesco, 1991:7). Mais recentemente, no seu relatório sobre a educação para o século XXI, publicado em Abril de 1996 e elaborado por uma comissão internacional de peritos, "Educação: um tesouro a descobrir", a UNESCO enuncia que entre os vários papéis que estarão reservados para a educação escolar nos próximos anos, está o de "fazer com que cada um tome o seu destino nas mãos e contribua para o progresso da sociedade em que vive, baseando o desenvolvimento na participação responsável dos indivíduos e das comunidades" (Unesco, 1996:73). E prossegue: "O princípio geral de acção que deve presidir a esta perspectiva dum desenvolvimento baseado na participação responsável de todos os membros da sociedade é o incitamento à iniciativa, ao trabalho em equipa, às sinergias, mas também ao auto-emprego e ao espírito empreendedor; é preciso activar os recursos de cada país, mobilizar os saberes e os agentes locais, com vista à criação de novas actividades que 345 afastem os malefícios do desemprego tecnológico" (1996:73). Esta reposição de uma visão humanista da educação escolar, centrada na formação geral, ocorre no quadro de uma actualização teleológica dos sistemas educativos, numa época em que parecia não haver outras finalidades para debater, resolvida que parecia estar a submissão completa da educação quer às finalidades económicas quer à lógica da reprodução das desigualdades sociais. Também a Organização Mundial do Trabalho (OIT) tem vindo a exercer uma influência assinalável sobre as políticas nacionais de ensino e de formação. Em 1975, foram aprovadas uma Convenção e uma Recomendação sobre “A orientação profissional e a formação profissional no desenvolvimento dos recursos humanos”. Nestes documentos estabelecem-se e retomam-se permanentemente orientações políticas que percorrem dois grandes eixos: por um lado, a necessidade de se adoptarem políticas e programas unificados e articulados entre orientação, formação e emprego; por outro, a importância de fomentar o desenvolvimento de cada um, “de acordo com as suas próprias aspirações e tendo em conta as necessidades da sociedade”, no seio de sistemas “abertos, flexíveis e complementares de ensino geral, técnico e profissional, de orientação escolar e profissional e de formação profissional”31. O Banco Mundial, por sua vez, no seu documento de política geral sobre o ensino técnico e a formação profissional, de 1991, vem recomendar a descentralização e flexibilização da oferta de formação técnica e profissional (World Bank, 1991). No seu entender, a adequação entre a formação e as necessidades do mercado de emprego aumentará não só pela diminuição da intervenção do Estado e das entidades públicas, que deverão investir prioritariamente na melhoria da formação geral, mas também pela progressiva intervenção do sector privado da economia na formação 31 Os dados da OIT foram recolhidos junto da Organização, em Genebra, e os textos seleccionados foram analisados na Internet, na página ILO, através da consulta da base de dados ILOLEX (1997). 346 profissional especializada. Como argumento para esta "mudança radical na sua maneira de abordar a controvérsia educação-desenvolvimento" (Foster, 1992), a que nos referimos no capítulo anterior, o Banco Mundial aponta a maior produtividade do ensino geral e o exemplo dos países que, por terem investido sempre e mais na qualidade de formação geral, revelaram índices de desenvolvimento económicos mais espectaculares. Esta nova posição do Banco Mundial é paradigmática, na cena internacional, do enorme arco descrito nos últimos cinquenta anos quanto ao modo dominante como se foi encarando o lugar e o papel do ensino técnico e da formação profissional inicial no sistema escolar. Um arco cujo traço foi escrito em cima de uma polémica permanente acerca desse mesmo lugar e papel. Aquilo que o Banco Mundial vem recomendar, nos anos noventa, no que se refere ao desinvestimento neste tipo de ensino e formação,em termos escolares, é, em boa medida, o reconhecimento oficial e a seu tempo das perspectivas críticas que, desde os anos sessenta, os anos de investimento, o proclamavam como uma falácia. Nos anos 60 e 70, como vimos anteriormente, o Banco Mundial tinha desenvolvido a sua política de empréstimos fornecendo bens de equipamento e favorecendo o crescimento da oferta de ensino técnico e profissional, mormente no seio do ensino secundário, onde propunha os chamados "programas de diversificação", nos tradicionais estabelecimentos de ensino clássico ou geral. Em 1991, no seu novo documento de política geral em matéria de ensino ténico e profissional (World Bank,1991), o Banco Mundial estima reduzir consideravelmente a sua ajuda financeira aos governos para o ensino profissional e técnico e contribuir sobretudo para a melhoria da qualidade do ensino "geral", nos ensinos primário e secundário. 347 P.Foster explica esta viragem pela intervenção de três factores, a saber: (a) os dados empíricos obtidos pela observação dos resultados das políticas seguidas; (b) os índices fornecidos pela história, nomeadamente o maior investimento no ensino geral verificado nos países com melhores resultados escolares; (c) e a renovação da equipa de economistas do Departamento de Educação do Banco Mundial, que passaram a sustentar uma planificação da educação "no quadro de uma economia de mercado descentralizada". Nesta óptica, não estamos perante uma nova moda, mas diante de uma "mudança profunda e a longo prazo de toda a política do Banco respeitante ao desenvolvimento" (Foster,1992:173). A nova perspectiva do Banco Mundial, apresentada por J. Middleton, A. Ziderman e A. Van Adams, parte do pressuposto de que a formação no sector privado, promovida por empregadores privados e instituições de formação privadas, pode constituir "a forma mais efectiva e eficiente de desenvolvimento das competências da mão-de-obra" (World Bank, 1991:7). Aos governos cabe participar neste processo de melhoria da "productividade e flexibilidade da força de trabalho" investindo na educação geral, aos níveis primário e secundário. Ao ensino secundário académico e de qualidade é atribuído o papel de fornecer as bases sólidas para uma aprendizagem permanente ao longo da carreira e para sustentar o auto-emprego, sendo inequivocamente secundarizada a introdução de cursos profissionais no ensino secundário. Os recursos que se investiriam nestes cursos, segundo o Banco Mundial, serão melhor realizados se incidirem na melhoria da qualidade do currículo académico ou do acesso a esse tipo de ensino. E, sinal dos tempos, concluem que estes programas "diversificados não são mais eficazes do que o ensino secundário académico para habilitar os diplomados para obter um salário ou para o auto-emprego" (1991:9). Em consonância com esta nova óptica, o Banco Mundial sugere aos governos a criação de um clima favorável à expansão da formação no sector 348 privado, através de incentivos que reduzam as disparidades existentes e de políticas compensatórias, quando aqueles não puderem ser levados a cabo. Para encorajar o incremento desta reorientação das políticas de formação os governos devem tomar medidas em quatro vertentes: estimular o clima político que favoreça a assunção da formação pelo sector privado, encorajar directamente a formação dada pelos empregadores, reduzir as barreiras colocadas ao sector privado na promoção da formação e promover a eficiência da formação oferecida por entidades públicas. Após esta rápida revisão do posicionamento de alguns organismos intergovernamentais e agências internacionais que estão a marcar profundamente um novo ritmo e uma nova direcção para as políticas de ensino e de formação profissional inicial dos jovens, convém sublinhar de modo mais tipificado e sintético a natureza desta pressão. Em síntese, quando se recomenda que é necessário aumentar o nível geral das qualificações da população jovem, quando se reitera que a formação técnica e profissional prévia à entrada no mercado de emprego não deve ocupar-se da especialização, mas do desenvolvimento de uma sólida formação "geral", quando se afirma que é necessário dotar os jovens em formação inicial da adaptabilidade requerida pelas novas configurações do mundo profissional, quando se advoga que, nesta mesma formação inicial, é necessário reforçar sobretudo competências do domínio comportamental, estamos diante de uma corrente ideológica global (Benavot, 1983) que apela à realização de "reformas" escolares que constituem, antes de mais, importantes adaptações aos requisitos de uma economia em profunda reestruturação e de uma sociedade em mudança acelerada. Se nos anos setenta e em grande parte dos anos oitenta as políticas de ensino e de formação profissional inicial se situaram predominantemente na perspectiva de melhorar os mecanismos de "transição entre a escola e a vida 349 activa" e, em vários países, na especialização da formação profissional, na expectativa de uma melhoria dos níveis de desemprego conjuntural, nos anos noventa constatou-se que, em geral, estes níveis não se reduziram significativamente e as políticas orientaram-se mais no sentido do diferimento da entrada dos jovens no mercado do primeiro emprego, prolongando tendências do passado, mas num quadro marcado agora por uma incerteza e imprevisibilidade sem precedentes. Diante destes problemas estruturais os governos europeus tendem a promover uma metamorfose bifronte: por um lado, os problemas do desemprego e da lenta mudança na organização do trabalho são transformados em problemas do foro político da educação e da formação, colocando-as sob reforma contínua; por outro, a imprevisibilidade e a incerteza que povoam os percursos de inserção socioprofissional dos jovens e a instabilidade que se instala crescentemente no mercado do primeiro emprego são transformados em problemas contidos na equação formação profissional-formação geral. Esta última, a formação “geral”, parece ser a nova via para cumprir hoje os objectivos de adaptação da educação à economia, tal como ontem se pretendia fazer pela via da formação especializada. Trata-se, tudo o indica, de um mandato societal que, assente na matriz socioeconómica, está a ter largas repercussões sociais e culturais. As reformas em curso nos anos noventa,mormente no ensino secundário, vão beber sofregamente esta ideologia modernizadora e estabelecer como seu eixo estruturante a retórica que lhe subjaz. É o que veremos de seguida, assinalando recentes reformas do ensino secundário em vários países da Europa Ocidental. 351 Capítulo 5 As recentes reformas do ensino e da formação de nível secundário (anos 90) Este capítulo apresenta uma breve descrição das reformas do ensino e da formação de nível secundário que foram consideradas na pesquisa, após o processo hermenêutico empreendido. Os critérios que presidiram à sua escolha já foram devidamente apresentados no capítulo 2, referente à introdução geral à investigação. Os casos descritos, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Itália, Noruega, Suécia e Suiça, foram seleccionados como sendo o conjunto dos países da Europa Ocidental onde, na primeira metade da década de noventa, ocorreram reformas no nível secundário em que é patente o esforço de integração curricular e até institucional e onde se empreenderam desespecializações das formações técnicas e profissionais. O caso de Portugal, como já se referiu na introdução geral, não é aqui incluído, embora um movimento reformador semelhante tenha ocorrido entre nós. Por integração curricular entende-se o esforço de aproximação entre os planos de estudo de diferentes modalidades de ensino e de formação, ao nível secundário, em ordem à redução progressiva das diferenças entre elas. O conceito de integração institucional ou estrutural alude aos movimentos, concomitantes com os anteriores, em que a integração curricular é acompanhada de uma aproximação entre diferentes tipos de escolas, havendo casos em que se criam novas escolas unificadas ou polivalentes. Por desespecialização entende-se o movimento de redução, mais ou menos drástica, do número de cursos técnicos e profissionais especializados e a construção de planos de estudos ditos mais “gerais” e “polivalentes”. 352 Para cada país segue-se um esquema implícito de apresentação que compreende as seguintes partes, apresentadas por este ou outra ordem: (i) descrição da diversidade da oferta existente no ensino e na formação de nível secundário; (ii)apresentação de fluxos da procura entre as várias modalidades de ensino e de formação e (iii) breve enumeração de alguns elementos relativos ao contexto socioeconómico, com destaque para a evolução do emprego juvenil. De seguida (iv) é apresentada a reforma em questão, nos termos em que ela é anunciada e enunciada pelos próprios Ministérios da Educação de cada país, o seu contexto, os seus objectivos, as suas finalidades e as suas propostas concretas. Faz-se ainda referência (v) à criação de comissões e grupos de trabalho, ao estabelecimento de dispositivos legais de adopção das medidas de política e à participação dos parceiros sociais na preparação destas mesmas medidas. Pretende-se, deste modo, com este trabalho empírico, identificar as opções políticas realizadas e os fundamentos que subjazem às medidas tomadas. A principal fonte de informação são os documentos oficiais dos Ministérios da Educação de cada país, normalmente de dois tipos. De um lado, monografias que descrevem o sistema de ensino nacional e, do outro, documentos de apoio ao lançamento das reformas em análise. Pretendeuse, assim, reunir uma informação que fosse pertinente para tratar estes processos de mudança, usando a sua linguagem “natural”, declarativa e normativa. Por outro lado, aqui são apenas consideradas as fases de implementação ou avaliação do real impacto dos processo de reforma. Apenas se têm em conta as fases de preparação e de concepção, de construção normativa e, se fôr caso disso, de experimentação. Estes são os momentos que seleccionamos como relevantes para a análise que decidimos levar por diante, pois é neles que se traduzem mais imediatamente os fundamentos das opções políticas que subjazem às medidas empreendidas. 353 Optamos por proceder a uma descrição de cada uma das reformas e, de seguida, apresentamos um primeiro esforço de síntese acerca dos seus traços comuns. Terminamos o capítulo com um sumário de outras leituras destas mesmas reformas e das tendências que nelas se encontram mais ou menos dormentes. O Caso da Dinamarca O ensino secundário superior da Dinamarca é muito diversificado e é oferecido por diversos tipos de instituições educativas. Existem duas fileiras principais de ensino geral do segundo ciclo: os liceus, que conduzem ao diploma de fim de estudos secundários (Gymnasium) e os estabelecimentos específicos (HF) que prepararam também os jovens para a realização do exame do fim do ensino secundário (de segundo ciclo). Paralelamente, existem as escolas comerciais e as escolas técnicas, que preparam para o diploma superior de comércio (HHX) e para o diploma superior técnico (HTX). Além destas modalidades, os jovens podem ainda escolher as formações profissionais de base, em qualquer uma dos seus novos 85 cursos, as formações do sector social e da saúde e outras formações complementares.O organigrama que se segue procura ilustrar esta diversidade (figura 5.1.). O esforço do Ministério da Educação e da Investigação (MER) tem sido o de coordenar toda a oferta de formação após a realização do ensino básico. Assim, em cada ano, em Fevereiro, todos os jovens do 9º e do 10º anos são informados acerca de todas as oportunidades de formação e recebem um formulário de inscrição. Até 15 de Março podem candidatar-se a três tipos de estudos diferentes e a duas escolas escolhidas 354 para cada formação desejada. A resposta da escola escolhida é dada um mês depois e, em geral, os candidatos são admitidos (93%). Figura 5.1. Organigrama do sistema escolar da Dinamarca - Ensino Secundário - Ensino Superior e Formação Complementares Escolas de Continuação Escolas de Produção Escolas de Jovens Ensino e Formação Profissional Escolas Comerciais Escolas Técnicas HHX HTX Escola Primária (9 anos) Escola Infantil Fonte: Ministério da Educação da Dinamarca Diplomas de Preparação Exame Liceus 355 Na Dinamarca, o desemprego, em 1991, atingia cerca de 11% da população activa. A taxa de desemprego tem vindo a subir desde 1987 e é simultânea com uma estagnação no crescimento económico. A partir de 1991, as estatísticas relativas ao desemprego não pararam de aumentar. Quanto aos fluxos de distribuição dos estudantes após a escolaridade obrigatória, o quadro 5.1. procura transmitir a dinâmica evolutiva da década de 80. Verifica-se que as novas admissões têm vindo a dirigir-se mais acentuadamente para as formações técnicas e profissionais, as que já eram as mais procuradas no fim dos anos 70. No entanto, John Banks, no seu relatório ao Programa PETRA32, sublinha que a proporção de jovens que escolhe o ensino secundário geral está a aumentar nos anos 90 atingindo já perto de 46% (Banks, 1994: 29). Quadro 5.1. Distribuição da população escolar após a escolaridade obrigatória, na Dinamarca, entre 1981/82 e 1990/91. % 1981/82 83/84 85/86 87/88 89/90 90/91 32 31 32 32 33 34 54 56 59 59 59 59 Outros 1 1 0 1 0 0 TOTAL 89 88 91 92 93 93 Ensino Secundário Geral Ensino Técnico Profissional e Fonte: Ministério da Educação da Dinamarca (1994) 32 O Programa PETRA foi um programa da Comissão Europeia intitulado: Programa de acção comunitária sobre a formação profissional dos jovens e a sua preparação para a vida adulta e profissional. 356 1989 e 1990: os anos da mudança legislativa das formações profissionais e das escolas profissionais O sistema dinamarquês de ensino e de formação foi objecto de uma vasta reforma, em 1990. Esta reforma, segundo o MER, visou adaptar o sistema de ensino e de formação às mudanças sociais recentes e torná-lo mais atractivo para um maior número de jovens. Em 1990, perto de 57% dos jovens entre os 16 e os 19 anos prosseguiram estudos. Um terço encaminhava-se para o ensino geral e dois terços dirigiase para o ensino profissional e para o sistema de formação profissional. Durante os anos 80, o desemprego juvenil foi aumentando e a procura social dos vários tipos de ensino secundário também cresceu muito rapidamente. A procura revelou uma orientação cada vez mais acentuada em direcção ao ensino secundário geral, uma vez que “para muitos jovens e seus pais o ensino geral tem um status mais elevado” (The Danish M.E.R., 1994: 20). Simultaneamente, a população jovem decresceu consideravelmente. Criouse, assim, um quadro social que motivou os parceiros sociais e o poder político para a realização de “um esforço extra para atrair mais jovens para o ensino profissional e para o sistema de formação profissional”(ibidem). Em 1985, o Ministério da Educação solicitou a um gabinete de estudos a análise da gestão das escolas profissionais. No seu relatório de 1986 este gabinete fez um conjunto de propostas que viriam a ser, em boa parte, acolhidas em legislação de Março de 1989, que estabeleceu um novo sistema de gestão para as escolas profissionais. As principais áreas de intervenção eram as seguintes: descentralizar responsabilidades que deviam ser delegadas às escolas; introduzir a direcção por objectivos; fundar o sistema de financiamento sobre 357 mecanismos autoreguladores; redefinir as missões dos órgãos consultivos. Em Maio de 1986, o Ministério da Educação designou uma Comissão encarregada da revisão das formações profissionais de base. O mandato desta “comissão de reforma”, em que os parceiros sociais estavam fortemente representados, pressupunha que era necessário proceder a mudanças significativas para que a formação “fornecesse à vida económica um apoio suficiente” (Nielson, 1995: 30). Os problemas que, na época, se enumeraram eram os seguintes: (a) o sistema de formação profissional de base é difícil de compreender; (b) está dividido em um demasiado elevado número de formações; (c) o sistema é duplo, uma vez que contém a formação dada por um mestre artesão e a formação EFG (Ensino Profissional de Base); (d) caracteriza-se por uma grande lentidão na sua capacidade de reagir à evolução de sociedade e do emprego; (e) o ensino está dividido em disciplinas especializadas e disciplinas comuns (Nielson, 1995). A proposta de reforma surgiu em 1987 e apontava para um sistema que fosse ao mesmo tempo de formação dos jovens, um sistema qualificante e um sistema que constituisse a base de estudos complementares. A proposta traduziu-se num um novo modelo, reunindo as formações de aprendizes, as formações EFG e as formações de técnico de nível de base. A Lei sobre as Formações Profissionais foi aprovada pelo Parlamento em 30 de Março de 1989 (nos cem anos do sistema de aprendizagem) e entrou em vigor em Janeiro de 1991. Pode dizer-se que, a partir de Janeiro de 1991, o sistema de formação profissional inicial na Dinamarca se modificou profundamente. O seu ordenamento interno é outro, a ligação aos parceiros sociais reforçou-se e a gestão das escolas tornou-se mais autónoma. 358 Este reordenamento do ensino e da formação profissional contém, como grandes objectivos das suas vias de formação, os seguintes: − suscitar o interesse dos jovens pela educação e garantir que o conjunto dos jovens que deseja obter uma qualificação profissional disponha de mais possibilidades de escolha entre várias orientações; − fornecer aos jovens uma qualificação tendo em vista a obtenção de emprego e favorecer o seu desenvolvimento pessoal e a sua compreensão da sociedade e da sua evolução; − satisfazer as necessidades do mercado de emprego em qualificações gerais e profissionais adaptadas à evolução do comércio, da produção e da sociedade e, em particular, a evolução da organização do sector empresarial, do mercado de emprego, da organização do trabalho e da tecnologia; − fornecer aos jovens uma base sólida para o prosseguimento dos seus estudos e da sua formação (Jensen, 1995 e OCDE, 1995). O novo ensino técnico e profissional de base: desespecialização e integração curricular O novo Ensino Profissional de Base, veio criar um novo sistema único de ensino profissional de base, após uma longa tradição do sistema de formação em aprendizagem e uma mais recente criação do “ensino profissional da base” (EFG), modalidade que se debatia, desde os anos 70, como vários problemas de inadequação e que sofria fortes críticas dos representantes das empresas. Antes da reforma de 1990, o ensino e a formação profissional organizavamse em aproximadamente 300 cursos diferentes e especializados. Uma das 359 principais alterações consistiu em reduzir o número de cursos para 85. Cada um deles contempla uma ou mais especializações terminais (ex. na área dos transportes existe um só curso mas ele contém onze especializações terminais). O novo sistema de ensino e de formação profissional assegura também uma vasta gama de cursos de mais curta duração destinados a trabalhadores que desejam aumentar as suas qualificações. No início dos cursos de formação profissional existem duas fileiras de formação, a fileira escolar e os estágios práticos. A “via escolar” está organizada como um 1º e 2º períodos escolares combinados, compreendendo 40 semanas de escola. A “via de formação prática” é baseada, desde o início, num contexto de formação em empresa. Durante o primeiro ano de formação o estudante frequenta semanalmente, em alternância, a escola (2 dias) e a empresa (3 dias). No início do segundo ciclo escolar (ao fim do primeiro ano), as duas fileiras formam um tronco comum, onde os alunos recebem a mesma formação. A duração e o conteúdo da formação são idênticos e os cursos têm entre três e cinco anos de duração. Em 1991, cerca de 75% dos jovens admitidos nas escolas com este cursos técnicos escolhiam a fileira escolar (OCDE, 1995: 49), enquanto que, em 1990, os que o faziam eram apenas 56%. A formação reforça um modelo de alternância entre a vertente escolar e o estágio em empresa. Tendo em vista favorecer a frequência da formação prática e da formação em empresa e como se registava uma tendência para a diminuição do número de lugares de aprendizagem, o Parlamento adoptou, em 1992, um sistema de incentivos para que as empresas pudessem abrir novos lugares para acolhimento de formandos. 360 Todos os programas das várias vias de formação compreendem quatro tipos de matérias, na vertente escolar: − matérias fundamentais, representando um terço das horas de cada curso; − matérias específicas de cada sector de actividade, representando um terço de cada curso; − matérias especializadas e matérias opcionais, cada uma delas representando um sexto do curso. Na reforma do ensino e da formação profissional de 1990 as organizações patronais e os sindicatos desempenharam um importante papel ao nível da reorganização curricular. Actualmente, são as organizações profissionais que definem as fileiras de formação e as suas especializações. Para o Ministério da Educação e da Investigação as matérias fundamentais são importantes, na medida em que visam fornecer aos alunos os elementos de uma forma geral e profissional alargada. O objectivo deste ensino, segundo o Ministério, é o de favorecer o desenvolvimento individual dos alunos, facultar-lhes uma compreensão da sociedade e ainda prepará-los para o prosseguimento de outros estudos. Nos novos cursos procura-se combinar aquilo que é formação geral com os assuntos específicos de uma dada área e ainda com os interesses dos alunos. A larga base que se instituiu na formação profissional visa desenvolver as bases de conhecimento, criar flexibilidade ocupacional e instituir as bases para a continuação de estudos. Além disso, o desenvolvimento pessoal dos estudantes é assegurado através de estimulação do desenvolvimento pessoal e social dos jovens, através da promoção de capacidade dos estudantes para aprender, do desenvolvimento 361 da independência, da criatividade, da capacidade de cooperação, das competências analíticas e da auto-confiança pessoal. A formação dos alunos valoriza também a sua compreensão da sociedade, dos sistemas políticos formais e não-formais, bem como das condições de funcionamento do mercado de emprego e do mundo do trabalho. Deste modo, pretende-se assegurar aos estudantes adequadas qualificações profissionais, gerais e específicas (The Danish M. E. R., 1994: 25 e 26). O relatório dinamarquês para o CEDEFOP também acentua esta tónica: as formações profissionais são também formações gerais que visam não só apoiar os jovens nas suas actividades profissionais específicas, como preparar os jovens para o prosseguimento de estudos e ainda sustentar as aprendizagens ao longo da sua existência (Nielson, 1995: 43). Nesta reforma defende-se que as escolas e os professores devem adoptar uma “perspectiva holística de ensino”. Por este conceito estende-se que as escolas profissionais devem promover uma formação que integre matérias profissionais e gerais, formação prática e aprendizagens teóricas; o ponto de partida deve ser a qualificação profissional e a escolha profissional específica de cada aluno e, a partir daí, deve construir-se uma diversidade de articulações para o fomento de competências gerais, pessoais e sociais (Banks, 1994:87). O Ministério da Educação e da Investigação e os organismos ligados à actividade produtiva e empresarial concordaram em atribuir um nível teórico mais elevado aos cursos de formação profissional e acordaram ainda no facto de que todos eles deveriam permitir aos estudantes o prosseguimento directo de estudos num curso superior. Uma vez que foi atribuída nesta reforma mais autonomia às escolas, que passaram a dispor de organismos de cooperação com os parceiros 362 empresariais locais, o mesmo curso pode ter diferentes configurações programáticas de local para local. No entanto, a estrutura fundamental das formações profissionais é a formação em alternância, em que a aprendizagem prática em empresa constitui perto de dois terços da duração total da formação. Esta articulação, que pode ser feita com uma ou com várias empresas, estabelece-se na celebração de um contrato de formação entre o aluno e a empresa de acolhimento. Para auxiliar a implementação das reformas do ensino técnico e da formação profissional, aprovadas em 1991, foi apresentado no Parlamento, em Novembro de 1993, o Plano de Acção “Educação Para Todos”. O seu objectivo principal, segundo o MER, é o de criar um sistema de educação dos jovens mais flexível, mais eficiente e mais centrado no aluno, nos anos seguintes, até ao ano 2000. Os objectivos centrais enumerados são cinco: (a) o aluno deve ser o foco principal; (b) todos os jovens devem ser envolvidos; (c) todos os tipos de educação dos jovens devem desenvolver a personalidade e a criatividade dos alunos; (d) o sistema de educação dos jovens deve possibilitar sequências educativas individuais; (e) o desenvolvimento de líderes escolares e dos próprios professores deve ser estimulado através de experiências e projectos educativos de escola. Entre as acções que são desencadeadas de novo destaca-se o desenvolvimento de uma rede de serviços de orientação escolar e a cooperação interministerial para fazer face aos alunos mais atrasados em termos escolares e mais desfavorecidos socialmente. O ensino geral e profissional de nível secundário superior O ensino geral é desenvolvido nos “Gymnasium” e nos cursos de 363 Preparação para o Exame do Secundário (HF). O ensino técnico profissional de nível secundário é oferecido nas escolas de ensino comercial (HHX) e nas escolas de ensino técnico (HTX). Os “Gymnasium” oferecem cursos de três anos, que conduzem ao diploma de fim de estudos secundários e visam, segundo a sua lei ordenadora de Junho de 1990, fornecer aos alunos um ensino geral e prepará-los para o prosseguimento de estudos. Este mesmo normativo regula as fileiras HF destinadas a fornecer um ensino geral a jovens e adultos e a preparar para o prosseguimento de estudos. O diploma de fim de estudos secundários de segundo ciclo pode ser obtido não só após dois anos de estudos secundários e aprovação no exame final, como também após aprovação em exame, disciplina a disciplina, a que se podem candidatar quaisquer alunos oriundos de qualquer modelo de ensinoaprendizagem. A formação nas escolas secundárias (“Gymnasium”) compreende três anos e desenvolve-se em duas linhas diferentes: línguas e matemática. Os cursos comportam disciplinas obrigatórias e matérias opcionais, sendo estas de dois níveis, elevado e médio. O Curso de Preparação para o Exame do Secundário (HF) foi uma modalidade introduzida em 1967, num contexto de extensão das possibilidades educativas para novos grupos sociais. Originalmente tratavase de uma fileira de dois anos de estudos, destinada a eventuais candidatos a uma formação de professor e, em particular, destinada a raparigas. Os alunos eram originalmente mais velhos ou então alunos que, por razões sociais ou individuais, não tinham conseguido aceder à via tradicional de acesso ao ensino superior. Actualmente, por legislação de Junho de 1990, a fileira HF está transformada numa via alternativa de formação geral 364 conducente ao diploma de fim de estudos secundários. O ensino técnico ao nível do ensino secundário realiza-se através de dois tipos de vias: as escolas de estudos comerciais e as escolas de estudos técnicos. As primeiras conduzem ao diploma de estudos secundários comerciais (HHX) e as segundas ao diploma de estudos secundários técnicos (HTX). Enquanto que o primeiro modelo remonta ao séc. XIX, o segundo nasceu um século depois, nos anos 80, respondendo “a uma necessidade de alargamento das possibilidades de ensino e formação, à saída do primeiro ano de ensino e de aprendizagem profissional, e de abertura de uma nova via de acesso ao ensino superior técnico, num contexto caracterizado por uma baixa constante do número de operários qualificados que prosseguem estudos nas instituições de formação de engenheiros e por um aumento sensível do número de diplomados pelo ensino secundário geral” (Jensen, 1995: 16). Em termos pedagógicos, a fileira HTX compreende um período de ensino profissional, de um semestre a um ano de duração, seguido de um período de dois anos de ensino profissional secundário.O currículo abarca um certo número de disciplinas técnicas e de ateliers, ciências naturais, línguas vivas e ciências sociais. Um terço das horas do plano de estudos é constituído por disciplinas de opção. No segundo ano, a fileira divide-se em várias especialidades: técnicas de construção, mecânica, electricidade e técnicas industriais. Antes de se poderem candidatar ao ensino superior técnico e aos institutos de formação de engenheiros, os alunos têm de passar por um tempo de formação prática na empresa. O relatório para o Conselho de Europa sublinha que os objectivos das fileiras comerciais e técnicas foram “reforçados no plano académico” (Jensen, 1995: 365 34). A fileira HHX compreende cursos de três anos. Em 1990 foi adoptada também a lei sobre o Diploma superior de comércio (HHX) e o Diploma superior técnico (HTX).Segundo o relatório de Nielson para o CEDEFOP as formações secundárias profissionais foram reagrupadas num só lei, como uma consequência da reforma das formações profissionais de base. As formações profissionais secundárias “adquirem, no plano da estrutura e do conteúdo, um maior número de traços comuns com o liceu de ensino geral” (Nielsen, 1995: 58). Foi introduzido um maior número de disciplinas facultativas tendo em vista reforçar a flexibilidade. O nível das disciplinas dos cursos profissionais é adaptado ao do das disciplinas do liceu e os alunos têm que escolher, como no liceu, duas disciplinas de nível avançado. Os diplomas HHX e HTX dão acesso a formações superiores oferecidas pelas universidades, pelas escolas superiores de comércio e pelas escolas de engenheiros. Existem ainda as Escolas de Continuação, escolas de segunda oportunidade, destinadas a jovens entre os 14-18 anos, que procuram levar ao fim da escolaridade básica os jovens que, por qualquer razão, se desvincularam do sistema formal de ensino. Estas escolas são privadas e o seu currículo e o seu director tem de ser aprovados pelo Ministério da Educação e da Investigação. A par destas foram criadas as Escolas de Produção, nos anos 70, e as Escolas Municipais de Jovens. As primeiras nasceram das articulações entre o poder local e as organizações empresariais e oferecem cursos eminentemente práticos. As Escolas Municipais de Jovens dirigem-se ao 366 mesmo grupo etário e visam fornecer aos jovens possibilidades de consolidação e de melhoria dos seus conhecimentos, muitas vezes a par da escola regular e em período diferido, bem como oportunidades de ocupação de tempos livres, de desenvolvimento e qualificação pessoal, de integração social e de enriquecimento do conteúdo das suas vidas (OCDE, 1995 a : 80). Em termos quantitativos, estas modalidades complementares de ensino e de formação têm uma expressão significativa. Para o ano de 1992, os dados são os seguintes: Escolas de Continuação Escolas de Produção Escolas de Jovens 17 000 jovens atendidos 9 000 jovens atendidos 175 000 jovens atendidos Todas estas modalidades visam assegurar que a entrada dos jovens no mercado do emprego se faça sempre após a obtenção de uma qualificação de base. Esta política revela, por sua vez, a vastidão de abandonos precoces entre os jovens que frequentam a escola básica - Folkeskole - ou outras modalidades regulares de ensino e de formação após o ensino básico e ainda os elevados abandonos no primeiro ano dos cursos técnicos e profissionais (um terço dos jovens que iniciam os cursos não obtêm uma qualificação final) (OCDE, 1995 a ). O Caso de Espanha Em 1990, com a aprovação de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo (a LOGSE - Ley de Ordenación General del Sistema Educativo), o sistema educativo espanhol consagra um prolongamento da escolaridade obrigatória (de 14 para 16 anos), a criação de um novo ciclo de Ensino Secundário 367 Obrigatório (ESO), uma renovação acentuada do ensino secundário superior (Bachillerato) e uma vasta mudança da Formação Profissional de base escolar (FP). O anterior modelo de ensino secundário e de formação técnico-profissional, em vigor, datava de 1970. Mas encontrava-se esgotado e havia um largo consenso social e politíco em torno da necessidade de o alterar. O "Livro Branco para a Reforma do Sistema Educativo" afirmava que "é um facto comummente admitido que de todos os segmentos e modalidades do sistema educativo nenhum se encontra tão necessitado de uma profunda reforma como a Formação Profissional (MEC, 1989:151). A própria LOGSE veio a inscrever no seu preâmbulo que "a Lei propõe uma reforma profunda da formação profissional, consciente de que se trata de um dos problemas do sistema educativo vigente até agora que precisam de uma solução mais profunda e urgente e de que é um âmbito da maior relevância para o futuro do novo sistema produtivo" (MEC, 1990:14). O modelo de educação técnico-profissional de 1970 compreendia três graus: FP I, FP II e FP III. Ao primeiro grau acedia-se após a educação geral básica (EGB) de oito anos, na posse ou não de um grau escolar. À FP II o acesso fazia-se tanto pela FP I como pelo Bachillerato e a FP III nunca chegou a regulamentar-se nem a implantar-se. À formação profissional de primeiro grau acedia uma alta percentagem de alunos com certificado de escolaridade da EGB, mas sem título de graduação escolar, ou seja, sem diploma de escolaridade: esta era a situação de quatro em cada dez alunos. Além disso, 66% dos alunos tinha uma idade superior à que corresponderia normalmente à dos cursos de FPI (14-15 anos). No primeiro ano da FPI só 41% dos alunos tinha 14 anos; dos 59% restantes, 9% corresponde a alunos que repetiam e 50% incorporavam- 368 se já atrasados na Formação Profissional. Mais de metade dos alunos que se inscreviam no primeiro ano de FP I não obtinham o título de técnico auxiliar e não passavam à FP II. Para Planas e Comas (1994) "trata-se, de facto, de alunos que fracassam na FP, a maior parte dos quais provêm de um insucesso precedente no ensino obrigatório. A função de recuperação do insucesso escolar, atribuída à FP I ao mesmo tempo que a da profissionalização, não se atinge senão em pequena escala". E prosseguem: "A formação profissional inicial exposta a desempenhar o papel de alternativa ao fracasso escolar enfrenta, frequentemente com meios e metodologias pouco adequadas, o grave problema de como formar os não-formados" (Planas e Comas, 1994: 10 e 22). A LOGSE e o novo modelo de ensino e formação profissional É neste quadro analítico que se lança, em 1983, um processo experimental de reforma das “Enseñanzas Medias” introduzindo um novo modelo de organização: este nível de ensino foi estruturado em dois ciclos. O primeiro tem carácter obrigatório (ESO) e oferece um currículo comum a todos os alunos dos 14 aos 16 anos. O segundo, dos 16 aos 18, permite optar entre quatro modalidades de “Bachillerato”. Finda esta segunda etapa pode-se optar ou pelo acesso à Universidade ou pela frequência de módulos profissionais especializados. O modelo de ensino integrado e compreensivo foi, assim, alargado a todos os estudantes até aos 16 anos e o ensino pós-obrigatório foi renovado, abrindo caminho à diversidade de interesses, motivações e capacidades. Este modelo foi consagrado pela LOGSE, em 1990 (ver Figura 5. 2.). 369 Figura 5.2. Organigrama do Sistema Educativo Espanhol LOGSE (1990) . Técnico Superior idade ... Universidade F.P. de Grau Superior 18 . Técnico 18 "Bachillerato" 16 Ensino Secundário 12 12 (4 cursos de 2 anos) F.P. de Grau Médio 2º Ciclo (2 anos) Ensino Secundário Obrigatório 1º Ciclo (2 anos) Programas de Garantia Social Ensino primário 6 • Diplomas O ensino secundário passa a compreender um ciclo obrigatório (ESO, com 4 anos de duração) e o "Bachillerato" (de 2 anos) e é banida a Formação Profissional de 1º Grau (FP I) passando a haver um único diploma referente à escolaridade obrigatória. O novo ordenamento geral do sistema educativo institui dois novos tipos de formação profissional: a formação profissional de base (FPB) e a formação profissional específica (FPE). A FPB está introduzida no tronco comum da S i s t e m a P r o d. 370 formação geral de qualquer cidadão no novo Ensino Secundário Obrigatório (12 a 16 anos) e ainda no "Bachillerato". Este compreende quatro modalidades (Artes, Ciências da Natureza e da Saúde, Humanidades e Ciências Sociais e Tecnologia) e cada modalidade compreende um tronco comum, uma componente específica de cada modalidade e disciplinas de opção. A FPB no âmbito do "Bachillerato" (o segmento que se integra no ensino secundário superior) concretiza-se através da oferta do curso de Tecnologia e de um conjunto de opções, a determinar em cada região. A FPE organizase em dois ciclos formativos, de nível médio e superior. Mas, enquanto que a FP I era obrigatória para todos os alunos que não prosseguiam os seus estudos de “Bachillerato”, grande parte dos quais eram portanto oriundos do fracasso escolar no ensino obrigatório, com a LOGSE os ciclos de FPE estão reservados unicamente aos alunos que tenham obtido sucesso na ESO. A LOGSE prevê que os ciclos de FPE tenham por objectivo a preparação dos alunos para uma actividade num domínio profissional, assegurando-lhes uma formação polivalente que lhes permita adaptar-se às modificações do mercado de trabalho que podem produzir-se ao longo de toda a sua vida. São estabelecidos dois níveis: - nível médio: dirige-se aos jovens que finalizaram o ensino obrigatório (16 anos) e que obtiveram resultados satisfatórios (tal como para aceder ao “Bachilleratto”; - nível superior: dirige-se aos alunos que terminaram os seus estudos de Bachilleratto33. Em ambos os níveis está incluído no currículo obrigatório um período de estágio na empresa. Os ciclos têm durações variáveis em função do domínio 371 de formação e do seu nível. A duração "média" oscila entre as 1.400h e as 2.000 h e o tempo de estágio varia entre 300 e 400 horas. O modelo deposto ainda era o dominante em 1994 e previa-se que a "nova" formação profissional estivesse totalmente implantada até ao ano 2000. Entretanto, coexistem os modelos de 1970 e de 1990. Os ciclos formativos da FPE organizam-se por módulos, "de duração variável, constituídos por áreas de conhecimento teorico-práticas em função dos diversos campos profissionais." (LOGSE, artº 30) Esta formação visa "facilitar a incorporação dos jovens na vida activa, contribuirá para a formação permanente dos cidadãos e atenderá à procura de qualificações do sistema produtivo" (LOGSE, artº 30). Destaque-se ainda que a organização curricular e a planificação da FPE terão como requisitos: (a) a participação dos agentes sociais e as características do contexto socioeconómico dos centros onde vai ser proporcionada a formação; (b) uma fase de formação prática nos centros de trabalho; (c) a promoção da integração dos conteúdos científicos, tecnológicos e organizativos e o fomento da capacidade do aluno para aprender por si mesmo e para trabalhar em equipa (LOGSE, artº 34). Desde 1988, o MEC está a aprovar aquilo que constitui a base dos ciclos formativos da FPE de grau médio e de grau superior, os "módulos profissionais". Estes módulos, que correspondem a cursos conducentes a um diploma de técnico ou técnico superior, estavam em aplicação antecipada nos Institutos de Formação Profissional e ascendiam já, em 1992/93, a 57. Em 1990/91 estes "módulos" eram frequentados por cerca de 7.500 jovens,4.540 dos quais em "módulos" de nível superior. Estes, uma vez diplomados como Técnicos Especialistas podem aceder directamente às Escolas Universitárias e a cursos de conteúdos similares. Existe, aliás, 33 É possível aceder aos dois níveis através de outras vias, como p. ex., através da avaliação da experiência profissional. 372 nestas escolas, uma quota de 30% de lugares para estes diplomados (decreto de 1991). Em 1996/97, os jovens que frequentam estes cursos ascendem a pouco mais de 100.000, dos quais 54.000 em cursos de formação de grau superior / Módulos III (cfr. quadro nº 5.2., mais adiante). Deste modo, apesar da integração curricular realizada no âmbito da escolaridade obrigatória (estabelecimento do tronco comum até aos 16 anos, mantém-se, paralelamente ao sistema regular geral, um sistema de formação técnica e profissional específica, com dois níveis distintos e com um sistema de articulação com o ensino "académico" (ver Figura 5.3.). 373 374 Princípios e objectivos da reforma da formação profissional Através da análise dos diversos documentos oficiais de suporte à reforma educativa, é possível destacar alguns princípios elementares sobre os quais o Ministério da Educação fez assentar o processo de reforma da formação profissional de base escolar. Elegem-se seis: a) Flexibilidade. O princípio da flexibilidade concretiza-se através do "ajustamento entre a oferta de FP e as necessidades e recursos do contexto produtivo, da planificação desta FP sobre as linhas de desenvolvimento, presentes ou potenciais, de cada região e ainda na adaptação dos programas da FP específica às características do contexto produtivo regional ou local" (MEC, 1989:152). b) Agilidade. Este princípio refere-se à capacidade de resposta dos sistemas de formação às rápidas transformações tecnológicas. Os perfis profissionais mudam frequentemente e o sistema educativo deve dar respostas a dois ritmos: através de componentes básicas da FP, mais duradoiras e através de componentes específicas, sujeitas a mais rápidas modificações. c) Promoção das pessoas, proporcionando-lhes fundamentos educativos de carácter polivalente que lhes permita enfrentar a diversidade de procuras do mercado de trabalho ao longo da sua vida, bem como ulteriores actualizações profissionais. Deve educar-se especialmente a capacidade geral do aluno para continuar e aprender, uma vez situado num campo técnico e profissional determinado” (MEC, 1989:152). d)Autoregulação. Este princípio prende-se com a montagem de "sistemas de ordenação, esquemas organizativos e mecanismos que assegurem a actualização e renovação permanente dos objectivos, conteúdos e métodos" da FP (MEC, 1989:153). e)Abertura às mudanças no trabalho. A FP "deve configurar-se atendendo não só ao referencial tecnológico-produtivo actual mas também ao 375 futuro previsível". Especial atenção deve ser dada por isso, à evolução das "principais tendências de desenvolvimento tecnológico, das formas de organização e das modalidades de gestão que se prevêm no nosso país" (MEC, 1988:31). f)Vinculação com o sistema produtivo . "Trata-se da dimensão social por excelência da FP, de referência ao sistema produtivo. Ela é tão essencial como a sua referência, mais personalizada, de carácter educativo". Este princípio compreende as respostas que a FP pode dar a "determinações do sistema produtivo" tais como: configuração dos campos profissionais, desenho da FP mais adequada para esses campos, planificação da oferta em cada localidade, conexão entre a FP e a Formação Ocupacional e a orientação educativa e profissional dos alunos"(MEC, 1989:153). Para assegurar esta vinculação é essencial a "participação dos agentes sociais do processo produtivo, empresários e trabalhadores, no desenho, desenvolvimento, planificação e, se fôr esse o caso, também na gestão da FP" (MEC, 1989: 153). A mesma análise documental permite-nos caracterizar os grandes objectivos que o Ministério da Educação e Ciência assinala para a formação profissional de base escolar. 1. Estabelecer um único sistema de formação "geral" e "profissional de base" a instituir nas escolas de ensino secundário. Este objectivo amplo remete para outros mais concretos, que se enunciam de seguida: 1.1. Incorporar a tecnologia na cultura de base de todos os jovens. Ao mesmo tempo, ao alargar a escolaridade obrigatória até aos 16 anos, torna-se realidade a máxima que assumem, quase unanimemente, os peritos contemporâneos em educação: que a melhor formação para o exercício profissional reside na melhoria da formação básica, tanto no seu nível geral, como no seu nível profissional; 376 1.2. A integração num único sistema de formação das formações geral e profissional de base deve facilitar - apoiada por um adequado sistema de orientação profissional - a posterior incorporação de alunos nos ciclos formativos de formação profissional (nível médio e nível superior, como se pode ver no organigrama do gráfico nº 5.3 ). 2. Conseguir implementar uma formação profissional "específica" de qualidade, que prepare para o exercício de profissões com vigência actual e alcance futuro. Para prosseguir este objectivo propõe-se: 2.1. Uma profunda renovação dos conteúdos e na composição da oferta actual da formação profissional, adaptando-os às novas exigências e à procura de qualificação profissional do sistema produtivo; 2.2. A par da renovação dos conteúdos, configurar todo um sistema (instrumentos, metodologia) de adaptação das formações aos requisitos dinâmicos das necessidades de qualificação do mercado de trabalho; 2.3. Vincular a formação profissional ao desenvolvimento regional e local e aos diferentes contextos socioeconómicos. Trata-se de transformar uma lógica exclusivamente "escolar" da formação profissional fazendo adquirir novas dimensões no terreno do desenvolvimento dos recursos humanos. 3. Descentralizar as competências em matéria de formação profissional, tendo em vista realizar uma análise mais regionalizada das necessidades de formação e a concertação da oferta de formação com os agentes económicas e sociais locais. 377 4. Alcançar um sistema integrado de formação profissional com a participação dos agentes sociais e aberto à requalificação e reinserção educativa da população adulta e trabalhadora. Pretende-se desenvolver novas práticas formativas em empresas prevendo-se, por isso, uma "formação concertada" entre escolas e empresas, capaz de desencadear a iniciativa e a criatividade profissionais requeridas por este novo quadro. Desde 1990 até 1997 a evolução da aplicação da reforma tem sido lenta. Basta referir que a procura do BUP/COU, por exemplo, registava 1.470.816 jovens em 1989/90 e contunua a registar 1.086.018, em 1996/97, contra apenas 177.000 no Bachillerato (LOGSE + Experimental). Como se pode ver no Quadro 5.2., a frequência do modelo de formação profissional anterior à LOGSE ainda abrange, em 1996/97, perto de 600.000 jovens, enquanto os novos Módulos Profissionais ainda só acolhem cerca de 100.000 formandos. A procura do ensino e da formação pós-obrigatórios aumentou muito nos anos 80 e 90. A taxa de escolarização do grupo etário 14-18 anos passou de 65,5 no ano de 1987/88 para 86,8, em 1996/97 (dados previsionais do M.E.C.). Segundo a OCDE (1996), a procura do nível secundário encaminhase maioritariamente para os cursos gerais (59%, contra 41% nos cursos profissionais). Estas valores indicam uma ligeira subida na procura dos cursos gerais, que era de 54% em 1982, ao longo das décadas de 80 e 90, aproximando-se dos valores dos anos 70 (61%)). O desemprego juvenil não tem parado de aumentar, desde meados dos anos 70, atingindo em Espanha os valores mais elevados da União Europeia. O primeiro pico foi atingido em 1984, com 46%, após o que desceu até 1991, até aos 32%. Nos anos noventa voltaria a subir até aos 46% (OCDE,1994). 378 Quadro 5.2. Evolução da frequência da FPI, FPII, Ciclos Formativos de Grau Médio e de Grau Superior, em Espanha, entre 1987 e 1997 FPI FPII C.F. deGrau Médio/Mód.II C.F. Grau Superior Módulo III 1987/88 438.161 321.635 ----- ----- 1989/90 464.152 352.947 ----- ----- 1991/92 474.156 401.645 5.188 8.605 1993/94 407.734 440.049 14.213 16.187 1995/96 301.472 410.912 28.917 31.779 1996/97 234.169 367.574 47.186 53.970 Fonte: www/mec/es/estadistica (actualização de 1997.09.19). A formação profissional ocupacional (FPO) O prolongamento da escolaridade obrigatória dos 14 para os 16 anos e o consequente desaparecimento da FP I abriram as portas a um currículo único até ao fim do Ensino Secundário Obrigatório (ESO). No entanto, a LOGSE prevê que existam, neste último segmento de formação, matérias optativas. Estabelece-se, assim, uma diversificação curricular no ciclo comum, o que, segundo Planas e Comas (1994) visa acolher os diferentes interesses dos alunos, adoptando o currículo à pluralidade das suas necessidades e aptidões, tendo em vista permitir-lhes a todos atingir os objectivos comuns desta etapa formativa. A introdução destas disciplinas optativas realiza-se ainda com outros ojectivos: favorecer 379 aprendizagens globalizadoras e funcionais, facilitar a transição dos jovens para a vida activa e adulta e ampliar as possibilidades de orientação escolar e profissional. Entre estas opções-respostas à diversidade contam-se: uma segunda língua estrangeira, oficinas de artesanato e de astronomia, ateliers de comunicação, imagem e expressão, teatro, canto coral, ateliar de matemáticas, expresão corporal, etc. Para os que abandonam a escolaridade obrigatória sem atingir os seus objectivos a LOGSE prevê, em vez da entrada em um sistema formal e alternativo de formação, o acesso a Programas de Garantia Social (PGS). Estes PGS visam dar uma formação básica e profissional como forma de melhorar o acesso a uma actividade profissional ou o retorno aos estudos escolares, nomeadamente através do ingresso na FP de nível médio. Os jovens entre os 16 e os 21 anos podem aceder a estes PGS. Em 1994/95, estes programas funcionavam apenas experimentalmente. No termo da escolaridade obrigatória existe uma panóplia de oportunidades de formação e de formação-emprego que, pela sua natureza não regular e não-escolar, são designadas genericamente como constituindo o sector da Formação Profissional Ocupacional (FPO). Este é, aliás, coordenado pelo Ministério do Trabalho e gerido pelo Instituto do Emprego - INEM. As acções de FPO têm por fim capacitar para a inserção laboral os que estão desprovidos duma formação profissional específica ou aqueles em que ela é insuficiente. Pela sua natureza, pelo seu enquadramento institucional e pelos seus objectivos a FPO é considerada uma parte integrante das políticas de emprego. Para além destas acções existem, desde 1985, as "escolas-taller" e as Casas dos Ofícios, financiadas pelo Ministério do Trabalho e destinadas a jovens com menos de 25 anos e com dificuldades especiais de incorporação no mundo laboral. Os cursos destas escolas duram entre 1 e 3 anos e 380 desenvolvem-se preferencialmente em regime de alternância. Em 1990, envolveram 51.608 jovens e, em 1994, cerca de 26.500. Em 1994, foram também criados os "Contratos de Aprendizagem", uma outra medida de política de inserção socioprofissional de jovens, entre os 16 e os 25 anos. As formações em alternância, de que os Contratos de Aprendizagem são a expressão mais recente, tinham sido desenvolvidas timidamente desde 1984, particulamente na sequência do Acordo Económico e Social assinado entre o Governo, a UGT e a Confederação Espanhola das Organizações Patronais. Estão nesse caso os estágios em empresas para os alunos da FP escolar e os "contratos emprego-formação" para os jovens com menos de 20 anos e sem diploma profissional. A experiência destes últimos permitiu criar em 1994 os Contratos de Aprendizagem alargando o limite etário do público-alvo de 20 para 25 anos e limitando o tempo consagrado à formação a 15% do tempo de trabalho. Esta política de emprego-formação tem encontrado alguma oposição por parte dos Sindicatos que vêem nela a aplicação de uma lógica de "desregulamentação" sob a aparência de formação em alternância. Segundo esta postura, os empregos actuais tenderão a ser substituídos por situações legais (protegidas publicamente) de alternância, levando ao desemprego todos os que têm hoje uma situação precária de contratação. Finalmente, existe uma enorme quantidade de dispositivos não estandartizados de formação que são desenvolvidos pelos poderes públicos locais e pelos Centros de Formação Profissional. Assinale-se ainda que estas medidas de política têm sido activamente acompanhadas pelos parceiros sociais. Após 1990 criaram-se as Comissões Provinciais de Formação Profissional “Regulada” com o objectivo explícito de melhorar a vinculação educação-formação/emprego, de fomentar a cooperação local entre empresas e centros educativos e de preparar os estágios previstos nos novos módulos profissionais. 381 O Caso da Finlândia A Finlândia apresenta um ensino básico unificado de 9 anos de duração (Peruskoulu) e, após a conclusão dos estudos básicos, os estudantes podem encaminhar-se para dois tipos de ensino: secundário geral e profissional (ver figura 5.4.). Cerca de 90% dos jovens transita, imediatamente após a conclusão da escolaridade obrigatória, para o ensino secundário geral e profissional. A crise económica na Finlândia repercutiu-se de modo bastante acentuado sobre o emprego disponível. As taxas de desemprego dispararam desde os anos 70 e de 10.5% de jovens desempregados, em 1983, passou-se já para 30,9%, em 1994. A Finlândia é um dos países da OCDE que, em meados dos anos 90, apresenta as mais altas taxas de desemprego juvenil. Tal facto repercute-se fortemente sobre as políticas de ensino e de formação, sustentando em boa parte as reformas de fundo de todo o ensino profissional, nos anos 90. Até ao início dos anos 90, a “Senior Secondary School” foi acolhendo cada vez mais alunos e o ensino secundário geral atraía 55% da procura de formação pós-obrigatória (National Board of Education, 1996). O ensino profissional acolhe cerca de 35%, em formação a tempo inteiro, em cursos de duração variável, entre 2 e 5 anos. As escolas secundárias superiores oferecem cursos de três anos de duração. O acesso ao ensino superior está condicionado à passagem a um exame nacional. 382 Figura 5.4. Organigrama do Sistema Educativo da Finlândia - Ensino Secundário - Ensino Universitário Ensino Superior Politécnico (A MK ) E scola Secundária Superior Geral (3 anos) Ensino Superior Profissional Ensino Profissional Pós-Secundário E nsino Profissional (2 a 5 anos) mundo do trabalho 54% 40% 6% 10º ano facultativo Escola Unificada ( 9 anos) Fonte: National Board of Education (após a reforma do ensino secundário de 1995) Os valores colocados em círculo sobre os fluxos escolares referem-se a 1991. Dos alunos que concluem o ensino secundário superior geral e o exame final, cerca de um terço encaminha-se para a universidade e um pouco mais 40% dirige-se para as várias formas do ensino superior de tipo profissional, seja de nível universitário ou politécnico. O ensino secundário superior é altamente descentralizado. A responsabilidade das medidas relativas ao ensino, aos programas e à escolha do material pedagógico foi confiada às autoridades locais. As escolas secundárias têm como função principal “completar as funções educativas das escolas polivalentes e preparar os alunos para os estudos superiores” (Comission Européenne, 1995: 365). O ensino secundário tanto 383 pode ser frequentado em regime normal, por anos lectivos, como através de um sistema de módulos (em vigor desde 1982), em que a progessão se faz independentemente da repartição por anos lectivos. Este último modelo, após experimentação iniciada em 1987, foi generalizado à escala nacional, em 1994. No ano lectivo de 1992/1993 havia 463 escolas deste tipo, frequentadas por cerca de 99.000 alunos, o que implica uma rede escolar muito disseminada e escolas de pequena dimensão. O sistema de ensino profissional da Finlândia rege-se por uma lei de 1987 e comporta três níveis ensino geral, o distintos: o nível nível superior secundário equivalente ao não-universitário e o nível superior equivalente ao universitário. Os cursos apresentam uma grande variedade de anos de duração (entre 2 e 6 anos) e o acesso faz-se tanto após a conclusão da escola básica polivalente, como após a conclusão do exame de aptidão para acesso ao ensino superior, nos casos em que se pretende frequentar cursos de índole profissional de nível superior. O ensino profissional é oferecido em escolas estatais, municipais e privadas e as escolas são em geral especializadas numa certa área de formação, podendo comportar a formação secundária e pós-secundária. O sistema de aprendizagem é alternativo às escolas profissionais, mas não acolhe mais do que 3 a 4% dos alunos do ensino profissional. Existem directivas gerais nacionais para a elaboração dos programas de ensino e as escolas elaboram os seus próprios programas dentro desse quadro geral, podendo consagrar o máximo de 30% do tempo a matérias de âmbito local e regional. A maior parte da formação é de base escolar e pode também ser organizada uma formação prática em empresa, de um a cinco meses de duração. A reforma em curso no ensino secundário superior (entre 1991e 1999) acaba com a possibilidade de se poder frequentar o ensino profissional secundário 384 e pós-secundário como vias paralelas. Os estudos profissionais de nível superior, após o ano de 1995, só são acessíveis aos alunos que tenham seguido um curso completo numa escola secundária geral ou numa escola profissional. No fim de 1995 havia um total de 403 escolas de ensino e formação profissional frequentadas por cerca de 195.000 jovens, sendo maioritárias as escolas municipais (National Board of Education, 1996). Reforma do ensino secundário (1º passo) Durante os anos de 1982 - 1988 foi desencadeada uma reforma do ensino secundário que procurou desenvolver a ideia de uma escola unificada que combinava a educação geral e o ensino profissional. Os cursos teriam um ano comum de base e uma posterior especialização. Quatro grandes objectivos nortearam esta reforma (National Board of Education, 1992): abrir o ensino secundário a todo o grupo etário, capacitar igualmente todas as regiões para oferecer os cursos, promover a igualdade entre os sexos e garantir que a diversidade de vias comportava idênticas possibilidades de prosseguimento de estudos superiores. Mas, como diz o mesmo relatório, a ideia da escola secundária unificada não foi atingida através desta reforma, as vias geral e profissional continuaram separadas e “ a popularidade da “via geral” aumentou à custa da “via profissional”, uma vez que a primeira facilitava o acesso ao ensino surperior. Nesta reforma, procurou-se reduzir as especialidades de 600 para apenas 26 cursos básicos, seguidos de perto de 260 especialidades. As áreas de formação são as que constam da listagem seguinte: 385 Quadro 5.3. Novas Áreas de formação técnico-profissional no ensino secundário na Finlândia (reforma de 1991) Agricultura Engenharia Química Indústria de Vestuário Comércio e Administração Indústria da Construção Artesanato e Design Lacticínios Engenharia Eléctrica Pesca Confecção de Alimentos Indústria Florestal e Madeira Cuidados de Saúde Calor, água e ventilação Economia doméstica e institucional Horticultura Hotelaria e Catering Engenharia Mecânica Estudos dos Média Indústria de Impressão Navegação Serviços Sociais Tratamento de superfícies Vigilância Indústria Textil Transportes e Veículos Trabalhos em Madeira Em cada um destes 26 campos existe um Comité de Educação e Formação que compreende representantes dos empregadores, dos trabalhadores, dos professores e dos investigadores. “O objectivo principal desta visão é estabelecer uma escola compreensiva e comum para os jovens, onde os mais novos possam combinar estudos gerais e profissionais ou escolher só 386 uns ou outros”. Pretende-se construir, agora, uma formação profissional mais flexível, aberta às prioridades locais e às estruturas de emprego locais, combinando melhor formação geral e formação profissional, capaz de proporcionar aos jovens melhores oportunidades de prosseguimento de estudos no ensino superior (National Board of Education, 1992). Reforma do ensino secundário profissional (2º passo) No fim dos anos 80 e perante o relativo insucesso do primeiro passo reformista empreendido, o Ministério de Educação enveredou por um processo de estudo do desenvolvimento estratégico do sistema educativo, tendo como horizonte o fim do milénio. O debate alargou-se através do envolvimento de vários Institutos de estudos e de investigação. Num contexto de crise económica e de crescimento da competitividade internacional, em que a Finlândia acelerou o processo de integração na Europa e em que se registaram mudanças técnicas rápidas, o modelo escolar e “institucional” finlandês foi pressionado a rever a sua interface com o mundo do trabalho. Os empregadores passaram a ter uma voz mais activa e a requerer cada vez mais uma formação em que houvesse lugar para práticas de trabalho; esta pressão irá condicionar a evolução do debate e da política educativa. Desde 1991 (e em experiência até 1999) está em curso um processo de reordenamento da oferta de formação entre o 9º ano e o ensino superior (nível secundário superior). Este novo processo (que a Figura 5.5. documenta) visa reforçar a “individualidade e a opcionalidade” da oferta de formação tendo em vista “aumentar o sucesso num contexto de feroz competição económica” (National Board of Education, 1992:66). Os estudantes poderão escolher um programa combinado que englobe temáticas de carácter geral, profissional e prática de trabalho e, para tal, as 387 tradicionais escolas de formação geral e as de formação profissional podem unir-se num só tipo de escola. Todos os programas conterão algumas disciplinas obrigatórias e comuns. A área opcional de cada plano de estudos será alargada, os conteúdos da formação serão progressivamente baseados em módulos e as práticas de trabalho “deverão desenvolver-se na base de acordos de formação entre as instituições de formação e as empresas (National Board of Education, 1992: 68). Figura 5.5. Processo de Experimentação entre 1991 - 1999 Universidade e Politécnicos ( 3 - 4 anos) Escola Secundária Superior Geral 2 - 4 anos Estudos combinados 2 - 4 anos Ensino Profissional 2 - 4 anos Escolaridade Básica Fonte: National Board of Education, 1992:6 Os “National Boards” responsáveis pelo ensino secundário geral e pelo ensino profissional juntaram-se para administrarem conjuntamente os dois tipos de ensino. Os princípios orientadores deste largo processo de experimentação são, como vimos, o reforço da capacidade de escolha 388 individual do percurso de formação mais adequado, a base modular dos currículos escolares, a flexibilidade com que se podem fazer combinações entre cursos e até frequentar escolas diferentes ao mesmo tempo e o aumento da responsabilidade local na administração das escolas e dos seus planos de estudos. O ano de 1995 foi o ano de adopção do novo modelo de estrutura e de um novo ordenamento das qualificações do ensino profissional pós-obrigatório. No ano de 1996 iniciou-se a aplicação do novo modelo de ensino profissional superior. Neste novo ímpeto reformista o ensino profissional vai reduzir ainda mais o número global das qualificações profissionais nacionais - de 260 para 157 -, tornando a sua base de formação mais larga, para responder aos desafios “das rápidas mudanças que ocorrem nas competências ocupacionais, nas tecnologias, nas organizações produtivas, na internacionalização e ainda para responder aos altos índices de desemprego” (National Board of Education, 1996:11). No nível específico do ensino secundário superior as qualificações profissionais nacionais ficam reduzidas a 77. A agência que conduz este processo de reforma, sob orientação do Ministério da Educação - o National Board of Education, constituído por representantes do sector educacional e do mercado de trabalho -, conduz os currículos para “uma larga base de conhecimento, combinando boas competências profissionais e educação geral”. No seu entender “a formação deve suportar o processo de maturação e o desenvolvimento pessoal. Além de desenvolver competências de aprendizagem, encoraja a iniciativa e o empreendimento. As competências profissionais alargadas devem habilitar o estudante para melhor enfrentar as tarefas do trabalho e qualificar para estudos posteriores. Também ajuda o diplomado a adapatar-se face às circunstâncias em mutação” (National Board of Education, 1996:11). 389 Os planos de estudo comportam cinco domínios: estudos básicos comuns, estudos profissionais, estudos opcionais, formação prática e um trabalho final. Os estudos básicos são comuns a todos os campos de formação, os estudos profissionais são específicos de cada especialidade e os estudos opcionais resultam de uma combinação entre opções de estudo que o aluno faz, quer na sua escola de base quer em outras escolas. Para cada área de formação o National Board of Education aprova um currículo nacional e as escolas adaptam-no à realidade local e completam-no preenchendo uma componente do currículo específico de cada instituição educativa. Através da combinação das cinco componentes de cada plano de estudos de cada curso procura-se chegar a um programa individual de estudos dotado de uma orientação profissional específica, para que cada estudante construa adequadamente o seu percurso pessoal. A componente comum dos estudos engloba matérias relativas a matemática e ciências naturais (matemática, tecnologias da informação, física, química, educação do ambiente), matérias de humanidades e de educação cívica (língua materna, língua estrangeira ou segunda língua nacional, educação cívica, orientação profissional) e matérias relativas aos campos da cultura e da moral (educação física, estudos de saúde, cultura e sociedade, ética e culturas estrangeiras). Em boa parte, estes estudos correspondem aos das escolas secundárias de tipo geral. Iniciou-se, também em 1992, um processo experimental de reforma do ensino superior profissional, que conduziu a um novo modelo adoptado em 1996. Vários institutos profissionais estão a fundir-se regionalmente para dar origem a institutos politécnicos (AMK), com novos cursos de 3 anos de duração. Este processo visa criar uma alternativa de qualidade ao ensino superior universitário. As primeiras instituições permanentes AMK foram estabelecidas em 1996. 390 Assim, considerando o ensino profissional na sua globalidade, as reformas de 1995 e 1996 vieram a criar uma estrutura de três tipos de qualificação, definida a nível nacional. O primeiro nível é o do ensino secundário superior e chama-se NVQ’S - National Vocational Qualifications; o segundo é o do ensino pós-secundário e é composto de diplomas nacionais ou diplomas de engenheiros técnicos; o terceiro nível é o do ensino superior profissional e chama-se grau AMK, tipo de escola equivalente ao ensino superior politécnico de outras países (Hoogesschole na Holanda, Polytechnic em Inglaterra). O Caso da França O ensino secundário francês decompõe-se em dois ciclos: o “collège”, que equivale ao primeiro ciclo, e os liceus, que correspondem ao segundo ciclo. O “collège” deve ser frequentado entre os 11 e os 15 anos, embora a escolaridade obrigatória se prolongue até aos 16 anos. Os “collèges” acolhem crianças durante quatro anos, após os cinco primeiros anos de escolaridade. Os dois primeiros anos denominam-se ciclo de observação e os dois anos seguintes constituem um ciclo de orientação. Ao tronco comum acrescenta-se um ensino opcional obrigatório. O segundo ciclo ou ensino secundário superior comporta estudos gerais, técnicos e profissionais e dois tipos de escolas: liceus de ensino geral e técnológico e liceus profissionais. Os estudos do ensino secundário encaminham em direcção aos BAC (Baccalauréat) gerais, técnicos e profissionais e aos diplomas de técnico (Brevets de Technicien). Os dois tipos de liceus já referidos caracterizam-se do seguinte modo: o liceu 391 de ensino geral e tecnológico é um estabelecimento de ensino secundário misto que preparara, em três anos, para os diplomas BAC geral, BAC tecnológico e Brevet de Technicien; o liceu profissional prepara para os seguintes diplomas: o Certificado de Aptidão Profissional - CAP, o “Brevet d’Études professionnelles - BEP” e o BAC Profissional. Este é um diploma preparado durante dois anos, que constitui o ciclo terminal da via profissional. O BAC Profissional permite tanto o prosseguimento de estudos como a inserção na vida activa, embora seja esta última a sua principal função. O ensino secundário francês comporta a particularidade de algumas escolas secundárias oferecerem, depois do “bacharelato”, um ciclo de dois anos, organizado em duas secções: as secções preparatórias para as Grandes Escolas e as secções preparatórias para a formação de técnicos superiores, que conduzem ao Brevet de Technicien Supérieur (BTS). Entre 1960 e 1991 o número de alunos triplicou no primeiro caso e, no segundo, passou de 8.000 para 182.000. O organigrama que se segue procura dar uma perspectiva da diversidade de percursos de formação relativos ao segmento do ensino secundário (Figura 5.6.). 392 393 Evolução da procura O objectivo político fixado em 1984, de levar 80% de um grupo etário ao nível do BAC, obteve eco na procura social. As taxas de escolarização cresceram a um ritmo muito intenso: a percentagem de acesso ao nível correspondente ao BAC geral, tecnológico e profissional passou de 33% em 1980 para 61% em 1992. O aumento da frequência dos cursos do ensino secundário dá-se em boa parte pelo crescimento da procura dos cursos tecnológicos e profissionais. Assim, em 1970, havia apenas 36.000 diplomados por estes cursos, em 1980 esse valor já ascendia a 67.000, mas em 1991 já atingiu os 157.000 (consideram-se os BAC tecnológicos e profissionais e os Brevets de Technicien). Este movimento reflecte-se naturalmente sobre a procura do ensino superior. A taxa de escolarização do grupo etário 18-25 anos passou de 17%, em 1988/89, para 21,6%, em 1991/92. Como sublinham Lhotel, Mehaut e Rouyer (1994) este mesmo movimento não é alheio às transformações dos contornos do ensino técnico e profissional que se “abre em direcção ao alto”. Por um lado, a orientação em direcção ao ensino profissional, no fim do sétimo ano de escolaridade (“cinquième”), decresceu nos anos 80 e foi em princípio suprimida, em 1992; a deslocação da entrada no liceu profissional para o nível do 9º ano de escolaridade (“troisième”) acentuou a orientação em direcção ao BEP; o desenvolvimento do BEP tem estado progressivamente correlacionado com as possibilidades crescentes de prosseguimento de estudos no seio dos liceus profissionais (BAC profissional); alargamento do espectro dirigido à aprendizagem abrindo-a às formações de nível IV e superiores (nomenclatura francesa de níveis de qualificação escolar). 394 Em 1992/93, a frequência do ensino secundário superior repartia-se do seguinte modo: Quadro 5.4. Distribuição da frequência do ensino secundário superior em França 1992/1993 Ensino Público Tipo de formação Liceus profissionais 524,100 Liceus de ensino geral e tecnológico 1,224,800 Ensino Privado 153,600 de l' 677,700 328,000 1,552,800 Aprtendizagem (níveis equivalentes ao CAP, BEP, BAC Pro, Brevet -------------- -------------Professionnel) -- Fonte: Ministère Nationele Total 205,300 Education Além desta oferta e desta procura há que registar uma panóplia de programas de formação em alternância, de que se podem destacar os contratos de orientação, os contratos de adaptação e os contratos de qualificação que, na sua globalidade, envolviam cerca de 267.000 jovens, em 1990 (16 - 25 anos). Desde 1994 que a competência no domínio das acções da formação qualificantes que envolvem os jovens foi transferida do Estado Central para o 395 nível da Região. A esta evolução da procura social não é estranha a evolução do emprego. O desemprego juvenil (14 - 24 anos) cresceu sobretudo em dois momentos em que se verificou um quebra clara na capacidade de criação de emprego: os períodos 1974 - 1985 e a partir de 1991-92. A taxa era de 13,3% em 1979, 19,7% em 1983, 22,9% em 1987, 19,1% em 1990 e 20,8% em 1992, segundo a OCDE (1996 a ). Na situação dos jovens perante o emprego desempenha um papel central o tipo de diploma escolar inicial que se obtém. Como se refere no Exame da OCDE à política educativa da França, “o desemprego atinge muito mais duramente os não-diplomados e o diploma constitui, mais do que em qualquer momento antes, a melhor protecção contra o desemprego” (OCDEa, 1996:111). Basta referir que o fosso entre as taxas de desemprego de diplomados e de não-diplomados, nos últimos vinte anos, passou de 1.4 para 13.4 pontos (ibidem). Um primeiro ciclo de reformas dos BAC No nono ano de escolaridade (“troisième”), último ano do “collège” e fim do ciclo de orientação, processa-se o principal momento de escolha em termos escolares e profissionais. Esta escolha não é individual. As propostas de orientação são realizadas pelo Conselho de Turma, a partir dos resultados escolares do aluno e das expectativas e desejos tanto do aluno como da sua família. Os percursos de formação imediatos, como vimos, podem ser os seguintes: o primeiro ano de um curso geral tecnológico, que pode conduzir a um BAC geral ou a um BAC Tecnológico; um primeiro ano de tipo profissional, ligado ou a BEP ou a um CAP; a entrada no sistema de formação em aprendizagem 396 ou em programas de formação-emprego. O “baccalauréat” constitui, no termo do ensino secundário, a chave de acesso aos estudos superiores, representanto como que o primeiro patamar do ensino superior. O BAC é organizado em séries e compreende provas obrigatórias, escritas e orais, e provas facultativas. As vias nobres e que maior procura suscitam são, como vimos, as do ensino geral. Mas como também sublinhamos, tem havido um crescimento contínuo na procura do ensino tecnológico e profissional. Este tipo de ensino tem sido objecto de várias medidas de desencravamento e de aumento da sua fluidez interna e dentro do sistema geral de ensino (OCDE, 1996a ). Assim, o CAP realizado em três anos foi perdendo progressivamente a sua frequência (cerca de 409.000 alunos em 1985/86 e apenas 63.000 em 1992/93) e ao BEP foi assegurada a possibilidade de prosseguimento de estudos até um diploma do ensino secundário, tendo sido criado o BAC Profissional, como sequência normal de estudos para os percursos profissionais pós-obrigatórios. Actualmente, cerca de metade dos alunos que finalizam um BEP prosseguem estudos ou num BAC tecnológico ou num BAC profissional. Para transitarem para um BAC tecnológico os alunos têm de passar primeiro para um ano de “adaptação”. Os BAC tecnológicos, inicialmente destinados predominantemente à preparação para a vida activa, foram perdendo essa sua vocação. De facto, os BAC tecnológicos já não se destinam, nos anos 90, a preparar os jovens 397 para ingressar no emprego, antes são mais uma via de preparação para o ingresso no ensino superior. Esta sua evolução é apontada como sendo uma das causas da criação, vinte anos depois, de um novo BAC na vertente profissional, mais “resolutamente virado para a vida activa” (Willems e Boumendil, 1994:39). O BAC profissional foi criado em 1985 e oferecido pela primeira vez em 1987 e tem por finalidade dominante a “inserção imediata no mercado de trabalho”. O BAC profissional prepara-se normalmente em dois anos após o BEP, nos liceus profissionais, e destina-se principalmente aos titulares deste diploma. Na formulação dos cursos e na determinação dos planos de estudo e especialidades destes BAC’s intervêm os representantes dos sectores económicos. Esta modalidade de formação tem assegurado elevados índices de emprego, obtendo um êxito assinalável, num quadro geral de tradicional estigmatização do ensino profissional. Segundo a monografia editada pelo Cedefop (Willems e Boumendil, 1994:39), 93% dos jovens diplomados com o BAC profissional têm obtido emprego em menos de seis meses e a taxa de desemprego, dois anos depois, é de apenas 8%. O BAC Profissional atribui uma grande importância à formação prática. Durante os dois anos de formação há um período de 12 a 24 semanas que obrigatoriamente se passa em formação em empresa. No ano de 1993 existiam trinta e duas especialidades, que foram criadas após acordo com “comissões profissionais” organizadas por área de actividade (Comission Européenne, 1995). Assim, no estabelecimento de cada BAC profissional intervêm os meios profissionais e mobilizam-se critérios de adequação às necessidades precisas em termos profissionais. Enquanto que os Bac tecnológicos se 398 constituem a partir de campos tecnológicos largos, já os Bac profissionais são concebidos em função de profissões determinadas. Como diz M. Campinos - Dubernet (1995) a criação do BAC profissional marca uma dupla ruptura: é a primeira vez que no ensino técnico o termo “baccalauréat” é associado ao de profissional e é igualmente a primeira vez que, num diploma profissional, são previstos, desde a sua concepção, períodos de formação em meio profissional. Existe ainda a preparação ao “Brevet de Technicien “- BT, que compreende uma componente de formação geral, comum e obrigatória, uma componente de formação específica, segundo a especialidade, e uma componente propriamente técnico-profissional. Após a obtenção do BT os jovens podem ingressar de imediato na vida activa ou prosseguir estudos, através da frequência de um BTS ou de um IUT - Instituto Universitário de Tecnologia. As formações pós-secundárias de tipo técnico e profissional, juntamente com o BAC profissional, constituem também casos de sucesso nas medidas de política educativa. As Secções de Técnicos Superiores, conducentes ao BTS (iniciativa que remonta a 1964), contava em 1980 com 68.000 alunos. Em 1991 já frequentam estes cursos cerca de 215.000 jovens, distribuídos por um vasto leque de especializações (cerca de 155), em que predominam as formações ligadas ao Sector Terciário (68%). A reforma dos liceus de 1992 Estabelecida pelo decreto de 17 de Janeiro de 1992, a renovação pedagógica dos liceus entrou em vigor, no início do ano lectivo de 1992/93, para o primeiro ano do ensino secundário do segundo ciclo (“seconde”) e nos dois anos lectivos seguintes para os dois anos de escolaridade subsequentes. 399 Em conformidade com os princípios enunciados pela Lei de Orientação de 10/07/89, este decreto estabelece três vias de formação: a via geral conduzindo ao BAC Geral; a via tecnológica conduzindo ao BAC Tecnológico e ao “Brevet” de Técnico; a via profissional conduzindo ao CAP, ao BEP e ao BAC Profissional. As vias geral e tecnológica passam a compreender um ciclo de determinação e um ciclo terminal e a via profissional passa a configurar-se de modo idêntico: um ciclo de determinação constituído por dois anos de preparação ao BEP e ao CAP (desde que este seja preparado em dois anos) e um ciclo terminal, constituído por um outro período de dois anos de preparação para o BAC Profissional. A esta reforma são assinalados dois objectivos principais (Commission Européenne, 1995): colocar um termo à hierarquia que existia no sistema escolar entre as diferentes fileiras e entre as várias disciplinas e tomar melhor em consideração a diversidade dos alunos e a heterogeneidade das turmas. É promovido um balanço negativo da hierarquia de prestígio associada à fileira científica do BAC, série C. Esta hierarquia conduz os alunos a efectuar escolhas que não correspondem necessariamente às suas aspirações e aptidões reais, é um obstáculo à democratização e, finalmente, funda a sua excelência na predominância da disciplina de matemática, o que não corresponde a nenhuma exigência de qualificação, mas mais a uma exigência de selecção. Assim, o número de fileiras foi reduzido de sete para três, no ensino geral, e de dezasseis para quatro, no ensino tecnológico. No seio de cada “série” há um conjunto de disciplinas “pivot” que marcam a identidade de cada “série”. 400 Quanto ao segundo objectivo será aplicada uma maior flexibilidade na organização do ensino secundário geral e tecnológico e no processo de orientação (legislação complementar de Junho de 1992 e de Março de 1993). O primeiro ano (“seconde”) passa a estar constituído em torno de um tronco comum disciplinar. Este ciclo de determinação compreende três tipos de componentes curriculares: o ensino comum, em que os programas e o horário são idênticos para todos os alunos; o ensino opcional, em que cada aluno tem de escolher duas opções entre o conjunto das que são oferecidas pelo seu liceu; o ensino facultativo, que é constituído por ateliers práticos abertos com base em projectos pedagógicos (ex. artes plásticas, audiovisual, teatro, desporto, tecnologias da informação). A componente comum prevê um ensino modular de três horas por semana em quatro das suas disciplinas (Língua Materna, Matemática, Língua Estrangeira e História/Geografia) e em pequenos grupos de alunos. Nos dois anos seguintes, o ciclo terminal, o ensino passou a estar organizado em sete séries principais, em vez das vinte e três que constavam da organização precedente. Estas séries dividem-se do seguinte modo: três para a via geral (literária, económico-social, científica) e quatro para a via tecnológica (ciências e tecnologias industriais, ciências e tecnologias laboratoriais, ciências médico-sociais e ciências e tecnologias terciárias). O ciclo terminal também se organiza nas componentes curriculares obrigatória, opcional e facultativa ou de ateliers práticos. A renovação pedagógica dos liceus, em 1992 e nos anos seguintes, visou, em termos vastos, promover um reequilíbrio de prestígio entre os vários cursos e um melhor equilíbrio das disciplinas dentro de cada curso, atribuir uma muito maior flexibilidade quer ao processo de orientação de cada aluno quer à organização pedagógica de cada escola, através dos módulos, das opções e dos ateliers, e ainda conferir uma maior inteligibilidade à 401 arquitectura das formações de nível secundário, para ajudar os jovens e as famílias na formulação das suas escolhas (OCDE, 1996 a : 32 e 33). Ao mesmo tempo renova-se o ensino tecnológico e profissional procurando, no essencial, evitar que a opção por uma das suas fileiras corresponda a uma estigmatização ou uma orientação pelo fracasso. Como se lê na base de dados da Eurydice (1995) procura-se adaptar o ensino tecnológico e profissional ao ensino geral, mantendo, no entanto, as diferenças, “mas sem que o desfasamento com o ensino geral seja demasiado considerável.” Nesta perspectiva a reforma visou, segundo a mesma fonte:(a) multiplicar as “passerelles” a diferentes níveis, oferecendo aos alunos “a possibilidade de reintegrar o ensino geral quando o entenderem”; b)”aumentar a parte do ensino geral nos cursos tecnológicos e profissionais a fim de aproximar as diferentes vias de ensino, permitindo aos alunos entre outras coisas, utilizar sempre que possível as “passerelles” oferecidas em direcção ao ensino geral”. Como refere o “Exame” da OCDE, procedeu-se a um grande esforço reformador, com antecedentes nas décadas de 70 e 80, que visava retirar as fileiras técnicas e profissionais de uma zona sombria e indesejada do sistema escolar para criar novas “fileiras de sucesso”. O Caso da Holanda O ensino secundário holandês destina-se aos jovens entre os 12 e 18 anos e compreende um período em que é obrigatório e a tempo completo, até aos 16 anos. À entrada do ensino secundário, os alunos podem escolher entre três tipos 402 de ensino secundário geral, de seis, cinco e quatro anos de duração, e um ensino pré-profissional de quatro anos (ver Figura 5.7.). O ensino pré-universitário (VWO, seis anos) e o ensino secundário geral superior (HAVO, cinco anos) preparam respectivamente para a universidade e para o ensino profissional superior (HBO) ou para o seu equivalente, os Institutos Universitários de Tecnologia. O ensino geral médio (MAVO, quatro anos) conduz normalmente ao ensino secundário profissional médio (MBO) e o ensino pré-profissional (VBO) prossegue-se habitualmente em programas de aprendizagem, que incluem dois dias de escolarização por semana. Existe um sistema de permeabilidade entre os percursos, devidamente assinalado no mesmo gráfico. Sempre que um aluno quer passar de um ciclo de ensino para um outro que lhe é superior (evoluindo da direita para a esquerda, no organigrama), perde normalmente um ano ou mais. 403 Figura 5.7. Organigrama do sistema escolar holandês WO HBO Ensino Universitário Ensino Profissional Superior (4 anos) (4 anos) MBO Ensino Secund. Profissional Médio Aprendizagem VWO Ensino PréUniversitário (6 anos) (2 a 4 anos) HAVO Ensino Secundário Geral Superior (5 anos) Ensino de Base Ensino de Base MAVO Ensino Secun. Geral Inferior VBO Ensino PréProfissional (4 anos) (4 anos) Ensino de Base Ensino de Base Ensino Primário de 8 anos (alunos dos 4 aos 12 anos) Fonte: Ministério da Educação e Ciência da Holanda Quanto à situação dos jovens (15 - 24 anos) perante o mercado de emprego verifica-se ter havido uma tendência, entre os anos 80 e os anos 90, para uma descida relativa do volume de desempregados. Segundo o EUROSTAT, 404 a taxa de desemprego juvenil atingiu os 21,2% em 1984, os 12,6% em 1989 e os 11,1% em 1994. Grande parte das políticas de reforma do ensino secundário que ocorreram e ainda ocorrem, desde o início dos anos 90, tiveram o seu início por volta de 1986 e 1987, com a constituição de vários comités e grupos de trabalho. A frequência escolar é muito elevada. Entre os jovens de 16 anos, nove em cada dez frequentam escolas secundárias e estão inscritos a tempo completo, o mesmo sucedendo a três em cada quatro, entre os jovens de 17 anos. Ao adicionarmos a estes os jovens que frequentam os cursos a tempo parcial, as taxas de escolarização atingem os 95% e os 86%, respectivamente para os 16 e 17 anos. Como sucedeu em outros países, também na Holanda a procura de ensino secundário não parou de aumentar entre 1970 e 1985, data a partir da qual se iniciou um processo de descida, que ainda se mantém actualmente. Entre 1995 e 1996 estima-se uma descida de 8% do número total de inscritos. De 1975 para 1987, o ensino secundário profissional inferior desceu de 31,9% para 21,9%, enquanto que a percentagem dos que procuram o ensino secundário geral passou de 61% para 67,8%. A subida nas inscrições no Ensino Profissional Médio (MBO) pode explicarse por várias razões. Segundo Broekhof (1995) tal facto deve-se (i) à taxa crescente de alunos que saem do ensino secundário profissional inferior e que prosseguem os seus estudos, (ii) ao interesse crescente pelo ensino profissional ao nível do ensino secundário superior, e (iii) à abertura de novos cursos curtos de ensino profissional de nível médio (KMBO). O quadro 5.5. apresenta a evolução da frequência dos estabelecimentos de ensino secundário, entre 1970 e 1990. 405 Quadro 5.5. Frequência dos estabelecimentos de ensino secundário de 1970 a 1990. Milhares Tipo de Ensino 1970 1975 1980 1985 1990 Secundário geral 591 59% 766 60% 824 59 804 55% 684 57 (MAVO, HAVO, % % VWO) Pré-Profissional 325 33% 403 31% 403 29 389 26% 232 19 (VBO, antigo % % LBO) Profissional 84 8% 114 9% 168 12 276 19% 288 24 Médio % % (MBO) TOTAL 100 100 128 100 139 100 146 100 120 10 0 3 5 9 4 0 Tendo em vista garantir a permeabilidade entre os cursos e entre as escolas de ensino secundário, tem-se seguido uma orientação política tendente a criar escolas polivalentes. Estas podem oferecer, no mesmo estabelecimento ou em estabelecimentos interligados, tanto o ensino geral e o profissional, como vários tipos de ensino profissional e vários tipos de ensino geral. O seu número é ainda reduzido (4% em 1992/93) pelo que, de facto, as escolhas dos percursos escolares são efectivamente realizadas ainda no termo do ensino primário de 8 anos. De facto, quanto à distribuição por fileiras de ensino e formação, verifica-se haver uma repartição precoce dos alunos. Em 1990, 50,5% dos alunos que sairam do ensino profissional inferior (VBO) passaram ao ensino profissional médio (MBO); 70,6% dos alunos que saíram do ensino secundário geral médio (MAVO) passaram ao ensino profissional médio (MBO) e 17,5% ao ensino secundário geral superior (HAVO). Entre os alunos que saíram deste último (HAVO), uma percentagem crescente cursa estudos pré-universitários (VWO). Assim, 19% passaram para VWO, 23% para MBO e 38% para HBO Ensino Profissional Superior (com tendência para descer cada vez mais). 406 Entre os estudantes de estudos pré-universitários (VWO) cerca de 61% prossegue estudos universitários e 27% passam para o HBO - ensino profissional superior (Broekhof, 1995). Figura 5.8. Fluxos de transição dos alunos entre modalidades de ensino e escolas Aprendizagem Univ. HBO MBO 27% 23% 38% 50,5% 61% 19% VWO 17,5% HAVO 30% 70,6% MAVO VBO Fonte: Ministério da Educação e Ciência (dados relativos a1990) As principais vias de formação A Holanda mantém um sistema escolar bastante diversificado. Descrevemse, de seguida, as principais vias de ensino e formação entre o ensino básico e o ensino superior. As fileiras de ensino geral (MAVO, HAVO e VWO) compreendem tipos de escolas com públicos, objectivos e sequencialidades muito diferentes. A via VWO, de ensino pré-universitário, que é seguida por cerca de 17% do grupo etário é, segundo o exame da OCDE à política educativa da Holanda, uma via que prepara bem os alunos “para entrar na universidade e ter sucesso numa economia cada vez mais internacional” (OCDE, 1991: 39). Existem três tipos de escolas VWO, clássicas, modernas e liceus. O ensino secundário geral superior e inferior (HAVO e MAVO) completam as 407 vias de formação geral. Enquanto que o nível inferior desempenha um papel essencialmente de preparação para o nível secundário profissional médio e tem sido objecto de várias tentativas de articulação com as escolas de ensino pré-profissional (antes LBO), o nível superior acolhe uma parte importante da população jovem, que distribui, como vimos, para os vários segmentos de prosseguimento de estudos, sobretudo pelo ensino superior profissional. Para o Ministério da Educação e das Ciências e para os examinadores da OCDE, o ensino secundário geral de cinco anos (HAVO) constitui a parte mais frágil do sistema do ensino holandês. Há mais repetências e mais abandonos sem qualificação. A fileira recebe muitos adolescentes e jovens mas apenas lhes faculta “performances medíocres” através da frequência de “um programa de ensino que nem prepara bem para a vida activa nem para o ensino superior” (OCDE, 1991: 40). O ensino pré-profissional (VBO), que desde 1992 substituiu o LBO, desenvolve-se em quatro anos lectivos, em que os dois primeiros são de transição e os terceiro e quarto estão directamente ligados a uma certa profissão. O conteúdo dos cursos é relativamente geral pois não se espera que estes alunos entrem no mercado de trabalho sem uma outra formação complementar. No entanto é efectivamente o que acaba por acontecer a 18% de raparigas e a 11% de rapazes (dados de 1990). Os outros encaminham-se para o sistema de aprendizagem e, a maior parte, para o ensino secundário profissional do segundo ciclo, continuando estudos a tempo completo. Para a aprendizagem, dirigem-se 22% das raparigas e 44% dos rapazes e para o MBO 59% das raparigas e 45% dos rapazes (OCDE, 1994 a). Segundo um relatório preparado para a OCDE, sob a responsabilidade do Ministério da Educação e das Ciências, esta reforma de 1992 e a criação do VBO foi dominada pelo debate sobre “o que devia ser geral ou especificamente profissional. De um modo geral, orientou-se em direcção a 408 um ensino de carácter mais geral” (OCDE, 1994a: 16). Aí se sustenta também que esta mudança se deve a duas ordens de factores: às novas possibilidades de aperfeiçoamento pessoal oferecidas aos alunos e à evolução das empresas, onde a capacidade de adaptação e a atitude para procurar instruir-se ao longo de toda a vida se revestem de uma importância crescente. O ensino pré-profissional (VBO) não tem uma boa imagem e tem tido algumas dificuldades em se adaptar às novas necessidades do mercado de trabalho. O acréscimo de um quarto ano de estudos e as novas possibilidades de prosseguimento de estudos nas escolas de ensino profissional médio (MBO) modificaram esta imagem, sublinha o relatório Broekhof (1995) para o Conselho de Europa.E destaca: “Nos programas, o ensino geral levou a melhor sobre a formação profissional” e a introdução do novo programa de base em todo o primeiro ciclo do ensino secundário “será um elemento fundamental para melhorar o nível geral do ensino préprofissional”. (1995:29). Por sua vez, o sistema de aprendizagem destina-se a jovens de mais de 16 anos que tenham terminado a sua escolaridade obrigatória a tempo completo, pode durar de 1 a 3 anos e combina, como é tradicional, uma formação prática em empresa e uma formação teórica e técnica a tempo parcial num centro regional de formação ou numa escola. O sistema de aprendizagem compreende três níveis sequenciais diferentes: as formações primárias, que duram 2 a 3 anos e que qualificam com o nível II, as formações secundárias, que duram 1 a 2 anos e que qualificam com o nível III e as formações terciárias, que duram 1 a 2 anos e que visam uma qualificação de nível superior, nível IV. O ensino secundário na Holanda não obedece a um quadro etário rígido mas 409 a um quadro legal que comporta níveis etários muito diversos. Assim, o ensino profissional médio (MBO) faz parte do ensino secundário, embora acolha alunos entre os 16 e os 20 anos (ou mais, quando estes são repetentes). O ensino secundário profissional do segundo ciclo (MBO), compreende uma variedade de cursos que podem chegar aos 4 anos de duração e engloba actualmente quatro sectores de formação: o sector técnico, o sector de serviços pessoais e sociais e de cuidados de saúde, o sector da economia e da administração e o sector da agricultura. Os cursos desdobram-se em cursos de formação longa (3 a 4 anos), cursos de formação intermédia (mínimo de 3 anos) e cursos de formação curta e ainda cursos de orientação e de transição, que podem durar um ano e encaminham os alunos para uma das opções de tipo curto ou intermédio. O acesso é condicionado não só pelo tipo de escola frequentada antes, bem como pelo tipo de resultados obtidos na avaliação final nessas escolas. Todas as escolas MBO oferecem formações gerais e profissionais. A formação em empresa, que é obrigatória, ocupa um lugar importante nos programas MBO. As novas formações MBO têm uma estrutura modular. Esta compreende uma série de unidades de certificação, umas obrigatórias outras opcionais. Cada unidade de certificação compreende um ou vários módulos e a maior parte dos cursos prevê dois estágios obrigatórios: 100 dias durante a formação e 100 dias no termo desta. A avaliação processa-se no termo de cada módulo e no termo de um conjunto de módulos existe um processo de certificação. Quando o aluno reune um conjunto destes certificados obrigatórios tem direito a um diploma. Uma lei sobre a sectorialização e a renovação deste ensino secundário profissional foi adoptada em Maio de 1990, na sequência da “operação SMV” 410 (que se iniciou em 1987). A nova estrutura das escolas MBO entrou em vigor em Agosto de 1991. Estas escolas reagruparam-se, tendo passado de 438 para 145 (OCDE, 1994 a: 19) e o número médio de alunos de 712 para 1395, e especializaram-se, em geral, em duas áreas de formação. Tornaram-se mais independentes em relação à administração central e mais articuladas com as empresas locais. Os objectivos dos seus programas escolares são fixadas pelo ME, sob recomendação dos parceiros sociais e dos representantes dos meios educativos. Os exames finais estão organizados de modo a que as diversas unidades certificadas correspondam a qualificações concretas obtidas em cada disciplina. O ensino profissional médio, é um segmento de ensino a tempo inteiro, em crescimento e, na óptica do exame da OCDE, “funciona com uma grande eficácia” (OCDE, 1991: 37). No seu seio criaram-se também cursos curtos, de 2 ou 3 anos, os KMBO, e desenvolveram-se formações profissionais a tempo parcial que podem estar associadas a cursos de aprendizagem (BBO). A reforma do fim dos anos 80 e do início dos anos 90, denominada “operação SMV”, de reagrupamento e de sectorialização, provocou uma maior dependência destas escolas face às necessidades da indústria e dos interesses da comunidade o que reforçou a sua orientação profissional e produtiva. Além disso vários centros de formação de aprendizes fundiram-se com escolas de MBO, formando escolas combinadas e os orgãos consultivos nacionais indústria/ensino que existiam para o MBO fundiram-se, em 1993, com as instâncias nacionais do sistema de aprendizagem. O objectivo era “dar mais clareza à organização que estrutura e controla toda a hierarquia 411 das qualificações obtidas no ensino profissional” (OCDE, 1994 a: 20). A lei referente a este processo foi adoptada pelo Parlamento Holandês em 1992 e entrou em vigor em Agosto de 1993. O ensino profissional superior (HBO) compreende cursos de 3 a 4 anos, que são definidos como tendo um nível profissional e especializado muito elevado. Desde 1983, iniciou-se um processo de reorientação deste tipo de ensino, em torno de duas perspectivas principais: a especialização e a concentração. Esta operação conduziu à criação de cerca de 90 escolas HBO (contra 350, em 1986), aglomerando mais alunos e oferecendo uma maior variedade de cursos por área. Uma das políticas de educação da Holanda tem sido a procura da paridade de estima entre o ensino geral e o ensino e a formação profissional, pelo que este país decidiu desencadear um conjunto de medidas articuladas, a saber: (a) assegurar que tanto o ensino geral como o ensino e a formação profissionais garantem o acesso ao ensino de nível terciário; (b) adiar o mais possível a escolha definitiva entre o ensino geral e o ensino e a formação profissionais; (c) informar os pais e os conselheiros de orientação acerca das oportunidades do sistema de formação profissional; (d) informar melhor os jovens acerca do sistema de ensino profissional e de formação profissional e as suas perspectivas de evolução de longo-prazo; (e) propor a introdução de incentivos financeiros para eleger a escolha de cursos tecnológicos (Banks, 1994: 100) O Novo Programa Comum do Ensino Secundário Até muito recentemente, o primeiro ano do ensino secundário era um ano de transição que visava prolongar o período de orientação e adiar a escolha de uma fileira específica. A reforma do ensino secundário começou por criar um 412 novo tronco comum de três anos, idêntico em todos os tipos de escolas. O ano de 1993/94 marca a introdução das alterações profundas no ensino secundário, a começar pelo programa nacional comum a todo o sector, no seu nível inferior. Além disso, as mudanças estendem-se ao tipo de gestão escolar, em que se consagra uma muito maior autonomia, que obrigou a um processo de aglomeração de escolas tendo em vista dotá-las de maior capacidade autonómica, financeira e pedagógica. Para a reforma do tronco comum do ensino secundário contribuiu um alargado debate, particularmente, as recomendações do Advisory Council for Government Policy, feitas em 1986, e que aconselhavam uma acção prioritária sobre o conteúdo do currículo, manuais, exames, tipo de ensino e orientação escolar, e uma acção posterior sobre a estrutura, caso isso se viesse a revelar necessário. O processo de mudança vai estender-se ao longo dos anos, 10-15 anos, e as escolas vão entrando nele em ritmos diferenciados. Foi criado um grupo independente, PMT-Process Management Team, que é responsável por criar um processo de intervenção em todos os níveis do sistema, no sentido de promover e estimular a mudança nas escolas. Além disso, o governo disponibilizou recursos adicionais, tempo, pessoal e dinheiro, para que as escolas possam autonomamente preparar as suas novas actividades e a entrada no processo de reforma. O processo de introdução de um ensino básico no início do ensino secundário iniciou-se em 1993. Esta função básica é definida como um currículo para os dois primeiros anos de todos os tipos de escolas. As principais preocupações que lhe estão subjacentes são a melhoria do nível de educação para todos os alunos, a modernização e harmonização do currículo de todos os tipos de 413 escolas, o adiamento da idade em que os alunos têm de escolher um curso de ensino superior, dos 12 para os 15 anos, e a mudança dos programas do exame (Van Velzen, 1996). Os estabelecimentos de ensino oferecem aos alunos, entre os 12 e os 15 anos de idade, um tronco comum de 15 disciplinas que representa 80% do conjunto das horas lectivas, que passaram de 30 para 32 horas por semana. As escolas podem utilizar os restantes 20%. Este novo programa comum de ensino de base visa melhorar o nível de conhecimentos do aluno, reduzir o número de abandonos durante os cursos e melhorar a qualidade e a igualdade de oportunidades no ensino secundário. Foram também definidos objectivos a adquirir, em termos de competências, num total de 200 objectivos. A partir de 1998, as primeiras mudanças sequenciais ocorrerão no currículo do ensino secundário superior, o que, segundo o National Centre for School Improvement (APS), estará relacionado com uma considerável redução do número de vias e de combinações de matérias de exame. Sectorializar e integrar Desde 1990, nomeadamente após do relatório da Comissão Rauwenhoff, que se tem vindo a separar o ensino secundário superior de tipo geral, das escolas que oferecem o ensino técnico e a formação profissional (Römkens e Visser, 1994: 39). A legislação subsequente, primeiro de 1991 (Senior Secondary Vocational Education Act) e depois de 1993 (Vocational Education Courses Art) veio consubstanciar esta perspectiva. Procura-se, agora, na segunda metade dos anos 90, estruturar uma rede de centros regionais de formação que devem assegurar de modo complementar tanto o ensino profissional superior (a tempo completo ou a tempo parcial), a formação em aprendizagem, a formação para os que procuram emprego, o 414 ensino geral de adultos e a educação básica de adultos. Pretende-se que estes novas escolas de ensino e de formação se tornem capazes de contratualizar localmente a formação necessária para responder às necessidades educativas dos indivíduos e das empresas e organizações em geral. Como sugeriu a Comissão Rauwenhoff, uma escola profissional é um serviço que produz qualificações, orientando para o produto à medida e um serviço que procura ser eficiente. A ligação da nova rede de centros às empresas locais, é, por isso, uma permissa óbvia. Esta articulação é dimensionada não só através dos estágios para alunos, como também de períodos de trabalho nas empresas para professores e ainda pela realização de contratos de formação entre os centros e as empresas. Na monografia do CEDEFOP, que apresenta o ensino técnico e a formação profissional na Holanda, é produzida uma reflexão sobre as novas tendências destes domínios educativos, nos anos 90. Vários elementos são aí apontados para justificar significativas mutações legislativas entre 1986 e 1992. Entre eles destacam-se: (a) o crescimento do emprego qualificado e a diminuição dos empregos disponíveis para pessoas pouco qualificadas; (b) a diminuição contínua dos abandonos escolares precoces e desqualificados; (c) a introdução de elementos de formação geral, tendo em vista corresponder à evolução do mundo do trabalho, que requer jovens capazes de exercer uma ampla variedade de tarefas, de receber formação ao longo da vida e de responder com flexibilidade às mutações do mundo de trabalho. Considera-se também que “o debate sobre o relacionamento entre a formação geral e a formação profissional específica dentro do ensino técnico” estará na ordem do dia ao longo da década de 90 (Römkens e Visser, 1994: 75). De modo idêntico, o relatório para a OCDE, (1994a), no âmbito da actividade 415 VOTEC, sublinha que a primeira grande questão emergente no debate educativo, nos últimos vinte anos foi a das novas relações entre o ensino geral e o ensino profissional. Distingue dois períodos: no primeiro, até ao início dos anos 80, apostou-se na integração, na harmonização de planos de estudo, na igualdade de oportunidades e na redução das diferenças entre o ensino geral e o ensino profissional; no segundo, na sequência da crise económica, o ensino profissional tende a especializar-se tendo em vista estabelecer uma relação mais directa entre o ensino e os seus clientes. Tais perspectivas foram evocadas nos relatórios de Wagner e Rauwenhoff, que sublinharam a necessidade de reforçar a participação das empresas no ensino profissional. A lei relativa à sectorialização e à renovação do ensino secundário profissional (SVM) surge na sequência desta segunda orientação e define a parte que joga o sistema de clientes na definição da estrutura do ensino e das suas finalidades. A primeira traduziu-se sobretudo na criação de possibilidades de “transporte” e de passadeiras entre as diferentes fileiras de ensino profissional e geral. A segunda tem originado um caminho bem diverso. Duas tendências, concomitantes no tempo, parecem marcar a evolução do ensino secundário profissional na Holanda, desde os anos 80. De um lado, está o esforço contínuo de descentralização administrativa para as regiões e para as próprias escolas, no sector público. Do outro está a concentração sectorial da oferta educativa, isto é, os “fornecedores de educação” reunemse em instâncias nacionais sectoriais para melhor responder às novas necessidades de qualificações profissionias, e as escolas procuram adaptarse mais e mais aos clientes, o que aqui quer dizer empregadores. Segundo o relatório elaborado para a OCDE, a diferença entre ensino geral e profissional releva mais de grau de orientação em direcção a certos sectores oarticulares do mercado de trabalho do que ao lugar atribuído aos 416 conhecimentos teóricos por oposição aos conhecimentos aplicados. Os programas gerais acentuam a perspectiva de passagem a uma fase ulterior de ensino e os programas profissionais destacam a preparação para a entrada imediata na vida activa. Aí defende-se também que ambos têm, no entanto, de promover o “aprender a aprender”; o sector do ensino profissional tem todas as possibilidades de desenvolver o “aprender a aprender” nos seus programas, com bons resultados, não pela via da “generalização” dos programas, mas pela utilização dos métodos pedagógicos adequados, tais como a simulação e o ensino por projectos num quadro profissional. Nos programas do ensino profissional do segundo ciclo (MBO) procura-se actualmente, na segunda metade dos anos 90, definir resultados-alvo em termos de qualificações de base, à semelhança do que se havia feito para o ensino secundário dos menores de 16 anos, em 1992 (OCDE, 1994 a: 45). Isto pressupõe uma racionalização dos domínios de estudo, a reorganização das finalidades e a adopção de novos objectivos. “Isto produz-se por vezes em função de um novo conceito tecnológico ou de um postulado de integração” (ibidem). A integração que se defende neste relatório não é a que se subsume na perspectiva da existência de uma só via de estudos, mas é sobretudo a que postula a existência de contextos de aprendizagem diversos, a que “é acompanhada por uma melhor compreensão das relações entre as competências cognitivos e os problemas ligados ao contexto”. O Caso de Itália 417 O ensino secundário superior italiano é constituído por um conjunto de vias alternativas de formação distribuídas entre as tradicionais áreas de estudos preparatórios para a universidade e para o mercado de trabalho. Este segmento do sistema educativo permaneceu como o único invariável ao longo de várias décadas. No entanto, com base no Decreto-Presidencial nº 419 de 1974, as escolas e as equipas de professores desencadearam inúmeros processos de actualização de conteúdos, de renovação didáctica, de inovação metodológica e de aproximação da escola à sociedade envolvente. Hoje, 63% destas escolas estão envolvidas em processos experimentais de renovação, muitos dos quais o Ministério da Educação vai reconhecendo e apoiando. Há quatro fileiras principais e os cursos variam entre três e cinco anos de duração (ver Figura 5.9). a) Estudos Clássicos (Liceus Clássicos, Científicos e Magistério) b) Estudos Artísticos (Liceus Artísticos e Institutos de Arte) c) Estudos Técnicos (Institutos Técnicos) d) Estudos Profissionais (Institutos Profissionais) A procura do ensino pós-obrigatório cresceu muito nos últimos anos. Entre 1970/71 e 1990/91 passou de 1.732.178 jovens para 2.864.885, ou seja, aumentou 65%. Ao mesmo tempo a frequência da escola média diminuiu 6% e a do ensino superior aumentou 47%. No ensino secundário superior a progressão da procura repercutiu-se na passagem da respectiva taxa de escolarização de 44% para 70%. (MPI, 1992). 418 Gráfico 5.9. Distribuição das frequências do ensino secundário superior em Itália por tipo de escola (1991/92) 1.290.000 546.000 471.000 231.000 183.000 Liceus Clássicos Liceus Científicos Magistério Estudos Clássicos 92.000 Liceus Artísticos Institutos de Arte Institutos Técnicos Institutos Profissionais Fonte: Ministero della Pubblica Istruzione, 1992 Isto quer dizer que, em 1992, frequentavam o ensino técnico e profissional de base escolar cerca de 65% dos jovens inscritos no ensino secundário superior. Os Institutos Técnicos oferecem cursos de cinco anos, tal como as vias mais clássicas de preparação para estudos superiores. Os cursos compreendem um biénio inicial, composto de disciplinas de base (literatura italiana, história, educação cívica e educação física) e um espaço reservado aos exercícios práticos. Os dois primeiros anos acabam por se traduzir num acréscimo de dois anos à escolaridade básica e obrigatória, que termina aos 14 anos de idade. Criados em 1931, existem actualmente nove tipos de Institutos Técnicos com orientações de estudos e especializações terminais particulares. Os Institutos Profissionais foram criados nos anos 50, num momento de reconstrução económica e de crescimento industrial, que se seguiu à 419 Segunda Guerra Mundial. Dirigem-se ao grupo etário 14-17 anos e oferecem a possibilidade de alargar os estudos até aos 19 anos para aqueles que frequentam os cursos experimentais de cinco anos. Estas instituições de formação, criadas paralelamente aos Institutos Técnicos, visam a qualificação profissional em ciclos curtos, preparando o pessoal para o exercício de actividades executivas e os trabalhadores qualificados para os diversos ramos de actividade produtiva. Desde 1969, existem cursos complementares de dois anos que permitem o acesso a um certificado de "maturitá professionale". Com a evolução do mundo produtivo e a exigência omnipresente de uma mais forte dimensão cultural (Ministero della Pubblica Istruzione, 1992) o MPI-Ministério de Instrução Pública lançou, desde o ano lectivo de 1988/89, um programa experimental de reforma dos “Instituti Professionali”, designado “Progetto'92”. Em Abril de 1992 a fase experimental terminou e foi aprovado um novo ordenamento. A sua generalização ocorreu em Abril de 1994. Há uma primeira motivação de ordem política que subjaz ao reordenamento do ensino técnico e profissional italiano; trata-se da intenção de aumentar a escolaridade básica e obrigatória em dois anos (dos 14 para os 16) e da concomitante criação de dois anos iniciais comuns em todos os percursos formativos do ensino secundário superior. Os Institutos Profissionais passarão, assim, a oferecer cursos de três anos, com um tronco comum de dois anos, idêntico ao que é oferecido nos Institutos Técnicos e nos liceus e com um ano terminal. Estes cursos conduzem ao "Diploma de Qualificação", após o qual os estudantes se encaminham para: - aceder directamente ao mundo do trabalho; 420 - inscrever-se num curso bienal de pós-qualificação dos mesmos Institutos Profissionais; - passar, através de exame complementar, ao 4º ano de uma escola secundária superior de outro tipo; - frequentar sucessivos módulos de formação profissional tendo em vista a obtenção de um segundo nível de qualificação. A Figura 5.10. ilustra o novo ordenamento dos Institutos Profissionais no sistema de ensino. Verifica-se um claro realinhamento que se traduz sobretudo numa aproximação ao modelo da escola secundária tradicional. Mas há ainda outros importantes pressupostos atribuídos ao “Progetto'92”. São eles, segundo o MPI: - mais cultura geral e profissional para promover o crescimento pessoal e social dos jovens; - uma dimensão polivalente da profissionalidade, com exclusão do mero adestramento repetitivo, para responder às actuais exigências do mundo da produção; - consequente redução do número das qualificações de cerca de 150 a cerca de uma vintena; Figura 5.10. Sistema Educativo da Itália Universidades Cursos Sistema Pós-Diploma Produtivo Diploma Final do Maturità Ensino Secundário Professionale Liceus Institutos Institutos Formação Profissiona l 421 Técnicos Curso Secundário de 3 anos Profissionai s Regional Cursos Pós-Qualificação 2 anos Curso Secundário de 3 anos (1) 3º ano 2 anos comuns 2 anos comuns 2 anos comuns Ensino Secundário Baixo (Escola Média - 3 anos) Escola Elementar ( 5 anos) (1) Diploma de Qualificação - intervenções institucionalizadas para implementar uma estratégia, tanto quanto possível individualizada, de recuperação das desvantagens socioculturais; - articulação com o sistema regional da formação profissional para a integração da oferta formativa. O Livro Branco sobre a Formação Profissional (Ministero della Pubblica Istruzione, 1994) é bastante claro ao justificar e enquadrar estas mudanças no ensino técnico e profissional. Aí o Ministério da Instrução Pública assinala os seguintes objectivos: a) reforçar a formação cultural geral dos estudantes em ordem a complementar uma formação profissional muito mais sustentada, respondendo às mutações culturais, sociais e produtivas da 422 sociedade contemporânea e impedindo "a especialização precoce da formação"; b) diminuir o leque de qualificações (de cerca de 150 para 18, exceptuando alguns casos particulares de qualificações atípicas) que serão assim inscritos em grandes áreas de competências polivalentes, a obter no final dos cursos de três anos; c) construir currículos e métodos de ensino modulares e flexíveis; d) implementar métodos personalizados de formação, criando tempos específicos para ir ao encontro das necesidades individuais ou de pequenos grupos; e) criar o exame para o diploma de qualificação, articulado de tal modo que não só se avaliem os conhecimentos mas também as competências transversais dos estudantes, prestando particular atenção às competências relacionais; f) criar cursos de especialização de 3 anos, respeitando as competências institucionais das Regiões no campo da formação profissional. "Protocolos" especiais foram estabelecidos com 10 regiões para uma gestão conjunta de cursos integrados de pósqualificação de dois anos" (Ministero della Pubblica Istruzione, 1994:18). A reconstrução curricular que se desenvolveu no âmbito desta reforma, segundo o MPI, baseia-se em dois principais pontos de referência, a saber: (a) “a tendência emergente a nível internacional, dirigida a superar o modelo de uma instrução profissional de primeiro nível, “pobre” e adestradora, em favor de uma mais sólida formação geral e de uma formação profissional de 423 base, polivalente e integrável, mediante percursos de estudos ulteriores e recicláveis com o tempo”; (b) a tendência emergente a nível nacional, seja em sede parlamentar seja em sede administrativa (desde o projecto Falcucci, de 1987, ao disposto pela Comissão Brocca, em 1991), tendência essa que se traduz na criação de “uma área de ensino e aprendizagem comum para todos os alunos do grupo etário 14 - 16 anos, correspondente ao biénio inicial da escola secundária superior”.(Ministero della Pubblica Istruzione, 1994: XIII) Refira-se, entretanto, que o volume de desemprego jovem se tem mantido elevado, desde finais dos anos setenta. Em toda a década de oitenta este problema não diminuiu, mantendo-se em redor dos 30%, nos anos noventa, continuando a ser uma das taxas mais elevadas da Europa A reforma da formação dos Institutos Profissionais O processo de experimentação da renovação da formação profissional inicial desenrolou-se entre 1988/89 e 1992/93. A avaliação entretanto realizada pelo Ministério de Educação e pelo Conselho Nacional da Educação italianos revelou que os resultados do regime de experimentação eram positivos e que se tratava de uma inovação oportuna. Nessa conformidade foi adoptado por Decreto de 24/04/1992, um novo quadro de formação para a “instrução profissional” e foram estabelecidos os programas e os horários da área comum e dos cursos de qualificação. Os novos cursos de qualificação do ensino profissional, aqueles cuja experimentação se iniciou no ano lectivo de 1988/89, são todos trienais. No primeiro biénio contêm: - uma área de ensino, comum a todos os cursos, adstrita a uma formação humanística, científica e tecnológica, com 22 h semanais 424 (2/3 do horário); - uma área de especialização profissional, que preenche 1/3 do horário, subdividida em uma área de especialização, de 14 horas semanais, e uma área de aprofundamento, de 4 horas semanais. O terceiro ano dos cursos caracteriza-se por uma área comum (12-15 horas), uma área de especialização (21-24 horas) e uma área de aprofundamento (4 horas). A área de aprofundamento está sob a responsabilidade de cada Instituto e pode ser dirigida autónoma e flexivelmente seja para recuperação de situações de desvantagem ou para estabelecer relações com a comunidade seja ainda para proceder a experiências de alternância escola-trabalho, em cooperação com as empresas. Não foram definidos rigidamente os programas e os horários da área de especialização, a fim de garantir uma contínua adequação em função da constante articulação com o mundo produtivo e com o sistema regional de formação profissional. No termo dos cursos bienais ou trienais dos Institutos Profissionais realizamse os exames de qualificação que se desenrolam perante uma comissão formada por professores da escola nas disciplinas culturais, técnicas e práticas e por dois peritos externos indicados por entidades do meio económico e produtivo que têm particular ligação a cada escola concreta. Como se assinalou acima, os cursos são compostos por três componentes de formação: geral, específica e de aprofundamento. O peso relativo das componentes distribui-se no horário semanal, de 40 425 horas, do seguinte modo: Quadro 5.6. Componentes de formação dos cursos dos Institutos Profissionais Componente de formação Formação geral Formação específica Formação de aprofundamento TOTAL 1º e 2º anos 22 h 14 h 4h 40 h % 55 35 10 100 3º ano 12 a 15 h 21 a 24 h 4h 40 h % 30-37 53-60 10 100 As disciplinas comuns assentam no ensino/aprendizagem da Língua Materna, Matemática e Informática, Língua Estrangeira, História, Educação Física e Religião (disciplinas comuns aos três anos), Direito e Economia (dois anos) Ciências Naturais e Biologia (um ano). Há apenas dezoito qualificações inscritas em 11 áreas de formação, do modo que se segue: 426 Quadro 5.7. Estrutura de áreas de formação adoptadas em Itália ÁREA DE FORMAÇÃO Agricultura QUALIFICAÇÃO Operador Agrícola Operador agro-industrial Operador de electricidade Electricidade/Electrónica Operador de electrónica industrial Op. de electrónica e telecomunicações Moda e Vestuário Operador de moda Química e Biologia Operador de química e biologia Construção Operador de construção Operador mecânico Termo-mecânica Operador térmico Op. de Serviços de Catering (cozinha) Hotelaria e Catering Op. de Serviços de Catering (bar) Op. de Serviços de Recepção Economia e Comércio Operador de "business management" Turismo Operador de turismo Serviços Sociais Operador de serviços sociais Publicidade Operador de publicidade (artes gráficas) 427 O próprio Ministério da Instrução Pública fundamenta a ampla reformulação curricular dos Institutos Profissionais, no âmbito do "Progetto 92", de modo inequívoco: "Na realidade, quer os acontecimentos culturais, produtivos e sociais, existentes no contexto e em consequência da transição dos países de economias industriais avançadas para economias definidas, impropriamente, como de tipo "post-industrial", quer a reconsideração dos problemas comuns à situação das zonas com atrasos de desenvolvimento, mostraram que, entre os principais deveres da escola está o de promover e garantir nos alunos conhecimentos e habilidades que sejam, não só significativas para cada um dos sujeitos que aprende - isto é, que sejam capazes de modificá-lo quer cognitivamente quer do ponto de vista afectivo e das motivações - mas que também representem, um saber sistemático, ou seja, não episódico, não casual, atomizado, etc., mas estável e utilizável, isto é, capaz de deixar marca de si no tempo e de permitir um uso inteligente e flexível de si, capitalizável no sentido de constituir uma estrutura sólida de base, sobre a qual se possam enxertar, com relativa facilidade, aprendizagens ulteriores, que possa tornar-se aquela espécie de pré-requesito que permita o acesso a novos e diferentes saberes. De facto, é cada vez maior a convicção de que velhas e novas profissões ou ofícios, porque podem ser desenvolvidas com eficácia e sem criar fortes frustações naqueles que devem levá-las a cabo, presupõem uma unificação e não uma fragmentação dos conhecimentos que o sujeito deve posuir. Cada operador deverá resolver uma quantidade de problemas, desde a frequente rotação das funções laborais até à mudança radical do tipo de trabalho, problemas para cuja solução será cada vez mais eficaz um corpo fundamental de conhecimentos altamente estruturados. 428 Neste quadro, emerge, então, a necessidade de promover uma instrução profissional flexível e polivalente capaz de assegurar aos diversos utentes a estruturação de modalidades adaptativas complexas graças a um corpo orgânico de conhecimentos fundamentais de base, isto é, tais que facilitem, por um lado a aquisição de novas e diferentes competências ulteriores, durante a prossecução dos estudos e que facilitem a utilização, no mundo do trabalho, das competências adquiridas na escola, também através dos cursos estritamente dirigidos". (Ministero della Pubblica Istruzione, 1991:8) Na prossecução do “Progetto’92” e após vários contributos do sistema de ensino e formação e do sistema produtvio, foram aprovadas, em Maio de 1991, por uma Circular ministerial, as várias oportunidades de estudo a oferecer aos alunos que tinham concluído o seu novo “diploma de qualificação”, segundo o novo ordenamento didáctico em vigor para o ciclo de estudos trienal. Após um acompanhamento e avaliação deste processo de lançamento dos novos currículos do biénio pós-qualificação, um Decreto de Abril de 1994 transformou os novo currículos em “cursos ordinários”. Regulamentou-se também o modelo de exame final dos novos cursos de pós-qualificação, conducente ao diploma de “Maturità Professionale”, exame este que deve ser, segundo o Ministério, um instrumento de verificação quer da formação cultural quer da formação profissional específica de cada aluno. No ano lectivo de 1997/98, todos os alunos do 3º ano dos cursos do ciclo trienal frequentaram, em todos os Institutos e pela primeira vez, os novos cursos saídos do processo experimental do “Progetto’92”, concluindo-se assim, dez anos depois, uma reforma de vasto impacto no sistema educativo italiano. 429 Diversificação da formação profissional A formação profissional extra-escolar de iniciativa pública é, desde 197834, uma competência da administração regional do país. Os Centros de Formação Profissional (CFP) organizam uma variedade de formações e qualificações profissionais pós-escolares e é responsável pela formação em aprendizagem. Em 1989, perto de três milhões de pessoas frequentaram actividades de formação tanto de iniciativa pública como privada. Os jovens são, em parte, beneficiários destas acções; neste mesmo ano havia 529.000 jovens recrutados em contratos de formação-trabalho (criados em 1984) e 567.000 beneficiários de um contrato de aprendizagem. A procura desta última modalidade de formação tem decrescido: em 1980 havia 738.000 aprendizes (a aprendizagem está regulamentada desde 1955). Jallade (1988:45) anota uma análise de Meghnagi que constata o facto de a formação complementar estar a ser progressivamente abandonada e de a aprendizagem se estar a tornar numa formação "sur le tas", não se cumprindo as normas legais. Os CFP regionais optaram por alocar os recursos a outros programas de formação profissional para jovens. Os outros tipos de formação concorrentes são: os cursos de formação profissional dos CFP regionais, de dois ou três anos de duração, que são oferecidos aos jovens em processo de transição entre a escola e o trabalho e 34 A transferência de competências administrativas no domínio da formação profissional iniciou-se mais cedo, em 1972. Nessa altura, em 1978, procedeu-se a uma ampla transferência de competências para o domínio regional. 430 aos desempregados35, e os contratos formação-emprego que oferecem possibilidades de trabalho temporário aos jovens entre os 15 e 29 anos, à procura de emprego. A formação profissional extra-escolar é de competência regional e tem vindo a evoluir na sua plurifacetada configuração. Por um lado, evoluiu-se de um sistema de formação que era subsidiário de uma política de emprego, com um cunho marcadamente instrumental, para uma política de formação como condição do desenvolvimento produtivo, na medida em que este último depende crescentemente não apenas da energia e das matérias-primas, mas também de conhecimento e de inteligência sistemática. Por outro lado, acompanhando a evolução das tecnologias e as inovações no aparelho produtivo, nomeadamente as que têm sido provocadas pelo recurso sistemático às tecnologias da informação, a formação profissional foi alargando os seus públicos-alvo: - em primeiro lugar, os jovens do ensino pós-obrigatório; - em seguida, os trabalhadores adultos confrontados com as crises e as reestruturações das empresas; - actualmente, as pessoas que apresentam um médio e elevado nível de escolaridade. Finalmente, à medida que se processa esta evolução, a formação profissional extra-escolar vai deixando o seu estatuto de oferta concorrencial para representar um papel de complementaridade e de interacção, tais são as novas exigências em matéria de reciclagem e de aperfeiçoamento. 35 Em 1989, estes cursos dos CFP englobaram 271.000 participantes. Todavia, os dados disponíveis não são completos. 431 O Caso da Noruega Na Noruega, a taxa de transição entre a escolaridade obrigatória (9º ano) e o ensino secundário superior é de 95,3%, em 1992. As saídas do sistema escolar e de formação, no termo da escolaridade obrigatória, têm vindo a reduzir-se a um ritmo bastante acentuado. Assim, em 1975, as saídas abrangiam cerca de 25% dos diplomados pela escola obrigatória e em 1986, cerca de 11%. Em 1992, abrangem apenas 4,7% (Skinningsrud e Bjornavold, 1994: 13). A frequência do ensino secundário superior foi-se tornando, nos ano 80, uma prática comum à generalidade dos jovens. Na verdade, entre 1977/78 e 1992 a frequência aumentou 53% e hoje, apenas uma pequena parte do grupo etário 16-18 anos se encontra fora de um sistema de formação e a grande maioria encontra-se a realizar estudos no ensino formal (cfr. Quadro 5.8.). Para Skinningsrud e Bjornavold há dois motivos principais que explicam este rápido crescimento da procura social do ensino secundário superior. Por um lado, a capacidade de acolhimento foi drásticamente ampliada. Por outro lado, o mercado de emprego tornou-se adverso nas suas hipóteses de recrutamento de jovens de 16 anos. No dizer deste autor, "o mecado de trabalho está com efeito, embora não oficialmente, fechado para o grupo etário 16-19 anos" (Skinningsrud e Bjornavold, 1994:13). A escola secundária superior é assim uma boa alternativa ou, no mínimo, uma alternativa necessária. Terminada a escolaridade obrigatória de 9 anos (6 + 3), os jovens na Noruega podem encaminhar-se para os seguintes percursos: 432 Quadro 5.8. Situação (a 1 de Outubro de 1992) dos jovens que concluiram a escolaridade obrigatória na Primavera de 92, na Noruega % Estudos Gerais Estudos Profissionais Outros estudos Fora do sistema Voltam à esc. obrig. (sic) 43.8 48.3 2.0 4.7 1.2 Fonte: Estatísticas Oficiais da Noruega (in Skinningsrud e Bjornavold, 1994:12) Dos que frequentam escolas do ensino secundário superior, 44% escolhe estudos gerais e os restantes encaminham-se em direcção a estudos profissionalizantes, segundo a seguinte distribuição: . Estudos comerciais 16% . Artesanato e Indústria 23% . Pesca 2% . Agricultura 2% . Saúde 8% . Estudos domésticos 3% . Artesanato doméstico 3% . Desporto 1% 58% O desemprego afecta particularmente o grupo etário 20-24 anos. No grupo etário 16-19 o volume de desempregados tem-se mantido estável desde 1988, em termos absolutos, evoluindo embora percentualmente de 4 para 6%. No grupo etário seguinte, o desemprego tem subido mais vertiginosamente, tendo duplicado no mesmo período (1988 - 1993); em termos relativos a taxa de desemprego subiu de 5% para 11%. 433 A Comissão Blegen prepara uma reforma Na opinião do Ministério da Educação, Investigação e Assuntos Religiosos (MERCA) urgia alterar e ensino secundário superior com base nos seguintes aspectos críticos do sistema: - a especialização era demasiado aprofundada, particularmente no nível do "curso de base"; - as opções eram demasiado numerosas e confusas; - muitos cursos do secundário superior não ofereciam um terceiro ano de ensino; - a progressão de um nível para outro era demasiado pobre; - a ligação entre escola e formação na indústria era demasiado débil; - havia muito poucos lugares para aprendizes e insuficientes oportunidades para completar a formação profissional; - os regulamentos que regiam a admissão a estudos superiores eram complicados e confusos, (Ministry of Education, Research and Church Affairs, 1994 a). Em 1989, foi constituída a chamada Comissão Blegen com o seguinte mandato: (i) identificar medidas tendentes a assegurar que todos os alunos no ensino secundário superior possam obter ou as suas qualificações para o ensino superior ou as suas qualificações profissionais, através de cursos de três anos; (ii) avaliar a globalidade da estrutura formativa entre a escolaridade obrigatória e o ensino superior, atendendo às vias de progressão, à coordenação entre estudos teóricos e práticos e ao uso eficiente de recursos; (iii) avaliar esta mesma estrutura tendo em vista aumentar a internacionalização; (iv) inventariar modos de construir conhecimento que possam informar as medidas de política na área do ensino secundário superior. 434 Em 1991, a Comissão Blegen entregou ao Governo o seu relatório, contendo um anexo com uma declaração da Confederação Norueguesa de Sindicatos e da Confederação Norueguesa de Comércio e Indústria, sobre a formação profissional e a aprendizagem, em que se disponibilizam para uma cooperação mais intensa no futuro. Em 1992, já o Governo adoptava uma lei que consagrava as principais recomendações da Comissão Blegen. A chamada "Reforma 94" estava preparada e entraria em vigor, posteriormente, em 1 de Agosto de 1994. A Comissão Parlamentar de Educação, nos seus comentários ao Livro Branco de 1992, "Conhecimento e Competência", sumariou os principais problemas do ensino secundário, do seguinte modo: . inexistência legal de direitos relativos ao ensino e à formação após a escolaridade obrigatória; . os cursos de base no ensino secundário superior (1º ano) são demasiado especializados, abrangendo, em 1991, 109 especialidades diferentes; . os ritmos de progressão nas escolas secundárias superiores são demasiado lentos e há níveis muito altos de abandonos; . os currículos para os diferentes níveis, vias e categorias de alunos são incoerentes e fragmentados; não existe uma definição de objectivos gerais para o sistema de ensino como um todo e os programas estão demasiado pormenorizados; . não existe uma única agência que possua um conhecimento completo dos jovens dos 16 aos 19 anos e que não estão envolvidos em instituições educativas nem estão empregados. 435 Por sua vez, o Ministério da Educação adoptou um conjunto de linhas de orientação para aplicar ao conjunto dos percursos de formação. Entre elas destacam-se: - é assegurado o direito de admissão em uma das três principais escolhas do jovem, ao entrar no ensino secundário superior; - as portas de entrada no ensino secundário superior são reduzidas de 109 para 13. Três delas são preparatórias dos estudos no ensino superior, dez são profissionais e estão disponíveis em todas as regiões; - os percursos formativos têm um tronco comum inicial e ao longo dos três anos é possível uma especialização progressiva; - a sequência normal no novo sistema dual de formação profissional será de dois anos de ensino na escola e dois anos de formação na empresa, como aprendiz. - O ensino geral é uma parte integrante da formação profissional, com um core curriculum comum em Norueguês, Inglês, Matemática, Ciências Naturais e Ciências Sociais; - todos os alunos e aprendizes aprendem algumas competências empresariais; - no termo da sua formação, os alunos obtêm ou um diploma de qualificação para o "college" ou para a Universidade ou um certificado como trabalhador qualificado; - os materiais de ensino e os conteúdos do currículo geral são adaptados à área profissional que os alunos escolhem; 436 - é criado um serviço de acompanhamento dos alunos, em cada município, à saída da escola, tendo em vista apoiar todos os que abandonam os estudos; - todos os currículos são desenhados para fazer face aos desafios do futuro, tanto na sociedade como no mercado de trabalho; - são desenvolvidas melhores possibilidades formativas para os adultos através de currículos modularizados (Ministry of Education, Research and Church Affairs, 1994 b). Instituti-se, assim, um sistema mais unificado na base (foundation course) e igualmente especializado no topo (ver Quadro 5.9.). Quadro 5.9. Progressão do número de especializações dentro do ensino secundário superior na Noruega (1994) Anos de formação 1º ano (foundation course) Nº de especialidades 13 2º ano 90 3º ano 200 4º ano (ano de extensão, no caso da aprendizagem) O novo modelo de formação adoptado As áreas "fundacionais" são 13, três das quais estão intimamente associadas ao prosseguimento de estudos, correspondendo aos antigos estudos liceais, 437 a saber: - Estudos Gerais e Comércio - Música, Dança e Drama - Desporto e Educação Física As dez restantes correspondem "às bases para uma formação ocupacional", nos termos do Ministério. São as seguintes: - Saúde e estudos sociais - Estudos de artes, artesanato e design - Agricultura, pesca e floresta - Hotelaria e restauração - Construção civil - Construção técnica - Electricidade - Engenharia e Mecânica - Química - Trabalho da madeira (woodworking) Para o MERCA, "esta reforma está concebida para uma sociedade em rápida mudança. A ênfase é colocada no desenvolvimento de competências alongadas, na flexibilidade e numa boa fundação para uma formação mais avançada" (Ministry of Education, Research and Church Affairs, 1994). As mudanças mais drásticas operaram-se ao nível da formação técnica e profissional, no dizer do próprio Ministério. A legislação anterior que regulava este segmento do sistema de educação reportava-se a 1 de Janeiro de 1981. Entretanto, os serviços e a indústria reclamavam uma formação que contemplasse novos saberes e este facto foi tido como um dado central para a reforma das formações profissionalizantes. 438 O ensino secundário apresenta, a partir desta reforma, uma configuração que expressa um compromisso entre a vontade de construir um tronco comum de formação para todos os jovens do grupo etário 16-19 anos e a necessidade de manter um modelo de especialização progressiva, como via de obtenção de uma qualificação profissional. Assim, na prática, existem dois percursos principais, com variantes: os percursos dos alunos que visam o prosseguimento de estudos no ensino superior e os percursos dos alunos que desejam obter de imediato uma qualificação profissional. A nova estrutura do ensino secundário superior pode ser ilustrada do seguinte modo: Figura 5.11. Nova organização do ensino secundário na Noruega (1994) 439 (Na escola) 1º ano Curso de Base (Na escola) 2º ano 3º ano Curso Avançado I (Na escola) Curso Avançado II (Na escola) Curso Avançado II (suplemento de formação geral) (No local de trabalho) Formação (No local de trabalho) Formação e Trabalho produtivo (No local de trabalho) 4º ano Formação e Trabalho produtivo O acesso ao ensino superior é aberto a todos os tipos de percursos de formação, desde que satisfaçam um duplo requisito: a) completar três anos de ensino secundário superior, qualquer que seja a área de estudos; b) possuir um nível mínimo de aprovação nestas matérias: Norueguês, Inglês, Estudos Sociais. No seu conjunto, estas matérias devem prefazer 35 períodos horários por semana. Estes requisitos preenchem-se seja pela simples aprovação num curso de três anos em algumas áreas de estudo (as áreas de estudos gerais e artísticos, p. ex.) seja pela realização de um suplemento de formação geral 440 que incide sobretudo sobre as disciplinas acima mencionadas. O desenho curricular do novo ensino secundário compreende um core curriculum que estabelece os objectivos globais e apresenta os elementos principais de cada curso. No core curriculum sublinham-se os grandes princípios humanistas que devem nortear o ensino e a formação e ordena-se o sistema educativo para a promoção de "uma educação geral multifacetada e aberta" como "précondição para uma evolução global da personalidade e para desenvolver uma multiplicidade de relações interpessoais, como pré-condição para se ser capaz de escolher uma carreira e, mais tarde, exercer um emprego com competência, responsabilidade e diligência" (Ministry of Education, Research, and Church Affairs, 1994 b). Na elaboração dos programas dos cursos seguiram-se, segundo o ME, quatro princípios: 1) Programas abertos, embora aplicáveis aos locais onde a formação tem lugar e aos grupos que a recebem (previamente havia programas diferentes para as disciplinas escolares, para a aprendizagem, para os cursos realizados nas empresas e para a educação de adultos). 2) Os programas são divididos em módulos (seja como forma de os aproximar mais da diversidade de necessidades dos alunos seja como maneira de os articular com as necessidades da indústria). 3) É adoptado um vasto conceito de saber, abrangendo o desenvolvimento de saberes e competências, atitudes e valores éticos e qualidades pessoais, tais como competência social, competências empresariais, competências de comunicação, etc. 4) A internacionalização, o ambiente e a tecnologia computacional são 441 incluídas em todos os programas. 5) Gudmund Hernes (1993), Ministro da Educação da Noruega, justificava a redução das "portas de entrada", por um lado, pelo facto de "muitos jovens de 16 anos não estarem preparados para realizar uma decisão final acerca da ocupação" que querem ter e, por outro lado, porque "todos devem ser formados não para uma certa ocupação, mas também para ocupações que ainda não existem e que ainda não foram inventadas". E sublinhava: "aqueles que entrarem no ensino secundário em 1994, permanecerão na nossa força de trabalho até ao ano 2040”. Verifica-se haver uma preocupação em reforçar e rever as articulações entre o ensino geral e especializado. O Ministro da Educação assegurava que aquilo de que o país precisava era de desenvolver, ao mesmo tempo, competências gerais e aplicações específicas. "As mudanças rápidas no mundo do trabalho apelam para a transmissão de competências gerais na educação. Quando os saberes específicos necessários estão continuamente em alteração e emergem a todo o tempo novos factos, são necessários quadros de referência gerais para interpertar a nova informação e para procurar novas conexões" (Hernes, 1993). E concluía: os jovens devem ser educados para a reeducação, dotados das competências gerais capazes de sustentarem a aquisição de saberes especializados ao longo da vida profissional. Em termos administrativos, o ensino secundário é uma responsabilidade das autoridades regionais (fylker). Com a Reforma’94 estas autoridades têm de garantir o direito dos jovens, com idades entre os 16 e os 20 anos, a frequentar cursos de ensino-formação durante três anos. A aprendizagem e outras modalidades de formação 442 A aprendizagem é escolhida por 1.3% dos que completam o Curso de base (10º ano) e por 6.5% dos que completam o Curso Avançado I (dados de 1992). A maior parte (56%) dos que, em 1992/93, completaram os seus cursos de aprendizagem são maiores de 25 anos que procuram a obtenção de uma qualificação formal. Para os que terminam a sua escolaridade obrigatória, este sistema funciona apenas com uma válvula de segurança para uma pequena parte dos jovens, os que apresentam problemas muito particulares no processo de transição. Skinningsrud e Bjornavold atribuemlhe mesmo um "papel marginal" (1994:25). O novo sistema de aprendizagem, saído da “Reforma'94”, está integrado no ensino secundário e requer que os dois primeiros anos de escola secundária superior estejam completados antes de se iniciar a formação em aprendizagem. Esta prolonga-se, regra geral, por mais dois anos. Para os grupos de desempregados foram lançadas uma série de "garantias jovem" e atribuiu-se-lhes a máxima prioridade nas políticas de emprego. As "garantias" lançaram-se em 1977, apenas para o grupo etário 16-19 e, em 1994, começaram a abranger também o grupo 20-24 anos. Estas iniciativas envolveram cerca de 25.000 jovens, em 1993, 17.000 dos quais pertencentes ao grupo etário 20-24 anos. As principais são a Prática de Trabalho - 11.500, AMO (Formação no Mercado de Trabalho) - 7.000; Esquemas de criação de Emprego, no sector público - 3.500; outras iniciativas (3.000). A Comissão Blegen propôs também a criação de um dispositivo especial de acompanhamento dos jovens do grupo etário 16-19 anos que não estão envolvidos em programas de ensino e de formação e que também não estão a trabalhar, o "Follow-Up Service". A proposta foi adoptada e entrou en vigor, 443 sob responsabilidade municipal. Os parceiros sociais estão envolvidos nas políticas de formação profissional de molde a influenciá-las. Constituem a maioria no Conselho Nacional para a Formação Profissional e para a Aprendizagem e constituem ainda os vinte e três Conselhos de Formação36 e as organizações regionais tripartidas, chamadas Comités para a Formação Profissional. As regiões (nível intermédio entre os municípios e o nível central) são obrigadas, por lei, a providenciar o número suficiente de lugares no ensino e na formação de nível secundário para que todos os que desejam realizar um curso de três anos possam ser admitidos. O número de lugares a disponibilizar deve ser suficientemente amplo (prevêse sempre um volume extra de lugares) para que as preferências dos jovens possam ser acolhidas e para que cerca de um terço do grupo etário possa realizar uma formação em aprendizagem, após a conclusão de dois anos de estudos na escola secundária. Um serviço tripartido, incluindo parceiros sociais e repersentantes dos partidos políticos ao nível regional, é o agente operacional responsável pelo estabelecimento das ligações com as empresas e pela colocação dos aprendizes. Este serviço é o Comité para a Formação Profissional. As regiões são também responsáveis pelo estabelecimento do Serviço de Follow-up destinado aos jovens do grupo etário 16-19 anos que não estudam nem trabalham. A principal missão deste Serviço é a de orientar e informar os jovens acerca de outras alternativas de formação ou de emprego (regulamentação de Maio de 1994). 36 Estes concelhos eram em número superior a 60 e distribuíam-se por ramos de actividade específicos. Desde 1993 foram reduzidos para 23 e em 1994 foi nomeado um comité para reequacionar a estrutura dos Conselhos de Formação. 444 O Caso da Suécia A Suécia apresenta um sistema de ensino e formação profissional de base escolar, sendo até considerado um modelo deste tipo de sistemas. Após um longo processo de reflexão, durante os anos 80, acerca do papel e do lugar da educação e do ensino de nível secundário superior, o Governo e o Parlamento suecos adoptaram uma lei, em Junho de 1991, que veio estebelecer novas bases para uma reforma do ensino secundário superior. Este processo parece repetir, vinte anos volvidos, aquele outro que se desenrolou na segunda metade da década de 60 em que um grupo de trabalho oficial preparou uma reforma do ensino técnico e profissional. Este grupo viria a propôr a criação de uma escola secundária superior integrada, o que foi relativamente bem recebido e viria a ser legalmente adoptado. A Suécia celebrou, em 1987, os 25 anos do ensino unificado. De facto, em 1962 era aplicado o primeiro currículo básico integrado, após aprovação parlamentar. Esta tradição unificadora viria a estender-se lenta e progressivamente a todo o ensino básico e secundário, inferior e superior. Até aos 16 anos, a Grundskola oferece uma escolaridade obrigatória de nove anos. Após esta formação geral e comum, erguiam-se vias muito diferenciadas de formação geral e profissional. A reforma de 1970 (decisão tomada em 1968 e implementada em 1970) traduziu-se na instituição legal de uma escola secundária superior integrada, colocando sob o mesmo tecto todos os tipos de vias de estudo e de formação. Tanto o National Board of Education como os 280 comités de educação dos municípios reformularam os programas de estudo de modo a que os estudantes dos cursos profissionais de dois anos frequentem, agora, 445 as formações gerais, ao lado dos estudantes dos programas académicos de dois anos. A reforma de 1970 instituiu um ensino secundário superior com cursos de estudos gerais e académicos de dois, três e quatro anos, cursos profissionais e cursos especializados orientados para especializações ocupacionais, usualmente relacionadas com o mercado de trabalho local (ver Figura 5.12.). 446 Figura 5.12. Oferta educativa da escola secundária superior integrada na Suécia Cursos de formação (90 variações possíveis) Cursos Académicos de 3 e 4 anos 3 anos: Artes Ciências Sociais Economia Ciências Naturais Cursos Académicos de 2 anos Economia Social Música Estética Técnico Cursos Profissionais de 2 anos Fabricação de vestuário Construção Distribuição Manutenção Electro-Telecomunicações Engenharia Mecânica Agricultura Fabricação alimentar Restauração Engenharia de processo Floresta Serviços Sociais Horticultura Trabalho em madeira Cuidado de crianças Oficina 4 anos: Tecnologia Cursos especializados (530 variações possíveis) Cursos relacionados com a escolaridade obrigatória * Cursos não relacionados com a escolaridade obrigatória Cursos de subida de nível Fonte: Opper, 1989 (*) Os cursos especializados são frequentados como conclusão da escolaridade obrigatória ou seu equivalente. Cursos especializados avançados surgem após a conclusão de dois ou três anos de escola secundária superior ou o equivalente. A duração destes cursos pode variar entre duas semanas e dois anos. 447 Os programas académicos e gerais de 3 e 4 anos equivalem aos estudos secundários tradicionalmente conducentes à universidade e oferecidos anteriormente pelos liceus. Os programas académicos de dois anos correspondem à formação dada anteriormente pelas "continuation schools". Os cursos profissionais de dois anos substituem os cursos das escolas profissionais, administradas a nível municipal. Pretendeu-se assegurar a elegibilidade geral para o acesso ao ensino superior embora haja vias claramente preferenciais e, em geral, os diplomados dos cursos profissionais de dois anos tenham de realizar uma formação complementar. Durante os anos 70 e 80 aumentou muito a procura do ensino secundário superior. Esta dirigiu-se preferencialmente para os cursos mais longos, tendo havido uma diminuição da procura dos cursos académicos de dois anos e dos cursos especializados. Enquanto que em meados dos anos 70 apenas 70% dos diplomados pela escolaridade obrigatória prosseguiu estudos secundários, em 1989 esse valor já tinha subido para cerca de 97% (Ver Quadro nº 5.10.). Em meados da década de 80 concluíam os nove anos de escolaridade obrigatória cerca de 110.000 jovens. Destes, 96% requeria admissão no ensino secundário superior, dos quais 3.000 não eram admitidos e 7.000 abandonavam no primeiro ano de estudos. Dos admitidos, 25% dirigia-se para cursos especializados e, dos restantes, 40% ía frequentar cursos profissionais de dois anos e 30% seguia para cursos académicos mais longos. Entre estes últimos, os cursos de Economia (3 anos) e de Tecnologia (4 anos) eram, de longe, os mais requeridos e frequentados, sendo os cursos mais ligados a formações terminais. A evolução desta distribuição dos alunos dentro do ensino secundário superior, desde o fim dos anos 80 até hoje, é documentada no Quadro 5.11. e na Figura 5.13. 448 Nesta perspectiva, pode afirmar-se que a maioria dos jovens dos 16-19 anos faz um percurso de formação na escola secundária superior de tipo profissional, ou seja, predominantemente orientado para o ingresso imediato no mercado de emprego. A maioria dos diplomados pelo ensino secundário superior entra no mercado de emprego e apenas 28% prossegue estudos, transitando directamente para o ensino superior ou para outras formas de ensino técnico e profissional (Opper, 1989). A procura do ensino técnico e profissional não parou de aumentar ao longo dos anos 80. Para Christiane Rault (1994) tal facto compreende-se à luz de três razões: (a) a condição dos empregos que mudou muito, nomeadamente a reorganização do trabalho; (b) o sistema de ensino atribuiu à formação profissional escolar um estatuto equivalente aos dos cursos gerais e académicos; (c) a estrutura salarial, em que o leque é diminuto, acaba por valorizar socialmente as categorias socioprofissionais mais baixas. Entretanto, o desemprego crescia entre os jovens do grupo etário 16-19 anos: o desemprego juvenil (15 - 24 anos) era, segundo a OCDE, de 2,9% em 1970, de 5,1% em 1980, de 8.0% em 1983 e de 16.6% em 1994. O governo desencadeou uma série de iniciativas complementares de formação técnica e profissional destinadas a estes jovens e revalorizou a aprendizagem como modalidade de formação de âmbito escolar. 449 Quadro 5.10. Percentagem de alunos que tendo terminado a escolaridade obrigatória se matricularam no ano lectivo seguinte no ensino secundário superior (escolas públicas), na Suécia. Ano lectivo * 1987/88 % de alunos que requer o ensino sec. superior 97.7 % dos alunos que inicia o ensino sec. superior 85.8 1988/89 96.9 85.1 1989/90 98.2 86.5 1990/91 98.9 89.8 1991/92 92.5/95.7* 1992/93 92.0/97.0* Este é o valor atingido se lhe acrescentarmos os novos "programas individuais" de formação. Quadro 5.11. Alunos no ensino secundário superior (local, regional e independente) segundo o tipo de estudos que frequenta (1988-1992), na Suécia Ano (situação a 15 Set. de cada ano) 1989 1990 1991 49.0 49.1 48.3 1992 (15 de Outubro) 45.1 4.6 4.5 4.6 4.4 29.0 26.8 25.4 19.8 5.0 7.9 10.1 9.0 - - - 8.6 Tipo de estudos Cursos de 3 - 4 anos (teóricos) Cursos de 2 anos (teóricos) Cursos de 2anos (profissionais) Cursos de 3 anos (profissionais) Programas Individuais Cursos especiais: - de um período - entre um período e um ano - um ano e mais 0.3 0.3 0.3 0.3 1.4 10.7 1.3 10.1 1.2 10.1 1.1 11.7 TOTAL 100 100 100 100 450 Fonte: Ministry of Education and Science, 1992 451 Figura 5.13. Distribuição dos alunos do 1º ano do ensino secundário superior, na Suécia (Outubro de 1993) Programas Profissionais Outros e Programas conducentes a estudos superiores Programas Ciências Nat. Programas de individuais Artes Ciências Soc. 44.9% Programas Especiais 11.4% 38,7% 4.0% 1.0% Universo de 103.844 alunos candidatos Escola Unificada ( 7 -15 anos) Fonte: Ministério Sueco da Educação e dos Assuntos Culturais Entre as novas iniciativas de formação destacam-se os programas de aprendizagem, o "programa follow-up", o programa" youth opportunities" e o "youth teams". Os parceiros sociais participaram activamente no desenho destas alternativas de formação, nomeadamente através do “National Labour Market Board” que orienta a formação técnica e profissional relacionada com os 452 locais de trabalho. Enquanto política de combate ao desemprego juvenil este tipo de medidas de política revelou-se eficiente: o desemprego diminuiu fortemente no grupo etário 16-19 anos. Os empregadores privados começaram a recrutar, cada vez mais, jovens a partir dos 20 anos. Em 1980, o sistema escolar tornou-se responsável pela formação de todos os jovens até aos 18 anos de idade e, em 1991, essa responsabilidade alargou-se para todos os jovens até aos 20 anos de idade, atribuindo-se aos municípios a responsabilidade pelo acompanhamento individual de cada um dos jovens que não se tenha candidatado ou não tenha sido admitido nos cursos regulares do ensino secundário superior. Criaram-se, assim, desde Julho de 1981, uma série de "oportunidades jovens" que constituem uma forma alternativa de acesso ao emprego para uma franja da população do grupo etário 16-19 anos. A ambição subjacente, reconhece o Ministério de Educação, era a de dar um efectivo apoio social a todos os jovens deste grupo etário (Ministry of Education and Science, 1992:89). Se é verdade que o ensino secundário superior nunca se incluiu na escolaridade obrigatória, tornou-se obrigatório para os municípios, primeiro até aos 18 anos e agora até aos 20, assegurar o direito de todos os jovens de acesso ao ensino superior ou a uma formação equivalente ainda que mais articulada com o exercício profissional concreto. A difícil integração Entretanto, a tão desejada e prosseguida criação da nova escola secundária superior integrada encontrava resistências diversas. O próprio Ministério da Educação e da Ciência assinala, em relatório oficial para a OCDE, algumas 453 dessas resistências. Em primeiro lugar, constata-se que permaneceu a estrutura anterior de diferenciação entre os três tipos de escola: o liceu e os seus cursos de três anos, preparatórios para a universidade, as "escolas de continuação" e os seus cursos de dois anos e as escolas profissionais, também com os cursos de dois anos. Os diferentes padrões de recrutamento quer de alunos quer de professores e os diferentes estatutos sociais das escolas permanaceram inalterados. Por outro lado, assinala-se que não houve sucesso na tentativa de diminuir a conexão entre a origem social e o “background” educacional, por um lado, e a escolha da via de estudos do ensino secundário superior, por outro. Dos jovens que entram nos programas preparatórios para o acesso à universidade, no fim dos anos 80, cerca de dois-terços provêm de estratos sociais elevados e médios e apenas um quinto vem das classes trabalhadoras. No caso dos cursos profissionais passa-se o inverso. Mantém-se, também, a tradicional distribuição por sexos. Os rapazes escolhem maioritariamente cursos relacionados com empregos dominados pelos homens e de orientação técnica e as raparigas escolhem primeiramente cursos com uma orientação social e de serviços pessoais, aqueles que preparam para empregos em que predominam as mulheres. Igualmente se verifica que a perspectiva de aproximar os programas dos cursos profissionais dos programas dos cursos que preparam para o prosseguimento de estudos, cruzando os seus conteúdos e, sobretudo, valorizando a educação recorrente como modo de atualizar conhecimentos e competências ao longo de toda a vida adulta, também não resultou conforme se previra. 454 Durante a década de 80 manteve-se esta tendência para a recusa da integração da formação profissional no sistema escolar, enfatizando-se a necessidade de incrementar o sistema de aprendizagem. A reforma de 1991 Em 1984, o governo central constituiu um comité para examinar os aspectos do sistema educativo mais relacionados com o ensino técnico e profissional. Em Fevereiro de 1986 era produzido um relatório que foi presente ao governo. Este relatório continha um conjunto de recomendações de entre as quais se sublinham as seguintes: . todos os cursos do ensino técnico e profissional das escolas secundárias superiores devem ter três anos de duração; . os primeiros dois anos dos cursos devem continuar a ser de base escolar, não obstante dever desenvolver-se 10% da carga horária em aprendizagens no local de trabalho. Cerca de 60% do terceiro ano deve basear-se no local de trabalho. Todas as opções e especializações do ensino técnico profissional devem sustentar-se, nos dois primeiros anos, em disciplinas de base comuns; . é desejável um maior envolvimento dos monitores na formação no local de trabalho, podendo vir a leccionar disciplinas da formação escolar na própria escola secundária, em complemento da instrução dada no local de trabalho; . o currículo deve conter módulos de competências a adquirir, módulos esses que possam ser reformulados sempre que necessário e separadamente do conjunto do programa. 455 . a adopção de um certo módulo seja na escola seja no local de trabalho deve ser uma decisão de nível local, dentro dos limites definidos a nível nacional; . pelo menos 50% do tempo consumido quando os estudantes estão no local de trabalho deve ser usado obrigatoriamente para formação dos professores em serviço; . devem criar-se novos grupos curriculares permanentes, que incluam representantes do sector do emprego, que devem manter uma supervisão da evolução do mundo do trabalho, assinalando qualquer necessidade de mudança no ensino profissional. Houve uma reacção genericamente positiva em relação a estas recomendações e o governo expressou o seu acordo relativamente a boa parte delas. Segundo Young (1993) esta reforma do ensino secundário surgiu na Suécia sobretudo por duas razões: porque os alunos diplomados pelos cursos profissionais das escolas secundárias tinham dificuldade em encontrar empregos, dado que os empregadores frequentemente davam preferência, nas novas admissões, aos estudantes oriundos dos cursos do ensino geral e, em segundo lugar, porque aqueles mesmos alunos dos cursos profissionais eram excluídos frequentemente do acesso ao ensino superior. Para o próprio Ministério da Educação, a reforma do ensino secundário superior justifica-se tanto pela necessidade de assegurar a todos os jovens um lugar numa escola secundária superior uma vez que "o mercado de trabalho dificilmente terá lugar para os jovens abaixo dos 18 anos", como pela indispensabilidade em oferecer uma formação de banda mais larga, contrariando a tendência anterior para a especialização e oferecendo, em 456 alternativa, um "grau considerável de flexibilidade" (Swedish Ministry of Education and Science, 1994:18). Uma Lei de Junho de 1991 veio consagrar esta reforma do ensino secundário superior e o princípio de que todos os municípios têm a responsabilidade de oferecer aos seus habitantes, após a escolaridade obrigatória de nove anos e entre os 16 e 19 anos de idade, uma oportunidade de ensino secundário superior. Os jovens têm o correspondente direito a esta educação e o acesso garantido a uma escola secundária superior, até à primavera do ano em que prefazem 20 anos. Os novos currículos e programas entraram em vigor no ano lectivo de 1993/94. Para o Ministério da Educação e Ciência "estas escolas devem incutir nos seus estudantes uma preparação para um mundo do trabalho em mutação, para estudos superiores, assim como para a vida adulta, seja como cidadãos, seja como pessoas responsáveis por modelar a sua própria vida"(Ministry of Education and Science, 1993:3). O Ministério da Educação e Ciência da Suécia sustenta a pertinência desta reforma em vários postulados: (a) a exigência dos parceiros sociais, que reclemaram a extensão de dois para três anos dos programas de formação profissional, de modo a igualar a duração de todos os cursos regulares; (b) o reforço da preparação profissional, pela articulação entre a escola e o mundo do trabalho e o reforço da preparação geral introduzindo, p. ex., Inglês. Matemática e Educação Cívica como disciplinas obrigatórias para todos; (c) a necesidade de todos os cursos de três anos concederem a habilitação geral de acesso ao ensino superior; (d) a necessidade de racionalizar a oferta de formação a este nível, limitando o número de cursos e definindo um “core curriculum” comum a todos os cursos e um sistema de especialização gradual; (e) o aumento da diversidade de configurações na medida em que os cursos devem ser definidos com a participação dos municípios e através de um processo de verificação das opções individuais dos jovens; (f) os 457 jovens devem poder participar activamente na formulação do seu próprio percurso escolar fazendo intervir as suas necessidades e os seus desejos pessoais. Assim, todas as escolas secundárias de segundo grau passarão a oferecer cursos de três anos, em que o primeiro é comum e os dois últimos podem dirigir-se a ramos específicos dentro da respectiva área de formação. De cerca de 500 cursos especializados distribuídos por 25 áreas de formação passa-se, agora, para 16 cursos/programas de base, 14 de tipo profissional e 2 mais aticulados com a prepação para o prosseguimento de estudos. O terceiro ano dos cursos profissionais poderá ser dirigido preferencialmente tanto para a progressão de estudos superiores como para o acesso imediato ao mercado de emprego. Esta reforma, em aparente contradição, introduz, deste modo, um conjunto de programas nacionais mas, ao mesmo tempo, desencadeia a emergência de programas especialmente "desenhados" pelas escolas, de programas individuais e de vários programas de formação em aprendizagem. Os novos cursos secundários de três anos começaram a ser aplicados em 1992/93. Ao mesmo tempo, aos jovens que tinham completado um curso de dois anos de tipo profissional foi dada a oportunidade de permanecerem um terceiro ano na escola. O mesmo aconteceu em 1993/94 e 1994/95. O Ministério da Educação justifica esta medida como um esforço para aliviar o muito elevado desemprego juvenil e igualmente para reforçar as oportunidades dos jovens para ganhar um lugar no mercado de trabalho (Swedish Ministry of Education and Science, 1994:20). Uma lei de Julho de 1995 consubstancia o conjunto das alterações em curso no ensino secundário superior da Suécia. O acesso a este nível ficará concidicionado, a partir de 1998/1999, à passagem num exame em sueco, inglês e matemática. 458 Como se referiu, o primeiro ano é comum e, na generalidade dos cursos, o segundo subdivide-se em ramos (ver quadro 5.12.). Admite-se ainda a existência de "ramos locais" além dos aprovados a nível nacional. Quadro 5.12. Novas áreas de formação/programas nacionais de ensino secundário superior na Suécia . Recreação infantil (integrado) . Hotelaria, Restauração e Catering Ramos: . Construção Ramos: Construções Metálicas Construção Civil Pintura e obras . Indústria Ramos: . Engenharia Eléctrica Ramos: Automação Electrónica Instalações Eléctricas . Alimentação Ramos: . Energia Ramos: . Artes Ramos: Energia Engenharia Naval Aquecimento, ventiação pichelaria Dança e Teatro Arte e Design Música . Engenharia Auto Ramos: Engenharia aeronaval Engenharia auto Transporte e Equipamento e . Media Ramos: Hotelaria Restauração Catering Indústria Processos Industriuais Textil, Vestuário Trabalho em Madeira Embalagem e pastelaria Refeições frescas e cozinhadas Informação e publicidade "Graphic Media" . Uso dos Recursos Naturais (integrado) . Ciências Naturais Ramos: Ciências Naturais Tecnologias . Cuidados de Saúde Ramos: Cuidados de Saúde Enfermagem dentária . Comércio e Administração (integrado) . Artesanato . Ciências Sociais Ramos: Economia Humanidades 459 (múltiplos ramos; assenta na formação em posto de trabalho, no 2º e 3º anos) Fonte: Swedish Ministry of Education and Science, 1994 Ciências Sociais 460 Os programas estão divididos em unidades. Uma unidade (course) pode consistir num assunto, numa parte de um assunto ou em partes de vários assuntos. Uma unidade compreende, pelo menos, 30 horas de leccionação. Para cada unidade há um plano que descreve o propósito da unidade, o seu carácter e estrutura, bem com os níveis de desenvolvimento que se espera que o aluno alcance. Os planos da unidade são acompanhados de critérios graduados que estabelecem o que é que os alunos devem saber para obter a passagem e a passagem com distinção. Além das unidades nacionais, há unidades locais que são adoptadas após uma decisão do Conselho Local de Educação. Para o Ministério de Educação e Ciência este sistema de unidades de ensino compreende várias vantagens, a saber: aumenta a flexibilidade, permitindo a cada aluno e às autoridades locais construir percursos específicos; aumenta as possibilidades de orientação profissional dos cursos e dos alunos; permite aos alunos controlar o ritmo de progressão que pretendem empreender aos seus estudos (Swedish Ministry of Education and Science, 1994:19). Paralelamente aos programas nacionais existem "programas individuais" destinados aos jovens com menos de 20 anos e que, por qualquer razão, não estudam. Estes programas têm em vista geralmente uma reintegração do jovem no ensino secundário superior. Cada um dos 16 programas nacionais desagrega-se em cinco componentes: (a) um "core curriculum" composto por Língua Materna, Inglês, Matemática, Educação Cívica, Desporto e Saúde, Ciências, Religião e Artes. Esta componente comporta um mínimo de 680 horas: (b) uma componente específica que varia conforme a área de estudos; (c) uma componente de opções individuais constituída por 190 horas, em qualquer programa; (d) uma componente de "adições locais e de assuntos relacionados com práticas", de 100-130 horas, na maioria dos programas/cursos; (e) uma 461 componente residual e obrigatória de apenas 30 horas, destinada a projectos especiais. Nesta base qualquer jovem pode, em princípio, sustentar o seu percurso de formação, orientando-o a seu modo, dentro dos limites genéricos estabelecidos a nível nacional. Por outro lado, o governo e o Parlamento pretendem assegurar que um conjunto de objectivos e de metas é atingido, ou seja, que se verifica sempre a aquisição de um certo nível de competências e de conhecimentos, estabelecendo, para tal, padrões de referência. O governo propôs-se igualmente incrementar um programa de formação em novos cursos de aprendizagem, de três anos de duração. Estes cursos compreendem uma componente de formação organizada pelos empregadores e uma componente de formação escolar baseada na Língua Materna, Inglês, Educação Cívica e Matemática. Young (1993) considera que é possível que emerja um padrão de formação em que os programas baseados no trabalho, originariamente concebidos como a via preferencial de ensino profissional para os artesãos, se transformem em programas residuais para os 10-15% de alunos que obtêm fracos resultados escolares e que se encontram com dificuldades em de aceder a uma formação qualificante a tempo-inteiro. A revalorização da aprendizagem como via alternativa de formação, é ainda assinalada por Rault (1994), que sublinha que as empresas desempenham um papel preponderante neste processo e que, embora se mantenha a formação em meio escolar, se formaliza um contrato de aprendizagem entre o aluno e a empresa. Globalmente, e na sequência da reforma de 1991, parece estar a assistir-se a um aumento da procura dos cursos profissionais. Em 1991, cerca de 53% 462 dos jovens prosseguia os cursos gerais (de 2 e 3 anos) e 47% seguia os cursos profissionais (também de 2 e 3 anos, embora a maioria fosse de 2 anos). Em 1994, a repartição da frequência entre cursos gerais de 3 anos e cursos profissionais de 3 anos (quase só de 3 anos) passou para 39% e 61%, respectivamente. Descentralização A administração educacional municipal está na primeira linha do planeamento da educação e da formação. Os Conselhos Locais de Educação, que integram os parceiros sociais, desenvolvem uma série de iniciativas de formação e de formação-emprego, sedimentando não só a escola secundária superior no território, mas também e sobretudo desenvolvendo um sistema paralelo de vias elternativas de formação e de acesso ao emprego para todos os jovens que terminam a sua escolaridade obrigatória. Para Christiane Rault (1994), a relativamente bem sucedida articulação entre o sistema de formação e o emprego, que se traduz no baixo volume de desemprego, deve-se também a uma eficiente política de informação e orientação escolar e profissional dentro do sistema escolar. Existem horas disponíveis no próprio currículo da escolaridade básica para "informação conselheiros, sobre as carreiras". devidamente Intervêm especializados, nesta que acção possuem educativa informação actualizada obre a evolução do mercado de trabalho. Entretanto, o “National Board of Education” e os 24 Conselhos Regionais de Educação foram substituídos, em 1991, por uma autoridade responsável pela avaliação, desenvolvimento do currículo e qualidade das escolas, a “National Agency for Education”. Esta Agência supervisiona as actividades escolares 463 dos municípios e, se necessário, orienta processos de mudança, tendo em vista colocar aquelas actividades em sintonia com os objectivos nacionais. O Caso da Suiça A Suiça, país federativo, em que os cantões regulam em grande parte a oferta pública de educação, apresenta um sistema educativo que mais se assemelha a um mosaico, no dizer dos examinadores da OCDE. No entanto, em termos genéricos e nacionais, pode dizer-se que pouco mais de 90% dos alunos que completam a escolaridade obrigatória prosseguem estudos nas modalidades equivalentes ao ensino secundário (ver Figura 5.14.). A população do ensino secundário distribui-se do seguinte modo (dados de 1991/92): 72% frequenta a formação profissional no sistema de aprendizagem; 19% frequenta os liceus / “gymnasium”; 5 % frequenta as escolas secundárias de diploma; 3% frequenta as escolas de formação de professores e 1% frequenta cursos práticos de formação profissional elementar. Os jovens que optam pelas três modalidades de ensino geral apenas prefazem 28% do conjunto dos estudantes. Os índices de escolarização têm estado em crescimento contínuo. Em 1977, estavam escolarizados 78% dos jovens de 16 anos e 45% dos jovens de 19 anos; em 1992 estes valores ascendem a 90% e a 56%, respectivamente. 464 Figura 5.14. Organigrama do sistema educativo da Suiça - ensino secundário - Altos Estudos (Universidade) Liceus que preparam para Certificado de Maturidade Formação de Professores Escolas Superiores e Formação Profissional Superior Escolas de formação de professores Aprendizagem Escolas do Grau "Diploma" e Escolas Profissionais Escolaridade Obrigatória (até aos 14 - 15 anos) O sistema de aprendizagem é a modalidade de formação que acolhe a maior parte dos jovens que prosseguem os seus estudos após a escolaridade básica. Trata-se de um modelo semelhante ao da Alemanha (“sistema dual”) e que tem uma longa tradição, assente na aprendizagem profissional realizada nas empresas. 465 Os formandos dedicam maior parte da semana ao trabalho na empresa, onde são acompanhados por um monitor e frequentam uma escola profissional, em geral dois dias por semana, onde é facultada uma formação mais geral. Os cursos podem ter entre dois e quatro anos de duração e distribuem-se por cerca de 270 profissões. Os jovens que desejam frequentar o sistema de aprendizagem realizam um contrato de aprendizagem com o monitor de aprendizagem. As escolas de ensino geral, “gymnasium”, oferecem cinco tipos de vias de formação, todas elas conducentes ao diploma de maturidade, condição de acesso ao ensino superior (Estudos Clássicos, Línguas Modernas e Latim, Matemática e Ciências Naturais, Línguas Modernas e Economia). Para além destas cinco vias, as que são reconhecidas em termos de confederação, existem outras que são oferecidas pelos cantões e que conduzem a certificados em domínios de formação como as artes ou os estudos socioeducacionais. A formação liceal é considerada bastante elitista e as escolas que a oferecem são geralmente muito selectivas (Sauthier, 1995). É por esta modalidade de ensino que se processa, em exlcusivo, o acesso à universidade. Há dois tipos de escolas do ensino geral: as de continuação de estudos, em que se incluem secções de ensino básico e de ensino secundário, e aquelas em que apenas é oferecido o ensino secundário de preparação para o exame de maturidade. O número de jovens que ficam aprovados no seu exame tem vindo a crescer, mormente o número de raparigas. Em 1970 apenas 6.440 jovens obtinham o 466 certificado e, em 1994, este número subiu para 13.691. As escolas secundárias do grau “diploma” foram criadas depois da II Grande Guerra Mundial em certos cantões, como uma via alternativa aos liceus tradicionais e com níveis de exigência considerados inferiores. Após vários debates, durante os anos 70 e 80, a Confederação Suiça chegou a um consenso acerca do lugar e do papel das Escolas Diploma. Elas destinam-se a um conjunto de jovens cujo número não tem parado de aumentar nos últimos vinte anos e responde aos requisitos seguintes: (a) favorece a conclusão do ensino geral pós-obrigatório a uma parte da população; (b) familiariza os estudantes com todos os aspectos do futuro emprego (embora não ofereça formação profissional como tal); (c) vai de encontro às necessidades dos jovens que não esperam seguir estudos num liceu mas que necessitam de uma formação cultural alargada para aceder ao ensino superior profissional não universitário (Sauthier, 1995:29). Estas escolas oferecem cursos em áreas como gestão, turismo, áreas de serviços sociais e educacionais e, em geral, dão acesso a escolas superiores em áreas equivalentes, tais como áreas administrativas, sociais, paramédicas, educacionais e artísticas. Os cursos comportam um tronco comum de cultura geral e um conjunto de disciplinas préprofissionais. Existem ainda escolas de ensino secundário especialmente vocacionadas para a formação de professores do ensino básico. As reformas dos anos 90 Foi desenvolvido recentemente um programa nacional de investigação, conduzido por um grupo de peritos, presidido por Walo Hutmacher, sobre a eficiência do sistema de formação profissional na Suiça, em que se sublinha que “novos perfis de qualificação estão a emergir na força do trabalho... 467 Estes novos perfis de qualificação em todos os níveis da indústria não requerem só saberes e competências técnicas. A ênfase está a ser também crescentemente colocada em competências mais gerais e em capacidades previamente consideradas como sendo requisitos adstritos apenas a postos mais elevados: agilidade mental, flexibilidade na aplicação dos saberes, capacidade para independência, aprender, capacidade capacidade para tomar para pensar iniciativas, em abstracto, tomar decisões, criatividade e capacidade para comunicar e para cooperar” (citado por Sauthier, 1995:41). Apesar da sua divisão cantonal e da sua estrutura política federativa, a Suiça tem vindo a promover algumas reformas educativas, baseadas na articulação formal entre os directores cantonais de instrução pública. Dois processos de reforma se podem destacar. De um lado, o que reordenou as condições de reconhecimento dos certificados de maturidade. Do outro, o que visa estabelecer um “bacharelato profissional” como requisito de entrada nos institutos superiores de tipo profissional, tanto para alunos oriundos do sistema de aprendizagem, a quem é requerido mais um ano de ensino geral, como aos alunos do ensino geral, a quem é requerido pelo menos um ano de experiência prática na indústria. Reforma do Certificado de Maturidade Desde os anos 80 que havia em preparação uma reflexão em várias frentes que conduziu ao reordenamento do ensino secundário liceal na Suiça e, em particular, à revisão das condições de acesso ao “Certificado de Maturidade”, que é o instrumento de selecção do acesso ao ensino superior universitário. Este reordenamento foi adoptado no início de 1995 e entrou em vigor a 1 de 468 Agosto de 1995. Nele se estabelece um só tipo de certificado, a duração dos cursos que preparam à “maturidade” (doze anos de formação), a formação do pessoal docente, os planos de estudo e as condições de reconhecimento dos certificados. Os planos de estudo passam a ser organizados em quatro grandes domínios, articulados entre si: as sete disciplinas fundamentais e comuns, a opção específica, a opção complementar e o trabalho final de “maturidade. Os cursos têm em geral 36 horas de aulas por semana e 38 semanas por ano e o número total de horas por curso varia de cantão para cantão, entre 3.000 e 4.000 horas. A reforma da “Maturidade profissional” e do ensino profissional Desde 1993, existe uma nova via de acesso ao certificado de maturidade - a “maturidade profissional” - através da frequência das vias profissionais, o que constitui uma via alternativa de aceso ao ensino superior. De facto, vários caminhos podem conduzir ao tão ambicionado certificado: a frequência do sistema de aprendizagem (3 ou 4 anos), incorporando um progrma mais exigente de formação geral; a frequência de um ano suplementar de formação geral numa escola a tempo inteiro ( ou 3 semestres a tempo parcial), após a obtenção do Certificado Federal de Capacidade, no fim da formação de base em regime de aprendizagem; a obtenção de um certificado de maturidade liceal, seguida de um ano de formação profissional em empresa. Criaram-se vários tipos de maturidade profissional: técnica, comercial, artística, artesanal, técnico-agrícola. A “maturidade profissional” dá acesso às escolas Especializadas superiores profissionais, (Fachhochschulen), que as novas são escolas superiores não- universitárias, objecto de uma reforma também em curso. Altas Escolas 469 O ensino superior não universitário tem uma importante expressão na Suiça. Por exemplo, em 1992/1993, 28.000 alunos iniciaram uma formação superior deste tipo. O elemento político mais relevante desta reforma, para além do reordenamento das escolas superiores profissionais, é o facto de se colocar pela primeira vez “em pé” de igualdade a formação profissional e o curso liceal-universitário, duas fileiras de formação doravante consideradas como equivalentes, ainda que diferentes (OFES, 1995). As reformas da integração e da desespecialização A estes casos, que correspondem a reformas gerais empreendidas no nível do ensino secundário, podemos ainda adicionar outras situações nacionais igualmente significativas, começando por uma situação fora do campo de análise restrito escolhido. Na Alemanha, mesmo no seio do “sistema dual”, procedeu-se, desde os anos oitenta, a uma significativa redução do número de especialidades. Wolf (1995) assinala que o número de jovens que obtêm o "Abitur" tem aumentado constantemente e Leclerq (1992:56) refere que a percentagem dos efectivos em formação no sistema alemão de aprendizagem desceu, entre 1960 e 1985 de 79 para 61%, fazendo notar que esta oscilação relativa se ficou a dever sobretudo ao aumento da procura de outras fileiras de ensino a tempo completo, normalmente "destinadas a públicos em dificuldade". Adler, Dybowski e Schmidt (1993) sublinham o facto, sem precedentes próximos e emblemático, de que, em 1990, o número de estudantes ultrapassou o número de aprendizes. Em cinco anos, o número de estudantes a tempo inteiro aumentou perto de 20%, enquanto que o de aprendizes continuou a diminuir. Estes autores recordam também que, em 1985, no quadro de uma resolução do Instituto Federal da 470 Formação Profissional (BIBB), os representantes dos empregadores, dos sindicatos e do governo federal se tinham pronunciado a favor da equivalência entre a formação profissional e a formação geral, condição prévia ao alargamento das possibilidades de acesso aos estudos superiores. Jonen (1995) conclui, para o caso alemão, que se está perante uma mudança de atitudes face à educação. Para tal refere que a proporção de jovens titulares de um diploma de acesso ao ensino superior não parou de crescer ao longo da década de oitenta e que as escolas onde mais aumenta a frequência escolar são as escolas de ensino geral a tempo inteiro, o Gymnasium e a Gesamtschule, havendo uma enorme descida na procura das Hauptschule (Jonen,1995:75). Adler, Dybowski e Schmidt caracterizam este mesmo movimento e sustentam a evidência da elevação do número de jovens diplomados pelas formações gerais com alguns dados oficiais relativos à ex-RFA e ao período entre 1960 e 1990, do modo que se segue: Quadro 5.13 Elevação do nível de formação geral, entre 1960 e 1990, dos que saem do sistema de ensino secundário Fim da "Hauptschul e" (com ou sem certificado) 1960 73,0 1990 31.2 Exame do fim "Arbitue" ou "Fachhhochschurei da "Realschule" fe" (acesso ao ensino (fim do 1º ciclo superior) secundário) 18.2 8.8 35.0 33.8 Total 100 100 Fonte: Bundesminister (RFA). Citado em Adler et ali (1993) Note-se ainda, como oportunamente assinala Wolf (1995:145), que esta redução do número de jovens que acedem a um diploma de nível secundário 471 através do sistema de aprendizagem é concomitante com uma diversificação e maior procura de diplomas de ensino superior de tipo técnico-profissional, o que pode ser lido como um suave deslizamento do nível a que se obtêm as qualificações profissionais iniciais. Mike Hickox também faz notar que o novo nível 3-GNVQ do sistema britânico de produção de qualificações (General National Vocational Qualification), introduzido em Setembro de 1992 e estipulado como sendo o equivalente profissional do "Level A", ao enfatizar as competências nucleares da literacia e da "numeracy", revela "algum sinal deste processo que ocorre, actualmente, de aproximação com o ensino académico existente" (1995:160). Refira-se ainda que, em Portugal, se promoveu também a uma reforma educativa que procedeu a uma alteração do ensino secundário superior em todos as suas modalidades, cujos contornos foram definidos em 1989 e aplicados generalizadamente em 1993. O Ministério da Educação afirma ter empreendido o "reordenamento do ensino pós-obrigatório" e atribui aos diferentes percursos uma equivalência global, facultando aos diferentes tipos de ensino e diplomas - ensino geral, ensino tecnológico e ensino profissional- o acesso ao ensino superior. Todos os tipos de cursos passaram a conter três componentes de formação-sociocultural ou geral, científica e técnica-, tendo em vista facultar a todos os cidadãos "sólidas bases científicas e técnicas para sobre elas construirem, ao longo da sua vida profissional novas e contínuas aprendizagens" e assegurar a permeabilidade entre as modalidades (Ministério da Educação/GETAP, 1993:27 e 29). O Quadro 5.14 dá conta da nova matriz comum aos vários percursos e cursos do ensino e da formação pós-obrigatórios (Azevedo, 1994:81). A componente de formação geral dos cursos tecnológicos das escolas 472 secundárias, entre a reforma de 1983 e a reforma de 1989, passou a ter o dobro do peso (de 16% passou para 34%) e as especializações técnicas reduziram-se, neste mesmo intervalo de anos, de trinta e três para onze. 473 Quadro 5.14. Matriz comum aos percursos de formação sistemática pós-obrigatória em Portugal (1992) COMPONENTES DA FORMAÇÃO (% da carga horária total) Características Percursos ENSINO SECUNDÁRIO A. Cursos Gerais (4) B. Cursos Tecnológicos (11) Escolarida Duração de/ Anos/Hora Acesso s 9º ano 9º ano Geral ou sóciocultural 3 anos (3.270hora s) 3 anos (3.270hora s) 34 Específic a ou científica 45 Técnica ou Tecnl. (teórica e prática) 21 34 30 36 ESCOLAS PROFISSIONAIS 9º ano 3 anos (3.600hora s 25 25 50 APRENDIZAGEM (Nível 3 - CE) 9º ano 3 a 4 anos (4.800 Horas em média) 19 19 62 (com prática no posto de trabalho) Notas: 1 - O nível de que se fala é um nível de qualificação profissional, definido no âmbito da C.E. (decisão 85/386/EEC) e que corresponde aos técnicos intermédios. 2 - No regime de Aprendizagem, o peso da componente técnica inclui a “prática simulada no posto de trabalho” pois este constitui um elementos característico intrínseco deste modelo de formação. Ainda em Itália, em 1992, a Comissão Brocca propunha o desaparecimento da distinção entre Liceus e Institutos Técnicos e o consequente desenho de um biénio de base comum, seguido de um triénio mais diferenciado, mas onde deveria ocorrer uma fusão das especialidades em cerca de dezassete áreas de formação, de modo a superar a ruptura entre disciplinas humanísticas e científicas (Rico, 1995). Além de se aconselhar o adiamento 474 das especializações para os 18 anos, recomenda-se que qualquer destas formações profissionais iniciais sejam polivalentes e favoreçam a aquisição de uma sólida base formativa científico-tecnica. Finalmente, refiram-se também os casos do Japão e dos EUA, países com uma incontestada centralidade na economia mundial, com taxas de escolarização dos jovens de 16-19 anos muito elevadas, 92% e 95%, respectivamente. Nestes países, a grande maioria destes jovens estão inscritos no ensino secundário de tipo geral, uma vez que o ensino técnico e a formação profissional têm sido sucessivamente remetidos para o ensino pós-secundário e para as empresas. Uma acentuada desespecialização nos anos 90 Uma primeira tendência que inequivocamente atravessa estas medidas de política e marca uma nova fase na história do ensino e da formação de nível secundário é a da integração entre cursos e entre percursos escolares, até então diferenciados, a construção de novos troncos comuns de formação, predominantemente situados nos primeiros anos dos cursos e a sua desespecialização, ou seja, a redução do número de especializações profissionais a que conduziam os cursos de teor tecnológico e profissional. O quadro 5.15. dá conta, de forma sintética e clara, do fenómeno de desespecialização que ocorre no ensino secundário, mormente nas suas modalidades escolares de ensino técnico e de formação profissional. Neste quadro não se dá conta, porém, de situações em que se tem vindo a reforçar o leque de especializações em certas modalidades de formação técnica e profissional inicial de nível secundário, especializações estas inscritas por 475 vezes em novas matrizes curriculares, oriundas igualmente de reformas recentes, como no caso da Espanha e de Portugal37. Importa sinalizar que, em alguns países, mesmo quando se verifica uma desespecialização acentuada nos percursos situados no âmbito escolar tradicional, ocorre por vezes uma especialização, situada, agora, fora deste âmbito específico, seja em outras modalidades de ensino e formação profissional seja nas iniciativas de formação-emprego. 37 No caso português, as escolas profissionais vieram aumentar o leque de especializações, ao mesmo tempo que elas se reduziam no ensino secundário regular. No entanto, quer o currículo do ensino secundário quer o currículo das escolas profissionais se inscrevem numa nova matriz comum de objectivos de formação, de componentes de formação e até de disciplinas, no caso da formação “geral”, conforme se explicitou no Quadro 5.14. 476 QUADRO 5.15. Desespecialização no Ensino Técnico e Profissional na Europa (1) País (ano nuclear da reforma) Nº de especializações antes das reformas mais recentes Nº de novas áreas de formação e de especializações Dinamarca, 1990 300 (~) 85 (cursos de base. Há uma especialização progressiva) Finlândia, 1991-1999 600 (~) (no início dos anos 80) 26 (cursos de base. Há uma espe-cialização progressiva que pode chegar a 157 domínios específicos) França, 1992 7 (ensino geral) 16 (ensino tecnológico) 3 (ensino geral) 4 (ensino tecnológico) (2) 150 Itália, 1992 18 cursos 109 Noruega, 1994 Suécia, 1991 13 cursos (comporta um sistema de progressiva especialização) 500 (~) 16 cursos de base (1) Nos casos da Espanha, Holanda e Suíça a integração processa-se por outras vias. Em Espanha o número de especializações da nova formação profissional aumenta. (2)Foi entretanto criado o Bac Profissional (1985) que em 1993 se organiza em 32 especializações. A principal dinâmica que acompanha este processo mais ou menos acelerado e aprofundado de redução das especializações, neste nível de ensino e de formação e nestes países, é a da integração curricular. Esta percorre diversos caminhos e gradações conforme os contextos sociais nacionais e as suas próprias histórias educacionais. Se em alguns casos a 477 integração se pretende levar até à criação de um só tipo de escola secundária, como aconteceu na Suécia, as mais das vezes ela traduz-se por um certo modelo de "convergência subestrutural" (Kämäräinen,1995), em que permanecem lado-a-lado os vários percursos e vários tipos de instituições de ensino e de formação e se integram apenas componentes dos currículos. Este processo estende-se por um vasto campo de possibilidades, desde a duração dos cursos, à organização dos currículos em componentes idênticas para todos os percursos, até à eventualidade da frequência de mais do que um tipo de escola para realizar um só curso do ensino secundário. Mas um dos campos onde a integração é mais evidente e recente é na aproximação entre os vários modelos de ensino e de formação, escolar, dual e não-formal, que se interpenetram por força do recurso que a eles se vêem forçados a fazer, com carácter de permanência, a generalidade dos governos europeus. A diversidade de vias que o movimento desespecializador e integrador percorre requer um esforço de sistematização, tendo em vista proceder ao seu questionamento mais rigoroso e profundo. Consideramos que estamos diante de dois tipos principais de estratégias de integração, retomando a tipologia enunciada no capítulo 1 e as contribuições de Kämäräinen (1995 e 1996). Uma primeira visa a integração estrutural entre as modalidades e as instituições de ensino geral e de formação técnica e profissional, tendo em vista vir a oferecer aos jovens do grupo etário 16-18/19 anos um currículo o mais possível unificado, combinando formação teórica e prática, formação académica e formação profissional. Esta estratégia também se insere no esforço político de estabelecer a paridade entre percursos formativos de cariz mais acentuadamente profissionais e mais acentuadamente gerais e académicos. 478 Refira-se que a unificação que se estabalece neste tipo de políticas de educação está longe de se traduzir na proposição da frequência de um currículo único, um currículo geral e comum para o ensino secundário. Sendo verdade que se coloca cada vez mais ênfase na oferta de um "core curriculum" geral e comum, deixa-se, por outro lado, à livre escolha de cada jovem a construção de percursos formativos individuais com base nas restantes componentes curriculares, de base mais opcional. Se a integração é evidente e inequivocamente aumenta, a livre escolha individual e a flexibilidade curricular também. Como vimos, a integração estrutural tem sido ténue, no palco europeu, apesar das tentativas já realizadas no norte da Europa. Uma segunda estratégia, de que falamos no primeiro capítulo, reúne um conjunto vasto de medidas que consideramos de integração subestrutural, uma vez que se deixa de lado, pelo menos por agora, a integração entre instituições de ensino e de formação, habitualmente com histórias bem diversas. O núcleo desta estratégia é a quebra de barreiras e a aproximação entre vias até agora diferenciadas e estanques, e os seus objectivos são, regra geral, a procura de maior polivalência dos cursos, a criação de sistemas de permeabilidade entre os diferentes percursos e a determinação da paridade legal entre estes percursos. Entre o vasto leque de medidas deste tipo destacamos cinco mais importantes, três das quais com incidência curricular e as restantes de carácter mais geral. Com maior incidência curricular: a) estabelecimento de perfis de formação com uma estrutura comum de componentes (formação geral, formação científica, formação prática, área opcional e formação em atelier, etc.) para os vários percursos existentes nos 479 vários tipos de escolas e centros de formação, que todavia permanecem institucionalmente separados; b) uma integração curricular mais limitada do que a anterior, mas igualmente muito significativa, seja devido à adopção de uma estrutura modular para todas as disciplinas de todos os percursos ou de uma parte deles seja pela criação de uma panóplia de opções nos diferentes cursos e percursos, tendo em vista nomeadamente facilitar as pontes entre eles; c) inclusão de novos conteúdos disciplinares e revisão do número de anos de duração nos cursos de formação técnica e profissional, de modo a alargar os seus objectivos e a aproximar estes cursos dos das tradicionais vias de formação geral académica. A nível mais geral: d) estabelecimento de novas regras tanto de equivalência legal entre diplomas obtidos por diferentes vias de ensino e de formação, como de acesso a cursos de ensino pós-secundário e superior, abrindo o leque de oportunidades aos diplomados pelo ensino técnico e pela formação profissional; e) desenvolvimento (geralmente ainda experimental) de mecanismos de cooperação inter-institucional entre diferentes instituições de ensino e de formação, flexibilizando os percursos individuais e aumentando as possibilidades de escolha dos jovens, que chegam a poder frequentar mais do que um estabelecimento de ensino e de formação para realizar apenas um curso do ensino secundário. A tendência desespecializadora e “generalizadora” tem sido também constatada por vários autores, que a configuram como um importante e comum movimento das políticas educativas na Europa. Assim, se Williams 480 (1994) assinala uma aproximação cada vez maior entre formação geral e formação profissional, Keeves (1986), no seu trabalho para o Bureau International de l´Éducation sobre os modelos de escolaridade pósobrigatória, regista a tendência para uma "maior flexibilidade" e para a "aquisição de um maior número de competências, mais do que para uma orientação escolar ou profissional específica". Boaventura Sousa Santos (1989) sublinha que, num quadro de novo questionamento da dicotomia educação-trabalho, a mutação constante de perfis profissionais tem vindo a viabilizar a recuperação do valor da educação geral e da formação cultural de tipo humanista. Assiste-se, assim, segundo este autor, a "um certo regresso ao generalismo", concebido como uma "formação não-profissional para um desempenho pluriprofissionalizado" (1989:23). Outros autores, como Levin (1978) e Jallade (1988), constataram a existência de um movimento de "generalização" do ensino secundário superior e associaram-no a um processo de transferência gradual da especialização profissional para o ensino pós-secundário e para o ensino superior. Os EUA e o Japão são apontados como os modelos mais coerentes de desenvolvimento desta tendência, assinalando-se o seu papel de percursores nesta matéria, nomeadamente para os países europeus, mormente os de base escolar. Leclercq e Rault (1992), num estudo sobre as formações pós-obrigatórias em vários países assinalam o "generalismo crescente das formações profissionais", ou seja, "a tendência cada vez mais forte para inscrever as transformações necessárias dos cursos na perspectiva do seu alargamento em direcção a uma maior generalidade" e "simultaneamente a tendência para dar mais importância aos conhecimentos gerais"(1992:74). No primeiro caso, estão processos recentes de redução do número de especializações 481 profissionais inscritas nas formações iniciais e, no que se refere à segunda tendência para o reforço dos conhecimentos gerais, os autores apontam quer casos em que se introduzem anos iniciais comuns a vários cursos e tipos de cursos, como na Suécia, e casos em que apenas cresce o peso relativo das disciplinas ditas de ensino geral, tais como Ciências Sociais, Matemática, Língua Materna ou Línguas Estrangeiras. Francesc Pedró (1992), após uma análise acerca da evolução dos sistemas de formação técnica e profissional na Europa, conclui que, se houvesse que destacar uma tendência comum nos currículos de formação profissional apesar da diversidade de especialidades, áreas e ocupações - essa seria "a tendência para fomentar os conteúdos de educação geral naqueles níveis ou ciclos da formação profissional que se articulam de algum modo com o ensino obrigatório" (1992:111). Outra tendência é a que passa por agrupar as inumeráveis especialidades com que conta o sistema de formação profissional de cada país, em torno de alguns campos profissionais, eixos comuns ou famílias de profissões. Este e outros autores espanhóis ( Garrido, Pedró e Velloso, 1992) consideram que esta evolução deriva da pressão social a favor de mais educação e durante mais tempo. A formação técnica e profissional seria, assim, cada vez mais, um continuum, que partiria de uma ampla base geral e comportaria especializações sucessivas e combinações diversas com a formação geral. Francesc Pedró (1995) assinala ainda, para o caso da Alemanha, o aumento da procura dos cursos de formação profissional escolar a tempo completo e a tendência crescente para a formalização ou escolarização dos sistemas de formação profissional dual, o que relaciona, entre outros factores, sobretudo com a necessidade de dar uma base tecnológica e científica mais sólida e cada vez maior à formação profissional inicial, mesmo que a sua oferta se centre nas empresas. 482 Também Papadopoulos (1994), no seu estudo da evolução da reflexão sobre as políticas de educação no seio da OCDE, conclui que a tendência mais recente, no início dos anos 90, vai no sentido de os países construirem sistemas de ensino que privilegiam uma "formação geral inicial sólida e completa" e uma "larga base de competências". O autor assinala também que uma das linhas de força dos debates da Conferência Intergovernamental de 1989 consistiu na constatação da necessidade de se examinar o conteúdo e a estrutura dos estudos do segundo ciclo do ensino secundário, a fim de melhor equilibrar a fileira geral e as fileiras profissionais e técnicas e transferir progressivamente para o posto de trabalho as formações que visem o desenvolvimento de competências específicas ligadas às profissões(1994:199). Aliás, a OCDE vinha, desde há muito, propondo o investimento preferencial das formações técnicas e profissionais iniciais no fomento de "competências gerais e transferíveis", face a um contexto económico marcado por mudanças "sem precedentes e imprevisíveis". Buechtemann e Solof (1995), depois de salientarem o facto de alguns países, como a França dos anos oitenta, terem desenvolvido políticas estatais de reforço da profissionalização dos estudos secundários e póssecundários, como resposta à penúria de competências profissionais nos níveis intermédios da mão-de-obra, constatam a manutenção de estratégias de recrutamento que continuam a valorizar os diplomas tradicionais, o que tem constituído um sinal suficientemente claro para que os jovens, mesmo os que optaram pelas vias profissionalizantes, prefiram prosseguir estudos em direcção às licenciaturas tradicionais e às mais altas credenciais. Estes comportamentos, sublinham, relacionam-se bem com a forte estima social dada ao ensino geral e tornam visíveis os limites das reformas do ensino para transformar as estruturas do mercado de emprego e os sistemas de valores sociais (1995:14). Finalmente, J.L.Garcia Garrido além de constatar que "independentemente 483 das fórmulas institucionais particulares, a tendência geral é a de uma cada vez maior compenetração entre a formação profissional e a educação considerada no seu conjunto" (1992:220), conclui que os países industrializados tardaram muito e gastaram enormes recursos até chegarem à simples constatação de que uma boa formação profissional para amanhã não será, seguramente, uma formação excessivamente especializada. Além destes autores e segundo estimativas realizadas em 1995, com base nos dados do EUROSTAT e da OCDE, na segunda metade dos anos oitenta e no início dos anos noventa, acentuou-se a tendência para o aumento da participação dos jovens nos programas de ensino e de formação pósobrigatória nos segmentos de ensino “geral” (Quadro 5.16.). No âmbito do programa europeu Youthstart, ao analisar-se o período entre 1986 e 1990, além de se constatar um crescimento generalizado da procura do ensino secundário em quase todos os Estados-membros, sublinha-se que o aumento da frequência do ensino técnico e profissional e da formação profissional inicial é significativamente inferior ao que ocorre no ensino “geral”. Esta preferência é aí explicada quer como uma consequência da ruptura entre formação e trabalho, que nos últimos vinte anos se vem acentuando, quer como um resultado da crescente tendência para a progressiva retirada das empresas de toda a responsabilidade directa pela formação profissional inicial dos jovens, devido aos processos contínuos de reestruturação e como medida de reforço da sua competitividade. Quadro 5.16. Evolução da participação dos jovens de 16 e 17 anos no ensino e na formação (% do grupo etário) Anos Alemanha Bélgica Dinamarca Grécia Espanha França Ensino e comparados Ensino geral formação Aumento total 1986/90 1986/91 1986/90 1988/90 1986/90 1986/91 + 4.5 --- 1.5 + 5.0 + 3.5 --- - 4.5 --+ 2.5 + 2.0 - 5.0 --- + 0.0 + 4.5 + 1.0 + 7.0 + 3.0 + 5.0 484 Holanda Irlanda Itália Luxemburgo Portugal Reino Unido 1986/89 1986/90 1988/91 --1988/90 1987/90 + 1.0 + 9.5 + 1.0 --+ 6.5 + 4.0 + 0.0 - 1.5 + 5.0 --+ 2.0 + 5.0 + 1.0 + 8.0 + 6.0 --+ 8.5 + 9.0 Fonte: Estimativas da Comissão Europeia, baseadas em dados do EUROSTAT e da OCDE. 485 Os dados mais recentes da OCDE e da Eurydice não são iguais, mas conduzem-nos para uma tendência geral idêntica. Comparando os dados dos anos noventa, verifica-se que permanece uma grande diversidade de situações entre os vários países europeus, mas que a maioria se encaminha para um reforço da frequência do ensino geral académico. O quadro 5.17, o gráfico 5.15 e o quadro resumo 5.18 ilustram a evolução das frequências, entre 1970 e 1994, e assinalam de modo inequívoco esta mais recente tendência: a procura deste tipo de ensino cresce em nove países, estabiliza no Reino Unido, na Áustria e na Holanda e diminui em quatro países, sendo certo que em dois destes, Grécia e Portugal, a procura se situava e continua a situar maioritariamente no ensino geral académico (68% e 76%, respectivamente).38 38 Os dados inscritos no volume de 1997 do “Regards sur l’ éducation”, da OCDE revelam que, em 1995, os valores de frequência do ensino “geral” aumentam, em relação a 1994, na Espanha, Finlândia,Grécia, Irlanda, Itália, Noruega, Suécia e Suiça. 486 Quadro 5.17. Evolução da distribuição das frequências segundo o tipo de ensino secundário (Tempo Inteiro + Tempo Parcial) Países Alemanha Aústria Bélgica Dinarmarc Espanha Finlândia França Grécia Holanda Irlanda Itália Noruega Portugal Reino Suécia Suiça Turquia 1982 Técnico e Geral 79.5 20.5 82.6 17.4 55.5 44.5 62.5 37.5 45.8 54.2 49.5 50.5 60.2 39.8 18.5 81.5 59.3 40.7 32.7 67.3 66.1 33.9 56.4 43.6 2.0 98.0 43.3 56.7 70.0 30.0 75.1 24.9 28.8 72.2 1992 Técnico e Geral 79.6 20.4 76.0 24.0 59.0 40.8 56.2 43.8 41.4 58.6 54.4 45.6 54.1 45.9 ----70.1 29.9 ----67.4 32.6 59.8 40.2 18.0 82.0 57.6 42.4 ----73.2 26.8 43.5 56.5 Fonte: OCDE e Ministério de Educação, para o caso de Portugal. 1994(7) Técnico e Profission Geral 77.5 22.5 77.8 22.2 67.7 32.3 54.1 45.9 40.9 59.1 53.6 46.4 52.5 47.5 33.4 66.6 70.2 29.8 23.1 76.9 73.1 26.9 58.4 41.6 21.5 78.5 57.7 42.3 63.4 36.6 70.2 29.8 41.4 58.6 487 Gráficos 488 gráficos 489 gráficos 490 Quadro 5.18. Tendências da evolução do ensino secundário “geral, na Europa (anos 90). Países Estável Descida Alemanha Aústria Subida X X Bélgica X Dinamarca X Espanha X Finlândia X França X Grécia Holanda X X Irlanda X Itália X Noruega X Portugal Reino Unido X X Suécia X Suíça X 491 Além desta primeira tendência geral e bastante comum na recente evolução do ensino secundário, é mister assinalar outras que são concomitantes e que são igualmente comuns a vários países europeus: (i) a persistência da tendência de longa duração para o aumento da duração dos ciclos unificados de estudos e para o intrínseco prolongamento do ciclo básico, comum e obrigatório, como aqui é destacado nos casos da Itália, Espanha e Holanda, e ainda para o adiamento da idade em que o aluno tem de proceder à realização de escolhas entre percursos alternativos de formação; (ii) a criação de novos sistemas de permeabilidade entre os diferentes percursos de ensino e de formação, geral e profissional, através da instalação de passadeiras de passagem entre cursos, embora com diferentes graus de dificuldade no processo de transição. Entre os países que criaram este sistema contam-se a Espanha e a França, embora com um elevado grau de rigidez, a Dinamarca, a Suécia, a Holanda e a Finlândia, sendo este último o que apresenta o maior grau de flexibilidade; (iii) a criação de novos troncos comuns de formação, similares para todos os percursos deste nível de ensino e de formação, geralmente com um ou dois anos de duração, findos os quais se admite de novo uma especialização de percursos, mais ou menos acentuada, conforme os países. Esta via reformista ficou patente sobretudo nos casos da Holanda, Suiça, Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia; (iv) a reestruturação dos planos de estudos deste nível de ensino e de formação num modelo de várias componentes, a primeira das quais é o conjunto das disciplinas gerais e comuns, seguida de uma componente específica adstrita ao curso que se elege, uma componente opcional individual e em, alguns casos, ainda uma componente de formação prática 492 em empresa, a ser composta por cada escola. No caso da Suécia e da Suiça existe ainda uma componente de projecto individual ou de atelier, a ser desenvolvida por cada aluno. A esta nova estrutura curricular, nas suas componentes opcionais, e ainda à introdução de uma organização curricular modular, é normalmente atribuído oficialmente o papel de reforço da opcionalidade e da individualidade dos percursos escolares que os jovens podem seguir. Além dos países já referidos, este propósito é acentuado também nos casos da Finlândia, da Noruega, da França e da Itália; (v) verifica-se que os parceiros sociais, com destaque para os empregadores, passam a ter em vários países uma intervenção directa mais reforçada, seja no plano nacional seja no plano regional e local, na construção dos planos de estudo deste nível de ensino e de formação. Esta acção ora incide sobre todos os percursos de formação pós-obrigatória nos casos em que os países optam por integrar os vários percursos, quebrando as barreiras tradicionais entre o ensino geral e o ensino profissional e as respectivas instituições de formação, ora se mantém ligada aos percursos estritamente técnicos e profissionais. A presença dos parceiros sociais é reforçada nos casos da França, Holanda, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Espanha e Itália. Esta tendência surge frequentemente associada a uma descentralização da administração destes segmentos de ensino e de formação e a uma maior autonomia dos estabelecimentos de ensino e de formação, circunstância que, em maior ou menor grau, ocorre em todos os casos em estudo; (vi) a generalidade dos países, ao alargar a oferta de formação pósobrigatória, estabelecendo uma vasta palete de cursos e programas de formação, adoptando e estabelecendo articulações entre os modelos escolar, dual e não-formal, com o fim de acolher o maior número possível de jovens do respectivo grupo etário, combina a integração entre modalidades de ensino e formação com um reforço da diversificação interna ao nível das 493 opções e dos cursos; (vii) em algumas das reformas em análise introduzem-se, nos planos de estudo, períodos obrigatórios e mais ou menos longos destinados à realização de experiências de trabalho. Estas destinam-se aos alunos que pretendem obter um diploma técnico e profissional, e são reforçadas nos casos da Itália, Espanha, Finlândia, Dinamarca, Suécia e França; (viii) finalmente, vários são os países que acentuam no seu discurso reformador o objectivo de imprimir maior flexibilidade ao ensino e à formação a este nível. A flexibilidade é referida sob várias facetas: a possibilidade de combinar disciplinas de diferentes tipos de cursos e até de escolas, como é o caso mais extremo da Finlândia; a já referida permeabilidade entre os percursos e os cursos; a necessidade de responder à diversidade dos interesses e aptidões dos jovens, bem como às suas necessidades de orientação, como se denota nos casos da Noruega, da Suécia e da França; a necessidade de aproximar mais certas componentes terminais e opcionais dos cursos das necessidades locais do sector produtivo, como se refere no caso da Noruega; a possibilidade das escolas organizarem os seus cursos de modo diferenciado, em função de um conjunto estabelecido de critérios, como se salienta no caso da França. Concluindo Assim, retomando a leitura histórica do capítulo anterior e a investigação deste capítulo, pode dizer-se que a evolução do ensino secundário na Europa, na segunda metade do séc. XX, foi profundamente marcada por um lastro ideológico, omnipresente e comum, que se traduziu sobretudo na crença acerca das enormes virtualidades da educação e da formação para o 494 desenvolvimento da economia, qualificando os recursos humanos necessários e reforçando a competitividade das empresas nacionais. O técnico-funcionalismo e diversas variantes da teoria do capital humano orientaram, como uma ideologia global, um espantoso crescimento da oferta e da procura, nos últimos cinquenta anos. Nos primeiros trinta, os chamados “trinta gloriosos”, a Europa ocidental viveu um clima de optimismo, de expansão económica e de confiança social num eficiente Estado de bem-estar, um ambiente de promessa e de esperança, em que seria possível fazer chegar a todos os cidadãos benefícios sociais fundamentais, entre os quais o da educação e da formação. Estas expandiram-se continuamente e, de certo modo, irracionalmente, segundo o entendimento de Grégoire (1967) e de Coombs (1985), acima expostos. As políticas educativas tornaram-se preciosos instrumentos de promoção da mobilidade social e da igualdade de oportunidades e os vários grupos sociais tomaram a educação e a formação como meios fundamentais de acesso a um estatuto e a um reconhecimento social. A procura escolar cresceu, a duração da escolaridade obrigatório foi-se ampliando e parecia evidente a capacidade dos sistemas educativos em preparar adequadamente os recursos humanos necessários ao crescimento económico. A crise económica dos anos setenta, com todo o cortejo de mutações sociais que lhe estão associadas, viria a mudar substancialmente este clima cultural dominante na Europa ocidental. Numa primeira fase, dominada ainda por algum cepticismo e pela expectativa de uma retoma iminente, opta-se, em geral, por manter e adaptar as políticas passadas. O desemprego cresce e afecta particularmente os jovens, começam a ser mais notórios os desajustamentos entre a educação/formação e a economia/emprego e tem início um lento processo de crescimento da desconfiança social face às tão apregoadas virtualidades da educação e da formação na mobilidade e na democratização sociais. Nesta fase, desdobram-se as medidas de política 495 educativa, as reformas educativas, como suporte de políticas sociais mais vastas, entre as quais avulta a necessidade de conter o desemprego juvenil e de manter o clima social de optimismo associado ao desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais. Estes continuaram a acolher uma procura que não parava de aumentar e diversificaram a sua oferta ao nível pósobrigatório, criando novas modalidades e novos percursos de ensino e de formação, nomeadamente em áreas técnico-profissionais. Assim se desenvolveram, na generalidade dos países, medidas de política educativa de nível secundário que se apresentavam como capazes de servir uma procura cada vez mais diversificada, medidas estas que funcionavam também como instrumentos de substituição do não-funcionamento do mercado do primeiro emprego. À míngua do funcionamento deste mercado ampliou-se o espaço social do “mercado” do ensino e da formação. Esta tendência manteve-se e até se ampliou na segunda fase, o período dos vinte anos de reestruturação económica contínua. Como deixámos amplamente referido e documentado, na segunda metade dos anos oitenta e sobretudo nos anos noventa, foi-se instalando um clima social muito diverso do que dominou o Ocidente no pós-guerra. A procura social de educação e de formação não parou de crescer, tanto a nível secundário, onde já a taxa de frequência ultrapassa os 90% em vários países, como a nível superior. No entanto, trata-se de uma procura mais desencantada, trespassada pela desconfiança crescente em relação ao valor dos diplomas escolares e em relação ao ajustamento entre educação/formação e economia/emprego, além de ser claramente mais competitiva e dirigida à obtenção dos mais altos títulos escolares por parte de um maior número. O desemprego estrutural persistente, a turbulência que se expande nos perfis profissionais e nas profissões, a flexibilização das relações de trabalho e a imprevisibilidade acerca da evolução de uma economia dominada pelo liberalismo à escala mundial, são alguns dos 496 elementos que coligimos, em devido momento, para fundamentar a drástica mudança de clima social entretanto operada. É neste contexto, em que os Estados-nação atravessam crises profundas de poder e de legitimidade, que surge a formulação de um novo mandato social para a educação e a formação. Este mandato tem cariz mundial, apresentase sobretudo na sua faceta técnico-económica e é subsidiário de uma retórica igualmente optimista acerca das virtualidades das mutações técnicoeconómicas em curso. Aos sistemas educativos será requerida, diante das mutações técnicas constantes, mormente face à revolução das tecnologias da informação e da comunicação, diante um novo modo de produção póstaylorista emergente e fortemente incorporador de recursos humanos altamente qualificados, será requerida, dizíamos, a formação em torno de um novo núcleo de competências, entre as quais pontuam uma sólida e polivalente qualificação geral e de base e uma capacidade de adaptação permanente a novas actividades e profissões. Esta retórica política, liofolizada em torno do discurso técnico-económico, a sua verdadeira pedra angular, é fortemente valorizadora da formação “geral”, entendida como aquela que melhor promove em todos os cidadãos o desenvolvimento de competências gerais e transferíveis. Sucedem-se, um pouco por toda a Europa ocidental, reformas educativas que têm por finalidade essencial responder a este novo mandato e que se traduzem nomeadamente por uma série de medidas de desespecialização e de integração curricular. Quando a aquisição de certas qualificações não se mantém ligada à obtenção de um certo tipo de empregos, o "rationale" histórico do ensino técnico e da formação profissional inicial sai enfraquecido, como salienta Chisholm (1995), e quando os jovens alcançam que as suas qualificações não ligam aos empregos esperados, frequentemente optam por frequentar mais cursos, mais ligados às modalidades conducentes à obtenção de altas credenciais, de modo 497 simultaneamente mais desencantado. Por outro lado, este movimento em direcção ao ensino “geral” tem um lastro histórico, que ficou patenteado ao longo deste capítulo e que está relacionado quer com a evolução recente da economia quer com tendências de longa duração para o prolongamento do ensino de massas e, concomitantemente, para a extensão das políticas de unificação escolar que lhe estão habitualmente adstritas. Continua a ser quase ilimitada a capacidade das referidas organizações internacionais e dos governantes europeus em transfigurar os problemas sociais, tanto os que enfrentam os jovens, como as empresas ou as profissões, em problemas eminentemente educacionais. Estes fenómenos sociais, entre os quais avulta um desemprego, persistente e imprevisto na sua extensão e duração (ver Figura 5.1639) e a turbulência profissional, são politicamente considerados como os grandes problemas educacionais, e as políticas educativas tomam-nos como os principais critérios de renovação curricular que norteam as reformas educativas, que se sucedem na generalidade dos países, algumas delas ainda em curso na segunda metade dos anos noventa. 39 Este gráfico está aqui incluído, no final do capítulo, porque contém a virtualidade de demonstrar os dois tempos em que dividimos o meio século do pós-Guerra. Até meados dos anos setenta a curva tem um comportamento e após essa data tem outro bem diferente. Quando as políticas educativas tomam como referente principal a evolução técnicoeconómica, amplia-se a força deste gráfico. 498 499 Esta leitura diacrónica permite-nos concluir também que a economia e as suas sucessivas reestruturações tendem a ser sempre tomadas como o principal referente para sustentar a evolução global das políticas de educação e, particularmente, ao nível do ensino secundário. Estas variaram necessariamente de país para país, em conformidade com contextos sociais e históricos diversos. Mas, globalmente, retomando os conceitos de Martin Trow (1978), o ensino secundário que, no pós-Guerra, era um ensino propedêutico de elite, no fim do século passou a ser, pelo menos em todos os países da União, um ensino predominantemente propedêutico de massas. As mutações técnicas e económicas verificadas na segunda metade do século XX, sobretudo após a década de setenta, e as suas enormes repercussões sociais interferiram profundamente na descrição deste arco evolutivo. Finalmente, os vários modelos de organização do ensino secundário na Europa, o escolar, o dual e o não-formal, tendem, no final deste século, a constituir-se não já como soluções típicas e isoladas de um ou de um conjunto de países, mas como uma panóplia de recursos de que cada governo pode dispor para alargar a sua oferta nacional de educação e de formação, tendo em vista reter o maior número possível de jovens fora do acesso imediato ao mercado do primeiro emprego. Embora continue a haver uma localização histórica dos modelos e cada um deles tenha, em geral, predominância em cada um dos países, assiste-se igualmente a uma contínua deslocalização daqueles modelos de ensino e de formação, como tecnologias sociais úteis, produtos políticos disponíveis no mercado e bolsa de recursos para a construção de novas soluções políticas. As relações entre a educação e a economia, marcadas agora por um contexto de incerteza e de imprevisibilidade, talvez estejam a um passo de (finalmente) se processarem um quadro de correspondência nunca antes alcançado, apesar de muito propagado, ao longo do Séc. XX. Estas e outras questões do mesmo tipo é 500 o que pretendemos discutir de seguida, num capítulo breve de problematização e de releitura do problema de partida, empreendida que foi esta primeira incursão teórica e de análise documental. 501 Capítulo 6 O neoprofissionalismo em questão Realizada uma organização e uma identificação do campo de problemas que volteia sobre o objecto da nossa investigação, percurso talvez longo e integrador de ângulos de visão muito diversos, que passou pela definição de uma base conceptual relativamente estável, por uma ancoragem no património teórico disponível e aplicável e por um imprescindível enquadramento diacrónico, é tempo de se proceder a uma síntese deste percurso, etapa que consideramos necessária e prévia à realização da segunda fase da análise empírica. Os actuais movimentos curriculares em direcção à desespecialização das formações técnicas e profissionais da formação inicial e à integração estrutural e subestrutural mais geral do ensino secundário, constituem tendências que são agora interrogadas como manifestações sociohistóricas, à luz do conjunto dos contributos teóricos já aqui mobilizados. Por fim, revisitaremos as hipóteses inicialmente formuladas, tendo em vista proceder à sua reformulação. Ao conjunto das tendências recentes inscritas nas reformas do ensino secundário de vários países da Europa e que acabamos de descrever, vamos chamar neoprofissionalismo, retomando a identificação conceptual feita inicialmente. Ele integra, assim, políticas de redução do volume de especializações técnico-profissionais que eram contempladas a este nível, um movimento de reforço da formação geral académica nos planos de estudo, mormente através da instalação de troncos comuns de formação para parte ou para todas as modalidades de ensino e de formação ao nível secundário, a adopção de uma vasta e diversificada palete de cursos de ensino e formação, cuja elasticidade vai desde os cursos liceais aos cursos 502 de formação-emprego, o estabelecimento de novos sistemas de equivalências entre percursos de ensino geral e de formação técnica e profissional, a criação de passadeiras entre os percursos que se mantêm diferenciados, o reforço curricular das componentes opcionais de escolha individual, uma mais poderosa presença dos parceiros sociais na construção da oferta formativa, com destaque para os empresários e o reforço das componentes de prática de trabalho em empresa, no caso dos percursos de índole técnico-profissional. O neoprofissionalismo alimenta-se de um discurso optimista dominante, que declara os benefícios da emergência de uma sociedade pós-industrial, a sociedade da informação, e de um modo de produção pós-fordista, cenário social apresentado como sendo requerente de mais elevadas e mais polivalentes qualificações por parte de todos os cidadãos. Para actualizar a função social do ensino e da formação ao nível secundário, os governos atribuem-lhe o papel de desenvolver não só um leque mais alargado de competências, como uma maior capacidade de adaptação e de mobilidade nos contextos profissionais, através da assunção de um novo rosto, também ele marcado pela flexibilidade, para fazer face à diversidade de interesses de uma procura crescente, para responder às novas necessidades do mercado de trabalho, em constante mutação, e para formar cidadãos mais críticos, socialmente activos e criativos. O neoprofissionalismo é tributário de uma retórica funcionalista generalista, que ignora as segmentações entre empresas e as segmentações do mercado de emprego, em que impera uma economia de mercado crescentemente globalizada e competitiva, em que o recurso ao saber desempenha um papel cada vez mais central e em que uma nova organização pós-taylorista do trabalho requer dos sistemas de ensino e de formação inicial o fomento de novas e mais elevadas competências. 503 A leitura crítica do neoprofissionalismo deve começar por interrogar a sua base ideológica, exactamente o seu nervo central e a sua força. A ideologia neoprofissionalista é um consenso abstracto veiculado por um leque muito diverso de actores sociais - empregadores, educadores, investigadores, políticos, legisladores (Stasz, Kaganoff e Eden, 1994) -, sustentado por uma retórica que deflui continuamente de organismos, agências internacionais e redes internacionais de peritos, com ligação à economia, à educação e ao desenvolvimento e é adoptado pelos decisores políticos nacionais, a braços com crises de legitimidade, que o incorporam como um discurso próprio, subsumido nas reformas educativas nacionais. No caso do ensino secundário esta ideologia suporta a adopção de um conjunto de medidas ao serviço do ajustamento funcionalista do sistema educativo a três realidades sociais europeias: o crescimento do desemprego, a universalização crescente da frequência do ensino secundário, por força da explosão da sua procura e da sua oferta, e ainda o que se designa por novas exigências em qualificações por parte do modelo emergente pósfordista de produção flexível. Antes ainda de discutir cada um destes campos de ajustamento social do sistema educativo, é forçoso constatar que existe, no plano político nacional, uma base de legitimação bastante clara para as reformas do ensino secundário. Mas isto não quer dizer que ela tenha de ser tomada pelo seu valor facial, como prudentemente adverte Hickox (1995). Pode até suceder que a retórica política adoptada no plano nacional derive mais de um processo isomórfico com a retórica política internacional, quer sobre a economia quer sobre a educação, do que da análise e da real necessidade de enfrentar problemas nacionais, económicos ou educativos. Além disso, é mister sublinhar que o neoprofissionalismo se traduz essencialmente por reformas curriculares do ensino secundário, que o abarcam no todo ou em parte, com predominância nítida para as modalidades de ensino técnico e de 504 formação profissional inicial. Em poucos casos este movimento deixa de ter uma matriz de mandato legislativo, necessariamente promovido de cima para baixo na hierarquia dos sistemas nacionais de educação e também raramente deixa de revelar que se subsume em adaptações curriculares e pedagógicas que não integram mudanças mais vastas e mais profundas da organização escolar. De facto, se as mutações económicas e sociais são céleres e generalizadas, elas poderão interrrogar não só a pertinência dos planos de estudo e dos currículos, mas a globalidade da formulação social do campo educativo. O ajustamento face ao desemprego Vejamos então por partes. O desemprego, mormente o que afecta o primeiro emprego, impõe-se aos decisores políticos como um flagelo social que se torna necessário combater. Como bem revela o gráfico que se apresentou no termo do capítulo precedente, o desemprego nos países da OCDE não tem cessado de aumentar e atingia, em 1994, 34 milhões de pessoas. Os sistemas escolares nacionais constituem dispositivos privilegiadamente ao dispor dos decisores políticos para serem mobilizados socialmente como instrumentos de regulação da correspondência entre as supostas necessidades de mão-de-obra qualificada e a produção escolar de qualificações. Como tecnologia social de combate ao desemprego juvenil, o neoprofissionalismo, com a sua panóplia de instrumentos e de programas de ensino, formação e "formação-emprego", tem produzido um triplo efeito. Por um lado, tem sido eficiente na sua capacidade de retenção dos jovens no seio do sistema de ensino e de formação durante um tempo mais prolongado. Por outro e por esta mesma via, tem igualmente contribuído para adiar a entrada dos jovens no mercado de emprego e, finalmente, tem 505 facilitado a aquisição de leques de saberes e de saberes-fazer que, na hora de integrar a "fila de espera" das colocações, se deverão vir a revelar de uma utilidade ainda relativamente escassa, ao lado da primazia dada ao sinal-diploma. Apesar da sua eficiência, não é de esperar, no entanto, que as políticas neoprofissonalistas resultem em diminuição drástica do desemprego juvenil, pela simples razão de que é evidente o facto de que este não tem parado de aumentar, ao mesmo tempo que elas se adoptam. O que se pode verificar, isso sim, é a sua atenuação pelo efeito da contribuição directa do novo e ampliado "mercado de formação", assim constituído, para alargar o efeito de socialização juvenil e para travar uma progressão ainda mais galopante das taxas de desemprego juvenil. As reformas neoprofissionalistas, no entanto, mormente movimentos em ordem ao reforço da formação “geral” enquanto dos cidadãos, ao aumento da opcionalidade individual e ao incremento da polivalência da formação de base, são apresentadas e defendidas também como potenciadoras de um desenvolvimento pessoal mais harmonioso e como capazes de formentar o desenvolvimento de cidadãos mais críticos, participativos e empreendedores. Importa, por isso, interrogar o problema nas suas várias formulações, entre as quais está a política e retórica, uma vez que estamos perante a análise de medidas de política com fluxos causais e com repercussões sociais de enorme complexidade. Assim, as reformas neoprofissionalistas do nível secundário, além de se manterem no quadro histórico do tecnico-funcionalismo, devem ser consideradas como um dos resultados da transfiguração do problema socioeconómico do desemprego juvenil em medidas de política do campo educativo, cujo objectivo é adiar, esconder e, em parte, resolver este mesmo problema social do desemprego. O sistema educativo, ao substituir o nãofuncionamento do mercado do primeiro emprego pelo funcionamento de um 506 mais amplo mercado de ensino e de formação, socorrendo-se de uma vasta panóplia de modelos e programas, actua assim como um ponto de apoio muito funcional de uma alavanca social a que todos os governos europeus recorrem. A generalidade dos actores sociais parace tomarem o que resulta desta transfiguração como a base de sustentação do seu discurso e da sua acção no campo educativo. Um ajustamento à procura social Por outro lado, enquanto tecnologia social de ajustamento escolar à explosão da procura social, o neoprofissionalismo demonstra a sua eficácia em vários planos: (a) porque diversifica o ensino geral e as modalidades de formação profissional inicial, criando um muito mais amplo e elástico mercado de ensino e de formação, tendo em vista acolher uma procura cada vez mais socialmente diversificada; (b) porque, ao incluir nos planos de estudos mais formação geral académica e ao desespecializar as formações técnicas e profissionais, cria uma aproximação dos percursos correspondentes ao ensino secundário com a mais tradicional "via geral", mais propedêutica de estudos posteriores, tornando-os desde logo mais atractivos para a procura juvenil (Kyro,1995) e criando a apelativa ilusão do prosseguimento de estudos superiores para um maior número de jovens; (c) porque ao atribuir equivalências entre o ensino técnico e a formação profissional inicial e o ensino geral académico, para efeitos de continuação de estudos, retira em boa parte a carga de estigmatização que tradicionalmente recai sobre aquelas primeiras formações, numa boa parte dos países europeus; (d) porque se socorre de todos os modelos de ensino secundário-escolar, dual e não-formal- para alargar o leque de possibilidades dos jovens para escolher e para obter um diploma do ensino secundário ou equivalente ou uma qualificação profissional legalmente reconhecida; (e) porque a redução da fragmentação do ensino e da 507 formação pós-obrigatórios e a sua maior uniformização podem ser vistos como tendentes a aumentar a transparência do sistema face à procura social, a facilitar o acesso e até a própria progressão escolar (Green,1995); (f) porque aumenta aquilo que algumas das reformas chamam o reforço da opcionalidade e da individualidade, ampliando as possibilidades de escolha de cada aluno e permitindo-lhe, em teoria, construir o "seu" percurso pessoal de formação. O neoprofissionalismo, enquanto oferta educativa, apresenta-se assim como um movimento do campo educativo que responde a um novo mandato social, indo ao encontro da procura social e reconhecendo que esta não se orienta principalmente pela racionalidade tecnicoeconómica, mas antes por uma racionalidade social. A ela preside a elaboração de micro-estratégias familiares de mobilidade social. Para a alcançar, as famílias, além de procurarem prolongar a permanência no sistema de ensino e de formação, elegem os percursos que se revelam mais atractivos, tendo em conta o "status" de partida e os recursos disponíveis, numa perspectiva de optimização de oportunidades de mobilidade ou, no mínimo, na expectativa de uma mais bem sucedida inserção socioprofissional futura. É esta racionalidade social, eminentemente credencialista, que explica a tendência manifestada para a orientação crescente da procura para as fileiras que conduzem ou ao prosseguimento de estudos ou a uma garantia de imediata inserção socioprofissional. Estes actores sociais, diante deste facto de enorme visibilidade social, configuram um sistema de representações e de práticas sociais que lhes permite percepcionar e decantar, com enorme perspicácia, os valores e as práticas concretas de recrutamento dos empregadores, concluindo que, regra geral e apesar das incertezas serem volumosas, os diplomados pelas mais altas credenciais escolares posicionam-se melhor perante o emprego que todos os outros jovens (acesso, vinculação, nível remuneratório, 508 estabilidade, gratificação pessoal), como aliás as estatísticas e os estudos empíricos bem demonstram (Prieto e Homs, 1995:566; Tanguy, 1995:720; OCDE, 1996; Lesourne, 1997). Assim, as vias de ensino e de formação de mais fácil acesso à universidade e aos diplomas do ensino superior em geral, as tradicionais vias de formação "geral", hoje mais abertas e mais disponíveis em termos de oferta educativa, são mais e mais procuradas, como constituindo tentativas mais consistentes e caminhos mais rentáveis para o acesso quer às mais altas credenciais escolares e, consequentemente, a um emprego quer como investimentos a prazo com maiores recompensas sociais associadas (Lutz,1992). Ao descreverem o percurso que lhes é assinalado pela carta de intenções de políticos, empregadores, legisladores, investigadores, educadores e organismos internacionais, os sistemas de ensino e de formação nacionais estão a descrever um arco de proteccionismo social dos jovens, mantendoos afastados durante mais tempo de um meio social adverso, onde sobressai a incerteza e a escassez de empregos. Os percursos de formação "geral", tradicionalmente muito selectivos, destinados a elites e intimamente adstritos ao prosseguimento de estudos superiores, são como que "devassados" agora por novos fluxos de procura social, procura esta que é massiva e que, pela evidente ruptura que representa, é apelidada, como se notou, de irracional e desorientada. Estamos, de facto, diante de um arco social complexo em que operam efeitos em cadeia e que se pode sintetizar deste modo: (a) no contexto de escassez prolongada de emprego, os jovens que melhor se posicionam no mercado do primeiro emprego, os que mais facilmente obtêm colocação e para quem esta é menos precária e mais bem remunerada são os possuidores das mais altas credenciais profissionalização escolares, e da sua independentemente do seu grau de especialidade; as estratégias de (b) recrutamento dos empregadores, sendo a procura de um emprego muito 509 superior à oferta, primam pela admissão dos jovens portadores de elevados diplomas escolares, mesmo que isso corresponda a uma evidente e imediata "desclassificação", devida à posterior ocupação de postos de trabalho normalmente ocupados por profissionais menos qualificados; (c) a selectividade do mercado de trabalho baseia-se, portanto, em geral, mais no nível do diploma do que nas qualidades adstritas aos títulos do ensino e da formação profissional inicial; (d) as famílias e os jovens empreendem leituras racionais e realistas dos comportamentos dos empregadores e da situação geral do mercado do primeiro emprego e investem mais em percursos escolares conduncentes ao prosseguimento de estudos superiores, exactamente aqueles que comportam actualmente mais potencialidades de afastamento das adversidades do mercado do primeiro emprego e de ascenção social; (e) estes percursos são normalmente dependentes do modelo de formação geral académica e fortemente dependentes, no seu conteúdo e na sua organização, do ensino superior universitário e dos seus respectivos títulos. Assim, é o funcionamento do mercado do primeiro emprego e o comportamento dos empregadores que determinam, em boa parte, a atracção pelos percursos escolares mais apropriados para aceder às mais elevadas qualificações e títulos, exactamente os mais "gerais" e mais próximos das "velhas" vias liceais40. O ensino secundário superior constitui, nesta ordem de ideias, uma escada rolante de passagem, na qual se entra em um dos seus percursos com o objectivo central de passar para mais além. O percurso a escolher é cada vez mais uma questão menos central, desde que assegure a referida passagem. 40 Dizemos “em boa parte” pois há outros factores conhecidos que participam na formação das escolhas familiares que se dirigem para a formação geral académica, tais como: a própria ordem escolar dominante e os seus percursos privilegiados, as representações que os professores, formados nessa ordem, transmitem aos alunos e aos seus familiares, os factores simbólicos e a apreensão social acerca dos mecanismos da mobilidade social, os próprios investimentos do Estado, por exemplo, em equipamentos, na qualificação de professores, no apoio à elaboração e difusão de manuais escolares, na elaboração de referenciais de carreiras profissionais. 510 O funcionamento do mercado de emprego, particularmente do mercado do primeiro emprego, e o papel que aí detém o sistema de educação e formação, são tão importantes para a formação das escolhas familiares, que as variações de comportamento na procura social de educação e formação, de país para país, se prendem muito com as variações do funcionamento daquele mercado e da sua relação com o sistema de formação. Verdier (1995) assinala, por exemplo, que enquanto em França o diploma não constroi uma qualificação e uma identidade profissionais reconhecidas, sendo o nível de estudos o indicador das competências globais, já na Alemanha, com o sistema dual, o diploma constroi-se no mesmo quadro da qualificação profissional e esta é "reconhecida e transferível no quadro dos mercados profissionais de trabalho". Assim também, este é um importante nó onde se amarram importantes diferenças entre o modelo escolar generalizado e o modelo dual alemão. Sendo impossível escapar ao conflito inerente à hierarquização das formações de tipo secundário, porque portadora de prestígios sociais diferenciados e conducente à ocupação de diferentes lugares e remunerações na hierarquia dos empregos, é compreensível que sejam as formações de tipo técnico e profissional a ser preteridas nos micro-processos silenciosos de elaboração das escolhas escolares, sobretudo nos países em que predomina o modelo escolar. A procura crescente de ensino "clássico", já Philip Foster o tinha sublinhado, longe de ser um acto social irracional, corresponde a uma leitura racional dos indicadores socioeconómicos, pois essa escolha equivale, bem vistas as coisas, a procurar a melhor via de preparação "profissional". "Os que criticam o carácter irracional da procura africana de ensino de tipo clássico em detrimento do ensino profissional não veêm que a força deste primeiro tipo de ensino reside precisamente no facto de ele ser eminentemente profissional, na medida em que permite aceder aos 511 empregos mais prestigiados e, sobretudo, aos melhor remunerados" (citado por Salmi, 1990:109) Esta análise da reacção da procura social, que é incitada a elevar a escolarização, requer ser completada com a constatação de que ela é influenciada, mas não é determinada, pelas novas exigências específicas dos postos de trabalho disponíveis ou da evolução recente do seu conteúdo funcional. Os empregos compatíveis e ajustados a essas elevadas qualificações podem até nem existir, mas, como se referiu, não são estes os critérios que sobredeterminam as escolhas dos adolescentes e das suas famílias, escolhas estas, apesar disso, racionais, realistas e razoavelmente a-retóricas. Constata-se, deste modo, que as teorias credencialistas explicam de modo pertinente este movimento crescente em direcção à educação "geral" na oferta e na procura do ensino secundário. A crença no valor de troca das mais altas credenciais escolares, embora beliscada com o desemprego de diplomados pelo ensino superior, ainda permanece um dos eixos centrais que sustentam uma certa procura "desencantada" da educação, constituindo o seu suave e indizível encanto. Sublinhe-se também que o movimento neoprofissionalista, ao descrever esta trajectória, em que se reforça a opcionalidade individual, produz simultâneamente um fenómeno de neodiversificação, centrada agora no aluno e não já nas "necessidades do mercado de emprego". Este é um sinal de mudança de rumo das políticas de ensino e de formação e deve ser lido também como um sinal de afastamento em relação ao referente produtivo que importa reter e ao qual se voltará mais adiante. O ajustamento face às novas competências 512 Para o ensino e a formação profissional inicial formula-se, assim, um novo mandato social, em que se supõe que as novas tecnologias da informação e da comunicação e a irrupção de um modelo de produção pós-fordista e flexível exigem uma população activa não só mais qualificada, o que aqui quer dizer com títulos escolares mais elevados, como menos especializada, isto tendo em vista assegurar uma maior mobilidade profissional, a rotatividade entre os postos de trabalho e até a alternância emprego/desemprego, características do novo "modus faciendi" de uma economia de mercado crescentemente globalizada. Enquanto que nas décadas de crescimento económico contínuo, que se seguiram à II Guerra Mundial, as políticas de educação e de formação inicial foram dominadas pela ideologia do capital humano e da correspondência entre a produção de qualificações escolares e os empregos disponíveis, num quadro em que se desenvolveu uma planificação nacional e internacional de necessidades de formação, já no termo dos anos oitenta e nos anos noventa, embora se mantenha a mesma ideologia e a mesma expectativa geral de correspondência entre formação e emprego, estas são dominadas pela incerteza e pela imprevisibilidade acerca da evolução das profissões e dos empregos disponíveis, uma vez que o emprego se tornou um bem escasso e o funcionamento do mercado do primeiro emprego se alterou substancialmente. Deve notar-se, no entanto, que a retórica que subjaz actualmente à construção política da oferta educativa, ou seja, às reformas educativas, é de igual modo optimista, uma vez que a relação entre a educação e o trabalho se continua a elaborar num quadro de adaptação funcional das políticas de educação e formação à evolução da economia, revestida portanto de uma racionalidade produtivista. Enquanto tecnologia social de ajustamento estrutural à evolução da economia, particularmente na medida em que se procura promover o 513 desenvolvimento de novas competências ajustadas a um novo modelo de produção pró-fordista, num ambiente pós-industrial, o neoprofissionalismo tem manifestado uma enorme ambiguidade. E isto por várias razões. Em primeiro lugar, a sua retórica fundadora de cariz tecnicoeconómico esbarra logo com o intransponível facto de que é difícil, ou mesmo impossível, predizer a natureza da estrutura ocupacional da sociedade pósindustrial (Hickox,1995), dadas as suas matriciais marcas de incerteza e de imprevisibilidade. Neste particular, as mutações escolares, ainda que circunscritas ao seu enunciado normativo, desenvolvidas neste quadro neoprofissionalista, parecem estar ainda prisioneiras da inércia da anterior planificação central e estatal de necessidades de formação para sustentar o desenvolvimento económico, prática tão típica da "manpower approach", agora já tão substancialmente anacrónica. Este primeiro nível de ambiguidade traduz-se geralmente no enunciado de listagens mais ou menos exaustivas de competências a desenvolver, sem que se enfatize o modo, o lugar ou a modalidade de ensino ou de formação a privilegiar em ordem ao seu ensino e aprendizagem. A referência à “formação geral” parece constituir o grande e o único consenso abstracto comum, por todos e a todo o tempo aduzido. A ambiguidade está também presente no facto de se desenvolver uma retórica demasiado optimista acerca da existência de uma relação mecanicista entre a generalização da aplicação das novas tecnologias da informação e da comunicação e a generalização das admissões de novos perfis de trabalhadores, dotados de elevadas qualificações escolares. Ora, sabemos que uma grande parte dos novos empregos criados nos últimos anos são substancialmente indiferenciados ou apenas requerem um curto período de adptação no posto de trabalho e que há segmentos do mercado do trabalho que incorporam mão-de-obra sobrequalificada pela simples razão de que a procura excede em muito a oferta (Levin e Rumberger, 1988 514 e 1989; Barbier, 1998). Também reconhecemos que sectores limitados do mercado do trabalho e certos grupos profissionais incorporam mão-de-obra altamente qualificada e muito especializada; tal circunstância não nos permite, porém, seja ignorar a forte segmentação existente nos mercados de trabalho seja ir para além do que a realidade da efectiva distribuição da mãode-obra por níveis de qualificação nos permite afirmar. Todavia, é muito provável que a retórica gongórica em torno das novas qualificações e das novas competências se possa explicar também pelo facto de, em virtude da progressiva universalização do ensino secundário e da massificação do ensino superior, o mercado estar transbordante de altas credenciais escolares que inflaccionam os títulos e se traduzem em “sobrequalificação” profissional. Por outro lado, como já referimos, a construção de um amplo e diverso conjunto de oportunidades de ensino e de formação, combinando os modelos escolar, dual e não-formal, apresenta-se como um muito importante contributo à reestruturação da economia, não só pelo amplo mercado de ensino e de formação que se constroi e pelas qualificações que aí se produzem, mas também na medida em que este mercado ao funcionar eficazmente substitui com eficácia o precário funcionamento do mercado do primeiro emprego. É mesmo de admitir que, a manter-se esta matriz de pensamento e de acção política como sustentáculo das reformas educativas, no ambiente de incerteza e de constante reestruturação económica, com reduções contantes do volume de emprego disponível, a ambiguidade neoprofissionalista seja levada ao ponto de se vir a prescindir totalmente, nos planos de estudo destinados ao grupo etário 16-19 anos, em qualquer das suas modalidades, de qualquer finalidade de qualificação eminentemente técnica e profissional. Nesta óptica, o movimento de integração subestrutural e estrutural que 515 analisamos poderia ser apenas o início de um novo ciclo longo de unificação crescente do ensino secundário, evoluindo agora de uma diversificaçao profissionalista para uma diversificação neoprofissionalista, de base predominantemente opcional e individualista. Mas não só. Este ciclo, na medida em que corresponde em boa parte a um reforço curricular do ensino geral académico pode, deste modo, ser também questionado como um movimento em ordem a um novo tipo de especialização do nível secundário, uma resposta do sistema escolar ao novo mandato social construída pelo fechamento/enquistamento curricular em torno da mais tradicional matriz académica do ensino secundário. O ensino e a formação técnica e profissional de nível secundário e a sua missão de preparação de mão de obra qualificada especializada seriam progressivamente preteridos como inadequados para integrar o núcleo da missão dos sistemas educativos na preparação dos cidadãos para o exercício profissional qualificado. O ajustamento ao mundo empresarial Como se anotou, em tempo, as reformas educativas empreendidas têm-se traduzido também por um generalizado aumento da participação formal dos representantes dos empresários e dos representantes dos trabalhadores nos organismos nacionais, regionais e até locais, que regulam a oferta de ensino técnico e de formação profissional inicial. O Estado, a braços com uma crise de legitimação, tem vindo a partilhar o poder de exercício desta regulação, em benefício sobretudo dos empregadores e de instâncias mais descentralizadas e territorializadas da própria administração pública. Embora o caso mais marcante possa ser o da já referida criação, em Inglaterra, da MSC-Manpower Services Comission, em muitos outros países se criaram novos orgãos ou se reestruturaram organismos pré-existentes, no sentido de 516 reforçar este tipo de participação dos empresários. Este reforço do vector produtivo na política educativa e formativa dos jovens processou-se tanto no plano nacional como no plano regional e local, registando-se uma grande variedade de práticas, de país para país. Anote-se, todavia, que este processo corre em paralelo com um outro em que as empresas se retiram progressivamente da responsabilidade da oferta directa de formação profissional inicial aos jovens (Comissão Europeia, 1995). Esta inibição surge inclusivamente na Alemanha, palco do modelo de mais intenso envolvimento das empresas na promoção da formação inicial, assistindo-se a uma diminuição do número de lugares de aprendizagem, ao mesmo tempo que aumenta simultaneamente o número de jovens que terminam a sua formação escolar geral e o número dos que aguardam um lugar no sistema dual. Em sectores como o da indústria metalúrgica, segundo a Associação Patronal Hessen Metall, não pode estar a ocorrer senão uma diminuição do número de lugares de aprendizagem, seja porque o sector perdeu mais de um milhão de empregos nos últimos dez anos seja porque as empresas reestruturaram a organização da produção com o objectivo de aliviar os custos da mesma e ainda porque o sector continua a perder importância relativa face às empresas de serviços (CEDEFOP, 1995). O acréscimo de influência dos empresários na educação e na formação a este nível de ensino não tem normalmente um equivalente directo no aumento do seu envolvimento na oferta de lugares de formação, antes se traduz essencialmente na participação mais activa e preponderante na formulação, na aplicação e na avaliação das próprias políticas nacionais, regionais e locais de preparação e de selecção dos jovens para o ingresso posterior no mercado de trabalho. Assim, de uma intervenção política centrada na regulação da procura, como era típico da época em que predominavam as teorias do planeamento estatal, central e previsional do capital humano necessário ao incremento económico, a participação dos 517 empregadores evolui para uma determinação da oferta, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo, desde os objectivos, até aos conteúdos, às metodologias, aos perfis e à organização do que se ensina. Esta mutação é profunda e pode bem constituir o novo rosto do funcionalismo educativo face à economia de mercado em reestruturação. Já não basta regular a oferta educativa pública com base no encaminhamento dos fluxos quantitativos da procura, tarefa em que a "joint venture" entre o Estado e os empregadores dá sinais crescentes de esgotamento e fracasso, é preciso passar a regular a oferta educativa com base na determinação dos seus aspectos qualitativos, a própria produção do "software". Esta mutação corresponde a um acréscimo de intervenção dos empregadores no campo educativo, o que representa mais um traço caracterizador do neoprofissionalismo crescente das políticas relativas ao ensino e à formação, ao nível secundário. De um quadro de intervenção hegemónica do Estado evolui-se para um quadro de parceria, quanto à responsabilidade na definição do sistema de ensino e de formação inicial. Mas este acréscimo de envolvimento e, sobretudo, este novo tipo de envolvimento na construção da oferta educativa vão a par, de modo aparentemente paradoxal, com um afastamento entre o mundo empresarial e produtivo e o ensino e a formação de nível secundário, por via da desespecialização, da integração curricular e do reforço da formação “geral”. Por outro lado ainda, o movimento neoprofissionalista tem convivido com uma deslocalização de uma parte do ensino técnico e da formação profissional inicial exclusivamente para o terreno da empresa, apresentada como o único meio capaz de proporcionar eficientemente as aprendizagens relacionadas com as "condições sociais da produção" (Tanguy, 1983:352), tais como saber comportar-se num local de trabalho, aprender normas e hábitos de trabalho ou adquirir qualidades pessoais e sociais indispensáveis 518 à participação num processo de produção, (relembre-se, por exemplo, a nova política do Banco Mundial a este respeito). Aqui chegados, devemos admitir que o neoprofissionalismo, na sua tentativa de ajustar a educação à evolução da economia, se traduz por um efectivo e desejado afastamento da escola em relação ao trabalho. Em resumo, por várias razões: (i) porque diversifica a oferta e atrai mais e melhor a procura; (ii) porque adia o acesso dos jovens ao mercado de emprego; (iii) porque retira dos planos de estudo as práticas oficinais em benefício do aumento da formação geral académica; (iv) porque retira ao nível secundário parte do seu lugar e do seu papel na especialização profissional; (v) porque privilegia crescentemente o campo da empresa como o mais adequado para a preparação para o trabalho. É certo que se aduzem importantes motivos que legitimam estes rumos das políticas de ensino e de formação. Por um lado, refiram-se os contributos acerca da empresa como organização qualificante ou aprendente, um contexto sociocultural novo, em que cada activo tem a ocasião de ser mais autónomo no seu exercício profissional e tem a necessidade de aprender em cooperação com os outros. Por outro, correlacionem-se estes rumos com a perspectiva da "formação ao longo da vida" que, baseada na mesma retórica económica, advoga que todos os cidadãos devem adquirir na escola uma sólida educação básica, tendo em vista edificar sobre ela uma qualificação permanente e ao longo da vida, qualificação essa que pode consistir em momentos de actualização, de reciclagem ou de reconversão. Por outro ainda, lembre-se o esforço recente de algumas correntes de opinião no seio da União Europeia no sentido de incrementar o desenvolvimento da União do Conhecimento, para lá da União Económica e Monetária e da União Política. 519 Como quer que seja, a ambiguidade do ajustamento entre a educação e a economia promovido no quadro do neoprofissionalismo reside também no facto de ele se traduzir na prática pela ampliação do fosso entre as escolas e as empresas. Como bem evidenciaram as teorias da segmentação do mercado do trabalho, as actividades económicas dominadas pelo paradigma da produção flexível constituem um segmento minoritário, estando adstritas a sectores mais modernos e competitivos da economia. Nesta ordem de ideias, o fosso que se está a cavar entre as escolas e as empresas, entre a teoria e a prática, entre os saberes académicos e os saberes profissionais, pode, por um lado, servir bem um sector restrito da economia, mas pode estar a não responder e até a prejudicar importantes segmentos do mercado do trabalho e, por outro, representar sobretudo um novo modo do ensino e da formação de nível secundário exercerem o seu papel de selecção social. Como Conceição Alves Pinto (1990) demonstrou para o caso português da unificação do ensino, embora os decisores políticos pretendessem aumentar a formação geral de todos os jovens e assegurar uma maior igualdade perante o ensino, para uma parte da população em questão a mudança revelou-se inadequada e traduziu-se pelo afastamento do sistema escolar de grupos consideráveis de jovens. Além disso, mesmo que se admita como razoável que qualquer empresa é um local de produção e de síntese de saberes e de saberes-fazer, como avisa Lucie Tanguy, isso pouco nos diz acerca das condições e da capacidade para se transmitirem esses saberes, mesmo nas empresas mais modernas e competitivas, acrescente-se. Em síntese, em nome do modo de produção pós-taylorista e das novas formas de organização do trabalho, as reformas neoprofissionalistas parece afastarem o campo escolar do campo do trabalho. Vão-se apagando, deste modo, no perfil do ensino secundário europeu, os estigmas vincados da desvalorização tendencialmente social que um ensino o relacionam secundário com "clean", o trabalho. Cria-se sem oficinas, sem 520 especialização profissional, sem óleo e sem tornos mecânicos, pronto a conduzir os jovens para estudos posteriores, apto a mantê-los afastados do mercado de emprego por mais tempo. Pela mesma lógica, os percursos técnicos e profissionais que entretanto se mantiverem isolados, como vestígios arqueológicos, a par de outros percursos muito mais valorizados política e socialmente, tenderão a ser ainda mais estigmatizados e, potencialmente, banidos. O mesmo pode não suceder quando, mesmo que minoritários, os percursos técnicoprofissinais correspondam a elevadas prioridades políticas, estejam entretecidos com a economia e as necessidades locais de emprego e, mesmo especializados, se mantenham raros, pois aí reside o seu principal valor de troca (Charlot,1987:138). O mesmo pode não suceder também se a tão propagada “formação geral” não se liofolizar no reduto da tradicional educação geral académica e acolher a própria educação geral tecnológica como sua componente de parte inteira. Porém, a ambiguidade acabada de descrever deve ser vista mais como aparente do que como real. Talvez haja pouca ou mesmo nenhuma ambiguidade na vertente económica do novo mandato social que é enunciado na actualidade e no fosso que parece cavar-se mais fundo entre o ensino e a formação e as empresas e o trabalho. Para o actual processo de reestruturação da economia europeia já não será decisivo contar com um ensino técnico e uma formação profissional inicial, inseridos no sistema educativo formal, aptos a produzir os diplomados diferenciados para uma economia altamente diferenciada (Benavot,1983). O que se passou a requerer do ensino e da formação inicial é a "produção" de cidadãos com uma formação geral de base e prolongada, aptos a exercer uma pluralidade de papéis sociais, entre os quais o de trabalhador, se e quando for caso disso, cidadãos detentores de um perfil de competências não especializado, que não crie obstáculos à mobilidade e adaptabilidade profissional, um perfil que favoreça a rotatividade entre diversas actividades e diferentes postos de trabalho, um perfil que facilite a alternância entre o emprego e o 521 desemprego, ao longo da vida, um perfil, finalmente, que é muito mais adequado ao actual "modus operandi" da economia de mercado. Advoga-se, por isso, que a racionalidade que estruturava a relação educação-trabalho de modo utilitário, especializado, instrumental e estratificador deixou de ter correspondência com o mercado de trabalho. A mesma racionalidade produtivista advoga actualmente para o ensino e a formação de nível secundário a desespecialização e a integração curricular como o novo e melhor modo de estabelecer aquela correspondência. O referido fosso não aumenta, o modo de aproximação é que é diverso. A ambiguidade é sobretudo aparente. Dentro do mesmo quadro genérico de uma resposta "aggiornata" do sistema escolar aos imperativos da evolução económica há novas tensões e confrontos que se desenham. A retórica da desespecialização e da integração curricular relevam, por isso e antes de mais, da nova ordem económica e produtiva, embora, como veremos adiante, este mandato se cruze com outros ordenamentos ideológicos igualmente relevantes, que questionam esta retórica e as políticas que com ela se edificam. O impacto do sistema educativo mundial Como vimos, há um novo sulco de interconexões mundiais que é rasgado quer pela aceleração da globalização da economia de mercado quer pela forte aceleração da comunicação iner-nacional. Nele se desenha um processo social de crescente influência de fenómenos globais nas sociedades locais e de crescente abertura das sociedades locais para os fenómenos globais. Nele circulam com destreza, facilidade e eficiência as orientações e o pensamento das organizações internacionais, das redes de peritos, das edições de maior difusão. O local e o nacional não 522 desaparecem, transformam-se e pensam-se a si próprios de outro modo, imersos na teia que as novas relações entre o global, o nacional e o local tecem. A interdependência é cada vez maior, o que se traduz no facto de muitos problemas locais de educação e de formação só se poderem resolver com soluções globais e de muitos problemas suscitados pelos modelos educacionais transnacionais dependerem de soluções locais. O mandato social acima referido apresenta-se, como vimos, com a configuração de uma retórica macroeconómica de base transnacional, o que reforça a pertinência do quadro teórico que propõe o sistema mundial como unidade de análise das recentes reformas educativas nacionais. Desenvolvese ao nível mundial, mais do que em qualquer plano nacional ou local, embora em interacção com estes níveis, um núcleo de representações e de significados que se espalham por todo o mundo, um novo paradigma de relação entre a economia e a educação, que tem a capacidade de se impor do todo para as partes e do centro para a periferia, que circula rapidamente transportando no seu movimento uma força normalizadora e de convergência inter-nacional, que se reveste cada vez mais do "dom" da simultaneidade e que possui, além disto, importantes carimbos legitimadores e virtuosismos ou vantagens adicionais de grande poder sedutor, como sejam: a atractividade dos mitos que nascem no centro, no seio dos países mais poderosos, das economias mais competitivas ou das organizações e empresas mais performantes; o ímpeto da globalização galopante da economia de mercado e o vigor dos mitos que ela inscreve na retórica política mundial e que circulam, à velocidade da luz, por todos os continentes; o facto de os decisores políticos nacionais absorverem com enorme vontade e facilidade as retóricas mundialmente legitimadas, dado o poder destas para transcender os problemas nacionais concretos e para funcionar como um véu que desce mansamente sobre esses problemas; o poder altamente legitimador da assunção deste paradigma por organizações internacionais, por redes de peritos e encontros permanentes em todo o mundo e pelo 523 sistema de comunicação científica, que o disseminam permanentemente pelo mundo. A este quadro teórico podemos ainda acrescentar a força das práticas habituais de contemplação inter-nacional, para assinalar que nacional e localmente se integram padrões mundiais de institucionalização educacional que, em cada momento e em função de cada realidade local, são reelaborados e reinterpretados. À luz da teoria do sistema mundial, o quadro nacional em que ocorrem as reformas educativas em estudo deve ser considerado um terreno manifestamente insuficiente para nele caberem a intensidade política, a intencionalidade constitutiva e a simultaneidade das reformas empreendidas. O movimento neoprofissionalista pode considerar-se, assim, também como uma construção do sistema educativo mundial; é uma pan-dinâmica envolta numa torrente ideológica global, que entronca, antes de mais, nas reestruturações contínuas de uma economia globalizada, sob o comando dos seus segmentos mais modernos, mais internacionalizados e mais competitivos. A homogeneidade retórica que subjaz às reformas do ensino secundário em estudo exprime com veemência uma harmonização ideológica e institucional cerzida quotidianamente à escala transnacional na interacção permanente frequentemente local-nacional-global. consensos nacionais diante Geram-se de tão fácil e virtuosos, estandardizados e "científicos" modelos de compreensão de uma realidade social em acelerada mudança (e por isso mesmo ainda de mais difícil apreensão). A ênfase que se coloca na força desta ideologia global e na importância destes consensos não pode obnubilar nem desvalorizar tanto a diversidade e a complexidade das interacções entre forças sociais nacionais e locais, como a espessura sociohistórica sobre a qual esta retórica volteia permanentemente. Sob os acordos genéricos e transcendentalizadores, há profundas segmentações e enormes discordâncias acerca, por exemplo, dos 524 modelos produtivos, das relações educação e formação, do papel dos parceiros sociais e da própria desespecilazação ou desprofissionalização. De facto, as elites nacionais e locais organizam a recepção e a apropriação nacional e local do novo paradigma, numa tensão contínua entre a poderosa força centrípeta mundial e a poderosa força centrífuga da tradição, da diversidade e das rotinas nacionais e locais. À teoria da reinterpretação nacional deve, por isso, ser também atribuído um importante papel e um elevado grau explicativo na análise internacional das reformas do ensino secundário. As recentes reformas neoprofissionalistas na Europa devem, pois, ser entendidas como intersecções entre as construções do sistema educativo mundial e os esforços de reinterpretação nacional e local dos consensos mundiais, promovidos pelos decisores políticos e pelos actores sociais, sendo certo que estes esforços são diversos no conteúdo, na forma e na intensidade, variando de país para país, de região para região, de sector de actividade para sector de actividade. Mas, apesar de ser patente, nas reformas educativas em análise, uma grande diversidade de situações nacionais, torna-se bem visível uma tendência não só para a adopção de uma mesma retórica legitimadora, de cariz internacional, mas também para o estabelecimento de normas e de medidas de política de características semelhantes, resultantes do labor do sistema educativo mundial e do seu encontro-confronto com os actores e as realidades sociais nacionais. Estas medidas são objecto de políticas dos Estados, realizam-se, como refere Lucie Tanguy (1995), num quadro de relativo consenso social e são elas mesmas construtoras do sistema educativo mundial, como se deixou explicitado antes. Finalmente, as medidas de política que analisamos inscrevem-se também em dinâmicas de legitimação de políticas públicas. Retomando Ginsburg e Cooper (1991), estas reformas escolares empreendidas pelos governos nacionais pretendem também minimizar os custos políticos que resultam das 525 mutações socioeconómicas, como o desemprego estrutural e os disfuncionamentos do mercado do primeiro emprego, maximizando em simultâneo os ganhos políticos inerentes ao facto de se desenvolver uma reforma e se procurar melhorar a sociedade, em nome de um melhor ajustamento entre a educação e a economia, frequentemente inscrito nos fenómenos globais que inquietam a humanidade. Processo de unificação e função propedêutica: ligações históricas O movimento neoprofissionalista deve igualmente ser analisado, à luz da incursão histórica empreendida atrás, como um momento da evolução do lugar e da função do ensino secundário na Europa. Este momento inscrevese na continuidade de uma tendência de longa duração das políticas educativas que consiste na promoção da unificação escolar como estratégia subordinada às políticas de democratização das oportunidades educacionais. Embora não seja certo que estas intenções políticas se concretizem, ou seja, que a unificação curricular crescente corresponda, melhor do que uma diversificação curricular crescente, à expansão da educação de massas, à medida que o neoprofissionalismo se adopta, em íntima conexão com o aumento da procura social do ensino secundário e com o aumento do desemprego juvenil, modifica-se o campo da função selectiva que o modelo escolar dominante tem vindo a atribuir ao ensino e à formação pós-obrigatórios. De facto, a função mantém-se, o modo de selecção é que se altera lentamente. Esta função, por um lado, elege certos núcleos curriculares como os melhores para todos os alunos e, por outro, desloca para o nível subsequente de ensino e formação, o pós-secundário e o superior, a tradicional especialização e a fragmentação curricular. O processo da unificação generalizada do ensino universal e obrigatório, que compreende geralmente o ensino secundário inferior, segue um 526 referencial geral cuja explicitação se torna importante para a compreensão do movimento neoprofissionalista como movimento em parte herdeiro do processo unificador. Os marcos mais salientes são: (a) criar uma estrutura curricular geral e comum; (b) abolir a divisão entre escolas e cursos com prestígio social diverso, dentro do mesmo patamar de ensino e formação; (c) prever uma certa margem de flexibilidade opcional para favorecer escolhas individuais; (d) e induzir o prolongamento da frequência escolar, ao retirar carácter terminal aos percursos de ensino e de formação. Por outro lado, como refere o "rationale" de M. Trow (1978), que aqui adoptamos, a função social predominante no ensino secundário de massas é de novo propedêutica, perante a nova realidade social de um ensino superior de massas. Ao vincar-se esta nova função social do ensino e da formação de nível secundário, acentua-se o conflito entre finalidades propedêuticas e terminais, entre uma polarização determinada pelo ensino superior e pela selecção dos segmentos profissionais que vão participar activamente na nova economia globalizada e a polarização exercida pela procura de mãode-obra mais indiferenciada, possuidora de uma “formação geral de base”. Neste quadro de análise compreendem-se as políticas seguidas pelos governos e as recentes reformas do ensino secundário.Por um lado, os segmentos terminais tendem a ser alvo de medidas excepcionais de "dignificação", que vão desde os investimentos especiais em recursos humanos e financeiros, passando pela introdução de disciplinas "gerais" e de troncos comuns ao ensino secundário propedêutico, até à atribuição aos cursos terminais de uma equivalência escolar aos diplomas dos cursos orientados para o prosseguimento de estudos. E como vimos, quando medidas deste tipo não surgem associadas aos percursos terminais, estes constituem-se muito claramente como vias de deserdados, o que insistentemente se tem procurado evitar. Por outro lado, os governos são socialmente pressionados a tomar medidas para uniformizar todos os percursos do ensino secundário, aproximando-os o mais possível de um 527 mesmo modelo, dominantemente propedêutico, modelo este que pode conviver com diferentes tipos de escolas e de diplomas, ou até reduzir mais ou menos drasticamente esta diversidade. No limite, poderá haver um único tipo de escola, com um currículo de base comum e uma multiplicidade de opções individuais. A desprofissionalização dos percursos mais vincadamente terminais do ensino secundário deve ser percepcionada, a esta luz, como um processo histórico, em que se destaca a vasta e contínua dinâmica social de expansão do modelo de educação de massas, primeiro no ensino secundário e depois no ensino superior. Aliás, é isto mesmo que Verdier (1995) reconhece quando fala do efeito social da célebre convocação governamental, em França, no início dos anos oitenta, de 80% de cada grupo etário ao "Bac". Por um lado, os percursos escolares secundários tornaram-se mais gerais, por outro, os diplomas técnicos vieram a perder a sua finalidade de inserção profissional, que estava na base da sua criação, nos anos sessenta, e passaram a fazer parte integrante de um processo de escolarização de massas. O seu papel passou, assim, a ser mais o de filtro para as oportunidades de estudos pós-secundários do que o de suporte ao investimento em capital humano profissionalmente qualificado de nível intermédio. Sublinhe-se ainda que a acentuação da marca propedêutica dos estudos secundários se repercute no perfil de formação de todos os estudantes, mesmo dos que, por força dos processos de selecção, não acedem ao ensino superior. O carácter propedêutico e de passagem ou ponte é-o para todos. Os estudantes que tiverem como destino o ingresso imediato no mercado de emprego terão de realizar cada vez mais aí, nas empresas ou em centros de formação especializados a elas ligados, a sua fase terminal de qualificação, mais ou menos especializada. E este não é certamente um facto estranho à proliferação do sector não-formal dos sistemas educativos. 528 Nestes processos de reforma, há evidentes mudanças na relação hierárquica entre o ensino geral académico e o ensino técnico e a formação profissional inicial. Todavia, descrever e constatar estas alterações não equivale a dar por adquirida a superação da hierarquia que subjaz a esta relação. Este mesmo ponto é observado por Andy Green (1995), quando refere que à medida que os percursos do ensino técnico e da formação profissional do ensino secundário se tornam mais gerais e académicos, nos seus conteúdos e nas suas normas, há o perigo, já descrito, de todos os cursos técnicos e profissionais não abrangidos pelas mesmas reformas ficarem ainda mais desvalorizados e marginalizados. Como vimos, a hierarquia de prestígio entre cursos e títulos escolares é inelutável. Se ela não se desenvolve no ensino secundário, vai deslocalizarse e desenvolver-se no ensino superior, diversificando-o cada vez mais. Como vimos, as desigualdades inerentes às relações sociais e a estrutura diferenciada dos empregos constituem vinculações a que o sistema escolar não escapa; esta dependência não impede, no entanto, que as políticas educativas evoluam na consecução de objectivos democratizadores sobre o sistema escolar e sobre a sociedade, ainda que os seus limites saltem depressa à vista. A questão que aqui nos mobiliza reside em saber se esta hierarquia se continua a arquitectar com base na dicotomia académicoprofissional ou se esta se esbate e se estrutura mais sobre componentes acrescidas de ensino geral académico e sobre os investimentos que os diferentes membros dos diferentes grupos sociais estão em condições de fazer face à educação escolar, investimentos que podem variar sobretudo na sua duração, no prestígio social associado a certas formações especilazadas e conducentes a profissões socialmente prestigiadas (ex. engenharia ou medicina). Aliás, a proliferação de níveis no ensino superior não pára de aumentar: ensino pós-secundário, ensino superior curto, bacharelato, licenciatura, pós-graduação, mestrado, doutoramento e pós-doutoramento. 529 Em síntese, o movimento neoprofissionalista ao nível do ensino secundário deve ler-se também, nesta visão multifacetada, como uma nova etapa no movimento de longa duração em ordem à unificação escolar em torno do referencial do ensino geral académico, como resposta do campo educativo à procura social incessante e ao contínuo prolongamento da permanência dos jovens no terreno do ensino e da formação, mantendo-os mais tempo afastados do exercício profissional. Segundo a Comissão Europeia, no seu Relatório anual sobre o emprego na Europa, de 1994, entre 1960 e 1994, a proporção de jovens entre os 15 e os 19 anos, profissionalmente ocupados, diminuiu de 55% para 30%. Atente-se, finalmente, que esta retenção num ambiente protegido e muito peculiar, exactamente desligado dos contextos de trabalho, pode traduzir-se, do ponto de vista do desenvolvimento educativo dos alunos, num longo adiamento da assunção de algumas responsabilidades sociais ligadas ao trabalho que, anos antes, eram assumidas pelos jovens do mesmo grupo etário, o que não deixa de ser uma importante problemática a assinalar. Retomando a categorização inicial dos sistemas escolares europeus de ensino secundário superior, pode-se argumentar, em meados dos anos noventa, em síntese, que os modelos escolares tendem a desespecializar-se e a flexibilizar-se, incluindo até componentes de alternância e experiências de trabalho, de certo modo desescolarizando-se, que o modelo dual tende a reduzir o seu campo de adequação e a formalizar-se e, de certo modo, a escolarizar-se, mormente pela introdução de novos anos de base comuns e direccionados para os conhecimentos teóricos, científicos e tecnológicos, e que os modelos não-formais se inclinam também para uma maior formalização, tornando-se, além disso, quase omnipresentes em todos os sistemas escolares nacionais, ao lado dos outros dois modelos tradicionais, como régua para fazer recuar o desemprego juvenil e para amparar socialmente os que já sairam da escola e ainda não chegaram ao emprego. 530 A esta luz pode também explicar-se, em boa parte, a simultaneidade deste movimento neoprofissionalista em países com tradições culturais e sistemas escolares tão diferentes. Um conflito entre mandatos societais Uma questão central que importa discutir neste momento é a da evolução que se está a processar no conflito entre diversas racionalidades em presença no ensino e na formação de nível secundário. Os mandatos sociais não são unívocos nem se reduzem ao imperativo económico, por mais que se tenha de reafirmar a real força deste imperativo e da matriz tecnicofuncionalista que ainda envolve e impregna as políticas de ensino e de formação. Para a formulação das recentes reformas do nível secundário contribuiram factores que estão muito para além do cumprimento por parte dos sistemas educativos de um novo mandato económico de adaptação técnico-funcional do sistema escolar às novas configurações do sistema produtivo. Situam-se nesta ordem de ideias as perspectivas que veiculam a necessidade de o sistema escolar, para cumprir um papel educativo, não se subordinar centralmente aos veios económicos dos sucessivos mandatos sociais. A educação escolar, segundo uma outra retórica e um outro mandato societal transnacional, deveria escapar à imposição exclusivista da racionalidade produtivista que obnubila todas as outras, na medida em que ocupa feudalmente o espaço de legitimação da função social do ensino secundário. Perante os novos "défices de socialização" que caracterizam a sociedade contemporânea, a educação escolar deveria desempenhar um papel activo como factor de coesão social, contribuindo para a formação do 531 "núcleo base da personalidade" (Tedesco,1995), numa época em que se exige cada vez mais a cada indivíduo a construção da sua própria identidade social, num quadro cultural relativista e carregado de incerteza. Para o filósofo J.M. Domenach é a uma "nova cultura geral" que pertence recuperar o valor social do ensino secundário (1989:143). Em seu entender, deve prevalecer, nos empreendimentos reformadores, o "princípio de uma cultura geral, única e prolongada", incorporadora de tratamentos pedagógicos e cronológicos diferenciados, capaz de conciliar teoria e prática, formação geral e profissional, apta a preparar os cidadãos para "itinerários largamente imprevisíveis" (1989:63). Segundo este mesmo autor francês, a armadura do "corpus" curricular é uma cultura geral que não se pode subjugar aos imperativos da rentabilidade e da preparação para a vida profissional, por mais justificados que eles sejam, sobretudo neste período de crescimento do desemprego juvenil. A utilidade não pode tomar a dianteira sobre a relação pedagógica e sobre o cultivo da verdade, da beleza, da liberdade e da convivialidade (Domenach, 1989:63). Também o relatório da UNESCO sobre a educação para o século XXI se inscreve dentro desta mesma racionalidade, atribuindo à educação escolar do futuro o papel de "fazer com que cada um tome o seu destino nas mãos e contribua para o progresso da sociedade em que vive, baseando o desenvolvimento na participação responsável dos indivíduos e das comunidades". E prossegue esclarecendo: "o princípio geral de acção que deve presidir a esta perspectiva dum desenvolvimento baseado na participação responsável de todos os membros da sociedade é o do incitamento à iniciativa, ao trabalho em equipa, às sinergias, mas também ao auto-emprego e ao espírito empreendedor; é preciso activar os recursos de cada país, mobilizar os saberes e os agentes locais, com vista à criação de novas actividades que afastem os malefícios do desemprego tecnológico" (1996:73). 532 A racionalidade produtivista dominante é assim temperada por uma racionalidade humanista, agora de novo retomada por vários discursos, nomeadamente pela UNESCO; a educação escolar deve formar pessoas qualificadas para o mundo da economia, mas ela não se destina ao ser humano apenas enquanto agente económico, mas enquanto fim último do desenvolvimento. Assim, a qualificação profissional ou a qualificação mais geral para o trabalho deverá passar a inscrever-se como uma das facetas da qualificação humana global que as escolas e os centros de formação promovem, em cooperação com outras fontes de saber e qualificação. Estas são cada vez mais numerosas e acessíveis, desde a infância e ao longo de toda a vida. A relação de ensino e de aprendizagem evoluiu do modelo "um para muitos" para o modelo "muitos para muitos", desenhando uma enorme multiplicidade de percursos de aprendizagem e uma imensa rede horizontal de meios de ensino e de aprendizagem. Em meados dos anos noventa, esta reposição da ideologia humanista na educação escolar coloca na agenda política a pertinência e a oportunidade da actualização finalista dos sistemas escolares, numa época em que parecia não haver mais finalidades para debater, resolvida que parecia estar a submissão completa da educação escolar quer às finalidades económicas quer à lógica da reprodução das desigualdades sociais. Esta reposição teleológica leva, no entanto, a questionar fortemente o movimento de atracção pela formação geral académica e as reformas curriculares assentes no reforço deste tipo de formação. Já argumentámos que o generalismo crescente do ensino e da formação de nível secundário podem estar a conduzi-lo para uma nova forma de especialização, igualmente selectiva e eminentemente profissional. Sob esta reposição também pode estar escondida uma oportunidade de renovação e de enriquecimento curricular, pela inclusão de uma formação mais atenta à multidimensionalidade inerente ao desenvolvimento humano. O ensino e a 533 formação de nível secundário poderiam ancorar a sua reestruturação como ensino e formação de massas, não já sob o signo de uma ou outra funcionalidade predominante, mas pelo superior objectivo de formar criadores. Criadores de sentido, tanto de um ponto de vista pessoal como sob um prisma social, criadores de cooperação humana, criadores de novas soluções e de novos projectos, empreendedores, criadores de trabalho e criadores na fruição do seu “tempo livre”. Ora, se é verdade que esta perspectiva abre novas oportunidades sociais de associar a preparação para o desempenho profissional com o desenvolvimento do conjunto multifacetado da personalidade dos jovens, ela parece encontrar-se ainda pouco presente nas reformas neoprofissionalistas do ensino secundário na Europa. Aliás, para alguns autores, as reformas desespecializadoras e integradoras que ocorrem no ensino secundário exprimem uma "atitude" profundamente defensiva das políticas escolares, que reformam e inovam para promover um "mínimo denominador comum" para todos os empregos (Enguita,1991). Além de traduzirem uma acomodação escolar face à economia, já evidenciada, estas medidas podem representar ainda um fechamento do campo do ensino e da formação sobre si próprio, reforçando-se sobretudo os saberes escolares tradicionais, disciplinares, académicos e estanques face ao meio envolvente, como se se procurasse responder à fragmentação cultural e das fontes de saber (Martí, 1996) com a revitalização da excelência dos saberes escolares académicos. De certo modo, podemos estar perante um regresso à "velha instituição total" (Arroyo,1991), eleita agora como o principal recurso social disponível para se fazer frente não só às novas fracturas da coesão social, como à incerteza social face ao futuro profissional, à voragem das reestruturações da economia, à falta de novos rumos culturais que as lideranças políticas europeias revelam, à necessidade de manter os jovens afastados durante mais tempo do mercado de emprego e à procura social crescente das mais 534 altas credenciais escolares, um regresso que não questiona a necessidade de rever ou até de abandonar o modelo escolar e de formação industrial tradicional. Num clima de tensão e de uma aparente convergência entre finalidades produtivistas e personalistas, é pertinente interrogar o movimento neoprofissionalista na medida em que ele pode representar sobretudo um processo de desqualificação da educação escolar, ou pelo menos do ensino secundário superior, como capacitador para proporcionar uma qualificação para o trabalho e uma qualificação para a vida. Nesta óptica, como segmento escolar de massas, o ensino secundário pode estar a ser conduzido para eleger a função de parqueamento juvenil como a sua mais relevante função social. A interrogação deve ir ao ponto de procurar perceber se estamos diante de uma mera adaptação técnico-funcional do sistema escolar ao sistema produtivo, mantendo-se a racionalidade produtivista como a racionalidade hegemónica do recente ímpeto reformista do ensino secundário europeu, ou se se está perante um processo de descolagem em direcção a um pós-profissionalismo, como elemento constitutivo de um modelo escolar integrador de outras racionalidades, mais auto-referenciado e mais potenciador do desenvolvimento humano. Catalogado apressadamente por alguns autores como uma iniciativa política da nova direita (Green,1995), o neoprofissionalismo pode conter, nesta hipótese, nos novos percursos do ensino secundário, as possibilidades reais de um muito maior número de estudantes (tendencialmente todos) se apropriarem de uma combinação de saberes e de competências, comummente enunciados como necessários à formação dos cidadãos como "seres sociais e sujeitos políticos", como diz Lucie Tanguy (1985), na medida em que faculte o acesso de todos os jovens a uma cultura comum, em que a cultura técnica e profissional não tenha um lugar de prescrição mas de eleição, uma entre outras vertentes constitutivas da cultura humana, em que 535 se combinem visões do mundo e valores, entre os quais estão necessariamente os que brotam da vida profissional e da actividade empresarial, em que se integrem teoria e prática, instrução e formação, disciplina e projecto, colectivo e pessoal. De facto, as políticas educativas que, face a um novo quadro de selectividade social e de evolução económica, retiram do ensino secundário o paradigma da especialização e da diferenciação escolar como modelos dominantes da sua configuração e não reestruturam simultaneamente o ensino secundário geral académico, o ensino "liberal", para usar o termo inglês, podem traduzir-se, na prática, na subordinação acrítica aos imperativos da produção e da reprodução da ordem social dominante e na manutenção da histórica e profunda dicotomia entre formação geral e formação profissional. O movimento neoprofissionalista, enquanto movimento que recusa o profissional por desnecessário e rapidamente obsoleto, e que se acomoda no geral, ou seja no academismo, recusando ou evitando a fecundação entre geral e profissional, rompendo a reiterada dicotomia, encaminha-se para uma nova especialização e responde a um mandato necessariamente económico, mas fica aquém de um mandato cultural que, assim, apenas se entreabre, impedindo um desenvolvimento mais equilibrado da neoprofissionalismo personalidade equivale a dos indivíduos. neogeneralismo, Nesta medida, ou melhor, neoacademicismo, na senda do movimento "back to basics", propagado do outro lado do Atlântico. Haverá mesmo uma cultura geral sem cultura profissional, pergunta Bertrand Schwartz (1978) ? Não terá chegado o tempo, ou a oportunidade histórica, de ultrapassar e enterrar a velha inscrição de Husén, que correu o mundo e fez a sua época, de que "a melhor preparação profissional é uma boa formação geral"(1989)? Sem se quebrar esta dicotomia, o ensino secundário 536 continuará a dificultar aos jovens uma participação social bem sucedida (Copa e Bentley, 1992). O corpo das hipóteses de investigação Encerra-se esta discussão da problemátiva com uma breve revisitação do corpo das hipóteses atrás enunciadas. À medida que, no palco europeu e na segunda metade do Séc.XX, o ensino secundário se vai lentamente tornando um ensino de massas, acentua-se inevitavelmente a sua função propedêutica de estudos posteriores. A atracção pela formação geral, os movimentos de desespecialização e de integração curricular no ensino e na formação ao nível secundário inscrevem-se, assim, numa evolução historicamente situada das funções sociais mais relevantes desempenhadas pelo ensino secundário. De um ensino propedêutico de elites, o ensino secundário evoluiu para um ensino propedêutico de massas, tornando-se uma via de passagem para o ensino pós-secundário e para o ensino superior, via essa onde se filtra não tanto quem continua e quem termina o ciclo secundário, mas cada vez mais que tipo de continuidade poderá cada um estabelecer, para além do nível secundário. Impera, assim, no ensino secundário europeu, no fim do Séc.XX, a racionalidade inerente ao predomínio da função propedêutica de um ensino de massas. A esta racionalidade dominante e bem articulada com ela, deve-se aduzir ainda o predomínio da racionalidade económica e produtivista. Num contexto social mundial novo, em que as escolas nacionais e locais são cada vez mais instituições educativas da sociedade mundial, as reformas educativas empreendidas em cada país europeu e aqui analisadas integram-se num projecto reformador mais global, numa dinâmica global regulada por 537 ideologias veiculadas a nível mundial por organismos e agências internacionais, redes de peritos, publicações, estudos e estatísticas, correntes ideológicas estas que transmitem uma feição homogeneizante e a perspectiva de que os sistemas educativos nacionais têm de evoluir e de se adaptar aos novos requisitos da economia e do novo modelo produtivo póstaylorista emergente. Cremos também que a similitude e a simultaneidade das reformas em apreço, por outro lado, correspondem a um fenómeno de convergência retórica entre os sistemas educativos nacionais, que se apropriam politicamente, de modo localmente diverso, do novo mandato da economia e das novas "directivas" do sistema educativo mundial. Reiteramos, por isso, a hipótese que havíamos formulado em último lugar, de que os decisores políticos e os parceiros sociais nacionais agem sob a orientação desta ideologia global, que transformam em retórica política reformadora do sistema educativo nacional, processo este em que se transcendem a realidade local e os seus problemas específicos, mas em que se legitima a acção do Estado-nação. Faz parte deste processo uma efectiva apropriação e uma intransponível reinterpretação nacional e local dos referidos mandatos ou directivas, o que explica em boa parte a diversidade de medidas de política nacionais que coexistem com as referidas similitude e simultaneidade e que nelas se integram. O neoprofissionalismo surge, neste âmbito, como uma poderosa tecnologia social, adoptada e seguida pela generalidade dos actores sociais associações empresariais e sindicais, associações de pais, professores, peritos do campo da educação - com vasta aplicação na Europoa dos anos noventa, ao serviço da criação de um mais amplo mercado escolar de ensino e de formação pós-obrigatória, capaz de suscitar, atrair e acolher uma procura social em expansão, afastada que está do acesso ao mercado de emprego. Cria-se por esta via um ensino secundário de massas e este, em qualquer das suas modalidades -escolar, dual e não-formal -, cada vez mais 538 próximas entre si, apresenta-se como uma larga estrada de passagem para um ensino superior de massas. Este parece ser o mais relevante serviço social que o movimento e a ideologia neoprofissionalista prestam à economia: promover um ambiente escolar de ajustamento seja ao novo mandato económico seja à procura social. Mantemos, por tudo isto, a hipótese de que o mandato social que preside a estas reformas é de raíz económica, embora a sua concretização pouco tenha que ver com a chamada adequação imediata do sistema escolar às novas necessidades concretas de emprego, pela simples razão que já não é através da promoção de uma formação profissional especializada de preparação para o emprego que o sistema escolar serve a economia, a este nível etário. Antes de mais, as reformas neoprofissionalistas subordinam-se à situação de desemprego estrutural e de desemprego juvenil, ao cortejo de disfuncionamentos existentes no mercado do primeiro emprego e à retórica avassaladora do pós-taylorismo e do modo de produção flexível, na esteira do tradicional e omnipresente técnico-funcionalismo, que continua a ser tomado como o mais importante princípio regulador entre e educação e a sociedade. Apesar de aparentemente ser muito pouco eficaz este ajustamento do sistema escolar às "necessidades da economia", uma vez que já não se traduz tanto na preparação de profissionais qualificados, é historicamente compreensível que a retórica neoprofissionalista atribua a esse ajustamento o seu fundamento principal. No entanto, a conclusão provisória que formulamos, num primeiro lanço, é a de que estamos perante um ajustamento tipicamente escolar, direccionado a satisfazer tanto a procura social crescente como a necessidade mais imediata do sistema produtivo, a saber, manter os jovens por mais tempo afastados do mercado de emprego e renovar os processos de selecção escolar, em ordem à adaptação meritocrática à nova hierarquia dos empregos. 539 Num segundo lanço e uma vez que o ajustamento com a economia e com a procura social se faz em boa parte pelo reforço "generalista" dos planos de estudo e pelo prolongamento do afastamento dos jovens do mercado de trabalho, advogamos também que este mesmo ajustamento compreende também um progressivo “afastamento” entre o sistema escolar e o sistema produtivo. De facto, as reformas neoprofissionalistas traduzem-se em processos de “afastamento” progressivo entre as escolas e as empresas, ao mesmo tempo que se reforça, de modo só aparentemente paradoxal, em vários países, a intervenção dos empregadores e dos trabalhadores na orientação das políticas de ensino e de formação. O distanciamento entre escolas e empresas, ao ampliar-se aparentemente, não se traduz, porém, em um desfasamento entre educação e economia ou em distanciamento, por parte do sistema escolar, do novo mandato económico; o referido “afastamento”, na nossa hipótese, surge exactamente como o rigoroso cumprimento desse mandato, como a função social mais actual e relevante do ensino e da formação de nível secundário, o novo modo de aproximação entre sistema escolar e sistema produtivo. Por outro lado e no que se refere à relação entre educação geral e educação profissional, o neoprofissionalismo equivale as mais das vezes ao reforço da formação geral académica, mantendo-se a dicotomia curricular entre ensino geral e ensino profissional, enquanto obviamente este último perde espaço e relevância. Os novos currículos que emanam destas reformas moldam-se mais e mais à procura individual de ensino e de formação e nesse mesmo processo, na matriz ordenadora do ensino e da formação ao nível secundário, vai ficando cada vez mais longe e aparentemente esquecido o referente das necessidades de qualificação oriundas do mercado de trabalho. Ora, este distanciamento é precisamente um dos modos do campo 540 do ensino e da formação responderem à vertente técnico-económica do novo mandato social. O ensino secundário geral académico parece constituir, qual último recurso, a vertente mais segura e menos "reformada" do ensino secundário, uma espécie de percurso necessário de um novo ensino secundário de massas, tendencialmente universal, o único percurso que é tomado como capaz de proceder à filtragem dos jovens para as várias modalidades de estudos póssecundários e superiores. Reforçamos, por isso, a nossa hipótese de que o ensino secundário geral académico deve ser lido como uma via especializada de ensino e de formação, pois, em resumo, é sendo mais “geral” que o ensino e a formação de nível secundário são mais “profissionais”. Será, assim, oportuno procurar saber até que ponto existe na actualidade um reequilíbrio entre finalidades do nível secundário e, caso exista, saber até que ponto se está a reforçar ou limitar a função educativa multidimensional dos jovens que frequentam o ensino e a formação a este nível. Pode suceder, e é isso que também deve ser verificado, que o novo modo de especialização, segundo o figurino do ensino geral académico (o liceu), reforce a selectividade deste mesmo nível de ensino, em função dos percursos posteriores, pós-secundários e superiores. O novo quadro de especialização em torno do eixo do ensino geral académico atrai, por um lado, todos os segmentos para o seu figurino, criando no limite um só percurso para o ensino secundário de massas, repleto de diversidade e de flexibilização internas, e pode, por outro, atirar os segmentos minoritários e mais direccionados para a preparação para o ingresso imediato no trabalho, que ainda sobrevivam a este nível, para uma ainda maior desvalorização e estigmatização sociais. 541 Aquilo que se auto-intitula frequentemente como um retorno necessário ao que é escolarmente essencial e fundamental, à tão difundida formação de base sólida e polivalente, em oposição à instabilidade dos empregos e das profissões, e em consonância com a flexibilidade laboral e com a formação para a adaptabilidade, deve ser interrogado não só como um processo de acantonamento das propostas educativas nos saberes disciplinares gerais e académicos, mas também como processo de liofilização do que se podem considerar as traves mestras educacionais ou a multidimensionalidade da educação. Pode suceder que as razões que mobilizam a escolha do mais geral, do mais polivalente e do mais flexível pouco tenham que ver com motivações educacionais, cujas propostas e processos educativos não se chegam sequer a questionar, mas com meras adaptações funcionais do sistema escolar, profundamente tecnocráticas na sua origem, na sua formulação e nas suas finalidades, modos de legitimação de uma ordem social existente. No entanto, emerge também, neste processo de reformas dos planos de estudos e dos currículos, na medida em que que cresce a opcionalidade e a individualidade nos percursos de formação, uma neodiversificação curricular, agora colocada mais ao serviço das escolhas dos alunos e menos das necessidades do mercado de emprego. As escolhas passam a referir-se a um leque de opções, onde tanto há lugar para as componentes mais académicas, como para as componentes tecnológicas e profissionais e para um contacto mais estreito com o mundo envolvente, o que dota as propostas curriculares de uma maior multidimensionalidade educativa. Ora, cremos que este investimento na “personalização” curricular também vai de encontro a um mandato cultural que historicamente atribui ao sistema de educação escolar a função da promoção do desenvolvimento humano, acima e antes de qualquer outra função social, inclusivamente a produtiva. 542 Verifica-se, deste modo, que o ensino secundário poderá estar simultaneamente a encaminhar-se para uma maior auto-referenciação, regulando-se mais por uma ideologia educacional que assenta no desenvolvimento da diversidade humana e cultural e que prossegue também a finalidade da formação multidimensional dos jovens, em ordem ao exercício livre, autónomo e criativo dos mais diversos papéis sociais. Esta perspectiva, a vingar e ao ganhar terreno no plano da estruturação das políticas, poderá vir a estabelecer novas e importantes tensões dentro do ensino e da formação ao nível secundário, dado ela entrar frequentemente em rota de colisão com os mandatos económicos e instrumentais, em geral, na medida em que estes tendem a centrar-se na especialização (ainda que esta se chame ensino “geral”) e na selecção. Em que medida é que este mandato cultural também está presente nas reformas em curso? Como é que os diversos actores sociais locais o formulam e valorizam? Não será a flexibilidade curricular um mero ajustamento à flexibilidade produtiva, que ocorre actualmente na reestruturação da economia de mercado? Não será a individualização curricular uma outra face da individualização crescente nas relações laborais, em que se transferem muitas das tensões e conflitos entre grupos e estruturas para a esfera individual? A nossa hipótese é esta: o mandato cultural está presente, a par e em conflito com outros referentes, sobretudo com o mandato económico, mas a sua visibilidade política é escassa e é ainda muito ténue a sua tradução em medidas de política nas reformas em apreço. De facto, é também possível desde já argumentar que o tipo de políticas seguidas, de especialização em torno do ensino geral académico, ainda é muito escassamente capaz de acolher, respeitar e desenvolver a diversidade social, a multiplicidade de experiências pessoais e a variedade de aspirações e expectativas sociais dos jovens do grupo etário 16-18/19 anos. Ao liofilizar o ensino secundário em torno do referencial do ensino geral académico, as políticas educativas podem estar apenas a cumprir uma nova funcionalidade, que pouco mais 543 será do que uma velha funcionalidade agora revisitada. Assim, mais do que a orientar-se decididamente para outro tipo de missão social e outro modo de organização escolar, mais centrados sobre o desenvolvimento humano, que escapam decididamente a uma matriz e a uma prisão funcionalista, o ensino e a formação secundários na Europa atravessam uma crise tanto teleológica como estrutural, que se traduz pela manifestação de um novo foco de tensões entre finalidades e modelos e pelo seguidismo em relação à evolução da economia e das empresas. Cruzam-se, assim, nas recentes reformas do ensino secundário na Europa, ideologias e mandatos sociais divergentes e conflituantes, uma pluralidade de modos e de tempos, degladiam-se vontades nacionais e mandatos mundiais, constroem-se representações fantasiosas da realidade do trabalho e da escola, que revelam no seu conjunto um quotidiano com um forte sabor a incerteza, típico dos tempos de transição, e um cheiro acre a crise cultural. Os debates sobre estas matérias continuam a alargar-se e a controvérsia é muito grande. A reflexão e a análise sobre o sentido e as prováveis consequências das medidas de política que analisamos é, particularmente no nosso país, muito escassa. A acção política dos governantes europeus parece limitar-se, regra geral, ao esperar para ver, como se este fosse o cenário mais sensato, como se à acção política em educação mais não restasse do que reagir "a posteriori" ao que a sociedade, a economia ou este e aquele parceiro social reclamam da educação, ou seja, como se a acção política em educação e formação não pudesse também ser criadora de sentido e fomentadora de civilização, de um modo pró-activo. Admitimos, no termo desta incursão teórica, que se reabre, no entanto, na fase de transição cultural em que vivemos, início de um novo século, um importante e novo ciclo de debate (um debate que tem sido sempre recorrente ao longo da sua história) sobre as finalidades do ensino secundário, as suas racionalidades preponderantes e as novas tensões 544 entre si, quando parecia já não haver outro caminho socialmente útil que não fosse o da sua submissão crescente às finalidades produtivas e à reprodução das desigualdades sociais. Este processo de religitimação social e teleológica do ensino e da formação ao nível secundário parece ser um processo lento, complexo e conflituoso. É provável que se, mantenha, no futuro próximo, o clima de inquietação acerca da capacidade genérica do sistema de ensino e de formação interpretar e desenvolver eficientemente as "novas competências" sociais e a humanidade da pessoa que mora em cada jovem aluno, sob o peso de uma herança histórica muito pesada, em que um certo modo de produção escolar se enleava pacífica e inquestionavelmente com um certo modo de produção económica, sempre sob o manto imprescindível de uma teleologia construída de fora para dentro do acto humano de ensinar e de aprender. Concluída a revisitação deste corpo de hipóteses, dirigimo-nos agora para uma segunda abordagem empírica que teste a sua pertinência e relevância explicativa em relação aos fenómenos em análise. Tal abordagem foi realizada através da aplicação de um inquérito junto de alguns interlocutores nacionais significativos, nos nove países europeus em estudo. De facto, crêse que os sentidos que, em termos práticos e concretos, as medidas de reforma educativa aqui em análise tomam, dependem em grande medida do modo como delas se apropriam os principais actores sociais envolvidos. Ou seja, como agem perante as novas orientações normativas os diversos agentes sociais locais, com destaque para os jovens, os pais, os professores, os empresários, os sindicatos e os peritos. O modelo de questionário apresenta-se em anexo. Os principais resultados desta fase da investigação apresentam-se de seguida. 545 Capítulo 7 O inquérito e os seus resultados Apresentam-se agora os principais resultados da aplicação do inquérito sobre a evolução recente do ensino secundário na Europa. Conforme já ficou descrito no capítulo onde se explicita a metodologia, aplicou-se um questionário, em nove países europeus, a um conjunto de actores sociais mais ou menos envolvidos nas recentes reformas empreendidas no ensino e na formação àquele nível de ensino, a saber, confederações patronais e sindicais nacionais, associações de pais nacionais, sindicatos de professores, membros de partidos políticos, peritos participantes nas reformas e investigadores ligados a centros de investigação envolvidos nas reformas. Este inquérito pretendia conhecer, para lá da descrição e fundamentação oficial dos Ministérios da Educação dos vários países, a opinião de um conjunto muito significativo de actores sociais acerca das reformas do ensino secundário empreendidas pelos vários governos. A audição destes actores, situados numa grande diversidade de campos ideológicos e políticos, é capaz de nos dar a conhecer a diversidade e a conflitualidade de posicionamentos face às reformas em análise. Duas questões centrais são objecto desta investigação e, portanto, do questionário aplicado: por um lado, a simultaneidade e a similitude com que as reformas se apresentam no conjunto dos países europeus, evidenciando a acção do sistema educativo mundial, e, por outro, a atracção pela formação geral académica e a desespecialização que, em boa parte, caracterizam estas reformas. Procurase, agora, estabelecer um diálogo entre os contributos teóricos mobilizados, as hipóteses formuladas e as respostas obtidas, o que implica que se retome, a cada passo, cada uma das questões centrais da investigação. 546 Recolheram-se 67 respostas distribuídas, por país e por tipo de actor social, do modo que se segue: Quadro 7.1 Distribuição dos respondentes por país e segundo o tipo de actor social País Nº de respostas Sindicato Associação Confederações Confederações Partidos / Peritos recebidas de Professores de Pais Patronais Sindicais Força Política (1) (1) Dinamarca 5 1 --- 2 1 --- 1 Espanha 8 3 1 --- --- 1 3 Finlândia 8 1 2 1 --- 1 3 França 8 2 2 --- 1 --- 3 (2) (3) Holanda 10 1 1 3 5 --- --- Itália 7 2 --- 1 --- 1 3 Noruega 7 1 1 1 1 1 2 Suécia 4 1 --- 1 2 --- --- Suíça 10 2 --- 2 2 2 2 12 6 17 (1) Total 67 (1) 14 7 11 (1) Uma das respostas não foi tratada porque não respeitou o questionário proposto. (2) Na Holanda contabiliza-se duas vezes a resposta da Organização COLO - Association of National Bodies for Vocational Training, instância de parceria social que reúne associações patronais e sindicais e que foi tratada quer como associação patronal quer como associação sindical, aliás o modo como ela própria se apresenta. (3) Uma das confederações sindicais é a LAKS - Federação Nacional de Estudantes que, apesar de excepcional, se optou por incluir dentro desta categoria mais geral. Tendo em conta que o número de respostas desejado oscilava entre oito e catorze, por país, e que foram efectivamente distribuídos 103 questionários,o número de respostas recolhidas (67) e tratadas (66) representa um retorno de 65% dos questionários e fica muito próximo do universo potencial, no seu limiar inferior (72), ou seja, 8 por país. Na Suécia e na Dinamarca houve uma real dificuldade na obtenção de respostas, em ambos os casos devido ao fraco envolvimento do contacto ou "pivot" nacional. 547 Quadro 7.2 Questionário enviados e recebidos, por país e por actor social Sindicato de Confederação Confederação Associação PAÍS Professores Sindical Patronal de Pais Env. - Rec. Env. - Rec. Env. - Rec. Partido / Peritos Força Política Total p/ País Env. - Rec. Env. - Rec. Env. - Rec. Env. - Rec. 1 1 Dinamarca 2 1 2 1 2 2 __ __ 1 __ 4 1 11 5 Espanha 3 3 2 __ 2 __ 2 1 2 1 3 3 14 8 Finlândia 1 1 1 __ 1 1 2 2 3 1 3 3 11 8 França 2 2 2 1 1 __ 3 2 __ __ 3 3 11 8 Holanda 3 1 5 5 3 3 2 1 __ 13 10 Itália 2 2 2 __ 2 1 1 __ 1 1 3 3 11 7 Noruega 1 1 1 1 1 1 1 1 2 1 2 2 8 7 1 2 1 __ 8(4) 4 2 2 2 2 2 2 Suécia (4) Suíça 2 (3) __ 2 __ __ (3) __ 3 2 5 2 16 10 1 Total p/ actor social 16 14 17 12 14 11 1 13 7 12 6 23 17 103 67 (1) Uma das respostas não viria a ser tratada porque não respeitou o questionário proposto. (2) Contabilizou-se duas vezes a resposta da Organização COLO (Patronal e Sindical) (3) O "pivot" nacional não forneceu elementos sobre partidos políticos e peritos a inquirir por entender, apesar dos nossos esforços, que não há nenhuma personalidade a destacar num processo que ele considera que foi construído pelos actores sociais (4) O "pivot" nacional não enviou a lista das entidades e personalidades a quem o questonário foi distribuído por si mesmo, na Suécia (em princípio, oito no total) . Quanto ao tipo de respondentes, verifica-se que há uma distribuição razoavelmente homogénea, com excepção dos membros das associações de pais e de partidos e de forças políticas directamente envolvidos nas reformas, cuja adesão foi mais difícil de alcançar, sobretudo devido à sua falta de disponibilidade e ainda devido ao facto de ter sido impossível percorrer cada um dos países a recolher as respostas ou até a realizar entrevistas presencialmente. No entanto, esta conclusão deve ser temperada pelo facto de alguns destes políticos terem respondido como peritos, pois em alguns casos já não se encontram a exercer actualmente as mesmas funções desempenhadas ao tempo da concepção e do lançamento das reformas. O nível de respostas, em termos absolutos, é mais elevado para os peritos e os 548 sindicatos de professores, seguindo-se as confederações sindicais e patronais. Quanto à qualificação dos respondentes para participarem neste estudo, verifica-se que a grande maioria dos actores que produziram a sua reflexão (92%) tinham efectivamente participado nos diversos processos de reforma em análise, havendo 64% que assinalam terem tido mesmo uma participação "muito activa" nas reformas nacionais. Entre estes destacam-se os peritos (15 em 17) as confederações patronais (8 em 10), os partidos políticos (4 em 6) as confederações sindicais (8 em 12). Os sindicatos de professores (6 em 14) e as associações de pais (1 em 7) assinalam uma participação menos activa, o que, pelo menos no primeiro caso, não deve significar ausência de participação. A intervenção dos actores consistiu sobretudo na participação em seminários, debates e conferências (35 respondentes), na participação em grupos de trabalho que elaboraram as propostas de reformas (27 respondentes) e na elaboração de pareceres (24 respondentes). Outros intervieram através dos processos de negociação entre o governo e os parceiros sociais, enquanto dirigentes de organizações sociais, outros participaram muito activamente como membros dos gabinetes dos ministros que lançaram as reformas e outros ainda participaram como animadores de debates nas escolas. Para a grande maioria destes actores, as reformas empreendidas, na sua fase de concepção e de construção normativa, incorporaram os seus contributos específicos (83%), sendo muito residual o número dos que consideram que pouco ou nada foi tido em consideração - 8 casos, sendo 4 deles sindicatos e 3 deles associações de pais. Segundo o conjunto dos respondentes, os sectores das sociedades nacionais que mais influenciaram as reformas em estudo foram os 549 Ministérios da Educação, os seus ministros e os governos (35%), os representantes do patronato e dos sindicatos (20%) e os partidos políticos (13%). A intervenção dos restantes actores não é valorizada de modo significativo. Em síntese e quanto à caracterização dos respondentes constata-se que o número de respostas obtidas é bastante razoável, que na Dinamarca e na Suécia o número de respostas é escasso, que os actores sociais que respondem são muito qualificados para o fazerem, o que permite afirmar como expectável um alto grau de credibilidade nas respostas dadas, e que estes actores consideram que as reformas em apreço incorporaram os seus contributos específicos. Por outro lado, verifica-se que os grandes mentores e motores das reformas educativas em apreço foram os Ministérios da Educação, no quadro de medidas de política estruturadas centralmente, registando-se também um significativo nível de envolvimento dos parceiros sociais tradicionais, patronato e sindicatos. As motivações e os objectivos das reformas Esta parte do questionário procura indagar a opinião dos actores sociais envolvidos nas reformas acerca das motivações e dos objectivos que orientaram estas reformas. O nosso propósito é o de desvendar a percepção destes diferentes tipos de actores sobre as principais motivações que subjazem aos empreendimentos reformadores ao nível do secundário. Seis questões foram formuladas. As cinco primeiras, de um modo recorrente e talvez excessivo, procuram, passo a passo, decantar uma opinião suficientemente reflectida sobre o lastro de motivações e de objectivos que sustentaram as iniciativas de política educativa em apreço. A ênfase neste tipo de perguntas prende-se também com a necessidade, central na economia da investigação, de confrontar as percepções dos actores sociais 550 com a retórica dominante acerca das motivações que sustentaram as decisões políticas nacionais em apreço. A análise das respostas dadas deve, pois, ser apresentada retomando o encadeado que une as perguntas. Como vimos, sobressaem entre as motivações destas reformas do nível secundário na Europa, no fim dos anos oitenta e na primeira metade dos anos noventa, o ajustamento técnico-funcionalista dos sistemas educativos quer à evolução da economia quer à evolução da procura social do ensino secundário. Constituem-se, através destas reformas neoprofissionalistas, amplos e novos mercados de ensino e de formação, traduzidos sobretudo no alargamento e na criação de uma panóplia de instrumentos e de programas que amarram os jovens ao terreno da educação e os afastam, por mais algum tempo, da disputa dos empregos e do mundo das empresas. Por outro lado, uma retórica "global" que enfatiza a emergência de um novo modelo de produção, o pós-fordismo, e o predomínio de uma economia de mercado globalizada e transnacional é igualmente apontada como responsável por uma fatia significativa do esforço legitimador das medidas de política em análise. Esta ideologia global, que é transfigurada em retórica legitimadora das reformas educativas, afecta as representações não só dos partidos políticos mas também dos representantes dos empregadores, dos sindicatos, das associações de pais, dos centros de investigação e dos peritos, actores que são chamados a ter uma participação cada vez mais activa nas mudanças protagonizadas pelos poderes políticos. Ao mesmo tempo, estas medidas promovem um ajustamento escolar face à explosão da procura do ensino secundário superior, na medida em que se diversificam as oportunidades de ensino e de formação inicial e na medida em que a oferta se orienta em direcção à procura, procurando dar satisfação às principais orientações dos fluxos desta mesma procura. As reformas 551 podem, assim, ser analisadas como iniciativas políticas que traduzem a necessidade dos governos tecerem tecnologias sociais seja para enfrentar os processos de reestruturação da economia capitalista na Europa, em particular o desemprego juvenil em crescimento, a flexibilidade laboral e a turbulência profissional, seja para satisfazerem a procura social. Neste processo vai-se produzindo uma lenta e progressiva acentuação da função propedêutica do ensino secundário (Trow, 1978), o que, como pudemos explicitar, se repercute tanto no conteúdo dos perfis de formação que são propostos, que se "generalizam" e se aproximam do modelo do ensino secundário académico tradicional, como na desvalorização social de todos os percursos de ensino e de formação cujas características se afastem da função de ponte para estudos subsequentes (Verdier, 1995). Esta “generalização” deve ser lida também como a expressão de um novo modo de especialização do ensino e da formação de nível secundário, agora ao serviço da passagem e da filtragem dos jovens para a continuação de estudos. Por outro lado, ficou também formulada a hipótese de que estas reformas se encontram, em boa parte, entre si, tanto na sua similitude como na sua simultaneidade, fruto da pressão do sistema mundial sobre os sistemas de decisão nacionais. De facto, existe um intenso movimento internacional, que deflui dos países economicamente mais poderosos e que é veiculado mormente por organismos mundiais e por redes de peritos, que é comandado por uma ideologia macroeconómica de base transnacional e por uma retórica resplandecente que lhe está associada, movimento este que formula um paradigma dominante na relação funcional entre educação e economia e que provoca um efeito isomórfico e mimético na formulação das políticas de ensino e de formação nos espaços nacionais. O movimento reformador neoprofissionalista que analisamos é, a esta luz teórica, uma construção do sistema educativo mundial. 552 Finalmente, estas reformas também foram interpretadas como aproximações dos sistemas de ensino e de formação a uma finalidade cultural que os governos, os actores sociais nacionais e os organismos internacionais atribuem crescentemente aos sistemas educativos. Subjacente às medidas de política aqui analisadas estará também presente, para além de um efeito de acomodação face à economia e de ajustamento face à procura, a necessidade de dotar os sistemas de ensino e de formação de uma maior capacidade de fomentar nos jovens o desenvolvimento multidimensional das suas potencialidades humanas, o que é traduzido geralmente pelo reforço da formação geral académica e da opcionalidade curricular. Tal necessidade (e não tal concretização) é considerada, na economia desta investigação, como parte integrante do mandato social que se formula para os sistemas educativos, de tipo eminentemente cultural. Enunciamos, no corpo das hipóteses, que era essencial saber como é que os actores sociais eram permeáveis e valorizavam este mandato, a par dos outros, já descritos. A análise das respostas realiza-se sob este manto de hipóteses. A sua verificação inicia-se pela constatação das principais razões que, na óptica de cada actor social, levaram os responsáveis políticos a desencadear as reformas do ensino e da formação ao nível secundário. O Quadro 7.3 expressa os resultados constantes nas respostas dadas. 553 Quadro 7.3 Principais razões que levaram os responsáveis políticos a desencadearem as reformas ÂMBITO "Nada relevante" e "pouco relevante"(1) "Relevante" e "muito relevante"(1) A razão mais relevante entre as "muito relevantes"(1) 2 - Formação mais polivalente para os jovens de 16-19 anos 17 47 10 5 -Estamos diante de um ensino secundário de massas 26 36 3 8 -Sólida formação geral para todos os cidadãos 19 45 8 14 -Ampliar possibilidades de escolha dos jovens 11 52 8 _____ _____ 29 9 55 6 4 - Desemprego juvenil 33 31 1 6 - Reter no sistema escolar durante mais tempo 37 25 1 7 - Divisão internacional do trabalho 52 9 0 13 - Pressão dos empregadores 35 28 3 16 - Fraca preparação para o trabalho 15 49 2 19 - Evolução do mercado de emprego 24 36 2 TIPO Sócio-Cultural Respostas aqui Subtotal 3 - Evolução da economia Económico 15 Subtotal Político 9 - Ocultar problemas sociais 55 7 0 . Geral 10 - Ineficiência do Ensino Técnico e Profissinal 23 38 5 12 - Reduzir hierarquia geral - profissional 16 46 2 15 - Diferir idade das escolhas escolares e profissionais 30 33 1 17 - Melhor formação profissional e sólida formação geral 22 39 2 18 - Investimentos no ensino técnico e profissional não se justificam 37 21 0 20 - Ensino e formação secundários já não preparam técnicos qualificados 37 16 1 .Isomorfism 1 - Aproximar os sistemas de ensino da Europa 25 39 3 Internacional 11 - Recomendações internacionais 44 17 1 _____ _____ 15 .Educativo Subtotal (1) Número de vezes que este tipo de apreciação foi feita Como se pode constatar, os vinte items da pergunta estavam agrupados em três grandes grupos, as razões de ordem sociocultural, as razões de ordem económica e as razões de ordem política. Dentro desta última, ainda separámos aspectos de política geral de aspectos relacionados com as políticas educativas e escolares e os aspectos relativos ao isomorfismo 554 internacional, retomando assim o quadro de análise que tínhamos esboçado. Por comodidade de leitura, reunimos em apenas dois grupos as apreciações negativas (nada relevante e pouco relevante) e as positivas (relevante e muito relevante) e incluimos também neste mesmo quadro a escolha da principal razão, entre as vinte assinaladas. Os resultados apontam para uma conclusão geral: os inquiridos consideram que as razões de ordem sociocultural sobredeterminaram o desencadear das reformas, destacando-as bem das razões de ordem política e económica, estas valorizadas de modo idêntico entre si. Além de cada uma das razões de ordem social e cultural reunir sempre um grande número de apreciações positivas, elas recolhem também o maior número de escolhas da "razão das razões", 29 num total de 59 respostas. Entre estas razões de ordem sociocultural, ganha especial relevância "a necessidade de se promover uma formação mais polivalente para os jovens do grupo etário 16-19 anos" e "o facto de as sociedades contemporâneas requererem uma sólida formação geral a todos os cidadãos", isto é, os actores sociais interrogados opinam que as políticas reformadores empreendidas estão sustentadas na necessidade dos sistemas educativos proporcionarem agora uma formação mais geral e polivalente a todos os jovens, como resposta aos novos desafios sociais actuais. Entre as razões de ordem económica, afloram como mais valorizadas as que se referem aos novos requisitos das empresas em técnicos altamente qualificados (o aspecto tido como mais relevante, fora da área sociocultural), a incerteza e a imprevisibilidade da evolução do mercado de trabalho e ainda a necessidade de preparar melhor os jovens para o trabalho. Factores como o desemprego juvenil, a necessidade de reter os jovens no sistema educativo durante mais tempo e a forte pressão dos empregadores para mudar a "res" educativa recolhem mais considerações negativas que 555 positivas. O que de todos é considerado menos relevante é o item que atribui a reforma às exigências da divisão internacional do trabalho no seio do sistema capitalista ( 15% de referências como “relevante” e O referências, em termos de “muito relevante”). Entre as motivações de ordem política, é desde logo recusada pelos vários actores sociais a ideia de que as reformas empreendidas pelos governos visaram ocultar outros problemas sociais e políticos do país (apenas 11% o considera relevante). No que se refere às políticas de ensino e formação, os respondentes atribuem a sua sustentação à ineficiência do ensino secundário técnico e profissional que existia antes no país (62%), à necessidade de reduzir a hierarquia entre a formação geral e a formação profissional, nas formações pós-obrigatórias (74%), à perspectiva de que a melhor formação profissional é uma sólida formação geral (64%). Finalmente, na vertente do isomorfismo internacional, os respondentes valorizam como relevante o facto de os governos nacionais pretenderem actualizar o sistema educativo nacional, aproximando-o mais dos seus congéneres europeus (61%), embora ao mesmo tempo não considerem relevante a influência das recomendações dos organismos internacionais (OCDE, UNESCO, ...) sobre a lançamento das reformas (28%). A esta questão voltaremos mais adiante. O questionário previa, numa tentativa de melhor conhecer o pensamento dos respondentes, que estes fundamentassem livremente e pelas suas próprias palavras a sua escolha de um item, entre os vinte listados, exactamente aquele que considerassem mais relevante, entre os já assinalados como "muito relevantes". A análise destas respostas abertas é, por isso, muito importante. Enquanto que, para as escolhas relacionadas com as razões de ordem económica e de ordem política, a explicitação dos porquês não acrescenta nada de novo em relação à preferência atribuída, o mesmo não sucede para a selecção dos aspectos relacionados com as motivações de 556 ordem sociocultural, aliás os que merecem mais comentários dos inquiridos. A necessidade de promover uma formação mais polivalente (item 2), o facto das sociedades contemporâneas exigirem uma sólida formação geral a todos os cidadãos (item 8) e a necessidade de ampliar e diversificar as possibilidades de escolha dos jovens (item 14) são escolhas fundamentadas com os seguintes argumentos: (i) para além de saberes, a escola deve desenvolver aptidões e atitudes, chaves indispensáveis para entrar numa sociedade que exige autonomia, flexibilidade, mobilidade e um sentido acrescido das responsabilidades, um mundo complexo e interconectado; (ii) a incerteza do futuro do mercado de trabalho, o aumento da procura, por parte dos empregadores, de pessoal mais qualificado, bem como a necessidade de dotar os jovens trabalhadores com a capacidade de serem reconvertidos rapidamente, diante dos processos de reestruturação e de reconversão empresarial; (iii) a necessidade de evitar a especialização precoce, de aumentar as possibilidades de escolha por parte dos jovens, no fim do secundário, e de não provocar a segregação social, promovendo antes a igualdade; (iv) a necessidade de satisfazer uma nova procura social, muito intensa e generalizada, um nível secundário de massas; (v) a necessidade de melhorar a reputação do ensino ténico e profissional e de o tornar mais atractivo, além de responder a requisitos de formação mais abrangente, oriundos do ensino superior politécnico; (vi) responder à necessidade de uma aprendizagem ao longo de toda a vida. Esta leitura permite compreender, por um lado, como as razões que fundamentam as preferências estão entrelaçadas umas nas outras (culturais, económicas, sociais e de política educativa) e como é forçado separá-las e, por outro, que as mutações nas sociedades, nas economias e nas empresas constituem o núcleo das motivações que, ao nível do discurso dos actores sociais, sustentaram as reformas. A desagregação destas respostas segundo o tipo de actor social impõe 557 algumas considerações. Tomamos como referente o Quadro 7.4, que segmenta as razões mais relevantes entre as muito relevantes. A primeira é a de que só as confederações patronais é que atribuem maior relevância a factores não contidos na categoria sociocultural, dando uma leve primazia aos factores de ordem económica. Os sindicatos de professores, as confederações sindicais e os peritos são os que mais valorizam a componente da política educativa, embora sempre em segundo lugar, após a componente sociocultural. Quadro 7.4 Aspectos mais relevantes (entre os “muitos relevantes”) que levaram os responsáveis políticos a desencadear as reformas, segundo os actores inquiridos 558 AMBITO TIPO Respostas aqui A razão mais relevante entre as "muito relevantes" Sindicato Associações Confede- Confede- Partidos Peritos de de rações rações Professores Pais Patronais Sindicais 10 1 2 1 2 1 3 3 1 1 --- --- --- 1 Sócio-Cultural8 -Sólida formação geral para todos os cidadãos 8 1 1 --- 2 1 3 14 -Ampliar possibilidades de escolha dos jovens 8 2 --- 2 1 2 1 29 5 4 3 5 4 8 3 - Evolução da economia 6 1 --- 2 --- 1 2 4 - Desemprego juvenil 1 1 --- --- --- --- --- 6 - Reter no sistema escolar durante mais tempo 1 --- --- --- --- --- 1 2 - Formação mais polivalente para os jovens de 16-19 anos 5 -Estamos diante de um ensino secundário de massas Subtotal 0 --- --- --- --- --- --- 13 - Pressão dos empregadores 3 --- --- 1 2 --- --- 16 - Fraca preparação para o trabalho 2 --- --- 1 1 --- --- 19 - Evolução do mercado de emprego 2 --- 1 --- --- --- 1 15 2 1 4 3 1 4 9 - Ocultar problemas sociais 0 --- --- --- --- --- --- 10 - Ineficiência do Ensino Técnico e Profissinal 5 2 --- 1 2 --- --- 12 - Reduzir hierarquia geral - profissional 2 --- 1 --- --- --- 1 15 - Diferir idade das escolhas escolares e profissionais 1 1 --- --- --- --- --- 2 --- --- --- --- --- 2 18 - Investimentos no ensino técnico e profissional não se justificam 0 --- --- --- --- --- --- 20 - Ensino e formação secundários já não preparam técnicos qualificados Económico 7 - Divisão internacional do trabalho Subtotal Político .Geral .Educativo 17 - Melhor formação profissional e sólida formação geral 1 --- --- --- --- --- 1 .Isomorfism 1 - Aproximar os sistemas de ensino da Europa 3 --- --- 1 1 1 --- Internacional 11 - Recomendações internacionais 1 1 --- --- --- --- --- Subtotal 15 3 1 2 3 1 4 Outras --- 1 --- --- --- --- 1 Não responde --- 2 1 1 1 --- --- A segmentação por países revela-nos que os items 3 e 14 são os mais relevados no conjunto dos países, obtendo sempre uma apreciação muito positiva41. As motivações de ordem sociocultural são as que reunem, para o conjunto dos países, as notas mais relevantes entre os vários tipos de motivações. A desegração permite, no entanto, perceber que os países onde aquelas motivações são mais valorizadas são a Itália e a França e os países em que elas são menos valorizadas são a Holanda e a Dinamarca. As motivações de ordem económica são mais assinaladas pela Suécia, que 41 Consultar o quadro nº A1, constante do anexo. O item 3 refere “a evolução da economia, em que as empresas requerem, cada vez mais, técnicos altamente qualificados” e o item 14 refere “a necessidade de ampliar e diversificar as possibilidades de escolha dos jovens”. 559 também é o país que mais relevo dá às motivações de ordem política, ao lado da Itália, da Espanha e da Noruega. O segundo modo de desvendar o véu das motivações reformadoras consistiu em pedir para os respondentes assinalarem qual dos objectivos, sinteticamente descritos, visou a reforma empreendida (Cfr. Quadro 7.5). As reformas visaram responder "a um imperativo de desenvolvimento pessoal e social dos jovens". Esta é a opinião inequívoca dos actores sociais inquiridos. Quisemos aqui separar e destacar, dentro do imperativo sociocultural, um aspecto que melhor se pudesse relacionar com uma perspectiva marcadamente humanista do ensino e da formação. As preferências dirigiram-se para este factor. Em segundo lugar, opina-se que se está a responder a um imperativo económico e político. 560 Quadro 7.5 Em poucas palavras, a reforma do ensino secundário visou essencialmente o seguinte objectivo Objectivos: Total e parcialmente em desacordo Parcial e totalmente de acordo Totalmente de acordo Responder a um imperativo político. 18 44 14 Responder a um imperativo económico. 16 48 19 Responder a um imperativo cultural. 19 42 15 Responder a um imperativo de desenvolvimento pessoal e social dos jovens. 10 53 34 20 44 18 Promover um ajustamento escolar, agora que se universializa o ensino secundário. A repartição por países42 evidencia que “o imperativo do desenvolvimento pessoal e social dos jovens” é o que recolhe o maior acordo em Espanha, na Finlândia, na Itália e na Suiça. Neste país há um item ainda mais seleccionado, que é o que refere que a reforma nacional visou essencialmente “promover um ajustamento escolar, agora que se universaliza o ensino secundário superior”, aspecto este que também reune um bom nível de concordância nos casos da Itália, da França e da Espanha. No caso da Noruega há uma escolha muito nítida do “imperativo político” e, de seguida, do “imperativo económico” e, no caso da Holanda, verifica-se o inverso, ou seja, uma preferência pelo “imperativo económico” como fundamento da reforma empreendida, seguida da escolha do “imperativo político”. A segmentação por actor social43 permite concluir que são os sindicatos de professores e as confederações sindicais que mais valorizam o “imperativo político”, seguidos pelas confederações patronais e pelos partidos e forças políticas. As confederações sindicais e os partidos são os que mais 42 Consultar o quadro nº A2,em anexo. 43 Consultar o quadro nº A3, em anexo. 561 valorizam o “imperativo económico”. Já o “imperativo cultural” é o mais destacado pelos peritos e é também destacado apenas pelas associações de pais. O aspecto “responder a um imperativo do desenvolvimento pessoal e social dos jovens” obtém a concordância de todos os actores sociais, com destaque para as confederações patronais (em que é o aspecto que obtém maior concordância), para as associações de pais (idem) e para os partidos. A perspectiva de que se trata sobretudo de um “ajustamento escolar” ao ensino secundário universalizado obtém em geral um bom nível de concordância, com destaque para os partidos e com excepção das confederações sindicais, que discordam maioritariamente da afirmação. Pediu-se, de seguida, que os respondentes, para lá do modo como as reformas foram sustentadas pelos decisores políticos, emitissem a sua própria opinião sobre as motivações "reais" acerca do processo de reforma estabalecido. (Cfr. Quadro 7.6). Esta pergunta visava situar o respondente no seu próprio terreno, procurando separar a sua opinião da de outros, mormente dos responsáveis políticos pelas reformas. Constata-se, no entanto, que as respostas convergem com as anteriores. Segundo todos estes actores sociais, aquilo em que realmente se centraram as reformas foi na construção de um novo currículo, capaz de combinar melhor formação geral e formação profissional, no acréscimo do peso das disciplinas da "formação geral” e também no ajustamento do sistema escolar a uma economia em reestruturação, aproximando as escolas e os centros de formação das empresas. Decididamente, os respondentes não consideram que as reformas tenham correspondido a um modo de mudar as coisas para ficar tudo na mesma ou a um momento de desorientação política. 562 Quadro7.6 563 Os actores sociais respondentes não consideram que os processos de reforma tenham sido centrados na redução das especializações profissionais, mas antes em algo prévio e mais importante, o acréscimo da “formação geral” e a melhor combinação entre “formação geral e formação profissional”. As opiniões dividem-se mais, entre acordo e desacordo, acerca de outros aspectos como o do aumento da duração dos troncos comuns de formação, o do adiamento das escolhas profissionais e do adiamento da selecção para o ensino superior e ainda sobre o objectivo de aproximar o seu país dos vizinhos europeus e das tendências internacionais. A este propósito sublinhe-se, no entanto, que a maioria dos respondentes reconhece que um dos pontos nevrálgicos de sustentação das mudanças foi a necessidade de “aproximar o seu país dos outros e das tendências internacionais”. A segmentação por actores sociais, expressa no mesmo quadro em análise, conduz-nos à anotação de algumas e significativas variações. Assim, embora o aspecto “redução das especializações profissionais” tenha globalmente maior volume de discordâncias, ele reune mais concordâncias que discordâncias entre os peritos e estas são mais esbatidas exactamente entre as confederações sindicais e patronais. É provável que estes actores estejam particularmente sensíveis a este vector e o tenham relevado, apesar de já se ter anotado que, nos casos da Espanha, da Holanda e da Suiça, as reformas não incidiram sobre a desespecialização. Em segundo lugar, é interessante verificar o imenso nível de discordância relativamente ao facto de se tratar de “um momento de desorientação política”. É que as não concordâncias expressas não representam apenas desacordos parciais, elas são discordâncias totais, tanto entre os peritos (14), os partidos (5), as confederações patronais (8) e os sindicatos de professores (9). Apenas entre as confederações sindicais há alguma repartição entre os níveis de discordância. Este apontamento é de grande utilidade pois pode revelar um elevado nível de adesão destes actores sociais às iniciativas políticas em 564 que se consubstanciaram as reformas em estudo. Em terceiro lugar, note-se que há um elevado nível de acordo em relação ao motivo que refere que se tratou “de um modo de aproximar as escolas e centros de formação das empresas”. Haja ou não uma efectiva aproximação, conforme queremos discutir nesta investigação, uma coisa é certa: a percepção dos actores sociais, mormente entre as confederações patronais e sindicais, é a de que, com estas reformas, se busca uma maior aproximação entre o mundo da educação e o das empresas. Em quarto lugar, é importante sublinhar o modo tão decisivo como as opiniões dos actores sociais se inclinaram para centrar os processos de reforma em processos de reestruturação curricular capazes de “combinar melhor formação geral e formação profissional”. Há, nesta resposta, como que a constatação de que os actores sociais entendem que se deve evoluir para um paradigma de formação que extravase o modelo liceal tradicional, que não reduza mas que combine as componentes de formação. A este respeito, é muito sintomática a resposta dos peritos, que indirectamente mostram a recusa da via da redução das componentes de formação. Em quinto e último lugar, refira-se ainda que vários actores manifestam uma clara concordância com o facto das reformas se terem centrado em processos de “aproximação do seu país dos vizinhos europeus e das tendências internacionais. Os peritos (11 contra 5) os partidos (5 contra 1), as associações de pais (4 contra 3) e os sindicatos de professores (7 contra 7) são os que melhor evidenciam esta posição, tendo os dois restantes manifestado posição maioritariamente discordante. A análise das respostas por país44 traduz o mesmo resultado global, ou seja, há uma concordância generalizada com o objectivo de alterar o currículo 44 Consultar o quadro nº A4, em anexo. 565 para “melhor combinar formação geral e formação profissional”. O país onde esta escolha é menos contundente é a Holanda. Aliás, é neste país que é mais significativo o nível de concordância com os dois items relacionados com um processo de reforma centrado nos ajustamentos à economia, nível este também elevado nos casos da Espanha e da Itália. Os actores sociais respondentes não concordam, nos casos da Dinamarca, da Espanha, da Finlândia, da França e da Holanda, que as reformas se tenham centrado em processos de redução da especializações. A divisão por países revela também que há uma grande disparidade na concordância com o facto das reformas se centrarem também em processos de aproximação de outros países e das tendências internacionais. Assim verifica-se haver grande concordância nos casos da Espanha, Finlândia, Itália e Suiça e uma grande discordância nos casos da Dinamarca, Holanda, França e Suécia. Finalmente e a título de síntese, os respondentes foram chamados ainda a validar um conjunto de afirmações, como traduções mais ou menos exactas da principal finalidade das reformas empreendidas (Quadro 7.7). A primeira escolha caiu inequivocamente na finalidade "qualificar os jovens com uma formação mais geral, sólida e polivalente". Esta foi também a primeira escolha de cada um dos actores sociais inquiridos e para cada um dos países, excepto nos casos da Dinamarca e da Holanda. Como segunda escolha este mesmo aspecto teve ainda uma eleição significativa e a finalidade de "diminuir a hierarquia de prestígio entre a formação geral e a formação profissional" foi a terceira escolha mais seleccionada. 566 Quadro 7.7 567 As outras finalidades valorizadas foram "adaptar o sistema educativo aos requisitos actuais dos empregadores e do sistema produtivo" e "tornar o ensino secundário e a formação a este nível mais atractivos para todos os jovens". As próprias associações patronais e sindicais elegem como primeira escolha finalidades não directamente económicas ou produtivistas, mas finalidades culturais. Dada a relevância da questão da aproximação entre as escolas e os centros de formação e as empresas, quisemos inquirir de modo particular esta problemática. A grande maioria dos respondentes considera que as reformas estabelecidas irão contribuir para melhorar a relação entre escolas e empresas (51 em 60 respondentes que emitiram opinião). Procuramos investigar melhor o sentido desta posição (Cfr. Quadro 7.8). Todos os actores inquiridos consideram que as escolas e as empresas irão cooperar melhor, nos domínios da formação técnica e profissional dos jovens (o mesmo resultado se obtém por país, excepto para o caso da França, em que a maioria dos actores inquiridos considera que a anterior relação entre escolas e empresas não se vai alterar) e todos discordam da afirmação de que as escolas vão ficar mais afastadas das empresas, porque o que se altera é a formação geral académica. Os inquiridos discordam também da afirmação de que o aumento do número de contactos entre escolas e empresas pouco vá alterar a distância que existe entre os dois mundos, discordando também da perspectiva de que as escolas são para a formação geral e as empresas para a especialização. Manifesta-se, assim, uma visão bastante consensual acerca das virtualidades da cooperação escolasempresas e acerca da perspectiva de melhoria progressiva desta relação. Interessante é o resultado relativo à opinião das confederações patronais: elas consideram que as escolas e as empresas não vão ficar mais afastadas entre si e discordam frontalmente (6 escolhas "totalmente em desacordo" e nenhum acordo) da afirmação de que as escolas sejam dirigidas para a 568 formação geral e as empresas para a especialização. Quadro 7.8 569 Estes resultados evidenciam que, quanto às motivações que sustentaram as reformas, os actores sociais tendem, na generalidade, a reproduzir a retórica governamental, como se de um espelho se tratasse. Fazem-no relevando a necessidade do sistema se ajustar à procura social crescente e sobrevalorizando as razões de ordem sociocultural e dando-lhes primazia na fundamentação das opções políticas, sem que, todavia, abandonem como referente um novo mandato económico. Há leituras dissonantes entre actores sociais que se assinalaram em devido tempo e que se retomarão na discussão final. No entanto, parece haver de facto uma poderosa e idêntica retórica global que atravessa diferentes países e que é tomada como referencial comum por diferentes actores sociais em cada um dos países em análise. Ora, o nosso corpo de hipóteses enfatiza a relevância do mandato económico e das funcionalidades a ele adjacentes, a importância do ajustamento escolar face à procura, sem esquecer a concomitante emergência de um mandato cultural. Esta discrepância de valorações, que por ora se assinala, deve ser objecto de uma mais aprofundada reflexão, o que se promoverá no capítulo de conclusão da investigação. Provavelmente, dada a complexidade das questões em análise nas reformas e o já constatado entrelaçamento que existe entre as motivações que lhes subjazem, são simultâneamente consistentes quer a visão dos actores quer a leitura teórica que mobilizamos para a compreensão do problema de partida. A atracção pela formação geral e a desespecialização da oferta Esta parte do questionário visa auscultar os modos como os diferentes actores sociais compreendem e interpretam uma das marcas distintivas da generalidade das reformas do ensino secundário em apreciação, a saber, a 570 atracção crescente pela "formação geral" e a decisão de desespecializar os percursos mais ligados ao ensino e à formação técnico-profissional. Propusemos um quadro analítico que atribui estas tendências das políticas educativas a um conjunto de factores que se acham entrelaçados. Por um lado, a atracção pela "formação geral" faz parte de uma orientação que deflui da referida ideologia macroeconómica global e hegemónica no discurso político educacional a nível internacional, que vai no sentido de encaminhar cada vez mais os sistemas educativos nacionais para a "produção" de qualificações adaptadas aos novos requisitos dos empregadores e de um modelo produtivo pós-taylorista emergente. Dadas as características essenciais deste "novo" modelo produtivo, que aqui se preferiu nomear como neo-taylorismo, as organizações empregadoras já não necessitariam hoje de uma mão-de-obra muito especializada, à saída do sistema escolar (sobretudo ao nível secundário, quando o ensino superior se transforma num ensino de massas e "produz" uma outra e larga oferta de diplomados de nível superior, inflaccionando os diplomas) . Os desajustamentos entre os subsistemas sociais educativo e produtivo são, pelo menos aparentemente, muito significativos, e a incerteza sobre as contratações é tão elevada, nos processos de reestruturação económica permanentes, que se torna cada vez mais desajustado atribuir ao ensino secundário uma função de especialização em ordem à posterior ocupação de postos de trabalho prédeterminados, além do mais porque se torna muitas vezes difícil mesmo ocupar um qualquer posto de trabalho. Por outro lado, dissemos que estas políticas educativas resultam de um ajustamento escolar face à procura social. À medida que o ensino secundário se expande e se universaliza, no pós-Guerra, acentua-se a sua função propedêutica de estudos ulteriores, o que o desqualifica enquanto lugar social de tradicional oferta de formações com funções fortemente terminais. A racionalidade predominante nas políticas educativas atira o 571 ensino secundário de massas para uma função de ponte entre um ensino obrigatório e básico e um ensino superior, também ele crescentemente massificado. Ora, estes dois veios explicativos de certo modo encontram-se num só: a ideologia neoprofissionalista promove um ambiente escolar de ajustamento tipicamente funcionalista seja a um "novo" mandato económico seja a uma "nova" procura social. Aumentar a dita formação geral, desespecializar e integrar percursos, outrora especializados, constituem recursos de ajustamento funcional à procura e aos requisitos do sistema produtivo, recursos estes que possibilitam a criação de um amplo mercado de formação. Por outro lado, o neoprofissionalismo aqui descrito e analisado pode ser também lido como o resultado mais óbvio das fragilidades e das falências, constatadas ao longo de décadas, do ensino técnico e da formação profissional de base escolar na promoção da qualificação profissional, na adaptação do sistema educativo ao sistema produtivo e na diminuição do desemprego. Esta leitura os governos só a fazem, no entanto, no momento em que se constata que o desemprego não diminui por este efeito e que o ajustamento entre os sistemas sociais passa, na actualidade, pelo abandono da tradicional função de especialização, a este nível. Advoga-se ainda que as reformas recentes ao dirigirem os currículos do ensino e da formação a nível secundário para um núcleo mais "generalista", revalorizando o ensino geral académico, estão a promover um novo tipo de especialização do ensino e da formação de nível secundário, em torno do eixo da tradicional característica do ensino "liceal", o academismo. Deste modo, o ensino secundário manterá o exercício de uma função selectiva, orientada agora em função dos percursos posteriores de formação, póssecundários e superiores. Ao fazê-lo, invoca-se geralmente uma retórica 572 educacional, mas é também evidente o propósito de uma adaptação tecnocrática e funcional do sistema educativo à evolução do sistema produtivo. Neste processo, que não é linear, nem simples ou unívoco, mas entrelaçado, está igualmente presente uma perspectiva cultural de reforço de uma formação mais acolhedora da diversidade humana, mais personalizada e mais multidimensional. Nesta medida, o reforço da formação "geral", a desespecialização e a integração curricular, o que apelidamos de neoprofissionalismo, em geral, podem ser interpretados como movimentos do sistema educativo em ordem ao reforço da sua vocação cultural e humanista, pese embora o facto destes movimentos se encontrarem enredados na mesma prisão funcionalista que continua a dominar, na actualidade, a matriz conceptual e organizacional do modelo moderno de educação escolar. Note-se ainda, antes da apresentação dos resultados, que, nos casos da Holanda, da Suiça e da Espanha, o fenómeno particular da desespecialização no ensino técnico e profissional não ocorre. A reforma do ensino secundário espanhol (obrigatório e "bachillerato") compreendeu um prolongamento da escolaridade obrigatória em dois anos e o adiamento da escolha das especializações profissionais para um período posterior, de maior maturidade pessoal dos jovens. O ensino secundário superior ("bachillerato") reordenou-se em quatro grandes modalidades, uma das quais é a "Tecnologia", permitindo uma formação tecnológica de base mais geral e com um tronco comum com as outras modalidades. O número de especializações profissionais oferecidas no âmbito da formação profissional de jovens, a este nível de formação, é hoje inclusivamente mais elevado, mas está incluído num sistema paralelo de formação profissional inicial. Nos casos da Suiça e da Holanda, como já foi assinalado no capítulo 3, também não se verifica uma redução das especializações. Na Suiça, a reforma da "maturité professionnelle" não reduz as especializações mas alarga a formação de base para lhe aceder e abre mais possibilidades aos alunos 573 destes percursos para prosseguirem estudos, seja académicos seja profissionais. No caso da Holanda, foi criado um novo ciclo greal e comum para o ensino secundário e foram igualmente adiados os momentos em que os jovens têm de proceder a escolhas de fileiras específicas. As respostas destes três países não foram pois consideradas relevantes para a análise das respostas dadas a esta parte do questionário. A primeira questão desta secção do questionário interroga os inquiridos acerca do seu entendimento sobre os motivos que presidiram à redução do número de especializações técnicas e profissionais. Os doze items apresentados são agrupados nas mesmas categorias gerais anteriores: razões de ordem sociocultural, de ordem económica e de ordem política. Os resultados apontam para uma mesma tendência, a saber, a valorização dos motivos que se inscrevem na categoria sociocultural, com destaque para o que assinala a necessidade de aumentar a cultura geral dos jovens e de fomentar e seu crescimento humano (Quadro 7.9). Todavia, fica aqui mais claro que quando se privilegiam motivações como "tornar o ensino profissional mais polivalente" e "aumentar o leque de competências dos jovens" isso visa prepará-los melhor para enfrentar a actual situação do mercado de emprego e dos contextos de produção. Há como que um entrelaçar inextricável de motivações de ordem cultural e de ordem económica, de difícil separação. 574 Quadro 7.9 Motivos a que se fica a dever a redução do número de especializações no ensino e na formação ao nível do ensino secundário MOT IVOS Total e parcialmente em desacordo Total e parcialmente de acordo O motivo mais relevante entre os "Totalmente de acordo" 9 36 7 12 34 6 9 37 10 10 36 4 7 - Uma moda passageira sem significado 43 1 1 1 - Reduzir um ensino 30 18 1 formação 29 17 1 vez 16 30 --- 24 22 1 28 16 --- 29 15 --- 24 23 3 Tipo Socio-Cultural Descritivo 4 - Desemprego juvenil 10 - Aumentar o leque de competências dos jovens, à entrada do mercado de emprego Económico 2 - Tornar o profissional mais polivalente, pois a economia assim o requer 12 - Atender às novas exigências do modelo de produção, flexível e pós-taylorista Político . Geral . Educativo os custos afectos a especializado 3 - Reconhecimento de que lugar da profissional é a empresa 5 - O ensino secundário é cada mais propedêutico de estudos superiores 8 - Criar troncos comuns e diferir a especialização profissional para as empresas 9 - A especialização e a selecção são adiadas para o ensino superior prolongamento 11 - Simples unificadores do ensino . Isomorfismo Internacional das tendências 6 - Tornar o sistema de ensino nacional mais próximo dos outros sistemas da Europa Quer a segmentação por países quer a segmentação por actores sociais não potenciam clivagens entre os diversos tipos de resposta. Estas orientam-se de modo muito idêntico, concentrando-se nas mesmas três motivações principais. Ainda assim, é possível afirmar que nos casos da Itália, da Dinamarca e da Noruega valoriza-se mais o motivo "tornar o ensino 575 profissional mais polivalente", no caso da Finlândia valoriza-se "a necessidade de atender às novas exigências do modelo de produção flexível e pós-taylorista", seguido da "necessidade de aumentar o leque de competências à entrada do mercado de emprego", no caso da França destaca-se a "necessidade de aumentar a cultura geral dos jovens e de fomentar o seu crescimento humano", a necessidade de criar troncos comuns e de tornar o ensino profissional mais polivalente, e no caso da Suécia sobressai a escolha deste último motivo e ainda a "necessidade de aumentar o leque de competências dos jovens". A pergunta número dezassete, um pouco mais adiante, confrontava os respondentes com um conjunto de afirmações que sutentavam as decisões de promoção destas reformas, comportando a desespecialização e a integração curricular. Cinco motivos são considerados capazes de explicar as decisões tomadas: esta é a melhor via para garantir uma maior igualdade de oportunidades educativas, é a melhor maneira de preparar os jovens para a vida, é fruto da necessidade de actualizar os programas e o currículo e deriva do facto de o ensino secundário ser cada vez mais universal. Uma outra pergunta ainda (a número dezasseis) procurava conhecer a opinião dos actores sociais, bem por dentro da história e da experiência nacionais, sobre os resultados esperados para as políticas de desespecialização e integração curricular que se inscrevem no grupo de reformas em análise. Num primeiro lanço quisemos apreender os resultados ao nível do sistema educativo e, logo depois, no que se refere à inserção social dos jovens. Quanto a ambos os passos verifica-se que há uma expectativa muito positiva acerca dos resultados esperados (Quadro 7.10). No primeiro passo, constata-se uma concentração das escolhas nos seguintes resultados: uma melhor integração socioprofissional dos jovens, uma melhor preparação para 576 a vida activa e uma melhor adequação ao mercado de emprego. Quanto ao segundo passo, 47 em 49 respondentes consideram que vai melhorar a integração socioprofissional dos jovens. É de salientar, neste momento, que qualquer um destes aspectos valoriza uma dimensão funcionalista do ensino e da formação e das reformas empreendidas. O aspecto que considera apenas "uma melhor formação cultural dos jovens" surge num lugar menos destacado. Quadro 7.10 Resultados esperados para as reformas de desespecialização e de integração curricular, considerando a história de cada País a) No que se refere ao sistema educativo Escolhas 1ª 2ª 3ª 4ª Uma melhor integração socioprofissional dos jovens 16 10 9 1 Uma melhor preparação para a vida activa 14 15 10 4 Uma maior adequação ao mercado de emprego 11 12 9 2 Nenhum resultado é de esperar 3 --- --- --- Uma melhor formação cultural dos jovens 6 6 2 8 Uma melhor preparação para o prosseguimento de estudos superiores 4 10 13 4 Um abaixamento do nível de educação e de formação dos jovens --- --- --- 1 Outro efeito 4 --- 1 --- Aspectos considerados b) No que se refere à inserção dos jovens Vai haver mais obstáculos à inserção socioprofissional 2 Vai haver uma melhor integração socioprofissional 47 Não responde 17 As justificações qualitativas dadas para a tão positiva expectativa sobre a integração socioprofissional rodam à volta da mesma narrativa retórica com 577 que os governos justificam as suas medidas de política. Assim, destacam-se seis grupos de razões para sustentar tal expectativa: (i) a formação técnica e profissional torna-se de melhor qualidade, mais geral, mais polivalente e flexível, e isso é uma garantia importante face à evolução do mundo do trabalho e das profissões e face à necessidade de aprender ao longo de toda a vida, ou como refere um inquirido, "melhor cultura e mais flexibilidade facilitam uma melhor integração social e profissional dos jovens"; (ii) passa a haver mais aproximação e concordância entre a formação técnica e profissional que se promove e os perfis profissionais requeridos pelo mercado de emprego e pelas empresas; (iii) desaparece a discriminação entre percursos liceais e percursos técnicos e profissionais e são dadas mais oportunidades aos jovens que cursam o ensino técnico e a formação profissional; (iv) a partir de agora combina-se melhor formação geral e formação profissional; (v) passa a dar-se mais importância à formação do cidadão (educação cívica); (vi) dão-se mais instrumentos aos jovens para serem mais autónomos, mais responsáveis e para melhor construirem a sua própria vida. Procurou-se também recollher a opinião dos actores sociais sobre os porquês da promoção da desespecialização, da integração curricular e da ampliação dos troncos comuns de formação (Quadro 7.11). As razões que merecem a preferência dos respondentes relacionam-se com o facto de esta ser "a melhor maneira de preparar os jovens para a vida" e a "melhor via para garantir a igualdade de oportunidades educativas". De seguida surgem os aspectos "era necessário actualizar os programas e o currículo" e "diminuir a hierarquia de prestígio entre e formação geral e a formação profissional". Este último aspecto é particularmente sublinhado pelos sindicatos de professores. 578 Quadro 7.11 579 Todos os actores valorizam genericamente as duas primeiras razões. Além do que já ficou dito antes, importa destacar o facto dos actores sociais transportarem uma visão das reformas do sistema educativo como tecnologia social. Neste caso, como instrumento de democratização social, como meio de esbater o menor prestígio do ensino e da formação técnica e profissional ou ainda como meio de melhor acolher a procura de um ensino secundário quase universal. Esta tendência universalizante do ensino e da formação de nível secundário reune um número muito significativo de opiniões favoráveis e muito favoráveis. Os respondentes desvalorizam muito os aspectos que referem que é a escassez de empregos que faz com que a especialização perca importância e que se trata de uma moda a nível europeu a promoção deste tipo de medidas de política. As opiniões dividem-se muito sobre os outros aspectos considerados, p. ex., que o lugar da formação profissional seja nas empresas, embora entre as confederações sindicais e os peritos a opinião maioritária seja o acordo com a afirmação. Finalmente, dentro desta parte do questionário procuramos recolher as opiniões destes actores sobre a formação "geral" e a formação técnica e profissional que existiam em cada país, antes dos processos de reforma se terem desencadeado (Quadro 7.12). Quanto à formação "geral" as escolhas dividem-se entre três tipos de considerações principais: a via "nobre", herdeira do "liceu" tradicional e elitista, um bom instrumento de formação integral dos jovens e um bom instrumento de selecção dos jovens. Este último aspecto é o mais destacado nas duas primeiras escolhas. Se a este dado lhe adicionarmos o segundo aspecto mais destacado nas duas primeiras escolhas, ou seja, o ser uma via "nobre" e elitista, parece estarmos perante um quadro em que prevalecem as considerações do ensino secundário "geral" como uma via herdeira do 580 "liceu", destinada à selecção de elites para ingressar no ensino superior. Assim opinam sobretudo os peritos, as associações de pais e os sindicatos de professores. 581 Quadro7.12 582 Estes e as confederações sindicais e patronais valorizam particularmente a formação "geral" como um bom instrumento de formação integral dos jovens. O mesmo sucede, por países, com os respondentes da Finlândia e da Suécia. Os restantes respondentes, em qualquer país valorizam o elitismo e a selectividade da formação "geral", com destaque para o caso da França. Quanto ao ensino e à formação técnica e profissional, a maioria dos actores sociais considera que eram "um instrumento de selecção dos jovens" e "vias para deserdados e escolarmente insucedidos". A afirmação de que estes percursos eram o "melhor modo de satisfazer os anteriores requisitos dos empregadores" também reune um bom número de escolhas. Além destes aspectos, o que refere que estas vias eram "a melhor forma de preparar os jovens para o mundo do trabalho" é o que acolhe, a seguir, maior número de primeiras e segundas escolhas. A avaliação de pendor negativo em relação a estes percursos de ensino e de formação é mais saliente entre as associações de pais, os peritos e os sindicatos de professores (embora também valorizem a dimensão de "melhor forma de preparação para o mundo do trabalho"). Aliás, as confederações sindicais e patronais destacam também a dimensão positiva destas vias, ao sublinharem o seu papel de preparação para o trabalho, de promoção de igualdade de oportunidades e de formação integral dos jovens. Entre os países, as respostas dividem-se entre os dois tipos de visões, sendo certo que as visões mais negativas em relação a estes percursos sobressaiam nos casos da Espanha, da França e da Itália (este em menor grau), exatamente países onde o peso do ensino secundário geral liceal é preponderante; as valorizações mais positivas são as que proferem os respondentes da Finlândia e da Suiça. Em síntese, a leitura desta parte dos resultados do questionário permite-nos 583 sublinhar que os actores sociais interpretam estas reformas neoprofissionalistas como: (i) uma tecnologia social eficiente em ordem a reabilitar o estatuto social do ensino técnico e da formação profissional e a promover melhor igualdade de oportunidades, não discriminando o acesso ao emprego pela especialização; (ii) um melhor caminho para a integração socioprofissional pela via do reforço da formação geral, polivalente e flexível; (iii) um modo de melhor desenvolver nos jovens o sentido de responsabilidade, a autonomia e a capacidade de construção de identidades pessoais. São escassas as diferenças entre esta fundamentação dos actores sociais e o discurso oficial dos governos acerca das reformas empreendidas, o que nos remete para uma grande sintonia de perspectivas de acção social e política entre governos e parceiros sociais. Por outro lado, as respostas dadas a esta parte do questionário permitemnos perceber que os actores sociais inquiridos consideram maioritariamente o ensino liceal como selectivo e elitista, vendo do mesmo modo a formação técnica e profissional paralela ao ensino liceal, mas consideram ao mesmo tempo que a formação geral, que é tipicamente liceal, como referimos, pode ser um bom instrumento de formação integral dos jovens e neles fomentar o desenvolvimento de competências humanas gerais e o sentido e gosto pela participação social. Existe, assim um terreno social em que se destacam quer uma crença nas virtualidades da formação geral como instrumento potenciador de melhor inserção socioprofissional, em período de turbulência das empresas, dos empregos e das profissões quer uma dificuldade nítida em entender as opções por um certo tipo de formação “geral” como fomentadoras de um novo tipo de selectividade do ensino e da formação de nível secundário. Assim, a óptica dos respondentes evidencia que a formação geral académica, ao reforçar-se, promove por arrastamento o modelo "liceal" do ensino secundário, uma vez que é este o modelo que prevalece como 584 referencial da chamada "formação geral". As formações de pendor técnico e profissional, mais discriminatórias e terminais, apreciadas de modo negativo sobretudo pelos actores sociais do sul da Europa, tendem a perder relevância nas novas funções atribuídas ao "novo" ensino secundário, cada vez mais massificado e com uma função propedêutica do ensino superior de massas. Finalmente, pode concluir-se que existem, entre os actores sociais inquiridos, expectativas muito positivas relativamente ao impacto das reformas neoprofissionalistas sobre os processo de integração socioprofissional dos jovens, na Europa, expectativas estas fundadas numa cadeia causal em que os movimentos de reforço da formação geral académica são tomados como parte de um esforço de ajustamento escolar face à procura social e face a uma economia em reestruturação, que arrasta incertezas e uma grande imprevisibilidade quanto ao emprego e às profissões, e são também identificados com movimentos de reforço da função cultural dos sistemas educativos, em que sobressai a perspectiva da formação de cidadãos mais autónomos e responsáveis. O paradigma funcionalista orienta o pensamento dos actores sociais, como comanda a acção dos governos e como sustenta as reformas do ensino secundário. Constata-se, deste modo, a amplitude do consenso social implícito que existe, na Europa, em torno das reformas do ensino e da formação de nível secundário. A decisão política: pressões internas e externas Procura-se, nesta outra parte do questionário, conhecer a opinião dos actores sociais sobre as pressões internas (nacionais) e externas (internacionais) que se exerceram sobre a tomada da decisão política relativa às reformas em análise. O número de respostas a esta parte do 585 questionário ficou, por vezes, reduzido, talvez por um efeito de cansaço e talvez também por desinteresse, uma vez verificada, em três países, uma menor aplicação das questões da parte anterior aos casos nacionais. O nosso ponto de partida era o da valorização do sistema mundial como quadro adequado de explicação da similitude e da simultaneidade das reformas em análise. As escolas locais e nacionais, como instituições educativas da sociedade mundial, são reguladas por dinâmicas e ideologias globais, formuladas e veiculadas tanto por organismos internacionais, cuja missão é a reflexão sobre o social, a adopção de recomendações e de tratados internacionais e, em alguns casos, o financiamento internacional, como por redes de peritos, encontros, produção de estatísticas internacionais e mundiais, edição de publicações e estudos comparados. Todos estes meios produzem uma corrente ideológica poderosa que transmite feições homogeneizantes às partes do todo, que a tomam como a sua principal fonte retórica e legitimadora, em boa parte independentemente das realidades locais e dos seus problemas específicos e também em boa parte como superação de problemas de legitimação no estreito quadro nacional. A diversidade das medidas que são tomadas, país por país, sob uma retórica tão similar, é também ela o espelho de uma reinterpretação nacional e local de mandatos globais, orientações que habitam acima dos contextos históricos nacionais, mas que neles são reescritas. Procuramos, por isso, conhecer o modo como os actores nacionais conhecem e interpretam este labor do sistema educativo mundial, através da tomada de posição sobre questões ordenadas em torno das pressões de ordem interna e de ordem externa sobre a iniciativa política de empreender as reformas e sobre o conteúdo dado às mesmas. As respostas revelam que internamente foram os partidos políticos no governo, os empresários e as associações empresariais e os sindicatos e 586 centrais sindicais, os actores e interesses que mais influenciaram as reformas empreendidas. Verifica-se que os respondentes consideram que a comunidade científica, as associações de pais de alunos e os professores quase não influenciaram as reformas. Numa posição intermédia surgem as personalidades e os peritos (Quadro 7.13). Quadro 7.13 Pressões internas sobre as reformas do ensino e da formação ao nível secundário Sectores Escolhas 1ª 2ª 3ª Comunidade científica 3 5 2 Partido(s) Político(s) no governo 30 8 7 Associações de pais de alunos 2 1 2 Empresários e associações empresariais 11 12 12 Professores 2 4 6 Sindicatos e centrais sindicais nacionais 7 17 10 Personalidades e peritos 6 7 9 Nenhum, porque não as houve --- 1 --- Outro 1 1 1 Uma segmentação por países revela que se valoriza muito a intervenção dos partidos políticos no poder nos casos da Espanha, Finlândia, Noruega,Suécia e Suiça. Na Holanda e na Itália destaca-se o papel dos empresários e das associações empresariais. A segmentação por actor social não revela nenhum elemento significativo. 587 Podemos inscrever estes diferentes modos de participação interna, em que sobressai o contributo mais activo dos sindicatos e do patronato, numa tendência geral para o desenvolvimento do partenariado social como estratégia de governabilidade das sociedades, como modo de regulação das políticas sociais e de reforço da participação democrática na construção contínua das mesmas. Quanto às influências internacionais sobre as medidas de política em apreço, uma escassa maioria dos respondentes (34 em 64) considera que elas efectivamente s