Manuel Joaquim Pinho Moreira de Azevedo
O ensino secundário na
Europa, nos anos noventa
O neoprofissionalismo e a acção do
sistema educativo mundial: um estudo
internacional.
Dissertação
de
Doutoramento
em
Ciências da Educação sob orientação
do Prof. Doutor António Nóvoa.
Universidade de Lisboa
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
Lisboa,1999
iii
“Através do sociólogo - agente histórico historicamente situado, sujeito social
socialmente determinado - a história, isto é, a sociedade na qual ele subsiste,
volta-se por um momento sobre si própria e faz uma reflexão; e, através dele,
todos os agentes sociais podem saber um pouco melhor o que são e o que
foram”.
Pierre Bourdieu
“Nós não sabemos o que se passa e é isso justamente o que se passa”.
Ortega y Gasset
“A realidade não é claramente legível. A nossa realidade não é mais do que a
nossa ideia da realidade”.
Morin e Nair
“As revoluções não são aceleradores da história, mas travões para refrear
uma evolução que, entregue a si mesma, leva à catástrofe. Trata-se de fazer
melhor, evitando o pior”.
Walter Benjamim
iv
v
Agradecimentos
Registamos uma palavra de gratidão para com pessoas e organizações que
nos apoiaram directa e tecnicamente na realização desta investigação. Aos
nossos interlocutores em cada um dos países, que nos abriram muitas
portas: Jens Pehrson, Inspector Geral de Educação, da Dinamarca;
Alejandro Tiana Ferrer, Professor da UNED, na altura Director do INCE, da
Espanha; Jukka Sarjala, Director Geral do Ministério da Educação, da
Finlândia; Alain Michel, Inspector Geral da Educação, de França; Mark
Frequin, do Ministério da Educação da Holanda; Ugo Panetta, do Ministério
da Educação da Itália; Morten Lauvbu, do Ministério da Educação da
Noruega; Ulf Lundgreen, da Agência Nacional para a Educação, da Suécia;
Michel Rohrbach, da Confederação Suiça dos Directores Cantonais da
Instrução Pública. Ao CIDE-Centro de Investigación y Documentación
Educativa do Ministério da Educação de Espanha e à sua Biblioteca, sempre
disponível no apoio bibliográfico. À Associação Industrial Portuense, pela
disponibilidade que me proporcionou e pelo apoio logístico oferecido. Aos
meus amigos José Matias Alves e José Maria Azevedo, pelas sucessivas
leituras de textos mais ou menos dispersos e pelo seu incentivo contínuo.
E, por último, uma especial palavra de agradecimento ao meu orientador,
Prof. Doutor António Nóvoa, pela sua enorme disponibilidade, pela sua
atenção gratuita e pelo seu efectivo apoio científico ao longo do estudo e
uma última palavra para recordar a minha família, sempre presente e sempre
disponível.
vi
vii
Resumo
Na primeira metade dos anos noventa, ocorreram, em vários países da
Europa Ocidental, processos de reforma educativa que visaram integrar
percursos e modalidades de ensino e de formação de nível secundário e
desespecializar as formações de tipo técnico e profissional.
Tendo por objecto de análise as reformas neoprofissionalistas do ensino e
da formação de nível secundário, em nove países europeus, esta
investigação ergue-se com base em quatro hipóteses: (i) estas reformas são
uma expressão de uma crise política generalizada acerca da função social
do ensino e da formação de nível secundário e evidenciam a presença de
conflitos entre as racionalidades configuradoras das políticas para este
sector; (ii) as reformas seguem preferentemente o funcionalismo técnico -económico, como motor da acção política, e o ensino geral académico,
como modelo de organização; (iii) ao seguirem o modelo do ensino geral
académico, as reformas neoprofissionalistas especializam o ensino e a
formação de nível secundário na função propedêutica de estudos
posteriores, legitimando uma ordem social existente, mais do que um outro
modo de promoção de uma formação de base, mais aberta e promotora do
desenvolvimento de cada ser humano; (iv) os decisores políticos nacionais,
no palco europeu, agem simultânea e similarmente, sob o efeito do sistema
educativo mundial, que exerce um efectivo poder estruturante das retóricas e
das políticas educativas nacionais.
A investigação sustenta-se em contributos teóricos da sociologia da
educação e da sociologia do trabalho e segue um percurso que contempla
uma análise da evolução histórica do ensino secundário na Europa e uma
viii
pesquisa que se realizou em dois tempos e modos: o primeiro consistiu na
análise documental das reformas educativas dos nove países europeus
escolhidos e o segundo traduziu-se na realização de um inquérito junto de
um conjunto de actores sociais relevantes, seleccionados em cada um dos
nove países.
A investigação decorreu de modo sequencial entre 1993 e 1998 e teve como
principais motivações tanto a experiência política do autor, na área
educativa, quer no plano nacional quer no plano da representação do país a
nível internacional, como a sede de desocultar e conhecer o que realmente
se passa, sob a aparência do que se está a passar.
ix
Abstract
During the first half of the nineties, processes of educational reform occured
in several Western European countries, aiming to integrate upper secondary
education and training pathways and modalities and to de-specialize
technical education and training.
This research project’s subject of analysis deals with neovocationalist reforms
of education and training at upper secondary level, in nine European
countries, built upon four hypothesis: (i) these reforms are the expression of a
general political crisis regarding the social role of education and training at
upper secondary level; highlighting conflits between rationalities that shape
the policies for this sector; (ii) these reforms follow mostly technical-economic
functionalism, as the motor of political action and the general academic
education, as the educational organizational model; (iii) the neovocationalist
reforms, by following the general academic education model, specialize the
upper secondary education and training in the propedeutic function for further
education, thus legitimating an existing social order, more than another form
of promoting a basic training, more open and able to promote the
development of every human being; (iv) national policy-makers act, in the
European set, simultaneously and similarly, under the effect of the world
educational system, which actually has a structuring impact on the national
education rethorics and policies.
This research is based on the theoretical contributions from educational
sociology and labour sociology, including an analysis of the historical
evolution of secondary school in Europe and a research carried out in two
x
phases and under two methods: firstly, a documental analysis of school
reforms developed in the nine selected countries; secondly, an empirical
research based upon a survey targeted to a set of relevant actors selected in
each of those nine countries.
This research took place sequencially from 1993 to 1998 and its main
motivations were the author’s political experience in the field of education, at
national level and as national representant abroad, as well as the will to
unveil and learn how reality is really like beyond the illusionary process of
keeping up appearances.
xi
Sumário
Prefácio
Um acto perguntador
Capítulo 1
A ordem e a desordem no ensino secundário
Uma selva sem identidade?
Os principais modelos de referência
Os modelos escolar, dual e não-formal
Tipos de ensino e de formação
Tipologia de diversificação curricular
Diferentes modelos de integração
Uma polarização dominante
Tensões entre finalidades
Profissionalismo e neoprofissionalismo
Desespecialização e desprofissionalização
Capítulo 2
Introdução geral à investigação
Reformas integradoras e desespecializadoras
xix-xxv
1
1
3
6
13
24
31
35
40
45
49
55
59
As hipóteses de partida
64
Principais opções metodológicas
70
Um estudo internacional
72
Delimitação do campo de análise
79
A pesquisa documental
82
Questionário: objectivos e limites
85
Pesquisa empírica : quem inquirir e como inquirir
89
O questionário e as suas partes
92
Capítulo 3
A educação e a economia: desocultar a força de um encadeado
ideológico
3.1. A sociologia da educação e a correspondência entre educação-economia
O funcionalismo e a teoria do capital humano
97
98
98
Uma evidência sempre interrogada
105
A reprodução das relações sociais de produção
109
As credenciais e a sua função de informação
115
xii
Uma “falácia” chamada ensino profissional
120
Um desajustamento “praticamente inevitável”
124
Um alargado desajustamento estrutural
132
As teorias da não-correspondência
138
3.2. A sociologia do trabalho e os novos mandatos da economia
146
As novas tecnologias e o pós-fordismo
149
Da crise ao pós-fordismo, passando pelo neo-fordismo
153
A produção flexível e a flexibilidade
163
Qualificação, requalificação e desqualificação
170
Teorias da segmentação do mercado de trabalho
182
Das qualificações às competências: o que muda?
186
O ensino geral como modo de especialização
194
3.3 A globalização e o sistema educativo mundial
200
A globalização, um processo multidimensional
202
A educação, uma instituição mundial
209
A teoria do sistema mundial
211
Convergência e divergência
215
A
construção
e
a
acção
dos
modelos
educacionais
A consolidação do Estado-nação e a expansão da escolarização
223
225
de massas
Expansão da ideologia da modernização
233
A evolução do sistema económico mundial
236
O sistema de comunicação científica
239
A acção prolongada das organizações internacionais e o caso
245
da UE
A educação comparada e internacional
250
A externalização dos sistemas nacionais
261
A construção do sistema educativo mundial
264
Capítulo 4
O ensino secundário na Europa (1945 1995)
271
Os anos dos grandes mitos e a expansão da oferta e da
272
A unificação e o ensino de massas
283
Os “choques” dos anos 70 e os anos de crise
288
Um profissionalismo crescente
294
Anos
80
e
90:
ensino
secundário,
uma
alternativa
309
xiii
Um novo mandato económico internacional
319
Uma retórica optimista e valorizadora da formação geral
324
Capítulo 5
As recentes reformas do ensino e da formação de nível
secundário
(anos
90)
339
O caso da Dinamarca
341
O caso da Espanha
354
O caso da Finlândia
369
O caso da França
378
O caso da Holanda
389
O caso da Itália
404
O caso da Noruega
417
O caso da Suécia
430
O caso da Suiça
447
As reformas da integração e da desespecialização
453
Uma acentuada desespecialização nos Anos 90
457
Concluindo
479
Capítulo 6
O neoprofissionalismo em questão
483
O ajustamento face ao desemprego
486
Um ajustamento à procura social
488
O ajustamento face às novas competências
493
O ajustamento ao mundo empresarial
497
O impacto do sistema educativo mundial
503
Processo de unificação e função propedêutica: ligações
506
Um conflito entre mandatos societais
511
O corpo das hipóteses de investigação
517
Capítulo 7
O inquérito e os seus resultados
527
As motivações e os objectivos das reformas
531
A atracção pela formação geral e a desespecialização da
550
A decisão política: pressões internas e externas
565
Adesão-resistência às reformas
574
Conclusão geral
578
xiv
Capítulo 8
Reflexão final e conclusões
Um desequilíbrio -reequilíbrio entre racionalidades
584
A evolução da economia e da procura social
589
A “formação geral” como modo de especialização
595
A acção do sistema educativo mundial
602
A ambiguidade das reformas neoprofissionalistas
608
Síntese de um percurso em espiral
612
Principais conclusões da investigação
616
Limites da investigação e sugestões para novas aborgagens
631
Nota final, em jeito de pósfacio
637
Bibliografia
Anexos
647-680
Questionário
Quadros complementares
Lista dos respondentes, país por país
Ficha
583
683
701-706
707
719
xv
Relação de quadros, gráficos e figuras
Quadro 1.1.
Quadro 1.2.
Quadro 1.3.
Quadro 1.4.
Figura 1.1.
Figura 3.1.
Quadro 3.1.
Quadro 3.2.
Quadro 4.1.
Quadro 4.2.
Quadro 4.3.
Quadro 4.4.
Quadro 4.5.
Quadro 4.6.
Quadro 4.7.
Gráfico 4.2.
Figura 5.1.
Quadro 5.1.
Figura 5.2.
Síntese comparativa entre modelos de ensino e de
formação dominantes no ensino secundário (grupo etário
16 - 19 anos).
Comparação entre países da Europa relativamente à
duração da escolaridade obrigatória e ao início da
diversificação escolar (1995).
Tipologia da incidência da diversificação escolar.
Tipologia de sistemas de ensino secundário segundo o
grau de integração/diversificação.
Polarizações dominantes exercidas sobre o ensino
secundário inferior e superior.
Hierarquia dos espaços da empresa e seu diferente
posicionamento face à mudança.
Do fordismo ao neo e pós-fordismo: caracterização de
modelos de desenvolvimento nacional.
Dimensões do processo de globalização.
Taxa de crescimento do número de alunos inscritos no
ensino secundário superior em alguns países europeus
1960-1970.
Proporção da população de dois grupos etários que
terminou pelo menos os estudos secundários de
segundo ciclo (1992).
Taxas de desemprego de jovens em países da OCDE.
Evolução da distribuição das frequências segundo o tipo
de ensino secundário.
Os investimentos do Banco Mundial no Ensino Técnico e
Profissional (1963-1988).
Evolução das taxas de escolarização de estudos
superiores (1980 - 1992).
Taxas de desemprego juvenil (15-24 anos) em países da
OCDE.
Do triângulo ao hexágono.
Organigrama do sistema escolar da Dinamarca -Ensino
Secundário.
Distribuição da população escolar após a escolaridade
obrigatória, na Dinamarca, entre 1981/82 e 1990/91.
Organigrama do sistema educativo Espanhol - LOGSE
(1990).
13
26
27
34
39
157
164
207
276
277
291
307
309
313
314
323
342
343
357
xvi
Figura 5.3.
Quadro 5.2.
Figura 5.4.
Quadro 5.3.
Articulação entre o sistema de ensino geral e o sistema
de formação profissonal específica (FPE).
Evolução da frequência da FPI, FPII, Ciclos Formativos
de grau Médio e de Grau Superior, em Espanha, entre
1987 e 1997.
Organigrama do Sistema Edcuativo da Finlândia-Ensino
Secundário.
Novas Áreas de formação técnico-profissional no ensino
secundário na Finlândia (reforma de 1991).
361
366
370
373
Figura 5.5.
Processo de Experimentação entre 1991 - 1999.
375
Figura 5.6.
Organigrama do sistema educativo em França.
380
Quadro 5.4.
Distribuição da frequência do ensino secundário superior
em França 1992/1993.
382
Figura 5.7.
Organigrama do sistema escolar holandês.
391
Frequência dos estabelecimentos de ensino secundário
de 1970 a 1990.
Fluxos de transição dos alunos entre modalidades de
ensino e escolas.
Distribuição das frequências do ensino secundário
superior em Itália por tipo de escola (1991/92).
394
Figura 5.10.
Sistema educativo em Itália.
408
Quadro 5.6.
Componentes de formação dos cursos dos Institutos
Profissionais.
412
Quadro 5.7.
Estrutura de áreas de formação adoptadas em Itália.
413
Quadro 5.5.
Figura 5.9.
Gráfico 5.9.
Quadro 5.8.
Quadro 5.9.
Figura 5.11.
Situação (a 1 de Outubro de 1992) dos jovens que
concluiram a escolaridade obrigatória na Primavera de
92, na Noruega.
Progressão do número de especializações dentro do
ensino secundário superior na Noruega (1994).
Nova organização do ensino secundário na Noruega.
Oferta educativa da escola secundária superior
integrada na Suécia.
Percentagem de alunos que tendo terminado a
escolaridade obrigatória se matricularam no ano lectivo
Quadro 5.10
seguinte no ensino secundário superior (escolas
públicas), na Suécia.
Alunos no ensino secundário superior (local, regional e
Quadro 5.11. independente) segundo o tipo de estudos que frequenta
(1988-1992), na Suécia.
Figura 5.12.
393
405
419
423
425
432
435
435
xvii
Figura 5.13.
Quadro 5.12.
Figura 5.14.
Quadro 5.13
Quadro 5.14.
Quadro 5.15.
Quadro 5.16.
Quadro 5.17.
Gráfico 5.15.
Quadro 5.18.
Gráfico 5.16.
Quadro 7.1.
Quadro 7.2.
Quadro 7.3.
Quadro 7.4.
Quadro 7.5.
Quadro 7.6.
Quadro 7.7.
Quadro 7.8.
Distribuição dos alunos do 1º ano do ensino secundário
436
superior, na Suécia (outubro de 1993).
Novas áreas de formação/programas nacionais de
443
ensino secundário na Suécia.
Organigrama do sistema educativo da Suiça - ensino
448
secundário.
454
Elevação do nível de formação geral, entre 1960 e 1990,
dos que saem do sistema de ensino secundário.
456
Matriz comum aos percursos de formação sistemática
pós-obrigatória em Portugal (1992).
Desespecialização no Esino Técnico e Profissional na
459
Europa.
Evolução da participação dos jovens de 16 e 17 anos no
466
ensino e na formação.
Evolução da distribuição das frequências segundo o tipo
468
de ensino secundário (Tempo inteiro + parcial).
Evolução das frequências do ensino secundário “Geral”
469-471
e “Técnico e Profissional”, entre 1970 e 1995.
Tendências da evolução do ensino secundário ”Geral”,
472
na Europa (anos 90).
Evolução do desemprego na área da OCDE (1950480
1996).
Distribuição dos respondentes por país e segundo o tipo
528
de actor social.
Questionário enviados e recebidos, por país e por actor
social.
Pincipais razões que levaram os responsáveis políticos a
desencadearem as reformas.
Aspectos mais relevantes (entre “os muito relevantes”)
que levaram os responsáveis políticos a desencadear as
reformas, segundo os actores inquiridos.
Em poucas palavras, a reforma do ensino secundário
visou essencialmente o seguinte objectivo.
As reformas escolares, para além do modo como foram
veiculadas pelos decisores políticos, correspondem
efectivamente, na opinião dos actores sociais, a um
processo centrado sobre.
Qual das afirmações traduz melhor a finalidade principal
das reformas em análise.
Valorização de afirmações sobre a relação escolaempresa.
529
535
539
541
543
547
549
xviii
Quadro 7.9.
Quadro 7.10.
Quadro 7.11.
Quadro 7.12.
Quadro 7.13.
Quadro 7.14.
Quadro 7.15.
Quadro 7.16.
Quadro 7.17.
Motivos a que se fica a dever a redução do número de
especializações no ensino e na formação ao nível do
ensino secundário.
Resultados
esperados
para
as
reformas
de
desespecialização
e
de
integração
curricular,
considerando a história de cada País.
Porquês da promoção da ampliação dos troncos
comuns, da desespecialização e da integração curricular
no ensino secundário, na óptica dos actores sociais.
Modos como os actores sociais valoram a
formação”geral”
e
o
ensinotécnico-formação
profissional antes das reformas.
Pressões internas sobre as reformas do ensino e da
formação ao nível secundário.
Organismos internacionais que influenciaram as
reformas nacionais.
Em que é que, do ponto de vista do conteúdo, foi mais
notória a influência de organismos internacionais.
De que modo concreto é que a influência internacional
se exerceu.
Comparação entre o peso das influências internas e
externas sobre a decisão política das reformas.
Quadro 7.18. Adesão e resistência às reformas.
Quadro 7.19.
Quadro 8.1.
As resistências sociais à reforma empreendida partiram
sobretudo de que sectores.
Elementos de compreensão do modo de funcionamento
do sistema educativo mundial.
555
557
559
562
567
569
572
573
574
576
577
630
xix
Prefácio
Um actor perguntador
Não é só a razão que comanda os impulsos em direcção à investigação.
Talvez nunca o tenha sido, mas, como um dia ouvi dizer, esse é um segredo
não revelado. Talvez seja bem mais determinante a torrente das águas
impetuosas que inundam o leito da existência de cada um. O autor desta
investigação, durante duas décadas de vida profissional no campo da
educação, embrenhou-se por entre práticas e crenças, formulou políticas e
executou projectos, enleou-se em enigmas e em evidências, na tentativa de
se situar na desordem envolvente, consciente da sua condição de actorautor, balanceando permanentemente, como todos os outros actores e
autores, entre o nascimento e a morte. Ao longo dos anos, manteve os
ouvidos e os olhos abertos para uma imensidão de vozes, diversas e
conflituosas, debaixo de um manto de consensos que porventura nunca
terão existido. Habituou-se a navegar num mar de perguntas, inúmeras e
desordenadas, não como prática de investigador mas como atitude
permanente diante das coisas e da vida.
À medida que os anos iam passando, a arca das perguntas enchia-se, a par
de uns quantos papéis e notas que parecia darem contributos pertinentes
para a compreensão dos fenómenos que o actor e autor observava e em que
participava. Às perguntas do estudante e do dirigente estudantil sucederamse as do professor, nos fins dos anos setenta. Depois veio o olhar, o ouvir e
o sentir do técnico de planeamento regional da área da educação e o
contacto com um território, o norte de Portugal, as suas gentes, as suas
inquietações, anseios e projectos, vieram as equipas de trabalho e os
primeiros estudos no terreno: os abandonos escolares em áreas rurais, o
xx
ensino técnico e profissional, o papel e a imagem dos professores, as
opções escolares e profissionais dos jovens. E aí, cada uma das perguntas
de partida transformava-se num emaranhado de questões de percurso e,
sempre, em novas perguntas à chegada. Tínhamos muito gosto em fazer
essa escalada que vai da informação até ao conhecimento e, por vezes,
durante breves segundos, ousávamos pensar ter alcançado a sabedoria.
Seguiram-se, nos últimos dez anos, a experiência de activa participação na
construção de uma "reforma educativa", o período de direcção da
administração pública no domínio da educação, em particular no ensino
secundário, e a fase da governação, na mesma área. Paradoxalmente,
aquele que parecia ser o tempo privilegiado das respostas, da sobrelevação
das crenças e das soluções estruturadas, pouco mais foi do que o tempo da
experimentação dos maiores limites, o terreno fértil de novas e bem mais
demolidoras constatações e interrogações. O tempo primordialmente
predestinado ao fazer destinou-se mais ao ouvir. A torrente das perguntas,
supostamente em "stand by", irrompia no momento mais inoportuno. Em
contrapartida, a visão ampliava-se, percorria caminhos insuspeitados, novos
ângulos de abordagem se impunham e um sem número de evidências eram
abaladas
e,
quantas
vezes,
desmoronavam-se,
caindo,
por
vezes
espectacularmente, no mais calado silêncio, como se a vida fosse sobretudo
o defluir de um filme sem som.
Os palcos internacionais de encontro na área da educação sucederam-se,
anos a fio, com destaque para os cenários da UNESCO, da União Europeia
e da OCDE, particularmente do CERI-Centre d´Études et Recherches sur
l´Innovation. As políticas de educação e de formação passavam velozmente
a ser tomadas como instrumento de tecnologia social e as políticas nacionais
de educação começavam a ficar cada vez mais submersas pelo peso
compressor das dinâmicas de reflexão e pelas sucessivas recomendações e
até iniciativas políticas dos organismos internacionais.
xxi
O nascimento de novas perguntas significava o esquecimento e a morte de
umas quantas anteriormente enunciadas. E, assim, lentamente, sem rumo
definido, sem sobredeterminação racional aparente, renovaram-se os
"stocks" de interrogações, mudaram-se os olhares, fizeram-se e refizeram-se
planos de pesquisa, que por três vezes se encetaram, entre 1987 e 1994. O
ensino secundário foi o terreno que se impôs pela sua centralidade na
experiência pessoal do autor, embora a escolha do objecto de investigação
tenha apenas surgido após sucessivos actos eleitorais interiores.
Dentro da problemática das reformas do ensino secundário emergiu
paulatinamente um problema particularmente interessante. Ao mesmo tempo
que uns países continuavam a investir na profissionalização do ensino
secundário superior, criando até novas vias de especialização técnica e
profissional, muitos outros empreendiam várias reformas que apostavam
claramente na desespecialização e na unificação de percursos escolares,
até então separados por vários ramos e até por diferentes tipos de escolas.
A paixão por este problema não resultou de uma escolha muito objectiva e
racionalizada. Como em todas as paixões, o que sabemos é tãosimplesmente que estamos apaixonados, raramente sabemos quando, onde
ou como foi que isso aconteceu.
Os discursos reformadores e os seus relatórios políticos de suporte eram
lidos com avidez. Neles emergia, como no laboratório fotográfico, uma
inquietante convergência na consideração da necessidade de se proceder a
um urgente reforço da formação "geral", ao abandono das vias de
especialização, à desprofissionalização do ensino secundário e a um
"regresso em força à cultura geral", como se afirmava. Documento atrás de
documento e conversa atrás de conversa levantava-se um rol de
interrogações sem resposta.
xxii
Em Phoenix-Arizona, por ocasião de um seminário internacional da OCDE
sobre os novos papéis do ensino técnico e da formação profissional, em
Março de 1991, uma questão sobrepôs-se a tantas outras, em páginas e
páginas de notas: porquê este movimento, aparentemente tão inesperado e
drástico, de desespecialização e de unificação porque é que ele ocorrerá
simultaneamente e tão similarmente em tantos países do continente
europeu?
Como seria de esperar, o terreno da acção política e da participação cívica
foi, por força das águas deste rio, o terreno da emergência de uma pergunta
que não mais abandonaria o núcleo das motivações pessoais. É este terreno
que, ao mesmo tempo, abre e fecha e caracteriza o olhar do autor e disso se
dá conta, sem rodeios.
Ao longo destes anos os materiais continuaram a recolher-se e a acumularse: artigos de revistas, livros, publicações oficiais de muitos países, e até
estudos oferecidos e ainda por publicar. As conversas em roda da questão
sucederam-se, muitas vezes com interlocutores bastante qualificados, em
encontros, seminários e conferências internacionais. Estes contactos
pessoais revelam-se, revistos agora da frente para trás, como um elemento
decisivo na fabricação do olhar do sujeito sobre o objecto a investigar.
E, uma vez conseguida a necessária disponibilidade, iniciou-se um novo
ciclo de relacionamento com a problemática seleccionada, o ciclo da
investigação. A questão de ontem já não era a questão de hoje; ela surgia
agora envolvida por satélites de conceitos, tais como novo sistema produtivo,
desemprego estrutural, globalização, mercados de trabalho, requalificação e
desqualificação, procura social de ensino, credenciais escolares, unificação
escolar, unificação curricular e unificação institucional, mimetismo social,
convergência internacional e sistema educativo mundial.
xxiii
A pergunta de partida reformulava-se, fazendo surgir novos contornos no
objecto de investigação. A desespecialização e a desprofissionalização que
marcam, de modo similar e simultâneo, vários países europeus, mormente os
seus percursos de ensino técnico e profissional do ensino secundário,
corresponderão a um objectivo de reforço das competências humanas dos
cidadãos ou traduzirão sobretudo uma nova etapa na subordinação dos
sistemas de ensino aos mandatos da economia, agora em profunda
reestruturação? Assiste-se efectivamente a uma reorientação das finalidades
educativas do ensino secundário ou antes se reforça, agora com um novo
rosto, a sua finalidade produtiva? Como é que os actores sociais se
apropriam destas novas orientações? Que sentido lhes atribuem? Que rumos
gerais norteiam a evolução do ensino secundário na Europa, às portas do
Séc. XXI?
A construção da União Europeia viria a realçar, ano após ano, nos anos
noventa, a perspectiva de que está em lenta construção um sistema
educativo europeu. As intervenções cada vez mais numerosas e mais
orientadoras e sustentadas da Comissão Europeia nos domínios da
formação profissional, do ensino técnico e da educação escolar, em geral,
configuram um terreno propício à manifestação de processos isomórficos e
de homogeneização supranacional capazes de influenciarem vigorosamente
a evolução dos sistemas educativos dos países membros ( e até dos não
membros). A constituição, em 1997, do Europasse-formação constitui talvez
o facto mais paradigmático da evolução que se está a desenhar, como que
imperceptivelmente1.
É este o problema que sucessivas interrogações, formuladas anos a fio, a
tempo e a destempo, foram resgatando à voragem dos dias. Uma vez
retirado do fluxo ininterrupto das coisas e da vida e em ordem a conferir-lhe
1
Cfr. documentação produzida pela Direcção Geral XXII sobre esta matéria, em 1997.
xxiv
um
outro
sentido,
decidimos
reinscrevê-lo
em
novas
lógicas
de
inteligibilidade potencial (Berthelot, 1996).
Em resumo, foi no seio de uma acção política concreta e pessoal que se
ergueram, como uma bola de neve, certas evidências e alguns enigmas em
torno dos novos rumos do ensino secundário na Europa, uma longa série de
perguntas sem resposta ou com respostas insatisfatórias, demasiado
envoltas no verniz dos discursos políticos. Ao assinalá-lo o autor quer tornar
bem explícito o facto de que esta experiência pessoal impõe um certo modo
de ouvir, de olhar, de pensar e de comunicar, que se assume com todos os
seus limites e todas as suas virtualidades. O rasto de conhecimento que se
empreendeu e de que aqui se dá conta, destrói uns enigmas e reconstrói
outros e porventura constrói novas evidências. Mas é assim. Ambos são o
vento que anima os dias que correm, céleres, aparentemente sem princípio
nem fim.
Deste modo, o objecto da investigação foi eleito no seio de uma experiência
pessoal de acção social, e aí andou envolto no jogo dos actores em que o
autor se envolveu. Ao vincar este percurso pessoal o autor quer tão-só
assinalar, como primeiro passo de enunciação metodológica, a emergência
do observador no objecto observado: ele determina a natureza da
observação e influi no fenómeno observado. Desde a eleição do próprio
objecto, da sua descrição e explicação, passando pela escolha dos campos
teóricos de análise, pelos modos de interrogar a problemática, até às
escolhas metodológicas, em todos os passos se respira a subjectividade do
investigador.
O autor simultaneamente reconhece, com Boaventura Sousa Santos (1987),
que o conhecimento adquirido no exercício profissional é um saber com um
sabor indisciplinado e indisciplinar que, embora capaz de lançar perguntas
xxv
ao objecto, tem muita dificuldade em romper com o conhecimento existente,
um saber que navega nas águas de um rio imensamente fluente que é o rio
da retórica política, sempre evidente, convincente, prático e superficial. O
autor reconhece também que a manifestação inequívoca da personalidade
do observador no observado e da união íntima e inexpurgável de quem
estuda aquilo que estuda, marca o processo de investigação com vários
riscos, entre os quais se encontra o de tomar como resultados da
investigação as suas opiniões, resultantes de uma grande e contínua
familiaridade com o objecto em análise.
Partiu-se, assim, para a construção de um percurso pessoal de investigação
que favorecesse um forte distanciamento crítico em relação ao tipo de
conhecimento anteriormente construído sobre o objecto, sujeito à irrupção
fácil de preconceitos e de falsas evidências. Desse percurso se dá conta nas
páginas que se seguem. Com todos os seus limites, e são muitos, ele
enriqueceu muito o autor. Fica-lhe particularmente registada a necessidade
de maior rigor analítico permanente, a consciência da complexidade do real
e dos grandes limites ao seu conhecimento profundo, a consciência de que
somos um elo na cadeia do conhecimento humano e de que a solidariedade
é a massa invisível com que se forja a ciência.
E, como diz Karl Popper "quando nos damos conta de que não podemos
trazer o céu à terra, mas tão-só melhorar as coisas um pouco, também
vemos que só podemos melhorá-las pouco a pouco".
1
Capítulo 1
A ordem e a desordem no ensino secundário.
A análise da problemática (aqui entendida como uma organização
rudimentar de um campo de fenómenos que permite identificar problemas,
em ordem a uma investigação) da crescente integração curricular e da
desespecialização que ocorrem simultaneamente no ensino secundário na
Europa, com particular ênfase nos anos noventa, reclama antes de mais a
procura, entre a ordem e a desordem que o caracterizam, de um "espaço de
visibilidade" próprio (Almeida e Pinto, 1995:18) e uma definição conceptual
estável, em torno de termos cujo controlo semântico se torna crucial, tanto
mais que se empreende uma abordagem de âmbito internacional. Os termos
da linguagem comum relativos ao ensino secundário superior2 são de uma
enorme variedade e amplitude semânticas e, frequentemente, os mesmos
termos apresentam significados muito diversos, em função dos contextos
sociais e históricos nacionais, dando lugar a um emaranhado bastante
informe de significações. É com a caracterização deste tipo de ensino e de
formação, em que se apresentam as suas diversas faces, e com a definição
dos principais conceitos que mobilizaremos no presente estudo, que
iniciamos o percurso de um conjunto de patamares analíticos que visam
reconhecer e atribuir espessura e complexidade a uma problemática que
consideramos crucial e profundamente actual nos sistemas educativos, em
todo o mundo.
Uma selva sem identidade?
A diversidade patente no segmento do ensino secundário superior é enorme,
2Utilizaremos a designação de "ensino secundário" como equivalente à de "ensino secundário superior" ou de "ensino
secundário de segundo grau", uma vez que, em Portugal, a primeira forma é a que corresponde às restantes, em outros
países europeus. A delimitação destes conceitos é explicitada já em seguida.
2
o que lhe tem motivado a atribuição dos mais contundentes epítetos por
parte de vários autores. Um relatório inglês sobre a situação do ensino pósobrigatório no Reino Unido, referenciado por Pedró (1992), descrevia o
panorama de possibilidades que eram oferecidas aos jovens no ensino
secundário como uma verdadeira "selva". O mesmo termo é referido por
Leclercq (1992), conjugando-o com uma "impressão de complexidade
excessiva e desencorajante". Por sua vez, J. Lesourne (1988), ao analisar as
relações entre educação e sociedade, sublinha que é ao nível do ensino
secundário de massas que se põem com mais acuidade as questões
relativas a programas de estudo e a pedagogia. A amplitude dos problemas
de conjunto que enfrenta hoje o ensino secundário e a profunda influência
que sobre ele terão os desafios do futuro fazem dele "potencialmente a parte
mais frágil do nosso sistema educativo" (Lesourne,1988:249). Depara-se,
assim, ab initio, com a ausência de uma definição unívoca e comum
(Pedró,1996) e com uma classificação algo paradoxal do ensino secundário,
representado ao mesmo tempo como uma selva e uma parte frágil do
sistema escolar.
Ibarrola e Gallart (1994), embora situadas perante o contexto latinoamericano, referem ainda que este grau de educação "carece de identidade
própria", o que é comungado por muitos outros autores europeus. Por um
lado, porque é permanentemente atravessado e influenciado pelas políticas
da educação básica e superior, seja enquanto prolongamento da
escolaridade obrigatória seja como percurso propedêutico do ensino superior
e ocasião de selecção daqueles que lhe devem aceder. Por outro, porque
evoluiu de um ensino só para elites para um ensino de massas, que se
confronta em permanência com a atribuição social de objectivos muito
diversos e, em parte contraditórios ou, no mínimo, muito divergentes. É o
caso, por exemplo, das funções de orientação e de selecção ou o caso das
funções de preparação para a continuação de estudos superiores e de
preparação para o exercício profissional imediato, a par das funções de
3
desenvolvimento das capacidades individuais e da formação de cidadãos
responsáveis.
Estamos, de facto, perante um segmento do sistema educativo onde existe
uma irrecusável diversidade de situações e onde impera a dispersão da
oferta escolar, contrariamente ao ensino básico, segmento onde, em geral,
predomina o modelo unificado. Esta dispersão espelha a presença de uma
multiplicidade de objectivos e de funções atribuídas ao ensino secundário
superior. Garrido (1992) e Leclercq (1992) assinalam que esta diversidade é
acompanhada por uma hierarquia entre percursos institucionais e entre
cursos, hierarquia que se estabelece não só entre as formações escolares
gerais e as formações técnicas e profissionais, mas também entre as
diferentes modalidades destas últimas.
Esta percepção comum acerca da multiplicidade de funções sociais do
ensino secundário remete necessariamente para um terreno onde se
confrontam diferentes racionalidades, não só em termos de opções políticas
que se formulam para este nível de ensino, como também no que se refere
às representações sociais que em torno dele se movimentam.
É face a esta diversidade de racionalidades que se impõe começar por
proceder à definição dos conceitos-chave que aqui se vão utilizar e, se
possível, fazer ressaltar em categorias a variedade existente. Se este
empreendimento tem a desvantagem de reduzir a complexidade e os
particularismos, comporta em si mesmo a vantagem de revelar as grandes
tendências que os estruturam e de sublinhar as diferenças nucleares que se
mantêm entre os países europeus. Com base nestes conceitos e categorias
cremos que será bem mais rigorosa esta empresa analítica.
Os principais modelos de referência
Na Europa, o ensino secundário compreende geralmente dois ciclos: um
4
primeiro ciclo ou grau, inferior, normalmente integrado na escolaridade
obrigatória e sequencial em relação ao ensino primário, e um segundo ciclo
ou grau, de nível superior, situado entre a formação geral , universal e
básica e o ensino superior. O primeiro ciclo, regra geral, é unificado e o
segundo ciclo é diversificado, não só em termos curriculares, mas inclusive
do ponto de vista institucional. Podem tomar-se, por isso, como sinónimas as
designações "ensino secundário de segundo ciclo", "ensino secundário
superior", "ensino secundário de segundo grau". É este o ciclo escolar que
aqui analisamos e que optamos por designar apenas por ensino secundário,
que é aliás a designação actualmente usada em Portugal.3
No panorama europeu, o segmento do ensino secundário é o que apresenta
a maior diversidade de situações nacionais e também o que maior
controvérsia tem suscitado nos últimos trinta anos. Define-se como a
componente dos sistemas educativos em que se englobam as modalidades
de ensino e formação que são oferecidas no nível pós-obrigatório e os vários
tipos
de
instituições
formativas
em que
aquelas
normalmente
se
desenvolvem - liceus, escolas secundárias, escolas técnicas e escolas
profissionais. Exclui-se deste conceito o conjunto das modalidades de
formação permanente, mas integra-se nele também uma série de iniciativas
de qualificação inicial dos jovens que têm em vista facilitar a sua inserção
socioprofissional, incluídas no que se costuma designar por sector de
educação não-formal ou por programas de formação-emprego.
Opta-se, assim, por um conceito abrangente de ensino secundário, pois nele
não se abarcam apenas as tradicionais vias de ensino, a mais conhecida das
quais é o liceu, mas um leque multifacetado de percursos de ensino e de
formação profissional inicial.
3 Note-se, todavia, que o facto de tomarmos estas designações como equivalentes não significa que se desvalorizem as
diferenças que lhes subjazem. Na verdade, o simples facto de o ensino secundário se iniciar no termo do ensino primário
ou no termo da escolaridade básica e universal reflecte uma intencionalidade política, orientações e modos de
organização diversos, de sistema educativo para sistema educativo, de país para país.
5
A oferta da educação secundária destina-se ao grupo etário 16-18/19 anos,
variando em função do número de anos de duração da escolaridade básica e
dos seus próprios cursos. O património analítico desta problemática
considera que o ensino secundário de segundo ciclo se organiza em três
sectores principais, a saber: o escolar, o dual e o não-formal ( cfr., por
exemplo, Garrido, 1992; Pedró, 1992; OCDE, 1985).
O sector escolar do ensino secundário compreende as instituições que
oferecem, a este nível e para esta população, cursos normalmente
estruturados em três percursos: o geral ou académico, o técnico e o
profissional. O sector encontra-se sob tutela da administração educativa,
havendo
evoluções
recentes
em
direcção
a
uma
partilha
de
responsabilidades com outros departamentos da administração e com outros
actores sociais.
O sector dual ou de "aprendizagem" corresponde a uma oferta de formação
profissional inicial que decorre ao mesmo tempo em centro de ensinoformação e em empresa. A tutela é mista, dos empresários e da
administração pública, e os cursos conduzem à obtenção de certificações
reconhecidas por ambas as partes.
O sector não formal compreende uma panóplia de programas de formação e
de formação-emprego, desenvolvidos com a intervenção do Estado e das
empresas, que integra cursos de duração superior a um ano e cursos de
curta duração. Este sector visa constituir uma alternativa aos estudos
escolares e ao desemprego, abarcando, por isso, jovens que já saíram do
sistema escolar e que procuram uma qualificação específica para ingressar
no mercado de emprego. Ele não se confunde, todavia, com a educação
informal, uma vez que se trata de formações organizadas e sistemáticas,
com carácter deliberadamente qualificante e devidamente planificadas,
6
destinadas normalmente a grupos específicos da população.
Adopta-se esta categorização na medida em que ela nos permite não só
definir mais rigorosa e separadamente cada sector, que tem uma história e
uma racionalidade próprias, como também ler melhor a diversidade inter e
intranacional existentes na Europa. Será no ensino e na formação que se
inscrevem no modelo escolar que esta investigação se irá centrar, como
veremos mais adiante.
Os modelos escolar, dual e não-formal
Àqueles três sectores correspondem três modelos organizativos do ensino
secundário,
cuja
predominância
varia
de
país para país e cujas
características importa definir.
Aos diversos modelos organizativos da escolarização secundária subjazem
diferentes modos de percepcionar a função social do ensino secundário e,
consequentemente, modos diferenciados de seleccionar e de organizar os
conteúdos e os processos educativos. Nesta selecção e organização
intervêm também as culturas próprias de cada país, os seus modos de
organização social e produtiva e o peso da estruturação tradicional do
ensino secundário, segmento do sistema educativo dirigido anteriormente a
uma pequena elite da população.
Hoje, praticamente em todos os países europeus, encontramos os três
modelos dominantes, mas, de país para país, difere a relevância de cada
modelo, fruto também de tradições históricas diversas e de uma grande
variedade de políticas nacionais e de políticas educativas.
O modelo escolar tende a constituir-se como o modelo aglutinador de quase
7
todas as formas de escolarização pós-obrigatória no seio dos sistemas
formais de ensino e aquele que melhor tem favorecido uma escolaridade
pós-obrigatória de massas e a tempo completo. Ele agrupa os mais variados
tipos de escolas ou institutos de ensino secundário, desde os liceus mais
tradicionais, até escolas técnicas e escolas profissionais, conforme os
países. Desenvolvido inicialmente nos EUA, este modelo de escolarização
do grupo etário 16-19 anos, após a II Guerra Mundial, teve uma grande
expansão em países como a Bélgica, a Suécia, a Noruega, a Dinamarca, a
Holanda e a Finlândia, países onde, já em meados dos anos 80, mais de
dois terços dos jovens de 17 anos estavam escolarizados.
Este modelo é igualmente dominante em países que apresentam, no
contexto europeu, as mais baixas taxas de escolarização, como a Turquia, a
Grécia, a Espanha e Portugal, países estes onde o modelo dual coexiste
com o modelo escolar, embora apresente sempre uma diminuta expressão.
De forma muito pertinente, Husén (1990:40) identifica, na sua matriz, dois
submodelos incluídos neste modelo mais geral. Para este autor sueco, tendo
presente a estrutura e o currículo dos diversos subsistemas de ensino
secundário, o modelo escolar comporta um submodelo bipartido e um
submodelo compreensivo. O primeiro é um submodelo europeu tradicional
em que as escolas académicas e as escolas técnicas ou profissionais
coexistem como escolas paralelas; diferem bastante no "background" social
da população que as frequenta e existe tradicionalmente um baixo grau de
mobilidade entre elas. O segundo compreende escolas com uma enorme
diversidade curricular em que todos os cursos estão sob o mesmo tecto. O
tipo clássico da escola compreensiva é a "high school" americana, a que se
veio juntar, segundo o mesmo autor, a "gymnasium school" da Suécia, onde
a diversidade é acolhida num único tipo de escola.
A certificação escolar a que se acede neste modelo está intimamente
8
associada à perspectiva de "transfer" ou de “transporte”, ou seja, à abertura
das portas para o prosseguimento de estudos ainda que, em alguns casos, a
certificação tenha o rosto de um diploma técnico ou profissional.
A este modelo escolar, em que predominam diversas modalidades de
formação a tempo inteiro e uma orientação em relação ao prosseguimento
de estudos, está subjacente uma cultura "educacionalista", para usar a
expressão de Kämäränien (1996), em contraponto com uma cultura
"profissionalista", próxima do modelo dual, eminentemente articulada com a
renovação da força de trabalho e assente na cooperação estreita entre
escolas e empresas.
O modelo de formação escolar dominante na Europa é o que contempla a
diversificação institucional, havendo uma sulco histórico de separação,
geralmente bastante rígida, desde os programas, aos tipos de docentes e
aos diplomas, entre centros ou escolas de formação profissional inicial e
escolas de ensino secundário geral ou liceus.
Um dos mais sérios problemas de política educativa, nos países onde
predomina o modelo escolar de organização do ensino secundário, prendese com a sua incapacidade em acolher, nas tradicionais modalidades
escolares, a totalidade do grupo etário correspondente, deixando de fora
uma percentagem mais ou menos significativa de jovens.
Estes "grupos
residuais" (Gordon, 1990) ou grupos resultantes do "insucesso da escola"
(Banks, 1994), que podem atingir em casos extremos mais de 30% dos
jovens do respectivo grupo etário, têm vindo a ser alvo de múltiplas
iniciativas políticas nos domínios da formação e do emprego, que mais se
aproximam dos modelos não-formal e dual , o que admite, desde logo, a
enunciação da hipótese de que talvez se esteja, nos anos 90, perante um
novo cenário em que terá deixado de existir o modelo escolar, puro e
tradicional, passando a haver combinações diversas entre os modelos
9
organizativos, neste caso sempre sob a predominância do modelo escolar e
geralmente sob o controlo das administrações educativas.
O modelo dual, caracterizado por um forte segmento de formação em regime
de aprendizagem, formação em alternância escola-empresa, é predominante
na Alemanha, na Suiça, no Luxemburgo e na Áustria, onde a maioria dos
jovens de 17 anos o frequentam, e é significativo em países como a
Dinamarca e a Holanda. Esta é a forma mais antiga de combinar formação e
trabalho. Nos anos 80, este modelo de organização do ensino e da formação
esteve muito em voga e quase todos os países o adoptaram, assistindo-se
actualmente à existência de uma grande variedade de estatutos e de tipos
de qualificações sob a designação de "aprendizagem". Nos países do sul da
Europa, este modelo, pela ausência de condições sociais e produtivas
idênticas aos países onde é predominante e ainda pelo seu carácter de
modelo migrante em contexto cultural "educacionalista", é minoritário e
destina-se frequentemente a grupos populacionais "insucedidos" no sistema
escolar formal, assumindo-se como alternativa ocupacional às tradicionais
escolas técnicas ou profissionais.
Pode considerar-se ainda dentro deste modelo a tradição dos cursos
"sandwich" das escolas técnicas do Reino Unido, cursos estes que
compreendem seis meses de estudos a tempo completo, alternados com
períodos longos de trabalho em empresa, dentro de um quadro geral de
estreita cooperação entre as escolas e a indústria local.
A principal característica específica deste modelo de organização da
formação, que é repetidamente ensaiada em novos países, é o envolvimento
activo e directo das empresas na concepção, selecção, organização e
transmissão da formação. A empresa é o elemento central do processo
formativo. Combina-se no mesmo processo formativo a socialização escolar
mais tradicional com a socialização para o trabalho, fazendo envolver
10
geralmente dois "locus" sociais habitualmente separados nos outros
modelos, a escola e a empresa. Tal prática revela um potencial de
ajustamento entre a formação e o exercício profissional que, à partida, tem
sido tomado como um instrumento útil para a formulação de políticas de
ensino técnico e de formação profissional que visam, antes de mais,
melhorar o ajustamento entre a formação inicial e o mercado do primeiro
emprego.
A certificação profissional atribuída pelos parceiros sociais, em sede de
concertação social, é reconhecida ipso facto no mercado de emprego, além
de
comportar
também uma
equivalência
escolar.
A formação
em
aprendizagem, ao nível pós-obrigatório, tem, por isso mesmo, um cunho
predominantemente terminal e uma natureza ocupacional. Retomando a
designação de Kämäränien, há uma coerência cultural "profissionalista" que
envolve e estrutura o modelo dual de organização da oferta educativa.
O país onde o modelo organizativo não-formal está mais presente, embora
sem ser dominante, é o Reino Unido. Aqui as modalidades pós-escolares de
formação e ocupação englobam um quinto da população do grupo etário 1617 anos. No entanto, estas modalidades não-formais de formação têm vindo
a desenvolver-se um pouco em todos os países, nomeadamente naqueles
onde existe ainda um potencial de crescimento do atendimento escolar e
formativo do grupo etário 16-19 anos, sobretudo após a constatação do
fracasso do sistema de ensino e formação na qualificação de todos os jovens
e diante da persistência de elevados índices de desemprego juvenil. O seu
incremento surge, muitas vezes, associado à expansão de modalidades de
ensino
profissional
ligadas
a
experiências
de
trabalho,
com uma
predominante intencionalidade ocupacional.
Nos anos 80 e 90, as múltiplas configurações de que se revestem as
11
modalidades aqui incluídas, de formação-emprego, de formação para a
inserção socioprofissional, de articulação ensino profissional e trabalho,
começam a revestir-se de uma durabilidade tal que as catapulta para um
estatuto de alternativa formativa permanente, ora próxima do modelo escolar
ora adstrita à lógica dual. Esta última versão tende, entretanto, a ser a
configuração predominante, pois o que está em jogo é principalmente a
formação de um mercado de primeiro emprego mais vasto, capaz de
funcionar como um verdadeiro mercado de pré-contratação ou mercado de
substituição do emprego, para uma boa parte dos jovens.
Tomando como referente uma categorização de Pedró (1992), este modelo
não-formal integra três funções sociais relevantes, variando de país para
país: a de "transição" entre o sistema escolar e o emprego, desempenhando
um papel social ocupacional, que visa combater os longos períodos de
desemprego juvenil; a de "recuperação" ou remedial, na medida em que se
visa completar uma formação de base para aqueles adolescentes e jovens
que abandonaram prematura e/ou desqualificadamente a escola; a de
"complementaridade" face ao ensino formal, o que se traduz na oferta de
uma enorme diversidade de especializações curtas, estágios, experiências
de trabalho.
Esta multiplicidade de funções da formação inicial não-formal assenta num
cruzamento conflituoso de percepções acerca do papel social das formações
integradas no ensino secundário. Neste cruzamento destacam-se, no
entanto, não só a tradicional retórica da preparação dos jovens para o
exercício profissional qualificado, mas sobretudo o efeito social de
parqueamento juvenil, como imperativo de uma economia que oferece cada
vez menos emprego.
Estas formações não são, por regra, conferentes de uma certificação
reconhecida à partida quer pelo sistema escolar quer pelo sistema
12
profissional
e
visam
sobretudo
conferir
competências
práticas
e
imediatamente utilizáveis num contexto profissional concreto, uma vez
encontrado um emprego.
Em síntese, os modelos organizacionais dominantes de ensino e de
formação para o grupo etário 16-19 anos, na Europa, podem caracterizar-se,
como se evidencia no Quadro 1.1, pela finalidade principal dos cursos, pelo
"locus" privilegiado onde decorre a formação, pela tutela e pelo controlo da
iniciativa da oferta de formação e pelo tipo de certificação a que conduz.
Sublinhe-se ainda que, actualmente, quase todos os países da Europa
adoptam os três modelos de organização do ensino secundário, numa
grande variedade de configurações nacionais. A necessidade de fazer
expandir a oferta e de responder à procura massificada do nível secundário
conduz quase inevitavelmente a um tal cenário. De certo modo e nesta
óptica, o ensino e a formação de nível secundário de qualquer país europeu,
nos anos noventa, é escolar, dual e não-formal, um sistema combinado, com
predominâncias diversas, palco de tensões inevitáveis entre culturas
educacionalistas e profissionalistas.
13
Quadro 1.1
Síntese comparativa entre modelos de ensino e formação dominantes no
ensino secundário (grupo etário 16-19 anos)
5
Características
Modelo
Escolar
Dual
Não-formal
Finalidade
principal
dos cursos
"Locus"
privilegiado
de formação
Iniciativa/Tutela
Certificação
Formação
escolar a tempo
completo
Tutela da
administração
educativa
Certificação
escolar e, por
vezes, profissional
Educativa e de
"transporte” (2)
Formação
profissional inicial,
alternando escola
e empresa
Orientação comum
da administração
educativa e das
empresas
Certificação
escolar e
profissional
Ocupacional(1)
e terminal
Formação
profissional inicial
de curta duração
de acesso ao
emprego, em
escola e empresa
Tutela de
organismos
tripartidos e de
empresas
Normalmente não
há certificação
(ou ela é apenas
profissional e
própria de cada
entidade)
Ocupacional(1)
e terminal
(1) Ocupacional = quando a finalidade principal é a capacitação para o emprego imediato
(2) Transporte =as modalidades de ensino e de formação aqui incluídas asseguram o transporte para o
prosseguimento de estudos, no ensino e na formação de tipo pós-secundário e superior.
Tipos de ensino e formação
É habitual considerarem-se, no ensino secundário de segundo grau, três
grandes tipos de ensino e formação: o ensino geral, o ensino técnico e o
ensino profissional. Vejamos pormenorizadamente cada um destes tipos de
ensino, tendo em vista esclarecer o que dizemos quando usamos os termos
geral, técnico e profissional. O ensino secundário geral compreende as
formações tradicionalmente ligadas à preparação para o prosseguimento de
estudos pós-secundários e superiores, o que abarca uma multiplicidade de
percursos escolares. Esta variedade engloba desde percursos dominados
pela perspectiva académica, a mais comum no ensino secundário liceal
tradicional, até percursos escolares mais articulados com o mundo do
14
trabalho.
O termo "geral" aplicado ao ensino secundário é frequentemente tomado
como sinónimo de liceal. Seria porventura assim no passado, mas, ao longo
do
séc.XX,
o
ensino
secundário,
tradicionalmente
elitista,
foi-se
transformando; ocorreu um processo vasto de massificação escolar, o ensino
liceal evoluiu para novas configurações e o ensino "geral" já não se pode
confundir mais com ensino liceal. No entanto, a educação geral esteve
sempre muito ligada, no ensino secundário, à preparação para o
prosseguimento de estudos superiores, tal como à educação profissional
"especializada" sempre se atribuiu a função de preparação para o trabalho.
Ao ensino geral cabe sobretudo o papel de assegurar o "transporte" dos
alunos entre os estudos obrigatórios e os estudos pós-secundários e
superiores. Enquanto o ensino geral se organiza para exercer esta função de
continuidade,
sendo
por
isso
profundamente
condicionado
pela
racionalidade própria do ensino superior e, de certo modo, obrigado a
identificar-se com ele, o ensino profissional organiza-se predominantemente
sob um paradigma de descontinuidade face a estudos ulteriores e tende a
estabelecer as suas bases de identidade e de legitimação identificando-se
com o ambiente profissional e as necessidades do sistema produtivo. Por
isso, em boa verdade, ambos os tipos de ensino são especializados,
cabendo ao currículo "geral" o papel especializado de assegurar o acesso ao
ensino pós-secundário e superior.
Para se apreender a actual complexidade em torno do conceito de ensino
geral é mister explicitar algumas das significações mais importantes que lhe
foram atribuídas, ao longo deste século. Assim, as políticas de ensino
secundário desenvolvidas em todo o mundo têm subjacentes, mais implícita
do que explicitamente, várias perspectivas de educação geral. Segundo
Lauglo (1983), existem três perspectivas dominantes, a académica, a
pragmática e a politécnica, que passamos a descrever, em ordem à sua
15
apropriação pelo quadro analítico em construção.
A perspectiva académica está muito identificada com a tradicional função do
ensino secundário de preparação para a universidade, através da
transmissão de uma "cultura geral", que constitui o substracto de uma
formação moral, em sintonia com a tradição racionalista e com o
enciclopedismo. Os saberes cognitivos e teóricos são elevados à excelência
dos saberes escolares, como libertadores do erro e fundadores da virtude e
dos valores, em geral. Este modelo de educação geral tem sido criticado por
três motivos principais, a saber: (a) os currículos estão "intrinsecamente
ligados à cultura das classes altas", o que pode traduzir-se em dificuldades
concretas acrescidas ao nível da eficiência, na actual escola secundária de
massas; (b) o currículo escolar menospreza a integração na comunidade e
os saberes necessários ao desempenho social de qualquer cidadão; (c) os
planos curriculares esquecem a importância e o valor formativo de algumas
"forças extrínsecas de motivação para a aprendizagem", absolutizando os
"sistemas intelectuais estabelecidos", as disciplinas.
A perspectiva pragmática tem origem no pensamento norte-americano e
baseia-se num modelo de ensino-aprendizagem centrado em problemas e
na "education for life", distinguindo o conhecimento "useful" do conhecimento
"ornamental". Segundo o autor que nos serve de referência, Dewey
influenciou muito esta perspectiva curricular, nomeadamente ao propor que a
educação deve desencadear-se com base em "problemas reais" e que são
ilimitados os recursos para aprender, se o currículo for centrado nos
interesses, preocupações, necessidades e potencialidades criativas que o
próprio aluno tem em si.
Este modelo encorajou as escolas a incluir nos planos de estudos uma
grande variedade de cursos, módulos e de opções formativas, nos domínios
da educação para a saúde, para a qualidade de vida, para a participação
16
comunitária e para o exercício profissional. Criticado pela sua permissividade
curricular e pela sua débil consideração da coerência e da sequência
curriculares, este modelo seria particularmente atacado, pelo menos na sua
modalidade mais "soft", na sequência do lançamento do Sputnik, no início
dos anos 60. Gerou-se, nos EUA, um movimento que enfatizou a
necessidade de impor um currículo que fomentasse o desenvolvimento de
competências práticas e mensuráveis, que valorizasse a aprendizagem da
Matemática e das Ciências Naturais e não se limitasse a uma difusa
"preparação para a vida" ou a um vago "learning by doing".
Este movimento viria a tornar mais consistente uma divisão entre, por um
lado, as características da educação pré-escolar e básica e, por outro, do
ensino pós-obrigatório, reservando a este último o desenvolvimento de
actividades teóricas e conceptuais autónomas dos "problemas reais", os
saberes disciplinarmente organizados, as atitudes de trabalho, persistência e
concentração.
A perspectiva politécnica da educação geral foi desenvolvida nos países do
leste europeu e sublinha a importância do trabalho e da realização de
experiências de trabalho no seio da formação geral proposta pelo currículo
escolar. Khrushchev, em 1958, acusou as escolas soviéticas de estarem
"divorciadas da vida" e ordenou a aplicação do princípio da integração das
aprendizagens escolares com a participação na produção, como o mais
importante postulado organizativo da escola secundária. A educação
politécnica seria formulada, em primeiro lugar por N. Krupskaya, esposa de
Lenine, com base em três elementos centrais: (a) o maior volume possível de
conhecimentos científicos e tecnológicos deve ser ensinado e integrado no
treino de competências manuais; (b) é criada a nova disciplina de
"organização do trabalho" para facilitar a ligação da escola com a envolvente
económica e política; (c) o trabalho produtivo dos alunos é desenvolvido,
lado a lado, com os trabalhadores das fábricas e dos campos.
17
Este modelo, que se expandiu bastante nas políticas escolares de outros
países europeus, seria criticado sobretudo pelas contradições reveladas na
forma como foi aplicado: os locais de produção não estavam preparados
para serem locais de aprendizagem escolar, os problemas que surgem na
produção aparecem de modo desordenado e exigem soluções em um tempo
e a um ritmo que ignoram as necessidades pedagógicas e, além disso, as
práticas de ensino continuaram em grande parte a pautar-se pelas
tradicionais formas de ensinar, muito intelectual-académicas e pouco
experimentais.
A crítica ao romantismo desta visão da educação levou à progressiva criação
de "centros escolares politécnicos", separados dos contextos de produção,
onde se desenvolviam práticas de produção, a formação pelo trabalho e até
o ensino acerca da produção (Lauglo,1983:292). O movimento de unificação
escolar que se espalhou por toda a Europa contém uma clara "interface" com
esta perspectiva de educação geral, tendo esta sido adoptada tanto no termo
do ensino obrigatório e universal como no currículo do ensino secundário
pós-obrigatório, através da introdução de experiências de trabalho produtivo.
Estes
três
modelos
desenvolveram-se,
de
modo
dominante,
como
paradigmas internacionais de educação geral. A seu lado assistiu-se à
adopção de outros modelos localizados, como o do humanismo e do
idealismo romântico de cariz nacional, como o que se associa historicamente
às "folk high schools" da Noruega.
Assinale-se, em tempo, que, nas políticas educativas adoptadas na Europa,
não existem compartimentações muito estanques entre estas perspectivas.
É, aliás, a combinação entre a perspectiva pragmática e a perspectiva
politécnica que mais parece influenciar a proliferação da escola polivalente
na Europa, nos anos 50 e 60 (Pedró,1992 e Papadopoulos,1994). Existe
18
como que uma dupla herança, que se começa a desenhar e a concretizar,
logo após a I Guerra Mundial, tanto nos EUA como na URSS, num novo tipo
de oferta escolar, geral e comum, para a população até aos 15-16 anos.
A pertinência deste quadro de inteligibilidade acerca do ensino geral é
elevada, sobretudo quando, muito frequentemente se associa ensino geral a
ensino académico, o que afasta aquele do ensino profissional e lhe retira,
logo na matriz conceptual, muitas potencialidades de enriquecimento por
força da integração de múltiplas valências do conhecimento e de várias
facetas do desenvolvimento de competências.
Além do ensino secundário geral, é comum identificarem-se também os
ensinos técnico e profissional. Estes apresentam uma tradição de grande
ligação aos contextos oficinais e produtivos, onde se aprendia um ofício ou
mester. Sob orientação de um mestre, os aprendizes realizavam a sua
aprendizagem, recorrendo sobretudo ao acto de imitar e de fazer pelas suas
próprias mãos. A transferência da educação técnica e profissional do local
de trabalho para o tecto escolar processou-se, na Europa, ao longo dos
séculos XVIII e XIX. Adoptando a perspectiva de Bruno Belhoste (1989),
quatro factores favoreceram de modo significativo esta passagem: (a) a crise
do modelo de aprendizagem, que era o modo tradicional de transmissão dos
saberes-fazer técnicos, crise esta que está muito ligada à evolução do papel
das corporações de artífices e ao nascimento de novas actividades fora do
quadro das corporações; (b) o reconhecimento, sob a nova visão das Luzes,
da cultura técnica como um género de cultura erudita, condição necessária
para a escolarização das formações para as profissões manuais e
mecânicas; (c) o papel do Estado que, desde o séc. XVIII, adopta a formação
escolar como modo de produção dos quadros técnicos de que carecia, tanto
nas forças armadas como na administração do território; (d) a transformação
progressiva e simultânea dos modos de produção e dos processos de
19
trabalho, com a expansão da esfera mercantil, o desenvolvimento da
maquinaria aplicada à produção e com a proletarização crescente dos
trabalhadores. O capitalismo industrial, embora desempenhe um papel
determinante nas transformações que ocorrem na educação técnica e
profissional, não pode ser lido apenas como a causa, isolada ou não, do
desenvolvimento deste tipo de educação, uma vez que este tipo de
educação estatal, nomeadamente as escolas superiores técnicas que se vão
criando, também favorecem o arranque dos processos de industrialização
em alguns países da Europa.
Ao longo do séc. XIX, como assinala Benavot (1983), consolida-se um
movimento lento de assunção, por parte de empresas e organizações
colectivas de industriais e por parte de entidades estatais, de uma oferta de
programas públicos de formação profissional. Por um lado, externalizava-se
a função aprendizagem, tendo em vista aumentar a produtividade do
trabalho industrial, mormente do trabalho em série. Por outro, criava-se uma
oferta escolar para preparar profissionalmente os filhos dos trabalhadores da
produção,
para
uma
indústria
trabalho-intensiva
que
desabrochava.
Finalmente, os referidos promotores acreditavam que o ensino público, se
estivesse ligado às necessidades da economia nacional, podia desempenhar
um importante papel no desenvolvimento nacional.
Na primeira metade do séc.XX, desenvolveram-se na Europa, a par dos
"liceus" tradicionais, novos segmentos de ensino e formação; em alguns
casos combinava-se o exercício profissional na empresa com a instrução
técnica e profissional e noutros casos incorporavam-se novas escolas no
sistema educativo público, escolas técnicas, comerciais e industriais.
Existe, efectivamente, uma distinção entre ensino técnico e ensino
profissional (o que, em língua inglesa, se designa por "vocational education"
e por "vocational training"). Por ensino profissional entende-se aqui a
20
preparação
para
ocupações
profissionais
qualificadas
e
altamente
qualificadas, compreendendo usualmente os estudos práticos e profissionais
oferecidos em escolas profissionais, a formação em aprendizagem e também
outras formas de combinação entre a formação em escola e na empresa, os
programas de formação-emprego. O ensino profissional apresenta várias
configurações, que se distribuem pelos três modelos de ensino secundário
acima definidos. Mas, no modelo escolar, cabem apenas as formações
profissionais essencialmente escolares, promovidas geralmente pelo Estado,
através do Ministério da Educação, e realizadas a tempo inteiro. O ensino
profissional, para além de ser oferecido no âmbito do ensino secundário
superior, é-o também no ensino secundário de primeiro ciclo, por exemplo,
na Holanda e na Alemanha, e no ensino pós-secundário, como é o caso do
Japão e dos EUA.
O conceito de ensino técnico que aqui se emprega refere-se aos programas
e aos cursos que preparam para profissões técnicas e altamente técnicas,
todas elas oferecidas após o nível obrigatório da escolaridade, geralmente
de maior duração que os anteriores. A sua frequência requer níveis mais
elevados de formação à entrada e os cursos têm uma orientação teórica e
científica mais forte e as mais das vezes qualificam para a entrada no ensino
superior, por vezes de modo equivalente aos cursos e diplomas do ensino
geral.
Dada esta situação, é oportuna e pertinente a observação de M. McLean
(1995) ao apontar para a existência de dois tipos de "ensino profissional" na
Europa: um ensino profissional estatal-escolar (o que aqui designamos por
ensino técnico) e um ensino profissional empresarial-laboral. No primeiro
vemos a marca da cultura educacionalista e da intervenção estatal no
planeamento
económico,
e
ainda
a
dominação
de
uma
cultura
enciclopedista, que faz migrar as tradicionais disciplinas, ditas gerais (tais
como Matemática, Língua Materna, Ciências Naturais, Ciências Sociais e
21
Filosofia), do ensino geral académico para o ensino profissional. O segundo
está centrado sobre o local de trabalho e é dominado pela intervenção
directa dos empregadores, corolário de uma cultura profissionalista. Aqui, o
ensino profissional é válido por se desenvolver autonoma e firmemente
separado do ensino geral.
As referências tradicionais do ensino técnico são, por exemplo, o
"enseignement technique", em França, o ensino técnico ou técnicoprofissional, em Portugal, ou ainda o "insegnamento tecnico", em Itália. Pode
também incluir-se neste tipo de ensino de base escolar, o modelo da Suécia,
da Noruega e da Finlândia (Lauglo, 1983). Na Suécia desenvolveu-se a mais
radical tentativa de promover o ensino de tipo técnico-profissional em íntima
articulação com a educação geral.
A este último tipo de ensino secundário, o ensino técnico, está também
associada uma perspectiva de "transporte", orientada para uma continuação
da formação, enquanto que ao primeiro surge acoplada uma perspectiva
mais terminal. As diferenças entre os dois tipos de programas de formação e
as distinções sociais que sobre eles recaem variam substancialmente de
país para país e, em parte, são responsáveis pela enorme diversidade de
fluxos na sua procura social.
Os ensinos técnico e profissional podem ser entendidos, como em Garrido,
Pedró e Velloso (1992), como um conjunto de formações directamente
orientadas para a preparação para o trabalho e para o exercício de uma
ocupação profissional. Deste modo, os ensinos técnico e profissional
constituem tipos especializados de formação, que se apresentam como
sequência e visam completar formações mais gerais e básicas.
Refira-se ainda que se empregam, por vezes, os conceitos de ensino
profissional e de formação profissional como conceitos equivalentes. São-no,
22
na medida em que na sua concepção e na sua implantação, no sistema
educativo, predomina uma perspectiva ocupacional e terminal, a preparação
para o exercício profissional mais imediato. Existe, no entanto, uma
diferença, mais vincada em uns países do que em outros, que consiste no
facto do ensino profissional estar normalmente concebido sob a luz do
modelo escolar e das suas formações mais gerais e tradicionais, também
designado por “vocational education”, enquanto que o conceito de formação
profissional está geralmente mais distanciado dos referentes escolares, dos
seus planos de estudo, das suas normas de avaliação e de certificação. A
este conceito está associado o termo training e um contexto de educação
menos formal e, as mais das vezes, exclusivamente não-formal e nãoregular. Assim, além dos termos de ensino técnico e profissional, usar-se-á
isoladamente
o
termo
formação
profissional,
sendo
este
mais
recorrentemente aplicado por referência ao sector não-formal.
Entre estes três tipos de ensino secundário- geral, técnico e profissionalexiste uma hierarquia de prestígio ligada a múltiplos factores, cada um deles
com diferente relevância de país para país: estatuto social da população que
neles ingressa, funções sociais atribuídas pelos decisores políticos,
credenciais que conferem e tipos de reconhecimento social destas
credenciais, mormente para efeitos de exercício profissional, tipo de
empregos e nível no sistema de remunerações, tipos de escolas, centros de
formação e tipos de docentes e formadores e ainda modos de avaliação e de
selecção. Mesmo onde não são maioritários em termos de oferta educativa e
de procura social, as formas organizativas escolares constituem a referência
tradicional e dominante de estruturação do ensino secundário na Europa e,
dentro delas, predomina a referência ao ensino geral, o mais enraizado e o
que se destina, tradicional e inequivocamente, a promover a passagem para
estudos ulteriores, nomeadamente para o ensino superior.
Os modelos escolares são os mais abrangentes e podem abarcar, na sua
23
oferta, desde tipos de ensino geral a tipos de ensino técnico e profissional. A
sua amplitude e a sua elasticidade interna são notáveis e, em alguns países,
desdobram-se em tipos e em instituições de ensino tão diversos que,
incorporando modalidades de formação dual e não-formal, as reduzem a
segmentos meramente residuais e desvalorizados, como sucede em França,
Espanha, Bélgica ou em Portugal.
Nos países onde a formação profissional inicial não tem uma base escolar,
antes derivando de uma forte responsabilização empresarial pelos processos
de aprendizagem, como é o caso da Alemanha ou da Suíça, a hierarquia de
prestígio entre os percursos escolares não deixa de existir. No entanto, como
aquela formação é baseada numa relação fortemente instituída entre o sistema
de formação e o emprego e como os mercados internos de trabalho valorizam
o modelo de formação profissional instituído, participando na sua definição e
promoção e reservando-lhe um papel estruturante, a sua função social é
diversa, o seu prestígio é maior e a sua procura "encantada" é mais
acentuada. Um pouco mais adiante analisa-se mais pormenorizadamente esta
hierarquia de prestígio, procurando-se indagar os seus sentidos, os conflitos
subjacentes e as suas consequências sociais.
Refira-se, no entanto, que é comummente reconhecida ao ensino técnico e à
formação profissional inicial, sobretudo nos países europeus em que esta
oferta se centra no campo escolar, uma marca de estigmatização social e que
grande parte das medidas de política que lhe foram direccionadas no pósGuerra visaram libertá-lo do estigma das vias de formação para os
deserdados. Pedró (1992) descreve, em cinco elementos sintéticos, o quadro
da estigmatização destes tipos de ensino e formação, construindo o círculo
vicioso em que eles se encontram submersos, em particular nos modelos
escolares da Europa do Sul. Os elementos referidos constituem um encadeado
que se pode descrever com a seguinte ondulação: este tipo de formações é
mais caro do que o ensino geral e normalmente não lhe são afectos mais
24
recursos; os empregadores valorizam, regra geral, as mais altas credenciais
escolares; os diplomas profissionais detêm um escasso valor no mercado de
emprego e dão acesso aos empregos com menor remuneração; o ensino
técnico e a formação profissional inicial reúnem um escasso prestígio social,
que conduz a uma fraca e até desencantada procura social; e, finalmente, o
acesso a estas formações é baseado em características sociais e académicas
dos alunos, fazendo parte de uma orientação negativa por parte dos jovens,
das famílias e das escolas. Associa-se, assim, ao ensino técnico e à formação
profissional inicial, particularmente no conjunto de países já referido e
diferentemente do que acontece em outros países do Europa do Norte, um
ambiente sociocultural de escassez, desvalorização e estigmatização.
Este ambiente parece relacionar-se, antes de mais, com
o facto de ser
generalizada a constatação social de que as probabilidades de obtenção de
um emprego e de um estatuto socioprofissinal elevado são maiores entre os
jovens que possuem diplomas do ensino geral e do ensino superior, em
particular do ensino superior universitário (OCDE, 1995; Verdier,1995;
Bourdon, 1995). O mercado de emprego utiliza a hierarquia dos títulos
escolares como sinal adequado de hierarquização dos postos de trabalho.
Provam-no muitos estudos da sociologia da educação, promovem-no as
estratégias de recrutamento dos empregadores e lêem-no os ambientes e as
decisões familiares, construídas em boa parte sobre as representações acerca
daquelas probabilidades. Assim, também a hierarquização das formações
escolares no seio do ensino secundário parece inelutável (Leclercq, 1992 e
1994).
Por outro lado, o sistema escolar desempenha um importante papel orientador
e selectivo dos diversos percursos escolares dos alunos. Para a problemática
em apreço é particularmente relevante o momento do términus da escolaridade
obrigatória. Aí, o acesso às diferentes vias posteriores de formação é regulado
por práticas de orientação e por disposições administrativas que relevam de
orientações e opções políticas e que consagram geralmente uma "orientação
25
pelo fracasso". Como refere, em 1976, o relatório da OCDE sobre as
transformações estruturais no segundo ciclo do ensino secundário (OCDE,
1976), os alunos que seguem os estudos técnico-profissionais são aqueles
que já foram excluídos da admissão ao ensino geral e os que apresentam
níveis socioeconómicos mais baixos. A esta função selectiva está ligada uma
função de participação dos sistemas escolares na produção de uma hierarquia
de poder e de prestígio no sistema produtivo e no sistema social, em geral.
Tipologia de diversificação escolar
As características do ensino e da formação de nível secundário estão
relacionadas também com a sua inscrição em cada um dos sistemas
educativos
nacionais,
onde
ocupam
diferentes
posicionamentos
e
desempenham funções diferenciadas. É um facto que a diversificação está
presente em todos os sistemas escolares, embora de modos diferenciados. A
diversificação escolar pode analisar-se sob dois prismas principais: o
momento em que ocorre e o modo como ocorre. Quanto ao momento, ela
pode considerar-se precoce ou tardia. Ela é precoce se ocorre dentro do
período da escolaridade obrigatória, que é uma escolaridade geral e comum,
na generalidade dos países europeus. Ela é tardia quando surge após o
termo da escolaridade obrigatória. O quadro 1.2 apresenta a situação
europeia em 1995.
26
Quadro 1.2
Comparação entre países da Europa relativamente à duração da
escolaridade obrigatória e ao início da diversificação escolar (1995)
País
Escolaridade
Idade em que se
obrigatória
inicia a
(a tempo inteiro)
diversificação
escolar
Duração
Idade em que
(anos)
termina
Alemanha
10
15/16
10
Áustria
9
15
10
Bélgica
10
16
12
Dinamarca
9
16
16
Espanha
10
16
16
Finlandia
9
16
16
França
10
16
15(1)
Grécia
9
15
15
Holanda
11
16
12
8-9
15
12
Itália
8
14
14
Noruega
9
16
16
Portugal
9
15
15
R.Unido
11
16
12
Suécia
9
16
16
Irlanda
Fonte: Comission Européenne (1997)
(1) Existe uma possibilidade de orientação para percursos técnicos, nos últimos dois anos
do “collège”.
Quanto ao modo, a diversificação pode ser apenas curricular, ou seja, gerase no seio de percursos e modalidades, dentro de um mesmo tipo de
instituição educativa, e institucional ou estrutural, quando diferentes
percursos de formação são oferecidos a um mesmo grupo etário em
diferentes instituições (ex. liceus, escolas técnicas, escolas profissionais,
centros de formação profissional). Tomaremos em consideração, neste
27
trabalho, apenas a diversificação curricular claramente diferenciada em
percursos e modalidades e não aquela que existe, por vezes escamoteada,
em percursos ditos comuns, sob a designação de opções ou de percursos de
orientação.
Esta delimitação permite situar a diversidade de situações existentes em
torno de quatro grandes tipos. É o que se apresenta no Quadro 1.3.
Quadro 1.3
Tipologia da incidência da diversificação escolar
Diversificação Precoce
Tipo A1
Características
A diversificação
ocorre logo no
termo do ensino
primário ou no
início do 1º ciclo
do ensino
secundário
inferior.
Países-Tipo
Alemanha
Áustria
Tipo A2
Diversificação tardia
Tipo B1
A diversificação
A diversificação
ocorre ao longo
ocorre no ensino
do ensino
secundário superior.
secundário
inferior ou na sua
fase terminal .
Holanda
(diversificação
institucional)
França
(diversificação
curricular)
Suécia
Portugal
Tipo B2
A diversificação
ocorre sobretudo no
ensino superior.
Japão
EUA
Alguns países mantêm a ocorrência da diversificação escolar institucional
em níveis etários correspondentes aos anos subsequentes ao termo da
escolaridade primária. É o caso da Alemanha e da Áustria, em que as
escolhas se têm de fazer aos 10 anos, e os casos da Holanda, Bélgica e
Irlanda, em que se produzem aos 12 anos. Neste conjunto de países, a
28
diversificação é precoce e institucional, o que denota a existência de uma
função selectiva desde o ensino secundário inferior. No entanto, na maioria
dos países europeus, o momento da diversificação é tardio, na sequência de
uma unificação progressiva do ensino básico e do ensino secundário
inferior4.
O conjunto destes países subdivide-se em duas grandes tendências. Por um
lado, aqueles em que a escolaridade básica e universal de nove ou dez anos
é assegurada por um mesmo tipo de escola (Grundskola, na Suécia, a
Peruskoulu, na Finlândia, a Folkeskole, na Dinamarca, o Ensino Básico, em
Portugal5). Nestes países não existe o ensino secundário inferior enquanto
tal, uma vez que o nível secundário se inicia após a formação geral de base,
universal e obrigatória, e restringe-se por isso apenas ao ensino secundário
superior, sendo geralmente de três anos de duração, promovido em
diferentes tipos de escolas e subdividido em vias gerais, técnicas e
profissionais. Por outro lado, existe um grupo de países em que há um
ensino secundário inferior, geral e comum, promovido seja num mesmo tipo
de escolas - é o caso da Educacion Secundaria Obligatoria, em Espanha (de
4 anos), o Collège, em França (de 4 anos), a Scuola Media, em Itália (de 3
anos)- seja em escolas diferentes, embora com um programa geral de base
comum, como é o caso da Holanda, com quatro tipos de escolas diferentes e
um programa inicial comum de três anos de duração. Curiosamente, a
diversificação curricular pode ocorrer dentro de um mesmo tipo de escola,
como acontece nos dois últimos anos do Collège, em França, e uma certa
unificação
curricular
avançada
pode
coexistir
com a diversificação
institucional, como é recentemente o caso da Holanda. A nossa investigação
irá incidir sobre alguns países em que há uma ténue diversificação precoce
e, geralmente, sobre países de diversificação tardia.
4
A evolução histórica da unificação escolar será mais pormenorizadamente desenvolvida e avaliada no capítulo quarto.
5 No caso português, embora os alunos transitem de escola para escola (p.ex. 1ºciclo, C+S ou EB 2,3) frequentam o
mesmo tipo de ensino geral e comum, dividido em três ciclos sequênciais, de 4+2+3 anos..
29
No contexto europeu do pós-Guerra, marcado pela predominância dos
regimes políticos democráticos, a ênfase da função selectiva foi sendo
sucessivamente adiada para níveis etários que, segundo o discurso político,
são tidos como mais consentâneos com escolhas mais fundamentadas entre
percursos escolares. As ideologias igualitárias sobrepuseram-se, nas
políticas de educação, às ideologias elitistas, embora se deva sublinhar que
o ascendente não resulta do facto de ter sido eliminada a função de selecção
e distribuição de poder inerente às sociedades estratificadas, mas assenta
quer no diferimento temporal da diferenciação precoce quer na diminuição
do número de vias diferenciadas de formação (Hopper, 1978).
Entretanto, alguns países tendem também a integrar e a unificar os seus
segmentos do ensino secundário (como veremos pormenorizadamente no
capítulo quinto). Nestes países, à medida que evolui a integração e a
unificação curricular
e até institucional deste segmento do sistema de
ensino, a diversificação tende a deslocalizar-se para o nível subsequente, o
ensino pós-secundário e superior, que tem vindo a ser sujeito à introdução
de uma série de novas modalidades de formação e de diplomas. Levin
(1978) já tinha assinalado que mais unificação no nível secundário conduz
necessariamente a mais diversificação nos níveis subsequentes.
Quando o ensino superior era apenas acessível a uma elite muito restrita e
seleccionada, como acontecia aliás com o ensino secundário na Europa, na
primeira metade deste século, ele desempenhava a sua função social de
produção de uma elite dirigente, sem que fosse necessário recorrer a
processos muito desenvolvidos de "tecnologia social" estratificadora. Mas,
quando a ele acederam grupos populacionais mais vastos e heterogéneos, o
ensino superior reorganizou-se para preparar os estudantes para a
hierarquia dos empregos, uma vez que, ao longo do percurso escolar, o
30
exercício dessa função foi sendo sucessivamente adiado.
A diversificação e a estratificação das credenciais escolares será, portanto,
matricial e intransponível. As escolas tenderão a reproduzir a hierarquia dos
requisitos laborais para as relações desiguais existentes na sociedade
(Levin,1978). Mas não é apenas por esta razão que a diversificação é
inevitável: a população escolar, sendo mais heterogénea na sua composição
social, transporta necessariamente para o terreno escolar uma maior gama
de interesses e de expectativas. As políticas de educação e de formação
tendem a traduzir esta realidade na construção de uma oferta educativa mais
ampla e plurifacetada. A ligação entre a diversificação escolar e a
desigualdade de acesso e de usufruto das diferentes vias e dos seus
diplomas estratificados é igualmente intransponível. Bem o demonstram as
políticas educativas europeias ao longo do século XX: um combate contínuo,
embora com ritmos diferenciados e com configurações ideológicas diversas,
entre a promoção de maior igualdade de oportunidades sociais através da
escola e o cumprimento do mandato de selecção social para o qual o
sistema educativo continua a estar também orientado.
A integração institucional e curricular e a desespecialização que aqui
queremos analisar, nos países em que é dominante o modelo escolar de
organização do ensino secundário, que se enquadram normalmente em
políticas educativas que são produzidas em nome da democratização do
ensino e da formação, deverão, no entanto, ser interrogadas enquanto
políticas efectivamente democráticas, não só no seu enunciado político, mas
também nos seus efeitos concretos. Como observou oportunamente
Conceição Alves-Pinto (1990), pode suceder que a integração que
actualmente se opera no ensino secundário não se traduza em adiamento do
efeito de selecção mas na sua substituição e actualização, agora que há
uma procura de massas do ensino e da formação a nível secundário.
31
Diferentes modelos de integração
Leclercq e Rault (1992) propõem, num registo mais fechado e mais técnico, à
semelhança do que já havia feito Husén (1990) e como já referimos, uma
outra classificação do ensino secundário baseada na combinação de dois
critérios, o modo de relação entre os diferentes tipos de formação e o grau
de equivalência entre os diplomas. Os sistemas nacionais são, assim,
divididos em duas grandes categorias, os modelos dicotómicos e os modelos
integrados.
Os modelos dicotómicos são aqueles em que se regista, desde logo, uma
clivagem entre as diferentes fileiras de formação, tanto nos seus cursos
como nos seus diplomas, podendo a oferta repartir-se seja em dois pólos
separados, um académico e geral e outro profissional e prático, em que o
primeiro prepara para o prosseguimento de estudos e o segundo para a vida
activa - modelos de dissociação, como a Alemanha ou o Reino Unido -, seja
em várias modalidades sobrepostas e similares, mas conferentes de
diplomas conducentes a destinos diferentes - modelos de justaposição, como
a Holanda ou a Bélgica.
Os modelos integrados, por sua vez, prevêem o acolhimento de todos os
alunos em estruturas comparáveis, susceptíveis de obterem diplomas de
valor equivalente. Nuns casos esta integração é teórica, noutros casos é
efectiva. Nos primeiros, a frequência de estabelecimentos do ensino
secundário de segundo ciclo equivalentes não elimina, na prática, as
clivagens no futuro imediato escolar e profissional, como acontece nos EUA
e no Japão. Nos segundos, as qualificações a que conduzem as diferentes
32
formações oferecidas sob o mesmo tecto não são, de facto, ocasiões de
segregação, como é o caso da Suécia.
Esta classificação tem a virtualidade de sublinhar a conotação dicotómica
que está presente como uma marca profunda no ensino secundário em todo
o mundo, com uma clara ascendência na procura social dos percursos de
ensino geral, bem como o interesse em destacar os movimentos crescentes
de integração curricular e institucional, o que se revela da maior pertinência
e oportunidade na economia deste estudo.
Adopta-se aqui o pressuposto de que os modelos efectivamente integrados,
em que os diversos diplomas não conduzem a posteriores diferenciações,
não existem. Existem, quando muito, políticas educativas que procuram
caminhar nesse sentido, mas, as mais das vezes, quedam-se, para já, numa
integração institucional mitigada, entre a justaposição e a integração, pois
continua real o valor estratificador dos seus diplomas, seja posteriormente no
ensino superior e nas suas diferentes modalidades seja de seguida no
mercado de trabalho e na sua capacidade de discernir credenciais. A marca
de prestígio do ensino geral, que é o tipo de ensino tradicionalmente elitista,
constitui um dos travões ao desenvolvimento dos modelos integrados e
unificados ou, para usar os conceitos que Kämäräinen (1995) aplica aos
modelos escolares dos países nórdicos, as reformas de "unificação
estrutural" promovidas no ensino secundário visando integrar as diversas
modalidades de ensino e de formação têm dado lugar, na prática, a reformas
de "convergência subestrutural", uma vez que apenas se consegue obter
uma aproximação entre diferentes modelos institucionais de ensino e
formação, as vias técnicas, profissionais e liceais. Os objectivos anunciados
previam, como na Suécia, com a integração num só tipo de escola "gymnasieskola" -, uma convergência de tipo estrutural, ou seja, uma efectiva
unificação das diferentes vias e estruturas de ensino e de formação, o que
não veio a suceder. Por outro lado, as inúmeras alterações e reformas
33
curriculares globais e paradigmáticas que se tem procurado alcançar, que
requerem uma total reorientação dos contextos e dos processos de ensino e
de aprendizagem, quedam-se muitas vezes por revisões curriculares
limitadas e pragmáticas, que mantêm frequentemente, sobre novas bases
comuns, opções verticalizadas. As racionalidades históricas subjacentes a
cada via de ensino e de formação parece prevalecerem, mesmo em
processos de reforma em que se faz desaparecer, por via legislativa, essas
mesmas vias de ensino e de formação.
Esta delimitação teórica é igualmente pertinente e oportuna neste contexto
da análise. Face à matriz multidimensional do ensino secundário, impõe-se
uma melhor explicitação, a começar pelos conceitos de integração e de
unificação, com o apoio daquele mesmo autor. O conceito de integração do
ensino secundário a que aqui se recorre representa o movimento de
aproximação entre os vários percursos e cursos existentes neste nível de
ensino, que se traduz na criação de articulações e vínculos entre eles, tanto
verticais como horizontais, visando estabelecer uma maior coerência entre
si. Nesta ordem de ideias, o conceito de integração pode ter um equivalente
no termo convergência. A unificação é o movimento que visa homogeneizar
os diversos percursos e cursos, aproximando os diferentes planos de estudo,
programas, objectivos e métodos, tendo em vista não só proporcionar a
aprendizagem de saberes iguais ou equivalentes, mas também evitar ou
reduzir as diferenças entre eles, tornando-os mais polivalentes.
Teoricamente pode haver, portanto, uma enorme amplitude no campo das
articulações entre as dimensões curriculares e institucionais presentes no
ensino secundário. Ela poderá ir desde a maior divergência entre fileiras e
cursos diferenciados, até à mais conseguida redução das diferenças entre
cursos e percursos. A este segundo extremo falta-lhe muito provavelmente
espessura social, uma vez que o excesso de liofilização de todas as formas
de variedade, parece ser insustentável diante da diversidade de públicos e
34
interesses individuais e de finalidades sociais. Geralmente, o ensino
secundário europeu apresenta-se diversificado, registando-se, todavia,
movimentos cada vez mais insistentes e dirigidos, que têm como alvo a
aproximação entre os vários percursos e cursos e a consequente redução da
diversidade. Estão neste caso, por exemplo, as recentes reformas que
tendem a reduzir as especializações das vias técnicas e profissionais e que
procuram aumentar as disciplinas curriculares relacionadas com o ensino
geral académico.
A reflexão empreendida permite um novo esforço de categorização, em redor
da questão da integração-unificação-diversificação. É o que se procura
realizar através da construção do Quadro 1.4, onde se esquematiza a
elasticidade de configurações existentes no ensino secundário na Europa.
Quadro 1.4
Tipologia de sistemas do ensino secundário segundo o grau de
integração/diversificação
Grau de
integração/diversificação no
ensino secundário superior
Sistemas totalmente unificados
Modo de integração
Países representativos
Total. Um só tipo de escola e
de cursos
_________________
5
Sistemas estruturalmente
integrados, mas apenas
parcialmente unificados.
5
Um só tipo de escola; cursos
com troncos comuns iniciais
(1 ou 2 anos) e posterior
especialização
Noruega
Suécia
5
Sistemas subestruturalmente
integrados, com percursos
diferenciados.
5
Escolas e cursos
diferenciados, sob
orientações curriculares
comuns
Finlândia
Holanda
Portugal
8
Sistemas diversificados de
fileiras diferenciadas.
Reduzido. Algumas iniciativas
de aproximação entre ensino
geral e ensino técnico e
formação profissional
5
Alemanha
Itália
Espanha
35
Note-se ainda que, com base na observação de Kämäräinen (1995), muito
frequentemente, as tentativas de integração e de unificação traduzem-se
apenas numa melhor justaposição entre os diferentes percursos e cursos,
seja por uma aproximação nominalista seja pela convergência entre os
planos de estudo, sem que isso altere significativamente as relações entre
diferentes fileiras e tipos de escolas e, sobretudo, entre tipos de diplomas e
arquitecturas de prestígio a eles associadas.
A pertinência desta delimitação de conceitos em torno da aproximação de
cariz integradora, entre diferentes instituições, percursos e cursos do ensino
secundário, relaciona-se com a problemática nuclear desta investigação, ou
seja, o facto de ocorrerem várias reformas do ensino secundário em vários
países europeus, nos anos 90, visando aproximar instituições de ensino e de
formação, esbater as diferenças entre percursos de formação, integrar
cursos e estabelecer troncos comuns de formação entre eles.
Uma polarização dominante
Neste momento, impõe-se constatar, neste rendilhado de caracterização e
de delimitação conceptual, que a já referida atractividade do ensino dito
geral, no ensino secundário, não lhe advém sobretudo de si próprio ou de
quaisquer qualidades intrínsecas. Se os saberes do ensino geral são os
socialmente eleitos, em alguns países europeus que vamos estudar, não é
pelos seus saberes em si mesmos que eles são eleitos, mas porque algo os
elegeu e essa eleição conferiu-lhes um estatuto que, este sim, atrai e domina
a procura social.
A racionalidade dominante do ensino ensino secundário encontra-se, em boa
parte, formulada fora de si, alojada no ensino superior, particularmente no
ensino superior universitário.
36
J.M.Domenach (1989) assinala que o ensino secundário não é um fim em si
mesmo, representa uma passagem onde se circula para trás (restauração
das bases) e para a frente (vida activa, ensino superior, formação contínua),
em continuum. Esta visão não capta, no entanto, com suficiente
profundidade, a distinção entre as diferentes polarizações a que estão
submetidos os dois tipos de ensino secundário, inferior e superior.
Assim, na maior parte dos países europeus, o ensino secundário inferior é
parte integrante do ensino básico e legalmente está sujeito aos objectivos e
às normas da obrigatoriedade escolar. A democratização do acesso à
educação, a promoção do sucesso escolar para todos, em igualdade de
oportunidades, o desenvolvimento pessoal e social de cada indivíduo, a
integração social e a formação para a cidadania, são alguns dos objectivos
que geralmente se atribuem à educação básica obrigatória. Em Portugal, por
exemplo, o ensino secundário inferior constitui o 3º ciclo do ensino básico e
não o primeiro ciclo do ensino secundário. Pretende-se que a polarização,
ou seja o núcleo predominante das suas finalidades e a sua área principal de
atractividade, seja determinada essencialmente pelo "ensino primário", nível
que é geral e normalmente comum para todos os cidadãos. Como se disse
atrás, a propósito dos diversos tipos de diversificação, a sua manifestação
precoce na arquitectura sequencial dos sistemas escolares relaciona-se com
uma maior acentuação da selectividade própria dos mesmos sistemas; do
mesmo modo, as políticas que têm promovido o adiamento sucessivo da
diversificação
são
sustentadas
em
objectivos
de
promoção
da
democratização do acesso à educação e do reforço da igualdade de
oportunidades entre todos os cidadãos. A polarização por parte do “ensino
primário” ou “ensino elementar”, com todos os atributos políticos e sociais
que são apanágio do ensino básico, geral e universal, parece ser tanto mais
consequente quanto mais distanciado estiver o momento da diversificação.
37
Em todo o caso,há um conflito permanente entre funções educacionais6 e
funções selectivas.
Na prática, porém, em muitos países, o ciclo terminal do ensino básico
obrigatório, qualquer que seja o seu figurino específico, já está referido ao
ensino superior, compreendendo uma forte compartimentação disciplinar,
normas de avaliação muito selectivas, diversificações curriculares mais ou
menos explícitas e, num caso ou noutro, estabelecimentos escolares
diferenciados.
Mas,
o
ensino
secundário
superior,
segmento
que
escapa
já
à
obrigatoriedade escolar, está fortemente polarizado pelo ensino superior,
havendo uma tendência ainda mais nítida para que este ordene
"regressivamente" aquele (Pires,1989). Ou seja, a articulação interna entre o
ensino secundário de segundo grau e o ensino superior constroi-se tomando
o segundo como determinante e o primeiro como determinado ou
subordinado, sem autonomia. A sequencialidade escolar edifica-se de modo
regressivo, sendo o ensino superior e as suas finalidades próprias a imporse ao ensino secundário, que se vê, assim, submetido ao cumprimento de
uma selectividade instrumentalmente imposta pelos níveis e diplomas do
ensino superior, selectividade esta intrínseca ao ordenamento hierárquico
social. É por isso que Eurico Lemos Pires se refere ao ensino secundário
como o conjunto de “estudos menores de preparação para o ensino superior”
(1997:54).
Mas a aparente fraqueza do ensino geral, dentro do ensino e da formação de
nível secundário, ao surgir como contínuo, não terminal, não autoreferenciado, não conferente de uma qualificação profissional concreta, é,
6 Entende-se aqui por objectivo central da educação escolar o desencadear no ser humano a irrupção de todo o seu
potencial de protagonismo, tanto no processo do seu próprio desenvolvimento, como no processo do seu
desenvolvimento em sociedade, pela mobilização dos mais variados meios. A educação escolar, nesta óptica, pode ser
entendida como o contributo social mais valioso em ordem à realização de cada pessoa que, na sua totalidade
multifacetada, aprende a ser.
38
todavia, a sua maior força. Ao ser subordinado, o ensino secundário geral
adquire o estatuto de subordinante, na medida em que essa sujeição
constitui o próprio acto de aquisição do poder de subordinação dos demais
tipos de ensino e de formação do mesmo nível. O ensino geral, deste modo,
torna-se o ensino eleito na exacta medida em que ele é a via privilegiada -e,
por vezes, única- de acesso às mais altas credenciais escolares, as mesmas
que tradicionalmente são as mais prestigiadas em termos sociais e que
conferem habitualmente as maiores recompensas socioeconómicas.
Não
obstante
uma
certa
crise deste referente credencialista, que
abordaremos mais adiante, é em torno deste eixo que se ordenam, numa
hierarquia de prestígio social, as várias modalidades de ensino secundário.
Nos modelos escolares de ensino secundário, em geral e na medida em que
haja, no seu seio e como oferta educativa diversificada para o mesmo grupo
etário, diferentes modalidades e percursos, estes tenderão a ser comparados
em função não só da sua relação de proximidade (subordinação) com o
ensino superior, mas também da sua relação de proximidade (e também de
subordinação) com o tipo de ensino secundário mais vincadamente préuniversitário.
Para além desta polarização dominante no ensino secundário, este grau está
também frequentemente polarizado a jusante pela obtenção de um diploma
técnico e pela expectativa de ingresso imediato no mercado de emprego,
assumindo neste caso os percursos técnicos e profissionais um carácter
terminal, mas em todo o caso não necessariamente mais autónomo face ao
ensino superior.
Se no ensino secundário inferior conflituam funções selectivas e funções
promocionais de todos os alunos, tendendo a ser dominante um discurso
39
que valoriza uma lógica autónoma, democrática e universalista, de promoção
de todos os cidadãos, no ensino secundário de superior predomina muito
mais abertamente uma lógica de selecção daqueles que terão acesso ao
ensino superior, às diferentes fileiras dentro do ensino superior e a outros
destinos sociais( Fig. 1.1).
40
Figura 1.1.
Polarizações dominantes exercidas sobre o ensino secundário inferior e superior
Núcleo polarizador
Núcleo
polarizador
Ensino Secundário
Ensino Primário
Ensino Secundário
Inferior
Escolaridade Obrigatória
Ensino
Superior
Superior
Escolaridade não-obrigatória
Ora, este ordenamento intervém na regulação dos fluxos da procura social,
condicionando as escolhas, de modos diversos de país para país. Existem
diversas leituras sociais e diversos modos de apropriação social da
hierarquia associada a esta polarização que determinam, em boa parte, as
estratégias de optimização que comandam a procura social de educação por
parte dos vários estratos populacionais.
Por outro lado, da relevância analítica deste princípio de ordenamento
regressivo do ensino secundário por parte do ensino superior resulta lógica
a admissão do facto de que, à medida que o ensino superior se massifica e
se diversifica, oferecendo uma vasta gama de oportunidades de formação a
uma população socialmente mais heterogénea, o ensino secundário passa a
ser mais liberto da pressão do exercício da sua função selectiva, que desliza
para um patamar superior. Esta será ainda uma prova do mesmo
41
ordenamento regressivo e, ao mesmo tempo, uma provável variável de
explicação das tendências de redução das especializações e de integração
curricular e institucional que ocorrem no ensino secundário europeu7.
Tensões entre finalidades
Prolongada a escolaridade universal e obrigatória até aos 15-16 anos de
idade, o ensino secundário ainda é o segmento do sistema escolar onde,
actualmente, se concentra a maior diversificação estrutural e subestrutural.
Subjacente à diversidade de escolas, vias, cursos e programas que continua
a existir, encontra-se a diversidade e o conflito de finalidades políticas e
sociais que são consignadas ao ensino secundário. O seu ordenamento
formula-se em torno de uma hierarquia de prestígio e na dependência de
uma função social selectiva.
É a esta luz que importa destacar a quádrupla função que se atribui a este
tipo de ensino:(a) a de contribuir para formar a mão-de-obra requerida pelo
desenvolvimento da economia, ou seja, a função profissionalizante, também
designada função produtiva ou terminal; (b) a de preparar os jovens para
prosseguirem estudos de nível pós secundário ou superior, isto é, a função
propedêutica (c) a de promover o desenvolvimento pessoal e social dos
jovens, pelo fomento das suas capacidades, apetências, aspirações e
expectativas, que são muito diversas, ou seja, a função formativa e (d) a de,
ao mesmo tempo, formar cidadãos responsáveis e assegurar a igualdade de
oportunidades e a mobilidade social à vasta maioria dos jovens, ou seja, a
função eminentemente social e política.
O ensino secundário desenvolve-se geralmente num clima conflituoso de
7 Apesar de ser predominante o movimento de aproximação das modalidades de ensino técnico e de formação
profissional em direcção ao ensino geral, não se ignora a relativa importância do movimento de aproximação do ensino
42
procura de equilíbrio entre esta pluralidade de funções sociais, equilíbrio
porventura sempre instável. O equilíbrio que, em cada momento, prevalece
em cada país é geralmente atribuído a três forças: uma dada "coerência
societal" que é atributo histórico de cada país, a adaptação nacional (dos
mercados, do sistema produtivo, das tecnologias, do sistema financeiro) face
à evolução da economia internacional e a orientação política governamental
dada ao sistema educativo.
A história recente deste segmento do sistema escolar evidencia que existe
uma forte tensão entre as suas múltiplas finalidades. A estas correspondem
diferentes racionalidades, ou seja, diferentes funções sociais e diferentes
dimensões de prestígio, que variam segundo modos de apropriação
diferenciados
dos
seus
benefícios
sociais
pelos
diversos
grupos
populacionais e ainda segundo os matizes dos diversos percursos
sociohistóricos, que variam dentro de cada país, ao longo do tempo, e de
país para país, no contexto europeu. Autores há que expressam em termos
de "incompatibilidade básica" esta tensão entre funções (Levin, 1978) ou que
destacam a marca de conflito que trespassa o ensino secundário
(Papadopoulos, 1994). Este último sublinha a existência de um combate
ideológico permanente entre modelos "aparentemente contraditórios" de
organização deste grau de ensino, ao qual subjazem opções diferenciadas
seja por um modelo determinado de relações entre o sistema educativo e a
sociedade seja por uma certa visão acerca do papel do ensino secundário na
promoção da igualdade social.
As duas primeiras funções assinaladas, a terminal e a propedêutica,
apresentam características mais evidentemente utilitárias, a saber, preparar
os jovens para ocupar um posto de trabalho e para prosseguir estudos. No
fundo, ambas as funções se subordinam à funcionalidade instrumental de
preparação de mão-de-obra para ingresso no mercado de emprego,
dito "geral" em direcção ao ensino técnico e profissional.
43
correspondendo apenas a diferentes patamares de saída do sistema escolar,
uma mais imediata outra mais diferida no tempo, a que correspondem títulos
escolares diferenciados hierarquica e socialmente. Assim, estas funções são
o corolário não só de uma matriz escolar que ordena a distribuição
diferenciada dos estudantes dentro do sistema escolar, preparando-os para
o desempenho de diferentes papéis no sistema produtivo, mas também de
uma identificação dos sistemas escolares com os imperativos do crescimento
económico. A hierarquia de prestígio surge, assim, como um facto inelutável.
Enquanto esta matriz funcionalista e instrumental predominar na concepção
do ensino secundário, a diversificação entre modalidades e tipos de ensino,
com a chancela de uma hierarquia de prestígio associada, será inevitável.
Ora, a ser assim, três conclusões se impõem. Em primeiro lugar, a de que
todos os percursos escolares e formativos e modalidades de ensino
secundário superior que, nos países em que predomina o modelo escolar,
não estão destinados ao acesso privilegiado a estudos superiores, tendem a
ser identificados como originariamente marcados pelo desprestígio social.
Em segundo lugar, a diversificação curricular e institucional, antes e mais do
que corresponder a uma resposta escolar à diversidade de motivações e
aptidões dos alunos, constitui, pois uma inevitabilidade intrínseca à função
selectiva dos sistemas escolares e ocorrerá sempre, independentemente do
nível escolar em que ocorra. Se é comum verificar a sua maior ocorrência no
segmento pós-obrigatório, não será nada estranho constatar a sua
deslocação para o ensino pós-secundário, o que já acontece em grande
parte nos EUA e no Japão. O que, sim, seria estanho era o seu
desaparecimento total, em virtude de desaparecer de um dado segmento do
sistema escolar. Em terceiro lugar, por mais vasto que seja o leque da oferta
educativa, o modelo escolar polarizado pelo ensino superior tenderá sempre
a estender o seu manto de prestígio sob as outras formas de educação
escolar, mais ou menos formais. Nesta ordem de ideias, é provável que nas
reformas dos segmentos de ensino técnico e profissional esteja presente um
44
movimento de aproximação e quase identificação com o referente principal, o
modelo escolar assim polarizado e assim prestigiado.
O debate ideológico que atravessa transversalmente as políticas educativas
nacionais tem-se mantido preso no conflito entre o papel dominante do
modelo do ensino geral e pré-universitário e o papel relevante atribuído no
discurso político ao ensino técnico e à formação profissional. Apesar deste
último tipo de ensino e de formação profissional ser objecto de inúmeros
investimentos no ordenamento das políticas de ensino e de formação,
sobretudo nos países em que perdomina o modelo escolar no secundário,
aquele factor estrutural continua a influenciar muito as escolhas, como acima
referimos, com o seu "rationale" de ensino eleito, acesso privilegiado às mais
altas e prestigiadas credenciais escolares, quer atraindo um número
crescente de jovens para as suas fileiras quer atraindo as outras fileiras para
a sua própria órbita, como acima referimos. A fileira geral mantém outras
iniciativas e algumas novas medidas de política, nomeadamente as relativas
ao ensino e à formação profissional, na sua "dependência simbólica"
(Verdier, 1995).
O desemprego crescente de diplomados pelo ensino superior, apesar de ser
geralmente menor do que o que ocorre para os diplomados pelos outros
níveis inferiores (ver p. ex. capítulo referente à história do ensino secundário
entre 1945 e 1995), veio transmitir alguma fragilidade aos mitos
credencialistas, tão sólidos e inquestionáveis eles pareciam estar ao nível do
senso comum. Além disso, há países onde, por força de um ordenamento
social diferente, em que os empresários, os trabalhadores e a administração
pública regulam e credibilizam socialmente os diplomas profissionais a níveis
que não apenas os equivalentes ao ensino superior, em ambientes culturais
"profissionalistas", existe um outro equilíbrio entre estas funções, em que o
ensino técnico e a formação profissional acabam por partilhar do prestígio
45
associado aos mais elevados diplomas escolares.
Entretanto, é mister constatar-se que este segmento do sistema escolar
cumpre também outras funções sociais relevantes que escapam ao
determinismo económico e às leituras positivistas que, de tal modo
sobrevalorizaram esta subordinação instrumental, que a foram tornando
tendencialmente exclusiva. Este é também visto geralmente como um ciclo
de orientação de escolhas posteriores e como um importante ciclo do
desenvolvimento humano, sobretudo agora que se tem vindo a alongar a
fase da adolescência e de preparação para a vida adulta, sobretudo por
força do adiamento do início do exercício profissional. Espera-se que os
jovens, durante estes anos de permanência no sistema escolar, possam
desenvolver individualmente um leque amplo de conhecimentos, atitudes e
valores susceptíveis de os enriquecer pessoalmente e os fazer desabrochar
como seres únicos e irrepetíveis, além de os preparar também para o
exercício de uma cidadania responsável, exercendo múltiplos e importantes
papéis sociais, entre os quais estará, muito provavelmente, o exercício
profissional. Aliás, o facto de se tender a prolongar mais e mais a moratória
de transição entre a formação inicial e a entrada no mundo do trabalho, em
virtude da dilatação do tempo de "protecção" escolar e formativa, também
contribui para dotar de mais oportunidade e centralidade sociopolítica a
função educativa global do ensino secundário.
Assim, a formação pessoal e o desenvolvimento moral dos jovens, em
processo de escolarização no ensino secundário, são chamados à ordem do
dia. A relevância e a actualidade deste ponto tem sido também sustentada
pelo facto de os sistemas escolares europeus, perante uma longa crise da
economia de mercado (razão económica), diante da aplicação generalizada
das novas tecnologias e do desemprego que se lhes associa (razão
tecnológica), perante os riscos de exclusão social de importantes segmentos
da população (razão social), diante da emergência de novas sociedades
46
multiculturais, multiétnicas e multiconfessionais (razão cultural), face à crise
ambiental crescente (razão ambiental) e diante de uma rara indefinição
acerca do papel da União Europeia no concerto das nações (razão política),
os sistemas escolares europeus, repita-se, serem chamados a desempenhar
um relevante papel de refundação de um desenvolvimento humano global
(Carneiro, 1993) . Todavia, o mandato económico e a selectividade que ele
transporta parece que ensurdeceram o sistema escolar, perdido no
cumprimento de funcionalidades várias e mais ou menos óbvias, reduzindo
drasticamente a sua capacidade educativa de acolhimento da diversidade
humana e das preplexidades dos jovens de hoje, os mesmos que a ele
crescentemente acorrem.
Finalmente, a existência e a compreensão deste permanente jogo de
equilíbrios entre distintas racionalidades também se torna um elemento
central na análise, na medida em que qualquer inovação institucional que
ocorre no ensino secundário está sujeita a esta tensão entre finalidades, que
ora concorre para o sucesso das inovações, ora as neutraliza, no todo ou em
parte, pelo predomínio de outras racionalidades que não as esperadas,
como oportunamente sublinharam Maria Ibarrola e Maria Gallart (1994).
Profissionalismo e neoprofissionalismo
Na análise que vamos empreender mobilizam-se também dois conceitos
elementares e recorrentes na literatura sobre o ensino secundário e sobre as
suas
reformas
mais
recentes,
a
saber,
profissionalismo
e
neoprofissionalismo. Na literatura portuguesa sobre esta matéria, recorre-se
muitas vezes ao termo “vocacionalismo” para falar do profissionalismo
(Stoer, Stoleroff e Correia,1990; Stoer, 1994). Trata-se de uma incorrecta
adaptação do termo inglês “vocationalism”, que deriva do termo “vocational”
e é aplicado habitualmente nas expressões “vocational education” e
47
“vocational training”. O termo “vocação” é de outro valor semântico na língua
portuguesa. Designa uma inclinação ou uma progressão natural, uma
escolha, um talento, que podem ou não relacionar-se com as profissões. Em
português, além disso, não existe o termo “vocacionalismo”, como derivado
da mesma raíz latina “vocatione”. Existem os termos profissional e
profissionalismo cuja semântica é a que mais se aproxima da semântica
relativa à aplicação dos termos “vocational” e “vocationalism” na literatura
inglesa aplicada à educação e, mais especialmente, à formação profissional.
Esta literatura, no que se refere à formação e à orientação vocacional,
recorre aos termos “career education”, “career training” e “ career guidance”.
E quando os referidos autores recorrem ao termo “vocacionalismo” é ao
profissionalismo que se referem. Por exemplo:”o termo ‘novo vocacionalismo’
pode ser considerado como uma forma conveniente para glosar um conjunto
completo de desenvolvimentos inter-relacionados (...) que têm em comum
uma dinâmica geral, no sentido de uma integração “ocupacionalista” entre o
sistema educativo e o sistema ocupacional...” (1990:20) ou “na noção de
‘novo vocacionalismo’ está implícita a ideia de um ‘novo’ instrumentalismo ou
um ‘novo’ economicismo na tutela do Estado face à relação entre sistema
educativo e o mercado de trabalho” (1990:21).
O termo profissionalismo, em sentido geral e nesta investigação, designa o
conjunto das perspectivas teóricas e das medidas de política educativa que
advogam que a educação deve tornar-se mais relevante na satisfação das
necessidades da economia, da evolução do mercado de emprego, do
trabalho e das profissões.Usa-se frequentemente em oposição à visão
tradicional "liberal-humanista" que defende que a educação escolar é autoreferenciada no seu sujeito e nas suas finalidades, como meio de realização
do potencial humano de cada aluno.
A ideologia profissionalista, na continuidade das teorias do capital humano
dos anos cinquenta e sessenta, pretende ver reforçada a eficiência
48
económica
dos
sistemas
escolares
e
de
formação,
através
do
desenvolvimento de competências adequadas a uma economia em
reestruturação.No caso do ensino secundário europeu, o profissionalismo
tem um sentido lato e um sentido restrito. No primeiro caso, ele expressa o
conjunto das propostas políticas dos governantes procurando estreitar as
fronteiras entre educação e emprego-trabalho. No segundo, representa a
concepção e a aplicação de medidas concretas de reforço da formação em
domínios ocupacionais específicos. O profissionalismo, neste último sentido,
promove-se habitualmente por cinco vias distintas: (a) orientando todo o
currículo, no sistema formal de ensino, para a preparação para o trabalho e
para a inserção profissional; (b) criando instituições de formação paralelas,
com a exigência de uma frequência a tempo inteiro, mas vocacionadas para
a qualificação da mão-de-obra requerida pela economia; (c) injectando nos
currículos gerais já existentes componentes de pré-profissionalização e
articulações com as empresas, tendo em vista desenvolver atitudes e
comportamentos úteis para uma posterior inserção socioprofissional; (d)
desenvolvendo sistemas não-formais de formação para o emprego,
geralmente destinadas a jovens que abandonam o sistema escolar regular;
(e) aumentando a participação dos empresários e das associações
profissionais na definição dos currículos de ensino e de formação (Lillis e
Hogan, 1983; Ishumi, 1988).
O profissionalismo tem, regra geral, dois suportes que se adoptam como
justificação para a sua aplicação teórico-prática pelos governos, um de tipo
económico e outro de tipo político. O primeiro concentra-se no valor de troca
da educação e argumenta que a educação e a formação devem reformar-se
para acompanhar permanentemente a evolução económica, adaptando a
produção de qualificações com os requisitos do mundo da produção e do
trabalho em geral. O segundo é o que sustenta que é necessário alterar os
currículos escolares para estancar a progressão do desemprego juvenil, uma
vez que a existência deste se deverá fundamentalmente à inexistência de
49
pessoal devidamente qualificado aos vários níveis em presença na
hierarquia das relações sociais de trabalho, segundo as necessidades do
mercado de emprego em cada momento. Mesmo em contexto de elevado
desemprego o profissionalismo justifica-se, neste sentido, como uma via para
aumentar a competitividade entre os indivíduos para ocuparem os postos de
trabalho disponíveis ou para criarem o seu próprio emprego.
Alguns autores assinalam o surgimento, nas políticas de educação e de
formação, nos anos noventa, de um conceito novo de profissionalismo, que
designam
por
"profissionalismo
liberal",
em
contraposição
ao
profissionalismo "pragmático" dos anos oitenta (Silver e Brennan, 1988;
Evans, 1994). O profissionalismo liberal vê a educação para o trabalho num
sentido social mais lato, social, económico e tecnológico, com ênfase no
desenvolvimento das capacidades de iniciativa e de empreendimento
laboral. Os governos europeus estariam a orientar os sistemas educativos
para maximizar as capacidades humanas para lidar com as necessidades e
as oportunidades de um futuro muito incerto, atribuindo ao ensino secundário
um serviço à comunidade que não se confunda com os pedidos do mercado.
Este conceito de profissionalismo liberal abre exactamente sobre o que se
designa geralmente por neoprofissionalismo. Este representa um movimento
mais recente das políticas educativas europeias que abarca um conjunto de
medidas configuradoras de um novo profissionalismo. Entre estas destacamse quatro: (a) a redução do número de especializações técnico-profissionais
que existem no sistema de ensino e de formação, evoluindo para planos de
estudo mais nucleares e polivalentes; (b) instalação e reforço dos troncos
comuns de formação, obrigatórios em todos os percursos de ensino e de
formção, e aumento significativo da formação geral académica em todos
estes percursos; (c) estabalecimento de novos sistemas de equivalências
entre cursos e entre percursos de ensino e de formação de tipo geral e de
tipo técnico e profissional e criação de passadeiras entre estes mesmos
50
cursos e percursos; (d) desenvolvimento de uma vasta panóplia de cursos e
de modalidades de ensino e de formação, ao nível do ensino secundário,
criando um novo e amplo mercado de formação para o grupo etário 16-18/19
anos.
É igualmente atribuída ao neoprofissionalismo uma marca social que se
traduz na crença acerca das potencialidades da flexibilização curricular e
das novas formas de interpenetração entre as componentes geral e
profissional, seja enquanto antídotos para um certo determinismo técnico,
abrindo para uma nova compreensão do trabalho e das suas configurações
éticas, culturais, políticas e económicas, seja pelo facto de pretender acolher
no sistema educativo uma maior diversidade social de jovens, através de
uma ampliação da oferta.
A ideologia neoprofissionalista partilha com o profissionalismo duas
importantes características: por um lado, está imersa numa retórica optimista
acerca do valor de troca do ensino técnico e da formação profissional e de
toda a formação para o trabalho e para o exercício profissional, mantendo o
sistema educativo no círculo funcionalista e ocupacionalista, agora já mais
como um importante factor de empregabilbidade; por outro, mantém uma
visão dicotómica entre ensino geral e ensino técnico e formação profissional,
orientando as várias medidas de política para esbater a separação entre as
componentes geral e profissional.
Proporemos, a seu tempo, o recurso a um outro conceito que se encontra na
fileira dos anteriores e que procura dar conta da superação de alguns dos
dilemas com que eles se debatem, o pós-profissionalismo. O pósprofissionalismo corresponde a uma outra fase na evolução dos sistemas
educativos em que o aluno-formando já não é considerado como o objecto
central do jogo de interrelações entre a economia e a produção das
qualificações, mas o sujeito que também é capaz de construir o seu lugar
51
social e um outro tipo de relação entre aqueles campos sociais. A
perspectiva
pós-profissionalista
interroga
e
põe
em
questão
o
neoprofissionalismo, mesmo na sua formulação de aproximação do ensino
profissional ao ensino geral académico, adoptando um quadro realista na
análise da relação educação-economia.
Desespecialização e desprofissionalização
Para Martin Carnoy, nas últimas décadas, o ensino secundário surge como o
segmento do sistema de ensino no qual se processam mudanças estruturais
mais vastas e sensíveis (Carnoy,1996). Os últimos vinte anos têm sido de
progressiva massificação do ensino secundário de segundo grau. Com o
desenvolvimento deste processo de progressivo aumento da procura e de
generalização da oferta, a população escolar deste nível de ensino tornou-se
socialmente mais e mais heterogénea. Para fazer frente a um conjunto de
novos desajustamentos sociais, a agenda política dos vários governos
europeus, com evidentes descompassos entre os países, mais cedo ou mais
tarde foi integrando como prioritárias as reformas do ensino secundário.
Por um lado, à medida que o emprego escasseia e que o mercado do
primeiro emprego se torna mais fechado e mais lento no seu funcionamento
e, consequentemente, governos e famílias convergem no adiamento da
saída do sistema de ensino e de formação inicial, os equilíbrios entre vias
académicas, técnicas e profissionais tornam-se muito instáveis. Por outro
lado, agudizam-se os conflitos entre as finalidades do percurso formativo
entre os 16 e os 18 anos, sendo manifesta uma clara preponderância da
função propedêutica do ensino secundário, uma vez que a própria procura
social tende a eleger a continuação de estudos como o destino mais
desejado após a conclusão do ciclo secundário, como se verá melhor mais
adiante, no capítulo terceiro.
52
Assim, o conjunto de medidas de política que visam reestruturar o ensino
secundário emergem nesta instabilidade, ora mantendo ora desfazendo as
tradicionais segmentações entre as diversas vias, reorientando-o para novas
funções, objectivos e finalidades, gerando necessariamente novos equilíbrios
no seio do ensino secundário. A desespecialização e a desprofissionalização
das formações e a integração entre percursos diferenciados representam
três destas medidas, que parecem afastar crescentemente o ensino
secundário da função específica de preparar técnicos qualificados para o
ingresso no mercado de emprego.
Por
desespecialização
entende-se
aqui
o
conjunto
dos
processos
normativos, de iniciativa das administrações educacionais, de redução, mais
ou menos profunda, do número de fileiras e de especializações técnicas e
profissionais no seio do ensino secundário, nas suas diversas vias de
estudos, com destaque para as que se destinam a preparar os jovens para
um ingresso mais imediato no mercado de trabalho. Como se demonstra na
descrição dos casos nacionais aqui considerados, estes processos de
redução são vastos e generalizados (cfr. o capítulo quinto). Por sua vez, o
conceito mais vasto de desprofissionalização, que engloba o processo
anterior, compreende o movimento plurifacetado - que vai desde a retórica
técnico-política, ao enunciado legislativo dos diversos Estados, às mudanças
na morfologia do sistema escolar, até à evolução da procura social e à
própria formulação do senso comum - que se dirige principalmente para a
reestruturação dos currículos do ensino secundário de tipo técnico e
profissional, aproximando-os dos perfis formativos das modalidades de
ensino geral. Todavia, este movimento apresenta uma grande diversidade de
configurações concretas, como veremos, podendo englobar não só uma
redução do número de especializações, a desespecialização, como e
sobretudo uma aproximação curricular muito nítida aos percursos do ensino
53
geral académico, a que alguns chamam "generalização" (Leclercq, 1994;
Pedró, 1992 e 1996) ou integração curricular. Contribuem para tal quer a
substituição de disciplinas muito práticas e até oficinais por disciplinas dos
cursos do ensino geral académico, tais como Língua Materna, Língua
Estrangeira, Matemática, Estudos Sociais, Filisofia e História quer a
integração e a aproximação entre diferentes tipos de escolas, até então mais
afastadas entre si (cfr. capítulo quinto). Em alguns países, os cursos técnicos
e profissionais são assim gradualmente desprofissionalizados, com base
numa retórica de cariz essencialmente económico, sendo certo que neste
processo eles parece perderem mais e mais a função social de preparação
de técnicos qualificados para ingressar de imediato nas actividades
económicas.
Estes processos deixam em aberto também a necessidade de esclarecer,
antes de mais, o que significa destinar o ensino secundário a preparar
predominantemente para o prosseguimento de estudos, pós-secundários ou
superiores, e o que isto quer significar em termos da relevância educativa e
formativa global do ensino secundário. Convirá interrogar os movimentos de
desespecialização e de desprofissionalização do ensino secundário,
enquanto medidas de reforço da democratização do ensino e da formação e
de adiamento da sua função selectiva. De facto, o reforço da formação dita
"geral", na medida em que equivalha ao reforço da tradicional formação
académica liceal, pode conduzir sobretudo à substituição do modo de
selecção, mais do que ao abandono da função de selecção e de
estratificação que o ensino e a formação ao nível secundário continuam a
desempenhar. Em segundo lugar, pode-se questionar o que é hoje o ensino
técnico e a formação profissional inicial e em que medida preparam os
jovens para ingressar no novo mercado de emprego, nos anos noventa. Qual
o lugar das aprendizagens técnicas e profissionais à luz das mutações em
curso
na
economia
e
nas
novas
dinâmicas
sociais
de
inserção
socioprofissional dos jovens? Não estarão os percursos de formação técnica
54
e profissional capacitados, mediante um certo conjunto de critérios e
condições, para competir com os percursos académicos na preparação para
estudos posteriores e, mais importante do que isso, na produção das elites?
Talvez fosse importante percepcionar o papel daqueles percursos para além
de uma mera tecnologia social estratificadora, uma vez que há evidências de
que exercem outras funções educativas relevantes.
Promovida esta precisão de conceitos, a que habitualmente se recorre para
analisar o ensino secundário, e esclarecido o sentido dos termos principais
que vamos usar ao longo desta investigação, embora não se tenha eliminado
a ordem e a desordem que permanecem na realidade social do ensino
secundário, cremos que, deste modo, mais facilmente a poderemos
compreender, nas suas múltiplas facetas, nos seus conflitos internos e nas
suas correntes reformadoras.
Passaremos, por isso, a apresentar de modo genérico o percurso de toda a
investigação para que se apreenda, desde já, o seu sentido, as suas
hipóteses, os seus passos e a sua arquitectura metodológica.
55
Capítulo 2
Introdução geral à investigação
É no seio desta ordem desordenada e deste quadro problemático, descrito
na sua linguagem natural e no nível de inteligibilidade originário, que se
inscreve o problema central da investigação que empreendemos. No
presente capítulo vamos apresentar o problema e o seu contexto, as
hipóteses de que partimos, as principais opções metodológicas e ainda as
partes estruturantes do trabalho.Orienta-nos um conjunto ordenado de
procedimentos de trabalho que visam interrogar e descobrir a realidade e
enunciar a sua interpretação.
Dentro do ensino secundário europeu, que, como vimos, é uma realidade
multifacetada com diferentes configurações organizacionais, emerge um
movimento de integração entre várias modalidades e percursos do ensino e
da formação e de uma certa desespecialização das formações técnicas e
profissionais. Este movimento é patente particularmente nos países em que
é dominante o modelo escolar de estruturação do ensino e da formação ao
nível secundário. É dentro deste modelo e deste movimento que nos vamos
situar, conscientes de que esta limitação do campo de análise deve estar
sempre presente, mormente no momento de elaborar quaisquer conclusões.
Refira-se desde logo que, na Europa, o meio século decorrido sobre o fim da
II Guerra Mundial tem sido um tempo de forte crescimento da procura do
ensino secundário. De um tipo de ensino para poucos, sobretudo destinado
aos que pretendiam prosseguir estudos universitários, tornou-se um ensino
de massas, procurado actualmente, na generalidade dos países, por mais de
oitenta por cento da população do respectivo grupo etário. Esta mutação
estrutural tem originado um clima de crise de sentido acerca do lugar e das
funções sociais do ensino e da formação de nivel secundário e,
56
simultaneamente, um ambiente propício à sua reorientação política.
Esta realidade foi acompanhada, sobretudo após as crises económicas dos
anos setenta, por novos fenómenos sociais com enorme impacto sobre as
políticas de ensino e de formação. O desemprego começou a apresentar-se
como uma dinâmica social estrutural, afectando particularmente os mais
jovens e os menos qualificados. O ensino e a formação consagraram-se
como instrumentos preciosos de mobilidade social e como trampolins cada
vez mais imprescindíveis para acesso à actividade profissional. Tornava-se
evidente para os jovens e para as suas famílias que o acesso às mais altas
credenciais escolares representava um investimento rentável, sobretudo
diante de um adverso mercado do primeiro emprego. Para os governos, o
crescimento da procura era acompanhado pelo crescimento da oferta, seja
pela extensão das modalidades de ensino e de formação e dos tipos de
escolas já existentes seja através da criação de uma grande variedade de
percursos e programas de ensino e de formação e de formação-emprego.
Deste modo, os niveis etários em que se acedia ao mercado de emprego iam
sendo sistemática e continuamente diferidos, ao longo da segunda metade
do século XX.
O sistema de produção industrial passava, no mesmo período, por
importantes mutações organizacionais, financeiras, técnicas, de mercados e
de gestão da mão-de-obra. A economia terciarizou-se continuamente e
assistiu-se à introdução massiva de novas técnicas, tanto ao nível da
produção, como nos níveis da comercialização e do consumo. Alguns
sectores mais inovadores e competitivos da economia aceleraram os
processos
de
reestruturação
empresarial
e
de
internacionalização,
reforçaram a concorrência recorrendo a novas formas de organização do
trabalho, ao lançamento de novos produtos e a novas estratégias de
comercialização no espaço mundial. O liberalismo económico afirmou-se,
mormente após a queda do Muro de Berlim, como o grande referencial de
expansão económica em todo o planeta. Muitos autores e organismos
57
internacionais, num quadro geral de grande optimismo em torno destas
transformações económicas, referem a emergência de um modo póstaylorista de produção, o modo de produção flexível. A ele associam o
requisito generalizado de uma mão-de-obra mais qualificada e, em geral,
altamente qualificada, uma vez que ao novo tipo de organização se
associam tarefas profissionais mais complexas e mais amplas, novos modos
de trabalho em equipa, grande capacidade de adaptação à mudança, uma
maior participação e criatividade, uma maior autonomia e responsabilidade
das equipas de trabalho.
Embora este movimento de reestruturação económica seja protagonizado
apenas por alguns sectores de actividade e por algumas empresas, o seu
impacto social é bastante vasto, sendo particularmente visíveis várias das
suas repercussões sociais, nomeadamente sobre o emprego: o desemprego
cresce continuadamente, a mão-de-obra terciariza-se, um importante caudal
de vínculos contratuais precariza-se, as mudanças de emprego e de
profissão são muito mais frequentes, a incerteza associada às trajectórias
profissionais é geralmente bastante mais elevada, nascem novas formas de
trabalho, como o teletrabalho, incrementa-se a criação do autoemprego e
cresce o emprego associado a funções mais qualificadas e mais
conhecimento-intensivas.
É neste contexto preciso que se formulam e anunciam permanentemente
novos requisitos para o ensino e a formação profissional inicial, tanto por
parte de empresários como por parte de organismos internacionais e de
peritos. Estes requisitos deveriam concentrar-se no desenvolvimento de um
leque de "novas competências" entre as quais é habitual destacar as
capacidades de comunicação, de trabalho em equipa e de resolução de
novos problemas, a iniciativa e a criatividade, a capacidade de adaptação à
inovação permanente e de aprendizagem ao longo de toda a vida, a
capacidade de uso e tratamento da informação e de realização de projectos
58
(Azevedo, 1991). Organizações de cooperação internacional como a OCDE,
o Conselho da Europa, a União Europeia, o Banco Mundial e a OIT, são
fontes de tratamento e importantes veículos de transmissão destes
requisitos, a par de redes de peritos e de organizações internacionais de
empregadores.
A enunciação destes requisitos, que importará interrogar no quadro desta
investigação, enquadrando-os na evolução histórica e na leitura sociológica,
comporta igualmente orientações mais ou menos explícitas sobre a
necessidade de reformular e sobre o sentido da reformulação da
organização, do conteúdo e das funções do ensino e da formação
profissional inicial. Entre elas sobressai a perspectiva de que é necessário
aumentar o nível geral das qualificações escolares e profissionais da
população, investir no desenvolvimento de uma sólida formação geral de
base e fomentar a capacidade de adaptação dos jovens a um novo contexto
económico, incerto, em permanente reestruturação, e a uma sociedade em
que as mudanças são amplas e ocorrem a um ritmo muito intenso. Esta
mensagem é veiculada constantemente e por todo o mundo como uma
ideologia irrecusável e como uma espécie de caminho de sentido único.
Como que se impõem, de fora para dentro, orientações precisas para as
reformas educativas nacionais, tendentes a fazer evoluir os sistemas
educativos nacionais em direcção ao seu cumprimento. Na verdade, as
medidas de política de ensino e de formação sucedem-se umas atrás das
outras, em muitos países da Europa. Parece ser sobre estas componentes
dos sistemas sociais que recaem as responsabilidades de fazer face à
"modernização" económica e de preparar a população para enfrentar as
suas principais exigências e os seus principais efeitos. Importará interrogar,
no entanto, nesta investigação, não só o sentido destas orientações como o
modo como elas se geram e veiculam no espaço internacional, os modos
como os governos e os actores sociais nacionais delas se apropriam e ainda
59
o modo como as articulam com as outras funções sociais relevantes do
ensino e da formação ao nível secundário.
De facto, a racionalidade que enforma estas orientações, de cariz
essencialmente económico e vinculada à ideologia da modernização e da
globalização, não esgota, como vimos, o universo de racionalidades que
orientam estas políticas de ensino e de formação8. A manifestação contínua
e bastante sustentada dos princípios de uma dada ordem económica9, como
as vias estruturantes destas políticas, gera certamente novas tensões entre
as várias racionalidades, ao mesmo tempo que alterará as funcionalidades
adstritas quer às diversas modalidades de ensino e de formação de que o
nível secundário se compõe (por ex. formação geral académica, formação
científica, formação técnica e formação profissional) quer aos vários tipos de
instituições de ensino e de formação que o estruturam (por ex. liceus,
escolas técnicas, escolas profissionais, centros de formação profissional,
escolas e centros públicos e escolas e centros privados). Será importante
perceber se se está efectivamente a gerar e qual é o novo modelo de
equilíbrio entre estas racionalidades complementares que povoam o ensino e
a formação profissional inicial. A predominar nas reformas educativas
nacionais a perspectiva de uma mera adaptação dos sistemas educativos
nacionais aos novos requisitos da economia, estaremos provavelmente em
presença de uma significativa crise de sentido acerca do lugar e do papel do
ensino e da formação ao nível secundário.
Reformas integradoras e desespecializadoras
8 Referimos inicialmente quatro grandes finalidades que se encontram habitualmente em tensão no ensino e na formação
de nível secundário: produtiva, propedêutica, formativa e social ou política.
9 Mais adiante explicitaremos que esta ordem económica, dominada pelo liberalismo, é também uma certa ordem política,
ligadas de modo inextricável.
60
No fim dos anos oitenta e de modo muito especial nos anos noventa, em
vários países europeus, em que é preponderante o modelo escolar ao nível
secundário, os governos empreenderam políticas de reforma que visavam,
entre outros aspectos, uma integração mais ou menos extensa e profunda
entre modalidades de ensino "geral" e de ensino e formação técnica e
profissional e uma desespecialização dos percursos de ensino técnico e de
formação profissional inicial de base escolar. Este movimento reformador de
integração e de desespecialização ao nível secundário surge sensivelmente
ao mesmo tempo em vários países e apresenta-se, na sua formulação
política, de modo similar nos mesmos países10. Há uma retórica política
comum que suporta a tomada de medidas de política educativa semelhantes,
sendo certo que ambas ocorrem num contexto de evidente e comprovada
diversidade de políticas sociais e educativas nacionais, ancoradas em
culturas e sociedades historicamente construídas por vias muito diversas e
próprias.
A desespecialização que tem ocorrido no ensino e na formação de tipo
técnico e profissional tem sido muito acentuada. Países como a Dinamarca,
a Suécia, a Itália, a Finlândia, a França, a Noruega e Portugal, reduziram o
leque de especializações em processos de reforma que se produziram ao
longo dos anos noventa. O movimento é significativo e drástico: de
quinhentas, nuns casos,ou de trezentas especialidades, noutros casos, o
leque reduz-se para duas ou três dezenas. Normalmente estes processos
são acompanhados por duas outras medidas. Uma consiste na criação de
"troncos comuns" de formação no primeiro ou nos primeiros anos dos cursos,
frequentemente comuns a várias modalidades e percursos de ensino e de
formação de nível secundário. A outra traduz-se na manutenção de um certo
grau variável de especialização, como nos casos da Dinamarca, da Finlândia
e da Noruega, que ocorre somente após o ou os anos do tronco comum ou
10 É este movimento que se apresenta e analisa no capítulo quinto.
61
de base. A primeira destas medidas aproxima-se já da referida tendência
integradora.
Esta tendência percorre diversos caminhos e apresenta várias gradações.
Retomando a grelha apresentada no capítulo anterior, a integração escolar
apresenta por vezes, mas muito raramente, características estruturais, uma
vez que poucas vezes se pretende instituir um sistema unificado de ensino e
de formação de nível secundário, integrando num só vários tipos de escolas
pré-existentes. As mais das vezes, a integração é de tipo subestrutural e
traduz-se na instalação de vários tipos de articulações entre modalidades e
cursos diferentes. Estão neste caso: (i) o estabelecimento de uma estrutura
curricular comum para diversos tipos de modalidades e de cursos, em que os
conteúdos de algumas das componentes curriculares (formação geral ou
formação científica) são também comuns; (ii) criação de conjuntos de opções
comuns a várias modalidades e cursos, tendo em vista facilitar a
permeabilidade entre eles; (iii) alteração do número de anos de duração dos
cursos de formação técnica e profissional e alargamento do tipo de
disciplinas, incluindo algumas das mais características do ensino "geral"
académico; (iv) criação de novos sistemas de equivalências legais entre
diplomas obtidos tanto pelas modalidades mais gerais como pelas mais
profissionais; (v) alteração do sistema de acesso a cursos pós-secundários e
superiores e criação de novas modalidades de ensino e de formação técnica
a estes níveis; (vi) admissão da possibilidade de um aluno do secundário
poder frequentar mais do que um tipo de escola, combinando diferentes
oportunidades e saberes.
Alguns autores falam mesmo de um regresso ao "generalismo" no ensino e
na formação de tipo técnico e profissional (Levin, 1978; Jallade, 1988;
Santos, 1989; Pedró, 1992; Leclercq e Rault, 1992; Garrido, Pedró e Velloso,
1992; Papadopoulos, 1994), dado o quadro social de reestruturação
económica contínua e de mutação frequente tanto dos perfis profissionais
62
como das necessidades locais e nacionais em recursos humanos
qualificados. Disciplinas como Ciências Sociais, Matemática, Língua Materna
e Línguas Estrangeiras são introduzidas no âmbito de reformas curriculares
em que se reduz o número de especializações e se criam anos de base de
formação comum para modalidades de ensino e de formação até então
estanques (geral, técnico e profissional). A retórica oficial que acompanha
estas medidas de política refere constantemente a necessidade de oferecer
uma formação mais sólida e polivalente, capaz de desenvolver um leque
mais alargado de competências, diante de um contexto social e económico
caraterizado por mudanças imprevisíveis e por uma cada vez maior
valorização do conhecimento em todas as actividades profissionais.
Outras perspectivas de análise sublinham que a procura social se
encaminha cada vez mais para as modalidades de ensino "geral" académico,
as que tradicionalmente estão mais ligadas ao acesso ao ensino superior,
como acto integrado na sua estratégia de alcance das mais altas credenciais
escolares. A pertinência desta e de outras visões do problema será
verificada mais adiante.
Entretanto, a similitude da retórica política que informa e dá forma a estas
reformas e a sua simultaneidade são factos muito salientes que requerem
uma interrogação e uma verificação adequadas. As retóricas nacionais
parece beberem a sua seiva na retórica expandida pelas organizações
internacionais que operam nos domínios económico-sociais. Há como que
uma construção política supranacional que é a grande fonte inspiradora
destas reformas e que se vai expandindo internacionalmente, tanto pela
acção das ditas organizações como por múltiplos encontros de peritos e
seminários
internacionais,
por
estudos
comparados,
por
produções
estatísticas e pela constante referência nacional às estatísticas de outros
países. No âmbito da União Europeia, a força desta acção supranacional é
particularmente visível através de um conjunto de programas e acções
63
transnacionais e de sistemas de cofinanciamento europeu de políticas
nacionais. O poder, aparentemente invisível, desta intervenção transnacional
está, em grande parte, por avaliar, mas parece notório o seu poder predictivo
e uniformizador dos enunciados políticos nacionais.
Os governos nacionais europeus, a braços com sistemas nacionais de
educação cada vez maiores e de mais difícil controlo e com crises sociais de
grande impacto, como o desemprego crescente, parece recorrerem a estes
enunciados políticos supranacionais como quem pretende alcançar bases
seguras (tábuas de salvação?) de legitimação das suas próprias políticas
locais/nacionais.
Entretanto, uma coisa podemos reter: este é o problema preciso e
circunscrito que sucessivas perguntas, formuladas anos a fio, a tempo e a
destempo, foram resgatando à voragem dos dias. Uma vez retirado do fluxo
ininterrupto das coisas e dos acontecimentos, para lhe conferir sentido,
vamos reinscrevê-lo em novas lógicas de inteligibilidade potencial (Berthelot,
1996). Estamos conscientes de que este é um terreno multidimensional,
profundamente dominado por ideologias poderosas e resistentes ao tempo e
por mitos entranhados nas culturas europeias e envolto numa actualidade
económica e política muito complexas e, em boa parte, incompreensíveis.
Deste terreno pretende-se progredir para um outro, predominantemente
teórico, tendo em vista desencadear um trabalho de "apropriação teórica do
problema de partida", accionando para tal vários elementos típicos da prática
científica (Almeida e Pinto, 1995:15), aptos a enfrentar as complexidades e
as "falsas racionalidades" (Morin e Nair, 1997:22).
A integração do objecto num outro discurso far-se-á passo a passo,
progredindo em espiral para campos teóricos cada vez mais amplos,
capazes de estabelecer outros laços e outras articulações entre os factos,
capazes de construir outras regularidades e sequências, uma espiral de
64
abordagens teóricas ancoradas sobretudo nos contributos sedimentados da
sociologia da educação e da sociologia do trabalho.
Do sincretismo para a representação científica, dos termos da linguagem
comum para a fixação controlada de significação, das dimensões dispersas e
dos indicadores perdidos para os conceitos estruturados e a visão
diacrónica, das ideologias e mutilações da realidade para abordagens mais
abertas e multidimensionais, da observação técnica para a selecção de
técnicas de pesquisa referentes ao objecto e às teorias que o constroem, do
problema social ao problema sociológico, tal é o sentido do caminho que se
empreende de seguida.
Temos, no entanto, consciência de que o invisível e o nunca descoberto
estão mais presentes na realidade do que aquilo que conhecemos. O real
está carregado de ilegibilidade, uma ilegibilidade entranhada em mitos,
atitudes, aspirações, sonhos, relações humanas e interrelações. O real
escapa-se-nos por entre as ideias que sobre ele vamos construindo, a sua
complexidade é "irremediável"11. Avançamos, por isso, com estas limitações
bem presentes, mas igualmente aptos a mobilizar práticas científicas
capazes de as enfrentar, pelo menos em parte, tendo em vista construir um
conhecimento científico sobre o problema de partida.
As hipóteses de partida
A estruturação rigorosa da investigação passa necessariamente pela
formulação de um conjunto de hipóteses. As hipóteses desempenham nesta
investigação uma função de organizar percursos de descoberta, conduzindoos com ordem e rigor, fornecendo-lhe um fio condutor eficaz (Quivy e
11 Tomamos aqui como referente principal, na análise da complexidade do real, as perspectivas de Edgar Morin (1981 e
1997).
65
Campenhoudt, 1992; Bravo, 1986). Elas constituem proposições provisórias
que se tornam essenciais como critério de selecção de abordagens teóricas
e de verificações empíricas. Pretende-se que a sua formulação contenha
sufucientemente os elementos que permitam a sua verificação e, desse
modo, tanto a sua comprovação como a sua negação. As principais
hipóteses que construimos para ordenar o percurso analítico constituem
enunciados que derivam sobretudo da formação e da experiência do autor,
por isso carregadas tanto de limitações como de virtualidades, que não
pretendem ser mais do que pontes entre um saber "menos científico" e um
saber "mais científico", retomando uma expressão de Quivy e Campenhoudt
(1992:136).
Em primeiro lugar, há uma multiracionalidade explicativa para as reformas do
secundário de pendor integrador e desespecializador e para a sua similitude
e simultaneidade no espaço europeu. Não nos parece ser possível lançar a
hipótese de que há um factor que se destaca (o económico?) como capaz de
desvendar o emaranhado de ideologias, de paradigmas e de razões menos
óbvias que lhes são próprios12. Cremos ser mais viável empreender este
esforço de desocultação do problema através do enunciado de um conjunto
de quatro hipóteses explicativas interconectadas.
Primeira: pelo efeito conjugado e conflituoso de várias dinâmicas sociais,
entre as quais se destacam as novas formas de organização do trabalho e as
marcas de instabilidade e de incerteza que caracterizam os trajectos
profissionais à entrada do mercado de emprego, o desemprego estrutural
que afecta particularmente os jovens, uma procura social crescente e
eminentemente credencialista de mais e mais educação e os novos
requisitos para a força de trabalho enunciados pelos empresários e pelo
12 Explicitamos os conceitos de ideologia e de paradigma. Ideologias são sistemas de ideias que nos permitem e nos
proporcionam visões do mundo: dar forma, estruturar e dar sentido ao real e nele se referenciar. Paradigmas são
princípios de distinção-ligação-oposição entre algumas noções mestras que comandam e controlam o pensamento, ou
seja, que controlam a constituição de teorias e a produção de discursos.
66
sistema económico em geral, produz-se uma crise prolongada acerca do
lugar e do papel do ensino e da formação de massas ao nível do secundário.
Esta crise é particularmente visível nos contínuos debates e nos conflitos
permanentes entre as várias racionalidades em presença na estruturação do
ensino e da formação a este nível, acima referenciadas. As medidas de
política que se traduzem nas reformas educativas em análise devem ser
consideradas desde logo como sinais desta crise e expressão deste conflito
de racionalidades.
De facto, a verificação deste conflito de racionalidades, como manifestação
de diversos modos de optar e agir perante as novas dinâmicas sociais em
presença, deve tornar-se um procedimento essencial desta investigação. As
reformas educativas em análise, desencadeadas em diferentes países do
espaço europeu, apresentarão muito provavelmente um fundo relativamente
comum de problemáticas sociais e um fundo relativamente diverso de opções
políticas e ideológicas. A percepção desta diversidade requer que a análise
das reformas integradoras e desespecializadoras não se quede pelo estudo
dos referenciais produzidos pelos governos, mas também procure ouvir um
conjunto de actores sociais nacionais significativos.
Segunda: dando mais um passo, supomos que as reformas do ensino e da
formação ao nível do secundário, aqui consideradas, assentam em dois
grandes referentes principais. Um, de provocação ou de incitamento à
reforma, que são os processos de reestruturação da economia europeia e
mundial. Outro, de modelização e de organização, que é o ensino geral
académico.
Quanto ao primeiro referencial, sempre presente nas políticas de ensino e de
formação, importa sublinhar que é a formulação de um novo mandato
económico para os sistemas educativos que surge como a sustentação mais
explícita das medidas de política. Estaremos, assim, perante um movimento
67
de actualização das políticas passadas no que se refere à relação entre o
ensino e a formação, por um lado, e o emprego e o trabalho, por outro.
Enquanto que antes a economia requeria do ensino e da formação de nível
secundário, entre outros aspectos, a especialização de uma mão-de-obra
capaz de satisfazer as necessidades das empresas, agora estas mesmas
empresas requerem uma mão-de-obra polivalente, menos especializada,
portadora de competências "gerais e transferíveis", como habitualmente se
nomeia na documentação sobre o tema. Ainda quanto a esta preponderância
da retórica económica, ela parece traduzir um quadro ideológico em que as
políticas dos governos nacionais se despolitizam e as suas políticas se
confinam à cooperação com a economia, a saber, à adopção de um
liberalismo em expansão mundial. A racionalidade económica e produtivista
parece sobrepor-se a todas as outras como a grande força legitimadora e
mobilizadora das reformas em análise, liofilizando o campo de referenciais
das medidas de política de reforma do ensino e da formação de nível
secundário.
Por outro lado, o percurso educativo íman que parece atrair os esforços
reformadores como capaz de responder aos novos desafios sociais é o
ensino geral académico, o que em vários países se confunde com a
tradicional via liceal. Esta orientação resulta de um processo complexo em
que, de um lado, tende a prevalecer no ensino e na formação de nível
secundário
uma
função
propedêutica,
de
passagem
para
estudos
posteriores, função esta reforçada por uma procura social que se encaminha
para o acesso às mais altas credenciais escolares, diante de um mercado do
primeiro emprego muito adverso, e em que, de outro lado, os governos
tendem a confundir o requisito de novas competências gerais e transferíveis
com a necessidade do reforço das componentes de ensino mais generalista
e mais relacionado com as tradicionais aprendizagens básicas (tais como
Línguas, Matemática, Ciências Sociais, Filosofia) e em que, finalmente, as
próprias vias de ensino geral são as que historicamente têm desempenhado
68
a função propedêutica do ensino secundário, embora antes o tivessem feito
num ambiente em que o acesso a este nível de ensino e de formação estava
reservado a uma elite social.
Acresce ainda que a combinação de ambos os referenciais se traduz
também no real adiamento da entrada dos jovens no mercado de emprego,
protelando esse momento-choque para uma idade cada vez mais próxima
dos vinte anos, o que convirá mais a uma economia que cresce regredindo
no emprego disponível, do que a razões que relevam da ordem do
desenvolvimento humano.
Terceira: alguma atracção crescente pelo ensino geral académico, tanto do
lado da oferta como do lado da procura de ensino e de formação, ao
acantonar-se na reposição do velho modelo liceal, corresponde a um novo
modo de especialização do ensino e da formação ao nível secundário.
A academização dos currículos do ensino e da formação espelha, assim,
uma estratégia defensiva dos governos e das suas políticas educativas face
às pressões sociais e económicas que se exercem sobre os Estados-nação e
corresponde não a uma função de melhoria da qualidade da educação, mas
a uma função de "transporte" massivo dos jovens para estudos superiores.
Assim pressionados e a braços com uma procura social crescente, os
governos tendem a encontrar soluções políticas viáveis decalcando-as no
"discurso internacional" mais moderno, enunciado pelos países mais
modernos e pelas organizações de cooperação internacional mais influentes
politicamente, tanto no plano nacional como no internacional e, a este
respeito, uns e outras insistem na necessidade de reforço de uma formação
geral para todos os jovens que percorrem o nível secundário. Uma vez
operacionalizado este "mandato" em reforço da formação geral académica, o
ensino e a formação de nível secundário especializam-se agora na função
69
social de encaminhar um caudal crescente de jovens para estudos póssecundários e superiores, tornando o ensino secundário académico como o
referente do nível secundário de massas.
Quarta: a similitude das orientações e a simultaneidade destes movimentos
reformadores, nos anos noventa, na Europa Ocidental, resultam da
integração das reformas educativas nacionais em projectos reformadores
globais, pan-dinâmicas reguladas por paradigmas e ideologias construídas e
veiculadas por organismos e agências internacionais (tais como Comissão
Europeia, OCDE, Conselho da Europa, UNESCO, OIT), por redes de peritos,
presidentes
de
grandes
empresas
multinacionais
e
organizações
internacionais de empresários e de trabalhadores, por congressos e todo o
tipo de encontros internacionais, por publicações e por estatísticas. As
correntes de pensamento e de acção assim geradas e comunicadas
transportam uma pressão homogeneizante, no quadro de uma sociedade e
de uma economia de mercado cada vez mais globalizadas e de uma diluição
da diversidade e da relevância política de actuações políticas autónomas dos
Estados nacionais.
Formula-se no plano internacional como que um "sistema de altas pressões",
fundamentalmente ideológico, que orienta os esforços reformadores
nacionais (movimento do global para o nacional), ao mesmo tempo que lhes
dá a possibilidade de se sentirem legitimados (movimento do nacional para o
global). As suas orientações são tomadas como naturais, são inevitáveis e
irrecusáveis e, em grande parte, invisíveis. A sua invisibilidade constituirá,
aliás, um dos seus principais atributos e uma importante base do seu poder
de isomorfização internacional. O recurso crescente a esta fonte de
legitimidade, voluntário e involuntário, funciona não só como um importante
mecanismo de superação das dificuldades que cada Estado-nação encontra
em reestruturar os seus sistemas educativos nacionais e como resposta à
crise de sentido por que passa o ensino secundário, mas também para fazer
70
face às reestruturações económicas em curso.
Não se adopta a perspectiva de que o efeito deste sistema mundial seja
arrasador. A diversidade de traços que caracteriza as reformas em apreço,
que surgem aparentemente como políticas originais e desconexas, resultam
quer de tradições históricas e culturais diversas quer dos movimentos
nacionais de apropriação e adaptação das perspectivas e das orientações
formuladas no plano transnacional às histórias, culturas e opções políticas
nacionais. Estes movimentos nacionais provocam aliás descontinuidades
evidentes nas políticas de ensino e de formação de nível secundário, na
Europa. No entanto, reconhecendo a existência e a importância destas
descontinuidades, a nossa hipótese centra-se sobre os efeitos deste sistema
ideológico mundial sobre as representações dos decisores políticos e sobre
os principais actores sociais, exercendo um poder estrutural e estruturante
das suas políticas e das reformas educativas nacionais. Este processo
encontrar-se-á fortemente relacionado quer com a preponderância do factor
económico sobre a formulação das políticas quer com a necessidade dos
governos encontrarem, fora dos contextos e dos organismos nacionais, as
fontes de legitimação das suas políticas educativas, ultrapassando desse
modo as crises de orientação política do ensino e da formação a nível
secundário e a crise de legitimação em que se encontram mergulhados. É a
esta luz que se compreende que por vezes as políticas enunciadas e
executadas transcendam as realidades locais e nacionais e os seus
problemas específicos e se sustentem numa retórica muito genérica e
agregadora, sensivelmente a mesma em cada um dos países.
Principais opções metodológicas
Para analisar este problema e verificar estas hipóteses e, por esta via,
construir uma abordagem crítica e científica do problema, procedemos ao
71
delineamento de um percurso metodológico próprio, formulando um conjunto
de procedimentos, cujas principais características pretendemos agora
apresentar.
O primeiro e decisivo passo é o da releitura do problema à luz dos
contributos teóricos das ciências sociais. Optamos por mobilizar um conjunto
de contributos teóricos, teorias e perspectivas teóricas13, que interpretam a
relação entre educação e economia e, mais concretamente, entre ensino e
formação, por um lado, e trabalho e mercado de emprego, por outro. Esta
matéria tem sido objecto de importantes esforços analíticos, ao longo do
século XX, o que, como alguns autores sustentam14, não tem sido suficiente
para edificar um corpo teórico relativamente sedimentado e estável. É no
âmbito da sociologia da educação e da sociologia do trabalho que vamos
encontrar os quadros teóricos de referência para sustentarmos este passo.
Quanto à sociologia da educação, a análise a empreender girará em torno
dos conceitos-chave de correspondência e de não-correspondência entre os
dois campos referidos e dedicará especial atenção à desocultação do
encadeado ideológico funcionalista, esse sim bem sedimentado, que abraça
a relação entre educação e economia. Em íntima conexão com aqueles
conceitos estão importantes quadros analíticos propostos pela sociologia do
trabalho. Entre eles destacam-se as teorias da evolução dos modelos de
produção e de desenvolvimento nacional, as perspectivas teóricas da
qualificação, requalificação e desqualificação e as teorias da segmentação
do mercado de trabalho. Este percurso sendo necessário, perante as
hipóteses enunciadas, não é todavia suficiente. De facto ele não permite
13Nem todos os contributos teóricos que vamos mobilizar se apresentam como teorias. Por teoria entendemos, tomando
por base a reflexão de Edgar Morin, um sistema de ideias que estrutura, hierarquiza e verifica o saber, de forma a
justificar a ordem e a organização dos fenómenos que considera. Uma teoria é um sistema aberto, porque procede a
verificações e se sujeita a revisões, e, por isso, é igualmente um sistema perecível, pois pode ser invalidado por novas
verificações. Procuraremos considerar, ao longo do trabalho, esta definição.
14 Autores como Gallart (1992), Husén (1990) Berthelot (1996) assinalam o facto de ainda não haver um corpo de teorias
que sustentem a análise desta relação educação-economia-trabalho.
72
abordar a problemática da similutude e da simultaneidade que caracterizam
as decisões políticas de reforma educativa que aqui estudamos.
Por isso, num segundo tempo, vamos inscrever o problema de partida em
quadros de leitura do processo de globalização, nas teorias do sistema
mundial e nos quadros teóricos da análise societal da evolução dos sistemas
educativos nacionais. Neste âmbito propomo-nos desenhar um novo quadro
de análise da evolução dos sistemas educativos nacionais enquanto
construções do sistema educativo mundial.
Este percurso de abordagem teórica não pode ignorar, no entanto, um dado
fundamental desta investigação, a saber, o facto de empreendermos um
estudo internacional, contemplando países europeus muito diversos, e o
nosso propósito de estudar um objecto que em todos eles está similar e
simultaneamente presente. Este dado requer uma fundamentação rigorosa
pois o quadro analítico escolhido condiciona profundamente o modo de ver
as diferentes reformas educativas nacionais e toda a análise empírica que
dele defluirá.
Um estudo internacional
A passagem da abordagem teórica para o terreno da observação e do
trabalho de campo requer uma mediatização, neste caso intransponível, uma
vez que subsistem por explicitar os caminhos que decidimos percorrer diante
do problema que representa para esta investigação o facto de estarmos face
a um estudo internacional, contemplando países europeus muito diversos e o
propósito de estudar um objecto de análise que em todos está presente.
Impõe-se, por isso, esclarecer como vamos construir validamente uma
análise de um objecto que requer a consideração de um conjunto de
73
reformas desencadeadas num conjunto de países da Europa, cuja
diversidade histórica e cultural é patente. Em todos os casos aqui em estudo
são nítidas as diferenças entre os contextos sociais em que as reformas são
empreendidas. Subjacente a esta diversidade está a realidade histórica e
cultural de cada nação. Como propõe Marc Maurice (1989), existem
"coerências societais" que subjazem e explicam as descontinuidades entre a
evolução dos sistemas educativos dos vários países.
Joelle Plantier (1990) assinala também que é na lógica de funcionamento de
cada sistema de educação e de formação de cada país que se estabelecem
as diferenças entre os países, ou seja, é na estrutura interna das relações
entre os fenómenos sociais que se forma o sentido das diferenças
inter-nacionais.
Tomamos como dado adquirido que as relações sociais não se constroem
nem se combinam do mesmo modo em dois tipos de sociedades diferentes.
Os estudos promovidos pela equipa de investigadores do Laboratoire
d'Économie et de Sociologie du Travail-LEST, de Aix-en-Provence,
evidenciam, por exemplo, o diferente modo de dirigir a oferta e de canalizar a
procura social do ensino secundário em França e na Alemanha e as
diferentes relações entre os sistemas de ensino e formação e os tecidos
produtivos, quer na produção de qualificações quer no seu reconhecimento,
no quadro dos mercados profissionais de trabalho.
Como assinalam as teorias da "coerência societal" (que retomaremos mais
adiante com maior profundidade) existe uma rede de relações sociais - de
formação, organizacionais, industriais, de ordem colectiva - que permanece
consistente intra-nacionalmente e que varia significativamente quando
analisada inter-nacionalmente (Schriewer, 1995). As instituições nacionais
de educação e de formação, que se inscrevem em padrões nacionais
específicos, operam como sub-sistemas largamente autónomos que,
construindo o seu ambiente social, induzem outros sub-sistemas a
74
adaptarem-se (como as empresas industriais). Muitos estudos comparativos
revelam que estas redes de relações, social e culturalmente determinadas,
influenciam diferenciadas formas e estratégias de utilização subsequente
das novas tecnologias, mantendo a rica diversidade de padrões históricoculturais.
Esta perspectiva permitiu ultrapassar tanto uma análise meramente
funcionalista (cross-national), em que a comparabilidade se funda sobre um
princípio que supõe uma continuidade entre os fenómenos que se
comparam, termo a termo, em cada país, como uma análise culturalista
(cross-cultural), que evidencia as descontinuidades entre os países assentes
nos diferentes universos culturais e nos diversos percursos históricos
nacionais. A análise societal, no entanto, revela alguma fragilidade na
capacidade de integrar as novas dinâmicas sociais de reestruturação das
sociedades e das suas interrelações, sob o efeito da mundialização
comercial e cultural. A própria difusão transnacional e transcultural de
conhecimento, de modelos organizacionais, de padrões de resolução de
problemas e de políticas ocorre com uma intensidade e uma continuidade processos de internacionalização e de globalização cultural - que influencia
a referida evolução dos padrões nacionais específicos.
No entanto, assim como as análises culturalistas tendem a menosprezar os
efeitos
do
sistema
mundial
sobre
as
redes
de
relações
sociais
intra-nacionais, também as teorias do sistema mundial tendem a depreciar os
modos como os grupos sociais nacionais e culturais recebem, se apropriam
e adaptam os modelos tansnacionais e transculturais. A re-formulação
nacional e local é, de facto, como acentua Schriewer, um importante
processo social que ocorre no jogo local de interesses, situações e
necessidades. Todavia, não será de desvalorizar, nos anos noventa, seja
pelo efeito do incremento da globalização da economia de mercado seja pelo
crescimento incontido da circulação da informação e dos modelos culturais
75
dominantes, uma crescente interdependência inter-nacional dos modelos
sociais e educacionais estandardizados transnacionais, mormente na União
Europeia.
Há muito que a Educação Comparada e Internacional se debatem com o
problema metodológico da unidade de análise a privilegiar. Historicamente, o
Estado-Nação constituiu a unidade de análise por excelência. O mundo era
visto como um vasto conjunto de sociedades nacionais autónomas, com
distintas coerências socio-históricas. Mas, hoje, como acabamos de referir, a
globalização económica, cultural e política e a implantação do liberalismo
económico em quase todo o mundo requerem que se proceda a releituras
que apreendam as dimensões macro, meso e micro que estão contidas nos
processos históricos da evolução dos sistemas educativos. Como sugere
António Nóvoa (1995), a Educação Comparada e Internacional precisam de
romper com o estudo limitado à dimensão inter-nacional dos sistemas
educativos, alargando-o também tanto aos processos de globalização como
aos fenómenos locais. O sistema mundial constitui uma unidade pertinente
de análise, a par dos sistemas educativos nacionais e dos espaços
educativos e escolares locais, pela simples razão de que o local e o nacional
já não escapam ao global e o global não apaga o nacional e o local. As três
dimensões de análise fazem parte de um mesmo processo histórico.
Não nos parece pertinente, nesta análise, ficarmos contidos no debate entre
“melhoristas”
e
“académicos”,
no
campo
tradicional
da
Educação
Comparada, porque, na actualidade, os campos de análise cruzam-se
permanentemente e abrem necessariamente o campo da compreensão da
historicidade dos fenómenos educacionais. Na Europa Ocidental, os
sistemas políticos organizados territorialmente parece serem cada vez mais
irrelevantes nas redes de comunicação e de interdependência; o sistema
mundial é uma realidade autónoma e exterior que, como diz Schriewer
(1995), tem as suas próprias leis de movimento que determinam também as
realidades económicas, sociais, políticas e culturais, das sociedades
76
nacionais que ele abarca15. Nesta área específica do globo, a União
Europeia, pode mesmo afirmar-se que os problemas sociais mais relevantes
em cada país são comuns à generalidade dos países. Ora, este facto político
e educacional requer que se tomem como referência novos lugares da
tomada de decisão em matéria de educação (Nóvoa, 1995).
Como já haviam salientado os teóricos da análise societal, as diferenças
entre os sistemas educativos nacionais revelam, por um lado, que existem
"campos de práticas" diferentes e "espaços" diferentes de enunciação e de
aplicação, culturas profundamente diversas e que, por outro, estas
diferenças nacionais se inscrevem, em parte, num espaço e num campo de
práticas mais gerais, o que se compatibiliza e faz luz sobre a similutude e a
simultaneidade de várias reformas do ensino secundário que ocorrem na
Europa, em deferentes países. A sua análise sociológica há-de ser tanto
mais profunda quanto mais estas reformas forem lidas como fenómenos
sociais que relevam simultaneamente da evolução do sistema educativo
mundial e da evolução do sistema educativo nacional, sempre inseridos em
redes de relações sociais inter-nacionais e intra-nacionais mais vastas. Aliás,
estas reformas do campo educacional, tanto no plano inter-nacional como no
plano intra-nacional, são também processos indissociáveis da evolução dos
sistemas económicos e produtivos e, como se explicitará adiante, em boa
parte deles dependentes.
O Acto único Europeu, os Tratados de Maastricht e de Amesterdão, ao
colocarem na ordem do dia e apontarem para passos decisivos na
construção da União Europeia, constituem peças fundamentais para a
redução das diferenças entre os quinze países e para o crescimento das
compatibilidades inter-nacionais. A comparabilidade entre os países
europeus não pode ficar prisioneira das diferenças irredutíveis entre as
15 Esta investigação constitui um primeiro passo para a compreensão do modo de constituição e acção do "sistema”
educativo mundial, ficando muito longe de alcançar as "leis" do seu movimento próprio.
77
"culturas nacionais", revelando a sua debilidade para pensar os novos
contornos sociais que se desenham. De facto, estão em construção, agora
acelerada, políticas comuns, nomeadamente de educação e formação, o que
faz irromper uma "coerência comunitária das diferenças nacionais" (Plantier,
1990)
que
também
importa
compreender
no
ambito
dos
estudos
internacionais de educação. Além das diferenças inter-nacionais, existem
estruturas e modos de funcionamento mais ou menos diversos que são
chamados e incentivados a desempenhar, no plano nacional, funções sociais
comuns, comunitárias, ditadas em boa parte por medidas transnacionais e
por esforços comuns de coesão inter-nacional europeia. As diferenças internacionais já não são apenas diferenças que se podem comparar entre si,
mas também são parte de um todo que é a rede de relações sociais e de
obrigações existentes dentro da União Europeia e nas relações dela com o
resto do globo. Este todo constitui, pois, um novo objecto de estudo na
investigação educacional de âmbito internacional.
Desenha-se assim, um quadro de idênticos dilemas e de idênticos conflitos
entre racionalidades divergentes e inscritas em cada espaço nacional de
modo diferenciado. O conflito de racionalidades que habita os sistemas de
ensino secundário em cada um dos países da União Europeia - e por
tradição e arrastamento, de cada um dos países da Europa - é cada vez mais
um conflito comum, em boa parte regulado globalmente, de fora para dentro
de cada país europeu, racionalidades estas que se manifestam também de
modos diversos no campo das relações sociais de cada país, também elas
cada vez mais aproximadas. Bastará trazer à colação o cumprimento das
normas e das metas económicas comuns, estabelecidas no quadro da
adopção da moeda única, o euro, e o concomitante plano de convergência
nominal, as manifestações comuns e europeias de protesto contra as
políticas de emprego ou ainda as medidas tendentes à adopção de um
“passaporte” comum de formação.
78
Ultrapassam-se assim as visões que enfatizam apenas a importância da
história e da cultura locais ou nacionais, sem desvalorizar, no entanto, o
papel das redes de relações sociais locais e nacionais, antes colocando-as
num plano de interacção permanente com os efeitos societais globais,
interacção essa que percorre caminhos vastos e sinuosos de identificaçãorejeição entre os modelos e as políticas oriundos tanto dos modelos
educacionais transnacionais e das suas relações com a economia global,
como do sistema educativo nacional e das suas relações com a economia e
a cultura locais e nacionais. A história e a cultura locais coexistem com uma
história e uma cultura que se constroem e disseminam pelo mundo,
provocando um campo de interconexões em que as primeiras não resistem à
interferencia das segundas, antes as acolhem e convertem de modos
diferenciados, em função de variados factores, entre os quais estará
certamente o lugar de cada país no espaço económico mundial, as políticas
culturais nacionais e a posição geoestratégica na cena política internacional.
O nosso esforço de análise vai para uma visualização mais complexa desta
interpenetração e interdependência no campo educativo, pela análise das
reformas educativas nacionais relativas ao ensino secundário não só como
percursos
de
modernização
social
e
configurações
socioculturais
específicas, mas também e irrecusavelmente como processos históricos de
recepção, apropriação e adaptação de orientações transnacionais e
mundiais. Recorrendo aos termos empregues por Marc Maurice (1989),
existe continuidade e descontinuidade entre os países a observar e estas
continuidade e descontinuidade situam-se numa temporalidade e num
espaço transnacional que também as explicam. As coerências societais
nacionais são também aqui consideradas, por isso, expressões particulares
de um modelo transnacional que as constrói e que elas ajudam a construir.
A leitura inter-nacional das reformas educativas do ensino secundário que
aqui propomos assenta, assim, por um lado, na vertente exógena que existe
79
nas reformas adoptadas, sem negar, antes reconhecendo também, a
componente endógena que as liga necessariamente a cada contexto societal
nacional e, por outro lado, na homogeneidade e, consequentemente, na
continuidade social que se manifesta entre os diversos países, sem negar,
no entanto, a heterogeneidade e as descontinuidades que existem entre
eles. Mais do que nos lançarmos numa comparação termo a termo, que
encontraria enormes dificuldades em explicar quer as semelhanças quer as
diferenças entre os países, optamos por avançar para uma abordagem
inter-nacional cuja metodologia valoriza o lugar relevante das ligações
sociais que se estabelecem entre os actores sociais nos planos nacionais e
a vaga de referências recíprocas e comuns em que o seu pensar e o seu agir
se sustentam. O que se perde em informação contextualizada, ganha-se em
informação comparada e esta, como vimos, está cada vez mais na ordem do
dia, seja nas organizações internacionais seja nos centros de investigação.
Para além de uma análise, caso a caso, dos enunciados normativos que
enformam as reformas educativas nacionais relativas ao ensino secundário,
procederemos ainda a uma análise acerca do modo como em cada um dos
países os diferentes actores sociais em jogo interpretam e se relacionam
com as mesmas reformas educativas. É evidente que o método escolhido
para
esta
segunda
abordagem,
o
questionário,
patenteia
grandes
fragilidades na compreensão das redes de relações sociais entre os actores
nacionais. Temos plena consciência de que se trata, tão-só de um primeiro
passo e do único passo possível, por agora, dadas as limitações com que
deparamos para proceder seja à realização de entrevistas presenciais,
menos fechadas no modo de perguntar e sobretudo no modo de responder,
seja à observação no terreno .
Além destas limitações específicas, estamos conscientes de outros riscos
inerentes à opção que constitui o percurso desta investigação: a história do
ensino secundário em cada país tem uma identidade própria, ainda que
80
apresente alguns traços idênticos e comuns; os tipos de escolas e centros de
formação a nível do secundário, as várias modalidades formativas e os
conceitos usados, ainda que idênticos, não são necessariamente os
mesmos, sendo possível entrar em deslizes semânticos de controlo difícil,
uma vez que estamos perante um conjunto de nove países que se
expressam em oito línguas diferentes; finalmente, ainda que as reformas
educativas se apresentem com um discurso e uma formatação idênticas, é
provável que o que as determinou, o jogo social dos actores que as envolveu
e os seus objectivos precisos não reunam o mesmo nível de identidade. A
consciência destes riscos implicou algumas precauções metodológicas
apropriadas que a seguir se explicitarão, certos de que eles não ficam
ultrapassados, nos limites desta investigação.
Delimitação do campo de análise
Impõe-se também uma delimitação espacio-temporal do campo de análise.
Ou seja, de que reformas se trata, do que se trata nas reformas que se
pretende analisar, que países são envolvidos e qual o período a que reporta
a análise.
As reformas em apreço são as que ocorreram entre 1990 e 1996 e que
incidiram sobre o ensino e a formação ao nível secundário, no seu todo ou
em alguma das suas principais componentes, desde que marcadas por
medidas de reestruturação curricular e/ou organizacional de cariz integrador
e/ou desespecializador. Admite-se, no entanto, que os períodos de gestação
destas reformas possam ter ocorrido durante os anos oitenta, o que
efectivamente sucedeu em vários casos.
Um outro esforço de delimitação centrou-se na análise dos processos de
reforma. A definição dos aspectos a considerar, em função do objecto de
81
investigação, conduziu-nos à selecção de um certo tipo de análise e de
certas fases dos referidos processos. Assim, optou-se por uma visão
macropolítica, tendo-se excluído a análise dos processos micropolíticos que
sempre estão presentes na tomada de decisões políticas socialmente tão
relevantes. Este tipo de enfoque, por sua vez, incidiu apenas sobre as fases
de preparação e concepção das medidas de política, mais ou menos
acompanhadas de processos de participação social alargada, e ainda as
fases de construção normativa e de experimentação, caso esta tenha tido
lugar. Esta decisão fundamenta-se no facto de a análise destas fases ser a
mais relevante e ser suficiente, na economia deste estudo, uma vez que é
durante elas que se produzem as grandes opções políticas, tanto no que se
refere aos seus fundamentos (os porquês) como quanto aos seus objectivos
(os para quê). Este período é, assim, tomado como o mais significativo para
compreender quer as opções políticas de cada governo nacional quer as
razões que lhes subjazem. De fora deste ângulo de visão ficam os processos
de implementação das reformas, os modos da sua aplicação no terreno, o
seu impacto, o seu acompanhamento e a sua avaliação.16 Deste modo, não
cabe nesta investigação a análise dos diferentes processos de apropriação
nacional e local e de interpretação, no terreno da execução das políticas
educativas, dos modelos educacionais transnacionais.
Quanto à selecção dos países a incluir na investigação adoptaram-se quatro
critérios, que se cruzaram. O primeiro consistiu na restrição da análise à
Europa Ocidental. A exclusão da Europa de Leste deve-se ao facto de se
pretender manter um bom nível de homogeneidade no que se refere ao
contexto geopolítico e económico. Ora, os países do Leste Europeu, além de
terem constituído durante décadas um bloco económico e político autónomo
e diferenciado, atravessaram mutações profundas durante o fim dos anos
16 As fases enunciadas referem-se a um modelo de reformas educativas estatais e oriundas do centro para a periferia do
sistema educativo. Embora se reconheça que há outros modelos de reformas educativas, crê-se que este foi o que
predominou nos países em apreço e que, portanto, seria o quadro de referência de todos os interlocutores com quem
teríamos de contactar.
82
oitenta e a primeira metade dos anos noventa. Por idênticas razões, a
mesma separação já não se pretendeu instituir, na Europa Ocidental, entre
os países que já integram a União Europeia e os restantes.
Por outro lado, a escolha dos países recaiu sobre aqueles em que, dentro
deste espaço geopolítico e económico, ocorreram, desde 1990, reformas ao
nível do ensino secundário, no seu todo ou em alguma das suas principais
componentes, como o ensino técnico e a formação profissional. Admite-se
que o período de gestação destas reformas possa ter tido início durante os
anos oitenta. Exclui-se desta compilação, embora nela se enquadre
inteiramente, o caso português. Esta exclusão, já esclarecida no prefácio,
prende-se sobretudo com a opção do autor desta investigação de se querer
distanciar do seu envolvimento directo na reforma do ensino secundário
português17. Entende-se que, deste modo, a análise pode ser realizada com
maior
objectividade,
evitando
ter
de
recorrer
a
mecanismos
de
autojustificação, ainda que implicitamente. É certo, no entanto, que muito do
conhecimento informal que fomos adquirindo sobre a problemática em
análise tenderá a envolver-se na construção científica que dela queremos
empreender.
O terceiro critério de delimitação do espaço geográfico de análise
corresponde ao tipo de conteúdo e de objectivos destas reformas. Elas
teriam de apresentar uma clara incidência curricular, uma extensão dos
troncos comuns do ensino e da formação, uma orientação em ordem à
polivalência e à integração curricular, nos termos já descritos.
O quarto critério é o da ocorrência simultânea de movimentos de redução,
mais ou menos drástica, do número de cursos técnicos e ou profissionais
especializados, o que designamos por desespecialização.
17 Ao excluirmos o caso de Portugal também excluímos, em boa parte, as referências bibliográficas com ele
correlacionadas, pese embora o facto de as conhecermos.
83
A pesquisa documental
Em primeiro lugar, procedemos a uma recolha documental acerca das
opções políticas subjacentes às reformas educativas nacionais que incidiram
no nível secundário. Os enunciados normativos e as leituras governamentais
dessas decisões políticas foram submetidas a um processo hermenêutico18
de análise.
Explicitemos o modo como equacionamos este passo metodológico (descrito
no capítulo quinto). Com base nos critérios já acima explicitados, procedeuse à selecção e identificação dos países e das reformas sobre os quais
incidiu a nossa análise. A aplicação daqueles critérios originou a
identificação de nove casos, a saber:
Dinamarca - Uma lei de Junho de 1990 veio reformular o ensino
secundário profissional de segundo ciclo, na sequência de idêntica
reformulação operada anteriormente no ensino profissional de primeiro
ciclo.
Espanha - Reforma do ensino secundário, na sequência da LOGSE, de
1990, alargamento do tronco comum de formação, criação de um novo
"Bachillerato" e concomitante reforma das modalidades de Formação
Profissional.
Finlândia - Desde 1990, está em curso a criação de uma nova escola
secundária superior unificada.
França - Em 1992, foi lançada uma reforma dos liceus em que o número
de fileiras é reduzido e os cursos do ensino secundário são reestruturados
em dois ciclos.
Holanda - Reforma de todos os tipos de ensino secundário, que se
18 Hermenêutica é aqui entendida como o processo de decifração e de compreensão dos textos oficiais, um “encontro
histórico” (Palmer, 1989) entre os documentos e o esforço de interpretação pessoal.
84
prolonga por toda a década de noventa, tendo-se iniciado em 1993.
Itália - Reforma dos Instituti Professionali, designada por "Progetto’92",
que decorreu entre 1988 e Abril de 1992, momento em que terminou a sua
fase experimental.
Noruega - Reforma do ensino secundário, chamada "Reforma 94",
preparada desde o fim dos anos oitenta e lançada entre 1992 e 1994.
Suécia - Reforma do ensino secundário, preparada ao longo da segunda
metade dos anos oitenta, consagrada em Lei de Junho de 1991, entrou
em vigor em 1993/1994.
Suíça - Um plano de reforma de 1992 revê as condições de acesso ao
Certificado de Maturidade e outra medida institui uma nova via de acesso
a este Certificado, a "maturidade profissional".
Pela pesquisa que empreendemos estas terão sido as reformas do ensino
secundário que, a par da de Portugal, aconteceram neste período de tempo,
na Europa, e que reuniram as características enunciadas. As outras medidas
analisadas, nomeadamente as iniciativas do governo britânico relativas aos
programas de formação emprego para os jovens e as medidas de redução
das especializações no sistema dual alemão, embora se possam inscrever
em tendências globais comuns, não reúnem as características ou não se
enquadram nos limites enunciados.
Há três destes casos em que, embora ocorra uma efectiva reforma do ensino
e da formação ao nível do secundário, com incidência curricular, com
extensão dos troncos comuns de formação e orientada para a polivalência e
a integração curricular, não se verifica o cumprimento do quarto critério, ou
seja, não ocorre simultaneamente uma desespecialização nos cursos de tipo
técnico e profissional. Apesar disso, a opção pela consideração dos casos
da Espanha, da Holanda e da Suíça no presente estudo deve-se ao facto de
se entender que as reformas empreendidas apresentam, ainda assim,
características gerais idênticas, cumprindo os outros critérios referidos.
85
O processo de recolha dos dados relativos às reformas educativas do ensino
secundário, país por país, decorreu entre 1986 e 1996. Ao longo dos anos e
à medida que as diferentes reformas eram planeadas, arquitectadas,
debatidas, adoptadas e experimentalmente executadas, fomos reunindo
documentos, ideias e preocupações sobre as reformas em questão. Os
encontros internacionais, os seminários europeus, as reuniões internacionais
de peritos nacionais, constituíram a principal base para a recolha dos
documentos oficiais dos Ministérios da Educação nacionais relativos às
reformas. Optou-se por centrar a análise destas medidas de política no
estudo das fontes primárias, os textos oficiais publicados pelos respectivos
Ministérios,
tendo-se
restringido
fortemente
a
consulta
de
fontes
secundárias, como estudos mais ou menos descritivos ou críticos sobre os
mesmos processos de reforma.
Para completar alguns elementos em falta e para actualizar a informação,
foram sendo dirigidos, ao longo dos anos, pedidos oficiais de informação aos
Ministérios da Educação nacionais. Ao mesmo tempo, entre 1994 e 1996,
juntaram-se àqueles primeiros elementos um conjunto de descrições oficiais
dos sistemas nacionais de ensino secundário. Estão nesta linha a série de
publicações do Conselho da Europa sobre os sistemas nacionais de ensino
secundário, a série de publicações do CEDEFOP sobre os sistemas
nacionais de formação profissional, a série de relatórios nacionais
elaborados para a Comissão Europeia, relativos às medidas de política
tendentes a prevenir o abandono e o insucesso escolares e, em alguns
casos, as descrições dos sistemas nacionais de educação escolar inscritas
nas publicações da OCDE referentes aos "Exames às Políticas Educativas
Nacionais".
A unidade de todos estes documentos reside no seu carácter oficial.
Independentemente da sua apresentação (folheto de divulgação, relatório,
86
estudo comparado), eles traduzem as posições políticas dos governos
nacionais. Deu-se sempre prioridade, em todo o caso, aos documentos de
fundamentação e de divulgação pública emanados dos Ministérios da
Educação nacionais. Eles constituem um importante recurso para a
investigação exactamente por usarem uma linguagem "natural", declarativa e
normativa, embebida na retórica política habitual.
A análise da documentação recolhida para cada um dos países obedeceu a
uma grelha geral constituída pelos aspectos seguintes: (i) enquadramento do
ensino e da formação de nível secundário superior no sistema de educação
e formação de cada um dos países; (ii) consideração da amplitude do
desemprego juvenil; (iii) identificação das medidas de política tomadas
relativas a este nível de ensino e de formação; (iv) identificação do núcleo de
princípios gerais e específicos enunciados como fundamentadores das
medidas de política em análise; (v) breve caracterização dos processos
seguidos de envolvimento de comissões e grupos de trabalho, de
estabelecimento de novos dispositivos legais e de participação de parceiros
sociais nas mesmas medidas.
O Capítulo 5 dá conta dos resultados obtidos para cada um dos países e
resume as principais conclusões quer quanto à delimitação do objecto da
investigação quer quanto à verificação das hipóteses.
Questionário: objectivos e limites
O inquérito foi eleito, como se referiu, como o instrumento de análise
empírica das questões centrais da investigação e de verificação da
pertinência das hipóteses enunciadas (descrito no capítulo sétimo).
Estiveram na mira da realização do inquérito os seguintes objectivos: (i)
identificação dos princípios gerais e específicos que sustentam, na óptica
87
dos actores sociais, as reformas do ensino e da formação ao nível do
secundário; (ii) verificação da opinião dos actores acerca dos processos de
desespecialização inscritos nas reformas; (iii) verificação do modo como os
actores analisam as influências das dinâmicas transnacionais sobre as
reformas dos sistemas educativos nacionais; (iv) identificação das principais
pressões e resistências internas (nacionais) à adopção das medidas de
reforma do ensino e da formação; (v) compreensão dos papéis dos
diferentes actores sociais nos processos complexos de apropriação nacional
das ideologias orientadoras das reformas.
O inquérito por questionário foi o método seleccionado para a inquirição e
recolha de dados junto de um conjunto predeterminado de actores sociais. O
inquérito funciona aqui como substituto da observação e do diálogo aberto
com os interlocutores, uma vez que o uso destes meios se tornou difícil e até
impraticável.
Após uma exaustiva análise dos documentos emanados dos Ministérios da
Educação de cada país, documentos com carácter oficial e que enunciam
sobretudo objectivos e metas, envoltos numa linguagem necessariamente
retórica e correspondente à política governamental, procura-se agora
complementar a visão sobre as medidas de política em questão com a
recolha de dados junto de vários actores sociais, mais ou menos envolvidos
nesses complexos processos sociais.
Este instrumento de recolha de dados, baseando-se exclusivamente numa
interacção verbal entre o investigador e os respondentes, corre sempre o
risco de conter momentos e áreas, quase sempre incontroláveis, de
desajustamento entre dois discursos, o do investigador e o dos inquiridos.
Aquele interroga em função de um quadro teórico e de conceitos que
derivam da sua apreensão do fenómeno em análise e interroga pela
intermediação de um conjunto seleccionado de palavras e de perguntas e
88
aqueles respondem o que querem e podem responder, em função das
representações que fazem da situação em apreço e dos seus próprios
objectivos ou os do organismo que representam que, em todo o caso, não
coincidem necessariamente com os do investigador.
Estamos conscientes de que o inquérito e o seu suporte exclusivamente
verbal é o resultado de escolhas, contém teorias subjacentes e expressa
uma determinada semântica (Ghiglione e Matalon, 1993). O autor tem
consciência desta limitação. Mas também é na linguagem escrita que
circulam, se apropriam e se podem transmitir com rigor as atitudes, as
opiniões, as preferências e as representações. É sobretudo pela palavra
que, a este nível, se constrói e se transmite significado. A apreensão do real
é
possível
por
intermédio
da
resposta
a
um
conjunto
de
perguntas-indicadores, construídas depois de o autor ter ouvido, anos a fio,
os respectivos actores e depois de ter auscultado longamente o modo como
descrevem e falam das suas actividades, sem prejuízo do ruído que existe
sempre na comunicação entre dois seres humanos.
Neste caso, procurou-se ainda controlar os níveis de desajustamento pelo
recurso a um pré-teste junto de um conjunto de actores sociais, idêntico ao
que se pretendia inquirir em cada país. Este teste decorreu em Novembro de
1996 e incidiu sobre o caso português, ou seja, a reforma curricular do
ensino secundário, que decorreu entre 1988 e 1993, nas suas fases de
concepção, construção normativa e de experimentação. O objectivo deste
pré-teste foi o de validar a sua arquitectura geral, a pertinência das suas
perguntas, a adequação da sua formulação e a sua compreensão por parte
dos respondentes. Foram inquiridos os mesmos tipos de actores sociais,
organizações e pessoas, num total de onze. Obtiveram-se apenas três
respostas. Delas resultou a alteração da formulação de algumas perguntas
(por haver repetições, por deficiente explicitação do conteúdo, por
necessidade de acréscimo de novos elementos de resposta), a eliminação
89
de uma pergunta e a revisão da introdução aos questionários a enviar para
os diversos países. Apesar de o número de respostas ter sido reduzido, o
processo de validação foi oportuno e útil, uma vez que contribuiu para uma
importante revisão da primeira versão, o que terá facilitado certamente o
processo
mais
generalizado
de
recolha
da
informação
junto
dos
interlocutores de outros países.
O facto de o objecto do inquérito comportar, dentro de uma problemática
genérica comum, processos de reforma efectivamente distintos de país para
país colocou necessariamente problemas acrescidos à elaboração do
questionário. Como se referiu acima, este constitui um dos pilares da
presente investigação: abordar processos de reforma do ensino secundário
ocorridos em diferentes países europeus, com a similitude e simultaneidade
já repetidamente sublinhadas. Além das dificuldades e das opções
enunciadas, os riscos de deslizes semânticos são bem evidentes,
carecendo, por isso, de um controlo muito rigoroso. Os conceitos e os termos
a que se recorre, ainda que remetidos a uma única língua, o inglês, que
permite controlar em boa parte aqueles deslizamentos, foram trabalhados
operativamente, em cada país, em oito línguas e culturas diferentes.
Diante desta diversidade, de que se tomou consciência, optou-se por colocar
os questionários todos em inglês, situar cada uma das reformas educativas
em apreciação, em cada caso, no início de cada questionário e explicitar
qual o nosso entendimento sobre cada um dos conceitos-base que são
empregues no corpo do questionário. Crê-se ter de algum modo reduzido os
riscos de deslizamento semântico, embora de modo sempre precário, uma
vez que não se podem apagar culturas distintas só porque se usa uma
mesma língua e se explicitam os conceitos em uso. A espessura cultural que
subjaz, em cada país, às palavras em que cada cultura se expressa será
sempre irredutível a qualquer processo deste tipo. Todavia, também estamos
cientes de que os termos a que se recorre, em língua inglesa, são já
90
frequentemente usados pelos inquiridos, em boa parte habituados a ler
relatórios em inglês e a participar em encontros e outras dinâmicas
internacionais.
Pesquisa empírica: quem inquirir e como inquirir
O questionário é dirigido, como se referiu, a um conjunto seleccionado de
actores sociais19. A escolha recaiu, por um lado, sobre os organismos que
representam os principais parceiros sociais que estão habitualmente
envolvidos, directa ou indirectamente, numa interacção social habitual neste
tipo de medidas de política, ou seja, os que representam os pais, os
professores, os partidos políticos, os empresários e os sindicatos e, por
outro, sobre individualidades que tiveram uma acção directa na génese, na
elaboração e na tomada de decisão, ou seja, governantes e peritos,
intervenientes a título pessoal ou como membros de partidos ou de comités
criados para este fim.
Para manter um quadro comparável de análise entre os vários países, optou-se por inquirir um conjunto determinado e estável de actores, assim
definido:
- peritos que suportaram os governos na adopção das medidas (membros
influentes de comissões, centros universitários de investigação, comités e
personalidades independentes);
- responsáveis políticos governamentais que assumiram e lideraram
politicamente essas mudanças;
- representantes dos professores (em ligação com as centrais sindicais
19 Tomando por referência contributos teóricos da sociologia da acção, actores sociais são aqui considerados os
diversos polos das relações sociais que se estabelecem em cada país em torno das medidas de política de reforma
educacional. Os actores sociais que, numa relação de cooperação conflitual, cooperam nos processos de reforma tanto
podem ser individuais como colectivos. Estes últimos são, por ex., os sindicatos de professores, as associações de pais,
as confederações patronais e sindicais, os partidos políticos e os centros de investigação e os primeiros são os peritos,
oriundos geralmente do meio universitário.
91
mais significativas);
-
representantes dos
empresários
(confederações
patronais
mais
significativas);
- representantes dos pais e encarregados de educação (e dos jovens do
ensino secundário, caso haja);
- representantes dos trabalhadores ( principais centrais sindicais
nacionais).
Esta escolha tem dois elementos centrais de fundamentação. De um lado,
está a necessidade de auscultar intervenientes sociais na génese das
medidas de política, uma vez que se procura indagar sobre quais as opções
que lhes estiveram subjacentes e que se crê que a mera audição das
opiniões dos governos ou dos políticos não dá suficientemente conta dos
diversos modos de apropriação social nacional dos modelos educacionais
transnacionais20. Do outro, importa ouvir a opinião, em princípio mais
distanciada do processo de tomada de decisão, de parceiros sociais, alguns
dos quais se organizam em movimentos ideológicos diferenciados e até
opostos, cuja leitura dos movimentos reformadores no ensino secundário
será, por isso, relevante porque potencialmente mais crítica. Neste caso,
pretende-se também perceber em que medida as opiniões sobre o mesmo
processo variam de actor para actor, se há convergência ou divergência
entre os parceiros a inquirir.
Não se perseguiu, assim, qualquer busca de representatividade na amostra
seleccionada. Este critério foi substituído, cremos que com vantagem, pelo
da adequação face aos objectivos enunciados. Tornou-se, por isso,
imprescindível ouvir os porta-vozes eleitos e mais qualificados das
instituições e os políticos e peritos que mais intervieram nos processos de
decisão, evitando-se o recurso à audição de agentes que fossem meros
20 Como se referiu, o processo de apropriação nacional destes modelos é aqui analisado apenas num primeiro nível, o da
tomada da decisão política, em cada país.
92
funcionários das organizações. Procurou-se sempre ouvir os informadores
privilegiados. O objectivo da recolha de dados junto destes interlocutores é o
de, obviamente, retirar conclusões de carácter geral sobre a opinião dos
parceiros sociais e dos decisores sobre os aspectos de política educativa já
enunciados. O facto de se inquirirem actores sociais do mesmo tipo, em nove
países diferentes, poderá contribuir sustentadamente para esse fim.
Os inquiridos são, assim, um público muito heterogéneo, não só dentro de
cada país como entre os países, mesmo tratando-se de parceiros sociais do
mesmo tipo, como, por exemplo, representantes de pais e encarregados de
educação de alunos ou representantes de professores. Apesar disso,
procura-se que estes diferentes actores, que exercem diferentes papéis,
nomeadamente em função da regulação dos mecanismos de participação
social que existem em cada país, se pronunciem explicitando a sua opinião
sobre medidas de política que contêm alguns traços comuns, ao longo da
Europa Ocidental.
Um outro passo que era necessário dar referia-se ao modo de inquirição
destes actores sociais, em nove países diferentes. Organizou-se um sistema
de rede de cooperação não só para a detecção dos organismos e pessoas a
inquirir em cada país, como para a obtenção das respostas no tempo
oportuno. É este processo que convém explicitar, pois foi sobre ele que
repousou a administração do questionário.
A escolha das pessoas a inquirir em cada país contou com a cooperação de
um interlocutor nacional em cada um deles. Este mediador foi escolhido pelo
autor entre personalidades que representam cada país em instâncias
internacionais, a nível da União Europeia e da OCDE, e com quem o autor
mantinha relações pessoais. Este mediador, uma vez na posse dos
elementos fundamentais relativos à investigação, cooperou na identificação
dos organismos e das pessoas a inquirir e na elaboração de uma lista de
respondentes, que confrontou com o investigador. Depois, de modos
93
diversos, funcionou como o "pivot" nacional na distribuição e na recolha dos
questionários.
Identificado e elucidado o interlocutor nacional acerca dos objectivos e do
método da investigação, através de encontros pessoais que o autor teve
oportunidade de realizar com cada um, procedeu-se à recolha das opiniões.
Esta desenrolou-se de formas diversas, uma vez que os interlocutores-pivots
nacionais aceitaram intervir de modos diferenciados no processo. Assim,
houve dois tipos de procedimentos: (i) mediante uma carta em que era,
agora formalmente, descrito o âmbito e o processo, os tipos de organismos e
pessoas a inquirir e a quantidade de inquéritos a realizar em cada caso, os
interlocutores-pivots nacionais elaboraram uma listagem e enviaram-na para
o investigador. Este seleccionou o conjunto das entidades e pessoas a
inquirir, recorrendo por várias vezes a clarificações adicionais acerca da
natureza das entidades e das pessoas listadas. Seguidamente, os
questionários foram enviados pelo correio, de Portugal para cada um dos
potenciais respondentes, a quem era solicitada a sua devolução para o
remetente; (ii) mediante o mesmo processo o interlocutor nacional elaborava
a listagem, o investigador revia-a e confirmava-a e era, depois, o próprio
interlocutor nacional que distribuía os inquéritos no seu país, incentivando os
inquiridos a responder atempadamente e a devolvê-los ao remetente.
Como seria de esperar, sempre que ocorresse um menor protagonismo do
interlocutor nacional, o nível de respostas seria necessariamente mais fraco.
Foi o que veio a suceder nos casos da Dinamarca e da Suécia.
Considerou-se, no entanto, que o recurso a estes interlocutores nacionais
seria decisivo para a consecução dos propósitos da investigação. Tal
perspectiva veio a revelar-se acertada pois foi, de facto, a acção concreta de
cada um dos interlocutores que permitiu obter um nível razoável de
respostas e, sobretudo, uma qualidade de respondentes à altura dos
objectivos do estudo (a lista dos respondentes apresenta-se no Anexo, país
94
por país).
O questionário e as suas partes
Apresentam-se agora as principais opções metodológicas relativas à
construção do questionário, uma vez explicitado quem se inquiriu e como se
inquiriu.
Optou-se por elaborar um questionário "fechado", em que o leque de
respostas possíveis foi geralmente fixado previamente, havendo sempre
lugar, no entanto, para o respondente acrescentar outro aspecto ou critério
relevante e que não tivesse sido listado. A opção por este tipo de
questionário constitui também um modo de evitar uma grande dispersão
semântica, capaz de impedir uma leitura conjunta e global das respostas
dadas. Incluem-se também duas perguntas abertas, contempla-se a hipótese
do respondente assinalar outros aspectos, para além dos codificados, e
procura-se seguir um percurso em "árvore" (Ghiglione e Matalon, 1993), para
que cada respondente seja levado a atender apenas às perguntas que lhe
são pertinentes. Crê-se, deste modo, conseguir estabelecer um certo
"compromisso" entre o questionário totalmente fechado e o questionário
aberto, e assim melhor colher a opinião dos inquiridos. Pensamos que o
facto de se inquirir um conjunto de interlocutores bastante qualificado limita
também e bastante os riscos inerentes à aplicação de um questionário
"fechado", incluindo o da imposição da problemática. Por outras palavras,
ouve-se a opinião de interlocutores que, por regra, a têm e as questões
colocadas, para usar as palavras de Pierre Bourdieu, são questões que
habitualmente estes inquiridos já se colocam, por força do seu papel social.
São dirigentes de organizações ou peritos que produzem, regra geral, uma
reflexão sobre as medidas de política do campo escolar.
95
Para evitar o efeito da imposição do questionário e para recolher a maior
riqueza opinativa possível, procurou-se ainda dar outros passos de natureza
metódica: (a) combinar respostas de teor negativo e de teor positivo nas
listagens que se seguem às perguntas; (b) em boa parte das perguntas,
permite-se o preenchimento de todos os aspectos elencados na resposta,
pelo recurso a uma escala de valoração aposta em cada um dos aspectos
listados; (c) noutros casos sugere-se a escolha de duas ou três respostas,
de entre o leque elencado; (d) e, conforme se disse, inclui-se em cada
pergunta, por regra, uma hipótese aberta de resposta, através da inclusão do
termo "Outra razão. Qual?", o que permite ao inquirido interrogar-se sobre a
pertinência dos aspectos listados e avançar, sem problemas, para outro tipo
de resposta.
Deste modo presume-se que os respondentes foram o menos possível
induzidos a dar a boa resposta ou a resposta "políticamente correcta",
embora o risco de isso acontecer continue a existir e seja de assinalar.
O questionário que foi construído dividiu-se em três partes: uma breve
introdução, em que se explicitam os objectivos do trabalho, um conjunto de
variáveis de identificação do respondente e os indicadores de recolha de
opinião acerca do problema em estudo.
O questionário organiza-se em grandes categorias, a saber:
1.Introdução e apresentação do objecto
2.Determinantes sociais:
2.1. Identificação do respondente
2.2. Identificação do organismo - sua participação no processo de reforma
em análise
3.Indicadores de opinião:
3.1. Orientações que subjazem à medida de política
96
3.2. Desespecialização e integração curricular
3.3. Intervenção de organismos internacionais
3.4.Adesão e resistências à reforma em análise
4. Controlo semântico de termos
A aplicação do questionário iniciou-se em Abril de 1997 e decorreu até
Outubro do mesmo ano. Foi necessário, em todos os casos, salvo muito
raras excepções, enviar segundo pedido de resposta e, em bom número de
casos, foi necessário enviar faxes e realizar repetidos telefonemas. No termo
do processo, cremos que o objectivo foi alcançado e que a qualidade e a
quantidade das respostas é adequada. Os resultados do questionário são
apresentados pormenorizadamente e em separado, no capítulo sétimo.
Explicitados estes passos relativos à metódica, é mister apresentarmos a
espiral
da
pesquisa
empreendida.
Iniciamos
a
apresentação
pela
explicitação dos principais contributos teóricos mobilizados, quer no campo
da sociologia da educação quer da sociologia do trabalho quer ainda na
teoria do sistema mundial, tendo em vista inscrever o problema de partida
em quadros conceptuais relativamente estáveis e, desse modo, esclarecer e
orientar o percurso analítico. De seguida, num outro voltear ascendente da
espiral,
procedemos
à
inclusão
do
problema
na
"longa
duração",
empreendendo uma análise da história do ensino secundário na Europa
Ocidental, na segunda metade do Séc.XX.
Após estes grandes capítulos de enquadramento teórico (capítulo 3 e 4),
apresentamos as recentes reformas do ensino secundário, nos nove países
seleccionados e procedemos a uma primeira sistematização das principais
tendências e problemas do ensino secundário na Europa, nos anos 90
(capítulo 5). Logo de seguida (capítulo 6) abrimos uma primeira parte da
discussão do problema de partida quer à luz dos contributos teóricos
oportunamente eleitos quer à luz dos resultados do trabalho de análise
97
documental empreendido. Na posse desta armadura analítica realizou-se o
questionário, procedeu-se à sua administração e à recolha e análise dos
seus resultados. Disso se dá conta no capítulo 7.
As voltas da espiral prosseguem depois com uma reflexão final e com a
apresentação das principais conclusões. Apesar de se concluir aqui este
processo de investigação, sabemos que a espiral continua aberta, a voltear
noutras dimensões e direcções que outros, em outros tempos e lugares,
certamente também quiseram, querem e quererão apreender, em nome do
nosso bem-ser e bem-estar.
Finalmente, apresenta-se a bibliografia que foi sendo mobilizada ao longo da
pesquisa e ainda um Anexo com alguns "produtos" de suporte ao trabalho
que se desenvolveu.
99
Capítulo 3
A educação e a economia: desocultar a força de um
encadeado ideológico
Prosseguindo este voltear na espiral ascendente da análise do problema de
partida, é mister, no caminho, ancorá-la no património analítico da sociologia
da educação, num primeiro tempo, e da sociologia do trabalho, num segundo
tempo. De facto, a relação entre educação e economia e entre ensino e
mercado de emprego têm sido objecto de importantes esforços analíticos, ao
longo do século XX, o que permitirá situar esta investigação dentro de uma
quadro teórico relativamente estável.
Pretende-se, neste momento da pesquisa, mobilizar um conjunto de quadros
conceptuais que analisam esta relação entre a educação e a economia, a
formação e o emprego, tendo em vista iluminar o problema de partida e o
conjunto das hipóteses de trabalho. A disparidade de perspectivas coligidas
transporta complexidade e espessura analítica, condições imprescindíveis à
compreensão dos fenómenos sociais.
Num terceiro tempo deste capítulo procedemos ainda a uma busca e a uma
selecção de referenciais teóricos para explicar a hipótese que enunciamos
para a similitude e a simultaneidade das várias reformas empreendidas nos
vários países europeus.
Para já, num primeiro momento, faz-se uma revisão das teorias da
correspondência, tanto funcionalistas como críticas, das teorias da nãocorrespondência e das teorias de inspiração Weberiana, com destaque para
as teorias sobre o credencialismo. É este primeiro passo que agora se
apresenta.
100
3.1. A sociologia da educação e a correspondência entre educaçãoeconomia
Os conceitos de correspondência e de não-correspondência subjazem, como
grandes quadros de análise, às relações entre a educação e a economia. As
teorias da correspodência, desde o funcionalismo até às teorias da
reprodução, inscrevem-se numa perspectiva de funcionalidade mais ou
menos linear e de uma sequencialidade mais ou menos mecânica entre a
educação e a economia e o emprego. Estas teorias, filhas da sua época,
constituiram também uma importante base de sustentação dos chamados
processos de modernização, como um corpo ideológico coeso construído
sobre a evidência presumida dos benefícios económicos da educação
escolar. A evidência dos não-benefícios ou dos prejuízos económicos da
educação também nunca se manifestou, circunstância a que não será alheia
a longevidade da ideologia funcionalista. Esta corrente ideológica impregnou
tão decisivamente a segunda metade do séc. XX, propagando-se em cadeias
infindáveis de opinião, que qualquer problematização desta evidência
imediatamente se coloca num movimento suspeito de contra-corrente.
Vejamos como se desenhou este encadeado de ideias e como elas são
postas em causa.
O funcionalismo e a teoria do capital humano
Durkheim foi o mais importante percursor do moderno funcionalismo, para
usar uma expressão oportuna de Cândido Gomes (1985). O sociólogo
francês procura inserir o processo educativo no contexto da sociedade,
identificando vários contextos históricos em que a educação se estrutura de
modo a assegurar a sobrevivência da sociedade. O autor destaca as
funções-chave que a educação assegura em ordem à integração social, as
101
funções homogeneizadora e diferenciadora da educação; no primeiro caso, a
educação visa a integração do indivíduo no contexto social, transmitindo
valores e desenvolvendo atitudes comuns; no segundo caso, a educação
diferencia, em correspondência com a divisão social do trabalho.
A função básica da educação, entendida por Durkheim como a acção
exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram
ainda preparadas para a vida social, tendo como objecto susucitar e
desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e
morais, é a de transmitir os valores morais de uma dada sociedade. A função
social da educação é, assim, a integração moral. Ora, no pós-Guerra, esta
abordagem funcionalista e integradora em termos sociais, servia um contexto
sociohistórico de crescimento demográfico e económico e de crescente
competição internacional. Através da educação formal, um poderoso meio de
integração na sociedade, tanto do ponto de vista moral como ocupacional, as
pessoas podem adquirir conhecimentos e comprometer-se numa dada ordem
de valores sociais, competindo-lhe assegurar também a selecção dos
talentos para a ocupação dos diversos papéis sociais.
Os funcionalistas dos anos cinquenta e sessenta fizeram ressaltar, longe
ainda da análise do papel do poder e do conflito no funcionamento da
sociedade, a contribuição do sistema educativo para a manutenção da
ordem social. Nesta ordem a educação é um garante fundamental da coesão
social seja porque transmite códigos culturais e de conduta inscritos numa
cultura comum, um consenso em torno dos valores e das crenças, seja
porque selecciona e qualifica os recursos humanos adequadamente para o
mercado laboral, assegurando a provisão adequada dos postos de trabalho
que são requeridos por uma economia em expansão. Bastará para tal que a
escola seleccione os mais esforçados e os mais capazes para ocuparem os
melhores lugares na diferenciada estrutura ocupacional.
102
O lastro da ideologia que se expandiu acerca da forte relação positiva e
linear entre educação e economia encontra-se, em grande parte, inscrito no
optimismo reinante no período de crescimento económico do pós-Guerra.
Políticos e empresários, apoiados por académicos que mobilizavam os
conceitos de sociedade tecnológica e de recursos humanos qualificados,
procuraram suscitar novos e elevados investimentos em educação, a par da
crença nos seus elevados proveitos em termos pessoais, sociais e
económicos. Um momento emblemático na geração deste optimismo, em
plena "guerra-fria", em que se produziu um choque emocional que
galvanizou renovadas energias e vontades foi, para vários autores, o
lançamento do satélite Sputnik , pela União Soviética, em 1957 ( p.ex. Berg,
1970). A partir dos EUA, gerou-se uma corrente, polarizada na relação de
conflito EUA-URSS, no quadro da Guerra-Fria, que desencadeou um novo
ímpeto na competição científico-tecnológica e económica internacional e
tornou prioritários enormes investimentos em educação escolar.
Numa época de crescimento económico e de realização de importantes
investimentos em tecnologias aplicadas à produção, no dizer de B. Clark,
eram necessários exércitos atrás de exércitos de técnicos qualificados e de
peritos profissionais e, à tarefa de os preparar convenientemente, estava o
sistema educativo crescentemente dedicado (citado em Karabel e Halsey,
1978:9). O funcionalismo tecnológico respirava o espírito da época e
sustentou, em boa parte, o crescimento da educação escolar nos anos que
se seguiram ao termo da II Guerra Mundial.
Outros autores se podem juntar a Clark, na formulação e defesa da teoria
técnico-funcionalista, tais como Parsons, Turner, e Trow. Como se pode
verificar pelas suas principais características, esta teoria aproxima-se, hoje,
de uma ideologia do senso comum: (a) as constantes mudanças técnicas no
sistema produtivo requerem uma crescente incorporação de novas
tecnologias e de processos mais sofisticados de produção de bens e de
103
serviços; (b) a mão-de-obra que se requer para o mesmo sistema tem de ser
necessariamente cada vez mais qualificada; (c) o sistema educativo formal e
processos formativos específicos asseguram a qualificação da mão-de-obra,
o que obriga o sistema escolar a seguir o ritmo e o modo da evolução
tecnológica.
A teoria tecnico-funcionalista, como derivação da teoria funcional mais geral,
parte do princípio de que os requisitos de competências dos empregos, nas
sociedades industriais, estão em constante crescimento, devido às
transformações e inovações técnicas, para advogar que cabe à educação
escolar proporcionar as qualificações requeridas, seja no domínio das
competências gerais seja no âmbito das competências específicas. Uma vez
que os requisitos de qualificação estão em constante aumento, cada vez
mais, mais largas camadas da população, são chamadas a permanecer mais
longos períodos na educação escolar.
Esta teoria assenta, assim, em grande parte, na evidência da contribuição
directa das qualificações escolares para a ocupação imediata de um posto
de trabalho e para a produtividade do mesmo trabalho, o que equivale a
dizer que pressupõe um elevado grau de correspondência entre a educação
e a economia, entre, por um lado, a actuação dos empregadores e a
evolução das empresas e, por outro, a actuação dos sistemas escolares, a
produção de qualificações e a emissão de diplomas.
Os economistas corroboraram este processo proclamando que as despesas
em educação eram um bom investimento para o crescimento económico, o
que se erigiu em bom argumento para fazer crescer a oferta e a procura de
educação, aumentando desse modo a reserva permanente de recursos
humanos
qualificados
a
serem
aparentemente insaciáveis da economia.
absorvidos
pelas
necessidades
104
De
facto,
se
a
sociologia forneceu um "rationale" de referência,
suficientemente convincente para sustentar a expansão e diferenciação
escolares, que se tornaria dominante ao longo do século XX, ela não foi
capaz, sem o contributo da economia, de responder à questão de saber até
que ponto se tratava de um investimento lucrativo. E esta era a questão que
povoava as cabeças dos políticos de quase todo o mundo, no pós-Guerra.
Os economistas ergueram uma resposta e ela constituiu o núcleo central dos
debates sobre o impacto social da educação, até aos nossos dias: a teoria
do capital humano.
Entre os vários economistas que surgiram a sustentar esta tese, destacamos
Theodore W. Schultz e o seu "Investment in Human Capital", de 1961. Neste
texto Schultz chega a demonstrar a sua proposta teórica com uma cena
romanceada de Faulkner, em que um agricultor solitário, na sua quinta e no
início de uma manhã, diz para si mesmo: "o homem sem capacidade e sem
conhecimento encosta-se pavorosamente no nada" (Schultz, 1978:324). Este
autor advoga um especial investimento, mesmo para os países em
desenvolvimento, no aumento da qualidade do capital humano e das
competências profissionais que lhe são requeridas para este se apropriar e
usar eficientemente as superiores técnicas de produção. A riqueza
económica de um país assentaria, mais do que no seu lugar e função na
economia internacional, nas qualificações dos seus recursos humanos. Para
este economista, o investimento em capital humano não só aumentava a
produtividade individual como, fazendo-o, lançava as bases técnicas de um
tipo de força de trabalho necessária ao rápido desenvolvimento económico.
O "reservatório em capital humano" de uma sociedade, as competências e
os saber-fazer dos seus membros, é concebido como a resultante de
decisões racionais de investimento, realizadas pelos indivíduos e pelas
empresas, e visam maximizar o retorno desse investimento. O Estado, ao
financiar a educação formal inicial dos indivíduos, participa no investimento
105
individual, que tem retorno em benefícios tanto pessoais como sociais.
Assim, os economistas vieram sublinhar a função técnica da educação ao
assinalar que a educação aumenta a produtividade e produz os
conhecimentos técnicos exigidos pelas mutações técnicas contínuas e pelo
crescimento económico, conhecimentos estes que são formas produtivas de
investimento dos indivíduos em si mesmos, em que qualquer país tem de
investir para se desenvolver. Deste modo, o técnico-funcionalismo e a teoria
do capital humano integram a ideologia que mais marcou até hoje a relação
entre a educação e a economia, a ideologia da modernização. A educação é
chamada a desempenhar o papel central de preparação técnica e
motivacional dos indivíduos para o exercício adequado de papéis sociais,
que vão evoluindo de sociedades tradicionais para sociedades modernas,
assimilando atitudes e valores modernos, nomeadamente a "lógica da
industrialização", que se vai impondo com características comuns em todo o
mundo. À educação, no processo de modernização, caberá não só
desenvolver as competências e as habilidades necessárias ao exercício de
papéis sociais diferenciados, como, por esse meio, estabelecer a base dos
diferentes “status” de uma dada sociedade, ou seja, a educação
desempenha um papel central na construção de sociedades meritocráticas,
democráticas e baseadas nas competências técnicas.
Já nos anos 90, T.W. Schultz reafirma a sua tese de que é o capital humano
que aumenta a produtividade do capital físico e da força laboral e que o
incremento dos rendimentos das economias modernas se deve à
proliferação do capital humano, sob uma matriz predominante de
especialização (Schultz, 1992).
Deste enunciado teórico derivaria a "manpower approach", que consiste na
adopção de uma planificação da educação estatal, assente no pressuposto
geral de que a formação é uma condição maior do crescimento económico e
106
visa responder às necessidades da economia (Vincens, 1977). O que
implica, por um lado, que os fluxos de oferta de diplomados devem ser
regulados pela procura previsional do sistema produtivo e, por outro lado,
que os jovens qualificados podem esperar, à entrada no mercado de
trabalho, empregos correspondentes ao nível de escolaridade e à
especialidade da sua formação. E, é bom de ver, só um planeamento
rigoroso e previsional pode suportar a obtenção destes resultados.
O planeamento educativo segundo o modelo da "manpower approach"
expandiu-se até aos anos setenta, sem grande contestação geral, durante
uma época de acentuado e contínuo crescimento da economia capitalista e
de forte incremento da procura do sistema educativo, época em que eram
escassos e saltavam pouco à vista os desfasamentos entre a oferta
crescente de diplomados e a procura do mercado. Os investimentos em
educação e formação inicial eram sustentados no princípio formal -mas,
como diz Verdier(1995), bem ancorados nas representações sociais -da
correspondência termo a termo entre níveis hierárquicos de emprego e
níveis de formação que era suposto responderem a estas necessidades.
A teoria do capital humano tornou viável a aplicação do modelo económico
neoclássico ao desenvolvimento da educação e dos recursos humanos, pela
consideração da formação do capital humano como um investimento
produtivo. Este "rationale", além de ter sustentado enormes investimentos
educativos estatais, favoreceu a medida do seu rendimento, dominando o
pensamento acerca do papel da educação e da economia, nos últimos trinta
anos,
(Arnove,
neoclássico
1980;
dominante
Verdier,1995).
apresentou-se
Neste
período,
dividido
entre
o
pensamento
uma
corrente
conservadora e uma corrente liberal, tendo esta ganho mais terreno como
sustentáculo de políticas de educação e de formação, até ao fim dos anos
setenta. O debate produziu-se em torno da extensão da intervenção do
Estado no fomento e desenvolvimento da oferta de educação, tendo os
liberais defendido uma intervenção activa nos vários segmentos do sistema
107
de ensino, reconhecendo aos governos um papel activo na distribuição
equitativa das oportunidades educativas e económicas.
Posteriormente, acentuou-se uma visão neoconservadora (Arnove, 1980;
Hobsbawm, 1996) que ganhou o terreno político com a defesa da
perspectiva de que, na regulação da articulação entre educação e economia
e numa ordem social fundada no mérito, os falhanços do mercado, quando
ocorrem, são sempre menos graves do que os fracassos da acção dos
governos,
o
que
equivaleu
a
defender
a
deslocação
de
mais
responsabilidades na promoção da educação e da formação para o sector
privado da economia e a concomitante desintervenção do Estado.
Em meados da década de oitenta, emergiria uma versão revista da teoria do
capital humano. Ela afirma que deve melhorar-se prioritariamente o nível da
educação geral, bem como o ensino superior especializado, sem que isso
conduza necessariamente ao aumento da despesa pública, pois ao sector
privado e às empresas caberá a assunção de um papel cada vez mais
importante
na
oferta
de
formação
aos
níveis
superiores
e
mais
especializados. Para esta visão teórica neo-clássica muito contribuiram as
perspectivas definidas pelo Banco Mundial e pela OCDE (como se explicita
no capítulo quinto).
Uma evidência sempre interrogada
Apesar da longevidade do seu impacto social e político, a teoria do capital
humano e o tecnico-funcionalismo cedo ficaram sob intenso fogo crítico. A
formação do capital humano foi longa e excessivamente considerada como a
variável independente por excelência do desenvolvimento, o que conduziu a
uma inequívoca desvalorização dos contextos e das estruturas sociais. A
perspectiva macroeconómica e tecnocrática da natureza funcional da
108
educação face ao desenvolvimento económico e social obnubilou quer as
capacidades das populações locais para ler a estrutura das oportunidades
de emprego quer os efeitos do processo educativo na relação entre a
educação e a economia, aquilo a que Karabel e Halsey chamam os "efeitos
da caixa negra da educação" (Karabel e Halsey, 1978), para além de se ter
encerrado o investimento social educativo numa racionalidade económica
muito restritiva.
A complexidade socioeconómica envolvente e intrínseca à relação
educação-economia foi liofilizada pela externalização de importantes
dimensões como o funcionamento dos mercados de trabalho locais, as
estratégias de recrutamento dos empregadores, as suas atitudes e
comportamentos face à gestão da mão-de-obra, e ainda a dimensão política
e o papel das ideologias, os elementos mobilizadores e os efeitos da procura
social de educação e a própria dimensão cultural do desenvolvimento. O
funcionalismo, em termos gerais, acabou por legitimar, em torno de um
quadro escolar meritocrático, o papel exercido pelo sistema escolar de
manutenção dos equilíbrios sociais estabelecidos, legitimando finalmente a
segmentação e a estratificação do mercado de trabalho.
Mas, por outro lado, os desajustamentos foram-se evidenciando. Tanto as
focagens de tipo ocupacional como as que relevavam a relação custobenefício, foram questionadas como sendo "jogos de números", que não
tinham em consideração as questões qualitativas, as deficiências e os
desajustamentos, tendo acabado por provocar pouco mais do que a
expansão linear dos sistemas escolares, sem provar nada em concreto sobre
a sua pertinência (Coombs, 1985). Cedo se começaram a sublinhar os
enormes desfasamentos entre as necessidades dos mercados, sempre
locais e sempre diversos, e a qualidade e as proporções das qualificações
produzidas
(Foster,1965;
Coombs,1968;
Berg,1970;
Campinos-
109
Dubernet,1995). De facto, as escolhas dos indivíduos formulam-se no seio
de um complexo de influências mais vasto do que aquele que a teoria do
capital humano acolhe: é a diversidade de mercados de trabalho locais; é o
diferente acesso aos diplomas e o diferente uso deles nos mercados de
trabalho, segundo a diferente origem social dos indivíduos; é o facto de os
custos e proveitos medidos objectivamente não serem subjectivamente os
mesmos para os membros de diferentes grupos sociais; é o facto de os
rendimentos dependerem da profissão e do sector de actividade e não
apenas das habilitações escolares; é o próprio facto do acesso a
determinado nível de habilitações, dentro do sistema escolar, estar longe de
ser determinado por critérios adstritos às necessidades dos mercados de
trabalho; é ainda a dificuldade de medir os efeitos da educação sobre uma
dada ocupação e sobre as atitudes dos trabalhadores; é, finalmente, o facto
de o funcionamento real da economia capitalista ser sobredeterminado
principalmente por elementos internos, como as técnicas, os produtos, os
mercados, muito antes e muito longe de quaisquer elementos relacionados
com a educação e a formação.
Entretanto, a evidência presumida do impacto positivo e mecânico da
educação sobre a economia cresceu e a primeira tornou-se quase um "anexo
conceptual" da segunda, na expressão de Easton e Klees (1992). No
entanto, a sua prova foi-se acantonando e reduzindo, ao ponto de, nos anos
80 e 90, se ter passado da euforia ao cepticismo e, em alguns casos, ao
cinismo (Coombs,1985:238 ). Da falta de recursos humanos qualificados
passou-se para um cenário de "exércitos" de excedentes e de penúria de
empregos. O planeamento da mão-de-obra que defluiu da teoria do capital
humano provou ser demasiado inflexível, num contexto socioeconómico que
acelerou o ritmo das suas mutações e em que as previsões a longo prazo
sobre necessidades ocupacionais já não podem ser feitas, pela simples
razão de que deixaram de ter sentido. As próprias taxas de retorno, como
instrumento de medida do investimento educativo, afundaram-se na
110
diferença entre as apreciações sociais e do mercado ( Finegold e Soskice,
1988).
Finalmente, o técnico-funcionalismo e as teorias do capital humano são
reconhecedoras de um importante papel social dos investimentos em
educação e formação porque e na medida em que estas contribuem
externamente
com
unidades
produtivas,
os
indivíduos,
para
o
desenvolvimento dos mercados e da economia. Assim, esta racionalidade
económica que valoriza a educação e a formação dos seres humanos
sobretudo pelas suas externalidades (Wilson e Woock,1995), tornando-as
prisioneiras e servas obedientes daquela racionalidade, também desvaloriza
quer o papel da educação e da formação no desenvolvimento humano quer a
capacidade dos seres humanos autodeterminarem o sentido da sua vida e os
seus destinos.
Com Easton e Klees (1992), consideramos que as críticas mais comummente
apresentadas face ao modelo proposto pela teoria do capital humano provêm
da análise sociológica. Em síntese, destacam-se as seguintes: (a) os
salários são, de per si, uma medida muito limitada não só dos reais
benefícios sociais da educação como de compreensão das trajectórias
profissionais nos diferentes níveis ocupacionais; (b) a conjugação do
binómio eficiência-equidade foi sempre mal equacionada, seja porque ela se
fez quase sempre em termos laboratoriais seja porque nela se ignoram, em
grande parte, os reais efeitos das estruturas institucionais através das quais
se opera também a desigualdade social; (c) adopta-se uma perspectiva
positivista na análise económica, de que os modelos econométricos da
análise da relação custo-eficácia e custo-benefício são um importante
exemplo; (d) este modelo tem sérias dificuldades em explicar os presistentes
fenómenos de discriminação social em torno do sexo, da raça e do grupo
socioeconómico de pertença; (e) a teoria pressupõe, mais em particular, uma
relação linear, directa e ingénua entre educação e rendimento, em que
111
trabalhadores
educados
e
formados
ocuparão
mais
ou
menos
automaticamente empregos que combinarão com a sua formação inicial e
com a sua potencial produtividade, o que comporta o menosprezo pelas
condicionantes da procura, tanto no que respeita ao funcionamento dos
mercados de trabalho, como ainda, embora mais indirectamente, no que se
refere à formulação das estratégias pessoais e familiares face ao trabalho e
ao emprego.
A fragilidade da teoria do capital humano é evidente: ao adoptar uma análise
muito individual, menosprezando os condicionamentos sistémicos, análise
essa em que se valorizam as taxas de retorno privado dos investimentos em
educação e se desvalorizam os seus vastos benefícios sociais, a teoria do
capital humano obstaculiza uma abordagem do investimento educativo em
termos do fomento do desenvolvimento de competências pessoais e sociais
(ligadas também à família, à fruição cultural, à participação cívica e à
realização pessoal de cada ser humano) e dificilmente dá conta de efeitos
"perversos" do investimento em educação e formação, tais como a
sobrequalificação ou a baixa de salários e rendimentos por força do excesso
de oferta de diplomados de um dado nível.
A reprodução das relações sociais de produção
Diante deste "rationale", uma autêntica ortodoxia reinante, surgiram
importantes perspectivas críticas, resultantes de um esforço contínuo de
interrogação sobre o social. Este labor traduziu-se na emergência de
correntes teóricas bastante críticas, simultâneas ao próprio apogeu das
teorias do capital humano. A elas nos referiremos de seguida.
Em primeiro lugar, podem referenciar-se as teorias marxistas da reprodução,
que surgem a partir de uma série de análises sociológicas, efectuadas no
112
início dos anos setenta, que vêm colocar o acento tónico nas relações entre
as desigualdades de oportunidades no acesso ao ensino e as desigualdades
sociais.
Na linha geral do modelo funcionalista, estas teorias insistem na
funcionalidade do sistema educativo na sua relação com o sistema produtivo,
não lhe assegurando, todavia, o mesmo papel no fomento das oportunidades
sociais. De facto, elas acentuam, não já num quadro essencialmente técnico
mas sobretudo político, o papel do sistema escolar como reprodutor das
desigualdades sociais, uma vez que lhe cabe sobretudo criar as condições
sociais para que a cada um sejam dados os conhecimentos e as
competências, leia-se os diplomas, que correspondem à sua origem social e
configurem, desse modo, o seu futuro lugar na hierarquia social,
nomeadamente na hierarquia dos empregos. O sistema escolar socializa
diferentemente as crianças e os jovens, subordinando-se ao ordenamento
que emana da divisão do trabalho na economia capitalista.
Randall Collins, por exemplo, nos seus trabalhos de 1971 e de 1974, vem
propor uma nova leitura para a expansão do sistema educativo americano.
Esta derivou não de uma resposta às necessidades do desenvolvimento
técnico da economia, mas sobretudo dos efeitos de competição pelo poder,
pelo prestígio e pelo acesso aos benefícios sociais, entre grupos com
estatutos específicos. São os interesses em conflito e não as necessidades
sistémicas que vão construindo o sistema escolar, ou seja, a escolarização
crescente é mais o efeito do desenvolvimento das estratégias dos grupos
sociais, uns para manter e outros para mudar e melhorar a sua posição
social, de uma dinâmica social, portanto, mais do que uma resposta
organizada e racional da sociedade ao desenvolvimento das tecnologias
aplicadas à produção e do sistema produtivo, em geral. O autor constata,
aliás, a ineficiência da escolarização como meio de formação de
trabalhadores qualificados (1978:123).
113
No dizer de Karabel e Halsey (1978), esta "espiral de dinamismo social" na
procura de educação escolar corresponde a requisitos do mercado de
trabalho, não tanto porque este os enuncia prévia e rigorosamente, mas
sobretudo na medida em que as organizações laborais usam os diplomas e
os estatutos educacionais como modo de distribuir e hierarquizar as pessoas
nos empregos disponíveis, com diferentes estatutos e rendimentos. Os
grupos sociais dominantes distribuem as posições privilegiadas entre si e os
grupos sociais mais desfavorecidos encontram no mesmo sistema escolar
um importante instrumento de mobilidade, pelo acesso directo a posições de
prestígio ou a novas posições sociais. Enquanto o funcionalismo tradicional
baseava a procura social de educação e a própria concepção da instituição
educativa nas mutações técnicas e nos seus requisitos de mais elevadas
qualificações, as teorias do conflito, numa abordagem neofuncionalista,
baseiam essa procura por parte dos indivíduos no estímulo que eles
encontram na elevação ou manutenção de um dado estatuto social,
constituindo a educação escolar um investimento rentável e um precioso
instrumento de mobilidade social.
Seria, no entanto, o funcionalismo "radical", de inspiração neo-marxista, que
romperia mais decididamente com as perspectivas tradicionais. As teorias da
reprodução desenvolveram-se num contexto político-social que valorizava os
esforços societais em ordem à democratização social e à inerente redução
das desigualdades, e espelham, ao mesmo tempo, um certo pessimismo
perante as possibilidades de reconstrução social constantes nos programas
políticos liberais dos anos sessenta e setenta.
Os trabalhos de Bowles e Gintis, Bourdieu e Passeron e de Baudelot e
Establet vieram sublinhar que o sistema escolar visa ensinar a conformidade
com o "status quo" social, servindo claramente os interesses das elites
dominantes, pelo exercício de um controlo social e pelo reforço das
114
desigualdades existentes. O sistema escolar serve os interesses da ordem
capitalista da sociedade moderna, não escapando, por isso, a promover as
desigualdades de classe e a reproduzir os valores, os comportamentos e as
características de personalidade necessárias a uma sociedade repressiva.
Deste modo, o sistema educativo é uma agência de formação de estruturas
mentais que são decisivas para a manutenção das desiguais relações de
poder existentes na sociedade.
Os trabalhos dos pesquisadores franceses Bourdieu e Passeron sublinharam
a importância da educação formal na reprodução da estrutura social
dominante e de um dado sistema de poder. O sistema escolar transmite a
"cultura legítima", cultura esta que é interiorizada pelos eleitos como um
"habitus", os princípios culturais que conformam as suas percepções,
representações e práticas, e que conduz os dominados a interiorizar a
legitimidade da cultura dominante e a iligitimidade da sua própria cultura.
Através da escola exerce-se um importante domínio simbólico que perpetua
o poder estabelecido e o seu domínio económico e político. Assim, no
mercado de emprego, o valor dos diplomas é muito mais função do capital
social e económico de quem os possui, do que do seu valor facial.
Os grupos dominantes controlam os significados culturais mais valorizados
socialmente, mormente os que o sistema escolar elege e seleccionam as
possibilidades de mobilidade social com base num capital simbólico, o
capital cultural. O importante conceito de capital cultural, referente às
competências cultutrais e linguísticas socialmente herdadas, permitiu aos
autores analisar a sua desigual distribuição entre os grupos sociais e
facilitou a constatação de que o currículo escolar, ao valorizar um certo tipo
de capital cultural, reproduz um certo tipo de desigualdades sociais. O
capital cultural é um bem económico e por isso os grupos sociais conflituam
entre si, adoptando diferentes estratégias de mobilidade social com base no
sistema escolar, susceptíveis de reproduzirem ou de elevarem um certo
115
“status” social. A sua análise valoriza a evolução da procura social de
educação por parte dos diferentes grupos sociais como a valorização de
estratégias seja de acesso a novos privilégios seja de acumulação de capital
cultural e de manutenção de “status” já herdados.
Os economistas e pesquisadores norteamericanos Samuel Bowles e Herbert
Gintis, dentro da mesma orientação neomarxista, sublinharam por sua vez a
correspondência entre as relações sociais de produção e as de educação,
uma vez que cabe à educação reproduzir as desigualdes económicas e
subordinar a sua empresa educativa à produção da força de trabalho, tal
como a economia capitalista a requer. Ao habituar os alunos às relações
escolares, o sistema escolar habitua a um certo tipo de relações de trabalho.
O sistema escolar, na sua óptica, produz uma mão-de-obra passiva,
adequada à divisão do trabalho nas empresas, distribuindo os alunos
segundo as suas origens sociais e os lugares que irão ocupar de futuro no
sistema de produção.
À medida que a estrutura de produção evolui, assim também ocorrem
mudanças no plano educativo. Bowles e Gintis, em 1977, analisam, por
exemplo, o apoio que os empresários e importantes capitalistas deram, no
fim do séc XIX, ao "movimento da educação profissional", num momento em
que a educação de massas chegava às escolas secundárias, levando desse
modo um grande número de crianças filhas de trabalhadores e de imigrantes
para a escolaridade obrigatória, nos EUA. A formação profissional é
agarrada pelos empresários como um meio para formar os técnicos, gestores
e capatazes necessários para controlar os operários e quebrar o seu poder,
dentro da "gestão científica" protagonizada por F.W.Taylor, em que a maioria
das tarefas tinha de ser reduzida à execução de directivas simples e
explícitas (Bowles e Gintis, 1982).
A educação escolar, nesta óptica, não é socialmente válida pelos
conhecimentos que proporciona e pela selecção de talentos que possa
116
promover, mas pela submissão à ordem estabelecida que ensina e pelo
convencimento que exerce sobre as pessoas de que tal selecção é
meritocrática, legitimando o processo de selecção que se baseia, isso sim,
na origem de classe. As escolas introduzem, deste modo, uma racionalidade
para o facto das crianças privilegiadas à partida tenderem a ocupar as
posições mais prestigiadas na divisão social do trabalho.
Na alocação dos indivíduos às desiguais posições sociais existentes na
hierarquia das relações sociais de produção, tomando "a educação como um
mecanismo de colocação ocupacional" ( Collins,1978:127), o sistema escolar
intervém não tanto pelos elementos cognitivos, mas sobretudo pelos factores
não cognitivos associados a perfis de "personalidade" necessários no
exercício de funções desiguais nessas mesmas relações de produção da
economia capitalista (Karabel e Halsey, 1978). Assim, ao analisar o sistema
escolar, onde os tecnico-funcionalistas viam a geração de oportunidades de
mobilidade e um equilíbrio entre educação escolar e economia, as teorias do
conflito vêem a perpetuação organizada de um sistema de desigualdades
sociais, deslocando, embora não anulando, a funcionalidade do sistema
escolar, mas agora em subordinação ao processo capitalista de acumulação.
Por sua vez, as teorias da "reprodução cultural", de Bourdieu e Passeron,
embora não contrariem a perspectiva de que o sistema escolar ( "aparelho
escolar") participa na reprodução das relações sociais, sublinham que ele
actua numa esfera cultural própria, considerada independente da esfera
produtiva. Por vezes, este desfasamento é tão acentuado que o sistema
escolar evolui em direcções autónomas que não vão de encontro à evolução
das exigências do sistema produtivo. Esta prespectiva começa a aproximarse das teorias da não-correspondência entre o sistema escolar e o sistema
económico.
Além destes autores podemos referenciar ainda Michael Young e a "nova
117
sociologia da educação", para quem o conhecimento aprovado e adoptado
pelo sistema escolar e incluído no currículo formal resulta de uma selecção
que, mais do que qualquer outro modelo mais ou menos quantitativo, explica
as correspondências entre a educação e a estratificação social. Os
conteúdos curriculares são seleccionados e distribuídos a diferentes grupos
sociais em diferentes propostas curriculares, estratificadas segundo uma
hierarquia de prestígio. Há, por isso, áreas do conhecimento escolar com
elevado “status”, que estão associadas a maiores recompensas e que estão
reservadas para os alunos "mais capazes". Young associa o conhecimento
de elevado “status” com o facto de não se relacionar com a vida diária e com
a experiência quotidiana, uma vez que apela para elevados níveis teóricos e
de abstracção.
Neste quadro teórico, a educação profissional, em que o conhecimento
prático tem um particular destaque face ao conhecimento escolar abstracto,
é um ramo reservado aos alunos "mais fracos", o que lhe confere, dentro de
uma hierarquia de prestígio entre os cursos e os percursos escolares, um
lugar pouco desejado, dadas as fracas recompensas sociais que lhe são
associadas (Gomes, 1985). E, neste mesmo quadro, relembra Pierre
Bourdieu, a ideologia das competências tão em voga nos anos noventa, ao
assentar no dado de que e ao fazer crer que são os mais competentes que
obtêm emprego, legitima que os que não têm trabalho são incompetentes,
reforça a autoridade da educação escolar enquanto produtora social de
competências e funda a ordem e as actuais disparidades sociais entre os
que têm e os que não têm emprego “ na crença na hierarquia das
competências escolarmente garantidas” (1998 : 114).
As credenciais e a sua função de informação
Ainda no interior das teorias da correspondência, embora já inscritas na
118
fronteira do funcionalismo, situam-se as perspectivas credencialistas. Estes
contributos teóricos, na esteira da análise empreendida por Max Weber,
valorizam a existência de um mercado de credenciais oriundas da educação
escolar, cujo valor varia em função das colocações no mercado de trabalho,
mercado este que se serve essencialmente das mesmas para seleccionar os
candidatos aos postos de trabalho.
As escolas são analisadas como lugares onde se podem obter certificados
que são tomados como passaportes para aspirar à ocupação de lugares no
mercado de emprego. A função educativa da escola é deste modo superada
pela exigência de que esta examine, diferencie, certifique e, em termos
práticos, estratifique os efectivos humanos de cada geração e outorgue aos
seleccionados nos vários patamares escolares os diplomas correspondentes.
Por outro lado, como o certificado que se obtém determina muito
provavelmente a posição social que se ocupará ao acabar os estudos, a
"febre dos diplomas" impulsiona uma escalada competitiva em direcção aos
títulos superiores, os mais prestigiados. Este processo, além de acompanhar
uma massificação escolar crescente, provoca uma também crescente e
contínua desvalorização dos certificados de nível inferior.
O credencialismo de Randall Collins, por exemplo, baseia-se na perspectiva
de que os títulos escolares são tomados pelo mercado de colocações
principalmente como sinais e não propriamente pelo seu conteúdo em
conhecimentos e competências. Os empresários, preocupados em melhorar
a produtividade do trabalho e na incerteza sobre o perfil de competências de
quem o procura, utilizam o referencial das credenciais escolares como um
sinal da potencial produtividade dos indivíduos. A educação escolar
desempenha, assim, um papel de delicada e minuciosa estratificação de
títulos, que se revela socialmente relevante, uma vez que eles se
transformam em referente dominante em ordem à distribuição ocupacional
119
das pessoas e à regulação social.
Além disso, as credenciais escolares são usadas genericamente, nas
sociedades desenvolvidas, como instrumentos de luta pela elevação ou
manutenção do “status” dos grupos sociais. A educação formal é procurada,
independentemente da sua eventual função de qualificação, para defender
ou alcançar vantagens materiais e simbólicas no (e apesar do) mercado de
trabalho, como sublinha Mariano F.Enguita (1986). Os títulos são, assim,
procurados pelos indivíduos, dentro de estratégias credencialistas, como
franquias para assegurar mobilidade na hierarquia dos empregos futuros.
Num tempo de escassez de lugares no mercado de emprego e de
precarização
de
vínculos
contratuais,
fenómenos
que
afectam
particularmente os cidadãos que saem do sistema escolar com diplomas
elementares ou mesmo sem diploma da escolaridade obrigatória, é bem
provável, segundo o credencialismo, que aumente a competitividade entre os
indivíduos, tendo em vista alcançar vantagens, traduzidas em títulos
escolares, “ab initio” das suas trajectórias profissionais.
Dale e Pires (1984) referem que a composição do "pacote" de requisitos
necessários para se obter um emprego é determinado não apenas pela
oferta de atributos mas também pela procura de atributos que os
empregadores insistem em reclamar para os vários mercados de trabalho
existentes. Além de se estabelecerem diferentes relações entre os diplomas
escolares e o mercado de trabalho, em cada nível a que se processam as
admissões, os autores sublinham que os empregadores, no processo de
selecção, dão preferência a critérios não académicos. E argumentam que as
componentes não-educacionais do "pacote" de requisitos para o acesso aos
empregos são, em muitos casos, tão importantes como as qualificações
educacionais e que, deste modo, os diplomas ou credenciais escolares
120
podem ser dominantes ou irrelevantes na obtenção de um emprego, sendo
esta relação pouco mecânica, contrariamente ao que acentuam as teorias da
correspondência, mas antes é moldada por uma grande variedade de
situações sociais, como a variedade de capital social, as redes de relações e
os diferentes atributos pessoais. As credenciais escolares desempenham um
importante papel, como os autores destacam, mais centrado quer na
expansão da escolarização quer no reforço do controlo do Estado sobre o
ensino.
Secante com esta perspectiva é a perspectiva do “filtro” que sublinha a
atitude individual e racional dos futuros candidatos ao primeiro emprego que,
independentemente da procura e da situação do mercado de emprego,
competem entre si para se munirem com o máximo de títulos escolares e
com títulos escolares máximos, tendo em vista vir a ocupar um lugar mais à
frente na fila de espera do emprego.
Os títulos académicos funcionam como filtros para os empregadores
seleccionarem os indivíduos e estes, agindo no seio desta racionalidade,
adquirem credenciais escolares, conscientes de que estão a emitir sinais aos
empresários acerca da sua capacidade produtiva, embora, como refere
Blaug (1981) o ensino nada acrescente à capacidade produtiva dos
estudantes. Como o essencial do julgamento qualitativo dos diplomas o
empregador, em geral, só o pode fazer ex-post, as escolhas que ele realiza
são feitas, em geral, pela avaliação do nível e do tipo de diploma, e não pela
avaliação do indivíduo que o exibe. Num quadro social largamente
credencialista, as qualificações educacionais diferenciadas funcionam como
um "sinal" acerca da potencial produtividade geral dos que procuram
trabalho e que os empregadores usam, minimizando os custos e os riscos do
recrutamento, da selecção e da admissão. Por esta razão, Lassibille (1995)
coloca esta perspectiva teórica no plano de uma adaptação das teorias da
informação à análise do mercado do trabalho, mercado este cuja imperfeição
121
de funcionamento fica patente, afastando-a desse modo da teoria do capital
humano e das perspectivas funcionalistas, e assinala que o rendimento
social da educação provém sobretudo da capacidade dos empregadores
conjugarem os candidatos com os postos de trabalho onde serão mais
produtivos.
No entanto, o uso que os empregadores fazem das qualificações e dos
diplomas, como alertam Breen, Hannan e O' Leary (1995) e Myriam
Campinos-Dubernet (1995), varia muito de país para país, de sector de
actividade para sector de actividade, o que reforça a crítica à perspectiva
determinista mais geral de que a educação determina a produtividade dos
postos de trabalho.
Ora, estas teorias começam a evidenciar uma outra faceta da relação entre a
educação e a economia, assente exactamente na falta de correspondência
entre ambos os campos sociais.
Como refere Mark Blaug, citando F.Welch, a única conclusão a retirar de
centenas de estudos é a de que "a associação entre escolaridade e
rendimento não é falsa" (1981:92). De facto, são patentes inúmeros
elementos que peturbam a linearidade subjacente às relações entre o
sistema escolar e o sistema económico, em particular o mercado de
emprego.
Os empregadores valorizam as credenciais escolares quando as valorizam
e, nestes casos, fazem-no sobretudo porque essa via lhes poupa um
processo oneroso de selecção, uma vez que geralmente os empregadores
têm concepções muito imprecisas sobre o perfil de competências dos
empregos disponíveis. Passados poucos anos de actividade profissional dos
indivíduos, os efeitos das credenciais diluem-se e anulam-se em grande
parte no funcionamento dos mercados internos de trabalho (Blaug, 1981).
122
Ora, estes elementos apontam já para um outro quadro de análise: aquelas
relações entre subsistemas são complexas e, em grande medida,
imprevisíveis, porque são cruzadas por outras práticas sociais com enorme
significado e impacto. Entre elas podem-se coligir as seguintes: (a) a
diversidade de ambientes familiares, em termos socioculturais e económicos
e no que respeita à formulação de expectativas de mobilidade social
ascendente por via escolar; (b) a quantidade de estratégias de recrutamento
de novos trabalhadores mobilizadas pelos empregadores e que escapam a
esta subordinação às credenciais escolares, sendo condicionadas sobretudo
por relações pessoais (Rees,1989); (c) a diversidade de mercados de
emprego existentes intra e internacionalmente; (d) o excesso de mão-deobra qualificada e a penúria de empregos em oferta no mercado do primeiro
emprego neutralizam em grande parte o efeito de rendimento diferencial que
se associa à obtenção de títulos escolares elevados.
Como dizia muito friamente Philip H.Coombs, no seu primeiro estudo sobre a
situação mundial da educação escolar, de 1968, "a procura social de
educação incrementou-se inexoravelmente sem ter nada em conta a situação
da economia e os recursos disponíveis para a educação" ou, por outras
palavras, mais situadas teoricamente, o sistema escolar continua a preparar
os indivíduos para os empregos sobretudo "porque os prepara para um certo
tipo de relações sociais, porque os prepara para uma ordem social" fundada
na segmentação do trabalho subordinado.
Estes últimos apontamentos abrem para a abordagem de um outro campo
teórico que se tem revelado crucial para a análise das relações entre o
sistema escolar e o sistema económico, em particular o emprego. Antes de o
abordarmos em pormenor é útil, na economia desta busca teórica, evidenciar
um conjunto de contributos analíticos que, ao longo das últimas décadas,
têm argumentado que existe um desajustamento estrutural entre os campos
da educação e da economia e entre a formação e o emprego, contribuindo
todos eles para reforçar a tese da não-correspondência entre formação e
123
emprego.
Uma "falácia" chamada ensino profissional
Se é verdade que foi a crença nos benefícios dos ensinos técnico e
profissional sobre a economia e sobre o emprego que mais sustentou as
políticas que o suportaram e o fizeram crescer, nomeadamente quando os
governos perfilharam as teorias funcionalistas e, em particular, a teoria do
capital humano, também é no âmago dessa relação entre a educação e a
economia que se encontram alguns dos principais pressupostos da "falácia
do ensino profissional", para regressar à expressão de Philip Foster, no seu
célebre estudo de 1965. Com efeito, manteve-se, no pós-Guerra, um veio
crítico que afirmou sempre a inevitabilidade do desajustamento estrutural
entre educação e economia-emprego.Vejamos, por exemplo,a abordagem
deste norteamericano, Philip Foster, uma das que atravessaram de modo
proeminente as últimas décadas.
Este autor, na altura professor na Universidade de Chicago, escreveu, em
1965, um artigo que ficaria como uma referência, na análise da relação
educação-emprego. O que mais o terá lançado para a notoriedade talvez
tenha sido a sua capacidade de contrariar evidências não provadas e,
entretanto, transformadas em senso-comum e fazê-lo numa época de plena
expansão económica nos países industrializados, onde a prova da não
evidência surgia profundamente contra a corrente. A análise por si
empreendida, nessa altura, baseou-se em estudos sobre países em
desenvolvimento e, particularmente, sobre o Gana.
A crença generalizada no importante papel da educação e, em particular, do
ensino profissional, no desenvolvimento económico era, como vimos, um dos
motores do investimento em educação escolar. A produção de qualificações
124
escolares era facilmente tomada como sinónimo de satisfação das
necessidades dos empregos. Aqui se situava a base do reconhecimento da
superioridade do ensino profissional sobre o ensino geral. Aliás, aqui
radicava também a concepção de que o desenvolvimento do ensino geral
tinha contribuído para a progressão de problemas sociais como o êxodo
rural, o imobilismo da agricultura ou o desemprego crescente de diplomados.
Neste contexto, invocar a falácia da profissionalização do ensino era, no
mínimo, paradoxal. Foster começa logo por colocar em evidência o facto
indesmentível da existência de uma maior procura do ensino "académico".
Ora, em sua opinião, os que criticam a natureza "irracional" deste tipo de
procura - note-se que Foster recorre ao mesmo vocábulo que R. Grégoire
usa no seu relatório para a futura OCDE, também de 1965!-, em oposição à
do ensino profissional, enganam-se no reconhecimento de que a força do
ensino académico repousa precisamente no facto de que este é que é um
ensino eminentemente profissional, ao proporcionar o acesso aos empregos
com maior prestígio e, ainda mais importante, aos mais bem pagos, neste
caso na economia do Gana. Não deixa de ser preocupante, argumenta, ver
os defensores do ensino técnico criticar a falta de frequência das fileiras
técnicas nas escolas secundárias, enquanto, ao mesmo tempo, os "produtos"
de tais instituições técnicas experimentam mais dificuldades em obter
emprego (Foster,1978:358) Esta espécie de "desperdício" de mão-de-obra
qualificada é considerada endémica em países em desenvolvimento.
Foster ataca particularmente a perspectiva, muito divulgada entre os
mentores do incremento dos ensinos técnico e profissional, segundo a qual
as aspirações profissionais das crianças podem ser
alteradas pela
transformação massiva do currículo, pela mudança da natureza da formação
escolar inicial. Não passa de um argumento folclórico, com pouca justificação
empírica, diz o autor. Efectivamente, Foster prova que as aspirações são
125
determinadas em grande parte pela precepção individual acerca da estrutura
das oportunidades da economia local e que as escolhas feitas pelas famílias
e pelos alunos são realistas e resultam de uma lúcida reacção aos
incitamentos da economia. A natureza da instrução educacional terá pouco
que ver com a formulação do processo decisional, residindo este sobretudo
na estrutura de incentivos e no apoio à actividade empresarial que se
desenvolve no sistema económico, em cada momento.
Quando, quase trinta anos depois, em 1992 e após um longo percurso
profissional, P.Foster, desta vez pela mão do director da revista
"Perspectives", da UNESCO, volta a reflectir sobre esta problemática, não o
poderia fazer de modo mais paradoxal. O Banco Mundial acabava de
produzir "uma mudança radical na sua maneira de abordar a controvérsia
educação-desenvolvimento", segundo a visão de Foster, auto-propondo-se
uma revisão crítica da sua análise sobre o lugar e o papel do ensino
profissional, incitando os governos a atribuir a prioridade política à qualidade
do ensino primário e do ensino secundário geral.
Os investimentos em educação passaram, assim, a ser considerados não já
na perspectiva da "economia do desenvolvimento" e no âmbito da doutrina
dos recursos humanos, mas através da referida visão neo-clássica inscrita
numa teoria do capital humano que faz apelo ao jogo do mercado. O que
quer dizer que numa economia de mercado, o Estado deveria limitar a sua
intervenção na educação à melhoria da qualidade do ensino geral, deixando
para o sector privado a formação especificamente orientada para o emprego,
uma vez que se crê que este sector assegurará programas de formação
melhor adaptados às realidades dos mercados locais.
Embora se continue a reconhecer um importante contributo da educação
para o desenvolvimento, a perspectiva económica neo-clássica procura
maximizar o investimento educativo no quadro de uma economia de mercado
126
abertamente centrada sobre a iniciativa empresarial, sendo necessário por
isso abandonar o modelo da planificação central e tecnocrática da formação
dos recursos humanos qualificados, assente em projecções, a longo prazo e
incertas, sobre necessidades futuras de mão-de-obra, em que as escolas
secundárias desempenhavam um papel de reservatórios passivos da mãode-obra estimada necessária. Este modelo seria substituído por políticas
baseadas quer no incentivo à iniciativa local das empresas quer na
satisfação descentralizada de necessidades reais dos mercados locais de
emprego. O desenvolvimento da educação passaria, assim, a ser baseado
na "procura" e não na "oferta" (Foster,1992:171).
George Psacharopoulos, do Banco Mundial, advoga também, em artigo de
1991, que procura rever as incidências práticas dos investimentos passados
realizados em ensino técnico e profissional, que não é viável qualquer
planeamento do ensino técnico e profissional, que é necessário retirar do
ensino
secundário
a
especialização
profissional,
adiando-a,
que
é
necessário investir o mais e o melhor possível na educação de base e que é
ainda preciso promover a oferta de ensino técnico e profissional fora do
sistema escolar (sublinhado do autor do artigo), pois é fora que a
especialização é "mais rápida, mais barata e mais fácil" (Psacharopoulos,
1991:198).
Entre 1965 e 1991, muitas outras perspectivas críticas se foram
desenvolvendo. A que se acabou de referir reúne um carácter emblemático
que, por isso, se quis destacar, como um zoom dentro deste olhar diacrónico
mais vasto. Vejamos algumas outras.
Um desajustamento "praticamente inevitável"
A norte americana Louise Fitzgerald passou em revista muitos estudos em
127
torno da problemática da relação entre educação e emprego, com particular
destaque para os que se debruçaram sobre a empregabilidade dos
diplomados pelo ensino profissional. As duas principais "meta-conclusões"
que são retiradas são as seguintes: (a) o ensino profissional traz magras, se
não mesmo nenhumas, vantagens aos seus graduados para além das que
são conferidas pelo ensino geral. Chega-se a esta conclusão quaisquer que
sejam os critérios utilizados; (b) constata-se uma quase universal relutância
em reconhecer a conclusão anterior (1986). Esta autora refere estudos de
Carbine, de 1974, e de Mertens, de 1980, para com eles sublinhar que
parece não haver benefícios significativos de empregabilidade atribuíveis ao
ensino secundário profissional, nem diferenças nos níveis de desemprego e
de rendimento entre diplomados do ensino secundário profissional e nãoprofissional. Em face destes resultados, é com algum desconcerto que ela
constata o contínuo optimismo com que eles são geralmente interpretados.
A autora nota, entretanto, que vários estudos assinalam a existência, no
processo de inserção profissional, de uma diferença inicial a favor dos
diplomados pelo ensino profissional, diferencial esse que vai desaparecendo
com o tempo. E todas as pequenas e subtis diferenças que alguns
investigadores
vão
assinalando
não
permitem
dizer
senão,
parcimoniosamente, que não há diferenças. A preparação para a vida
profissional e para o trabalho, assinala mais adiante, não é sobretudo um
problema de conteúdos de ensino, geral v.s profissional, mas uma questão
de processo educativo, ou seja, atitudes, comportamentos e competências.
Jean Vincens (1977), ao estudar esta mesma relação, procede a uma
tipificação da correspondência entre formação e emprego. Esta tão desejada
correspondência processa-se em quatro planos: (a) a correspondência entre
a especialidade da formação e a especialidade do emprego; (b) a
correspondência entre o nível de formação e o nível de emprego; (c) a
correspondência entre a formação inicial, o emprego e o salário; (d) a
correspondência entre a formação dada e a formação adquirida e entre a
128
formação adquirida e a formação utilizada. Mas o autor conclui que a
correspondência propriamente dita acaba por não se verificar, seja quando a
economia continua a incorporar um importante volume de mão-de-obra nãoqualificada e indiferenciada seja quando o desemprego cresce e os fluxos de
diplomados perdem o ajustamento com os fluxos de empregos oferecidos ou
ainda quando os perfis dos empregos se tornam imprevisíveis e quando a
evolução verificada na divisão do trabalho nas empresas, resultante da
acção dos empresários, em pouco ou em nada se relaciona com a evolução
do conteúdo curricular e da produção de níveis escolares no interior do
sistema de ensino e formação.
A profunda marca da ideologia da correspondência entre ensino/formação e
emprego muito deve à planificação da educação desenvolvida no pósGuerra, como vimos. A formação de recursos humanos qualificados era
considerada uma condição central do crescimento económico e devia
corresponder o mais possível às necessidades da economia. Assim, como
dissemos, os fluxos da oferta de diplomados deviam ser regulados pela
procura previsível do sistema produtivo, pelo que só uma planificação
rigorosa e previsional podia sustentar o obtenção dos resultados de
ajustamento esperados. Ora, numa época em que a oferta de diplomados
deixou de ser inferior à sua procura pelo mercado de emprego, esta
ideologia da correspondência colapsou e com ela cai também a pertinência
das previsões e dos ajustamentos, tal como se desenvolveram de modo
predominante durante todo o pós-Guerra.
Com o correr dos anos, outras perspectivas críticas das teorias da
correspondência ganharam corpo. Os espanhóis J.L. Garcia Garrido, Pedró
e Velloso (1992) lembram que se a formação profissional escolar pretende
estar ligada ao mundo do trabalho, também a sua evolução, os seus
objectivos e conteúdos deveriam responder à evolução do mundo laboral.
Ora, o que sucede é que esta suposta relação mecânica não existe. E
129
apontam três motivos: (a) as categorias que se encontram nos sistemas de
formação não correspondem estritamente às categorias profissionais; (b) a
mão-de-obra está sujeita a mecanismos de mobilidade e substituição que
escapam ao controlo e à selecção que se supõe que os diplomas e as
qualificações venham a exercer; (c) na medida em que a educação e a
formação
inicial
procuram
escapar
à
excessiva
especialização
na
preparação para lugares concretos no mercado de trabalho, na mesma
medida distanciam-se do mundo laboral.
José Luis Garcia Garrido tinha analisado, na mesma altura e numa outra
obra sua, as relações educação-emprego, no seio da sua análise dos
problemas mundiais da educação. Nessa obra, o comparatista afirma que o
desajustamento entre formação e emprego é "praticamente inevitável"
(1992:224). A educação, em geral, caminha com permanente atraso em
relação ao emprego. De facto, as mudanças que se operam no trabalho e no
emprego exercem uma influência sobre a estrutura da educação e da
formação, que se preocupam em adaptar o melhor e o mais depressa
possível àquelas mutações. Mas esta reacção é sempre demorada e tornase geralmente tardia, deixando as suas novas marcas no mercado de
emprego no momento em que, muito provavelmente, nele já aconteceram
novas mudanças que o tornaram diferente daquilo que era. O autor explicita
este desajustamento permanente no conflito entre mudança e estabilidade,
como "atitudes" típicas do campo do emprego e do campo da formação,
respectivamente. Assim, enquanto que a evolução do mercado de emprego
requer da formação uma capacidade constante de adaptação, a formação
para o emprego, ao adaptar-se, toma sempre como referência um momento
desse processo de mudança e concretiza-se tomando necessariamente
como estável essa referência. É como se o campo da formação requeresse
do emprego uma atitude estática no tempo, exactamente durante o tempo
suficiente para que as estruturas de formação possam responder às
mutações no emprego.
130
Ao proceder a um estudo comparativo da evolução do ensino técnico e da
formação profissional nos países da OCDE, Olivier Bertrand constata um
desajustamento progressivo entre a evolução da procura da formação e a
economia. A tendência pesada para o prolongamento da frequência escolar
pode entender-se como o resultado benéfico de uma procura social
crescente e, simultaneamente, de uma procura de mais elevadas
qualificações por parte das empresas, mas as consequências do desenrolar
de ambas as tendências ao mesmo tempo podem traduzir-se em elevados
desajustamentos. Por um lado, os jovens são incitados a obter mais elevadas
qualificações apenas porque o excesso de oferta de diplomados leva os
empregadores a subir constantemente os níveis de admissão e não porque
efectivamente isso corresponda a uma transformação significativa do
conteúdo dos postos de trabalho disponíveis ou da organização das
empresas. Por outro lado, "os novos diplomados acabam por estar em
grande parte a ocupar postos de trabalho para os quais se encontram
sobrequalificados e o mercado de emprego continua a ter falta de mão-deobra qualificada para os níveis de execução" (Bertrand, 1994:8).
Ao constatar um crescimento da procura dos ensinos técnico e profissional,
este autor adverte para o facto de que este crescimento pode significar
sobretudo o resultado de uma maior selectividade ocorrida nas vias do
ensino geral, o que atribui à procura daqueles tipos de ensino o estigma da
segunda escolha. Tal como P. Foster, Bertrand refere que a maior procura
do ensino geral reflecte uma análise racional dos mecanismos do mercado
de trabalho e a sujeição a uma hierarquia de prestígio que é, em boa parte,
formulada pelos próprios empregadores, pelas suas estratégias de
recrutamento, de gestão das carreiras profissionais e de relação salarial.
Esta perspectiva analítica reforça as teorias do conflito quando estas
desvalorizam o papel dos factores cognitivos na alocação dos indivíduos nas
diferentes fileiras de formação e sublinham que a escola é um palco de
conflitos de interesses que reproduz um sistema de desigualdades.
131
Também McCulloch (1989), ao olhar as inovações empreendidas na
Inglaterra, nos anos oitenta, para reforçar as interfaces entre educação
escolar e trabalho, entre as quais se destaca a criação da Manpower
Services Comissin-MSC e a Technical and Vocational Education InitiativeTVEI, procura sublinhar que este processo de reforma se limitou, em grande
parte, a repetir o falhanço já verificado, nos anos quarenta e cinquenta, com
o lançamento das Secondary Technical School - STS. A falta de interesse
efectivamente demonstrado pela indústria em relação às STS, num quadro
em que a retórica pressupunha a intervenção do sector industrial para o
desenvolvimento de uma educação mais "prática" e mais interligada com o
mundo do trabalho, exemplifica, segundo o autor, que o relacionamento
entre a educação e a indústria não se desenrola dentro de um quadro nãoproblemático. Esta relação é, com efeito, "altamente problemática" (1989:79)
e os representantes do "mundo do trabalho" acabaram por ser os que mais
resistentes se mostraram ao desenvolvimento de um ensino secundário mais
prático, numa perspectiva de educação mais orientada pela indústria. Estes
estiveram mais interessados nas "public schools" e nas "grammar schools"
como alvos preferenciais para recrutar o "tipo certo de rapaz" para as
posições de liderança na indústria. "Contra os desejos de muitos professores
e de muitas LEA [Local Educational Authority], foram os industriais que
viraram as costas às STS" (1989:93). O autor conclui que o fracasso desta
"aventura" se deve, no fundo, ao facto do ensino técnico ser parte integrante
do sistema educativo e não parte integrante e importante do sistema
industrial, desligando-se do esforço de ancoragem destas iniciativas em
redes locais de interesses, quer económicos, quer culturais, escolares e
políticos.
Aliás, o funcionamento dos mercados locais de emprego situa-se no âmago
deste processo sociológico de desajustamento. Por exemplo, as práticas
sociais locais de recrutamento
são particularmente analisadas por Rees
132
(1989), que propõe que as estratégias de recrutamento sejam consideradas
como "construção da procura de trabalho" compreendendo a definição das
qualidades desejadas nos trabalhadores, o uso de diferentes canais de
recrutamento da mão-de-obra apropriada e a selecção de indivíduos com as
características desejadas. De facto, não só a procura de mão-de-obra não é
em si não-problemática, como também entre a procura e a oferta de mão-deobra existe uma série de mecanismos de filtragem que servem para
estruturar as características daqueles que entram para os postos de trabalho
existentes.
O autor conclui que o processo de recrutamento é dominado por um conjunto
de critérios sociais, muito ligados à própria dinâmica sociocultural local, sem
que se encontre geralmente um "rationale" a presidir à verificação por parte
do empregador das "condições sociais" que o candidato reune. A formação
inicial de que o candidato é portador secundariza-se frequentemente, em
detrimento da consideração de um conjunto de atributos sociais, tais como
idade, sexo, etnia,atitudes perante o trabalho, sentido de responsabilidade e
confiança e, além disso, subentende-se que a adequação do candidato ao
posto de trabalho terá sempre de fazer-se na empresa, no seu caldo cultural.
Finalmente, constata-se também que há um desajustamento profundo entre
as estratégias locais de recrutamento e as políticas e programas nacionais
de formação; de facto, enquanto que a estes preside uma conceptualização
normativa, necessariamente generalista e idealista, aquelas são dominadas
pela procura de adequação a cada situação concreta ou a cada mercado
local de emprego.
C. Prieto e O. Homs (1995), na sua análise sobre a evolução das políticas de
formação profissional em Espanha, destacam "o papel complexo da
formação nas estratégias dos actores sociais sobre o mercado do trabalho"
(1995: 570). As formações "profissionalizantes" são ocupadas por alunos de
diferentes grupos sociais, em função das variações da oferta de empregos,
133
utilizando-as como estratégias de resistência sobre o mercado de emprego
ou de melhoria do poder de negociação. Referem ainda que os resultados de
alguns estudos revelam que o impacto dos estudos "profissionalizantes"
sobre os empregos ocupados é muito fraco e que o domínio onde se verifica
um impacto positivo da formação, ainda que limitado no tempo, é sobre as
probabilidades de encontrar um emprego.
A este propósito, os autores sublinham que o facto mais saliente do últimos
anos, em Espanha, é a incorporação massiva sobre o mercado do trabalho
de jovens com níveis médios e superiores de formação. A existência e o
peso desta população mais qualificada, as suas atitudes e comportamentos
face ao mercado do trabalho são factor de forte pressão em ordem à
mudança das políticas empresariais de gestão dos recursos humanos,
embora ainda seja cedo para avaliar o impacto deste fenómeno sobre o
emprego e a sociedade. O mesmo talvez se possa afirmar em relação a
outros contextos sociais europeus em que se processou uma rápida
massificação do ensino secundário e do ensino superior.
Ainda quanto à falta de correspondência entre educação e emprego, alguns
autores vão mesmo mais longe e, tal como Francesc Pedró (1992), referem a
irrelevância das titulações escolares para o mercado de emprego, admitindo
que a educação pode considerar-se um critério arbitrário para a ocupação de
postos de trabalho. O sistema educativo nunca foi responsável por criar
lugares no mercado de trabalho, antes, numa perspectiva histórica, foi
responsável pelo adiamento do acesso da maioria dos jovens ao mercado de
trabalho.
A procura social crescente da educação, uma vez radicada na crença do
poder das titulações escolares, não sendo por isso orientada por quaisquer
aspirações específicas face ao emprego, leva também Lillis e Hogan a
considerarem ser um exagerado optimismo esperar a coincidência daquelas
134
aspirações com as oportunidades de emprego.
Ora, este desajustamento tem inevitáveis consequências sobre a motivação
dos estudantes, sobre aquilo em que eles devem investir em termos
escolares e "sobre o que eles esperam da vida profissional" (1983:103),
colocando o ensino secundário superior numa rota de colisão entre
expectativas sociais contraditórias, finalidades sociais amalgamadas e
racionalidades em tensão.
Os mesmos autores, coligindo bastantes pesquisas sobre a diversificação
escolar e sobre a relação educação-emprego, em vários contextos
geoeconómicos, apontam algumas conclusões que se orientam nesta mesma
perspectiva de desajustamento. Assim, verificam que as tentativas de
reformar o ensino secundário, como principal medida de política de certos
governos para combater o desemprego e o subemprego dos jovens, se têm
revelado inconsequentes. Se se deseja obter resultados e ser eficiente com
estas medidas, elas deverão ser acompanhadas por mudanças nas
convenções de trabalho e de salários, nos procedimentos de recrutamento e
nas orientações de política social e de apoio à criação de postos de trabalho.
Um outro elemento nuclear na fabricação do desajustamento entre a
educação e o emprego situa-se no próprio campo da expansão da procura
social de educação. Esta expansão quantitativa, com uma dupla expressão
não só ao nível do número crescente de cidadãos que acede à
escolarização, mas também no que se refere ao número de anos de
escolaridade que eles realizam, evoluiu tão rapidamente que rompeu um
equilíbrio que sempre se estimou existir, conduzindo a processos massivos
de sobrecertificação escolar em relação com a hierarquia social (Tedesco,
1995), o que se articula com a desvalorização dos diplomas e com a procura
desencantada da educação e da formação e vinca muito significativamente
um traço de desajustamento estrutural entre a evolução da educação e a
135
evolução do emprego.
Um alargado desajustamento estrutural
Vários outros autores analisam esta mesma relação que aqui procuramos
discernir, estudando de modo mais incisivo a correspondência entre o ensino
secundário técnico e profissional e o mercado de emprego, mas fazem-no
num quadro analítico em que não só estes estudos e as suas conclusões se
referem geralmente a modelos escolares de formação, não incidindo sobre
modelos não-formais ou duais de ensino e de formação profissional inicial,
mas também em que a sua maioria incide sobre contextos não europeus. A
sua relevância e oportunidade nesta análise relacionam-se com o facto de se
situarem num quadro teórico idêntico ao de outros estudos já referidos, que
incidem sobre o campo europeu ou norteamericano.
Watson (1994), cuja análise não focaliza o campo europeu, conclui que se
começa a reconhecer actualmente que não só alguns dos objectivos
consignados aos ensinos técnico e profissional eram "irrealistas", mas que
também há grandes problemas na relação educação e economia que não
podem ser resolvidos pelo incremento desses tipos de ensino e que podem
até "agravar-se" por causa deles. Psacharopoulos (1991), citado por Watson
identifica sete razões para o que apelida de "falhanço dos cursos dos
ensinos técnico e profissional".
Estas razões são, sinteticamente, as seguintes: (a) a maior parte das
famílias e das crianças vê estes cursos como segunda escolha, inferiores à
via
académica.
As
crianças
estão,
além
disso,
psicologicamente
impreparadas para o trabalho manual; (b) a velocidade da mudança tem
136
revelado que há provadas dificuldades para preparar estudantes para
mercados de trabalho imprevisíveis; (c) o modelo de planeamento que se
seguiu tem demonstrado dificuldades notórias, não só pelo que se referiu em
(b), mas porque bases de dados inadequadas tornaram impossíveis
previsões correctas e ainda porque muitos dos empregos e competências
requeridas se basearam em conceitos ocidentais de emprego e falharam na
sua capacidade de tomar em consideração as dinâmicas culturais locais; (d)
os cursos de requalificação requeridos pelas mudanças nas tecnologias não
foram as mais das vezes concretizados; (e) foram os governos, mais do que
os pais, que tomaram habitualmente a decisão de expandir os ensinos
técnico e profissional, o que remete a decisão e as reformas educativas
concomitantes para a esfera política; (f) os professores deste tipo de ensino
estão invariavelmente mal formados ou simplesmente não estão formados;
(g) os custos são pelo menos duas vezes superiores aos do ensino geral,
devido à necessidade de equipar salas oficinais e porque a formação de
professores técnicos é muito mais cara (Watson,1994:91). E aquele
especialista, com base em dados comparativos, conclui que não há qualquer
espécie de relação entre a intensidade da profissionalização da educação e
o peso das ocupações manuais do mercado de trabalho.
O falhanço dos currículos profissionalizantes é também analisado por Lillis e
Hogan, tendo como referente a evolução da educação técnica nos países em
desenvolvimento, contextos onde se prolongam os modelos dos países
desenvolvidos e das potências coloniais. O problema residirá no tipo de
expectativas que foram historicamente fomentadas "acerca do que constitui o
conhecimento escolar válido". O processo legitimado de escolarização
parece colocar barreiras sérias aos ensinos técnico e profissional. "A
evidência africana parece sugerir que a "educação" é vista como bastante
restringida ao ler e escrever e à educação académica". O desenvolvimento
de habilidades profissionais ocorre "naturalmente" no exercício profissional e
não na escola. Nesta ordem de ideias, o ensino profissional "corre sempre o
137
risco de ser visto como uma extensão ilegitimada do conceito de "educação"
e as escolas profissionais correm risco idêntico ( Lillis e Hogan,1983:92).
Os autores reúnem nove "clusters", todos interligados, que designam como
sendo barreiras que se costumam colocar quando se introduz uma inovação
de diversificação do ensino de tipo profissional. O primeiro são os pesados
factores estruturais socioeconómicos que se relacionam com a dificuldade
em criar os novos empregos esperados, porque o desenvolvimento industrial
e as reformas da agricultura não absorvem normalmente os novos
diplomados. O segundo refere-se às atitudes e valores dos grupos de
interesse da elite nacional que são pautados pela educação académica. O
terceiro prende-se com o facto de o modelo escolar académico dominar o
acesso à escolaridade pós-primária e de este nível estar ligado à formação
das elites no poder, sendo reservados os percursos técnico-profissionais
para aqueles que falham no processo de selecção escolar, construindo-se
assim como uma mera via alternativa. Em quarto lugar, a formação dos
professores é dominada pelos critérios académicos e o ensino profissional é
colocado
num
desajustamentos
estatuto
inferior.
curriculares,
pois
Em
a
quinto
lugar,
concepção
apontam-se
pré-estabelecida
os
e
predominante acerca do que conta como conhecimento válido na escola
afasta-se das condições consideradas como relevantes para uma formação
de tipo profissional,
tais como flexibilidade pedagógica, experiências de
trabalho, articulação com os empregadores locais e diversidade de horários.
Aqui reside, em grande parte, o facto da irrelevância destas formações para
os empregadores. O sexto elemento relaciona-se com os recursos. O alto
custo de equipamentos e tecnologias apropriadas e actualizadas tem um
fraco retorno, quando comparado com outros tipos de educação secundária.
O sétimo diz respeito à avaliação pedagógica e à inadequação das suas
formas e pressupostos, normalmente dependentes de uma lógica de
selecção para estudos superiores. O oitavo refere-se à diferença de
percepções acerca do estatuto escolar para os pais e para os empregadores.
138
Para os pais, este estatuto advém mais do número de diplomados que
sequencialmente obtém acesso ao ensino superior do que do número de
empregos
encontrado.
Por
outro
lado,
os
empregadores
preferem
frequentemente dar primazia à educação geral e à adaptabilidade, em
detrimento dos produtos das vias vocacionais e nada garante que, quando
um tipo de formação profissional é mais procurado pelos pais, o seja também
pelos empregadores. Por último, as expectativas de emprego alimentadas na
e pela formação escolar colidem com uma realidade laboral onde os
empregos não existem ou, se existem, frustram os candidatos por não
corresponderem ao perfil ocupacional para que se sentiam preparados.
Também V. Chinapah et ali (1989) constatam a enorme dependência que
tem existido por parte dos planificadores do sistema de ensino relativamente
às teorias do capital humano, o que tem gerado, em seu entender, um
pensamento educativo prisioneiro de "critérios puramente económicos, para
tentar determinar o papel e a função da educação, ou seja, do sistema
escolar formal como fonte de competências, de qualificações e de diplomas
conformes às necessidades da produção" (1989:21). Muito raros são os
países em desenvolvimento cujo sistema educativo consegue fornecer o
número de pessoas qualificadas com o perfil requerido, com as qualificações
desejadas e no momento adequado. Além de constatarem o desajustamento,
os autores opinam que este seguidismo "deformou" inclusive a concepção
que havia acerca do lugar do elemento humano nos processos de
desenvolvimento.
Jamil Salmi (1990) e Daniel Sifuna (1992), ao passar em revisão o
desenvolvimento da diversificação escolar e do ensino profissional em
países árabes e africanos, respectivamente, concluem que os objectivos que
lhes foram consignados não foram atingidos. Daniel Sifuna aponta os
seguintes problemas comuns que a diversificação curricular enfrenta:
elevados custos unitários, ausência de clareza nas intenções e nos
139
objectivos, escassez de professores qualificados para leccionar as
disciplinas profissionais e o baixo estatuto como é apreciado pelos
estudantes e pela comunidade (1992:12).
Assumindo-se na mesma linha de P. Foster(1978 e 1992), estes autores
relembram
que
as
aspirações
dos
alunos
são
dominadas
quase
exclusivamente por factores externos às escolas e que os esforços
empreendidos na criação de escolas técnicas e profissionais de pouco valem
para romper com os ciclos de êxodo rural ou com o desemprego e para
melhorar as taxas de crescimento económico. No cerne da questão estará,
em sua opinião, sobretudo a necessidade de reformular o que constitui o
conhecimento escolar válido.
Também Maria Ibarrola e Maria Gallart analisam, para o espaço
latinoamericano, a "vinculação da escola com o sector produtivo" para
registarem uma estrutural falta de correspondência entre as "lógicas da
instituição escolar e as dos processos produtivos" (1994:71). E enumeram
algumas dessas "lógicas contraditórias que só com muitas dificuldades e
com equilíbrios muito finos se podem conciliar", como sejam o objectivo
central que perseguem, a rentabilidade económica e a aprendizagem dos
alunos, o sentido da participação em cada uma das organizações, o tipo de
organização hierárquica entre os colectivos das organizações. Nestas
diferentes racionalidades radicam grande parte dos desajustamentos
evidenciados.
Por outro lado, as autoras sublinham que "a lógica que rege o ensino do
trabalho é muito distinta da que rege o ensino académico" e aquela, a
racionalidade produtivista, está em permanente competição com esta, eleita
à excelência dos saberes escolares.
Podemos concluir que a história das relações entre educação escolar e
140
emprego consiste num desajustamento entre os dois subsistemas sociais,
aqui retomado em oito pontos: (a) a procura social de educação e de
formação não é sobredeterminada por necessidades específicas de
emprego, mas é fortemente condicionada por diferentes estratégias de
diferentes grupos sociais, tendentes a promover mobilidade social e a
escapar à situação de desemprego ou à precaridade do emprego; (b) sempre
foi difícil e é, cada vez mais, praticamente impossível prever a evolução dos
postos de trabalho e proceder a um planeamento a prazo da produção de
qualificações; (c) em caso algum a escola consegue proporcionar uma
formação tão especializada que se possa adequar à diversidade dos
empregos e à sua rápida evolução; (d) a maioria dos trabalhadores, na
mesma ou em várias empresas, vai ver-se repetidamente deslocada de um
trabalho para outro ou terá de se adaptar a várias alterações no mesmo
posto; (e) a maioria dos postos de trabalho requer um número limitado de
habilidades e de conhecimentos específicos, que se adquirem em pouco
tempo e, melhor do que em qualquer outro espaço ou por qualquer outro
processo, no posto de trabalho; (f) o mercado de trabalho e as estratégias
concretas
de
recrutamento
por
parte
dos
empregadores
não
são
suficientemente transparentes para que, se fosse possível, os trabalhadores
mais indicados ocupassem os postos de trabalho mais adequados às suas
capacidades pessoais; (g) o mercado de emprego não se orienta
predominantemente, na procura de mão-de-obra, pelo tipo de qualificações
que os sistemas educativos produzem; (h) a procura social crescente de
educação e de altas credenciais escolares tem aumentado o desajustamento
entre a produção de diplomados e a hierarquia dos empregos efectivamente
disponíveis.
É certo, como veremos mais longamente no capítulo seguinte, que os
ensinos técnico e profissional têm vindo a manter e, em alguns casos, a
ampliar os seus níveis de oferta, amplamente sustentado, mas não só, na
ideologia da modernização económica e nas "velhas" teorias do capital
141
humano. De facto, existe também uma racionalidade educativa para o
crescimento da formação tecnológica e profissional nos sistemas educativos,
a par da racionalidade económica omnipresente. Aquela racionalidade
sustenta a oferta e a procura de educação em vários países europeus, onde
é, aliás, maioritária a procura e a oferta de percursos tecnico-profissionais ao
nível do secundário. Manuel Sarmento (1991:431), por exemplo, situando
esta outra relação entre educação e economia numa perspectiva “relativista”,
sublinha que “o sucesso recente das novas políticas do ensino tecnológico e
profissional se deve prioritariamente à sua “função simbólica”, isto é, à
incorporação do trabalho como valor e dos valores do trabalho em toda a
educação escolar” . O mesmo ponto de vista é defendido por Augusto Santos
Silva (1991:14) quando refere a possibilidade de encararmos “a centralidade
da educação tecnológica
em todas as dimensões e níveis do sistema”,
desde que se refira a educação tecnológica a cenários amplos de
desenvolvimento social e não apenas ao desenvolvimento económico ou
empresarial. Mais adiante voltaremos ao debate desta questão.
No entanto, se é verdade que os ensinos técnico e profissional continuam a
ser parte integrante e importante dos "catálogos" educativos nacionais, é
necessário atentar nos processos que se têm vindo a desenvolver no seu
seio, que parece estarem a conduzi-los para novas configurações, embora
sob a mesma designação envolvente. Estão neste caso as tendências
crescentes para a desespecialização e para a integração curricular e até
institucional dos vários percursos formativos correspondentes ao ensino
secundário superior. Faltará perceber até que ponto o aludido e "exigido"
investimento em "cultura geral" se enquadra em qualquer novo mandato
societal ou apenas exprime uma actualização do sistema escolar em
resposta
à
mesma
racionalidade
produtivista,
como
que
um
neoprofissionalismo escolar. De facto, também convém deixar desde já
enunciada a leitura da crescente oferta e procura da formação “geral” como
uma nova manifestação da racionalidade económica na sociedade actual. A
142
ordem educativa “geral”, herdeira de uma perspectiva liceal de organização
do ensino e da formação, pode corresponder, na actualidade, à melhor
resposta educacional ao fomento da conformidade ideológica com a ordem
económica preponderante nos nossos dias.
As teorias da não-correspondência
Expostos os resultados de um assinalável volume de estudos, podemos
concluir que as teorias da submissão do aparelho escolar à função
capitalista e à sua lógica de acumulação também são redutoras e de certo
modo economicistas na explicação do processo de desenvolvimento dos
sistemas escolares, uma vez que não deixam espaço à visão de importantes
conflitos e desajustamentos que existem entre o sistema escolar e o sistema
capitalista.
Estes estudos, em boa medida, subsumem-se analiticamente nas teorias da
não-correspondência, que argumentam que a educação escolar tem um
carácter multifuncional face à sociedade e à economia. Para o constatar
basta percorrer a evolução do sistema escolar na Europa, nos últimos
cinquenta anos, e verificar quer o persistente esforço de democratização
social que através dela se levou a cabo quer a imensidade de falhas de
correspondência que se geraram entre a educação e a economia (já
referidas), nomeadamente por força dos rumos que a educação escolar
empreendeu seja por acção das políticas governamentais seja por pressão
da procura social.
Raymond Boudon (1973) forneceu um importante contributo teórico neste
sentido, em particular com a teoria da procura individual de educação.
Boudon, na mesma linha de Lester Thurow, vem demonstrar que a influência
do crescimento dos índices de escolarização, aos seus mais variados níveis,
143
e da diminuição das desigualdades face à educação sobre a mobilidade
social é praticamente nula. A construção da sua teoria da mobilidade social
regista de facto uma diminuição das desigualdades educativas, que
acompanha o crescimento da procura social de educação, mas regista
também que este processo não está unido a uma diminuição das
desigualdades no que se refere às oportunidades sociais. Ou seja, a
estrutura da mobilidade social não muda correlativamente com a expansão
das oportunidades educativas.
Esta leitura interroga o mito e as análises deterministas acerca dos impactos
sociais dos processos de democratização da educação empreendidos no
pós-Guerra, na medida em que subsiste uma forte hierarquização
profissional no trabalho, se mantém uma muito significativa relação entre a
origem social e o estatuto socioprofissional de cada um e o sistema escolar
continua a encarregar-se de transformar em diplomas desiguais as
desigualdades sociais.
Boudon assinala que existem diferentes sistemas de expectativas e de
processos de decisão, derivados de diferentes posições sociais, que se
reflectem fortemente sobre a desigualdade de oportunidades e que o
aumento generalizado da procura de educação nas sociedades industriais é
sobretudo uma consequência de factores endógenos, o que quer dizer que
as alterações que se observam na estrutura educacional não são
congruentes com as alterações da estrutura socioprofissional. O que
mobiliza a procura é o facto de haver uma relação efectiva entre as
aspirações sociais dos indivíduos, que diferem segundo a posição que
ocupam no sistema de estratificação social, e o nível educativo que cada um
acaba por alcançar.
A partir desta perspectiva de não-correspondência desenvolveu-se o modelo
de análise multifuncional, em que se argumenta que a relação entre a
144
educação e o emprego é conflituosa, uma vez que a educação tem um
carácter
multifuncional,
está
sustentada
numa
não-correspondência
generalizada entre ambos os campos e contém funcionalidades que
extravazam muito o campo das relações educação-emprego-trabalho.
O modelo multifuncional, desenvolvido por Carnoy e Levin, vem sublinhar
que a educação não deve ser remetida para o estatuto de variável
dependente e que a economia ou a evolução da procura social não devem
continuar a ser consideradas como as variáveis independentes, o que as
coloca na posição de mandatárias do ordenamento escolar. A educação tem,
antes, um carácter multifuncional, registando-se inclusive frequentes
conflitos entre as suas múltiplas funções, o que a torna um "sítio de conflito"
(Levin,1988).
Estes autores salientam importantes argumentos que sustentam a não
correspondência e até o conflito entre a evolução da educação escolar e o
desenvolvimento da economia. Destacam-se alguns deles. Por um lado, a
educação escolar, nas sociedades democráticas e capitalistas, ao mesmo
tempo que reproduz as desigualdades sociais também conflitua com elas ao
empreender uma educação de massas generalizada e prolongada, que
desempenha um papel social de democratização, que se afasta dos
requisitos mais directos da economia.
De facto, ao expandir-se a educação de massas, que já avança pelo ensino
superior e por novas formas de ensino e formação não tradicionais e extraescolares, modificou-se, nesse mesmo processo político e social, o uso
social da educação. Muitas crianças e jovens, que prolongam mais e mais a
sua escolarização, fazem-no, em boa parte, usufruindo do acesso a um
benefício social, à revelia dos requisitos dos empregadores e da economia.
Ao mesmo tempo que a educação escolar reproduz as desigualdades
sociais, também conflitua com elas e, no desenrolar desse conflito, afasta-se
145
de uma mera subordinação aos imperativos económicos. Os longos
caminhos entre as origens e os destinos tornam-se cada vez mais convulsos
e mais imprevisíveis, dando mesmo a impressão de que alguns passos
dados
nesse
caminho,
nomeadamente
nos
processos
de
inserção
socioprofissional, não são necessariamente irreversíveis, com o nota Lynne
Chisholm (1995).
Estão neste caso, por exemplo: (a) o contínuo crescimento da procura social
individual de educação, que atinge níveis mais e mais elevados e que se
concentra nas vias de ensino mais directamente conducentes à obtenção de
graus superiores, aparentemente fora do alvo das expectativas da
generalidade do tecido produtivo da economia capitalista; (b) o enorme
impacto sobre a sociedade e sobre o mercado de trabalho causado pelas
transformações culturais concomitantes com a elevação dos níveis da
educação
de
massas,
que,
entre
outros
efeitos, causam grandes
disfuncionalidades entre diplomas e empregos, remunerações, condições de
trabalho; (c) a geração de uma gama diversificada de expectativas sociais e
culturais na população escolarizada, que extravazam muito as meras
expectativas face ao emprego e à profissão e que cria novos tipos de
comportamentos sociais, entre eles o de dar novos usos ao espaço social
escolar; (d) os modelos de planeamento global das necessidades de mãode-obra, além de "pontualistas e autoritários" (Paul, 1993), perderam
consistência interna e externa face à evolução rápida das técnicas de
produção, face ao reordenamento das organizações produtivas e face à
globalização da economia capitalista, tornando praticamente inviáveis as
previsões de necessidades de formação e de colocação, por sector e por
especialidade; (e) o alargamento do campo de actuação do sistema
educativo a uma panóplia de modalidades de formação pós-escolar, de
ensino a distância, de formação permanente, envolvendo jovens e adultos,
ao longo de toda a vida; (f) os desajustamentos entre a formação e o
emprego tendem a ser mais graves nos países em que o Estado é o grande
promotor desta formação, inclusive da maior parte da própria formação
146
profissional inicial, e o principal regulador central entre os dois campos
(Erbès-Seguin, 1990).
Ora, as teorias da não-correspondência abrem um quadro de análise que
sustenta que, por um lado, a construção social das funções do sistema
escolar não está prisioneira de uma correspondência finalista face à
reprodução das relações desiguais inerentes à produção capitalista
dominante e que, por outro, os desajustamentos entre os sistemas escolar e
económico são evidentes e crescentes. As perspectivas funcionalistas
revelam-se frágeis na sua capacidade de explicação do nosso problema e,
na procura de focalizações teóricas mais válidas, os modelos multifuncionais
de análise surgem com maior pertinência.
Aqui chegados podemos concluir que, face à constatação de um tão vasto
campo de desajustamentos, evidentes e inevitáveis, como refere Mariano
Enguita (1992:28), o conceito de correspondência mantém a sua pertinência
enquanto explicação global, com algumas importantes repercussões
concretas, para uma adequação entre o sistema escolar e o sistema
económico, em particular no que concerne à reprodução das desigualdades
sociais e à preparação dos cidadãos para uma certa ordem social. Já a
procura constante de adaptação do sistema escolar à evolução da economia,
sendo certo que representa uma tentativa permanente de ajustamento, aliás
sustentáculo do discurso que subjaz a muitos processos de reforma da
educação, não passa justamente de uma tentativa permanente e nunca
alcançada por parte do Estado.
Se é verdade que as teorias tecnico-funcionalistas e do capital humano
explicaram em grande parte a leitura da evolução da relação entre a
educação e a economia no pós-Guerra, também é forçoso constatar que
estão longe de explicar a amplitude e a profundidade dos efeitos da
escolarização de massas que se verificou na Europa. A estreita ligação entre
147
educação e ocupação é um dado, mas a educação apresenta actualmente
uma paleta de funções sociais, que em alguns casos são factor de
desajustamento e de conflito social, com destaque para os resultados dos
efeitos ideológicos sobre a população agora massivamente escolarizada. De
facto, a escolarização de massas, que passou a englobar a totalidade da
população e a separá-la da actividade produtiva, durante cada vez mais
anos para um cada vez maior número, contribuiu poderosamente para o
desenvolvimento de interesses, necessidades e expectativas que implicam
com a relação dos cidadãos com toda a organização da sociedade e com o
próprio Estado. Por outro lado, aos sistemas educativos, nos anos de forte
reestruturação económica, os anos oitenta e noventa, têm sido cometidas
novas funções seja de substituição do mercado de emprego seja de
formação permanente ao longo de toda a vida, dentro de um novo quadro
social em que o sistema escolar tradicional se reposiciona como um dos
meios educativos e formativos, no seio de uma multiplicidade de fontes de
conhecimento.
Assim, parece-nos oportuna e pertinente a mobilização de um quadro teórico
de correspondência crítica entre a educação e a economia, que valorize as
relações de não-correspondência e que escape à redução das políticas
educativas aos ajustamentos ordenados pela evolução da economia e pela
preponderância crescente do liberalismo económico à escala mundial. Tratase, igualmente, de buscar um outro pensamento capaz de apreender a
multidimensionalidade das realidades, de conhecer os jogos de interacções
sociais e, neste caso, apto a conceber as políticas educativas fora da
centralidade do desenvolvimrento técnico-económico. Como sugere Edgar
Morin, esta centralidade advém do efeito conjugado de duas forças: de uma
imposição do económico sobre o político, em que a economia se politiza e a
política se dedica cada vez mais à orientação e à estimulação económica; de
uma “despolitização da política que se autodissolve na administração, na
técnica, na economia, no pensamento quantificante” (Morin e Nair, 1997:21).
148
A centralidade e o poder do económico, reforçados pela expansão do
liberalismo a todo o planeta, provocam um efeito de redução do pensamento
político e de regressão do pensamento e da acção cultural diante do
económico e um efeito de imposição contínua e poderosa do pensamento
técnico-económico sobre as ideias políticas e sobre as dimensões culturais
das sociedades humanas.
Ora, no quadro da multifuncionalidade e da correspondência crítica assim
enunciados, as recentes políticas de ensino e de formação de nível
secundário podem ser equacionadas, na sua formulação, não só como
políticas subordinadas ao referente económico, mas também como nãopolíticas, no que respeita aos referentes políticos e culturais mais gerais em
que é possível pensar o desenvolvimento e a acção educacional, ou seja, a
formação e o desenvolvimento pessoal dos indivíduos. Estes, na sua
maioria, é como consumidores que interessam ao desenvolvimento
económico.
Para além deste primeiro passo de enquadramento teórico do problema de
partida, mais confinado às abordagens tradicionais no domínio das ciências
da educação, é possível e necessário dar outros passos, a começar pela
área da sociologia do trabalho, uma vez que aqui se tem vindo a dar
particular atenção à evolução social da relação educação-trabalho-emprego.
149
3.2. A sociologia do trabalho e os novos mandatos da economia
De facto, as reformas educativas que os governos europeus têm
desencadeado nos últimos anos relativamente ao ensino e à formação de
nível
secundário
auto-fundamentam-se
numa
retórica
fortemente
valorizadora da existência de novos requisitos das empresas e dos
empregos, formulados sobretudo no pressuposto da evolução do modelo
fordista para um modelo pós-fordista de produção. Este novo modelo seria
atractor de novos perfis de competências requeridas aos trabalhadores, em
que a adaptabilidade e a flexibilidade surgem como conceitos chave,
conceitos que aqui e agora importa interrogar.
A sociologia do trabalho tem, na verdade, permitido pensar esta
problemática de modo assaz oportuno, enriquecendo muito o património
teórico em que é possível equacionar a referida relação entre educaçãoformação e trabalho-emprego.
Assim e ainda dentro do que poderíamos chamar o quadro teórico global da
não
correspondência,
pode
situar-se
a
perspectiva
teórica
da
desqualificação do trabalho. Segundo esta abordagem, os avanços
constantes e as mudanças rápidas nas técnicas aplicadas à produção têmse traduzido num processo de desqualificação substantiva dos postos de
trabalho (Berg,1970; Braverman, 1974; T.T. Silva, 1991), ou seja, há uma
efectiva diminuição das competências necessárias no seu exercício e,
concomitantemente, assiste-se a uma restrição da autonomia e do controlo
dos trabalhadores sobre os mesmos postos de trabalho.
No entanto, as inovações técnicas permanentes, promovidas sobretudo
pelos avanços da microelectrónica e das suas aplicações às tecnologias da
informação e da comunicação, têm originado sobretudo uma cristalização da
crença de que existe uma relação linear e imediata entre os processos de
150
mutação técnica nas empresas e a necessidade de incorporação de mão-deobra mais qualificada. Ora, a complexidade técnica crescente, por mais
sofisticação que comporte - e também por causa disso - pouco nos informa
acerca da complexidade das qualificações dos postos de trabalho. Ao
incorporarem grande parte dos saberes profissionais dos postos de trabalho,
as novas técnicas, segundo estas perspectivas, provocam sobretudo uma
desqualificação do trabalho.
Levin e Rumberger (1988 e 1989) constatam que, para o caso
norteamericano e contrariamente às expectativas e até às previsões
governamentais de crescimento do volume de novos empregos em torno de
profissões mais altamente qualificadas, em função também da incorporação
de novas técnicas de produção, se veio a registar, nos anos oitenta, um
aumento significativo de postos de trabalho, mas em profissões que
requerem níveis pouco elevados de qualificação profissional de base.
Concluem que "não é provável que o uso generalizado de computadores e
de outras novas tecnologias aumente as exigências de qualificação da
maioria dos empregos" (1988:127). Em inúmeras situações, os requisitos em
novas qualificações, que surgem agregados à introdução de novas técnicas,
não carecem de mais do que umas escassas horas de readaptação, na
maioria dos empregos.
Também
mais recentemente Barbier (1998), no seu relatório ao B.I.T.,
assinala, para o caso dos EUA, que “os empregos são ainda muito
taylorizados” e que mesmo nos serviços (que cobrem 73,1% dos empregos
civis), os empregos são pouco qualificados, fora do campo dos serviços
financeiros (1998:18)
Para algumas perspectivas neomarxistas este processo de desqualificação é
parte integrante da cadeia de esforços empreendidos pela economia
capitalista para reforçar a dominação e melhor refazer a lógica de
151
acumulação (T.T. Silva, 1991).
Vários autores têm vindo a sublinhar, no entanto, que ao analisarmos o
impacto das inovações técnicas e organizacionais sobre as qualificações do
trabalho, podemos confundir desqualificação com mudança de qualificação,
no mesmo ou em postos de trabalho periféricos. Aquele impacto tanto tem
incidências sobre o aumento como sobre a diminuição dos requisitos de
qualificação. Podem surgir desqualificações que mais não são do que
qualificações diferentes, qualificações que se geram perifericamente em
relação ao ordenamento profissional e produtivo anterior, qualificações que
se reorientam em função de profundas mudanças organizativas. Assim, se
assistimos a processos de desqualificação “tecnológica”, deparamos ao
mesmo tempo e porventura no mesmo lugar com processos de qualificação
“tecnológica”ou até comportamental ou organizacional. É isto, aliás, o que
ocorre em vários processos de reengenharia empresarial, em que certas
reestruturações técnicas são acompanhadas por fortes reformulações
organizacionais, de espaços, de funções, de actividades, e onde, por vezes,
se assiste a processos de requalificação profissional dos operadores.
Além disso, pode suceder que fenómenos sociais simultâneos sejam
tomados como encadeados em relações causa-efeito. Assim, o facto de
ocorrer uma intensa incorporação de novas técnicas na produção de bens e
de serviços e, ao mesmo tempo, se assistir à elevação dos requisitos para
acesso aos empregos, não nos permite explicar linearmente o segundo pelo
primeiro fenómeno. Pode acontecer que esta elevação dos requisitos se
relacione sobretudo com o facto de se assistir a uma elevação generalizada
dos níveis dos diplomas, por força das oportunidades sociais abertas, nas
últimas décadas, pela escolarização de massas e pela procura individual
crescente de elevadas credenciais escolares e ainda por força do
fechamento do próprio mercado do primeiro emprego. Neste caso a
pertinência teórica do credencialismo sobrepõe-se à pertinência da
152
perspectiva da desqualificação.
As novas técnicas e o pós-fordismo
Importantes contributos analíticos têm também sido desenvolvidos em torno
da problemática da adopção generalizada de novas técnicas na produção de
bens
e
de
serviços,
da
consequente
afectação
dos
esquemas
organizacionais e de gestão das empresas, da globalização crescente da
economia capitalista e das novas exigências em termos de qualificações
profissionais, derivadas destas mutações na economia.
A tese mais comum consiste em salientar que se assiste a uma crise do
modelo taylorista e fordista de produção, que está a ser substituído por um
modelo pós-taylorista e pós-fordista ou de "produção flexível", em
contraposição ao modelo de produção em massa ( Kovacs, 1991 e 1993, que
retoma o conceito de Michael Piore e Charles Sabel, 1989). Do novo modelo
constaria ainda a incorporação de uma mão-de-obra possuidora de um novo
tipo de qualificações profissionais. De certo modo, estaríamos diante de uma
retoma dos modelos funcionalistas, agora sob um novo discurso formulado
sob um novo contexto socioeconómico, já não de crescimento mas de
reestruturação e de crise.
Antes de analisar e criticar estes contributos, convém precisar o conceito de
modelo que aqui se vai considerar, aplicado aos modelos de produção. Com
Pierre Veltz (1993), adopto a perspectiva de que um modelo não é uma
espécie de pronto-a-vestir que se aceita ou se recusa, mas um quadro de
definição e de avaliação das racionalidades da acção, normalmente mais
implícito do que explícito, dotado de historicidade, produzido e reproduzido
por actores sociais, que, uma vez constituído se impõe aos mesmos actores
como um referencial de esquemas-tipo de resolução de problemas-tipo. A
153
história tem demonstrado que estes conjuntos de esquemas existem como
modelos de organização sociotécnica e de eficiência socioeconómica,
modelos que revelam uma notável estabilidade temporal.
Ora, estas características de historicidade e de durabilidade são nucleares
quando se perspectiva a reflexão em torno da mudança de sistemas
produtivos. Se um modelo produtivo comporta uma complementaridade e
uma coerência entre princípios de gestão, organização interna das empresas
e relação salarial, então um sistema produtivo é estruturalmente estável
(Boyer, 1993:33). É que daqui decorrem importantes apontamentos teóricos
sobre as mudanças de um sistema produtivo a um outro, entre os quais
sublinhamos os seguintes: (a) o sistema instalado tende a integrar parte das
inovações
que
se
vão
produzindo,
além de
rejeitar
parte
delas,
encarregando-se de renovar as condições concretas em que se desenvolve
em cada sociedade; (b) um sistema produtivo não pressupõe uma completa
homogeneidade de princípios e de práticas organizacionais, antes requer
uma complementaridade entre princípios diversos, impondo a sua dinâmica
ao conjunto do sistema (Boyer, 1993a); (c) são despropositados, porque ahistóricos,
os
cortes
arbitrários
entre
modelos
de
produção
que
permanentemente se efectuam em muitas análises oriundas da gestão e da
economia; (d) a simples adopção de novas técnicas de gestão pouco diz
acerca da mudança de um modelo de produção e do correlativo jogo de
forças que se desencadeia na espessura da organização produtiva (Veltz,
1993); (e) as crises ou as mortes anunciadas dos modelos instituídos podem
ser processos muito longos, em que mesmo o seu reconhecimento é muito
difícil e lento (Boyer, 1993a); (f) a passagem de um modelo a outro é
complexa e difícil também devido às numerosas complementaridades e
indivisibilidades que ligam um sistema produtivo à economia e à sociedade
na qual ele se desenvolve.
Ora, o modelo predominante de organização do trabalho, na segunda
154
metade do séc. XX, tem a sua origem nas transformações em torno da
divisão do trabalho operadas no início do mesmo século. Nelas intervieram
de modo decisivo as contribuições de F.W. Taylor (1856-1915) e H. Ford
(1863-1947).
Taylor começou por estudar os gestos efectuados pelos operários, de
cronómetro na mão, de modo a introduzir sinplificações e melhoramentos,
como se de um processo de investigação em laboratório se tratasse. O seu
método de "organização científica do trabalho" inaugura uma divisão
parcelerizada do trabalho de cada trabalhador. Taylor introduziu, nos
tradicionais meios de organização do trabalho e de melhoria da
produtividade, um sistema coerente, exterior e objectivo, de controlo
sistemático dos tempos mortos. Na sequência da análise científica dos
tempos, uma norma é ditada do exterior, fruto da intervenção de
especialistas, para ser aplicada pelos trabalhadores como o melhor dos
métodos de produção.
O modelo de organização científica do trabalho propagou-se nos EUA e na
Europa entre as duas guerras. Entretanto, Henry Ford montava,nas fábricas
da Ford de Detroit, a primeira cadeia de montagem automóvel, em 1913. O
que Ford procurava, para além de prosseguir o objectivo de combater os
tempos mortos existentes nos postos de trabalho, tal como Taylor, era
diminuir drasticamente os tempos mortos entre os postos de trabalho, numa
abordagem mais horizontal do processo de produção. A cadeia de
montagem, ao levar o trabalho até cada trabalhador e articulando
mecanicamente dezenas de postos de trabalho até então fragmentados,
permitiu reduzir, de imediato, de doze horas e vinte e oito minutos para uma
hora e trinta e três minutos o tempo necessário para montar um chassi do
célebre Ford T.
Esta organização da produção baseava-se na montagem de peças
155
standartizadas e intermutáveis, integrada num modelo de produção em série,
capaz de reduzir os custos de produção e os preços e de aumentar o
consumo de massas.
O modelo fordista assenta em três princípios: (a) reduzir os tempos das
operações elementares, racionalizando o trabalho e mecanizando-o o mais
possível; (b) estabalecer uma forte hierarquia entre as funções de
concepção, produção e venda, em função de um comando superior; (c)
produzir em grande série e a baixo custo, fomentando o consumo de massa
e fazendo assentar a concorrência sobre os preços. A organização da
produção é fortemente burocrática e caracteriza-se pela centralização da
maior parte das decisões, pela integração vertical e ainda pela existência de
redes de subcontratação que funcionam como amortecedores das variações
da procura. O trabalho subordinado é muito especializado e pouco
qualificado e está sujeito a um forte controlo hierárquico.
A combinação entre a organização do trabalho, a produção e o consumo de
massas, estão fortemente ligados no modelo fordista. Este deve ser, por
isso, equacionado não só como um novo método de organização da
produção mas como o sustentáculo de um novo surto económico, em que as
economias de escala originadas pela produção em série viabilizam,
simultaneamente, um abaixamento dos preços dos produtos, um aumento
dos salários e a ocupação de vastas camadas da população.
O quadro macroeconómico que se seguiu à II Guerra Mundial, os chamados
Trinta Gloriosos (1945-1975) ou a Era de Ouro, em que se descreveu uma
curva de crescimento forte e regular, com uma boa capacidade de previsão
da
evolução do consumo, favoreceu a persistência deste modelo
centralizador e hierárquico. Nele se inscreve um importante modelo de
"compromisso salarial" em que é aceite o tipo de racionalização e de
mecanização do trabalho e se estabelecem regimes de retribuição do
156
trabalho assentes em fórmulas salariais que garantem não só uma certa
progressão, capaz de compensar pela remuneração um trabalho monótono
e, quantas vezes, árduo, como uma eficaz integração na esfera do consumo.
Este modelo produtivo, como outras realizações históricas, encontraria, no
seu sucesso, os elementos do lento esgotamento do seu potencial de
expansão. O modelo produtivo e o modo de regulação social em vigor
esboçaram sinais de crise e outras práticas começaram a instalar-se, como
vias de superação de novos desequilíbrios e contradições, e a ser tomadas
como características da evolução em direcção a um novo modelo de
produção. Após um ciclo virtuoso fordiano, o seu paradigma sociotécnico
entra em crise, devido sobretudo a uma crise da acumulação capitalista, que
transparece em factos tão importantes como o esgotamento dos ganhos de
produtividade na indústria, o esgotamento da norma de consumo, o
desenvolvimento do trabalho improdutivo, no privado e no público (Boyer e
Durand, 1993).
Para outros autores esta evolução afecta toda a sociedade: as relações
salariais são mais precarizadas e as negociações contratuais mais duras e o
terciário já não pode fazer crescer a sua produtividade para compensar a
estagnação da produtividade industrial.
Será em torno de conceitos como o de neofordismo e de especialização
flexível que se procurará equacionar esta crise no modelo capitalista de
produção.
Da crise ao pós-fordismo, passando pelo neo-fordismo
O modelo taylorista-fordista apresentava importantes limitações, que se
foram revelando nos anos sessenta e setenta. Por um lado, a burocracia
157
taylorista torna excessivamente pesadas as relações de trabalho e a
fragmentação fordista das funções e dos postos de trabalho dificulta novos
ganhos de produtividade, as avarias e os desperdícios passam a ser
avultados e as condições de trabalho vão-se deteriorando. As rotinas, as
fortes cadências das linhas de montagem, o exercício profissional alienante
e os acidentes de trabalho provocam, por sua vez, uma maior conflitualidade
laboral. Movimentos sociais diversos reclamam, neste período, uma maior
harmonização do trabalho, na linha das críticas já anunciadas por C.
Chaplin, em 1936, nos “Tempos Modernos”. O sindicalismo operário, a acção
social da Igreja Católica, os novos movimentos culturais como o Maio de
1968, constituem aspectos reveladores de um clima social propiciador da
construção e da aceitação social de alterações no modelo taylorista-fordista.
A revolução científico-técnica, acelerada nas décadas de cinquenta e de
sessenta, e os conhecidos "choques" macroeconómicos dos anos setenta,
provocaram um forte abalo nos sistemas produtivos de produção em massa,
sistemas muito dependentes da intensidade energética. O modelo fordista,
perante a iminência de um esgotamento acelerado, evolui para novas
configurações, o que tem levado alguns autores a referir que se assiste, nos
anos noventa, a uma mudança de modelo produtivo.
A concorrência económica acentua-se e já não se baseia apenas na
quantidade mas também na qualidade e ainda na faculdade do modelo de
produção acolher mudanças céleres de produtos e variações sensíveis na
procura. Ora, o fordismo produtivo revelava uma rigidez excessiva e
constituía ele mesmo um entrave aos ganhos de produtividade, em contexto
de flutuação da procura e de mutação técnica acelerada.
As características habitualmente mais sublinhadas para demonstrar esta
evolução são a introdução de novas formas de organização do trabalho,
mais descentralizadas e participativas, tais como as equipas de trabalho
158
semi-autónomas, a nova divisão internacional do trabalho, com destaque
para a deslocalização da produção dos países mais avançados para os
menos desenvolvidos, as novas relações sociais de trabalho, interactivas e
cooperativas (Kovács, 1993) e, é evidente, as significativas modificações das
técnicas aplicadas à produção, que se repercutem na sua automatização
crescente.
O conceito de produção flexível, que é contraposto ao de produção em série
ou produção de massa, é mobilizado para abarcar esta evolução do modelo.
Ele compreende descritores tão importantes como a produção de produtos
de alta qualidade e diversificados, que apelam a elevados graus de
inovação, uma organização flexível, pouco hierarquizada e descentralizada
do trabalho, a introdução de novos equipamentos automatizados e a criação
de unidades produtivas mais pequenas, uma concorrência assente na
qualidade, na individualização e na inovação constante e, ainda, a existência
de operadores qualificados e polivalentes.
Será, aliás, uma justaposição permanente e generalizada entre a introdução
de novas técnicas e, de modo mais genérico, entre a evolução de um novo
modelo de produção flexível, por um lado, e a exigência de uma nova
organização do trabalho, absorvente de uma mão-de-obra mais qualificada,
por outro, que se propagará como traço ideológico dominante, nos anos
oitenta e noventa.
Como exemplo concreto deste novo modelo é comummente apontado o
toyotismo, tomando-se este como uma organização alternativa da produção
fundada no "just-in-time", em que a procura comanda a produção, e na
autonomização, em que as máquinas funcionam de modo autónomo,
parando face a uma avaria. As relações de trabalho são igualmente
alteradas,
com
destaque
para
a
polivalência
multifuncional
dos
trabalhadores, cujo trabalho é racionalizado em equipas, e para o recurso
159
constante à subcontratação.
Com o toyotismo opera-se sobretudo um esmagamento dos custos de
produção
-
no
que
prossegue
as
tendências
fordistas-,
sob
o
constrangimento de uma procura muito diferenciada e de qualidade,
recorrendo-se a uma nova capacidade de incorporação rápida das inovações
que advêm da investigação aplicada, à integração de funções como
concepção, fabrico, controlo e marketing, à integração da capacidade de
produção numa firma alargada, que vai desde a empresa contratante, à
subcontratada e à empresa fornecedora, e ao aumento das qualificações dos
trabalhadores.
Quanto a este último aspecto, recorre-se ao conceito de engenharia
simultânea para significar a mobilização simultânea de saberes, saberesfazer e inteligências individuais, residentes em diferentes profissionais numa
dada organização, integrados em diferentes equipas, que se articulam em
direcção a um produto e objectivos finais.
Um dos principais debates em torno desta perspectiva é o que concita
argumentos a favor e contra a ideia de que se está perante a emergência de
um novo modelo de produção. Ora, muitos autores têm vindo a sustentar que
o toyotismo é apenas uma derivação do fordismo, pois os paradigmas da
produção de massa continuam a ser dominantes ( Boyer, 1993; Durand,
1993; Houben e Ingham, 1995). Para Roger Boyer assiste-se a um
refinamento do fordismo; este autor avalia o "just-in-time" como não sendo
mais do que um salto qualitativo hiperfordiano e sustenta que uma correcta
avaliação do grau de mudança numa empresa requer a consideração de
vários níveis de resistência à mudança, que vão desde a interface com
outras empresas e fornecedores, passam pela estruturação interna da
empresa e atingem, por fim, o núcleo da organização do trabalho (ver Figura
3.1).
160
161
Figura nº 3.1
Hierarquia dos espaços da empresa e seu diferente posicionamento
face à mudança
Pressões do mercado e, em particular
dos concorrentes
Interface com o espaço
Estruturação interna das
funções da empresa
Organização do
trabalho
Nota: Adaptado de Boyer e Durand (1993:137).
Se no primeiro nível, com mais visibilidade e mais capacidade de adaptação
às mudanças, há uma membrana fina de resistência às pressões do mercado
e da concorrência, no segundo nível, a estrutura interna de repartição de
poderes já é mais dificilmente permeável às mudanças, embora se encontre
em muitos casos aberta à experimentação de novos esquemas de integração
de funções ou à incorporação de novos métodos e equipamentos de
trabalho. O núcleo duro do edifício empresarial, a organização do trabalho,
é ainda mais resistente à mudança, o que não quer dizer que não se assista
frequentemente à adopção de técnicas de gestão participada e à
mobilização de equipas integradas de trabalho. Elas traduzem-se, no
entanto, no que o mesmo autor apelida de taylorismo flexível, que dá conta
quer da abertura aos novos ventos quer da permanência do ordenamento
162
organizacional prévio.
O modelo taylorista-fordista é como que um lastro vasto e fossilizante que
impregna as organizações e ordena os conflitos, acolhendo, no seu largo e
elástico seio, algumas inovações, por exemplo de tipo integrativo, de
automação e de reforço da comunicação horizontal, mas com recuo
suficiente
para
sobrepor
a
sua
matriz
estruturante
às
periferias
condescendentes e facilitadoras da inovação. O modelo organizacional
experimentado pela Volvo em Uddevalla e em Kalmar, tal como é tomado por
Boyer e Durand (1993), sendo excessivamente distanciado do modelo
dominante, só poderia conduzir a pouco mais do que a experimentação,
mesmo que esta fosse bem sucedida.
Por isto é que Stephen Wood (1993) prefere referir-se à japonização do
fordismo, fenómeno que vem dos anos cinquenta, que permitiu em parte
ultrapassar limitações evidentes de desenvolvimento do modelo de produção
de massa. Nesta acepção, inovações como o fluxo tenso e o "just-in-time"
deverão ser tomadas como elementos de regeneração fordista, sinais de
renovação, mais do que esgotamento ou a tempo de o evitar, uma vez que
aspectos fundamentais do sistema como o estudo científico do trabalho, as
linhas de montagem, a produção de massa e o marketing de massa não
foram abandonados. Aliás os seus "transplantes" na Europa e nos EUA
provam-no, uma vez que se inserem no modelo dominante, sem que se
alterem necessariamente as regras do jogo.
Jean-Pierre Durand (1993) alinha com esta perspectiva ao destacar as
dificuldades da economia francesa em “aplicar” um novo modelo produtivo.
Entre elas assinala a estruturação muito rígida e fechada das empresas, o
que trava a mobilidade dos assalariados, o facto de estes por sua vez
estarem
organizados
por
grupos
profissionais,
muito
estruturados
internamente à volta das suas especificidades, a esclerose da divisão em
163
categorias profissionais reproduz fortes desigualdades salariais que
desencorajam as iniciativas dos assalariados em ordem à mobilidade, e
ainda o facto de haver vários sectores produtivos e segmentos de sectores
colocados perifericamente face à concorrência internacional, onde as
resistências ainda são mais fortes. Se uma modificação significativa do
modelo produtivo requer o envolvimento não só dos técnicos e especialistas
mas dos operadores, a tarefa compreende não só a alteração do imaginário
que povoa a empresa, mas de todo o imaginário que voga na sociedade em
torno dela, como por exemplo o que engloba as representações acerca do
papel do ensino técnico e profissional.
Já para Houben e Ingham (1995) a superioridade do toyotismo é
reconhecida sobretudo na sua capacidade de eficácia económica no escalão
da empresa, o que se mantém como o critério mais decisivo no actual
sistema concorrencial. É, de facto, ao nível do processo de produção que se
concentram os sucessos do toyotismo e que o levam ao plano mais elevado
do mimetismo internacional. A sua superioridade reside em aspectos como a
economia de recursos e a eliminação de desperdícios em material,
equipamentos, salários, stocks e efectivos, ou a racionalização do trabalho
em grupo, sobre uma base de racionalização do trabalho individual, ou ainda
a capacidade de adaptação mais rápida às necessidades do mercado ou a
gestão mais rigorosa dos defeitos de fabrico, a informação obtida mais
rapidamente e melhor alocada e a organização mais leve e mais integrada
de funções. Assim, a tradição do fordismo é prolongada e não substituída.
Como diz Jean-Pierre Durand (1993) , ainda não apareceram reunidas as
condições de um novo regime de acumulação. As rupturas no modelo
produtivo dominante devem tomar-se, entretanto, como melhoramentos do
modelo. Não será estranha a esta leitura a categorização que Ilona Kovács
(1993) propõe para abordar as tendências de desenvolvimento dos sistemas
produtivos no novo paradigma sociotécnico: o neo-taylorismo ou taylorismo
informático, a produção automatizada, com trabalho reduzido para todos, o
164
trabalho revalorizado para alguns, com segmentação social e o póstaylorismo ou o trabalho revalorizado para todos.
Adopta-se, assim, a perspectiva de que estamos diante de um quadro social
em que coabitam os modelos produtivos neo-fordista e pós-fordista e
assume-se a perspectiva da continuidade e não da ruptura do modelo de
produção. Sendo assim, ainda estamos longe de um quadro social
dominantemente pósfordista, que implicará certamente um novo tipo de
compromisso salarial, de vastas repercussões societais. Philip Brown e Hugh
Lauder (1996) sistematizam bem este modelo de análise no Quadro 3.1.
165
Quadro 3.1.
Do fordismo ao neo e pós-fordismo: caracterização de modelos de
desenvolvimento nacional
Fordismo
Neo-fordismo
Pós-fordismo
Competição global através de
ganhos de produtividade, redução
de custos (salários, margens)
Competição global através da
inovação, qualidade e valor
acrescentado de bens e serviços
Investimento interno atraído pela
“flexibilidade
do
mercado”
(redução dos custos sociais do
trabalho e do poder dos
sindicatos)
Investimento interno atraído por
mão-de-obra
altamente
qualificada
envolvida
na
produção de valor acrescentado
O antagonismo como orientação
do
mercado:
remover
impedimentos para a competição
no mercado. Criação da “cultura
de empresa”. Privatização do
Estado de bem-estar
Objectivos de base consensual:
“política industrial” associativa.
Cooperação
entre
governo,
empregados e sindicatos
Produção de massa de produtos
estandartizados
/
baixa
qualificação, alto salário
Produção de massa de produtos
estandartizados/baixa
qualificação,
baixo
salário,
produção”flexível” e “sweatshops”
Sistemas de produção flexível,
pequenas séries, nichos de
mercado; evolução para altos
salários, empregos altamente
qualificados
Organizações
burocráticas
hierárquicas
Organizações mais magras com
ênfase na flexibilidade “numérica”
Organizações mais magras com
ênfase na flexibilidade “funcional”
Funções laborais fragmentadas e
estandartizadas
Redução da demarcação sindical
laboral
Especialização
flexível
/
trabalhadores multi-competentes
Emprego estandartizado de massa
(masculino)
Fragmentação/polarização
da
força de trabalho; “core” de
profissionais
e
força
de
trabalho”flexível” (ex. part-time,
tempos,
contratos,
carreiras
portfolio)
Manutenção de boas condições
para todos os trabalhadores. Não
há um “core” de trabalhadores
recebendo formação, benefícios,
salários
comparáveis,
representação própria
Divisões
entre
gestores
e
trabalhadores/relações de pouco
confiança /contratação colectiva
Ênfase no direito dos “gestores”
para gerir. Relações industriais
baseadas em relações de pouca
confiança
Relações industriais baseadas
em elevada confiança/elevada
liberdade de acção e participação
colectiva
Fraco nível de formação em
serviço para a maioria dos
trabalhadores
“Procura”
de
formação
dirigida/fraco uso de políticas de
formação industrial
Formação como investimento
nacional / Estado actua como
formador estratégico
Mercados nacionais protegidos
in Brown e Lauder (1996:6)
166
Existem, portanto, dois tipos ideais de desenvolvimento económico nacional,
para além da persistência do fordismo.O primeiro, o neo-fordismo, que pode
ser caracterizado como uma mudança em direcção à acumulação flexível,
baseada na criação de uma força de trabalho flexível, ligada a baixasqualificações e baixos-salários, a emprego temporário e em part-time e a
organizações mais magras, por força de uma flexibilidade numérica,
competindo globalmente sobretudo através de ganhos de produtividade e de
reduções progressivas de custos. O segundo e em alternativa, o pósfordismo, que se baseia numa mudança em direcção a uma produção por
medida e de "alto valor", sustentada pela inovação, pela qualidade e pelo
valor acrescentado de bens e serviços, pelo recurso a trabalhadores
altamente qualificados e multi-competentes e com altos-salários e por
organizações mais magras, por adopção de uma flexibilidade funcional.
Assim, o mercado de trabalho, na Europa dos anos noventa, é atravessado
por movimentos neofordistas e por alguns importantes traços pós-fordistas,
geralmente minoritários e adstritos a sectores económicos mais modernos e
mais competitivos. Uns e outros procuram usufruir do conhecimento e da
inteligência humana de modo bem diferenciado, num ambiente social
profundamente marcado pela correspondência crítica entre o mundo da
educação e o mundo do emprego.
A ideologia do pós-industrialismo e do pós-fordismo, que grangeou
consensos apressados em torno de palavras-chave como produção flexível
e novas e mais elevadas competências, tem contribuído fortemente para
esconder diferenças fundamentais no modo como as nações, os sectores de
actividade, as regiões, os modelos de contratação colectiva, o tipo
dominante de empresas e de empregadores, reagem à globalização
económica, em cada momento, como também salientam Brown e Lauder.
Para combater este determinismo ideológico basta lembrar o impacto
decisivo das opções políticas seguidas em cada país, em cada momento,
167
sobre a intervenção do Estado na economia e na justiça social e o quanto
estas mesmas opções influenciam uma evolução mais vincadamente neofordista ou mais claramente pós-fordista.
Esta perspectiva crítica dos discursos que tão facilmente se deixam encantar
com o belo canto pós-fordista pode ainda ir um pouco mais longe se
alargarmos a análise da relação educação-economia às desigualdades
sociais, especialmente de rendimento e de oportunidade, e não nos
limitarmos
à análise da evolução dos empregos, das profissões e das
qualificações. O investimento nos recursos humanos de um país, por maior
que seja, esbarrará sempre com o nível de desigualdades sociais existentes,
qualquer que ele seja. Estas terão um inegável impacto sobre a procura
social de educação, sobre os níveis de qualificação atingidos pela população
e, inevitavelmente, sobre a economia de cada país.
Além destes aspectos, a crítica à retórica pós-fordista carece de um
aprofundamento em torno de alguns conceitos nucleares nesta investigação,
a começar pelo da flexibilidade. Esta crítica revela-se pertinente sobretudo
se considerarmos, com Edgar Morin, que o liberalismo económico que lhe
está associado se constitui, no âmago do processo de globalização, como
uma poderosa máquina de “manipulação de símbolos” ( Morin e Nair,
1997:107), com forte impacto cultural, que visa reproblematizar as
referências fundamentais da ordem social ainda dominante, o que aqui se
designa por neo-fordismo em transição.
A produção flexível e a flexibilidade
Na actualidade e no quadro das relações entre a educação e a economia, o
termo "flexibilidade" inunda a linguagem natural, os discursos de inscrição,
de expressão, de prescrição e de explicação ( Berthelot, 1996:20 ss). Ele
168
serve para qualificar a empresa, o trabalho, o emprego, o salário, a formação
e a especialização, a tecnologia, a mão-de-obra, a organização e o modelo
de produção. Em nosso entender, ele faz parte de um certo "profetismo
globalizante" (Pollert, 1989:91), de generalização muito vasta, que deve ser
analisado
no
quadro
do
processo
de
inteligibilidade
que
aqui
empreendemos, sob pena de se nos impor como uma espécie de fim da
história ou como um determinismo paralisante do labor analítico.
Em poucas palavras, o termo flexibilidade usa-se, antes de mais, para
significar a capacidade de adaptação da produção às variações da procura
e, em termos mais gerais, a capacidade de adaptação das empresas ao
conjunto das mutações técnicas, organizacionais, económicas e culturais . O
reverso da flexibilidade é a instabilidade. O conceito surge associado à crise
económica, desde os anos setenta, e refere-se à adaptabilidade das
empresas face à intensificação da concorrência, face às mutações mais
constantes nos mercados, seja pela sua expansão seja pela sua contracção
ou ainda pela alteração radical de produtos e de mercados, face às mais
frequentes inovações científico-técnicas, derivadas sobretudo da aplicação
dos novos processamentos microelectrónicos, tudo isto a desenrolar-se num
contexto de internacionalização crescente da economia capitalista.
A flexibilidade surge como um valor recorrente no mercado de trabalho, tanto
interno como externo. Mas a sua utilização é muito mais vasta e
avassaladora, significando para uns um desejo, para outros um mar de
oportunidades
e
para
outros
ainda
um
oceano
de
ameaças
(Dahrendorf,1995). Segundo este autor, em termos políticos, ela pode
abarcar os processos de desregulamentação e todas as medidas tendentes
a diminuir a acção do Estado, substituindo este pelo mercado, em termos
culturais, ela pode significar a capacidade crescente de todos aceitarem as
mudanças tecnológicas e a elas se adaptarem com rapidez, em termos de
sistema de produção, ela traduz-se pela perda de uma série de
169
constrangimentos do funcionamento do mercado de trabalho e do sistema de
contratação e, finalmente, em termos de mercado, ela traduz-se numa
movimentação de tudo em torno das oportunidades. Como o mercado é cada
vez mais global, pessoas e empresas podem travar ou potenciar os efeitos
da flexibilidade, mas não lhe podem escapar. Sinal destes tempos é a
afirmação do presidente sindical da CFTC-França, no início de 1997, perante
cenários governamentais de flexibilização laboral, de que "somos todos
coreanos do Sul".
O âmbito preponderante de aplicação do conceito de flexibilidade - da
organização da produção, da hierarquia das qualificações, da mobilidade
dos trabalhadores, da formação dos salários ou das formas de protecção
social (Kovács, 1993; Rodrigues, 1994) - e aquele que queremos aqui
aprofundar é o que incide sobre a capacidade das empresas tornarem
"flexível" o trabalho, desde a constituição da "fábrica mínima" até à criação
de um sistema laboral elástico, inscrito numa outra divisão do trabalho, em
que a subcontratação empresarial assume papel relevante. O trabalho está,
assim, no âmago da problemática da flexibilidade e constitui o principal
condutor da elasticidade dos movimentos de adaptação das empresas.
A flexibilidade laboral apresenta geralmente duas faces, uma funcional e
outra numérica (Pollert, 1989; Brown e Lauder, 1996)21. A flexibilidade
funcional refere-se ao processo de trabalho, mais precisamente à abolição
de fronteiras entre funções, à plurifuncionalidade e à elasticidade dos
tempos de trabalho, tendo em vista uma adaptação às exigências da
produção. A flexibilidade numérica relaciona-se com o volume de trabalho e
pode ser utilizada de modo temporário ou irregular ou ter apenas que ver
com a subcontratação. A este último tipo de flexibilidade está claramente
associada a precarização dos vínculos de trabalho.
21 Maria João Rodrigues (1991) usa os conceitos de flexibilidade interna e externa que aqui são também retomados
dentro dos conceitos de flexibilidade funcional e numérica.
170
A empresa flexível é, ao nível micro, a expressão de um mercado de trabalho
dual, já observado por Friedmann nos anos 60 e retomado mais
recentemente por vários autores (Pollert, 1989; Kovacs, 1991; Stroobants,
1993; Reich, 1993; Green, 1994), em que existe, por um lado, um núcleo
central de trabalhadores internos, estáveis e qualificados, afinal aqueles que
têm acesso ao mercado de trabalho primário (Finegold e Soskice, 1988), e,
por outro, uma massa de trabalhadores periféricos, externos, menos
qualificados e indiferenciados e sujeitos aos movimentos de expansão e
contracção
das
necessidades
produtivas.
O
trabalho
encontra-se
bipolarizado entre aqueles que fazem parte de uma "escolha estratégica"
(Pollert, 1989), relacionada com a actividade central da empresa e da
organização, e os que são recrutados no mercado geral de trabalho, onde se
encontram completamente disponíveis.
A flexibilidade numérica associa-se, assim, a uma flexibilidade de mercados
e a uma flexibilidade financeira, em que estas comandam aquela, tornando-a
o centro de um eixo sobre o qual roda a própria flexibilidade organizacional.
Se considerarmos o carácter estável do núcleo central de trabalhadores,
devemos considerar também a flexibilidade não só como qualificativo adstrito
principalmente ao outro polo e ao seu regime contratual, mas também a
flexibilidade contratual como um recurso de mais fácil acesso e uso do que a
flexibilidade funcional.
Piore e Sabel (1989) e a sua teoria da especialização flexível insistem
nestes mesmos pontos, inscrevendo a flexibilização numa crise do fordismo
e fazendo-a equivaler a uma contracção salarial e a uma versátil
disponibilização de mão-de-obra.
É oportuno lembrar que no Japão e na evolução do seu sistema de
produção, tomado como referente por muita literatura e por muitos discursos
171
políticos, a flexibilidade do trabalho é a forma mais característica de gestão
do emprego, muitas vezes indissociado das escolhas tecnológicas. É sobre
uma gestão rígida dos recursos humanos que incide a flexibilidade: agindo
sobre o volume de efectivos ou sobre a duração do trabalho (horas
suplementares, trabalho em equipas sucessivas, trabalho de fim-de-semana,
contratos a termo certo, recurso a estagiários, a interinos, a temporários,
subcontratação, desemprego parcial), agindo sobre as remunerações
(salários ligados aos resultados da empresa ou aos desempenhos
individuais) e, também, sobre a organização do trabalho, ou seja, sobre
diferentes formas de polivalência (Stroobants, 1993a).
Várias perspectivas críticas têm sido ventiladas na análise do conceito de
flexibilidade. Uma primeira denota o seu carácter impreciso e confuso
(Castillo, 1994; Pollert,1989), uma vez que todos os sistemas produtivos
comportam, em cada momento, a rigidez e a flexibilidade e quando esta
última se acentua não quer dizer que aquela seja abandonada, embora este
movimento surja normalmente escondido sob a designação genérica,
comummente empregue, de flexibilidade.
Uma segunda perspectiva acentua a necessidade de evitar inscrever os
discursos sobre a organização flexível num discurso geral e a-histórico, em
que este modelo concreto aparece dotado de um determinismo de
superioridade em termos de organização óptima dos sistemas produtivos.
Nada pode ser considerado como sendo melhor sem referência a um
contexto socioeconómico concreto e situado. O modelo da organização
flexível é uma questão organizacional e social equivalente a tantas outras
que fizeram parte da evolução histórica dos sistemas produtivos ( Boyer e
Durand, 1993).
A produção flexível pode também ser criticamente observada como mais um
salto na velha finalidade produtiva da economia dos tempos, prosseguida
172
persistentemente ao longo de todo o século pela economia capitalista. Num
momento como o que se seguiu à já referida crise económica dos anos
setenta, em que a velocidade de adaptação passou a constituir um objectivo
central da produção, o combate aos tempos mortos foi mantido e ampliado,
agora através de novas combinações entre as tecnologias, a organização
empresarial e a gestão da mão-de-obra.
Stephen Wood (1993) vai mais longe ao distanciar-se da visão que muitos
pósfordistas têm da flexibilidade. Estes ligam tendencialmente pós-fordismo
e flexibilidade como ligam fordismo e rigidez. Ora, este autor vem lembrar,
por exemplo, a flexibilidade numérica ou externa do fordismo, na sequência
da
definição
rigorosa
das
funções
produtivas
e
da
subsequente
determinação de tempos de formação muito curtos. Em seu entender é
necessário distinguir entre diferentes tipos de flexibilidade e referir sempre
de que flexibilidade falamos quando falamos tão facilmente de flexibilidade.
Se estabelecemos uma fronteira entre fordismo e pós-fordismo com base na
oposição entre flexibilidade e falta de flexibilidade, criamos dificuldades
acrescidas à verificação da rigidez que permanece nas práticas de produção,
por exemplo no toyotismo. A clivagem entre trabalho masculino e feminino é,
a título exemplificativo, muito esquecida nos discursos pós-fordistas. Ora,
neste caso, como no que se refere à idade e ao tipo de formação inicial, a
fronteira entre flexibilidade e segregação carece de uma verificação mais
rigorosa.
O fordismo evoluiu muito e hoje já não se apresenta apenas como aquele
que se cataloga com o epíteto "você pode ter o carro que quiser desde que
seja preto", porque ele combina produção em massa com produção por
medida, numa torrente contínua de esmagamento dos custos, na tentativa
nunca acabada de controlo dos tempos mortos, num quadro essencialmente
neo-fordista, como vimos anteriormente.
173
Por outro lado, esta "nova flexibilidade" (Collin e Watts, 1996) ou
adaptabilidade gera nos indivíduos, sobretudo nos mais jovens e nos menos
qualificados, um efeito de desnorteamento, provocando movimentações
cíclicas entre séries de projectos temporários de ocupação laboral. Segundo
estes autores, o “contrato psicológico" (1996:390) entre as organizações e
os indivíduos está em mudança profunda, passando-se de um tempo em que
predominava o contrato relacional de longo prazo para um outro em que
tende a ser dominante o contrato transacional de curto prazo, baseado agora
na pura troca económica.
Finalmente, a produção de tão frequentes, optimistas e inflamados discursos
sobre a flexibilidade pode considerar-se como fazendo parte integrante de
um certo tipo de discursos políticos legitimadores da precarização dos
vínculos contratuais, escondendo, desse modo, a frequente opção das
"empresas flexíveis" pela substituição do investimento em novas tecnologias
e em formação qualificante por trabalho temporário, desqualificado e barato
(Pollert, 1989:93). Estamos, neste caso, perante um discurso modernista a
sustentar a manutenção de "mercados de trabalho secundários" e equilíbrios
produtivos baseados nas baixas qualificações (Finegold e Soskice, 1988).
Segundo aquela mesma autora, em período de crise de acumulação
capitalista e em período simultâneo de "declínio e retirada sindical", o
discurso flexibilista serviria sobretudo para desviar a atenção de um conjunto
de opções a que o patronato deita mão para aumentar as suas margens de
produtividade e de lucro.
Refira-se ainda que é no quadro de uma economia em que a troca mundial
de capitais, bens e serviços se acelerou muito rapidamente que muitos
decisores políticos e empresários europeus procuram imprimir um ritmo
também mais intenso à flexibilização laboral, o que tem colocado na agenda
política da União Europeia a problemática do futuro da "Europa social", a
174
que mantém importantes mecanismos de protecção social do trabalho e dos
trabalhadores
e
sustenta
significativas
e
históricas
interacções
de
solidariedade social, face a outros mercados concorrenciais e socialmente
muito mais desprotegidos.
Independentemente do facto de se impor uma análise mais aprofundada
destas perspectivas críticas, torna-se necessário dotar os discursos de teor
flexibilista da espessura da análise social, verificando a evolução complexa e
concreta dos processos produtivos, desde os postos de trabalho, das
empresas, até ao conjunto do sistema, territorializando e contextualizando os
processos produtivos concretos, analisando a dimensão social mais geral da
vida dos trabalhadores, o funcionamento dos vários segmentos dos
mercados de emprego, tendo em vista não incorrer tão facilmente no risco de
alimentar sobretudo discursos de expressão e de explicação, não fazendo
assim mais do que dar vida, como humoriza Juan José Castillo (1994:64), à
"secção de propaganda" do discurso pós-fordista.
No entanto, na economia desta investigação, retenha-se desde já o facto
deste discurso optimista e inflamado acerca da flexibilidade impregnar
ideologicamente a retórica política sobre vários campos da acção social,
podendo estar a exercer um papel determinante na elaboração da própria
retórica legitimadora das reformas escolares do ensino secundário e, por
esse meio, no rumo e na formulação prática das próprias medidas de política
de educação e de formação.
Um dos vectores que carece, sem dúvida, desta análise pormenorizada é o
que relaciona com a permanente junção mecânica que se promove entre o
sistema de produção flexível e o potencial requalificador das empresas e dos
empregos e as reformas escolares. Ora, na economia do cruzamento de
problemáticas sociais aqui empreendido, esta é uma importante questão a
aprofundar.
175
Qualificação, requalificação e desqualificação
Com efeito, tem-se propagado muito a evidência de uma relação causaefeito entre a incorporação na produção de novas tecnologias da informação,
da robótica e da automação em geral, e o aumento concomitante e
generalizado
das qualificações. Associa-se mesmo à produção flexível a
flexibilidade profissional, ou seja, no novo sistema produtivo emergem
automaticamente trabalhadores com perfis profissionais descritos como
multivalentes e polivalentes, onde a iniciativa e a responsabilidade pessoais
aumentam (Kovacs, 1991; Rodrigues, 1991). Ao mesmo tempo, as
perspectivas
críticas
da
sociologia
do
trabalho
têm
sublinhado
continuamente, com mais ênfase na segunda metade do século, que a
incorporação destas tecnologias também se tem traduzido e visa traduzir-se
num processo desqualificador do trabalho.
Mas o que é que efectivamente muda quando se diz que mudam as
qualificações? A qualificação o que é e sobre o que é que incide? Sobre o
posto de trabalho ou sobre o desempenho do trabalhador? Estas e outras
questões semelhantes povoam o labor analítico de muitos investigadores,
desde há décadas, tornando-se assim possível concitar aqui algumas
perspectivas pertinentes.
Antes, porém, refira-se que o conceito de qualificação é um conceito
empírico que resume um certo número de realidades concretas que préexistem em relação às teorias. Tanto é aplicado à previsão de necessidades
de formação, em função da suposta evolução dos empregos, como à
organização do trabalho nas empresas. A qualificação enquanto instrumento
usado para realizar a planificação de necessidades é um conceito operatório
que tende a ser esvaziado de qualquer dimensão relativa e conflitual, que
176
surge geralmente despojado de espessura social. Por seu turno, a
qualificação na organização do trabalho é tomada sobretudo como um
instrumento de classificação que conjuga as qualidades requeridas ao
trabalhador com as características do posto de trabalho, determinando por
essa via um certo tipo de trabalho e uma certa remuneração.
O
reconhecimento
atribuído
à
qualificação
no
trabalho
releva
simultaneamente da qualidade do trabalhador e das características do posto
de trabalho, expressando uma relação entre os indivíduos e os postos de
trabalho. A qualificação é assim um conceito movediço e fluído, presente em
várias abordagens da sociologia e da economia e uma categoria ainda mais
presente nos debates sociais quotidianos, estando em grande parte por
aprofundar a natureza daquela relação. Para Zarifian (1986:235) a
qualificação é uma construção social que estabelece uma dupla relação:
uma relação entre as capacidades analisadas como correspondendo à
obtenção de um emprego numa empresa e as capacidades julgadas detidas
pela pessoa que pode ocupar esse emprego e uma relação hierarquizada
entre os diferentes empregos e, assim, entre as diferentes pessoas que os
ocupam.
Geralmente a qualificação não exprime mais do que uma combinação
anárquica entre as qualidades requeridas e as qualidades postas em prática
na realização de um trabalho, o que engloba não só as competências
profissionais, ou seja, os saberes e os saber-fazer, as capacidades
operatórias
mobilizadas,
mas
também
os
comportamentos
e
as
representações, os saber-ser, as atitudes demonstradas pelos indivíduos no
exercício profissional concreto. A qualificação como que se subsume em
modos diferenciados de profissionalização, com formulações dependentes
tanto dos postos de trabalho disponíveis como das qualidades individuais
mobilizadas, ambos inscritos num determinado relacionamento entre os
sitemas escolares, os sistemas produtivos e os mercados de emprego, que
177
varia com o espaço social concreto em que esse relacionamento se
configura.
A análise do conceito de qualificação requer, de facto, que se saia do
contexto de cada empresa concreta, de cada processo de trabalho concreto
e se equacione num espaço social mais vasto. Na verdade, o "mapa de
conhecimentos" (Stroobants, 1991) mobilizados pelos trabalhadores é a
combinação das competências adquiridas no sistema escolar,
com os
conhecimentos adquiridos em outras instâncias sociais de produção formal e
sobretudo informal de conhecimento, com o conhecimento objectivado na
maquinaria e com o perfil pessoal e profissional de cada indivíduo no
trabalho. Ora, esta combinação, apesar de apenas se poder expressar em
cada situação individual e organizacional, sendo irredutível a esquemas
simples e rígidos ou a um mapa-tipo, e por causa disto mesmo, deve ser
analisada fazendo intervir o mais possível a complexidade que lhe subjaz.
Desde finais dos anos sessenta, período de grande visibilidade e
disponibilidade para a análise das dinâmicas sociais e dos conflitos que lhes
são parte constitutiva, que se desenvolveu uma perspectiva analítica que
sublinhou o efeito desqualificador geral do trabalho dos novos dispositivos
automatizados aplicados à produção industrial. Braverman, Friedmann e
Freyssenet são alguns dos autores que se destacaram no desenvolvimento
da teorias da desqualificação e da polarização. Para as teorias críticas todo
o processo de reestruturação produtiva deve ser analisado como um
processo de encadeamento de estratégias de que o capital lança mão para
fazer face à crise económica e para manter e assegurar a dominação (T.T.
Silva, 1992:164).
Na esteira das perspectivas marxistas, Braverman, nos anos setenta, analisa
o taylorismo como mais uma etapa na divisão do trabalho e no processo de
controlo do trabalho pelo capital. O trabalhador é expropriado do seu
178
conhecimento pela gestão capitalista, que o especifica e decompõe para
melhor o controlar. Segundo este autor, esta tendência desqualificadora está
a ser estendida aos trabalhos de escritório e aos serviços. Muitos outros
estudos procuraram, na sequência deste, analisar a natureza e a intensidade
do processo de desqualificação do trabalho.
Georges Friedmann (1881-1963) denunciou os efeitos negativos da
organização científica do trabalho, que tinha dominado a produção industrial
no séc. XX., bem como as ilusões das ideologias do progresso técnico, uma
vez que a inteligência das operações de produção tende a ser
constantemente transferida dos operadores para as novas máquinas e para
fora das oficinas. Os trabalhadores vêem-se, assim, desapropriados de um
saber essencial para a afirmação do seu poder no interior das relações de
produção.
Friedmann foi um dos autores que mais investiu, desde os anos cinquenta,
na reflexão sobre "o futuro do trabalho humano", arquitectando uma visão
pessimista da própria evolução dos processos de produção, nomeadamente
para a automatização, tendo sustentado que a educação e a formação
deveriam proporcionar uma aprendizagem "completa e polivalente" e uma
"cultura profissional" para proteger os operários do desemprego e para
acrescer as suas possibilidades de plasticidade profissional.
A par da perspectiva da desqualificação, surge uma cambiante que se
designa por teoria da polarização. Michel Freyssenet desenvolve esta
mesma teoria, já construída por Friedmann, e afirma que, desde a origem do
modo de produção capitalista, a divisão do trabalho se efectua pela
desqualificação do maior número de trabalhadores e pela sobrequalificação
de um pequeno número (Freyssenet, 1974, citado por Campinos-Dubernet e
Marry, 1986:202). A redução da actividade intelectual no trabalho e a
separação crescente entre o trabalho manual e o trabalho intelectual
179
integram-se na modalidade necessária e única de divisão do trabalho no
modo de produção capitalista. O autor mantém a visão pessimista sobre os
processos de automatização, atribuindo-lhes a capacidade de afastar cada
vez mais o operário das fontes do saber, a máquina e a matéria, reduzindo-o
desse modo a um mero "vigilante de autómatos". Assim, não se pode ver a
qualificação do trabalho associada à incorporação de novas técnicas,
quando este trabalho deprecia a mobilização intelectual e visa apenas
respeitar as prescrições inscritas ou adjacentes ao equipameto automático.
Freyssenet não evita a contradição que aparece inscrita na sociedade actual
e que se prende com o crescente e contínuo desenvolvimento dos processos
de escolarização, por um lado, e com os simultâneos processos de
desqualificação do trabalho, por outro. Para o autor francês, esta contradição
é o sinal da crise do conteúdo do ensino, pois ela espelha a perda da
eficácia social dos diplomas, uma vez que o crescimento do desemprego de
diplomados, nomeadamente de diplomados do ensino técnico, e a
diminuição das probabilidades de um titular de um diploma obter um
emprego qualificado correspondente testemunham essa crise. Esta, todavia,
não deixa de ser uma visão bastante redutora dos efeitos sociais dos
diplomas e das relações entre o sistema escolar e o sistema produtivo.
A progressiva restrição da autonomia dos trabalhadores e a bipolarização
referida por Friedmann são consideradas por Freyssenet como uma
tendência contínua, massiva e inelutável. A própria sobrequalificação carece
de ser vista a esta luz; ela favorece apenas temporariamente um núcleo dos
trabalhadores, pois este mesmo núcleo será atingido mais tarde pelo mesmo
efeito desqualificador. Por outro lado, a "requalificação" que é atribuída
generalizadamente aos operadores e que resultaria da automação industrial,
das
relações
de
trabalho
mais
cooperativas
e
da
organização
descentralizada da produção, é igualmente considerada como relativa e
temporária,
contrariamente
a
muitos
discursos
que
a
rotulam
de
180
diversificadora e enriquecedora do trabalho. Relativa, porque não reenvia
para uma actividade que exija mais inteligência, pois corresponde à mera
justaposição de funções esvaziadas do seu conteúdo. Temporária, porque
algumas destas funções simplificadas estão condenadas a desaparecer ou a
ser ainda mais reduzidas, se a forma social actual de automatização
prosseguir (Freyssenet, 1993:256).
O determinismo a que esta corrente adere não é simplesmente tecnológico,
pois reconhece-se que as relações sociais precedem as tecnologias e as
suas aplicações. As máquinas são instrumentos de controlo e de extorsão
dos saberes-fazer na medida em que servem a ordem das relações de
produção capitalista e os seus inexoráveis princípios de degradação do
trabalho,
de
dominação
e
de
consequente
desqualificação
dos
trabalhadores.
Assim como estas perspectivas sociológicas tendem a reduzir a qualificação
à tecnologia, numa visão substancialista da qualificação, também os
economistas neoclássicos a reduzem ao salário. Este representa, na óptica
assinalada, o equivalente da contribuição produtiva do factor trabalho, não
sendo considerado como expressão de uma qualificação mas como um
resultado do controlo exercido sobre as modalidades de partilha da massa
salarial (Campinos-Dubernet e Marry, 1986). A qualificação, neste quadro
teórico, desaparece como objecto ou conceito autónomo, sendo reduzida à
tecnologia e ao salário.
Entretanto, no âmbito da sociologia do trabalho, uma outra perspectiva
teórica desenvolveu uma concepção relativista e conflitual acerca da
qualificação. Esta varia e evolui com o tempo e é determinada pela relação
salarial.
181
Desde os anos cinquenta que Naville sublinha que a qualificação não é a
qualidade do trabalho, mas uma relação entre certas operações técnicas e a
apreciação do seu valor social, reconhecido através do salário e do
"prestígio" social. Na qualificação intrevêm a formação, ou seja, uma certa
duração da formação, que é determinante na sua constituição e avaliação
social, e o salário, pois é ele que determina a estrutura hierárquica própria à
diversidade de qualificações (Campinos-Dubernet e Marry, 1986). Assim, as
funções e a qualidade do trabalho não determinam a maneira como as
competências
dos
trabalhadores
são
valorizadas
em
termos
de
qualificações, pois há uma clara separação entre o trabalhador e o seu
trabalho, sendo o posto comandado pela organização técnica da produção.
Se a uma alta qualificação académica se associa um elevado prestígio, essa
apreciação deriva menos da sua tecnicidade e mais dos elevados
rendimentos que ela apresenta no mercado de emprego. O salário e os
conflitos que ele origina entre trabalhadores e empregadores constituem as
questões centrais da qualificação. Quanto ao "efeito desqualificador", Naville
refere que há uma dijunção entre a actividade da máquina, mais ou menos
automatizada para a transformação dos produtos, e a actividade do ser
humano. O que a automatização provoca é a deslocação dos saberes
requeridos aos operários para funções de controlo e não o seu alargamento
ou o seu desaparecimento.
O facto de as máquinas, particularmente os computadores, exercerem
funções mais inteligentes e integradas, em ambiente mais flexível, diz pouco
acerca do acréscimo de inteligência e de flexibilidade no trabalho humano. A
própria integração de funções e a polivalência das equipas de trabalho não
equivalem à integração de funções e à polivalência dos seus membros.
Estes continuam muitas vezes a exercer um trabalho especializado e
parcelarizado, integrado agora numa outra cadeia, o que está longe de
significar o fim da divisão do trabalho (Stroobants, 1993b).
182
Para Naville, as características reveladas no local de trabalho pertencem de
facto aos trabalhadores. Mas não são as suas capacidades, sem mais, que
determinam a qualificação; é o modo como socialmente são avaliadas, em
função do "tempo de formação", que elas qualificam os indivíduos. Para os
substancialistas, no entanto, o tempo de formação se é adequado para o
planificador é inadequado para o sociólogo, pois este deve apreender a
qualificação de modo mais complexo, a partir do próprio trabalho, uma vez
que a qualificação é sobretudo um atributo do posto de trabalho.
Alain Touraine procurou, desde 1965, combinar estas perspectivas
desenvolvendo uma análise capaz de dar conta das formas complexas e
compósitas de organização do trabalho que coexistem na actualidade.
Admitindo que a qualificação não advém directamente das circunstâncias de
trabalho e que os tempos e os custos da formação não comandam estas
circunstâncias, Touraine propõe uma tipologia de análise em três etapas. Na
fase A, a que corresponde ao antigo "sistema profissional", em que há uma
separação entre a oficina e a direcção da empresa, o trabalhador tem uma
larga autonomia no processo de produção e aí a sua qualificação depende
sobretudo das suas qualidades. A fase B, intermédia, a do reino tayloristafordista, em que se esboroa o sistema anterior, é a do trabalho em pedaços
e dos operários qualificados, dos operários especializados e dos técnicos e
engenheiros. A qualificação dos operários qualificados seria determinada
pelo seu nível de conhecimentos e a dos operários especializados pelo seu
rendimento (Stroobants, 1993a). Na fase C, a do novo "sistema técnico", não
há intervenção directa do operário sobre a matéria e a produção é
assegurada sobretudo por via da automatização, de forma independente dos
operários. Neste caso, a qualificação dos trabalhadores depende menos da
sua competência técnica e mais das suas competências comunicacionais e
dos seus traços de personalidade. Na nossa óptica, esta tipologia capta
melhor a complexidade do trabalho actual, em que coexistem diferentes
183
formas de organização do trabalho e diversificados modos de mobilização de
competências profissionais e, por isso, representa um esforço de
sistematização que entendemos reter de modo particular.
Distanciando-se do conceito de efeito desqualificante da maquinaria, alguns
autores desenvolveram o conceito de qualificação tácita, para dar conta das
formas de conhecimento e das competências que os trabalhadores
mobilizam e que não são redutíveis aos sistemas automatizados e
informatizados. S. Wood refere que aquelas teorias descritas dificilmente
apreendem a qualificação enraízada no saber tácito ("tacit skill"), tais como
procedimentos de trabalho, processos mentais, capacidades pessoais
adquiridas ao longo da vida e experiência acumulada nos locais de trabalho.
De facto existe um vasto leque de competências e de saberes que nem
sequer são susceptíveis de serem mobilizados por qualquer máquina, como
a
iniciativa,
competências
a
criatividade,
e
saberes
o saber relacionar-se com os outros,
que
oferecem
campos
ilimitados
de
desenvolvimento do trabalho e da sua produtividade.
Embora estes saberes escapem a uma categorização formal, revelam-se
cruciais no exercício profissional concreto. O mérito deste contributo teórico
é a valorização daquilo a que também se chama por vezes "qualificação
social" e que compreende um vasto e significativo conjunto de competências
não declarativas, do foro procedimental, relacionadas com as capacidades
de comunicação, de trabalho em equipa, de iniciativa, de auto-estima, de
confiança, entre outras. Estas são competências inscritas na qualificação
“real”, mais do que na classificação formal, no trabalho efectivo, mais do que
no trabalho prescrito, na experiência da tarimba, mais do que na formação
escolar inicial. A acentuação do mérito desta perspectiva não implica,
contudo, qualquer menosprezo pelo lugar da qualificação técnica ou formal,
nem equivale a remeter esta perspectiva para o terreno da flexibilidade
184
produtiva e para o ambiente decorrente da aplicação das novas tecnologias.
Mas traduz, na economia desta investigação, a necessidade de relativizar o
determinismo
das
teorias
da desqualificação, e alerta-nos para a
necessidade de equacionar a qualificação profissional individual como uma
plataforma onde se cruzam saberes formalmente adquiridos, por via das
mais diversas formas escolares de aprendizagem, com aptidões, saberes e
competências
adquiridos
por
via
de
outras
fontes
informais
de
aprendizagem, e ainda com os saberes e competências adquiridos no
próprio exercício profissional e no decurso da vida, em geral (o que, em
francês, se designa por "les acquis").
Outros autores procuraram enriquecer também a abordagem da problemática
da qualificação empreendendo uma "saída da fábrica" e atribuindo uma
maior importância aos sistemas de relações sociais. Estes autores
consideram, muito oportunamente, que a relação entre o valor de troca da
força de trabalho (salário) e o seu valor de uso (qualidades mobilizadas nas
situações de trabalho) é mediatizada pelo sistema escolar e pela
organização do mercado de trabalho. Encontram-se no primeiro caso, por
exemplo, as condições de acesso de diferentes categorias sociais à
educação, a hierarquização dos títulos e a produção de diplomas, e no
segundo, as normas e os regulamentos de admissão de trabalhadores, as
estratégias locais de recrutamento por parte dos empregadores. Esta
ampliação do campo da análise é prosseguida e consolidada pela
perspectiva societal da qualificação. Autores como Marc Maurice, F. Sellier e
J.-J. Silvestre (1982) procuraram compreender o fenómeno hierárquico na
empresa no quadro mais vasto e coerente das especificidades próprias de
cada país no seu modo de constituição dessas hierarquias, a que chamam o
"efeito societal". Prossegue, assim, o rompimento com a abordagem
funcionalista e com o determinismo tecnológico e emerge o novo conceito de
"espaço de qualificação" (Maurice, 1989; Prost,1995; aplicado ao caso de
Espanha por Prieto e Homs, 1995), ou seja, o lugar onde se desenvolvem as
185
interdependências entre processos de socialização, de qualificação, de
organização e de regulação, interdependências estas que contribuem para
estruturar os actores e desenhar os traços das suas relações sociais.
A abordagem do paradigma societal vem salientar que nem certas formas de
divisão do trabalho associadas a certos tipos de tecnologias determinam de
modo linear e absoluto as formas de estratificação e os modos de
organização do trabalho, nem a relação entre o sistema de formação e o
nível de formação da população (relação profissional), por um lado, e a
configuração do emprego no e pelo aparelho de produção de um país
(relação organizacional), por outro, respondem a mecanismos universais e
comuns a todos os países. Cada um, pela sua história, acaba por criar um
modelo específico de relação institucionalizada entre os dois espaços sociais
( Prieto e Homs, 1995), o que, note-se, não significa que os diferentes países
impeçam as influências recíprocas, recusem as políticas comuns, como no
caso da União Europeia, ou que travem todos os efeitos de mimetismo tão
presentes num mundo informacional e economicamente globalizado.
Nesta perspectiva teórica, que retomaremos adiante, as diversas vias em
que o sistema escolar se divide, por exemplo as fileiras técnicas e
profissionais e as fileiras gerais, estão articuladas, em cada país, aos
caminhos da mobilidade dos indivíduos que passam por elas, assim como às
regras e práticas das empresas em matéria de admissões, de classificação,
de promoção e de remuneração e, por outro lado, às relações de
cooperação/conflito que as diferentes categorias profissionais desenvolvem
na empresa e fora dela. É assim que aqueles autores franceses, em 1982,
na tentativa de compreender as assinaláveis diferenças na constituição do
fenómeno hierárquico na empresa na França e na Alemanha, definem
predominâncias diversas dentro do espaço de qualificação: na Alemanha
predomina o espaço qualificacional e em França é dominante o espaço
186
organizacional22.
É no âmbito destas perspectivas teóricas, que abrem a percepção das
qualificações muito para além do determinismo tecnológico e da relação ser
humano-máquina-contexto de produção e das categorias formais, que se tem
procurado abarcar mais amplamente outros conhecimentos mais gerais,
todas as aquisições pessoais e outras competências mais globais e
complexas do que as que tradicionalmente se envolviam na leitura do acto
técnico e na tecnicidade dos actos e das tarefas profissionais. Nos anos
noventa, esta outra percepção da relação ser humano-contexto de produção
anda a par com a propagação da ideia de que o novo sistema de produção
flexível requer um novo tipo de trabalhador, não só mais "qualificado" como
sobretudo pessoalmente mais rico em "competências". Como se procurou
evidenciar, a literatura sociológica assinala três tendências no que se refere
à evolução das qualificações: a desqualificação, a requalificação ou
reprofissionalização e a polarização/dualização entre trabalho muito mais
qualificado e trabalho desqualificado. Além disso, não se pode ignorar que
não existe um mercado de trabalho-tipo, mas uma variedade de
configurações de organizações de produção de bens e de serviços,
localmente situadas, como também destacaram Piore e Sabel (1989:212),
assim como não se pode esquecer as dificuldades que existem em
percepcionar o papel dos sistemas escolares na formação das pessoas
ajustadas à imensidade de mercados locais de trabalho. Como salientam
Bengtsson (1993) e Maria João Rodrigues (1991:128) "não há trajectórias
tecnológicas únicas nem implicações organizacionais unívocas" e os
mercados de trabalho locais estão povoados de uma enorme diversidade de
22 A distinção tem a seguinte explicação: para os autores, a noção "espaço qualificacional" conceptualiza a construcção
de uma certa continuidade profissional entre os diversos níveis de qualificação profissional existentes na Alemanha,
favorável à cooperação profissional. Este espaço é o lugar adequado às mobilidades dos trabalhadores, o lugar de
reconhecimento de estatutos profissionias fortes e o lugar onde a formação profissional operária representa um elemento
fundamental de estruturação. Ao analisarem o "modelo" francês de produção e de uso das qualificações profissionais, os
autores recorrem à noção de "espaço organizacional" para darem conta da importância que aqui tem a hierarquia dos
postos de trabalho e a sua gestão "administrativa", o que coexiste com o carácter residual das formações profissionais de
base no sistema educativo e com o seu fraco reconhecimento pelas empresas (retomamos, para esta explicitação, o
mesmo referencial de Campinos-Dubernet e Marry (1986)).
187
aproveitamentos dos novos mercados, das novas tecnologias e das novas
qualificações. É aliás neste quadro que se compreende a pertinência das
teorias da segmentação do mercado de trabalho.
Retoma-se,
finalmente,
o
conceito
acima
exposto
de
qualificação
profissional, como plataforma em que se cruzam diversos tipos de saberes,
para lhe acrescentar dois elementos. Primeiro, com base na pertinência das
análises da “coerência societal”, que esse cruzamento não ocorre apenas
entre saberes, mas que estes saberes se cruzam com situações históricas,
tempos e lugares, espaços de qualificação e de organização, que os
valorizam de modos bastante diferenciados. Segundo, retomando a
perspectiva do “sistema técnico” de Touraine, que no seio desse cruzamento
complexo de saberes e de competências que constituem as qualificações
profissionais adquirem importância crescente, não as competências técnicas,
mas as competências pessoais e sociais ou tácitas, que são mobilizadas nas
atitudes e nos comportamentos pessoais nos contextos profissionais.
Teorias da segmentação do mercado de trabalho
Em meados dos anos sessenta surgiu uma importante abordagem
sociológica do mercado de trabalho, que permitiu analisar de um modo mais
complexo a relação entre a qualificação e o trabalho, além de estabelecer
um distanciamento crítico face à teoria neoclássica do funcionamento do
mercado de trabalho. Esta teoria, desenvolvida nomeadamente por Piore,
Dolringer e Berger, nos EUA, aponta para a inexistência do “mercado de
trabalho” como o lugar da articulação entre a força de trabalho e o salário;
existem, isso sim, mercados de trabalho com funcionamentos relativamente
diferenciados e relativamente articulados entre si, tanto em termos de
produção, como de distribuição e de internacionalização.
188
Segundo estes autores, existe um mercado de trabalho dual. Um segmento
primário, constituído por empregos mais prestigiados, melhor remunerados,
localizados em grandes empresas e mais modernas, preferentemente
orientadas para a produção de massa, e um segmento secundário que
agrupa os empregos menos bem pagos, indiferenciados, exercidos em
piores
condições
de
trabalho,
em
pequenas
empresas,
ocupados
predominantemente por minorias étnicas e por mulheres.
Cada segmento é constituído por um fluxo de variáveis, numerosas e
interligadas, funcionando em autonomia e em complementaridade. De facto,
verifica-se, por um lado, que há descontinuidades entre eles e, por outro,
que o sector mais tradicional sobrevive na dependência do segmento mais
moderno. Ao segmento secundário é atribuído um importante papel de
regulador do conjunto do sistema económico. É aqui que se movimentam os
arcos da flexibilidade do sistema económico e é também este segmento que
se reserva para a prática de um tipo de gestão da mão-de-obra caracterizado
pela precarização dos vínculos contratuais e pelo, já assinalado, equilíbrio
das baixas qualificações e dos baixos salários. Os dois segmentos
apresentam, assim, segmentos de mão-de-obra com formações bastante
diferenciadas.
A segmentação dos mercados de trabalho é vasta. Para além de uma
diferenciação baseada nas condições de trabalho, em geral, entre mercados
primários e mercados secundários, Jacques Lesourne (1997) aduz outras
segmentações que reforçam a pertinência do conceito. No que se refere às
estratégias de recrutamento, há os mercados internos e externos, em que
ora se recruta por mobilidade interna ora se recruta sobretudo do exterior; no
que se relaciona com a concorrência e a competitividade internacionais, há
os mercados expostos e os mercados protegidos; no que se refere à
mobilidade
geográfica
dos
trabalhadores
há
mercados
locais
que
apresentam diferentes comportamentos quanto à mobilidade da mão-de-
189
obra, ora sendo fechados ora sendo abertos.
As teorias da segmentação do mercado de trabalho enriqueceram bastante a
análise social, tanto no plano das economias nacionais como da economia
mundial e abriram brechas para novas abordagens interdisciplinares. Na
economia deste labor analítico pode destacar-se, por exemplo, a proposta de
Ashton, Maguire e Spilsbury (1990) de segmentação do mercado de trabalho
jovem, conceptualizado como integrando oito segmentos, sendo quatro
segmentos-base, divididos pelo género: um segmento mais elevado,
constituído pelas profissões científicas e técnicas, administradores e
gestores; um segundo segmento, que consiste em empregos de escritório,
secretariados,etc.;
um
segmento
manual
qualificado,
composto
por
cabeleireiros, artesãos,etc. e um segmento mais baixo que integra os
operadores da indústria, pessoal de limpeza e de segurança.
Em "O Trabalho das Nações", Robert B. Reich (1993) avança uma
categorização particularmente útil para o nosso terreno de análise. Assinala
a emergência de três novas categorias de trabalho, para além das categorias
tradicionais, que continuarão a agrupar a maioria da mão-de-obra
norteamericana
e que reunem grupos como agricultores, mineiros,
funcionários públicos, empregados de sectores regulados e trabalhadores
cuja actividade é financiada pelo Governo. As três novas categorias são os
serviços de produção de rotina, os serviços interpessoais e os serviços
simbólico-analíticos. Na nova economia global, o “analista simbólico” detém
uma posição dominante, uma vez que é o que, para além do acesso a factos,
códigos, fórmulas e regras, tem "a capacidade de utilizar eficaz e
criativamente o conhecimento" (1993:260).
Os serviços de produção de rotina dizem respeito ao tipo de tarefas
repetitivas e tanto se encontram entre actividades subordinadas como entre
actividades de gestores e de supervisores, espalhando-se tanto pelos
190
sectores mais tradicionais da economia como no seio da economia mais
moderna, "entre o brilho da alta tecnologia", como observa Reich. As
principais virtudes destes trabalhadores são a fiabilidade, a lealdade e a
capacidade de ser dirigido. Os serviços interpessoais incluem também
tarefas simples e repetitivas e não requerem elevadas qualificações de base.
São exercidos, no entanto, numa relação pessoa a pessoa, implicam uma
relação directa com clientes específicos e por isso não são vendidos à
escala mundial. Além das virtudes atribuídas em comum com os
trabalhadores da produção de rotina, aos fornecedores de serviços
interpessoais é exigida ainda uma boa aparência, bom humor e a
capacidade de transmitir confiança. Estas duas categorias englobam, nos
anos noventa, cerca de 55% dos postos de trabalho americanos, estando os
efectivos da primeira a descer e os da segunda a crescer rapidamente.
Os serviços simbólico-analíticos incluem as actividades de identificação e de
resolução de problemas e de intermediação estratégica, o que engloba uma
grande parte das profissões científico-técnicas. Os analistas simbólicos
exercem a sua actividade manipulando símbolos, através do recurso a
ferramentas
psicológicos,
específicas,
argumentos
como
legais,
princípios
científicos,
expedientes
conhecimentos
financeiros,
processos
publicitários, sons e imagens, algoritmos matemáticos. O seu sucesso
depende da sua originalidade, qualidade, esperteza e da rapidez na
resolução dos problemas. Ocupam cerca de 20% dos postos de trabalho
norteamericanos.
Este contributo teórico reforça a pertinência da teoria da segmentação do
mercado de trabalho, sublinha a importância teórica da distinção entre neofordismo e pós-fordismo e abre novas perspectivas de análise daquilo que
aqui temos considerado como a formação de um novo segmento do mercado
de trabalho no seio da economia mundial, altamente qualificado e muito bem
pago, segmento esse para quem se reclama um novo tipo de ensino e de
191
formação inicial e a formação de “novas competências”.
Finalmente, para a conclusão deste empreendimento analítico, centrado na
abordagem de alguns quadros teóricos, consideramos necessária e
inultrapassável
uma
crítica
ao
deslizamento
a
que,
actual
e
permanentemente, assitimos, do conceito de qualificação para o conceito de
competência. É o que faremos de seguida, certos de que esta análise se
impõe
como
crítica
aos
discursos
políticos
dos
governos,
que
sistematicamente recorrem à nova semântica das competências.
Das qualificações às competências: o que muda?
Como se disse, é inegável a generalização da associação entre
desenvolvimento técnico e automatização da produção com a elevação das
qualificações dos trabalhadores. Os discursos dominantes tendem a situar
este processo de requalificação na alteração dos critérios de definição da
actividade do trabalho, agora requerente de um novo “corpus” de
competências.
Na verdade, associado aos discursos dos economistas, dos gestores e dos
decisores políticos europeus, têm surgido insistentemente, a par da tão
propagada
flexibilidade,
as
noções
de
competência
e
de
“novas
competências”. Por vezes, estes conceitos substituem os de qualificação.
São termos que funcionam como "atractores estranhos", como sugere Guy le
Boterf (1994). Alguém os assemelhou a conceitos catavento, pois eles como
que captam os rumos dos ventos de mudança, afirmam-se socialmente como
transportadores de novos ambientes socioeconómicos e impõem-se por si
mesmos, sem demonstração. Por isso, e dada a sua actual relevância nos
discursos políticos educacionais, também se impõe aqui um esforço de
desocultação destas noções. A ideologia das competências não integra
192
certamente um discurso político neutro.
No momento em que ocorrem diversos processos de reestruturação nas
empresas que, como referimos, afectam particularmente o sistema de
trabalho, assiste-se a uma deslocação progressiva da noção de qualificação
para a de competência. À primeira associam-se organizações empresariais
estáveis e relações profissionais inscritas em complexos e rígidos sistemas
de contratação colectiva, ou seja, um quadro mais próximo do fordismo. O
conceito de qualificação releva do domínio do ter e da lógica do diploma,
prestando-se prontamente à classificação, à hierarquização e à medida
constante (Dugué, 1990). Trata-se de um conceito pouco apto para a
negociação individual e para servir a plasticidade que caracteriza as
relações de trabalho que emergem daqueles mesmos processos de
reestruturação.
A noção de competência surge como um conceito subordinado às práticas
da flexibilidade inscritas nas reestruturações produtivas e ao mesmo tempo
insoburdinado face às tradicionais classificações e objectivações e visa dar
conta de uma outra relação negocial, mais individual e implícita. Dir-se-ía
que há um modelo de produção flexível assistido pela noção de
competência. Ela tende a escapar às categorizações, seja porque releva
mais do domínio do ser ou do saber-ser, seja porque se define como uma
relação que mobiliza, por um lado, um indivíduo e a sua história, feita de
aprendizagens e saberes múltiplos e, por outro, uma situação profissional
concreta. Esta relação só é, assim, objectivável num dado contexto de
trabalho concreto em que cada trabalhador actua. Como assinala Stroobants
(1993a), privilegia-se, na análise social, as representações locais dos
actores, mais do que as estruturas sociais.
Num quadro em que se apresenta por todo o lado uma multiplicidade de
193
itinerários profissionais imprevisíveis, mormente para os que possuem
menores habilitações escolares, gerais e profissionais, onde é crescente a
precarização, a desvinculação e a rotação na ocupação dos lugares
disponíveis, ainda que se lhe chame flexibilidade, o novo modo de medida
do trabalhador pelas competências é o que mais e melhor serve a crescente
individualização das relações de trabalho e a desestruturação do sistema de
negociação e reivindicação, sistema este em que a qualificação detinha um
lugar central. A competência nasce,assim, no seio familiar da flexibilidade,
na mesma medida em que esta é o rosto visível das reestruturações
produtivas em curso na economia capitalista, em processo de acelerada
globalização.
Além disto, a noção de competência dá também conta de uma diferente
articulação entre uma dimensão experimental, composta pelos saberes que
se desenvolvem com a experiência pessoal e com longos anos de percursos
profissionais individuais, e uma dimensão conceptual, onde cabem os
tradicionais saberes teóricos e de base escolar, em que os primeiros são
cada vez mais valorizados a par dos segundos. Estes, saberes de
experiência feitos, são saberes-fazer mas são também saberes-ser, ou seja,
atitudes e comportamentos que se interiorizaram e desenvolveram no interior
das experiências pessoais, entre as quais estão as práticas profissionais.
Para Guy le Boterf (1994), a competência não pode ser reduzida a uma
soma de saberes, saberes-fazer e saberes-ser, mas deve ser considerada
como uma noção mais integrada e complexa que compreende um saber
mobilizar os saberes em contextos específicos, um saber combinar de modo
pertinente o manancial de saberes disponíveis, um saber agir e reagir face a
acontecimentos e situações complexas, um saber transferir, pela via da
evolução dos saberes e pela inovação em novos contextos, e um saber
partilhar, articulando transversalmente competências e cooperando com
outros trabalhadores.
194
Outros autores associam também à valorização do campo das experiências
individuais, inscrita num novo modelo produtivo pós-taylorista, práticas de
trabalho mais autónomas e participativas (Levin, 1988; Kovács, 1991 e
1994). Já vimos que esta associação e todas as que ligam mecanicamente
desenvolvimento técnico e automatização crescente com a requisição
generalizada de um novo “corpus” de competências, são geralmente
apressadas e têm de ser mediatizadas pelas segmentações existentes no
mercado de trabalho e ainda pelo facto de não estarmos actualmente diante
de uma ruptura entre fordismo e pós-fordismo, mas, as mais das vezes,
perante um quadro produtivo em que o fordismo, o neo-fordismo e o pósfordismo coexistem como estratégia de sobrevivência de sectores, mercados,
regiões, modelos de contratação e de relações sociais, no seio da economia
de mercado. Autores há que mantêm sérias reservas diante desta leitura
optimista e voluntarista, ao verificarem que os saberes que são agora mais
valorizados são-no apenas porque se reconhece que eles são agora
necessários nos limites claros impostos pela actual divisão do trabalho. Por
exemplo, a "capacidade de iniciativa" também se exerce sob controlo e a
"participação pessoal" é a que se coaduna coerentemente com os objectivos
e práticas de cada empresa, que se interioriza em cada contexto de trabalho
(Dugué, 1994). Jean-Pierre Durand (1993) chega mesmo a propor que estas
práticas,
ditas de autonomia e de participação, talvez demasiado
simplificadamente, sejam consideradas como um "remake taylorista".
Pode constatar-se, entretanto, que é certo que o atributo competência tem
surgido no discurso sociológico dissociado e distante dos temas do conflito
social. O conceito de qualificação, dada a textura de relações sociais em que
se inscrevia, era "uma arma" ao serviço dos assalariados e parte integrante
da negociação, colectiva e explícita. A negociação, na lógica da
competência, torna-se individual e implícita e pouco dada a categorizações,
uma vez que emerge numa multiplicidade de trocas individuais que se
195
processam no seio dos postos de trabalho, “locus” do reconhecimento da
competência. Neste novo quadro social e nesta tecitura laboral diversa,
muito mais factora de "trabalhadores independentes", a competência surge
numa visão unificada da actividade empresarial, valorizadora tanto dos
interesses comuns dos assalariados como dos da empresa, integradora tanto
das exigências da organização (e da sua direcção) como dos saberes
detidos pelos assalariados, formalizados e tácitos. Resta a questão de saber
até que ponto as contradições terão desaparecido, terão sido transfiguradas
ou apenas sido dissimuladas, estando o campo sociológico, por agora,
pouco apto a dar conta das relações sociais, seja de dominação seja de
autonomia, aí inscritas.
Sublinha-se, para já, pela sua pertinência para esta análise, a emergência
de um movimento de crescente individualização profissional do trabalho e
das qualificações, que está inscrito na retórica da flexibilidade e das novas
competências e que expressa a deslocação de importantes pólos de conflito
social do tradicional terreno das organizações para o dos indivíduos. De
certo modo, a nova competição entre os indivíduos, em torno dos empregos
e das competências, esbate e substitui a anterior dinâmica de conflito aberto
entre assalariados e patrões. O campo da educação e da formação
(nomeadamente da formação ao longo da vida) é um cenário onde se
desenrolam novos focos de tensão entre os indivíduos pela posse dos títulos
e pela certificação das competências, ao longo de toda a vida, numa
sociedade onde o conhecimento se tornou um redobrado factor de
competitividade.
Entretanto, os sistemas de ensino e de formação, desde os anos oitenta, têm
visto dificultada a sua tarefa de definir os perfis de formação adstritos a
perfis profissionais devidamente adaptados a sistemas de trabalho mais
instáveis, fluídos, locais, digámo-lo, flexíveis, e têm assimilado tão mais
facilmente o discurso generalista dominante, optando por favorecer o que
196
designam por "adaptabilidade profissional" ou por investimento na formação
de "competências gerais e transferíveis", quanto mais resistem a evoluir
estruturalmente. Não sendo agora desejável estabelecer perfis de formação
especializados, em ligação com competências definidas com base na
especialização dos postos de trabalho, cuja existência amanhã não está
garantida, procura-se defini-los segundo "famílias profissionais" e saberes
profissionais comuns a grupos de profissões. Por outro lado, na medida em
que os sistemas de educação e formação aceitam e incorporam o discurso
determinista segundo o qual se assiste à substituição do modelo produtivo
taylorista - como se se assistisse ao fim da divisão do trabalho -, e à
requalificação dos trabalhadores, também assumem que é sua nova missão
ampliar uma qualificação inicial, "social" e geral, em detrimento das
tradicionais qualificações técnicas e profissionais específicas.
É assim que se assiste a um movimento de "back to basics", de regresso ao
que é fundamental (Reich,1993), em que a "formação geral" é revalorizada e
em que se atribui uma importância redobrada à formação nas áreas
comportamentais, no fomento de atitudes e competências que derivam mais
de
uma
profissionalidade
geral
do
que
de
um perfil
profissional
especializado23.
Opera-se uma deslocação do arco de sustentação das políticas de ensino e
de formação inicial da produção de qualificações ordenadas para o domínio
de processos de trabalho concretos, para o desenvolvimento de um leque de
competências
reordenadas
segundo
os
requisitos
de
um
"novo
profissionalismo". Este "valoriza competências metacognitivas e horizontais
de eficácia alargada e resistente à usura quer do tempo quer da mudança
acelerada", passando as prioridades educativas a situar-se "no foro da
23 O "back to basics" toma-se aqui mais como sinónimo de regresso ao ensino básico e geral, do que como expressão
de um retorno ao "ler, escrever, e contar", ao ensino elitista tradicional e fortemente selectivo, embora, como veremos, o
regresso ao ensino básico e geral possa ser, na prática e em parte, um retorno ao elitismo e à selectividade.
197
construção de competências" (Carneiro, 1996:48). Assim, já não é a partir do
interior da empresa, da análise das cadeias de produção e dos seus
diferentes perfis profissionais que se constroem os perfis de formação; estes
edificam-se com base numa espécie de novo mandato social geral e de um
mandato do sistema económico em reestruturação, em particular, logo
instável e de evolução imprevisível, incapaz de esboçar, no entanto, algo
mais do que um discurso genérico ou de uma ideologia global da
"reprofissionalização" do trabalho, em que alcança particular destaque o
marco ideológico da formação ao longo da vida.
No quadro societal dominado pelas relações tayloristas de trabalho, estava
solidificada a ideia de que se sabia quais eram as necessidades do mercado,
a que níveis e em que ramos profissionais era necessário qualificar a mãode-obra e isso constituía um esteio de sustentação das políticas de ensino e
de
formação
profissional,
embora
pudesse
tratar-se,
em
muitas
circunstâncias, de uma mera ilusão útil. O Estado previa, planeava,
projectava, quantificava e estabelecia medidas de política. Ora, no quadro
neo e pós-fordista, o papel planificador do Estado está posto em causa,
como enfatiza Michel de Virville (1996). O discurso da planificação das
necessidades de mão-de-obra cede o lugar ao da formação aberta e
polivalente, ao da valorização do desenvolvimento de novos perfis de
competências, ao da validação das competências adquiridas no exercício da
cidadania e no exercício profissional. Tudo se passa como se as políticas de
ensino e de formação caminhassem aceleradamente atrás da retórica da
flexibilidade, ou seja, como se a flexibilização neo-fordista e pós-fordista
constituisse, na actualidade, o principal "rationale" dessas políticas.
Neste sentido, as novas políticas dos sistemas de educação e formação, de
fomento de uma nova profissionalidade, pouco mais seriam do que o
cumprimento à risca dos novos requisitos do sistema económico. Há autores
que avaliam este processo como um mero alinhamento seguidista e acrítico
dos sistemas de educação e formação no processo geral de desqualificação
198
dos trabalhadores, que visa reforçar a lógica de dominação do capitalismo
(ex. T.T. Silva, 1992; Enguita, 1992).
O "novo profissionalismo", que estará associado aos modelos de produção
neofordistas, embora já estivesse bem presente, por exemplo, nas propostas
de uma "cultura profissional" de Friedmann, nos anos cinquenta, é lido por
esta corrente crítica da sociologia como mais uma prova da inevitabilidade
do efeito desqualificador da aplicação generalizada das novas tecnologias
na produção capitalista, efeito esse inscrito numa matriz de reforço da
dominação sobre o trabalho. Uma vez desapossados os trabalhadores das
suas qualificações, saberes, saberes-fazer e saber-ser, mais não restará ao
velho aparelho social escolar reprodutor do que liofilizar a sua missão e
acantoná-la num currículo mínimo que, no limite, caberia em pouco mais do
que o ler, escrever e contar.
Concorrem para o reforço desta tese certas perspectivas de política
educativa desenvolvidas nos anos noventa, como o "retranchment", que
remetem os sistemas escolares públicos para uma formação de base, de
duração mínima, cabendo ao sector produtivo oferecer a formação inicial
especializada e a formação contínua ao longo da vida.
Estes
contributos teóricos têm o mérito de sublinhar, quase sempre por
omissão, a manutenção de um sistema de ensino e de formação
estruturalmente imutável, um sistema fabril e fordista de produção de
qualificações e de diplomas, em que as reformas educativas em curso devem
ser lidas como "remakes tayloristas", para retomar a expressão de JeanPierre Durand. São, no entanto, contributos que não escapam ao
determinismo desqualificador, de que acima nos distanciamos.
Para outros autores estas novas políticas educativas, ao fomentarem a
assimilação de "capacidades de ordem superior", estarão a "contribuir
199
activamente para a emergência de uma nova renascença produzida pela
intersecção entre a tecnologia e as artes, a economia e o humanismo, a
eficácia e os valores universais, as ciências "duras" e "moles", a razão e o
mistério" (Carneiro,1996:48). Nesta ordem de ideias, as novas relações entre
o sistema de ensino e de formação e a economia deveriam estabelecer-se já
não num quadro de desqualificação educacional mas num quadro de
requalificação educacional, em que constitui imperativo a "reengenharia" do
modo fabril e taylorista de ensino e aprendizagem. Ora, esta é uma
perspectiva que importa sublinhar no quadro de uma nova visão acerca da
missão redistributiva dos sistemas educativos, na actualidade, distante das
funções reprodutivas tradicionalmente assinaladas pela sociologia da
educação.
O ensino geral como modo de especialização
Resumindo esta incursão em busca de referentes teóricos para a nossa
investigação, é mister sublinhar aqueles que iremos mobilizar nas fases
seguintes, uma vez que os consideramos os mais apropriados para ler o
objecto em questão. Em primeiro lugar, tomamos como pertinentes as teorias
que assinalam que o pensamento e a acção política que subjazem à relação
entre a educação e a economia têm sido profundamente marcados
por
perspectivas macroeconómicas e por visões tecnocráticas que advogam a
natureza funcional da educação. A racionalidade dominante, inscrita no
técnico-funcionalismo e nas teorias do capital humano, encerrou e encerra o
investimento social em educação numa matriz essencialmente económica,
de resposta às necessidades do sistema produtivo. Na actualidade, tudo leva
a crer que as políticas educativas europeias e, consequentemente, as
reformas dos sistemas de ensino e de formação de nível secundário tomam
como principal referencial um novo mandato formulado pelas mais recentes
evoluções da economia, adoptando o novo modelo pós-fordista de produção
200
como a sua nova ideologia modernizadora global.
Em
segundo
lugar,
consideramos
pertinentes
as
teorias
da
não
correspondência entre sistema de ensino e formação e sistema económico,
constatando a permanência de um desajustamento crónico entre a evolução
de um e de outro. Apesar de se demonstrar teoricamente a permanência
deste desajustamento, como o fizemos neste capítulo, as relações entre
educação e economia são generalizadamente equacionadas num quadro de
forte correspondência. Continua por provar quer a capacidade do ensino
técnico e da formação profissional para criar emprego quer a bondade da
relação mecânica que é estabelecida entre a expansão da sua oferta e a sua
empregabilidade. Aliás, a expansão do ensino e da formação técnicoprofissional nos anos das mais aceleradas reestruturações da economia e
de crescimento do desemprego, não se tem traduzido em redução dos
volumes de desemprego juvenil. Os empregadores, como evidenciam as
teorias críticas, seleccionam os trabalhadores mais pelos títulos e diplomas e
não tanto pelo conteúdo curricular dos mesmos, escolhendo, em período de
excesso de oferta e em geral, os mais elevados, independentemente dos
requisitos específicos dos postos de trabalho disponíveis. O sistema
educativo tem funcionado para o sistema económico como um filtro e uma
fonte de informação relevante, não tanto pelas competências gerais e
específicas que contribui para que os cidadãos desenvolvam, mas mais pelo
que transmite aos empregadores de útil sobre os níveis de qualificação e os
diplomas e os estatutos sociais e culturais que lhe estão associados.
Estes contributos teóricos reforçam também a pertinência da perspectiva
credencialista de compreensão da evolução da procura social do ensino
secundário. A população e os seus diferentes grupos sociais procedem a
análises racionais dos mecanismos de funcionamento do mercado de
trabalho e socorrem-se de estratégias credencialistas como instrumentos de
elevação e de manutenção de status social, como instrumentos de alcance
201
de franquias para assegurar mobilidade na hierarquia dos empregos
disponíveis. A evolução da procura das diferentes modalidades de ensino
secundário, nomeadamente da formação “geral”, deve pois ser vista também
segundo esta óptica.
Em abono das teorias da não correspondência entre educação e economia
está sobretudo o facto de mudar o uso social da educação à medida que
mudam na sociedade diferentes fenómenos sociais que, por vezes,
estabelecem com os campos educativo e económico relações contraditórias.
Além das mais comummente referidas mutações técnico-económicas e da
evolução dos requisitos dos empregadores, temos de sublinhar a evolução
da procura social, que não obedece aos mesmos critérios nem visa os
mesmos objectivos, a expansão da oferta pública e privada de ensino e de
formação, quantas vezes totalmente alheia a quaisquer critérios económicos
ou produtivistas, a diversidade de relações que se estabelecem entre as
escolas e os centros de formação e os seus contextos sociais locais, a
formulação das políticas de ensino e de formação que frequentemente são
determinadas por critérios e objectivos políticos, seja de democratização
social ou de natureza eleitoral ou por necessidades de resposta imediata a
certas pressões sociais, que dificilmente se podem relacionar com o contexto
produtivo, a evolução do papel do Estado, da administração central e dos
partidos políticos na regulação entre a economia e a educação, e ainda as
alterações que se processam nas expectativas sociais destas mesmas novas
gerações de jovens, agora altamente escolarizados.
O exemplo mais marcante talvez seja o facto de estar a aumentar muito
rapidamente o número de jovens possuidores de cursos de nível secundário
e de nível superior, não como resultado de uma qualquer planificação
orientada segundo as necessidades de mão-de-obra, mas como produto de
comportamentos da procura social e de reacções institucionais e políticas ao
202
aumento constante da procura, o que se traduz em muitos casos em
"sobrecertificaçao”24,
desemprego
de
diplomados,
impossibilidade
de
articulação entre os "outputs" do sistema educativo e as necessidades de
mão-de-obra das empresas. O que evidencia também um desajustamento
das empresas face às qualificações disponíveis. O cenário é de conflito de
critérios, de perspectivas e de interesses, não é, de facto, um palco de
ajustamentos.
Muito para cá do intuito de criar empregos para os jovens, os sistemas de
ensino e de formação talvez estejam na actualidade a desempenhar o
importante papel social de afastar os jovens do elevado desemprego e da
enorme instabilidade profissional, procurando mantê-los num ambiente
protegido,
dirigido
supostamente
à
realização
de
aprendizagens
significativas e à sustentação de uma aprendizagem ao longo de toda a vida.
Por outro lado, as teorias da segmentação do mercado de trabalho dão
relevantemente conta de uma vincada dualidade existente nos mercados de
trabalho do continente europeu e abrem a análise sobre a necessidade de se
considerar a diversidade de mercados de trabalho, não só no plano europeu
como no plano nacional, onde coexistem modelos tayloristas-fordistas, neofordistas e pós-fordistas, variando com os sectores de actividade, as regiões,
os tipos de empresas e as prioridades políticas nacionais e regionais. O
facto de as mais recentes políticas de ensino e formação ao nível secundário
adoptarem como referente principal a retórica pós-fordista, ignorando
geralmente a segmentação que subjaz aos mercados de trabalho nacionais,
vinca a perspectiva de que estamos perante um fenómeno que extravasa
qualquer busca de correspondência entre sistema educativo e sistema
produtivo, surgindo como mais pertinente a perspectiva teórica que afirma
que os governos transfiguram crises económicas e impasses societais em
24 Entende-se aqui por sobrecertificação o desajustamento, ainda que momentâneo e localizado, entre o nível dos
diplomas escolares, elevados, e os tipos e os níveis das qualificações que alguns empregadores procuram e não
203
problemas do foro educativo, tendo em vista, em primeiro lugar, a ocultação,
o adiamento e a superação dessas crises e impasses e, só depois e nem
sempre, o desenvolvimento de condições concretas para erguer uma nova
política de ensino e de formação, com novos contornos teóricos e práticos.
Neste sentido e no quadro de uma crise do Estado e da sua capacidade de
formular políticas educativas alternativas, o discurso modernizador sobre o
pós-fordismo e os requisitos de novas e muito elevadas competências vai
impregnar o discurso político sobre as reformas educativas, transfigurando
flexibilidade produtiva em flexibilidade curricular, e correndo o risco de
aumentar a capacidade de o sistema escolar e o sistema económico
permanecerem desajustados, embora fornecendo porventura ao ensino e à
formação novas possibilidades de seleccionar a minoria de analistas
simbólicos de que carecem os sectores mais modernos e competitivos da
economia capitalista.
Tendo presentes os contributos críticos aqui acabados de mobilizar,
importaria determinar com mais rigor o que é que realmente muda na
evolução recente da relação entre educação e economia e sociedade,
nomeadamente quanto à natureza da produção das qualificações iniciais e
quanto à capacidade de desenvolver perfis de formação mais "sociais" ou
"gerais", aptos a fomentar, mais do que os perfis mais técnicos e
especializados, o desenvolvimento humano em geral e o fomento de certas
atitudes e competências mobilizáveis no exercício profissional e nos novos
contextos produtivos. O fomento de uma nova profissionalidade e de um
desenvolvimento humano global parece querer acantonar-se cada vez mais
no estreito terreno escolar, cada vez mais distante do mundo do trabalho, e,
aí, dentro do terreno escolar, o "novo profissionalismo" parece refugiar-se na
aquisição de saberes "gerais", abstractos e teóricos. Ou seja, é necessário
interrogar este processo de revalorização da formação geral de novas
encontram, geralmente associados a baixas qualificações escolares.
204
competências, que tem em vista reforçar a adaptabilidade e fazer face à
imprevisibilidade profissional, uma vez que ele pode representar pouco mais
do que o regresso a uma formação "liceal", isto é, uma mera adaptação
funcional do sistema escolar aos novos requisitos da economia em rápida
reestruturação, pela adopção de novas modalidades curriculares de
especialização flexível. O reforço do ensino e da formação “geral” poderia
representar, nesta perspectiva, um novo modo de especialização do ensino
secundário, tendo em vista seleccionar o mercado de trabalho primário, tanto
pelas vias liceais como pelas vias técnicas e profissionais.
O tecnico-funcionalismo mantém, no fim da segunda metade do século XX,
um lugar muito importante na legitimação das exigências sociais face ao
sistema escolar e continua a desempenhar um papel central na durabilidade
e na persistência da ideologia das virtualidades económicas da educação,
seja como ideologia determinante para a expansão do sistema seja como
racionalidade central para a sua estruturação, desde os seus objectivos, à
sua organização e ao seu conteúdo. O fomento de um novo profissionalismo
ainda continua a esbarrar com reformas do ensino e da formação que se
nutrem de uma retórica modernizadora, secante com os discursos pósfordistas mais festivos, mas incapazes de sustentarem reformas estruturais
profundas e duradouras do modelo escolar "bancário" (para retomar o termo
de Paulo Freire), fabril e taylorista.
Estes dois passos de leitura teórica do problema de partida, cuja re-leitura
faremos no capítulo sexto, ainda não iluminam suficientemente as questões
da similitude retórica e da simultaneidade temporal que marcam também as
reformas educativas aqui consideradas. Por isso, empreendemos um terceiro
passo que visa proceder a essa tarefa fundamental.
205
3.3. A globalização e o sistema educativo mundial
Assim, é mister enfrentar uma questão recorrente desta investigação e que
consiste
em explicar
o
movimento
de integração curricular e de
desespecialização do ensino secundário, que ocorre sensivelmente ao
mesmo tempo, em vários países da Europa, interrogando agora quer o facto
de ele evoluir dentro de uma aparente convergência internacional quer a sua
"surpreendente homogeneidade" (Meyer,1992a). Porque é que diferentes
países, com culturas nacionais diversas, níveis de desenvolvimento
socioeconómico diferenciados e diferente localização na sociedade mundial
e na divisão internacional do trabalho, se aproximam aparentemente no
modelo de ensino secundário superior que estão a construir, no início dos
anos noventa? Dificilmente se tratará de uma mera coincidência. Há alguns
contributos teóricos que analisam e explicam estes fenómenos, mormente
como pan-dinâmicas estruturadoras dos múltiplos esforços reformadores
empreendidos pelos Estados-nação.
Nesta parte do trabalho vamos mobilizar quer os contributos teóricos que os
institucionalistas propõem para explicar o desenvolvimento dos sistemas
educativos nacionais quer a adaptação ao campo educativo da teoria do
sistema mundial, enunciada por economistas. Adoptando boa parte dos
elementos teóricos propostos por este caminho, o nosso objectivo é o de
construir um quadro próprio de explicação do modo de construção e de
acção do “sistema educativo mundial”. Tal quadro será essencial para a
compreensão das reformas educativas em análise, mormente para a sua
formulação política idêntica e simuntânea, no palco europeu.
Há que recordar, em primeiro lugar, que a análise das reformas escolares
aqui empreendida se limita à sua componente formal e de enunciação
normativa, o que embora não apouque a análise do efeito isomórfico e de
adesão ideológica, constitui apenas um grau, talvez o primeiro, como lembra
206
McNeely (1995), na investigação do impacto do “sistema educativo mundial”
na institucionalização dos sistemas educativos nacionais. Quer a similitude
da retórica subjacente - as exposições de motivos, as contextualizações
sociais e os objectivos gerais - cujos traços principais quase se decalcam de
país para país, quer a simultaneidade da sua enunciação, são factores que
evidenciam, desde logo, não só um relativo consenso ideológico entre
políticas educativas nacionais de diferentes países, mas também um elevado
grau de estandardização de estruturas organizativas e de modelos
curriculares.
Vários autores começam por constatar e sublinhar estas tendências no que
se refere à problemática que nos ocupa neste trabalho, ou seja quanto à
crescente atracção pela formação geral, à integração entre formação geral
académica
e
formação
profissional,
à
desespecialização
e
à
desprofissionalização. Lembremos Lauglo (1983), Inkeles e Sirowy (1983),
Enguita (1986), Keeves (1987), Jallade (1988), Husén (1990), Garcia, Pedró
e Velloso (1992), Pedró (1992), Leclercq e Rault (1992), Kovács (1993),
Papadopoulos (1994) e Rico (1995), para citar alguns. Uma boa parte destes
e ainda outros autores não ficam por aqui e revelam que, ao mesmo tempo,
se processa uma convergência crescente entre os sistemas educativos que
assim se reformam e reordenam.
Torsten Husén denota uma "crescente convergência" entre os três modelos
de ensino e de formação, pelo menos nos países industrializados (1990:40).
Garrido, Pedró e Velloso, no seu estudo sobre a actual evolução da
educação na Europa, referem que as recentes e cautelosas reformas
curriculares que se desenvolveram nos últimos anos, mantendo embora
diferenças institucionais, "aproximaram em extremo" os conteúdos de todos
os alunos do ensino secundário, independentemente da denominação do
centro onde realizam os seus estudos, e concluem que é de prever que o
futuro traga uma maior convergência curricular (1992). Inkeles e Sirowy,
207
apesar de sublinharem a existência de divergências entre as políticas
nacionais de educação nos diversos países, realçam também a tendência
dos sistemas educativos nacionais para a convergência, seja em estruturas
seja
em
práticas
comuns,
rotulando-a
de
"alargada,
profunda
e
frequentemente em aceleração"(1983:303). Outros autores apontam para a
existência de fenómenos de convergência no palco social europeu, por
exemplo ao nível dos sistemas de emprego (Rodrigues,1994), o que nos
conduz à necessidade de considerar a convergência no domínio educativo
num processo social mais amplo.
Dir-se-ía que existe algures um centro emissor e difusor de normas e de
padrões de institucionalização dos sistemas educativos nacionais, que estas
reformas educativas relativas ao ensino secundário tomam como referente
principal, antes de qualquer realidade nacional específica, uma mesma
realidade social geral, a sociedade mundial do fim do século XX. O
referencial em questão existe e é apresentado em múltiplas facetas, desde
as técnicas e económicas, às culturais e humanas, sobressaindo entre elas o
peso avassalador do processo de globalização.
A globalização, um processo multidimensional
Por globalização, os discursos dominantes e mais comuns entendem o
galopante fenómeno de interdependência das economias e dos mercados a
nível mundial, espaço de conflito e de acrescida competitividade no seio da
economia de mercado, cujos efeitos se estendem a todas as áreas da vida
social. A globalização, tanto na sua génese como nos seus efeitos, é
apresentada geralmente como uma inevitabilidade social dos tempos que
correm, uma vez verificada a queda do Muro de Berlim e a derrocada do
bloco económico soviético, uma vez desencadeadas as duas revoluções de
grande impacto social, a das tecnlogias da informação e a dos mercados
208
financeiros, uma vez colocadas as sociedades perante uma combinação
assaz eficiente entre pressões derivadas da expansão dos mercados, das
inovações técnicas e das mudanças organizacionais. Outros autores
destacam também
como parte integrante deste mesmo processo a
galopante competitividade internacional, o desemprego de massa, o
crescimento das desigualdades sociais e da exclusão. Todos verificam, no
entanto, um imenso campo global de estruturas mundiais e entidades
transnacionais, de empresas que operam à escala mundial e de
consumidores que consomem, cada vez mais, "produtos globais", bem como
a proliferação de sistemas de comunicação cultural universal contínua.
É evidente o predomínio da vertente financeira e económica nos discursos
enunciadores da globalização e parece também crescer, como irrecusável, a
perda de poder económico e político nacional, a favor de instâncias de
regulação transnacional. O caso da União Económica e Monetária e a
criação da moeda única e do Banco Central Europeu constituem um exemplo
paradigmático do que acabamos de referir. Para Giddens, "a modernidade é
inerentemente globalizante" (1996:44), e o capitalismo industrial, como
ordem económica, tem tido uma influência globalizadora decisiva e
fundamental. A capacidade do industrialismo em transformar e difundir
universalmente as tecnologias da comunicação condicionou decisivamente
"o nosso próprio sentimento de viver num "só mundo"( Giddens,1996:54). Em
torno da vertente económica formulam-se novos "dogmas", como sejam a
incessante competitividade mundial, o novo modelo de produção flexível, a
inexorável concentração monetária e o incontornável poder dos mercados
financeiros, ou ainda o optimismo emergente das novas tecnologias e é tão
vincada, acrítica e consensualmente que se apresentam os dogmas da
globalização, que há autores que criticamente ousam anunciar que estamos
a assistir, no plano mundial, à formação de "regimes globalitários" (Ramonet,
1997) ou à redução cultural ao "pensamento único" (Morin e Nair,1997).
209
A expansão do liberalismo económico, facilitada como dissemos pela queda
do Muro de Berlim e do império soviético e pela revolução das tecnologias
da informação à escala planetária, dá forma ao rosto mais visível,
predominante e avassalador do processo de globalização. Esta expansão
tende a vincar, por um lado, um efeito homogeneizador, de unificação à
escala planetária, em que parece haver um só mundo e tudo ser
interdependente, e por outro, um efeito de persistência das diferenças e de
fechamento das diversidades sobre si mesmas. A globalização económica e
financeira, representando o motor do processo de globalização, constitui, no
entanto, apenas uma dimensão de um processo multidimensional - cultural,
político, social, estratégico - de elaboração de um conjunto complexo e
civilizado (Morin e Nair,1997).
De facto, a economia contemporânea apresenta-se como um sistema
complexo, que não se pode perceber nem como um simples conjunto de
economias nacionais nem como uma realidade completamente mundializada,
pois
nela
se
entretecem,
de
modo
hierarquizado,
variadas
redes
internacionais, transnacionais, plurinacionais, continentais, regionais e locais
e nela se cruzam diversas actividades económicas muito diferentemente
internacionalizadas. A globalização náo é um "processo total", ou seja,
encontra resistências diversas e muitas restrições em diferentes planos,
desde os internacionais aos locais.
Além disso, a globalização económica não é um processo social circunscrito
ao período posterior aos "trinta gloriosos", antes deve ser analisado como
um movimento que se inscreve tanto num ciclo curto (os últimos vinte anos)
como num ciclo longo (o da evolução do capitalismo nos séc. XIX e XX)
Neste sentido, a globalização é um fenómeno ao mesmo tempo de
continuidade com o passado e de ruptura com o mesmo passado. A
internacionalização das economias iniciou-se há muito tempo e foi-se
intensificando ao longo de muitas décadas. O que é característico dos
210
últimos decénios, anos oitenta e noventa, é a aceleração do processo de
globalização,
em
que
se
destaca
um surpreendente
e
constante
enfraquecimento dos constrangimentos do espaço e do tempo nas
interconexões planetárias. A "revolução" nas comunicações, tendo por base
as novas tecnologias da informação, tem sustentado quer uma inesperada
aceleração da internacionalização de muitas dimensões da vida social,
incluindo as relações económicas, tecnológicas, ideológicas, políticas e
culturais quer uma maior interdependência entre elementos aparentemente
dispersos, como salienta Stewart (1996), tais como o comércio de capitais,
os investimentos multinacionais e os elementos ideológicos.
Assim, a globalização pode também ser definida como "a intensificação das
relações sociais de escala mundial, relações que ligam localidades distantes
de tal maneira que as ocorrências locais são moldadas por acontecimentos
que se dão a muitos quilómetros de distância, e vice-versa" ( Giddens,
1996:45) e ainda como a aceleração das relações globais de interconexão
mundial nos campos da comunicação social e a harmonização transnacional
dos modelos e das estruturas sociais (Schriewer,1995). Dir-se-ía que emerge
um objecto novo, em cada quotidiano social local e em quase todas as
sociedades, e esse objecto é o mundo, o globo, a escala planetária ou o
espaço mundial, como dizem Edgar Morin e Sami Nair (1997). Neste
processo, tanto a construção de sentido, em termos individuais e sociais,
como a sua apreensão, fazem parte cada vez mais de uma dinâmica que
opera dentro de um fluxo permanente entre o local e o global, de difícil
discernimento individual e societal.
A globalização como fenómeno social reveste-se de um conjunto de
características e de padrões de pensamento e de acção que, de facto,
influenciam de modo incisivo e alargado os modos de pensar e de agir,
mesmo que local e individualmente. Existe mesmo um certo fascínio e uma
atracção cultural em torno do que é mundial e global. Há e sempre terá
211
havido, aliás, um encanto humano em redor do universal e do global,
compreensível face à natureza passageira, única e mortal do ser humano;
há, por isso, muita disponibilidade humana para acolher o que nos supera
muito, o que é muito mais largo e muito mais alto, o que tem muito mais
brilho nos meios de comunicação social mundiais, os produtos globais, os
discursos globais, quaisquer enunciados globais, tudo isto atrai e inebria
como se fosse uma espécie de fonte suplementar de vida que povoa e enche
um imaginário sedento e, quantas vezes, interrogador e sem respostas,
vazio, como o enfatiza Lipovetsky. Neste sentido, a globalização como
ideologia, mesmo na sua vertente mais dura de mercado neo-liberal, nutrese também da transacção deste imaginário que, como qualquer senso
comum, possui uma poderosa força persuasiva, que dispensa e aniquila
argumentos, repetindo palavras-slogans até à exaustão e escondendo
continuamente os seus múltiplos sentidos.
A globalização é, pois, um processo que ultrapassa muito uma dimensão
económica restrita. Tomando por base um contributo de A. Little (1996), os
padrões de globalização podem dividir-se em três categorias principais (ver
Quadro 3.2). Esta categorização tem a vantagem de sublinhar a
pluridimensionalidade da globalização e a vasta gama dos seus efeitos.
Entre os que mais se poderão mobilizar nesta investigação, será útil reter
três: o global passa a constituir um importante referente de análise, de
pensamento e de acção; assiste-se a uma forte reestruturação do lugar e do
papel do Estado-nação; a ideologia da globalização possui um forte impacto
sobre o regional e o local, produzindo novas tensões e reconstruções
sociais.
212
Quadro 3.2.
Dimensões do processo de globalização
Dimensões económicas da globalização
• Mercados
financeiros
instantâneos,
descentralizados e “menos estatais”;
• Redução
do
investimento
directo
estrangeiro ao mínimo;
• A importância económica e produtiva de
uma dada localidade é determinada pelas
suas vantagens físicas e geográficas à
escala internacional;
• Liberdade de troca entre localidades, com
fluxos determinados;
• Aumento do livre movimento do trabalho.
• Flexibilização dos locais de produção.
Dimensões políticas da globalização
• Crescimento de múltiplos centros de
poder aos níveis global, intermédio e
local e perda de soberania do Estadonação;
• Análise de problemas locais tendo como
referente a comunidade local;
• Predomínio de poderosas orgnaizações
internacionais
sobre
organizações
nacionais;
• Fortalecimento de valores políticos
comuns e globais e enfraquecimento do
valor atribuído ao Estado-nação;
• Centralidade nacional das questões do
Estado e do modelo social.
Dimensões culturais da globalização
• Mosaico religioso desterritorializado;
• Alargado consumo de “produtos globais”
e de simulações e representações
globais;
• Distribuição global “on-line” de imagens e
de informação;
• Mundialização acelerada da iedologia da
modernização, após a queda do Muro de
Berlim e do império soviético;
• Crescimento do multiculruralismo em
cada local do mundo.
•
Fonte: Adaptado a partir de Angela Little (1996:428).
No intuito de centrar esta abordagem no terreno da nossa reflexão podemos
dizer que a globalização afecta a educação escolar no plano nacional e que
213
a educação escolar nacional afecta o processo de globalização, como aliás
sublinha Stewart (1996). É comummente aceite que o desenvolvimento da
educação e da formação em cada país, ao longo do tempo, afecta a
produtividade do trabalho e, desse modo, a capacidade dos diferentes
países cooperarem e competirem nos mercados internacionais. Além disso,
os sistemas nacionais de educação e de formação evoluem em grande parte
sob o impulso da evolução dos ciclos económicos e por ajustamento às
forças do mercado e estes processos estão cada vez menos dependentes de
políticas económicas configuradas nos planos nacionais, como bem se pode
verificar no caso europeu e na construção da União Económica e Monetária.
Mas, por outro lado, o nível de desenvolvimento educacional da população
de um dado país afecta de igual modo a capacidade dos países competirem
internacionalmente, uma vez que essa característica condiciona fortemente a
atracção da tecnologia e do capital internacional. O baixo custo da mão-deobra não é factor de competitividade internacional se o nível geral de
educação e de formação da população não for elevado. Se este nível já era
um factor crítico no plano do desenvolvimento nacional, é agora um factor
determinante no contexto de uma economia globalizada, onde se esboroam
constrangimentos
de
espaço
e
de
tempo,
seja
em
países
em
desenvolvimento seja entre países desenvolvidos. O processo social de
globalização é agora parte integrante dos sistemas educativos locais e a sua
evolução dificilmente se compreenderá em termos meramente locais e
nacionais.
Por outro lado, o processo multifacetado da globalização, conduzido pelas
empresas mais competitivas, num contexto de aceleração da concorrência
internacional, também engloba necessariamente uma face oposta, não
competitiva, contribuindo desse modo para acentuar a dualização social. O
processo
de
globalização
surge
como
mais
homogeneizante. Como lembra António Teixeira
dualizante
do
que
Fernandes, os que não
acedem ao mercado de trabalho altamente competitivo, em condições de
214
nele singrar, “situam-se com um nítido défice de relações sociais e de
sentido” (1998 : 28).
A ideologia da globalização em cujo lastro vivifica a já referida ideologia das
competências, segundo este sociólogo, “reforça o carácter meritocrático das
nossas sociedades e acelera o apelo aos mecanismos individuais de
mobilidade social” (1998 : 28). Os mais competentes são os que obtêm os
melhores empregos e, no limite, os competentes são os que obtêm emprego,
o que não só radicaliza o fosso entre os diplomados pelos mais altos títulos
escolares e os que abandonam o sistema escolar, seja precocemente seja
ao longo do percurso, mas em níveis não superiores, como acentua o nível
de competitividade dentro do sistema escolar. A ideologia das competências
não faz parte, como dissemos acima, de um discurso político neutro acerca
da educação.
Tendo presente este elemento central constitutivo da contemporaneidade e
dada a importância de que se reveste o verificado consenso ideológico
internacional, como parte integrante das reformas educativas nacionais,
torna-se necessário interrogar mais profundamente, à luz dos contributos
das ciências sociais, a interdependência transnacional no campo da
educação.
A educação, uma instituição mundial
Saltam à vista de qualquer observador atento às problemáticas da educação
escolar não só as diferenças mas também as semelhanças entre os sistemas
educativos
dos
diferentes
países
europeus.
As
suas
principais
características são, aliás, bastante idênticas em qualquer parte do mundo. A
educação é, como sintetiza Hüfner, uma instituição mundial (1992). Para lá
da simples evidência,vários estudos de âmbito internacional têm concluído
que existe uma efectiva tendência entre as nações e os sistemas educativos
215
nacionais para convergir para estruturas e práticas comuns. Segundo Inkeles
e Sirowy (1983), esta tendência é vasta e profunda. Apesar da diversidade
de culturas e sociedades humanas, os investigadores podem deslocar-se por
todo o mundo e estudar um dado grau ou nível educativo, pois como lembra
Hüfner, há "uma redução da complexidade humana, construída sobre a base
de ideias científicas racionalistas"(1992:367).
Nos últimos dois séculos desenvolveu-se um modelo de escola moderna de
relevância mundial, um subsistema adoptado por qualquer país em processo
de modernização, um modelo transnacional e universalmente aplicável
(Hüfner,1992). A emergência destes sistemas escolares modernos inscrevese numa dinâmica histórica de longa duração.
O conceito de "longue durée", que F. Braudel expôs num célebre artigo de
1958, na tradição dos pioneiros da escola dos Annales, opunha ao
acontecimento, que remetia para o tempo curto, a "mais enganadora das
durações", o modelo do tempo longo, o das décadas e dos séculos, o tempo
das inércias, das resistências e das "prisões de longa duração". Este último
era o tempo próprio da história, o único capaz de apreender a quase
intemporalidade das mentalidades e dos comportamentos humanos e os
seus mitos. Como lembra M. Vovelle (1978), a história política vai
abandonando a trama dos acontecimentos para poder formular os problemas
sociais que só se concebem na duração, nomeadamente o problema do
Estado.
A história económica foi pioneira na fuga à prisão do tempo curto do
acontecimento e propôs uma modulação em três níveis: o tempo curto das
crises, o tempo médio dos interciclos e o tempo longo da “longa duração”. No
plano da história social este modelo revelava-se pouco útil ao não dar
suficiente conta da multiplicidade de tempos que se cruzam e entrelaçam no
tempo histórico, o que constituiu um apelo à redescoberta do acontecimento
216
numa outra relação entre o tempo curto e o tempo longo. No dizer de P.
Vilar, do "tempo medianamente longo".
O moderno modelo de educação escolar é um sistema histórico que se
inscreve na longa duração e que resulta do entrelaçar de tempos históricos
económicos, políticos, sociais e culturais não isoláveis e que se desenvolveu
ao longo dos últimos duzentos anos, a partir da Europa. Se o
desenvolvimento económico se tornou factor de propagação deste modelo,
como referimos, a evolução sociopolítica e das mentalidades constituiu
importante factor da sua lenta e contínua adopção em todo o mundo.
Inkeles e Sirowy (1983) sustentam a sua análise das tendências de
convergência e de divergência entre os sistemas educativos na observação
dos padrões de mudança, ao longo do tempo, em várias dimensões,
verificando que ora a mudança é lenta, ora é rápida, ora ela é convergente,
ora divergente, fazendo lembrar a expressão de Braudel da história
"sinfónica", onde os diferentes ritmos de mudança se entrelaçam num todo
convergente ou na manifestação das divergências.
A teoria do sistema mundial
Alguns autores mobilizam o conceito teórico de sistema mundial para
explicar os processos de homogeneização acima referidos. As estruturas e
práticas comuns aos vários sistemas de educação escolar pelo mundo fora
fazem parte do sistema mundial moderno e seguem basicamente um modelo
transnacional global de tipo moderno de educação (Adick,1993; Hüfner,
Meyer e Naumann,1992). As ciências sociais identificaram e estudaram o
sistema mundial como uma unidade de análise: ele abarca mais do que
qualquer sociedade organizada estatalmente, contém uma dinâmica histórica
e uma lógica em si mesmo, a qual não se pode deduzir das suas partes
217
componentes.
O sistema mundial de que falamos, na esteira dos estudos económicos de
Wallerstein, é um subsistema histórico que se tem desenvolvido em torno
quer da expansão de um sistema de produção transnacional mundial, o
mercado mundial capitalista, quer da expansão do modelo sociopolítico do
Estado-nação. Esta evolução transporta em si modelos culturais mundiais
entre os quais se destaca o moderno sistema de educação escolar. Este
sistema mundial tem a força do espaço mundial e o peso da longa duração, o
que, pelo menos aparentemente, é suficiente para, com o tempo, neutralizar
eventuais
divergências
ou
tentativas
para
afirmar
vias
educativas
alternativas.
Assim, cada sistema educativo moderno só se chega a compreender à luz do
"sistema mundial moderno". Todas as sociedades que se modernizam
adoptam subsistemas de educação escolar de contornos semelhantes.
Verifica-se
a
existência
de
uma
tendência
secular,
historicamente
prolongada, para o desenvolvimento de sistemas escolares nacionais e com
características estruturais semelhantes (Adick, 1993: 401).
No entender da mesma autora, a expansão da escolarização no Terceiro
Mundo esteve ligada às esperanças gerais em vencer os desafios do
desenvolvimento, mediante o investimento na alfabetização e no ensino. Ao
fazê-lo, cada país passava por um processo de adaptação local a uma nova
situação, esta com características transnacionais, e esta adaptação não
podia deixar de se inscrever numa passagem dos sistemas de educação prémodernos para os sistemas de educação modernos. A novidade da
educação moderna generalizada não é a adopção de um sistema de
instrução formal mas sim "uma nova qualidade da escolaridade, como parte
de um projecto de desenvolvimento nacional num contexto mundial novo"
(Adick, 1993:409).
218
Christel Adick, na mesma linha da equipa de Stanford, constituída por Boli,
Meyer e Ramírez, sublinha que aquilo que a educação é (a sua ontologia), o
modo como se organiza (a sua estrutura) e aquilo por que tem valor (a sua
legitimidade) são características que evoluem primeiramente ao nível da
cultura mundial e dos sistemas económicos mundiais (Adick, 1993:398). A
escola moderna segue um modelo global, um modelo internacionalmente
válido para os sistemas educativos organizados pelos Estados-nação. O
modelo transnacional de tipo moderno de educação -que se opõe a qualquer
tipo pré-moderno de educação e de instrução- expandiu-se em todo o mundo
e conduziu à estruturação de sistemas nacionais de educação escolar muito
similares, unificados e sistematizados.
John Boli e Francisco O. Ramirez, da Universidade de Stanford, têm
estudado em particular a disseminação do modelo de institucionalização
escolar. As características estruturais deste modelo são, em sua opinião:
- uma organização administrativa geral fundada e controlada pelo
Estado;
- um sistema escolar internamente diferenciado segundo níveis
sucessivos, cursos e correspondentes exames finais;
- a organização do processo de ensino e aprendizagem na sala de
aula, em função de distintos grupos etários e de unidades de tempo
uniformes;
- a regulação governamental ou pública de tais processos de ensino e
aprendizagem, através de requisitos inscritos em programas, directivas e
provas de exames;
- a edificação de papéis distintos para professores e alunos e a
profissionalização dos professores e dos métodos de ensino;
- o uso de certificados, diplomas e credenciais para ligar as carreiras
escolares com as carreiras ocupacionais, conectando a selecção escolar
com a estratificação social (Schreiwer, 1995).
219
Estes sistemas escolares têm revelância mundial, por três motivos: porque
são uma componente do sistema mundial moderno e um subsistema de
qualquer país em modernização; porque as suas principais características e
funções sociais são relativamente inespecíficas do ponto de vista cultural e
são uniformes em todo o mundo; e porque este modelo de escola moderna,
novo, moderno e universalmente aplicável, é e será de longa duração (Adick,
1993).
Os esforços nacionais e historicamente situados de desenvolvimento
económico e social são eles próprios processos de inscrição em tendências
mais pesadas das sociedades e das economias mundiais. Do mesmo modo,
as
mudanças
operadas
nos
sistemas
educativos
dos
países
em
desenvolvimento, são eles mesmos processos de integração na sociedade
mundial moderna. Assim, os processos nacionais de reforma educativa são,
em geral, processos de aproximação, e não de distanciamento, às
caracteristicas e às virtualidades da "instituição educativa da sociedade
mundial". Nesta óptica, as próprias disparidades que existem nos sistemas
educativos, os seus impasses ou conflitos mais importantes, não serão tanto
fenómenos locais e parciais, mas elementos de um “sistema educativo
mundial” hierarquizado. Estes processos são conflituosos e traduzem-se
normalmente pela dominação de um mesmo e "universal" modelo de
escolaridade:
sistemas
escolares
gerais,
selectivos,
normalizados,
profissionalizados, controlados pelo Estado, hierarquizados em diplomas e
certificados.
Assim, as já referidas características estruturais da escola moderna
espalham-se por todo o mundo; produz-se um "discurso escolar mundial"
que influencia as unidades sociais que operam em níveis inferiores - Estado,
empresas, partidos políticos, associações de professores e de pais,
comissões de reforma, grupos sociais-, amarrando-as ideologicamente de tal
modo que elas não actuam independentemente deste discurso. Aliás, a
220
relevância mundial deste discurso aduz evidência local à acção destes
agentes sociais.
A aparição, adesão e expansão da cultura política mundial que favoreceu a
emergência do Estado-nação e que provocou a escolarização de massas
não pode ser considerada uma inevitabilidade histórica, mas antes uma vaga
de fundo de reestruturação cultural do Ocidente que, durante décadas, ao
longo do séc.XIX e XX, reordenou a vida pública. Neste reordenamento
desempenhou papel preponderante a adopção, lenta mas contínua, nação
após nação, por imposição ou por cópia, "dos princípios do Estado-nação
territorial e da cidadania individual" (Ramírez e Ventresca, 1992:126); aos
sistemas nacionais de educação escolar coube a especial missão social de
veicular estes mesmos princípios, consagrando um modelo dominante de
modernidade. Explicitemos, antes de mais, em que quadro vamos considerar
este processo de tensão e conflito, de imposição e de resistência, de
imitação e de autonomia.
Convergência e divergência
A teoria da convergência, segundo Halls (1990), é uma permissa da
Educação Comparada e constitui uma especificidade sua, uma vez que lhe
pertence exclusivamente25. Segundo esta teoria, aplicada às relações
educacionais internacionais, quanto mais numerosos forem os contactos
internacionais entre os vários países do mundo, maiores são as perspectivas
destes países virem a cooperar e a consentir abandonar a sua autonomia
cultural. Os acordos de cooperação bilateral e multilateral, os tratados da
União Europeia e os acordos para o reconhecimento mútuo de diplomas são
alguns dos exemplos que ilustram a convergência de interesses e o seu
25 A exclusividade não pertencerá à Educação Comparada mas a todas as áreas do conhecimento científico que se
sustentam em boa parte na comparação e nos estudos internacionais.
221
contributo para uma crescente harmonização entre os sistemas educativos
dos vários países. Os exemplos são mesmo numerosos e as evidências
parecem, de facto, convincentes.
Os institucionalistas John Meyer e David Kamens diziam que os sonhos de
raíz nacional, pelo mundo fora, são mais homogéneos na sua celebração da
modernização económica do que na sua valoração das tradições políticas e
culturais específicas (1992a). O mesmo autor sublinha que o modelo
moderno de educação escolar, sendo tão necessário como instrumento do
progresso individual e social, é adoptado onde o progresso tem lugar e será
adoptado onde o progresso for um objectivo importante ou principal, ou seja,
em todo o mundo, actualmente.
A concepção moderna de "sociedade", como um emaranhado de acções
individuais interdependentes, assenta em grande parte nas disposições e
capacidades dos indivíduos e na ideia de que do seu aperfeiçoamento e
desenvolvimento resultará o desenvolvimento social. Tal ideologia contribuiu
decisivamente para uma programação educacional racional, promovida
crescentemente pelo Estado, em que o desenvolvimento humano é assistido
por um sistema racional que melhora o desempenho pessoal, social e
produtivo dos indivíduos. Por isso, a educação de massas faz parte
integrante do modelo básico da modernidade, como refere Meyer (1992a).
A expansão da educação escolar vai-se tornando um investimento social de
primeira importância em todo o mundo, com base numa série de relações
causais que, mais do que sustentadas em qualquer evidência real, são
supostas. Entre elas podem elencar-se: adultos educados geram mais
desenvolvimento social; crianças e jovens mais educados diminuem os
riscos quer de doença quer dos acidentes rodoviários ou da gravidez das
adolescentes; mais qualificação profissional acarreta melhor inserção
profissional e mais fácil acesso ao emprego; sistemas de ensino selectivos
são
considerados
desigualitários
e
sistemas
"compreensivos"
são
222
considerados mais democráticos; não há desenvolvimento económico sem
recursos humanos qualificados pelo sistema escolar; a produtividade do
trabalho evolui à medida que evolui a qualificação dos recursos humanos
das empresas; a aplicação das novas tecnologias nas empresas requer uma
mão-de-obra muito qualificada.
A evidência destas relações causais tem-se revelado, em geral, de difícil
prova. No entanto, à medida que os países mais desenvolvidos (do centro)
adoptam
certas
medidas
e
essas
medidas
se
apresentam
como
convergentes entre si, cria-se um poderoso factor de homogeneização
mundial. Se faltam provas para a proliferação de tantas evidências, no plano
internacional, em torno dos impactos da educação escolar sobre o
desenvolvimento pessoal e social ou a igualdade de oportunidades, sobre a
produtividade das empresas, sobre os níveis de participação social ou ainda
sobre a humanização da sociedade, também se torna difícil, como referimos,
a sua recusa social e política, no plano nacional, pois sobejam vantagens
para a cópia dos modelos dos países mais desenvolvidos e com melhor nível
médio de rendimento.
No entanto, sem negar a existência desta convergência, Inkeles e Sirowy
(1983) e Scott e Kelleher (1996) alertam, de modo muito pertinente, para a
necessidade de se aprofundar este conceito. Na perspectiva destes autores,
o facto de existir um movimento comum direccionado para o mesmo ponto,
não equivale, ipso facto, à existência de convergência entre os países. No
seu entender, a semelhança entre os sistemas educativos nacionais diz
pouco acerca da convergência entre eles, ou seja, acerca da movimentação
de diferentes posições em direcção a um ponto comum, como se se
registasse uma muito pequena variação em torno da tendência central.
Ora, predominantemente sustentada na observação empírica, a noção de
convergência explica como se caminha da diversidade para a semelhança,
tanto do ponto de vista institucional como no plano dos valores ou das
223
atitudes. As análises que são fomentadas sob a protecção desta perspectiva
teórica estendem-se desde os elementos das organizações sociais mais e
menos convergentes, aos factores que facilitam os movimentos de
convergência e até à medição dos padrões de convergência.
Mas a análise a que aqueles primeiros autores procederam sobre os padrões
de mudança, em redor de um conjunto de dimensões -natureza e ambições
da educação, estrutura organizativa, demografia, administração e finanças e
dinâmicas interpessoais e institucionais- permitiu-lhes concluir que todas as
nações se movimentam em direcção a novos estandardes e que, ao mesmo
tempo, permanecem dispersas em redor da nova norma, tal como o estavam
à volta da anterior. Também se constatam movimentos em que os sistemas
divergem mais do que convergem, com a passagem do tempo.
Operam, assim, em nosso entender, duas forças contrárias. A convergência
é favorecida, no campo da educação, pela pressão de outros elementos do
sistema social, nomeadamente pelo desenvolvimento da economia e pelo
seu peso avassalador no espaço mundial e pelo enorme poder disseminador
da "opinião" da elite internacional - líderes políticos, peritos, agências
internacionais e consultores técnicos. A divergência, por sua vez, é
alimentada seja pelas diferenças no nível de desenvolvimento económico ou
na diferenciação de sistemas políticos (é o caso da Espanha e de Portugal,
na Europa, longamente sob o efeito social da ditadura), seja pela
persistência de valores e de tradições históricas com expressão social
coerente e formal ou ainda pela disparidade dos recursos disponíveis e
afectos à educação escolar. Todavia, nem a noção de convergência nem a
noção de divergência dão suficientemente conta de um dado fundamental da
actual realidade social europeia, elemento este que Scott e Kelleher (1996)
identificam do seguinte modo: os sistemas nacionais de educação europeus
estão a percorrer, com soluções diversas, caminhos de resposta a um
conjunto comum de pressões e problemas. Dir-se-ia que em três importantes
224
canais por onde pode circular a convergência entre os sistemas educativos
dos diferentes países, como são (i) as pressões políticas ao nível da União
Europeia e a sua influência sobre as reformas nacionais, (ii) as
subsequentes mudanças efectivas nas políticas nacionais de ensino e de
formação e (iii) as reais adaptações nas estruturas dos sistemas educativos
nacionais, se verificam movimentos simultâneos de convergência e de
divergência, que evoluem de uma maior convergência para uma maior
divergência, à medida em que se analisam os três tipos de veios referidos
pela ordem assinalada. É necessário, por isso, formular uma teoria mais
geral que explique o que estas duas não chegam a entender.
Jürgen Schriewer, na linha da já assinalada teoria da "coerência societal",
propõe muito oportunamente a mobilização do conceito de reinterpretação
nacional ou local. Apesar de sublinhar o elevado grau de estandardização
global que se atingiu nas estruturas organizacionais, nos modelos políticos e
nos discursos reformadores, Schriewer sugeriu, mais recentemente, uma
leitura mais atenta da reinterpretação nacional das "orientações" do sistema
educativo mundial. No seu entender, vários estudos comparados permitem
afirmar que existe também uma significativa interdependência intra-nacional
entre padrões nacionais específicos. Estas interdependências desenvolvemse como "redes de interconexão que, permanecendo consistentes intranacionalmente,
variam
significativamente
quando
examinadas
inter-
nacionalmente" (Schriewer, 1995: 19).
Um exemplo destas interdependências entre padrões nacionais específicos:
os que operam entre a organização do trabalho industrial ou a estrutura das
qualificações da força de trabalho e a mobilidade e a progressão nas
carreiras. Aliás, Schriewer foca especificamente as pesquisas relacionadas
com as interconexões entre os sistemas de ensino técnico e profissional, a
estrutura das qualificações da mão-de-obra e a organização do trabalho,
225
para assinalar que o ensino técnico e profissional e a utilização do trabalho
humano
"são,
mesmo
dentro
de
sociedades
industrializadas
tecnologicamente avançadas, definidas em larga medida, por factores
societais e culturais" nacionais.
Podemos referir, em particular, as estruturas das qualificações, que são em
boa medida construções sociais locais, e o modo como estas são
mobilizadas pelos empregadores. Primeiramente, o modo como são
definidas é profundamente afectado pelo menos por três factores: as crenças
dos diferentes tipos de empregadores acerca da eficácia de diferentes
formas de organização do trabalho, a capacidade das organizações
representativas
dos
trabalhadores
influenciarem
a
produção
das
qualificações e as características dos sistemas educativos nacionais, eles
próprios influenciados pelas políticas dos governos nacionais. Em segundo
lugar, o modo como são empregues depende muito de múltiplos factores,
com destaque para o tipo de organização do trabalho, onde a estrutura
orgânica das empresas difere muito, atribuindo-se papéis diferentes a
categorias profissionais igualmente designadas.
O caso mais vezes apontado na literatura ocidental europeia é o da
comparação entre empresas industriais da França e da Alemanha, tomando
por base empresas do mesmo ramo de actividade, com o mesmo tamanho, o
mesmo
tipo
de
produção e de tecnologias e sujeitas à mesma
competitividade nos mesmos mercados. Acontece que elas estruturam a sua
força de trabalho e organizam-se "de acordo com distintos padrões nacionais
de organização empresarial e de divisão do trabalho" (Schriewer,1995:19).
Manifestam-se, assim, culturas de empresa e modos de estruturação do
mercado interno de trabalho que são nacionalmente divergentes. Os
sistemas nacionais de educação e formação operam, neste contexto, como
subsistemas "largamente autónomos, que constroem o seu meio social e
induzem outros subsistemas à adaptação". É o caso do sistema de formação
226
profissional dual na Alemanha e da formação profissional de base escolar
em França.
Como assinalamos atrás, já Maurice, Sellier e Silvestre (1982) tinham
identificado, estudando os mesmos países, a importância dos diferentes
"espaços de qualificação" como jogos de interdependências entre processos
sociais de socialização, de organização e de regulação, que contribuem para
configurar diferentemente os papéis e as acções dos actores sociais.
Maurice (1989) e o grupo de sociólogos de Aix-en-Provence tinham
mobilizado o conceito de "coerência societal" (retomado depois por muitos
autores, por exemplo, por Plantier,1990) para o estabelecimento de critérios
de comparabilidade internacional, nomeadamente no campo da educação e
da formação. Também Michel Piore e Charles Sabel, ao analisarem o modo
como os EUA, a Alemanha, a França e o Japão reagiram em termos
económicos, no rescaldo da II Grande Guerra, constatam que estes países
progrediram em termos tecnológicos e produtivos na mesma direcção, mas
não convergiram pelo menos num domínio, a saber, o modo de organização
do trabalho (1989:212). Estes diferentes modos de organização foram
ditados, em seu entender, por compromissos diversos que variaram segundo
a experiência que cada país fez da guerra, da inflação e das ameaças de
crise económica.
Boaventura Sousa Santos também referia, em 1985, que "a inclusão de uma
dada
sociedade
numa
categoria
transnacional
deve
acautelar
a
especificidade do processo histórico de cada sociedade. Pese embora o
impacte globalizante da lógica do sistema mundial, as diferentes sociedades
evoluem segundo processos históricos diferentes, obedecendo a ritmos e
direcções também diferentes" (1985:873). O mesmo autor acrescenta que
esta lógica global se alimenta dessas diferenças localizadas em diferentes
segmentos do sistema. Ora, consideramos que nesta análise é pertinente
argumentar que a evolução - os ritmos, as direcções - destas diferenças
227
localizadas se alimenta também da mesma lógica global.
É certo que diferentes sociedades, quando atravessadas por um corte
temporal semelhante, podem apresentar soluções ou características apenas
aparentemente
idênticas,
mas
com
"significados
sociológicos
muito
distintos", como adverte Boaventura Sousa Santos (1985:873). No caso
vertente, diferentes reformas educativas que ocorrem no espaço social
europeu, num corte temporal idêntico, em nível educativo e formativo
semelhante, apresentam necessariamente, sob uma aparente similitude,
diferenças historicamente sustentadas. Todavia, ao mesmo tempo, a
similitude e a simultaneidade evidenciadas revelam também uma construção
operada sob o ritmo e a direcção de modelos educacionais transnacionais.
Dois outros campos de estudo onde se pode proceder à mesma leitura são o
que analisa as relações entre educação, modernização e desenvolvimento e
o que advoga a prevalência global do modelo pós-fordista. Quanto ao
primeiro: apesar de um linearismo reinante, as relações entre estas
conexões não são nada mecânicas, mas, pelo contrário, bastante
problemáticas, como já largamente demonstrámos. A educação é vista
nesses estudos como simultaneamente determinada e determinante na
sociedade em que se insere (p. ex. Fagerlind e Saha, 1985). Uma instituição
de modernização como a "escola moderna" não arrasta linearmente, como o
sugerem os defensores de uma racionalidade universal adstrita ao
industrialismo e de todo o tipo de funcionalismos, nem valores modernos,
nem comportamentos modernos, nem desenvolvimento económico. Como
Schriewer sublinha, não há determinantes universais; os processos
históricos são "demasiado numerosos, demasiado complexos e, com efeito,
demasiado independentes uns dos outros", o que questiona fortemente todas
as teorias de validade universal, sejam elas a da modernização, a da
dependência, o funcionalismo estrutural ou o marxismo (Schriewer, 1995:20).
Quanto ao segundo: como já esclarecemos, a teoria da implantação global
228
do modelo pós-fordista de produção, como discurso resultante de um
consenso geral e abstracto, com real força mobilizadora da acção política no
plano das nações, esbarra com imensas manchas, mesmo no palco europeu
e nos seus países mais desenvolvidos, onde prevalece um sistema local de
produção taylorista, por vezes profundamente desfasado em relação à
ideologia dominante, manchas estas todavia cada vez mais incluídas
funcionalmente numa economia de mercado globalizada.
Estas pesquisas nos campos sociais e educativos evidenciaram, assim, o
contraste entre a difusão e a adopção global de modelos educacionais transnacionalmente estandartizados e a persistência de variadas redes de
interconexão socio-cultural nacional e local. O caso da expansão do modelo
da Universidade Europeia é, talvez, o mais convicente. Ele desenvolveu-se
por todo o mundo, sem alternativas. No entanto, à medida que se alarga e
desenvolve,
também
diverge
nacionalmente,
em
vez
de
convergir
crescentemente. Tal fenómeno radica, para Schriewer, nos "procedimentos
de reinterpretação e de adaptação promovidos por grupos culturais e
nacionais receptores" (1995:20). Em cada novo meio e à medida que as
instituições do ensino superior perdem o seu carácter fortemente elitista, os
modelos veiculados transculturalmente, são seleccionados, reinterpretados e
reelaborados de acordo com interesses localmente prevalecentes, com
necessidades específicas, segundo "linhas de cultura" e "lógicas de
adaptação" diferenciadas.
Retemos, assim, para o âmbito deste trabalho, a complexidade inerente ao
desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais, considerando-os parte
importante da construção europeia da modernidade. Regista-se, por um
lado, a pertinência da teoria do sistema mundial, ao valorizar a acção de
modelos educacionais transnacionais como modelos culturais globais,
internacionalmente válidos, veiculadores e veiculados não só pelo sistema
de produção transnacional mundial, a economia capitalista, como também
229
pela expansão do modelo socio-político do Estado-nação e por uma
multiplicidade de pressões, que analisaremos mais pormenorizadamente de
seguida. Por outro lado, anota-se a importante observação dos limites de um
universalismo linear e determinista, uma vez que persistem fortes
"coerências
societais"
que
configuram,
no
espaço
nacional-local,
assinaláveis divergências no seio da constatada convergência, resultantes
de um labor de reintrepretação nacional-local promovido tanto pelos
decisores políticos como pela jogo dos actores sociais. Convergência e
divergência são, assim, dinâmicas sociais simultâneas, ora mais ou menos
conflituosas entre si.
A construção e a acção dos modelos educacionais transnacionais
Para a economia desta investigação importa ainda questionar de modo muito
particular o conceito de “sistema educativo mundial”, o que faremos
recorrendo a alguns contributos das abordagens sistémicas dos sistemas
sociais.
Como definição de sistema, consideramos aqui mais pertinente a adopção
de uma perspectiva lata que o caracteriza como um conjunto de dimensões
ou variáveis que são dotadas de autonomia e que simultaneamente
interagem entre si, interligando-se por um conjunto de relações. Outras
visões, que o entendem como totalidade organizada por elementos solidários
que podem definir-se apenas uns em relação aos outros, aplicam-se mais
dificilmente à análise das interelações presentes no sistema educativo
mundial.
Um sistema, mormente um sistema social, pode definir-se em torno de quatro
pilares principais e pode descrever-se sob dois principais ângulos, um
estrutural e outro funcional.
230
Quanto aos pilares eles são: a interacção entre as dimensões que compõem
o sistema; a globalidade, uma vez que o todo não é redutível às partes e
estas só se compreendem, no todo ou em parte, inseridas no todo; a
organização, que abarca os processos pelos quais as variáveis se reunem,
combinam, ordenam e optimizam; e a complexidade, pois existem sempre
múltiplas combinações entre os elementos e a incerteza paira sobre os
modos como elas se estabelecem, em cada momento.
O sistema educativo mundial, como modelo sociocultural transnacional, que
se espalha, copia e impõe em todo o mundo, compreende um conjunto de
dimensões cuja identificação provisoriamente situamos em torno das sete
seguintes: a expansão da escolarização de massas no Estado-nação, a
expansão da ideologia da modernização e do progresso, a externalização
dos sistemas educativos nacionais, a globalização económica, cultural, e
política, o sistema de comunicação científica, a acção das organizações
internacionais, a educação comparada e internacional.
Antes de as descrevermos, importa ainda referir que este sistema, sob um
ângulo estrutural, deve comportar um certo território delimitado ou fronteira,
um conjunto de dimensões bem identificadas e analisadas, uma rede de
intercomunicações e centros de armazenamento e alimentação do sistema.
Sob um ângulo funcional, o sistema pode analisar-se sob a perspectiva dos
diferentes fluxos que circulam nas redes de ligação, sob a perspectiva dos
centros de decisão e de regulação dos fluxos, sob a óptica das modalidades
de retroacção que permanentemente alimentam a decisão e ainda quanto
aos tempos de intercomunicação e decisão.
O sistema educativo mundial é um sistema aberto, em que interagem o
conjunto de dimensões acabado de identificar, que deve ser considerado
uma unidade pertinente de análise dos fenómenos educativos nacionais e
locais. Vejamos, em primeiro lugar, cada uma destas dimensões e algumas
231
das suas interacções para, na sequência, procedermos à sua abordagem
mais global.
A consolidação do Estado-nação e a expansão da escolarização de
massas
Podemos partir de um dado de base já explicitado: desenvolveram-se em
todo o mundo sistemas de educação escolar que seguem uma matriz muito
semelhante. Eles são, na sua grande maioria, controlados pelos Estados
nacionais,
declarados obrigatórios e seguem um modelo transnacional
moderno de educação, que se vem sobrepondo lentamente, durante
décadas e décadas, a todas as formas pré-modernas ou não formalizadas de
educação.
Durante algum tempo defenderam-se teorias que ancoravam o incremento
dos modernos modelos de educação escolar quase exclusivamente no
industrialismo crescente. A educação escolar era um instrumento de
preparação e formação da mão-de-obra necessária ao desenvolvimento do
modo de produção capitalista. Por um lado, havia que assegurar a
integração socioprofissional de todos os indivíduos e, por outro, especializálos em função dos lugares que iriam ocupar na nova divisão do trabalho, em
conformidade com as exigências da sociedade industrial.
Nesta óptica, a escola de massas emerge com a sociedade industrial e
expande-se por todo o mundo à mesma medida que a economia de mercado
o faz. Ora, vários estudos económicos questionaram esta relação linear e
unidimensional. Por um lado, como referiu o historiador Hobsbawm, nem a
industrialização inglesa assentou no suposto recurso sistemático a novas
competências escolares, nomeadamente tecnico-profissionais, nem outros
países de industrialização tardia ficaram à espera do incremento do modo de
232
produção capitalista para desenvolverem sistemas escolares modernos com
enorme impacto social, como no caso da Suécia, estudado por Boli (1992).
As teorias marxistas mobilizaram, entretanto, outro instrumental teórico que
se relaciona com o contributo da escola moderna para a reprodução das
relações sociais de produção no seio da economia capitalista. Estas
perspectivas permaneceram, como já referimos, prisioneiras de uma
abordagem funcionalista entre a educação escolar e a economia,
desvalorizando não só a eclosão de desajustamentos entre os dois campos,
como a multifuncionalidade da educação escolar, a diversidade de
comportamentos da procura e a relativa autonomia da sua acção social.
A teoria institucional, desenvolvida por J. Meyer e F. Ramirez, viria trazer
uma proposta mais consistente de análise da expansão da escolarização de
massas à luz dos processos mais globais de expansão e consolidação do
Estado-nação. São as alterações nos domínios político, económico, religioso
e cultural, em que assumem papel relevante os "mitos legitimadores", que
integram e explicam a construção da forma moderna de instituição escolar.
Ao
evoluirem de
formas
pré-modernas
para
formas
modernas de
organização social, todas as sociedades adoptam o modelo dos sistemas
educativos escolares modernos.
Tem sido sobretudo em torno da análise do processo da escolarização de
massas que se tem desenvolvido a teoria institucionalista. A escolarização
de massas é um fenómeno global não só no seu alcance, mas também por
estar altamente institucionalizada a nível mundial (Ramirez e Ventresca,
1992). Ela tem um estatuto mundial como entidade altamente legitimada, não
só pelos benefícios que ela confere aos indivíduos e às sociedades
nacionais, mas também pelo seu papel na formação de uma sociedade
mundial, na qual a escola para todos resultará no entendimento global e na
paz mundial (ibidem).
233
Várias tendências mundiais no desenvolvimento organizativo dos sistemas
de escolarização de massas ilustram a pertinência da perspectiva
institucionalista. Os mesmos autores conferem particular destaque a três: a
expansão das matrículas na escola primária, a elaboração de mandatos
legais relativos à escolaridade obrigatória e o estabelecimento de uma
autoridade centralizada em matéria de política educativa, os Ministérios da
Educação. Os períodos estudados oscilam entre 1870 e 1980, no primeiro
caso, e entre 1810 e 1990, nos outros dois. E concluem que, desde meados
do Séc. XIX, se encontram tendências regionais supreendentemente
parecidas, que produzem sistemas de escolarização de massas expandidos,
declarados obrigatórios e sujeitos a uma competência estatal nacional
(Ramirez e Ventresca, 1992: 135).
A adesão nacional à escolarização massiva é analisada por Boli (1992), para
o caso da Suécia. Segundo este autor, a escolarização de massas é uma
inevitabilidade da modernidade que emergiu nos diferentes países euroamericanos "porque surgiu na civilização ocidental, como uma consequência
lógica e até necessária" (Boli, 1992:73) em todo um complexo civilizacional.
A cidadania está nas origens da escolarização de massas como um vector
fundamental. A natureza e o conteúdo da socialização da infância ligou-se
intimamente à natureza das regras da cidadania que ligam os membros da
sociedade à sua comunidade mais vasta. O indivíduo, por sua vez, tornou-se
a unidade elementar da sociedade, um potencial cidadão, apto a participar
inteiramente na comunidade, sendo esta tutelada racionalmente pelo Estado.
O Estado foi substituindo as Igrejas como estrutura dominante de autoridade
e a comunidade nacional secularizou-se, reconceptualizando-se como um
projecto social unificado, orientado para o progresso e para o sucesso
colectivo, através da acção individual de cidadãos, “competentes e leais”
(Boli,1992:69). Construir este tipo de cidadãos, implicava retirá-los dos seus
234
tradicionais núcleos de socialização e formá-los no seio de uma nova
estrutura formal, distinta e disciplinada.
O afluxo generalizado dos cidadãos suecos a uma socialização conduzida
pelo Estado, fora de casa, a escolarização de massas, deve-se ao facto de
que "todos eles estavam inspirados pelo mesmo imperativo institucional"
(Boli,1992:72). Uma visão altamente idealizada de cidadão piedoso,
produtivo e disciplinado acompanhava a perspectiva de que só um processo
de socialização formal converteria "estas pequenas bestas brutas" no tipo
"certo" de participantes na comunidade nacional. Uma fé generalizada na
escolarização impulsionou todos os sectores da sociedade em direcção à
escolarização de massas (Boli,1992). Embora não houvesse qualquer
evidência de que a escolarização de base de massas produzisse melhores
cidadãos do que a casa, a igreja ou o local de trabalho, todos assumiam que
a escolarização o podia e devia fazer.
É neste mesmo sentido que Hüfner, Meyer e Naumann (1992) falam da
educação escolar moderna como uma "construção científica", que não surge
articulada a tradições primordiais da sociedade, mas como uma "tecnologia
geral" formatada para alcançar o progresso. Sendo este assumido em quase
todo o mundo como um objectivo "fundamental e legitimado", a escolarização
de base de massas tornou-se uma "tecnologia de alcance mundial" que, em
nenhuma parte do mundo, se confunde com uma "instituição nacional
localista" (1992: 347).
Como acabamos de ver para o caso da Suécia, o movimento mundial da
construção dos modernos Estados-nações sustentou-se, em boa parte, na
instituição mundial da escolarização de massas. A adesão ao Estado
moderno ou seja, os novos modelos de organização da soberania, e à nação
moderna, ou seja, à organização da sociedade tendo por base o cidadão
individual como a principal unidade social, implicou a adesão ao princípio
235
normativo e à realidade organizacional da escolarização de massas (Meyer,
Ramirez e Soysal, 1992).
O Estado-nação, segundo os mesmos autores, pode considerar-se ele
mesmo "um modelo cultural transnacional" no seio do qual a escolarização
de massas se tornou um importante mecanismo para desenvolver
actividades sociais através das quais se formam as ligações simbólicas
recíprocas entre os indivíduos e os Estados.
Assim, o modelo institucionalizado de escolarização disseminou-se como
uma ideologia intrínseca à modernidade europeia. Desde o Séc.XIX que os
objectivos educacionais reflectiram princípios guias desta modernidade
expandida globalmente, tais como o desenvolvimento da personalidade
individual, da cidadania e das competências de participação social, a
igualização de oportunidades sociais e políticas, o desenvolvimento
económico nacional e a ordem política garantida pelo Estado-nação
(Schriewer, 1995).
Por outras palavras e recorrendo ao léxico informático, o “software” da
escolarização de massas expandiu-se graças às virtualidades da sua
aplicação no “hardware” da forma moderna de soberania, o Estado-nação, e
esta desenvolveu-se graças, em boa parte, às virtualidades da escolarização
de massas.
De facto, a instituição mundial da escolarização de massas desenvolveu-se
e consolidou-se como um "modelo cultural", com um conjunto cada vez mais
familiar de princípios ideológicos e de medidas organizativas. Este modelo
vinculou-se ao princípio ascendente do Estado-nação e a conexão entre a
escolarização de massas e o Estado-nação "converteu-se num axioma"
(Schriewer,1995).
236
Neste processo, a perspectiva institucional sublinha a surpreendente
capacidade de penetração do isomorfismo ideológico e organizativo.
Seguindo DiMaggio e Powell (1983), os autores destacam três fontes deste
isomorfismo: a coerção, a imitação e a adesão a critérios normativos e ou
cognitivos. No seu universo explicativo dos processos isomórficos,
eles
enfatizam os processos normativos, defendendo "a aparição de uma cultura
mundial que favoreceu a forma estatal-nacional de organização da acção
colectiva e da estrutura social e que provocou a escolarização de massas
como meio de formar membros de uma sociedade nacional" (citado por Boli,
1989:125).
A crescente adesão nacional aos modelos mundiais de escolarização de
massas produziu também este efeito isomórfico avassalador. Apesar das
diferenças explícitas e presentes em muitas características específicas das
sociedades nacionais, "a escolarização de massas institucionalizou-se
globalmente" (Boli, 1989:135).
Ao
nível
curricular,
também
Meyer
analisa
a
"surpreendente
homogeneidade" que existe à volta do mundo (Meyer, 1992a). Mais uma vez,
a análise empreendida incide sobre a escolarização de massas da
população ao nível do ensino primário. A evolução do currículo, conclui-se, é
um processo mundial, mais do que nacional. É certo que os currículos
nacionais, sendo prescritos pelos Estados, reflectem necessariamente
interesses e necessidades particulares locais e nacionais. Mas Meyer aduz:
também reflectem forças mundiais. E acrescenta o argumento superior de
que os interesses e necessidades locais, ao prosseguirem e definirem a
escolarização de massas, tendem a ser filtrados pelas forças culturais
espalhadas por todo o mundo. É aqui que radicará o facto de encontrarmos
frequentemente mais homogeneidade e estandardização entre os currículos
prescritos pelos Estados-nações do que se poderia esperar ( Meyer, 1992a:
2).
237
À medida que os diversos países se aproximavam da moderna política
mundial dos Estados-nações, tornavam-se aptos a desenvolver sistemas
educativos de massas, independentemente das condições sociais locais
(Meyer, Ramirez e Soysal, 1992). Estes autores, na senda de Wallerstein,
analisam a expansão mundial da escolarização de massas e, em função da
sua aproximação àquele modelo, dividem os países na conhecida
categorização: centro, periferia e periferia afastada. A conclusão é a
seguinte: o nível de adesão ao sistema mundial de educação de massas é
afectado estruturalmente pela localização na sociedade mundial.
A análise do processo de construção do Estado-nação e da expansão da
escolarização de massas, em mais de cem países, desde meados do Séc.
XIX, permitiu verificar que o crescimento das frequências escolares rondou
os 5% por década, até 1940. Após a II Guerra Mundial o ritmo de
crescimento subiu para cerca de 12% por década.
Apontam-se dois factores como causas salientes deste incremento. Por um
lado, a pressão política internacional para instaurar em toda a parte o
modelo do Estado-nação; por outro, a legitimação da relação estreita entre o
modelo do Estado-nação e a escolarização de massas, relação suportada
pelas teorias do capital humano e da modernização política (Meyer, Ramirez
e Soysal,1992).
Há, assim, uma lógica histórica na expansão dos modelos educacionais
mundiais. Não se trata de uma moda ou de um mero isomorfismo mimético,
para usar a expressão de DiMaggio e Powel. Por um lado, o modelo estatal
de educação escolar é um subsistema social que todas as sociedades que
se modernizam adoptam. Por outro lado, o modelo de escola moderna
inscreve-se na história contemporânea como um fenómeno de dimensão
universal de longa duração.
238
Mais recentemente, com a expansão do processo de globalização, o Estadonação vai perdendo importância referencial, sobretudo no plano económico
(e dentro deste, no plano financeiro), a favor de um "espaço mundial" cada
vez mais presente no palco internacional e local. A retórica nacional,
mediatizada pelo Estado-nação, que sustenta as reformas educativas
nacionais, parece também ser em boa parte substituída por uma retórica
mundial, de maior poder persuasivo, legitimador e desproblematizador.
Nesta perspectiva, pode suceder que a globalização acelere a emergência
de modelos educacionais mundiais estruturados e reforce o seu poder de
rarefacção das diferenças, enfraquecendo mais o papel mediatizador dos
Estados.
Ora, o modelo de análise aqui proposto para a expansão da escolarização
de massas é susceptível de ser aplicado às reformas do ensino secundário,
que se apresentam quer com idênticas características em vários países da
Europa (e não só) quer com uma surpreendente simultâneidade. As reformas
nacionais nascem e afirmam-se recorrendo a uma retórica construída
supranacionalmente que traduz, antes de mais, o recurso à construção
científica e à tecnologia geral da educação escolar moderna. O modelo
cultural transnacional do Estado-nação, para se continuar a desenvolver
nacionalmente, tem necessidade de recorrer a ideologias globais e a
modelos transnacionais gerais de educação, no seio dos quais são
veiculadas correntes e perspectivas de reforma que atravessam o mundo
inteiro e que afectam, desde logo, os países mais desenvolvidos.
Os currículos nacionais e as suas alterações são, nesta óptica, expressões,
dificilmente recusáveis, de modelos transnacionais gerais de educação e das
ideologias que os sustentam. As diferenças com que possam surgir aqui e
ali, se são reveladoras de adaptações à diversidade e de apropriações
239
nacionais específicas, podem também ser encaradas como variações sobre
uma ideologia global e globalizante e sobre um modelo geral comum.
Expansão da ideologia da modernização
Na modernidade vai-se construindo um modo muito racionalizado de olhar os
seres humanos e este olhar, por sua vez, constroi a própria modernidade. A
educação escolar está no fulcro desse olhar e dessa construção. Este "bem
geral", quase inquestionado na sua bondade, foi-se institucionalizando,
originando um "sistema estandardizado racionalizado de investimentos e de
resultados" (Hüfner, Meyer e Naumann, 1992: 364), enraízado numa
ideologia mundial e universalista de modernização. A educação é uma
componente central da tecnologia do progresso e da modernização e esta
apresenta-se como um desiderato social e político na generalidade dos
países do mundo.
A expansão da ideologia da modernização constitui, pois, outro fio condutor
da expansão do modelo mundial geral de educação ( Stoer, Stoleroff e
Correia, 1990; Ottone, 1996; Garrido,1996; Carneiro, 1996). Hüfner, Meyer e
Naumann identificam três revisões do conceito de modernização, entre o
Séc.XIX e a actualidade. Inicialmente, a modernização surgiu associada à
afirmação da sociedade liberal burguesa, que punha a sua tónica na
liberdade
política,
económica
e
cultural,
incluindo
religiosa,
e
na
emancipação do indivíduo. A este conceito de individualismo liberal viria a
juntar-se uma autoridade pública intervencionista e responsável pela
institucionalização do Estado.
Após a II Guerra Mundial, com os processos de descolonização, ocorreu
uma ampliação do privilégio da cidadania aos povos e raças não brancas e
uma expansão da ideologia universalista da igualdade de direitos humanos.
240
A modernização assentava no pressuposto da igualdade entre os Estados e
na sua soberania, tendo as Nações Unidas constituído o foco de irradiação
desta ideologia. Simultaneamente, desenvolveu-se a doutrina dos benefícios
económicos específicos da educação, através de uma rápida expansão da
teoria do capital humano, que apoiou a extensão dos sistemas educativos
nacionais e reforçou a emergência do moderno sistema mundial.
Na década de 70, institucionalizou-se, no plano político e entre a
comunidade
científica
mundial,
o
paradigma
do
"mundo
único
e
interdependente". O desenvolvimento ou a modernização dos Estadosnações processa-se em clima de conflito, de desigualdade e de
interdependência, registando-se acentuadas disparidades entre os países. A
ideia de uma Nova Ordem Económica Mundial surge, então, associada à
perspectiva da redução das desigualdades entre os países e à percepção
mundial da educação como um factor crucial do progresso nacional e da
igualdade entre as nações.
Neste "processo cumulativo", reforçado pela aceleração da globalização dos
finais do Séc. XX, a educação foi-se
expandindo permanentemente, os
discursos reformadores alargaram-se ao mundo inteiro e a comparação
internacional em educação não parou de crescer. Num número cada vez
maior de países, tanto os objectivos educacionais como os "mandatos
gerais" sobre a infância, a família e a educação, são determinados por
princípios-guias gerais, de validade mundial e subsumidos, desde o Séc.
XIX, na interpretação europeia de modernidade.
A retórica da modernização, "instrumento de produção de consensos sociais
alargados e elemento estruturante da sintaxe do discurso educativo
dominante" (Stoer, Stoleroff e Correia, 1990), é construída geralmente por
referência a sistemas económicos mais desenvolvidos, modernos e
competitivos, forjando-se deste modo um efeito mimético, que parte dos
241
países periféricos em direcção aos países do centro do sistema económico
mundial,
efeito
este
que
vai
moldando
novas
políticas
nacionais
"consensuais" de educação e de formação. Estes consensos gerais e
abstractos, traves mestras e indeléveis dos referidos discursos, fomentam a
existência de um clima de opinião que se revela particularmente útil na
formulação das políticas educativas nacionais, quer pela sua capacidade de
atracção e de criação de convergência entre a diversidade de opiniões e os
conflitos de interesses em presença quer pela sua inerente capacidade de
ocultação dessa mesma diversidade e desses mesmos conflitos. Como
assinala Popkewitz (1988), as retóricas reformadoras no campo educativo
são muito sensíveis a estes consensos gerais.
Entre as principais correntes ideológicas que subjazem ao desenvolvimento
dos sistemas educativos, também J.L. Garcia Garrido identifica, para além
do nacionalismo e do optimismo escolar, a concepção progressista ou
desenvolvimentista. Segundo a sua formulação, o desenvolvimento do
homem ou da sociedade são concebidos numa ordem fundamentalmente
materialista que situa os sistemas escolares e as instituições que os
compõem numa atitude de serviço prevalecente, quando não exclusivo, ao
progresso económico e ao bem estar material das sociedades e dos
indivíduos (Garrido, 1996:21).
Desenvolveu-se, assim, o que Roberto Carneiro apelida de "modelo
industrial de educação", ou seja, sistemas escolares inspirados no sistema
económico de referência e cuja "missão suprema" era apoiá-lo, "sem ousar
beliscar na sua inexorável marcha" (Carneiro, 1996:38). A expansão dos
sistemas escolares ancorou-se, em grande parte, nesta outra componente do
modelo cultural moderno: a educação escolar é, antes de mais, um
instrumento
decisivo
do
crescimento
económico,
identificado
como
privilegiado para a difusão e aceitação da racionalidade económica, da
eficiência produtiva, do progresso técnico e da unificação social pelo
242
consumo. As teorias do desenvolvimento sustentaram-se nesta base
ideológica e os seus compêndios encheram-se de cálculos de taxas de
rentabilidade do investimento educativo, provando à saciedade os retornos
aos respectivos financiamentos (Carneiro,1996). A ideologia do capital
humano, a sua enorme expansão e o seu vastíssimo e hegemónico poder,
inscreve-se como a “joia da coroa” da própria expansão da ideologia mais
vasta da modernização, um consenso geral abstracto que serviu de arco
ideológico de sustentação da expansão da escolarização ao longo da
segunda metado do séc. XX.
Finalmente,
refira-se
que,
acoplada
a
este
bloco
ideológico
desenvolvimentista, sempre surgiu a defesa da expansão da escolarização
como instrumento de reforço da cidadania e da democracia. De facto, os
sistemas de ensino e formação cresceram também sob uma legitimação
política generalizada, decorrente da crença no facto da escolarização
contribuir para formar cidadãos mais críticos, participativos da vida social,
mais livres, conscientes dos seus direitos e respeitadores dos direitos dos
demais concidadãos. Estes direitos e estas capacidades eram politicamente
tomadas, contudo, como valores colectivos que o sistema escolar estaria
apto a formentar.
A evolução do sistema económico mundial
Outros autores enfatizam também a emergência dos modelos educacionais
mundiais estruturados no quadro da evolução do mercado mundial
capitalista. As mudanças que ocorrem nos países em desenvolvimento e que
visam a adaptação dos sistemas educativos locais ao processo de
internacionalização homogeneizadora, devem ser vistas, segundo Adick, "no
mais amplo contexto de dominação crescente dos sectores modernos da
economia e da sociedade no processo da sua integração na sociedade
243
mundial moderna". Para esta perspectiva da teoria do conflito, a escola
moderna, sendo parte do sistema mundial moderno, é expressão do modo
capitalista de produção, por essência globalmente expansivo. Assim, a
expansão daqueles modelos educacionais transnacionais não é neutra,
antes corresponde a processos de dominação da cultura "ocidental", que
mais não são do que a própria expansão do "unilateralismo capitalista"
(Adick,1993).
A esta perspectiva deve acrescentar-se a precisão introduzida por Morin e
Nair (1997), a saber, é o liberalismo económico que se mundializa, não é o
capitalismo na sua versão social, mais ou menos keynesiana. O que quer
dizer que as políticas que fomentaram os modelos sociais assentes num
"compromisso histórico" entre capital e trabalho, bem presentes no palco
europeu, estão a ser postas em causa pelo processo de globalização
económica em curso.
Também Ginsburg e Cooper (1991) analisam os movimentos reformadores
em diversos países e concluem que existem dinâmicas paralelas na
educação, ocorrendo em diferentes países, aproximadamente ao mesmo
tempo. Os autores relacionam-nos com "movimentos transitórios no seio do
sistema económico mundial" e sustentam que só uma leitura global e local
da crise da economia capitalista e da crise de legitimação do Estado
permitem contextualizar devidamente quer as retóricas quer as acções
reformadoras nacionais.
Os movimentos de reforma educativa que ocorrem em países muito
diferentes, desde meados dos anos 70, devem também ser inscritos num
"período de recessão global ou de crise no sistema económico mundial"
(Ginsburg e Cooper,1991:376), devendo ser lidos também num contexto
global. Segundo esta perspectiva, se há problemas propriamente educativos
a resolver, normalmente lá continuarão por resolver no essencial, uma vez
244
concluídas as reformas. Assim, tendo presente a prevalência do referente
económico, os movimentos reformadores na educação derivam também de
um "trabalho ideológico" desencadeado pelos grupos sociais em tensão,
pelos decisores políticos e pelos actores sociais, que transfiguram problemas
e conflitos sociais, económicos e políticos em problemas do foro educativo.
Estes passam a carecer, assim, de reformas urgentes e vastas, muito mais
urgentes e vastas do que as reformas de que continuam a carecer as
estruturas básicas da economia ou do Estado.
Cremos, no entanto, que é, sobretudo, um certo discurso macro-económico
que prevalece a nível internacional e é veiculado pelas grandes
organizações internacionais (a que nos vamos referir já de seguida), como
um bloco ideológico e uma retórica política que actuam como legitimadores
de um sem número de reformas empreendidas aqui e ali, por todo o mundo.
Esta retórica, formulada com base num contexto de incerteza, que predomina
quer no que respeita à evolução das taxas de juro e de câmbio quer quanto
às perspectivas de crescimento económico e de endurecimento da
concorrência internacional, confere superioridade a um "novo modelo
produtivo" emergente e flamejante, o modo de produção pós-fordista, e torna
mais eficiente a adesão a princípios retóricos e, em parte, a-históricos, como
a inovação permanente, a empresa comunicante, polivalente e organizada
em rede, que vende produtos de alta qualidade e de alto valor acrescentado
no mercado mundial, e que requer inapelavelmente altas qualificações,
garantindo altos salários e preservando em geral o emprego (Boyer, 1994).
Muitos destes princípios são exactamente os que são transfigurados em
axiomas ideológicos que, em qualquer parte do mundo, acentuam a
necessidade de reformas tendentes a desespecializar e integrar os cursos e
os programas escolares no ensino secundário, moldando fortemente as
recentes reformas educativas europeias.
Passando por cima das reais, e por vezes socialmente inquietantes e
245
conflituosas, segmentações do mercado de trabalho e mergulhados numa
grande vaga de imprevisibilidade sobe a evolução do trabalho, do emprego e
da sociedade, os governos, os sindicatos e as associações patronais
tendem, mais do que nunca, a tomar como referentes securizadores e
seguros os traços de uma retórica, enunciada antes de mais no plano
internacional, acerca do presente e do futuro e das novas funções dos
sistemas de educação e de formação. As novas dinâmicas da globalização
cultural e de comunicação contínua, “on-line”, entre as várias partes do
mundo, não fazem mais do que acelerar e precipitar a adopção da vaga
ideológica do pós-fordismo, da flexibilidade, das “novas” competências, em
qualquer parte do globo.
Como já se explicitou neste capítulo, esta retórica tende a subsumir-se, hoje,
no "slogan" da globalização (como antes se subsumia no da modernização),
como a palavra-chave que abre todas as portas para a explicitação da
evidência da ascendência da dimensão económica entre as dimensões que
podem estar a influenciar as recentes reformas do ensino secundário.
O sistema de comunicação científica
A disseminação da semântica da modernização e do correspondente modelo
de escola moderna também não teria sido possível sem o recurso a uma
infraestrutura social e institucional assegurada por um sistema internacional
de comunicação e publicação no domínio das ciências sociais e da
educação. Organizações internacionais que operam em grande escala, tais
como a OCDE, a UNESCO ou o Banco Mundial, fornecem orientações "para
um imenso estabelecimento educativo internacional" (Schriewer,1995:13)26.
Por outro lado, poderosas companhias multinacionais de edição controlam a
26 No ponto seguinte será dado especial relevo à acção prolongada das organizações internacionais. Aqui são apenas
consideradas a par de outros agentes de activação da comunicação científica sobre educação e formação, à escala
246
produção e a distribuição dos resultados das pesquisas em educação. Mais
recentemente, a Internet veio acelerar e facilitar os fluxos de comunicação e
de divulgação também no campo científico.
Desde 1925, o Bureau International d´Éducation - BIE tem apoiado os
estudos comparados e a disseminação de informação no domínio da
educação.
O
BIE
tornou-se,
em
1929,
a
primeira
organização
intergovernamental a operar neste domínio, tendo passado a fazer parte
integrante da UNESCO, desde 1969. As suas edições bibliográficas
especializadas sobre temas de actualidade, as suas avaliações regulares
sobre acontecimentos em curso, a sua rede internacional de informação
sobre educação e a organização bienal da Conferência Internacional da
Educação, em Genebra, constituem os elementos que lhe permitem
contribuir de modo particular para a comunicação científica internacional no
domínio da educação.
Fora do âmbito específico das grandes organizações internacionais operam
associações autónomas e não-governamentais cuja relevância, no campo da
educação, é mundialmente reconhecida. Após a II Guerra Mundial, nos EUA,
constituiu-se a Comparative and International Education Society, em 1956
(com a designação inicial de Comparative Education Society of America), em
1961, em Londres, formou-se a Comparative Education Society in Europe e,
em 1970, no 1º Congresso Mundial de Educação Comparada, no Canadá,
formou-se o Conselho Mundial das Sociedades de Educação Comparada.
Estas associações desde cedo apostaram na edição de publicações
periódicas que se tornaram incontornáveis referências para qualquer
investigador do mundo da educação e da formação, em qualquer parte do
mundo. Em 1957, surgia a Comparative Education Review e, em 1964, a
Comparative Education.
Em 1959 criou-se também a International Evaluation of Educational
internacional.
247
Achievement - IEA, entidade que se imporia internacionalmente pelos seus
estudos internacionais sobre os resultados e o desempenho escolar dos
alunos em áreas disciplinares específicas.
Estas grandes associações internacionais serviram de modelo à criação de
muitas outras associações regionais e nacionais, algumas delas fora do
âmbito hegemónico da expressão anglófona, como é o caso da Association
Francophone d´Éducation Comparée, criada em 1973, e as suas edições
constituiram modelos para dezenas de outras publicações internacionais e
nacionais.
Apartir de 1970, os Congressos Mundiais de Educação Comparada
tornaram-se importantes foruns mundiais de comunicação científica,
organizados nos cinco continentes, como expressão da mundialização dos
estudos comparados e internacionais no domínio da educação.
Este sistema de comunicação científica encontra-se bastante hierarquizado:
no centro está sobretudo a produção e distribuição anglo-americana e nas
áreas periféricas encontra-se a restante comunicação científica da área.
Deste modo, o que é predominantemente veiculado como conhecimento
científico relevante, através do mundo, está impregnado de uma visão
particular do mundo que, assim, é universalizada (um exemplo marcante é o
da "International Encyclopedia of Education"). Os investigadores tendem a
especializar-se e a privilegiar o olhar em direcção aos centros internacionais,
muito mais do que aos seus colegas nacionais, como adverte Lauglo (1995).
Nas redes de comunicação científica no domínio da educação, a
comunicação é predominantemente vertical e hierárquica e, portanto,
desigual. Apesar de vulgarmente indexarmos ao funcionamento das
modernas redes informáticas e à Internet, em particular, a horizontalidade,
como característica quase matricial, é também a verticalidade que domina
248
nos fluxos de comunicação, da periferia para os centros, das outras línguas
nacionais para o inglês, dos vários países para os grandes “motores de
pesquisa” mundiais.
O nosso argumento é o de que o sistema de comunicação científica,
alargado e permanente, favorece a harmonização geral entre todos os
sistemas escolares modernos. Na verdade, à medida que aumenta o número
de países que, apoiados por cientistas, técnicos e pesquisadores da
educação, promovem reformas educativas, os diferentes sistemas educativos
tendem a mover-se na mesma direcção e a tornar-se mais homogéneos.
Como referem Meyer e Kamens (1992), o que é assim veiculado como
funcional, é-o em todo a parte. Nos braços deste sistema cada vez mais
acelerado
de
comunicação
científica
internacional
transportam-se
e
difundem-se ideologias. O técnico-funcionalismo é quase uma ideologia
hegemónica no sistema educativo moderno, sublinham estes investigadores.
O que é tido como adequado para as metrópoles centrais é-o também para
as periferias. Nestas, por sua vez, é muito raro algum perito evidenciar
argumentos que sustentem caminhos divergentes e, quando o fazem, vêem o
seu discurso ser ignorado por ausência da legitimidade e esta é conferida
quase exclusivamente ao sistema mundial institucionalizado.
Vejamos, a título de exemplos, as conclusões de dois estudos empíricos. Em
1996, Pam Chriestie, no seu estudo sobre a reforma do ensino secundário
(superior) na África do Sul, evidenciava o forte impacto das orientações
globais contidas nas mais recentes publicações da União Europeia sobre as
necessidades e interesses locais e sobre o rumo da referida reforma
educativa, assinalando inclusivamente algum anacronismo daí resultante,
contido na incoerência entre a retórica fundamentadora da reforma e a
realidade económica e produtiva local ( o pós-fordismo de um lado e a
produção taylorista do outro). Também McNeely (1995), após estudar o
modo como recomendações e normas de organizações internacionais
249
trespassam e impregnam os princípios orientadores das políticas nacionais
de educação, com destaque para o caso da UNESCO, conclui que o
intercâmbio internacional de ideais e de informação educacional constitui
uma base legitimada que sustenta a organização do sistema educativo de
cada país.
Idêntico papel disseminador científico-ideológico é desempenhado não só
pela deslocação de muitos milhares de estudantes do ensino superior e de
pós-graduação em direcção aos mesmos países do centro do sistema
económico e da produção científica mundiais, que depois retornam, em
parte, aos seus países periféricos de origem, mas também por congressos e
seminários internacionais, encontros bilaterais entre países e por redes de
peritos; de um modo mais informal, estes meios de comunicação influenciam
a amplitude e a direcção das mudanças que ocorrem nos sistemas
institucionais de educação. Vários autores sublinham a relevância de alguns
dos referidos encontros internacionais. Vejamos alguns exemplos. Husén,
Tuijnman e Halls (1992) defendem que a perspectiva de que a educação
escolar é um factor primordial do progresso social e económico foi
largamente veiculada, nos anos sessenta, por duas importantes conferências
internacionais. A primeira teve lugar em Washington, em Outubro de 1961,
sob o patrocínio da OCDE, tendo sido seguida por um eco desta, no mesmo
ano, em Kungalv, na Suécia. A segunda ficou conhecida como a Conferência
de Williamsburg, na Virgínia-EUA e decorreu em 1967, reunindo pedagogos
e líderes políticos de todo o mundo. Neste encontro P. Coombs, apresentou,
pela primeira vez, o seu célebre relatório sobre "The World Crisis in
Education", exactamente um ano antes das movimentações estudantis que
agitaram socialmente a Europa.
Mais recentemente, pode assinalar-se, com relevância na economia deste
estudo, a Conferência Internacional de Santa Bárbara-Califórnia, em 1993,
250
sobre o investimento em capital humano e a performance económica.
Buechtemann e Soloff (1995), ao fazerem um balanço deste encontro,
constatam que os representantes dos diferentes países se confrontavam com
os mesmos desafios, dentro daquela temática geral, e assinalam que a
crescente “generalização” do ensino e da formação constituiu uma
"preocupação central" dos conferencistas.
Podem considerar-se, assim, seis tipos de facilitadores da comunicação e da
cooperação que actuam internacionalmente em matéria de construção de
referentes sobre educação escolar. Em primeiro lugar, existem as
associações internacionais e as redes de peritos. Entre elas destacam-se as
já referidas Associação Internacional para a Avaliação do Rendimento
Escolar - IEA e o Conselho Mundial das Sociedades de Educação
Comparada. Um segundo tipo é constituído pelos seminários e conferências
internacionais, subdividido entre iniciativas regulares e iniciativas irregulares.
Entre as primeiras destaca-se a já referida Conferência Internacional da
Educação, institucionalizada pela UNESCO e que se desenrola em Genebra,
e entre as segundas pode referir-se, além das já citadas, a Conferência
Mundial sobre Educação para Todos, que decorreu em Jomptien, em 1990.
Um terceiro tipo resulta da deslocação anual de estudantes dos países
periféricos para o centro, para efeitos de graduação, e do seu retorno aos
países de origem. Um quarto tipo é o que consiste na edição de publicações
de difusão e impacto mundial, que se devem subdividir em relatórios
internacionais, em enciclopédias e em indicadores estatísticos. Como
exemplos proeminentes refiram-se, respectivamente, a "Crise Mundial da
Educação" de Philip Coombs, com edições em 1968 e 1985, a Enciclopédia
Mundial de Educação e a Enciclopédia Internacional de Educação, a
publicação referente aos indicadores estatísticos da OCDE, "Olhares sobre a
educação" ou as publicações similares da UNESCO ou da União Europeia
(“Os números-chave da educação na União Europeia”). O quinto tipo de
251
facilitador é constituído por programas institucionalizados de cooperação
internacional, bilateral e multilateral, desenvolvidos por quase todas as
organizações internacionais que operam neste domínio do ensino e da
formação e que movimentam avultados recursos financeiros e fazem circular
sobre o planeta e intercomunicar continuamente milhares de especialistas de
diversas partes do mundo. Na União Europeia, este tipo de acções é
particularmente relevante, desde meados dos anos oitenta. O sexto e último
é o das redes electrónicas de comunicação, entre as quais se destaca a
Internet. Este meio tornou-se, em poucos anos, um poderoso instrumento
facilitador da intercomunicabilidade a nível mundial. Sendo usada como uma
rede de comunicação horizontal entre investigadores e demais interessados
na problemática educativa, a Internet não escapa a um fluxo dominante do
centro para a periferia, embora em interconexões novas, cujo alcance
dificilmente se vislumbra na actualidade.
A comunidade científica internacional exerce, em resumo, um duplo e
relevante
papel
na
institucionalização
dos
modelos
educacionais
transnacionais: por um lado, porque, de uma perspectiva técnica, geram
pessoal qualificado, dados e técnicas, concebem modelos de investigação e
produzem publicações; por outro, porque formulam concepções teóricas da
educação enquanto "instituição abstracta, estandartizada e racionalizada,
concepções essas que fazem com que o estudo comparado pareça útil e
necessário (Hüfner, Meyer e Naumann, 1992), o que internacionaliza, ipso
facto, a instituição educativa.
A acção prolongada das organizações internacionais e o caso da
UE
Uma certa conformidade estrutural e o isomorfismo organizacional dos
sistemas de educação escolar no mundo têm sido igual e particularmente
252
assegurados, na segunda metade do Séc.XX, pela acção prolongada de
organizações internacionais. Entre elas avultam a UNESCO, o Banco
Mundial, a OCDE, o Conselho da Europa, fundações filantrópicas como as
Fundações Ford, Rockfeller e Carnegie ou a Fundação Europeia da Cultura,
bem como as suas respectivas redes de assistência técnica internacional. As
organizações internacionais adquiriram grande importância na promoção de
investigações comparadas sobre educação (Hüfner, Meyer e Naumann,
1992), contribuindo deste modo para a "construção científica" da educação.
Elas funcionam como uma espécie de "transportadoras" organizadas dos
modelos mundiais, exercendo uma real pressão global em ordem à
harmonização.
Vários autores assinalam a influência das organizações internacionais sobre
as políticas educativas nacionais. No caso português, podem referir-se, por
exemplo, Sacuntala de Miranda (1981), Stoer, Stoleroff e Correia (1990).
Mas, raramente esta influência é considerada de modo dinâmico. Na
verdade, é no movimento de referências internacionais recíprocas que se
gera a mundialização da educação. Não há apenas um movimento de fora
para dentro, ainda que dotado do poder que vem do centro para a periferia,
existe um importante movimento de dentro para fora, destinado a captar
significação complementar. Vejamos, sucintamente, alguns traços mais
salientes da acção das organizações internacionais, com particular ênfase
para o caso da Comissão Europeia.
A OCDE influenciou particularmente a região europeia, americana e a área
do Pacífico Ocidental, enquanto que os organismos das Nações Unidas, com
destaque para o Banco Mundial e para a UNESCO, influenciaram sobretudo
os países em vias de desenvolvimento. Nas últimas três décadas, estas
organizações expandiram a ideologia da modernização, sublinhando
sobretudo os efeitos positivos dos investimentos em educação sobre os
aspectos demográficos, sanitários, sobre a alfabetização, a esperança de
253
vida e os comportamentos de consumo. Além dos sistemas educativos
nacionais terem evoluido com bastante homogeneidade, evoluiram também
com um notável optimismo associado. Este baseia-se na crença de que "as
pessoas educadas transformam a estrutura de oportunidades da sociedade"
(Meyer,1992a). Para a apropriação deste conceito muito contribuiram os
estudos monográficos incidindo sobre um só país, além dos estudos
analíticos e estatísticos destas pan-organizações. Com a queda do Muro de
Berlim e do império soviético o seu alcance tornou-se planetário e global.
A prática de publicação sistemática de estudos monográficos nacionais
sobre a educação havia sido iniciada pela OCDE, após deliberação tomada
em 1961, tendo-se publicado já várias dezenas de "Exames às Políticas
Nacionais de Educação", que se têm revelado particularmente significativos
na sua capacidade de influenciar o continente europeu. Hüfner, Meyer e
Naumann (1992), muito pertinentemente, sublinham que os estudos
monográficos nacionais são um bom exemplo dos modos de construção de
um sistema educativo mundial e isto por dois motivos. Por um lado, a sua
elaboração orienta-se por um conjunto aparentemente invisível de conceitos
e de noções partilhadas e são comuns nas suas normas; por outro, os seus
resultados são mobilizados para sustentar conclusões gerais sobre política
educativa.
A OCDE, além destes estudos monográficos, desenvolveu vários programas
e múltiplas actividades. Em 1968, criou o CERI - Center of Educational
Research and Innovation, com sede em Paris, organismo que desenvolve
uma intensa actividade no domínio dos estudos internacionais sobre
educação e formação, alimentando ao longo dos anos um caudal bastante
intenso de publicações em inglês e françês. Recentemente, a OCDE
promoveu, por exemplo, uma actividade internacional de reflexão sobre os
novos rumos do ensino técnico e da formação profissional, face às
mudanças verificadas tanto na economia como na procura social (VOTEC,
254
era a designação da actividade). Desde 1989 e durante cinco anos,
reuniram-se peritos dos vários continentes numa série de Seminários
realizados sequencialmente na Suiça, nos EUA, em Portugal e em França,
além de se terem escrito e divulgado vários documentos elaborados por
especialistas na matéria, alguns dos quais seriam publicados posteriormente
como documentos oficiais da OCDE, alguns dos quais foram entretanto
traduzidos noutras línguas que não o inglês e o francês.
A UNESCO é a organização que há mais tempo fomenta a cooperação
internacional no domínio da educação. Entre outras iniciativas de âmbito
internacional, promove regularmente a já citada Conferência Internacional da
Educação, iniciativa que reune muitos ministros da educação, peritos e
organizações nacionais e internacionais, de mais de cento e vinte Estadosmembros. Para Juan Luis Camblor (1989) esta Conferência é um
observatório mundial acerca do estado de saúde da educação a nível
planetário. A Conferência de 1986, por exemplo, debruçou-se sobre o ensino
secundário, temática aliás recorrente nestas iniciativas, e adoptou uma
significativa recomendação (nº75) dirigida aos ministérios da educação
nacionais e relativa ao “melhoramento do ensino secundário, nos seus
objectivos, conteúdos, estruturas e métodos”.
Além disso, a UNESCO mantém fluxos internacionais regulares de
seminários e de publicações sobre educação (ex. a revista “Perspectives”,
publicada em três línguas) e suporta a existência de organismos que actuam
ampla e activamente no campo da educação e da formação, como o Instituto
Internacional de Planeamento da Educação (Paris) e o Instituto para a
Educação
(Hamburgo)
e
os
organismos
de
coordenação
regional
(continental) da Unesco.
A educação moderna, como instituição mundial altamente estandartizada,
deve muito ao labor de comparação promovido, anos a fio, por estas
255
estruturas organizativas, que souberam aliar à ajuda financeira a assistência
técnica. Mesmo na União Europeia, onde a área da educação tem estado
relativamente ausente das fortes dinâmicas de harmonização em curso no
plano da economia, dos mercados ou do sistema monetário, vários são os
autores que reconhecem haver uma certa "desnacionalização", a começar
exactamente pela área do ensino e da formação profissional. Na economia
desta investigação importa perceber mais pormenorizadamente como é que
as tendências reformadoras assinaladas são de certo modo veiculadas e
ampliadas no palco europeu.
A. Costa Rico (1995) constata a existência, na década de noventa, de uma
maior convergência do que no passado, apontando para tal o que designa
como o "projecto educativo europeu", ou seja, um conjunto articulado de
programas de financiamento comunitário na área da formação e de
animação de intercâmbios e de parcerias, que vão configurando sistemas
escolares nacionais cada vez mais aproximados entre si.
Husén, Tuijnman e Halls (1992) assinalam o ano de 1989 como o início de
uma fase de harmonização entre os sistemas escolares da União Europeia,
processo este orientado, mais do que por qualquer determinação formal, por
uma espécie de "agenda oculta" (Husén, 1992). Para esta contribuem o
ajustamento estrutural da economia e dos mercados de trabalho e,
sobretudo, o seu efeito de arrastamento sobre outros domínios sociais, entre
os quais está necessariamente a educação e a formação. Como refere
Husén, mesmo que o objectivo não esteja explícito, alguma harmonização se
terá de produzir e, se é verdade que no campo escolar as resistências
culturais se manifestarão, não é menos importante contar com os efeitos
nacionais da adopção pelos vários países de princípios e práticas,
económicos e políticos, ora comuns ora convergentes.
Ainda antes da celebração do novo Tratado da União Europeia entre os
256
países da Comunidade Económica Europeia, que teve lugar em 1992,
desenvolveram-se muitas actividades de cooperação nestes domínios. O
Tratado de Roma, de 1957, incluía três artigos relativos à problemática
educativa, todos eles centrados ou na necessidade do reconhecimento
mútuo de diplomas e de certificados, ou na importância do estabelecimento
de princípios gerais para uma política comum de formação profissional,como
refere o artigo nº 128. Tanto este enunciado normativo como as políticas de
concretização que se lhe seguiram evidenciam o facto de prevalacer, desde
o início, uma concepção duplamente redutora da acção comum no campo
educativo, uma vez que este se restringe à formação profissional e esta visa
apenas promover o ajustamento dos recursos humanos dos vários países ao
mercado comum em expansão.
Em todo o caso, o processo de cooperação foi lento. Só em 1963 é que o
Conselho adoptou a primeira decisão relevante, estabelecendo uma série de
princípios para a elaboração de uma política comum de formação
profissional, e a primeira reunião dos Ministros da Educação dos países
comunitários apenas se realizou em 1971. O relatório Janne, "Pour une
politique commune de l'éducation", elaborado em 1973 por um grupo de
peritos na sequência desta reunião, representa uma primeira e importante
iniciativa no sentido de reorientar os esforços de cooperação para o campo
educativo mais vasto, evitando separar ensino e formação profissional. O
segundo surgiria em 1974, na resolução dos Ministros da Educação sobre
"Cooperação no sector educativo". No entanto, só em 1976 é que o
Conselho e os Ministros da Educação, reunidos em conjunto, adoptam o
"Primeiro Programa de Acção da Comunidade Europeia em Educação" e
criam um Comité de Educação com carácter permanente.
Dados estes vários passos, a cooperação em matéria de educação e
formação queda-se sempre como uma dinâmica a desenvolver entre os
257
Estados membros, não envolvendo os principais orgãos comuns de decisão.
Além disso, expressa-se com muita clareza o respeito pelas especificidades
nacionais
e
esconjura-se
com rigor
e
veemência
o
objectivo
da
harmonização de políticas.
Entretanto, só na segunda metade dos anos oitenta é que se viriam a dar
passos mais acelerados na cooperação em matéria de educação e de
formação. Em 1980, cria-se a rede de informação em matéria de educação, a
Eurydice, em 1981 a área da educação migra da DG XII, onde estava alojada
há dez anos, para a DG V, onde cohabita com a formação, os assuntos
sociais e o emprego, em 1983 é revisto o Fundo Social Europeu e em 1986
celebra-se o Acto Único Europeu. Apesar do longo caminho percorrido, a
educação continuava a não constituir um terreno de acção comum e a
formação profissional permanecia sobredeterminada pela dependência face
à evolução do mundo do trabalho e das necessidades do mercado de
emprego.
A rede de informação sobre educação Eurydice tem vindo a desenvolver um
importante trabalho ao nível dos estudos comparados. Particularmente após
1992, têm sido produzidos diversos estudos temáticos comparados, por
exemplo nos domínios dos segmentos da educação pré-escolar e do ensino
primário e das temáticas do tempo escolar, da formação de professores, do
combate ao insucesso escolar, da administração e do financiamento dos
sistemas educativos. Além disso, a rede Eurydice, em cooperação com os
serviços da Comissão, possui a base de dados Eurydos e tem vindo a
publicar, nos últimos anos, grossos volumes de descrição comparada das
estruturas dos sistemas de ensino e de formação inicial de todos os Estados
membros e, mais recentemente, um importante e novo anuário de
estatísticas-chave sobre a educação na Europa.
Este labor, que conta, em cada país, com uma Unidade Nacional da rede
258
Eurydice, desempenha inevitavelmente um silencioso e contínuo efeito de
aproximação de discursos e de procedimentos, de eleição comum de
prioridades e de definição comum de políticas. A cidadania europeia,
consagrada no Tratado de Maastricht, constrói-se também nesta rede de
informação, o que representa, convém sublinhá-lo, um enorme esforço de
superação de tensões e conflitos entre países e culturas nacionais,
superação esta que sustenta, por sua vez, a formação de novos círculos,
cada vez mais largos, de uma política educativa comum, ou seja, a lenta
institucionalização de um sistema educativo europeu.
Por outro lado, existe um permanente vaivém entre peritos de todos os
países da UE, que se encontram à volta das mais variadas mesas, para
debater aspectos particulares e gerais das políticas de educação e de
formação. Tece-se, paulatinamente, uma malha de relações pessoais e
institucionais que consolida um tecido comum. A própria criação permanente
de parcerias inter-nacionais, financeiramente suportadas pela União, no
âmbito dos mais variados programas, de que se destacam, desde 1995, o
Sócrates e o Leonardo, reforça enormemente esta tessitura, só na aparência
totalmente desorganizada e desconexa. Mas, talvez seja este o processo
que mais eficientemente contribui para viabilizar uma construção identitária
comum, nomeadamente pelo facto de assim, neste aparentemente ingénuo
funcionamento em rede, se facilitar a libertação do jogo de tensões e de
conflitos, sempre latente, sem que isso corresponda a qualquer espécie de
imposição de mandatos e normas, que rapidamente conduziriam a impasses
mais ou menos insanáveis.
Refira-se ainda um conjunto de esforços da Comissão Europeia, através da
DG XII, no sentido do fomentar a realização de estudos e investigação nos
domínios da educação e da formação. A decisão do Conselho que aprova
259
esta iniciativa27, atribui-lhe os objectivos de "apoiar os Estados membros nos
seus esforços para reforçar os laços entre a investigação, a educação e a
formação, melhorar os seus sistemas de educação e de formação graças à
investigação e à difusão de boas práticas e da inovação" (Comission
Européenne,1996).
financiamento
Os
campos
distribuem-se
específicos
curiosamente
que
por
serão
objecto
importantes
de
domínios
altamente potenciadores de harmonização internacional, a saber, (i) a
eficácia das políticas e das acções e a unidade e a diversidade europeias,
(ii) os métodos, os instrumentos e as tecnologias, qualidade e inovação em
matéria de educação e de formação e (iii) educação, formação e crescimento
económico.
Entretanto, prosseguiram os esforços tendentes à harmonização das
qualificações e dos diplomas, tendo em vista facilitar a circulação do mão-deobra no espaço europeu. Apesar de remontarem aos anos sessenta os
primeiros
trabalhos
tendentes
ao
estabelecimento
de
sistemas
de
reconhecimento mútuo de diplomas, demorou dezasseis anos a estabelecer
a directiva para os farmacêuticos e dezoito para a dos arquitectos, isto no
âmbito das profissões regulamentadas, e só em 1988 é que o Conselho
adoptou a primeira directiva geral sobre os diplomas do nível pós-secundário
(Directiva do Conselho 89/48/CEE), tendo a segunda directiva sido adoptada
apenas em 1992, após um muito longo e penoso processo de negociação.
A segunda metade dos anos oitenta é a época dos progamas de cooperação
no domínio da educação e da formação: em 1986 surge o COMETT, para a
cooperação universidade e empresa, na formação no campo das novas
tecnologias; em 1987, surge o ERASMUS, para a mobilidade entre os
estudantes e professores universitários; no mesmo ano surge o PETRA, para
apoiar a preparação de jovens para a inserção na vida adulta e profissional;
27 Trata-se do âmbito II do programa TSER, de 15 de Dezembro de 1994.
260
em 1988, surgem o DELTA, para o desenvolvimento da aprendizagem
através do avanço tecnológico e o YES para a Europa, destinado ao
intercâmbio de jovens; em 1989 surgem o LINGUA, para o fomento da
aprendizagem das línguas estrangeiras, o FORCE, para estimular os
investimentos na formação profissional, a rede NARYC, para incentivar o
reconhecimento de títulos e créditos académicos entre os Estados membros
e o EUROTECNET, para fomentar a inovação tecnológica no domínio da
formação profissional. Se é certo que estes programas e os esforços
financeiros que os sustentaram representaram um significativo incremento
da cooperação europeia em termos de educação e formação, é forçoso
referir, por um lado, que a sua criação não foi pacífica, tendo deflagrado
conflitos que o Tribunal de Justiça foi chamado a derimir e, por outro lado,
que se manteve e reforçou a perspectiva economicista na abordagem da
cooperação em matéria de educação. Dois elementos, entre outros,
sustentam esta perspectiva: (i) a própria decisão do Tribunal de Justiça, que
viabilizou o arranque dos dois primeiros programas mencionados, e que se
teve de refugiar na sustentação de que se tratava de cooperação
enquadrada na política comum de formação profissional (Tratado de Roma,
de 1957); (ii) na reorganização da Comissão Europeia de 1989 as questões
educacionais foram enquadradas da novo em uma "Task-force" relativa a
"Recursos Humanos, educação, formação e juventude". Após a crise
económica dos anos setenta e face à sua prevalência e acentuação na
segunda metade dos anos oitenta, mormente perante o crescimento do
desemprego juvenil e a perda de competitividade internacional da economia
europeia, a retórica e as práticas comunitárias em matéria de educação
subordinaram-se crescentemente à sua funcionalidade económica imediata,
embora nunca se tenha perdido de vista a reafirmação da importância da
educação na construção da coesão social europeia.
Entretanto, foram sendo criados diversos organismos que viabilizavam e
ampliavam o efeito desta política comunitária. Entre eles está o Comité
261
Consultivo para a Formação Profissional, que reúne os parceiros sociais e
emite pareceres e recomendações, a criação de um Grupo de Trabalho do
IRDAC- Comité Consultivo para a Investigação e o Desenvolvimento
Industrial, especificamente destinado às questões da educação e da
formação,
na
sua
ligação
com o
desenvolvimento
industrial
e
a
competitividade, que emite pareceres e elabora relatórios difundidos em
larga escala nas várias línguas da União, o Centro Europeu para o
Desenvolvimento da Formação Profissional-CEDEFOP, que exerce uma
importante acção quer de estudo e de comparação entre os sistemas
nacionais
quer
de
elaboração
de
sistemas
de correspondência e
comparabilidade de qualificações.
Mas é efectivamente à assinatura do Tratado da União Europeia (1992), que
se deve uma viragem (Nóvoa,1995 a; Rico, 1995; Garrido,1996) no modo de
encarar as problemáticas da educação e da formação na construção da
União Europeia. O anterior Título III que se dedicava à “política social” foi
substituído pelo novo Título VIII sobre “política social, de educação, de
formação profissional e de juventude” e, no seio deste, o capítulo 3 refere-se
à “educação, formação profissional e juventude”. O Tratado constitui uma
peça chave nesta evolução ao consagrar aqui, nos seus artigos 126º
(educação) e 127º (formação), uma dimensão europeia para a educação e
para a formação profissional, incentivando a cooperação entre os Estadosmembros, criando espaço para a intervenção da União no apoio e no
complemento à acção destes Estados e contribuindo para o desenvolvimento
de uma educação de qualidade à escala europeia. Criou-se, deste modo, um
terreno político propício para a germinação de uma gama muito mais vasta
de actividades e para uma cooperação mais profunda. Corolário desta
decisão são os Livros Brancos da Comissão Europeia sobre "Crescimento,
Competitividade e Emprego", de 1993 e sobre "Ensinar e Aprender. Rumo à
Sociedade Cognitiva", de 1996, a declaração, em 1995, do ano 1996 como
“Ano Europeu da educação e da formação ao longo da vida”, bem como os
262
novos programas comunitários Leonardo (formação profissional) e Sócrates
(educação). Para além dos Estados nacionais, crescem dinamismos
metanacionais que condicionam e configuram em grande parte as políticas
nacionais de ensino e de formação.
O Programa Leonardo da Vinci, relativo à cooperação no domínio da
formação profissional na União Europeia, engloba actividades antes
dispersas pelos Programas FORCE, COMMET, PETRA, EUROTECHNET,
IRIS e o programa Sócrates, relativo à cooperação no domínio da educação,
agrupa actividades anteriormente contidas nos programas ERASMUS,
LINGUA, nas redes EURYDICE E NARYC. Este Programa, dotado de
avultadas verbas para o período entre 1995-1999, reforça e torna mais
próximas as políticas educacionais, na senda do Tratado de Maastricht e dos
Livros Brancos. As redes de cooperação que entretanto se desenvolveram
entre os Estados-membros da União tecem malhas de significados e de
representações, poderosas interconexões de pensamento, em que os
diversos intervenientes de diversos países vão desenhando redes complexas
de objectivos, planos e projectos, necessariamente interligados, forjando
assim bases europeias para a orientação dos sistemas nacionais de
educação e de formação. Como oportunamente assinala Chisholm (1995),
há conceitos (como mobilidade, competitividade, coesão social) que
lentamente se vão tornando conceitos políticos-chave, que informam e
enformam as políticas comunitárias e nacionais.
Apesar da lentidão da evolução da cooperação comunitária em matéria de
educação, os programas bi e multilaterais constituem instrumentos efectivos
e poderosos factores de harmonização entre os Estados membros da União.
As inúmeras séries de projectos já desenvolvidos, as parcerias concretizadas
e os consórcios entre regiões já efectivados contribuem de vários modos
neste sentido. Por um lado, pelos produtos que geram, que disseminam e
que entram em uso um pouco por todo o lado (bases de dados, informações,
263
dossiers temáticos, métodos), por outro, pelas redes de contactos, redes de
projectos e redes de peritos, e ainda pelas análises comuns que fabricam,
seja em termos de conceitos e definições, seja em termos de currículos
nucleares comuns que se adoptam, seja ainda por metodologias comuns que
se integram nas actividades (Gordon, 1995). De uma tentativa demorada e
pouco
sucedida
para
criar
sistemas
completos
e
complexos
de
correspondência e comparabilidade entre certificados e sistemas nacionais
de educação e formação, caminha-se para a via da "transparência", ou seja,
procura-se compreender o diferente, transmitir e trocar informação, construir
uma miríade de pequenos projectos comuns multilaterais, sob o efeito de um
"ideal regulador" (Nóvoa, 1995a) das políticas nacionais dos diversos
Estados-nação. É o que sustenta igualmente Hargreaves (1989) quando, ao
analisar o impacte das deliberações comunitárias em matéria de ensino e de
formação profissional sobre a evolução das respectivas políticas no Reino
Unido, assinala a existência de nítidas ligações entre ambas as políticas, a
comunitária e a nacional. Embora, como refere, estas ligações não sejam
evidentes na literatura oficial, elas estão presentes para além desta, nas
políticas concretas que se formulam e executam ao longo dos anos.
Garcia Garrido (1996) antevê, por força da janela que se abriu com o
Tratado da União Europeia, um panorama futuro bem diferente do existente
até então. Dentro de algum tempo, prognostica o comparatista espanhol,
poderemos estar perante um "sistema escolar europeu", respeitador da
diversidade de estruturas e da riqueza cultural existente nas nações e
regiões europeias.
O Conselho da Europa, por sua vez, tem vindo a desenvolver, nos anos
noventa (1991-1996), uma importante actividade designada "Um Ensino
Secundário para a Europa", tendo sido abordadas, em sucessivos simpósios
e
posteriormente
em
monografias,
questões
tendencialmente
harmonizadoras, tais como os objectivos e as finalidades do ensino
264
secundário, a formação de professores e do pessoal não-docente, e
educação multicultural ou o papel da comunidade local. Além disso, o
Conselho
da
Europa,
que
se
autodenomina
"forum
paneuropeu
intergovernamental" em matéria de cooperação educacional, tem vindo a
publicar estudos monográficos sobre o ensino secundário em cada um dos
países membros, estudos estes que obedecem desde logo a uma matriz
comum de apresentação e através dos quais perpassam tanto as diferenças
nacionais como as tendências de convergência internacional. Em 1997, os
ministros da educação dos quarenta e sete países do Conselho da Europa,
reunidos na Noruega, culminando uma década de reflexão sobre o ensino
secundário, adoptaram uma recomendação específica e comum sobre este
nível de ensino, convictos de que "a cooperação educativa na Europa pode
desempenhar um papel determinante para fazer face aos novos desafios (a
aceleração e imprevisibilidade das mudanças económicas e tecnológicas, o
multiculturalismo e os perigos da intolerância, o cepticismo e a apatia face à
vida política), no respeito pelos valores fundamentais comuns" (Conselho da
Europa, 1997:9).
As associações filantrópicas privadas também estão na primeira linha desta
construção, mormente após a sua cimeira em Bellagio-Itália, em Maio de
1972, pois promovem e mantêm redes internacionais de peritos e programas
de assistência técnica, que tornam mais activamente presente o sistema
educativo mundial. Na Europa destacamos, por exemplo, a Fundação
Europeia da Cultura, instituição que apoia organismos e institutos de
investigação, redes de informação europeias sobre educação e a edição de
livros e revistas sobre educação e formação, e a Fundação Van Leer, que
apoia projectos locais de desenvolvimento da educação, em vários países do
mundo.
Em síntese, a acção contínua e prolongada das organizações internacionais
que operam no âmbito educacional participa activamente na construção e na
265
acção do sistema educativo mundial.Como refere António Nóvoa , "trata-se,
por um lado, de construir categorias de pensamento, de organizar
linguagens, de mostrar soluções que se tornarão esquemas dominantes para
aproximar os problemas educativos; e, por outro lado, de agir sobre um
conjunto de campos (o emprego, a formação, as qualificações, etc.) que
desencadeiam reconfigurações do sistema educativo" (1995 a:18).
A educação comparada e internacional
No campo da educação, a interdependência internacional é um dado da
história contemporânea mundial. A análise do "sistema mundial" veio
sublinhar a necessidade que há em considerar o pano de fundo das relações
de interdependência, que abarcam todo o mundo, para se compreenderem
as macroestruturas sociais actuais. Como diz Arnove (1980), se fechamos a
análise da educação no contexto nacional, falhamos a compreensão da
posição do país no sistema internacional, o que equivale a esquecer um
importante elemento que condiciona os efeitos dos factores económicos,
políticos e socioculturais intranacionais na educação.
O desenho da instituição educativa da sociedade mundial deve-se também
ao labor contínuo da Educação Comparada e Internacional, fora e dentro da
acção da Sociedade Mundial de Educação Comparada, dos seus
Congressos e das suas publicações. E a educação é uma instituição tão
internacional que os organismos nacionais académicos e de investigação
têm mantido um permanente interesse pelo trabalho comparativo (Hüfner,
Meyer e Naumann, 1992). A este interesse nacional há que acrescentar
ainda o envolvimento das redes internacionais de peritos, as relações
bilaterais entre os países e a acção do "sistema mundial de organizações
internacionais".
Ora,
estes
investimentos
continuados
no
trabalho
comparativo tornam a educação, por essa via, ainda mais uma instituição
266
mundial. Como refere C. Adick (1993), o labor analítico da educação
comparada vai, em termos de longo prazo, desenhando a escola modelo
como uma instituição educativa da sociedade mundial.
O tipo moderno de educação, ao participar activamente na ideologia da
modernização como ingrediente central do alcance do progresso, como
referimos acima, tornou mais fácil e mais atractivo o trabalho comparativo.
Os modelos educativos veiculados são de tal modo estandardizados e
internacionais que a investigação comparada deve considerar-se elemento
integrante do sistema. A diversidade de sociedades e de contextos não
constitui, por isso, um entrave significativo ao labor comparativo. A
complexidade
está
enormemente
reduzida
pelo
teor
marcadamente
"homogéneo, racionalista e moderno" de que se reveste a noção de
educação que é incorporada por todas as sociedades que se modernizam e
progridem. Estes autores assinalam a existência de um "sistema de
classificação formal estandardizado a nível mundial" que é simultaneamente
resultante e produtor da análise comparada internacional.
Assim, a emergência do sistema educativo mundial resulta também de um
corpo de investigação que se tem vindo a acumular com base em estudos
empiricamente sustentados.
A investigação comparada, como campo apropriado à descoberta e à
disseminação de ideias e ideologias do mundo científico e profissional, é
"parte intrínseca do sistema" (Hüfner, Meyer e Naumann, 1992:366),
mormente ao definir programas, ao analisar problemas e ao propor
recomendações e soluções. Por outras palavras, as mudanças e os
movimentos reformadores nacionais são válidos nacionalmente também
porque validados internacionalmente, pela comparação e pela sua adopção,
como princípios orientadores, pelos países economica e culturalmente
dominantes. Mais uma vez se constata que, se é certo que as circunstâncias
267
locais determinam a adopção deste ou daquele percurso formal da educação
escolar de um país, também é crucial o tomar como garantidas as virtudes do
moderno modelo de educação que é espalhado por todo o mundo através de
ideologias e teorias tidas em comum (Meyer, 1992). As políticas
educacionais e a evolução dos sistemas educativos de uma nação são
normalmente mais afectados por critérios externos estandardizados do que
por critérios especificamente internos. Como se referiu, cientistas e
investigadores da área da educação, encontros internacionais, redes de
peritos e organizações internacionais destacam-se como veículos difusores
do " consenso abstracto" de que fala Meyer (1992:23). Os modelos copiamse continuamente ao longo dos anos e das décadas e a estandardização não
pára de crescer.
Na última década, como vimos, várias têm sido as organizações
internacionais que têm contribuído para este labor comparativo, mormente
através da produção de estudos monográficos sobre os sistemas educativos
nacionais, com base em grelhas comuns de análise e através da produção
estatística, área em que o poder de harmonização talvez exceda qualquer
outro domínio de acção internacional.
Ramírez e Ventresca (1992), que analisam este processo de "isomorfismo
ideológico e organizativo" e a sua surpreendente capacidade de penetração,
também fazem eco da abundante literatura comparada que incide sobre as
variações entre os sistemas educativos nacionais. Anotando brevemente as
"interessantes descobertas" que tais estudos produziram, os autores
assinalam que eles ignoram ou menosprezam as poderosas forças
supranacionais que se exercem sobre os sistemas educativos nacionais e
que, lentamente, vão configurando sistemas estandardizados, instituições
educativas nacionais que são simultaneamente instituições educativas da
moderna sociedade mundial.
268
Para Adick (1993) esta perspectiva analítica da educação comparada e
internacional apresenta as seguintes vantagens: favorece uma visão
histórica de longo prazo e de nível macro; adopta uma perspectiva não
eurocêntrica, global e compreensiva; centra-se em torno de um objecto
teoricamente bem definido, a saber, como descrever e explicar as origens e
a expansão mundial das estruturas da escola moderna.
A externalização dos sistemas nacionais
A externalização apresenta-se como um outro modo de particular afirmação
do sistema educativo mundial e de construção de homogeneidade nos
sistemas educativos nacionais, ou seja, desenvolvem-se comparações com
modelos estrangeiros e com situações mundiais, mobilizam-se indicadores
internacionais e visitam-se outros países, no intuito de captar ideias e
estímulos para o desenvolvimento da política interna. Através deste
processo, de cariz político, os países recorrem, na expressão de Schriewer,
a uma "contemplação transnacional". Ou seja,
o olhar para fora das
fronteiras próprias, para países comparáveis, constitui um acto de "absorção
de significação suplementar" (Schorb, citado por Schriewer, 1995).
Esta contemplação transnacional não é alheia à crise do Estado-nação
(Morin, 1981, Stoer, Stoleroff e Correia, 1990; Ginsburg e Cooper, 1991). A
globalização, nas suas várias facetas, veio vincar uma crise de legitimação
dos Estados nacionais, sobretudo pelo modo como põe em causa e relativiza
o papel das soberanias nacionais. A área económica, em particular no
domínio financeiro, é a mais sensível aos ditames internacionais sobre os
Estados nacionais. Como vimos, as próprias políticas nacionais tendem a
enunciar-se sob o efeito e cada vez mais com a retórica típica da economia
e, em particular, dos seus sectores mais competitivos. Este fenómeno de
despolitização da política (Morin e Nair, 1997) tende a encerrar os
269
enunciados políticos nacionais dentro de uma mesma
vaga de fundo
mundial do liberalismo económico, a tecnologia geral de alcance mundial de
que falavam Hüfner, Meyer e Naumann (1992). Sendo esta vaga conduzida,
no caso da União Europeia, pela Comissão Europeia, e no caso mundial,
pelos EUA, é provável que a externalização se apresente para muitos países
como uma “atitude” intransponível e necessária, além de ser útil para a
legitimação das políticas nacionais perante as respectivas populações.
Entre os processos de externalização, destaca-se aqui o da produção
estatística. Desde os anos setenta que existe uma acção conjugada entre a
UNESCO (U), a OCDE (O) e a União Europeia (C, então Comunidade
Europeia), chamada UOC, que tem como finalidade articular as temáticas e
compatibilizar os procedimentos de recolha e de divulgação estatística sobre
educação. Após um longo período de relativo marasmo, o projecto INES(International Educational Standards), da OCDE, veio, já nos anos oitenta,
dar um novo impulso à recolha e ao tratamento estatístico de dados
internacionais sobre educação e formação. Em 1994, a antiga acção
conjunta ganha novo fôlego, agora sob a designação de UEO ( o E vem de
Eurostat), e as agências internacionais procedem, nos anos noventa, à
revisão do ISCED (International Standard Classification of Levels of
Education).
Nos últimos anos, a OCDE tem publicado, como produto do projecto INES,
volumosos estudos estatísticos, intitulados muito sugestivamente "Olhares
sobre a Educação", em que se procede a um laborioso trabalho de síntese
comparativa entre os sistemas educativos dos países da organização. Em
cada ano que passa, esta publicação tem um maior impacto junto da opinião
pública dos países desenvolvidos, tendo-se inventariado, por exemplo, por
um processo que está longe de ser exaustivo, cerca de cento e setenta
notícias de jornal, em dezassete países diferentes, em torno do lançamento
da edição de 1996 dos “Olhares...”, em Paris, em Dezembro de 1996.
270
Também a União Europeia, através da rede Eurydice, deu um novo impulso
à difusão estatística dos dados relativos à educação e à formação, através
da publicação "Les chiffres clés". É óbvio que existe, tanto no caso anterior
como neste, um labor de base que é nacional, existindo células nacionais de
produção
estatística,
adstritas
e
síncrones
com
estas
unidades
transnacionais. Decorrido este processo produtivo, defluem dois resultados.
De um lado, o espaço de maior visibilidade e de maior valoração das
estatísticas nacionais passa a ser o espaço internacional e, do outro, à
medida que se desenvolve e diversifica o labor estatístico, mais cresce o
campo da harmonização internacional entre os sistemas educativos
nacionais. Estes tendem a adaptar e até a mudar a sua realidade para a
tornar estatisticamente mais próxima e, assim, mais comparável.
Schriewer identifica os três principais efeitos internos dos processos de
externalização para situações mundiais: eles envolvem a minimização das
diferenças socioculturais pela sugestão de uma orientação em direcção a
"sociedades de referência" no plano internacional; eles objectivam os
"rationale" indispensáveis às políticas reformadoras; eles neutralizam a
obrigação de recurso imediato a valores ou a ideologias baseadas em
valores, por referência a padrões de cientificidade.
As externalizações ocorrem numa vasta trama de interconexões no seio do
sistema mundial, tal como o define a perspectiva institucionalista. Com
efeito, a constante externalização para situações mundiais imbrica
num
processo de auto-reflexão de um sistema educativo que se confronta com
outros sistemas educativos e com os seus próprios processos de autoreflexão. Acumulam-se, assim, relações de observação ilimitadas interEstados que fazem emergir "uma trama de referências recíprocas que
recebe a vida de si própria, movendo, reforçando e dinamizando a
universalização, por todo o mundo, das ideias, modelos, padrões
271
educacionais e opções para as reformas"(Schriewer, 1995).
Esta trama de processos de externalização contribui decisivamente para
sustentar e legitimar, no plano nacional, acções simbólicas de reforma
educativa em qualquer país do mundo. Ginsburg e Cooper (1991) referem
que grande parte dos conflitos nacionais em torno das reformas educativas
radica nos conflitos despoletados e explicáveis nas dinâmicas externas do
sistema mundial. A retórica reformadora que ocorre em diferentes países ao
mesmo tempo e com contornos tão semelhantes, como no caso da
desespecialização e integração curricular no ensino secundário, requer
continuamente uma contextualização no plano global, plano onde ocorrem as
crises e se enunciam as políticas para a sua superação.
Os processos de externalização, deve ainda referir-se, uma vez que se
constituem em relação a "sociedades de referência", derivam em processos
de aproximação das periferias em relação ao centro, sendo este constituído
pelos países mais ricos, mais desenvolvidos e com sistemas educativos tidos
como mais performantes nas comparações internacionais. No entanto, o
contexto das relações que se estabelecem no plano internacional não cabem
numa apreciação tão mecânica entre centro e periferia. A realidade do
relacionamento inter-Estados é bem mais complexa e, advertem os
institucionalistas, comporta uma multiplicidade de tipos de relacionamento
que induzem um amplo leque de influências, que vai da dominação, à
competição e à aliança, o que, não sendo aqui objecto de aprofundamento,
se pretende assinalar devidamente.
A construção do sistema educativo mundial
Uma conclusão se impõe: o sistema mundial pode ser, como referimos, uma
unidade pertinente de análise dos fenómenos educativos. No presente
272
estudo internacional ela revela-se particularmente importante. Segundo a
teoria do sistema mundial, as macroestruturas sociais do fim do Séc. XX só
podem ser adequadamente compreendidas tendo em consideração o
contexto global das relações de interdependências que se intensificaram por
todo o mundo de um novo modo (Ginsburg e Cooper, 1991; Schriewer,
1995). A posição de um país dentro do sistema mundial condiciona os efeitos
dos factores económicos, políticos e socioculturais internacionais, tanto no
desenvolvimento como no subdesenvolvimento do sistema educativo
(Arnove, 1980).
Albert Bergesen, citado por Schriewer, refere que, estando nós já longe dos
anos 50 e das formações iniciais do sistema mundial, produzidas em torno
da teoria da dependência, é agora tempo de conceber o sistema mundial
como uma realidade “sui generis” que emerge como uma "realidade colectiva
exógena às nações", tal como o é o mundo e o espaço mundial de que falam
Morin e Nair. Nesta mudança de paradigma, prossegue Bergesen, o
momento final chegará quando invertermos a estrutura de análise do sistema
mundial, que vai das partes para o todo, e a orientarmos para um paradigma
que vai do todo para as partes. Nesse caso, o sistema mundial teria as suas
próprias leis de movimento que, por sua vez, determinam as realidades
sociais, políticas e económicas das sociedades nacionais.
Embora não aceitando ir, como Bergesen, ao ponto de propor a substituição
da sociologia pela "globologia", ciência da "realidade colectiva da ordem
mundial", cremos que este derradeiro percurso através da teoria do sistema
mundial e dos modos de construção e de acção do sistema educativo
mundial constitui um novo arco analítico que nos permite voltar a olhar de um
modo mais consistente o problema de partida, o que faremos mais adiante,
de modo mais integrado.
Em síntese, a construção do sistema educativo mundial é um processo
273
histórico, em que necessariamente predominam os fluxos e os efeitos de
longa duração. Esta construção social é um jogo cruzado e, em larga
medida, imperceptível, de um conjunto de factores, entre os quais acabamos
de destacar sete, que retomamos agora de modo resumido e global.
Antes porém refira-se que estas dimensões identificam o sistema educativo
mundial como um modelo sociocultural transnacional específico e entre elas
estabelecem-se
as
mais
variadas
interconexões
e
redes
de
interdependências, sob a acção de diversos centros de alimentação do
sistema, entre os quais destacamos a acção continuada das organizações
internacionais, de fora para dentro e de cima para baixo, o sistema de
comunicação científica, a educação comparada e internacional e a
externalização dos sistemas nacionais para o sistema mundial, agora de
dentro para fora, de baixo para cima e de perifieria para o centro28.
Em primeiro lugar, a teoria institucionalista recorre ao conceito de sistema
educativo mundial como um "consenso abstracto" de que se socorrem as
diferentes sociedades nacionais, como elemento intrínseco e factor de
enorme relevância na construção da sua modernidade. No modelo
sociocultural transnacional moderno, seguido pela generalidade dos países,
ao longo dos séculos XIX e XX, os sistemas escolares modernos
desempenharam um importante papel como veículos sociais por excelência
da ideologia do progresso social e da modernização económica, da
construção da cidadania e da coesão nacional dos Estados-nação e, ainda,
do optimismo inerente às perspectivas de mobilidade social ascendente, que
os mesmos sistemas supostamente transportam em si.
Ao exercerem este crucial papel social, os sistemas escolares seguiram
sensivelmente o mesmo modelo, em todo o mundo moderno, uma tecnologia
28 Embora se tenham identificado as dimensões deste sistema e algumas das combinações e optimizações do seu
funcionamento, não cabe no âmbito desta investigação proceder a um aprofundamento da sua complexidade estrutural e
274
social de alcance mundial, o sistema educativo mundial. Os Estados
conduziram este processo recorrendo a um modelo cultural transnacional,
praticamente idêntico em todo o mundo. Por isso, a força das reformas
escolares empreendidas e a base para o incrementalismo nos investimentos
nos sistemas públicos de educação não hão-de procurar-se apenas em
qualquer particularismo nacional, por mais nacionalista que se apresentem
as retóricas reformadoras de cada Estado, mas também nas tendências que
se afirmam no sistema educativo mundial.
Para a solidificação desta matriz e para a sua disseminação, processos
altamente interligados, contribuem em particular, como vimos, a expansão da
ideologia da modernização e a expansão mundial de modelos de
escolarização, o sistema de comunicação científica, a acção prolongada das
organizações internacionais, o labor dos técnicos e dos cientistas da
educação comparada e internacional e a externalização patrocinada pelos
poderes políticos nacionais. O rendilhado do sistema educativo mundial, tal
como uma teia de aranha, é uma construção muito lenta, contínua, silenciosa
e quase imperceptível, sob certos ângulos de visão mais apressada, tecido
em que laboram dezenas de organizações internacionais, milhares de
peritos e cientistas da educação, cerzido em centenas de revistas e de livros,
na rede Internet, em comunicações e encontros que decorrem pelo mundo
fora e em permanentes e prolongadas contemplações transnacionais entre
os países, olhares estes predominantemente dirigidos da periferia para o
centro do sistema mundial. Assim se enquadram, espalham e apoiam os
padrões de institucionalização educacional, com as ideologias que os
sustentam.
Tudo se passa como quando olhamos para o ceú, azul e limpo, e não vemos
nada mais do que um imenso azul. Todavia, invisível e estranhamente, o céu
está permanentemente crivado por uma importante rede de corredores de
funcional.
275
passagem dos aviões que provêm e se dirigem para vários países do
planeta.
Apesar
de
não
os
vermos,
esses
corredores
existem e
desempenham um papel crucial na regulação do tráfego contínuo de muitos
milhões de pessoas por todo o mundo. Assim parece ser com o sistema
educativo mundial. As escolas locais e os responsáveis políticos nacionais,
quando lançam reformas educativas e quando olham para o seu firmamento
de modelos e de ideologias, têm dificuldade em vislumbrar a acção do
sistema educativo mundial. Por vezes até rejeitam a ideia da sua presença,
em nome da identidade nacional e local. Mas ele não deixará, por isso, de
estar presente e actuante, sendo construído inclusivamente pelas mãos
daqueles que podem negar a sua acção.
Apesar disso, reconhece-se que existe em cada contexto nacional um
conflito específico de interesses entre grupos sociais e uma "coerência
societal" nacional que importa não menosprezar. Esta assenta em tradições
e culturas históricas diferenciadas, bem como em múltiplos jogos de relações
entre subsistemas nacionais, tais como as empresas, a educação e a
formação, o compromisso salarial e a concertação social. A perspectiva de
Schriewer, a que melhor convive com a teoria do sistema mundial, que se
refere à reinterpretação e reelaboração nacional das "orientações" do
sistema educativo mundial, com base na interdependência nacional entre
padrões nacionais específicos, é a que, em nosso entender, melhor dá conta
da historicidade própria da divergência que existe no seio de um processo
de homogeneização crescente. Como Cantor (1989) destaca, como
conclusão do seu estudo internacional dos sistemas de ensino técnico e de
formação profissional, o mais óbvio e pertinente a assinalar é o modo como
cada sistema reflecte fielmente as características das sociedades de que são
parte.
Deste modo, ao mesmo tempo que se propaga em cascata uma retórica
transnacional e o seu virtuosismo, nomeadamente em torno da emergência
276
do novo sistema produtivo, o modo de produção pós-fordista e flexível,
discurso este de tipo voluntarista, optimista e concomitante com uma época
de reestruturação da economia capitalista e de fragmentação das referências
culturais, permanece no plano local um sem número de contradições,
conflitos e modos de regulação, que divergem de país para país, que
chamam à atenção para a necessidade de não trocar o desejo e o cenário
transnacional pela realidade concreta das relações sociais envolventes num
dado território, que apelam para uma atenção redobrada face aos efeitos
preversos derivados do facto de se tomar, por vezes, como referentes
fundamentais, simplificações estatísticas excessivamente liofilizadas e
demasiado
afastadas
da
espessura
dos
tecidos
sociais
locais.
A
convergência ideológica internacional aqui sublinhada, bem como as suas
consequências no plano educativo nacional convivem, no quotidiano e nos
múltiplos
territórios
sociais
europeus,
com
marcadas
diferenças,
anteriormente também evidenciadas, desde os mercados de trabalho
segmentados e sistemas produtivos diferenciados, até sistemas escolares
com fundações organizacionais díspares, modos diversos de regulação da
ligação escola-emprego e ainda múltiplos tipos de representações sociais e
de expectativas socioprofissionais.
Pelo exposto neste capítulo, é forçoso constatar-se a tensão permanente
entre a força centrípeta e homogeneizadora da globalização e a força
centrífuga da preservação da diversidade local e nacional. Enquanto que o
sistema mundial concebe e organiza a difusão dos modelos, como sistemas
sociais virtuosos (Meyer, 1993), enformadores das reformas educativas
nacionais, segundo uma hierarquização que corre do centro para a periferia
do sistema mundial, as elites do sistema local ou nacional desencadeiam
sobretudo os processos de recepção e organizam a sua própria apropriação
desses modelos. É certo, no entanto, que o seu poder e sua legitimidade se
ampliam pelo recurso à retórica geral e aos modelos mundiais padronizados,
gerando-se habitualmente um silencioso consenso no plano nacional diante
277
da sua virtuosidade, como que cienticizada.
O "grau de estandardização global" que se atingiu nos discursos
reformadores, nas medidas de política e, em certa medida, em estruturas
organizacionais é tal que "talvez não exista outra área das políticas públicas,
nem mesmo na economia, nem nas políticas sociais e ambientais", onde se
tenha
aprofundado
tanto
o
processo
de
internacionalização
e
de
globalização. Os sistemas educativos e a investigação educacional são,
ainda no dizer de Schriewer, componentes desse processo "especialmente
susceptíveis às dinâmicas de incremento da internacionalização" (Schriewer,
1995: 15). Importará, por tudo isto, determinar de que lugar é que se olha a
diversidade nacional e local, se de um ponto de vista local, se de um ângulo
nacional, se de uma perspectiva global. Nós, aqui, optamos por esta terceira
via.
Além disso, restará saber, o que importa investigar na análise empírica,
quais os efeitos da globalização sobre a evolução dos sistemas educativos
nacionais, seja pela perda contínua do referente estatal nacional seja pelo
recurso crescente a retóricas legitimadoras, oriundas do espaço mundial,
seja ainda pela sensação, poucas vezes explicitamente partilhada, de que os
decisores políticos, à míngua de orientações e recursos para a resolução
dos problemas nacionais e locais, preferem lançar processos de reforma
educacional carregados de tensões entre o global e o local. Em todo o caso
e retomando a metáfora do céu azul, é muito provável que não seja fácil vir a
obter descrições promenorizadas e confissões profundas, por parte dos
governos nacionais e dos vários actores sociais nacionais, acerca das suas
atitudes de “contemplação” internacional e mundial.
279
Capítulo 4
O Ensino secundário na Europa (1945 - 1995)
Ao investigarmos uma recente tendência das políticas educativas na Europa
devemos, por princípio, procurar escapar às rasteiras a que a nossa
brevidade histórica nos submete a cada momento. De facto, a brevidade da
nossa vida deve ser compensada com a duração, o tempo que foi o de
outros, porque, como diz José-Luis Garcia Garrido, “em educação, como em
quase tudo, a história explica muitas coisas que aparentemente surgem
injustificadas, complexas, inextricáveis” (1993:25). Os novos rumos da
integração e da desespecialização do nível secundário devem passar o teste
da longa duração e da temporalidade para, no fio do tempo e de um modo
diacrónico, serem devidamente revistos. Tanto podem fazer parte de vagas
de fundo, fios condutores e continuidades históricas, como constituirem
descontinuidades, novos caminhos e rupturas, mais ou menos pronunciadas.
A prova do tempo pode reconfigurar a nossa visão do problema de partida e
trazer à tona da investigação contornos desconhecidos, trajectórias
inimagináveis.
Por isto, o segundo passo da reflexão teórica é o da reinserção do objecto
seleccionado no tempo, pois só assim se lhe pode restituir, no ensejo de o
conhecer, parte da sua espessura sociohistórica. A indexação do objecto ao
tempo representa, portanto, um esforço de conhecimento e não uma mera
formalidade processual, eventualmente dispensável. A desespecialização e
a integração que ocorrem no ensino secundário superior constituem um
acontecimento cuja análise requer que ele seja situado numa cadeia de
acontecimentos históricos que lhe conferem sentido e, sobretudo, em novas
lógicas de conhecimento que as ligações diacrónicas viabilizam.
Procura-se compreender a evolução do ensino secundário superior na
280
Europa Ocidental, desde o após-Guerra (1945-1995). Mais do que uma
inventariação exaustiva de dados, pretende-se discernir as principais linhas
de força que condicionaram a oferta e a procura de ensino secundário, com
particular realce para os percursos de ensino técnico e de formação
profissional inicial, tendo presente, na medida do possível, a diversidade de
modelos educativos em presença, fruto da diversidade de contextos culturais
nacionais. Não se menospreza esta diversidade, antes se recorre a uma
análise histórica mais geral da evolução do ensino secundário, como passo
inultrapassável de inteligibilidade.
A este capítulo segue-se um outro que descreve e analisa o movimento de
desespecialização e de integração curricular que ocorre, nos anos noventa,
em vários países da Europa.
Os anos dos grandes mitos e a expansão da oferta e da procura
Após o difícil período das guerras, que afectaram particularmente a Europa
na primeira metade do século XX, o mundo industrial expandiu-se durante
várias décadas, sem crises estruturais, tendo como principal referente geral
a ideologia do progresso, em que se dava por garantido que a crescente
dominação da natureza pelo homem era a verdadeira medida do avanço da
humanidade, e tomando como principal referente concreto o modelo de
sociedade capitalista industrial norteamericano, em que se combinavam o
liberalismo económico e a social-democracia, na linha do New Deal proposto
por Roosevelt (Hobsbawm, 1996).
A produção mundial de produtos manufacturados quadruplicou,
entre o
início dos anos cinquenta e o início dos anos setenta, e o comércio mundial
destes produtos cresceu dez vezes. Expandiu-se o modelo de produção
industrial de massa e a economia beneficiou de uma revolução tecnológica
281
profunda que contribuiu para sustentar as décadas de ouro deste século.
Eric Hobsbawm, historiador inglês, destaca três marcas profundas no defluir
destes anos, na sequência da revolução tecnológica: (a) a vida quotidiana
transformou-se "totalmente", com mais ênfase nos países ricos, sobretudo
pela insuspeitada generalização de novos produtos técnicos como a
televisão, os discos vinil, o rádio portátil, o telefone, o frigorífico, a máquina
de lavar, o automóvel, os produtos plásticos; (b) a complexidade tecnológica
associa processos de inovação que requerem esforços de investigação cada
vez mais aturados; (c) as novas tecnologias são capital intensivas e
dispensam o trabalho humano, sendo os seres humanos mais importantes,
numa economia deste tipo, como consumidores de bens e de serviços
(Hobsbawm, 1996).
Com este salto na estruturação do capitalismo, a sua Idade de Ouro, na
expressão do mesmo autor, gerou-se e propagou-se a ideia de que estes
benefícios do desenvolvimento e da "modernização", e o bem-estar a eles
associado, chegariam a todos. Lentamente se foram construindo, assim,
sociedades de bem-estar, protegidas pelos governos nacionais, em que
predominava um clima de quase pleno emprego e de consumo de massa,
por parte de uma população, em geral, crescentemente bem paga e melhor
protegida em termos sociais. É neste clima genérico que ocorre a grande
expansão escolar da história europeia.
Logo após a II Grande Guerra Mundial, os países da Europa colocaram a
educação como uma das prioridades dos processos de reconstrução social,
política e económica. Os anos cinquenta e sessenta foram um período de
extraordinária expansão escolar. No plano da iniciativa particular, os pais
acreditavam na promessa de que a frequência escolar representava um
futuro melhor para os seus filhos. No plano da iniciativa pública, este esforço
societal esteve baseado também em duas convicções principais. A primeira
consistia na assunção, por parte da maior parte dos governos, da ideia de
282
que o melhor modo de um Estado democrático superar as desigualdades
sociais era através da extensão massiva da educação escolar. A segunda
apoiava a primeira e acrescentava que o desenvolvimento de um país defluía
do progresso técnico e do aumento da produtividade laboral, dependendo
esta do fornecimento de mão-de-obra qualificada por parte do sistema
educativo (Coombs, 1985).
Este quadro socioeconómico favorável, um clima de esperanças e
promessas, é descrito por Husén, Tuijnman e Halls (1992:34) como sendo
aquele em que talvez pela primeira vez, na história da Europa, as aspirações
dos indivíduos jovens e de seus pais corresponderam ao que, nesse tempo,
era socialmente percebido como a necessidade de uma mão-de-obra bem
educada e qualificada. O tempo do "baby boom" do pós-Guerra era vivido
num ambiente de confiança social nas enormes potencialidades da
educação para promover o bem-estar social. A ideologia do Estadoprovidência assegurava com tranquilidade intervenções estatais crescentes
na organização da sociedade, mormente na educação dos cidadãos,
erguendo poderosos sistemas educativos nacionais, poderosos já pela
dimensão que adquiriram, poderosos já pela expressão da força da acção
dos Estados.
Sustentados pela teoria do capital humano e apoiados por planificadores da
educação, que tinham por missão fixar centralmente as necessidades
profissionais futuras das economias, os Estados nacionais esforçaram-se por
oferecer constante e crescentemente recursos humanos qualificados para
apoiar o crescimento económico, tomado como um insaciável sorvedouro
desses recursos. A generalidade dos governos aumentou de modo
significativo as despesas públicas com o ensino, contribuindo, assim, para
uma mais rápida evolução da escolarização da população.
Esta vaga, povoada de crenças e de evidências sem necessidade de prova,
283
iria provocar o prolongamento da escolarização da generalidade da
população, incluindo os adolescentes e os jovens saídos de meios
tradicionalmente pouco escolarizados. Como observa René Rémond, "o fim
da 2ª Guerra Mundial marca bem, em relação à 1ª Guerra Mundial e ao
período entre as duas guerras, uma etapa decisiva sobre a via de uma
democracia política e social mais completa e efectiva" (1974:189).
Este clima social e este pano de fundo ideológico são de enorme importância
e serão eles os principais sustentáculos do acelerado crescimento da oferta
e da procura de educação escolar; eles precedem-no e comandam-no.
R.Grégoire, Director da AEP - Agence Européenne de Productivité, criada
em 1953, ainda antes da constituição do actual figurino da OCDE, sublinhou
no seu relatório sobre "a educação profissional" que as medidas de
desenvolvimento
educativo
foram
tomadas
independentemente
das
necessidades da economia, constituindo medidas do foro político e, em boa
parte, resultantes da pressão social "frequentemente irracional" que se
exercia sobre os poderes públicos ( Grégoire, 1967:73). Também P. H.
Coombs, em 1968, referia que "a procura social de educação se incrementa
de modo inexorável sem ter nada em conta a situação da economia e dos
recursos disponíveis para a educação" (Coombs, 1985:60). Finalmente, E.
Hobsbawm observa que a escala da explosão escolar excedeu de longe as
estimativas do planeamento racional, pois as famílias, onde tinham a escolha
e a oportunidade, levavam os seus filhos até ao ensino superior, uma vez
que esse era de longe o melhor modo de os conduzir a um melhor
rendimento e, sobretudo, a um melhor estatuto social (1996:293).
Sustenta-se, assim, na Europa, sobre esta matriz sociocultural e política,
uma tendência de longa duração para o aumento da procura social de
educação, movimento esse que não cessou de se prolongar nas décadas
seguintes, por força não já apenas do acesso, mas sobretudo de um
prolongamento contínuo da permanência dos jovens no sistema escolar.
284
A duração da escolaridade obrigatória foi sendo sucessivamente prolongada
e o número de inscritos no ensino secundário aumentou, entre 1960 e 1970,
em alguns países, na ordem dos 230% ( cfr. Quadro 4.1).
Quadro 4.1
Taxa de crescimento do número de alunos inscritos no ensino
secundário superior em alguns países europeus
1960-1970
Países
Crescimento
entre
1960/1970
%
Alemanha
160
Áustria
195
Dinamarca
200
Espanha
233
França
238
Holanda
168
Itália
216
Portugal
-
Suécia
192
Fonte: OCDE ("Annuaire Statistique de l’Enseignement", Paris, 1974)
Podemos estimar também este crescimento da procura social do ensino
secundário avaliando a percentagem dos que concluiram pelo menos esse
nível de estudos e que têm entre 55 e 64 anos, em 1992, e comparando-a
com os que se situam, no mesmo ano, entre os 25 e os 34 anos, em
idênticas circunstâncias. É o que o Quadro 4.2 procura evidenciar. As
disparidades intracontinentais são enormes, apesar do generalizado
aumento do acesso da população ao diploma do ensino secundário de
segundo ciclo.
285
286
Quadro 4.2
Proporção da população de dois grupos etários que terminou pelo
menos os estudos secundários de segundo ciclo (1992)
%
País
Grupo
25-34 anos
Grupo
55-64
Incremento
percentual
Alemanha
89
69
30
Áustria
79
49
30
Bélgica
60
24
36
Dinamarca
67
44
23
Espanha
41
8
33
Finlândia
82
31
51
França
67
29
38
Holanda
68
42
26
Irlanda
56
25
31
Itália
42
12
30
Noruega
88
61
27
Portugal 1
15
4
11
R.Unido
81
51
30
Suécia
85
46
39
Suiça
87
70
17
Turquia
21
5
16
1 - Dados de 1991
Fonte : OCDE (1995)
Entre 1960 e 1970, os efectivos do ensino secundário superior mais do que
duplicam, nos países europeus. A taxa de escolarização a tempo completo
dos jovens de 17 anos evoluiu de 14 para 20% na Alemanha, de 30 para
53% na Bélgica, de 10 para 32% na Dinamarca, de 15 para 30% na Itália, de
18 para 61% na Suécia, de 30 para 45% na França e de 11 para 26% no
Reino Unido (OCDE: 1976:30). Nos EUA, na mesma época, esta variação foi
de 75 para 86% (ibidem).
Alguns autores sublinham o momento do lançamento do primeiro satélite
287
artificial, pela União Soviética, o Sputnik, em 4 de Outubro de 1957, como o
ponto de condensação ou o "ponto de viragem" (Husén et ali, 1992; Berg,
1970, já citado) na percepção, por parte dos políticos e da população, do
papel crucial da educação escolar e do conhecimento científico-técnico para
o desenvolvimento das sociedades ocidentais (Miquel,1991). O clima de
guerra-fria que se instalava favoreceu uma enorme capitalização deste
acontecimento, muito particularmente nos EUA, para efeitos de mobilização
interna da sociedade norteamericana para o investimento em inovação
científico-técnica e em educação e formação.
A expansão escolar vai incidir, nos países mais desenvolvidos da Europa, no
alargamento contínuo da capacidade de acolhimento dos jovens no ensino
secundário, tanto inferior como superior. Coombs (1985:101) assinala
pertinentemente que o "ponto de arranque" para esta expansão foi o "ensino
secundário de tipo académico". O tradicional e dominante ensino secundário
elitista, estruturado para servir uma pequena fracção de privilegiados, a
caminho da realização de estudos superiores, foi expandido "linearmente"
para responder aos imperativos de uma massificação escolar sem
precedentes, de sentido político democrático . Como refere o autor dos dois
conhecidos relatórios sobre a "crise mundial da educação", o tipo de escolas
não se alterou substancialmente, elas apenas se tornaram muito maiores.
Com a massificação do ensino secundário e o prolongamento da
escolarização do primeiro para o segundo grau, prolongam-se igualmente os
principais debates políticos em torno do seu lugar e papel no sistema de
ensino. Uma questão nuclear que sobressaía era a da conciliação entre as
tradicionais vias "académicas" deste nível de ensino e as vias profissionais,
de preparação para o trabalho. Na importante Conferência internacional de
Williamsburg, Virgínia, em 1967, um dos debates principais centrou-se nas
consequências da explosão das frequências escolares, em particular sobre a
diversificação escolar. Como referem Husén, Tuijnman e Halls (1992:38), a
288
questão dominante foi a de saber se, e se sim como, os estudantes das
escolas secundárias deveriam ser diferenciados entre programas de estudo
"académicos" e "profissionais".
O tipo de debate, inevitavelmente com diversos cambiantes ao longo dos
países e do tempo, e o confronto entre políticas educativas ora mais
defensoras da vertente unificadora, ora mais propositoras de um ensino
diferenciado e, consequentemente, de um papel e de um lugar importante
para o ensino e a formação profissional, vão prolongar-se no palco europeu
ao longo de toda a segunda metade do século XX.
De um lado, vai afirmar-se o movimento em prol de um ensino secundário
profissional, capaz de acompanhar e de servir o processo de crescimento
económico em curso. Do outro, vai procurar estender-se o modelo do ensino
primário aos ciclos de ensino seguintes. Vejamos o primeiro movimento. No
após-Guerra era dominante na Europa uma organização taylorista-fordista do
sistema de produção capitalista. Como já vimos, esta baseava-se na
produção em série, articulada mecanicamente, numa mão-de-obra intensiva
e, em geral, com baixas qualificações, incorporando uma elevada
componente de rotinas. A produção organizava-se de modo fortemente
hierarquizado entre as funções de concepção, produção e comercialização,
sob orientação de um comando central forte. A grande maioria das funções
subordinadas eram fortemente especializadas, limitadas e isoladas e
assentavam na simplicidade e na repetição.
O crescimento económico gerava uma procura de mão-de-obra que absorvia
a quase totalidade da oferta disponível. Neste contexto, o ensino secundário
geral tinha como principal função servir de passagem para o ensino superior
universitário, dirigindo-se a uma minoria de estudantes, e o ensino
secundário técnico e profissional, bem como a aprendizagem, tinham por
missão qualificar os técnicos intermédios necessários a uma organização
289
diferenciada e fortemente hierarquizada do trabalho produtivo.
A regulação dos fluxos da procura escolar era planificada centralmente pelos
governos, por intermédio do recurso a estudos de previsão de necessidades
de mão-de-obra, de forte pendor quantitativo e econométrico. A ideologia do
capital humano, como se referiu, serviu de principal sustentáculo mobilizador
e revelou-se, ao longo da segunda metade do século, um inegualável
cimento capaz de ligar historicamente a equação educação-trabalho. A
evolução do ensino secundário profissional e do ensino superior, profissional
por excelência, seguiu de perto a reestruturação das economias nacionais no
quadro da própria evolução do capitalismo industrial (Benavot, 1983).
Agências internacionais como a UNESCO, o Banco Mundial, a OCDE e a
OIT desempenharam, no período do após-Guerra, um papel relevante no
desenvolvimento do ensino profissional, dentro de um ensino secundário
diferenciado ( Benavot, 1983:65). As conferências internacionais e regionais
sucederam-se, desde 1946 e 1950 (OIT), a 1961 e 1970 (UNESCO) e,
através delas e da orientação dada ao financiamento internacional,
propagavam-se ideologias que legitimavam e favoreciam, com autoridade, o
desenvolvimento do ensino secundário diferenciado.
Como vimos, o conceito mais recorrentemente usado para qualificar este
movimento em direcção ao desenvolvimento dos aspectos profissionalizantes
do sistema de ensino e de formação e ao reforço das capacidades produtivas
dos indivíduos que se formam é o de profissionalismo. Ele contrapõe-se ao
de ensino geral ou ensino "liberal", este último usado na linguagem anglosaxónica. A defesa do profissionalismo escolar assenta em três tipos de
argumentos: um macroeconómico, um de ordem social e outro de ordem
política.
290
O primeiro refere-se à teoria, amplamente difundida, que advoga a existência
de uma relação directa entre o investimento em ensino e formação
profissional, o que se chama a qualificação escolar e profissional da mão-deobra, e a melhoria do desempenho da economia. Esta perspectiva comporta
ainda um argumento escolar que concorre no mesmo sentido e que sustenta
que o currículo geral tradicional dos liceus não é o lugar mais adequado para
fomentar o desenvolvimento de competências profissionais, dado o seu
pendor académico e abstracto, completamente desligado do mundo do
trabalho. Segundo esta mesma teoria, o crescimento do volume de
desemprego dos jovens diplomados, inclusive pelo ensino superior, resulta
antes de mais de um défice de qualificações e de um desajustamento entre a
produção de qualificações escolares e o emprego disponível.
O segundo argumento relaciona-se com a crescente importância do
elemento técnico nas nossas vidas e nas nossas sociedades, que tem estado
na base de importantes transformações sociais, e na concomitante
perspectiva de que ao sistema escolar, através da formação tecnológica,
cabe o inelutável papel de preparar os cidadãos com as competências
adequadas ao uso e usufruto das novas e permanentes conquistas da
técnica. Defende-se ainda que a qualificação técnológica dos escolares
constitui um relevante valor de troca, ou seja, um investimento altamente
rentável na disputa para a ocupação dos lugares disponíveis no mercado de
emprego.
O terceiro argumento é o que sublinha a valorização das políticas de ensino
e de formação profissional e da panóplia de programas de melhoria da
transição entre a formação e o emprego como instrumentos sociais de
primeira importância na luta contra o desemprego juvenil. A qualificação
profissional inicial da mão-de-obra transforma-se numa prioridade política
dos governos, em particular numa prioridade educativa, mormente em
períodos de recessão do emprego, em geral, e do emprego juvenil, em
291
particular.
Com esta base desenvolveu-se uma crença muito expandida em torno dos
benefícios do investimento educativo no ensino técnico e na formação
profissional, tanto sobre a economia, como sobre os empregos e sobre os
indivíduos.
A
ideologia
profissionalista
irá
desenhar
uma
pressão
permanente e de longo prazo sobre os sistemas educativos das sociedades
industriais para adoptarem formas mais directamente profissionais de ensino
e de formação, tendo em vista criar uma força de trabalho mais competitiva,
num quadro de crescente internacionalização dos mercados e dos capitais e
de acréscimo contínuo da concorrência na economia mundial (Hickox, 1995).
Todavia, o incremento do profissionalismo dos sistemas educativos não
escapou a fortes movimentos críticos, como já tivemos oportunidade de
evidenciar.
Por outro lado, gera-se um outro movimento: desde o fim da I Guerra Mundial
que se tinha vindo a desenvolver e a espalhar pelo mundo ocidental uma
vaga de fundo que estendia o modelo do ensino primário, enquanto ensino
geral e comum para todos, ao ensino secundário de primeiro grau. A
expansão escolar que se verifica após a II Guerra Mundial vai encontrar-se
socialmente com a trajectória deste movimento em formulação. Esta
trajectória unificadora dos vários tipos de escolas e de programas escolares,
muito devedora de uma perspectiva política democratizadora, que visa
alcançar uma mais efectiva igualdade de oportunidades, irá estar também
particularmente presente no pós-Guerra e durante as décadas seguintes
como um sulco utópico que marca visivelmente o século XX.
De facto, o modelo escolar e dentro dele o ensino geral académico
constituiram, em vários países, as vias eleitas para o investimento
educacional, nos anos sessenta e setenta, em nome da opção pela
democratização social e pela igualdade de oportunidades e em nome da
292
rejeição de uma escola estratificada e diferenciadora, que reproduzia as
relações de desigualdade social. Se esta opção provocava ou não
disfuncionalidades na relação entre as aprendizagens escolares e as
necessidades do mercado de emprego era uma preocupação social que não
se inscrevia no espírito do tempo. A época era de optimismo e nenhum
referente se acomodava melhor a este espírito do que um funcionalismo sem
reservas, racionalidade social tão radicalmente optimista.
A unificação e o ensino de massas
Até aos anos setenta, só os EUA conheciam um ensino escolar a tempo
completo de duração prolongada. Mais de 70% dos jovens americanos de 17
anos
estavam
inscritos
numa
"high
school"
(Grégoire,
1967).
O
prolongamento da duração da escolaridade obrigatória fez-se, na Europa,
mantendo a diferença institucional entre escolas, até ao início dos anos 60.
A Suécia tomou a dianteira na criação de uma escola unificada, a
"Grundskola", cuja frequência era obrigatória para todos os cidadãos dos 7
aos 15 anos de idade.
Tinha sido após a I Guerra Mundial que se tinha iniciado o processo lento de
generalização de um novo tipo de oferta escolar unificada, que se tornaria
um veículo privilegiado para a generalização do acesso dos jovens à
escolarização no período pós-obrigatório, na Europa. O modelo seguido foi o
da escola polivalente, inicialmente desenvolvido nos EUA e na URSS, que
propunha uma formação geral e comum para toda a população até aos 15-16
anos de idade.
Durante três décadas, este modelo iria ser subsumido pelas políticas
educativas dos vários países europeus, com ritmos diferenciados e sob
influências políticas diversas. Os dois pontos de partida para este percurso
longo e ziguezagueante são, de facto, os EUA e a URSS, logo após o termo
da I Guerra Mundial.
293
Em 1918, nos EUA, o Gabinete Federal de Educação publicava um
documento de orientações sobre o ensino secundário, que constituiu a base
da criação das "junior high schools" e que rompeu com o modelo
organizacional radical de 8+4, substituindo-o pelo novo modelo 6+3+3.
Pretendia-se desenvolver um ensino secundário intermédio, de três anos de
duração, aberto a todos os cidadãos, independentemente do seu objectivo
de prosseguir estudos ou de ingressar na actividade laboral, assente,
portanto, numa perspectiva democratizadora (Pedró, 1996).
O novo modelo aplicou-se inicialmente apenas no Estado de Ohio,
envolvendo 7% do total de alunos. No entanto, em 1950, 80% dos alunos já
seguia esta nova fórmula.
Simultaneamente, um ano após a Revolução de Outubro, são instituídos na
URSS os princípios elementares da Escola Unitária do Trabalho. Optava-se
por um modelo organizativo 5+4, em que o ensino era integrado e aberto a
todos os cidadãos e enfatizava-se o seu carácter politécnico e polivalente. A
similitude com o novo figurino norteamericano deve-se, em grande parte, à
admiração que havia, no início da Revolução Russa, pelo movimento
pedagógico progressista dos EUA. John Dewey teve oportunidade de se
deslocar à URSS para tomar contacto com a nova realidade de leste e para
divulgar as suas perspectivas educacionais.
Mas, o grande momento de incremento dos modelos de ensino unificado
chegaria com o fim da II Guerra Mundial, tanto sob a influência internacional,
como sob o impulso nacional. As Forças Aliadas cuidaram de combater
veementemente as ideologias que tinham facilitado e conduzido o conflito
armado e, tanto na Alemanha como no Japão, procuraram erguer modelos
educativos escolares que favorecessem a transição das mentalidades locais
para novos modelos e, logo, sob o efeito de uma certa normalização. Os
294
valores da democracia e da liberdade individual e a expansão da economia
aberta e de mercado, o capitalismo, estiveram subjacentes, como eixos
estruturantes, ao novo quadro político e socioeconómico imposto. No Japão,
em 1947, impôs-se uma nova Lei Fundamental da Educação, que se
inspirava numa nova escala de valores, em contraposição aos valores da
sociedade tradicional, a coeducação, a independência de espírito, a
igualdade sem distinção de sexo, estatuto ou origem familiar (Pedró, 1996).
Na Alemanha, com a divisão do território, observou-se uma imposição do
modelo soviético no território da RDA, o sistema da escola unificada, e
assistiu-se a idêntica imposição do modelo norteamericano ( 6+3+3 ) em
todos os territórios sob supervisão dos EUA, da França e do Reino Unido,
também em 1947. No entanto, aquilo que se viria a revelar um sucesso,
através da rápida evolução nipónica para um ensino secundário de massas,
no caso da RFA traduziu-se por um relativo fracasso. Os Länder mantiveram
o modelo tradicional, um dos emblemas europeus da diversificação escolar,
mantendo quatro tipos de escolas diferenciadas, desde o termo do ensino
elementar: o Gymnasium, a Realschule, a Hauptschule e, desde os anos
setenta, a Gesamtschule.
Só a partir dos anos sessenta é que se assistiria a uma significativa
expansão do modelo unificado através da Europa, sob a batuta dos sistemas
sueco e britânico. Esta era uma época de crescimento da economia
capitalista, de alargamento do "Wellfare State" e de predomínio da ideologia
socialdemocrata nos governos europeus (Pedró,1996). Na Suécia, a escola
geral básica de nove anos de duração, obrigatória e comum a todos os
alunos, a Grundskola, começou a ser preparada em 1946, por uma
Comissão Parlamentar, e seria generalizada entre 1950 e 1962. O modelo
inglês, fortemente diferenciado em três tipos de escolas, viria a encaminharse, sob impulso geral do Estado central e por acção determinada das
295
Autoridades Educativas Locais, para a reunião dos três tipos de escola sob
um mesmo arco institucional e, mais tarde, para a criação de uma única
escola secundária para todos os alunos, com um tronco comum e uma
progressiva diferenciação, a chamada "comprehensive school". Fomentada
pela Lei Callaghan, de 1976, esta escola unificada abrangeria, quatro anos
volvidos, cerca de 90% dos alunos que frequentavam o ensino secundário
em Inglaterra e em Gales.
Em 1965, em Viena, os ministros europeus da educação convidaram a
OCDE a examinar a evolução do ensino secundário, em particular a aparição
da escola polivalente e, em 1969, na Conferência de Versailles, declararam,
já após a análise de um relatório pedido à OCDE, que o ensino secundário
se
deveria
centrar
sobre
um
largo
programa
comum
(Papadopoulos,1994:106).
A escola polivalente lançada na Suécia e na Noruega, desde o início dos
anos 50, implantou-se nos dez anos seguintes em quase todos os países
europeus, seguindo o princípio geral de uma experiência educativa comum
para todos os adolescentes. As mudanças ocorreram sobretudo no ensino
secundário de primeiro grau, através da mudança de conteúdos e da criação,
em alguns casos, de novas instituições escolares. É o caso do tronco comum
de nove anos, na Noruega e na Suécia, da Scuola Media, em Itália, e do
Collège, em França. Outros países, como a Holanda ou Portugal, só em
1975 adoptariam idêntico procedimento de unificação escolar.
Note-se ainda que, em algumas destas reformas curriculares, também está
presente a influência da perspectiva politécnica, tal como foi adoptada na
RDA, ou seja, incluem-se nos planos de estudo "um conjunto de matérias
orientadas para vincular conhecimentos adquiridos na aula com a realidade
do mundo laboral" (Pedró, 1992:55). Este modelo foi introduzido pela Lei do
Sistema Educativo Socialista Integrado e pretendia cumprir o objectivo de
296
oferecer a todos os alunos uma educação geral ampla, dentro da qual a
formação e a informação sobre o trabalho tinham um papel privilegiado
(Pedró, 1992). Trata-se, com efeito, de uma formação propedêutica da
inserção socioprofissional, sem um cunho típico da formação profissional
escolar.
Em 1969, este modelo passou para a RFA, sob a designação de
"Arbeitslehre", tendo sido adoptado de modos diversos de Länder para
Länder. Em 1979, foi introduzida na "scuola media" italiana a chamada
"educação técnica" que visava "valorizar o trabalho como exercício de
operatividade,
a
par
da
aquisição
de
conhecimentos
técnicos
e
tecnológicos". Em 1975, na Dinamarca, contempla-se a existência de
"estudos profissionais" (Arbejdskendskab) na lei sobre a "Folkeskole" e, em
Portugal, é criada a disciplina da Educação Cívica e Politécnica no novo
ensino unificado. Em 1985, é introduzida a disciplina de "Technologie" no
plano de estudos dos Collèges franceses.
A unificação impôs-se, assim, como o modelo escolar dominante da
escolarização de massas no segmento do ensino secundário inferior, sob o
impulso determinante da ideologia da democratização, da igualdade de
oportunidades e do incremento da mobilidade social. A diferenciação escolar
adiou-se para os 15-16 anos e para o ensino pós-obrigatório. Como vimos, o
crescimento da procura neste último segmento da oferta educativa escolar
foi-se intensificando nos anos 60 e 70, tendo duplicado os efectivos.
Lentamente, a escolarização de massas vai chegando ao nível pósobrigatório do ensino e da formação e aos seus diversos ramos e fileiras.
Alguns países houve onde, no entanto, a diversificação escolar se manteve
nos 10 -11 anos de idade, como é o caso da Alemanha.
"Se a redefinição de objectivos e de estruturas da escolaridade obrigatória
tinha constituído o grande problema estrutural dos anos 60, a reorganização
297
do ensino secundário de segundo grau iria tornar-se a grande prioridade a
partir dos anos 70" (Papadopoulos, 1994:109). Com a massificação a ocorrer
agora no ensino secundário superior, seria inevitável a deslocação, do nível
obrigatório para o nível pós-obrigatório, do ensino secundário inferior para o
ensino secundário superior, de uma parte importante das problemáticas
nucleares. E se as problemáticas deslizam, tendencialmente avançam ainda
mais depressa as soluções políticas já aplicadas anteriormente, no nível
escolar inferior, para retomar um elemento chave da análise social de
Crozier (Crozier, 1995).
Entretanto, outros fenómenos sociais iriam condicionar fortemente a
evolução da oferta e da procura do ensino secundário superior na Europa, a
partir da década de 70.
Os "choques" dos anos 70 e os anos de crise
A crise económica que se desenrolou com os "choques petrolíferos", nos
anos setenta, teve largos efeitos sociais e repercutiu-se fortemente nas
políticas de ensino e formação, particularmente no ensino secundário
europeu. Na sequência da alta brutal dos preços do petróleo - o primeiro
"choque petrolífero" ocorreu em 1973-74 e o segundo em 1979-80 - e da
subsequente explosão inflaccionista, inicia-se uma crise da economia
capitalista, que se viria a revelar duradoura e cujo impacte está longe de
estar concluído. As taxas de crescimento económico baixaram e as elevadas
taxas de inflacção travaram o incremento da despesa pública e o
crescimento dos rendimentos reais.
Todavia, os "choques petrolíferos" são uma ponta do "iceberg" e como que o
"take-off" de um conjunto de mudanças que estavam em curso na sociedade
e na economia contemporâneas. Vários autores analisam as alterações
298
ocorridas e sublinham a sua intensidade e a sua profundidade. Crozier, ao
olhar para as derradeiras décadas do século XX, constata que "o mundo
mudou mais nestes últimos trinta anos do que durante todo o século
precedente" (1995:22). Para muitos autores a sociedade industrial à qual
tínhamos acabado por nos adaptar, entra em curso de desaparecimento.
Para Hobsbawm, a história dos vinte anos, após 1973, é a de "um mundo
que perdeu as suas referências e que resvalou para a instabilidade e a
crise"(1996:395).
Para outros autores, após a década de cinquenta e sessenta, em que se
fizeram sentir de modo inequívoco os impactos previsíveis da generalização
da microelectrónica, há uma nova sociedade em formação, onde o
conhecimento detém um papel central na configuração de novas actividades
e serviços, a "sociedade da informação" ou a "sociedade pós-industrial",
como a designaram Daniel Bell e Alain Touraine, respectivamente. Enquanto
que a sociedade industrial repousava sobre o modelo da racionalização das
actividades, o que permitia aplicar o movimento perpétuo do crescimento,
produção de massa-consumo de massa, na expressão de Crozier, a
sociedade emergente caracteriza-se já pelo aparecimento de novas
actividades económicas, como as actividades imateriais e os serviços de
base relacional, já pela internacionalização crescente das actividades
económicas e pelo aumento da concorrência e dos desequilíbrios
internacionais, já pela incorporação generalizada das novas tecnologias, em
particular novas tecnologias da informação e da comunicação, o que alterou
significativamente os processos produtivos, provocando um efeito de
reestruturação contínua da economia capitalista.
Por outro lado, uma parte da produção de massa, devido ao novo ambiente
concorrencial à escala mundial, deslocaliza-se dos países do centro do
sistema capitalista para a periferia, para os países onde o custo da mão-deobra é mais baixo, contribuindo assim para uma maior internacionalização da
299
economia e para novas configurações na divisão internacional do trabalho.
Na esfera da produção, por sua vez, tende-se a deslocar funções produtivas
e industriais para funções terciárias, as mudanças tecnológicas são mais
frequentes e o ciclo de vida dos produtos é mais curto. O sistema produtivo
passa a requerer uma mais acelerada mobilidade da mão-de-obra e torna os
próprios ciclos de pertinência das qualificações mais curtos, provocando
mais céleres desactualizações de saberes e de competências.
Neste quadro de mudança social, importa não menosprezar, no entanto,
outros fenómenos sociais concomitantes como a urbanização, as mutações
nas famílias e a própria explosão da procura de educação escolar. A
urbanização está profundamente relacionada com as brutais transformações
operadas no mundo agrícola no espaço europeu e com a deslocação
contínua da mão-de-obra para o sector terciário e para as indústrias de
serviços. A estrutura familiar tradicional alterou-se, seja por força do
exercício de novos papéis sociais pela mulher seja pela acentuada descida
do número de filhos por casal seja ainda pelo aumento dos divórcios e pelo
crescimento de famílias monoparentais e de geometria variável. A
escolarização de massas, por sua vez, tornou-se o principal veículo de
mobilidade social e o trampolim elementar para as carreiras profissionais.
Além disso, o mercado de emprego vai tomar crescentemente os diplomas
escolares como o primeiro critério de selecção e recrutamento entre os que
procuram trabalho (Husén, 1990).
Mas foi, particularmente, com a descida das taxas de crescimento e com a
crescente e contínua automação e com os novos ímpetos de reestruturação
da economia capitalista que o desemprego iniciou uma subida, inabitual nas
décadas imediatamente anteriores, afectando em particular os jovens e,
entre estes, as raparigas. Lentamente, aquilo que parecia ter que ver com
um fenómeno de conjuntura, um desemprego de tipo friccional ou mesmo um
desemprego keynesiano e conjuntural (Lesourne, 1996), começou a assumir
300
contornos de fenómeno social estrutural. Efectivamente, a partir de meados
da década de 70, as taxas de desemprego juvenil dispararam (cfr. Quadro
4.3) e só muito raramente voltariam a descer de modo significativo nos dez
anos seguintes, pese embora a diversidade de situações existentes na
Europa.
301
Quadro 4.3
Taxas de desemprego de jovens em países da OCDE
1970
1973
1976
1978
1980
1982
Alemanha
Espanha
EUA
Finlândia
França
Itália
0.4
__
9.9
3.2
3.2
10.2
1.0
5.1
9.9
4.7
4.0
12.6
5.2
10.7
14.0
8.5
10.1
14.5
4.8
18.6
11.7
16.6
11.0
24.8
4.2
28.5
13.3
10.0
15.0
25.2
10.3
36.9
17.0
11.6
20.3
29.8
Japão
Noruega
Portugal
Reino Unido
Suécia
2.0
__
2.3
5.6
3.1
5.7
3.8
5.9
3.6
5.4
4.4
8.2
6.4
2.9
2.9
5.1
3.2
5.2
9.3
11.8
3.7
17.0
12.7
5.5
17.9
15.1
5.1
18.1
21.4
7.6
Fonte: OCDE (1995). Para o caso português a fonte foi o MQE – DE
A persistência do fenómeno do desemprego, que afectava particularmente os
mais jovens à entrada do mercado de trabalho, iria marcar profundamente a
evolução da oferta e da procura do ensino secundário superior, na Europa,
nos vinte anos seguintes, ainda que muitas vezes esta fosse, na retórica
política, uma motivação mais ou menos silenciada. Muito frequentemente os
problemas do desemprego juvenil serão transfigurados, por via de medidas
reformadoras, em problemas educativos, como refere Lucie Tanguy na sua
análise do caso da Grã-Bretanha (Tanguy, 1995) e tal como já Ginsburg e
Cooper (1991) haviam assinalado na sua análise mais global da relação
entre as contradições dentro e entre a economia, o Estado, a família e a
educação, por uma lado, e a retórica reformadora no campo das políticas de
educação, por outro.
Os governos passam a adoptar sistematica e generalizadamente medidas de
política educativa como suporte de políticas sociais de combate ao
302
desemprego crescente entre os jovens. Este tornar-se-ia o eixo central sobre
o qual iriam rodar, a partir de meados dos anos 70, as políticas de educação
e de formação, particularmente ao nível pós-obrigatório e para o grupo etário
16-19 anos, o que mais exposto estava, neste contexto de mutações vastas
e imprevisíveis.
As consequências para o sistema escolar seriam bastante profundas. Sob o
efeito da alta do desemprego, desemprego de massa, em contexto de
profunda reestruturação industrial, vai-se cristalizar a ideia de uma crise
estrutural dos sistemas nacionais de educação; nascidos e incrementados
para acompanhar a modernidade e mais recentemente destinados a
promover o bem-estar e a mobilidade social, supostamente de uma forma
assaz articulada e quase mecânica, os sistemas educativos passam a ser
responsabilizados por não desempenharem devidamente a sua função de
ajustamento face à evolução da economia e do mercado de emprego e,
nessa medida, são responsabilizados pelo próprio desemprego juvenil. No
novo contexto, o clima de opinião predominante muda substancialmente.
Para J.-P. Jallade a crise de emprego dos jovens é a "prova comum" que os
países
europeus
enfrentam.
As
respostas
educativas,
como
que
subordinadas a imperativos e a orientações comuns, desenvolvem-se em
torno de dois eixos principais: (a) adaptar a formação ao emprego, para
melhorar a empregabilidade dos jovens e (b) guardar o maior número
possível de jovens em mecanismos de formação, uma vez que não haverá
emprego "regular" para os menores de vinte anos (Jallade, 1991:44).
De robusto trampolim para o desenvolvimento económico, para a mobilidade
social e a igualdade de oportunidades e, nessa medida, fonte de promessas,
o sistema escolar passaria a ser, a partir dos anos setenta, um gigante que
muitos governos olham de soslaio, com a cabeça cheia de dúvidas e de
suspeição. Perante o aumento da despesa pública, entretanto desencadeado
303
em todos os países mais desenvolvidos, e diante de níveis de
desajustamento entre a oferta de qualificações escolares e a procura real
dos empregadores, passa a admitir-se, oficialmente, que talvez se tenha sido
demasiado optimista, nos anos cinquenta e sessenta, na previsão dos
impactos positivos da educação escolar sobre a prosperidade económica, a
igualdade e o bem-estar social. Com o início da recessão económica e com o
crescimento do desemprego começa inclusivamente a questionar-se a
amplitude dos benefícios sociais e privados oriundos do crescente
investimento público em educação. A agenda política muda e, em especial, a
agenda e o discurso em torno dos sistemas de ensino e de formação.
O ambiente era propício ao surgimento das perspectivas mais críticas acerca
dos efeitos sociais da educação. E elas surgiram de vários lados e com
vários tons. Refira-se apenas, aqui e a título exemplificativo e extremo, as
críticas contundentes de Illich e as suas propostas de desescolarização
social. Se é certo que elas permaneceriam muito minoritárias e laterais,
também não se pode escamotear uma lenta mas irreprimível alteração do
discurso político da generalidade dos governos, recheando-o agora de
problemáticas novas como a racionalização de recursos, análise custobenefício e eficiência do sistema, avaliação do desempenho e prestação de
contas, controlo social e participação de outros actores sociais nas escolas.
Também para Coombs (1985:243), após os anos setenta, "o clima mudou
drasticamente". Esta expressão é, em toda a sua força, uma expressão
pertinente, se atendermos a dois elementos: por um lado, havia cada vez
maior abundância de recursos humanos qualificados, ao mesmo tempo que
havia, no mercado de emprego, défices selectivos de recursos humanos
qualificados; por outro, as escolas secundárias e superiores começavam a
não cumprir as suas promessas de conferirem passaportes para satisfazer
as necessidades de uma economia em crescimento. O "contrato tácito" entre
a educação e a economia rompia-se e, deste modo, começava a desfazer-se
304
esse vinco implícito entre a sociedade e a educação escolar, após décadas
de
inquestionada
crença
nas
virtualidades
de
um tal
acordo.
O
desajustamento estrutural traduziu-se em perda de confiança social. Da
euforia do pós-Guerra, transitou-se para um novo período, os anos oitenta e
noventa, em que aquela cedeu o lugar ao cepticismo, à procura
desencantada de educação e de formação e, de quando em vez, ao cinismo.
Se admitimos que no núcleo duro da procura social da educação está a
percepção da educação escolar como um instrumento de mobilidade social,
o acesso a “status” social e até da imediata promoção profissional, teremos
de admitir também que a procura social, a manter-se em níveis elevados e
submetida a esta funcionalidade, desloque consideravelmente o seu núcleo
essencial de motivações. Todavia, a relativa perda de confiança na validade
social dos diplomas escolares, diante de um desemprego juvenil que se irá
revelando cada vez mais estrutural, não irá, paradoxalmente, diminuir nem a
procura social de educação nem o prolongamento generalizado do número
de anos de permanência no patamar escolar. O que emerge de novo é o
desencanto associado a esta procura e o inevitável aumento da competição
dentro do sistema escolar, como forma óbvia de manter as aspirações de
mobilidade social.
Um profissionalismo crescente
O desemprego seria, deste modo, uma importante condicionante social que
iria fazer prolongar, desde finais da década de 70, a tendência para o
crescimento do ensino secundário, já, como referimos, pelo aumento da
procura social, confrontada com a escassez de lugares no mercado de
emprego, já pela crescente diversificação dos percursos, cursos e programas
formativos no seu interior. Por um lado, no que se refere à procura, as
famílias e os jovens são incitados a ir mais além nos estudos, na busca de
305
uma melhor ocupação no emprego e de uma carreira profissional mais
satisfatória, não estando em questão se os empregos concretos disponíveis
vão ou não requerer esse tipo e nível de formação. Por outro lado, como
refere Papadopoulos (1994), a problemática do emprego tomou a dianteira
das preocupações sociais, sobretudo ao nível das políticas governamentais
de ensino e de formação. O ensino secundário evoluiu, abriu-se, diversificouse. O que, logicamente, ocorreu de vários modos e em momentos diversos.
É neste clima, em que um objectivo central das políticas educativas é o
combate ao desemprego, nomeadamente entre o grupo etário 16-19 anos,
que se processa também uma revalorização do profissionalismo dos
sistemas educativos, em especial desde o termo dos anos setenta (Jallade,
1991; Bertrand, 1993; Papadopoulos, 1994; Hickox, 1995). Tornava-se
comum concluir que já não bastava à generalidade dos Estados, na sua
tarefa de expansão da escolarização, expandirem e prolongarem o modelo
liceal e académico do ensino secundário.
No seu balanço sobre a acção da OCDE no campo educativo, Papadopoulos
refere que, no fim dos anos setenta, nomeadamente por alturas da
publicação do relatório da OCDE "Éducation et vie active" (1977), tomou-se
como tema central as políticas de ensino profissional, no seu entender "um
domínio onde as questões da educação e do emprego se cruzam no nível
operacional e um domínio até então relegado para segundo plano, em
termos de estatuto social e de prestígio" (1994:163). Abalada a confiança na
repetidamente anunciada relação directa entre frequência escolar e acesso
ao mercado de emprego, o reforço da profissionalização do currículo surge
como uma espécie de saída "natural" tendo em vista assegurar a eficiência
económica dos investimentos em educação.
A profissionalização do ensino secundário de segundo ciclo, como se referiu
acima, desenhou-se num quadro conceptual marcadamente funcionalista,
306
traduziu-se em políticas educativas que seguiram orientações diversas e
processou-se de diferentes modos, conforme se trate dos modelos escolar,
dual e não-formal. Foram três as principais orientações seguidas: (i) por um
lado, os governos preocuparam-se em criar uma panóplia de programas
chamados de "formação-emprego", em que intervêm mais activa e, por
vezes, predominantemente os empregadores, apresentando-se muitas vezes
como uma garantia de formação de segunda oportunidade para populações
em risco (Banks, 1994) e recorrendo com frequência ao paradigma da
formação em alternância, referido quase sempre ao modelo "dual" alemão.
Esta tendência alastrou a quase todos os países europeus e prolongou-se
pela década de noventa; (ii) procedeu-se também, sobretudo nos países em
que predomina o modelo escolar de ensino e formação, à abertura de novos
lugares no ensino secundário através da diversificação do ensino secundário
tradicional, criando-se novas vias profissionalizantes, e ainda pelo recurso à
equiparação legal de certos percursos técnicos e profissionais ao ensino
secundário geral (geralmente liceal), para efeitos de prosseguimento de
estudos; (iii) por outro lado, em países onde predomina o modelo escolar e
existe uma forte tradição de unificação dos segmentos do ensino secundário
de primeiro ciclo, desenvolve-se a tendência para desfazer as barreiras entre
os vários percursos de ensino e de formação ao nível do ensino secundário
superior, promovendo-se a integração legal e institucional entre todos estes
percursos.
Ao
mesmo
tempo,
cria-se
uma
aparentemente ilimitada
possibilidade de cada jovem realizar aí um itinerário de formação
personalizado, pelo acesso a um sistema opcional muito diversificado.
Assim e quanto à primeira orientação, vários países dão prioridade ao
incremento de uma panóplia de programas de formação-emprego, com maior
ou menor intervenção das empresas, seja como prolongamento do efeito de
"estacionamento" escolar do grupo etário 16-19 anos seja como forma de
apoiar os processos de inserção mais directa dos jovens nos empregos e
nas actividades efectivamente existentes. Estão neste caso períodos de
307
iniciação prática ao trabalho, o ensino em alternância, os programas e
contratos de formação e emprego, como por exemplo o YTS-Youth Training
Scheme, e todo um vasto conjunto de medidas que visam melhorar o acesso
ao emprego dos jovens mais desqualificados do grupo etário 16-19 anos.
Na verdade, uma das "respostas" educativas emblemáticas desta década foi
a que o governo conservador inglês começou a construir, fora do controlo
directo das autoridades educativas, com a criação, em 1974, da MSCManpower Services Comission, organismo tripartido a funcionar no âmbito
do Departamento de Emprego. A esta Comissão incumbia a importante
tarefa social de oferecer novas oportunidades de formação profissional
dirigidas para a inserção social de jovens entre os 14 e os 18 anos.
Em 1978, a MSC criou o YOP-Youth Opportunities Program, para
encaminhar
para
desempregados;
actividades formativas muitos milhares de jovens
em
1983,
esta
primeira
iniciativa
desencadeou
o
surgimento do YTS-Youth Training Scheme. Este programa visava já
oferecer a todos os jovens de 16 e 17 anos, que abandonaram a escola e se
encontravam desempregados, um esquema de formação profissional ligado
à ocupação de lugares concretos nas empresas e por estas providos.
Criaram-se cursos de doze meses de duração e, depois, cursos de dois anos
de duração, em que uma parcela de vinte semanas por ano era destinada à
formação escolar, fora do local de trabalho. Todos os menores de 18 anos
passaram, assim, a poder usufruir de uma oportunidade de formação, mesmo
os não escolarizados no ensino regular. Esta intervenção governamental,
essencialmente revestida de um cunho social, baseada nas necessidades do
mercado e apoiada numa intervenção directa dos empregadores, constituiu
uma das mais significativas acções políticas europeias em que o combate ao
desemprego se sustenta no incremento do sector não-formal do sistema de
ensino.
308
Como advoga
L.Tanguy (1995) este dispositivo funcionou como a
organização social de um tempo de ocupação dos jovens, exterior ao acto do
trabalho, ou, como preferimos, actuou como um substituto de um mercado do
primeiro emprego em drástica recessão. Nesta mesma medida, como refere
a socióloga francesa, foi-se cavando uma divisão social entre a "educação" e
a "formação" e, num quadro de relativo acordo social, estas medidas
procuraram, fora das modalidades tradicionais de ensino e de formação,
enquadrar os jovens desempregados.
Muitos outros países desencadearam o mesmo tipo de "tecnologia social",
visando em particular os grupos populacionais mais marcados pelo
insucesso escolar e pelo abandono prematuro do sistema de ensino e de
formação, jovens mais afectados por um desemprego "endémico" (Husén,
1990). Assim, estendeu-se por toda a Europa Ocidental, mormente sob o
ímpeto globalizador da Comunidade Económica Europeia, durante os anos
oitenta, uma vasta panóplia de programas de formação-emprego, destinados
prioritariamente ao grupo etário 16-19 anos.
É neste ambiente que o sistema "dual" alemão surge, entre as medidas de
política de formação-emprego que valorizam a alternância escola-trabalho,
como
uma
das
alternativas
mais
debatidas
e
mais
propagadas
internacionalmente. A sua adopção e o seu crescimento serão, no entanto,
muito díspares de país para país (Jallade, 1991:45), não tendo passado de
uma moda passageira ou de um novo modelo embrionário, em alguns
países, como em Espanha, Portugal, França e Itália. De facto, a propagação
e a transposição de modelos formativos não incluem o transporte dos
sistemas de interacção social entre a produção de qualificações e o acesso e
a
progressão
profissionais
nas
empresas.
Estas
características
intranacionais, já devidamente explicadas pela teoria da "coerência societal",
revelam-se a principal fonte do seu fracasso no palco internacional.
309
Uma segunda tendência que se desenvolveu nas políticas educativas da
Europa, nos anos 70, como referimos, foi a diversificação da oferta do ensino
secundário tradicional, o que se fez particularmente pelo desenvolvimento de
fileiras dos ensinos técnico e profissional no seio dos modelos escolares.
Esta política era justificada principalmente por duas circunstâncias: pelo
crescimento do número de jovens que saía do sistema escolar regular e se
encontrava desempregado e pela necessidade de diversificar as vias de
frequência e de saída do ensino secundário, agora que começava a ser
procurado por percentagens cada vez mais elevadas do respectivo grupo
etário, grupo este que transitava cada vez mais massivamente do fim da
escolaridade obrigatória para estudos pós-obrigatórios. Esta diversificação
correspondia também a uma política de orientação de uma parte dos jovens
para percursos de formação que não defluíssem necessariamente no ensino
superior.
Desde a segunda metade dos anos 70, o aumento do peso relativo dos
ensinos técnico e profissional incide sobretudo na expansão estatal da oferta
dos cursos técnicos e também dos cursos profissionais quando estes são de
base escolar (OCDE, 1985), o que corresponde a uma política de
diversificação do modelo do ensino geral, mais do que à oferta de
verdadeiras alternativas de ensino e de formação.
Prolongando uma tendência que vem dos anos sessenta, os poderes
políticos de vários países, mormente daqueles em que a oferta de ensino e
formação pós-obrigatória é de base escolar, empreenderam sistemas de
equivalências dos cursos profissionais aos cursos do ensino geral, para
efeitos de acesso ao ensino superior. Lauglo (1983) considera estas
medidas factores de "enorme mudança" dentro dos países da OCDE. Com
elas pretendia-se diminuir, pela via de uma racionalidade técnica, a
hierarquia de prestígio existente entre os dois tipos de formação e, por outro
310
lado, responder à recessão do mercado de emprego, com uma maior
permanência na escola para um maior número de jovens, aumentando o
número e diversificando a origem social e as características pessoais dos
que estariam disponíveis para frequentar um percurso de índole técnica e
profissional.
Apesar destes desideratos, Lucie Tanguy observa que a expansão da
"educação económico-técnica", que está ligada ao aumento da frequência do
ensino secundário, se relaciona mais com uma mudança na relação entre o
ensino académico e o ensino técnico do que com uma reorientação na
hierarquia académica que regula esta mesma relação (Tanguy, 1985:29).
Todavia, nem sempre a evolução se fará, nas décadas seguintes, numa
perspectiva de manutenção ou de reforço desta relação hierárquica.
Também para Papadopoulos (1994), até meados dos anos 80, continuou-se
a dar prioridade, nos países da OCDE, ao grupo etário 16-19 anos, tendo-se
conseguido um aumento da procura com base numa diversificação rápida da
oferta das vias de ensino e formação, no termo da escolaridade obrigatória.
Em sua opinião, qualquer que seja o modelo de ensino secundário que se
queira considerar, "por todo o lado houve uma diversificação e não uma
redução
de
programas"
integração/diferenciação
e
tomava
"pouco
a
a
dianteira
pouco
sobre
o
problema
da
o problema dos
estabelecimentos, no coração do debate sobre a política de formação pósobrigatória" (1994:189).
É nesta mesma época que se acentua a função de "transfert" das vias
técnicas e profissionais para o ensino superior, reduzindo-se o seu carácter
terminal, o que se enquadra no quadro analítico que Martin Trow (1978)
havia empreendido para o caso norteamericano. Após a fase em que o
ensino secundário cumpriu a função de preparar uma elite para estudos
superiores, através da frequência de um currículo geral académico, e da fase
311
em que, por força da massificação da procura, o ensino secundário passou a
combinar o exercício da função propedêutica com a função terminal, este
tipo de ensino entrou numa terceira fase em que a função propedêutica se
torna predominante e tendencialmente única, quaisquer que sejam as vias
de estudo em oferta. Este processo nem sempre foi isento de dificuldades,
seja porque se corria o risco de diminuir a credibilidade dos diplomas
técnicos e profissionais no mercado de emprego seja porque o ensino
superior continuava a manter um monolitismo claro no que se refere às
condições de acesso.
Assiste-se, portanto, não só à emergência de uma nova educação geral no
seio do ensino secundário superior, como ao estabelecimento de novas
relações entre o ensino geral e o ensino especializado. Como sublinha
Francesc Pedró (1992), não é apenas a formação profissional que é objecto
de reformas, mas o próprio ensino geral que é substancialmente alterado
neste processo de aproximação à evolução da economia, em particular nos
países em que quase toda a formação pós-obrigatória é de incidência
escolar. Diversificam-se também as vias de formação dentro do ensino geral,
como forma de responder a uma procura em rápido crescimento, procura
essa concentrada sobre os percursos escolares longos e tradicionalmente
acoplados ao prosseguimento de estudos superiores (Pedró, 1992).
É no decurso desta diversificação do ensino geral que surge a separação,
considerada por alguns autores, entre um tipo de ensino geral académico e
um tipo de ensino "propriamente geral"; o primeiro prepara em exclusivo para
o acesso ao ensino superior e o segundo "pode significar uma multidão de
coisas", tais como: preparação para a vida activa, preparação para aceder a
uma formação profissional pós-secundária ou apenas um ponto final no
processo de escolarização inicial.
312
O conceito de ensino pós-obrigatório geral não-académico compreende
inúmeros percursos escolares que tanto podem conduzir a estudos
superiores curtos em áreas técnicas, como a realizar estudos terminais ou
ainda a empreender um percurso paralelo que reconduzirá, mais tarde, aos
percursos académicos. Forma-se, assim, uma oferta escolar eminentemente
ligada à preparação para a vida activa (Pedró, 1992) que não se situa nem
na tradição académica nem na tradição profissional. É aquilo a que já se
chamou uma "terceira via" estratégica, ou seja, o preenchimento do vazio
provocado pela dicotomia entre a opção académica e a opção profissional e
a preparação concomitante de uma mão-de-obra para o sector intermédio na
área dos serviços.
Também Leclercq e Rault (1992), além de constatarem de igual modo uma
tendência para um investimento nas formações profissionais nos países
europeus, com base na crença de que os jovens estariam tanto menos
expostos ao desemprego quanto mais prosseguissem uma formação pósobrigatória e escolhessem uma via profissional, fazem notar, no entanto,
que o aumento da frequência das fileiras profissionais se processou pelo
incremento da procura das "fileiras técnicas" do ensino secundário superior,
ou seja, aquelas que atribuem bastante importância ao ensino teórico e que,
por isso, se aproximam mais das formações gerais, do que das formações
profissionais
e
"têm
uma
melhor
imagem
de
marca"
junto
da
procura(1992:56). Por essa razão é mister registar, desde já, a necessidade
de se interrogar esta diversificação do ensino geral, enquanto via
privilegiada de reforço da profissionalização do ensino secundário superior.
Finalmente, Halls (1994) constata também que o "profissionalismo"
"grangeou sucesso" como alternativa para o currículo do ensino secundário
tradicional, embora num contexto em que "não havia qualquer acordo"
acerca do acento tónico a dar ao ensino secundário superior. Uns insistiam
no currículo geral, outros na preparação para a profissão e outros em fazer
313
tudo ao mesmo tempo (1994:26). Dificilmente este grau de ensino foi
perspectivado para outras finalidades educativas, que este autor considera
relevantes, importantes aspectos da cultura e da civilização, como as artes,
a música, o artesanato e "o conteúdo moral da educação, particularmente a
dimensão cívica e social" (1994:28).
Por seu turno, nos países em que o sistema dual é dominante na
escolarização do grupo etário em questão e em que o Estado é um parceiro
na definição das políticas de formação, exerce-se uma forte pressão
quantitativa sobre os postos de aprendizagem disponíveis. Na Alemanha,
estes lugares, oferecidos pelas empresas, vão crescer, entre 1976 e 1986, a
um ritmo tal, que são criados anualmente entre 200.000 a 716.000 novos
postos (OCDE, 1985). Nestes casos, as empresas participam activamente na
formação do mercado de primeiro emprego para os jovens, de modo diverso
do que sucede nos casos em que cresce a oferta não-formal baseada em
programas de formação-emprego.
Em síntese, o ensino geral evoluiu, abriu-se e diversificou-se, revestiu-se de
novas configurações e desembocou em novas modalidades de ensino
secundário superior. Esta "fragmentação" leva inclusive T. Husén a lembrar
que muitos debates se passam a referir ao ensino secundário como a uma
"zona de calamidade pública" (Husén, 1990:51). Registe-se sobretudo a
tendência bastante generalizada das políticas educativas, empreendidas nos
anos setenta e em grande parte nos anos oitenta, para ampliarem a base de
oferta de formação pós-obrigatória, condição de captação de novos públicos
e de resposta à crescente procura, através de uma tecnologia social de
diversificação curricular que roda essencialmente sobre o modelo escolar do
ensino secundário. Por vezes, esta diversificação chega a ser institucional,
dando lugar à criação de novos tipos de escolas dentro do mesmo modelo
de ensino. Outras vezes, a diversificação é subestrutural e confina-se aos
cursos e planos de estudo, no seio das instituições escolares já existentes. É
314
certo que estes processos políticos de reconfiguração curricular e
institucional do ensino secundário
procuram acolher e captar o maior
número de jovens do grupo etário 16-19 anos, reduzindo a fila de espera do
primeiro
emprego,
cumprindo
inequivocamente
a
missão
social
de
"parqueamento" do grupo etário 16-19 anos e preparam para muitos deles
uma saída para o trabalho que não passe pelo ensino superior. Mas já não é
tão claro nem tão certo que estas medidas de política correspondam, apesar
da sua semântica preencher a orla técnica e profissional, a necessidades
concretas e precisas do mercado de trabalho.
Esta reorientação iria provocar, no entanto, não só alterações mais ou
menos
significativas
nos
modelos
de
ensino
secundário
superior
prosseguidos até então, como outras alterações a montante, nos esquemas
de transição entre o ensino obrigatório e o ensino pós-obrigatório, e a
jusante, na transição entre o ensino secundário e o ensino superior.
Por um lado, procura-se alongar a escolaridade geral e obrigatória, como
sucede na Europa do sul, em Portugal, Espanha, Itália29 e Grécia, e adiar a
idade de escolha entre os vários tipos de formações gerais, técnicas e
profissionais - Grécia, legislação de 1976; Bélgica, 1983; Portugal, 1986;
Irlanda, 1989; Espanha, 1990; Luxemburgo, 1992; - e, por outro,
estabelecem-se novas normas que permitem que as escolhas por estas vias
não se traduzam na obtenção de diplomas sem prestígio e que instaurem
novos fluxos de sequência de estudos, de tal modo que uma opção por um
curso técnico ou profissional feita aos 15 anos possa conduzir aos níveis
mais elevados de ensino e formação e facilite o ingresso em outras
modalidades de ensino, em qualquer momento dos percursos formativos.
29 Em Itália, o debate sobre o prolongamento da escolaridade obrigatória, juntamente com o da reorganização do ensino
secundário superior, prolonga-se há mais de vinte anos, sem que se tenha obtido uma votação consensual. Em 1985, o
Senado aprovou o prolongamento da duração da escolaridade obrigatória para dez anos, mas o Parlamento não o
aprovou. Em 1990, a Comissão Brocca preparou novo projecto de reforma do ensino secundário, que incluía o
prolongamento da escolaridade obrigatória em dois anos, mas o projecto acabaria por ser bloqueado em 1992, no fim da
315
Na Grécia, após a opção por um curso de uma escola técnica e profissional,
cursos mais curtos do que os dos liceus, pode-se ingressar num liceu
técnico-profissional e daí aceder-se ao ensino superior, de tipo não
universitário, aos Centros de Formação Profissional e Técnica Avançada. Em
França,
desde
1985,
os
detentores
de
um
BEP-Brévet
d'Études
Professionnelles podem cursar o Bac Professionnel e, no seu termo,
prosseguir estudos técnicos de nível superior ou aceder ao mundo do
trabalho. Em Portugal, desde 1989, após a frequência de um curso
tecnológico de uma escola secundária ou de um curso de uma escola
profissional, os jovens podem candidatar-se ao ensino superior ou procurar
trabalho.
Também na Finlândia, no processo de reforma do ensino secundário,
iniciado no período entre 1982-1988, se estabeleceu um sistema de
equiparação entre ensino secundário geral e profissional. Esta nova
perspectiva de paridade ficaria reforçada na reforma do ensino secundário
de 1995. Na Suiça, em 1993, com a criação da "maturidade profissional"
rompeu-se com uma longa tradição de existência de uma única prova de
maturidade, exclusiva para alunos oriundos de um ensino liceal muito elitista,
e abriu-se o acesso ao ensino superior às vias profissionais. Em ambos os
casos, esta orientação política implicou um reordenamento do ensino
superior e a criação de um segmento de ensino superior politécnico, a par do
tradicional ensino universitário.
A terceira tendência de que falamos consiste no desenvolvimento de um
caminho quase oposto ao da segunda tendência, a saber, a integração
institucional entre diferentes tipos de escolas e de percursos escolares. Na
Noruega, por exemplo, estas preocupações conduziram, desde 1976, à lenta
criação
de
um sistema
integrado
e
tendencialmente
universal
de
escolaridade pós-obrigatória. Os centros escolares passaram a oferecer três
Xª legislatura.
316
vias, a geral, a profissional e uma mista, sendo obrigados a garantir um lugar
a todo o jovem que o requeira, desde que tenha concluído a sua
escolaridade obrigatória. Deste modo, o ónus da obrigatoriedade não recai já
sobre o cidadão, mas sim sobre a autoridade local, que passa a tutelar as
escolas secundárias. Evidencia-se um claro propósito de retenção e de
adiamento, até aos dezanove anos, da entrada no mercado de emprego.
Um outro país nórdico e de tradição de ensino secundário de base escolar, a
Suécia, seguiu, na década de 70, um percurso semelhante, agrupando num
só tipo de escola - Gymnasieskola - os vários percursos gerais e técnicoprofissionais, criando assim uma estrutura comum, mas verticalmente
segmentada em opções escolares diversas.
Esta tendência integradora, que arranca exactamente nos países de mais
forte tradição unificadora nos segmentos do primeiro ciclo do ensino
secundário (FolKshcule), apesar de seguir um caminho diferente daquele
que descrevemos na tendência anterior, inscreve-se globalmente no mesmo
tipo de política governamental dos Estados europeus que tende a substituir,
pela via da escolarização, um mercado do primeiro emprego crescentemente
fechado. Este mesmo caminho será seguido, no final dos anos oitenta, por
vários outros países, deixando de ser uma política minoritária, para passar a
constituir uma tendência política comum, como veremos adiante.
Estas diferentes medidas de política procuraram responder a uma crescente
procura social de educação. A OCDE assinala duas tendências neste
fenómeno: de um lado, o maior crescimento dá-se pela expansão das
frequências femininas e, do outro, as taxas mais elevadas de crescimento
situam-se nos cursos de tipo técnico e profissional (OCDE, 1985:11 e 17). O
crescimento da procura social de educação secundária não se processou de
modo homogéneo, aliás como seria de esperar, face à diversidade de
modelos e às variações entre os modelos predominantes de país para país,
317
havendo uns tipos de formação a beneficiar mais com o crescimento do que
outros. O Quadro 4.4 procura ilustrar esta desigual distribuição do
crescimento, país por país, registando-se, nos anos setenta e até ao início
dos anos oitenta, simultaneamente movimentos tendentes a aumentar tanto
a frequência no ensinos técnico e profissional (Austria, Bélgica, Itália,
Espanha, Turquia, Reino Unido) como no ensino geral ( Dinamarca, França,
Alemanha, Grécia, Holanda, Suécia e Portugal).
318
Quadro 4.4
Evolução da distribuição das frequências segundo o tipo de ensino
secundário
(Tempo Inteiro + Tempo Parcial)
Países
Alemanha
Áustria
Bélgica
Dinamarca
Espanha
Finlândia
França
Grécia
Holanda
Irlanda
Itália
Noruega
Portugal
R.Unido
Suécia
Suiça
Turquia
EUA
Japão
Prof.
1970
Téc.
Geral
Prof.
1975
Téc.
Geral
Prof.
1982
Téc.
Geral
Técnico e
Profissional
1992
Geral
75.5
10.2
14.3
70.4
12.0
17.6
68.7
10.8
20.5
79.6
20.4
66.0
11.1
22.9
67.7
13.8
18.5
63.5
19.1
17.4
76.0
24.0
11.4
31.0
57.6
18.1
30.3
51.6
27.7
27.8
44.5
59.2
40.8
47.4
19.3
33.3
37.8
22.1
40.1
21.3
38.4
37.5
56.2
43.8
8.4
_
6.4
_
85.2
_
23.0
15.4
61.6
29.9
15.9
54.2
41.4
58.6
37.2
15.9
46.9
35.9
13.6
50.5
54.4
45.6
54.1
_
45.9
_
70.1
_
29.9
_
49.4
8.8
41.8
48.7
10.9
40.4
47.7
12.5
60.2
20.5
1.9
77.6
19.0
2.5
78.5
14.0
4.5
81.5
37.3
30.9
31.8
24.9
30.7
44.4
20.4
38.9
40.7
31.5
2.0
66.5
33.2
0.8
66.0
32.1
0.6
67.3
18.1
40.9
41.0
19.1
44.5
36.4
21.6
44.5
33.9
67.4
32.6
55.0
45.0
51.7
48.3
56.4
43.6
59.8
40.2
22.2
77.8
22.9
77.1
2
98
18
82
39.5
60.5
31.1
62.9
43.3
56.7
57.6
_
42.4
_
27.2
_
11.1
47.2
_
12.7
25.6
_
76.2
19.0
52.9
28.1
13.9
56.1
30.0
68.8
6.0
25.2
66.8
8.3
24.9
73.2
26.8
15.2
68.5
_
14.0
13.8
72.2
43.5
_
56.5
_
27.5
72.5
13.3
_
24.0
76.0
41.5
58.5
37.0
63.0
24.0
76.0
30.3
69.7
Fonte: OCDE (1985, 1995)30
30 Para uma análise pormenorizada destes dados é importante consultar as fontes pois elas incluem um grande número
de observações sobre os números e as datas. Para o caso português, corrigimos os valores de 1982 e 1992, com base
nos dados do Ministério da Educação.
319
Apesar de se manter uma enorme diversidade de sistemas nacionais de
ensino e de formação profissional inicial, não só porque eles assentam em
tradições sociais diversas mas também porque as estruturas dos mercados
de trabalho são diferentes, as políticas de ensino e de formação profissional
constituiram um instrumento político central para os vários governos
europeus, na medida em que permitiram aumentar a oferta de educação pósobrigatória e encorajar fortemente a procura (Chisholm,1995), atender uma
procura social crescente e fazer face ao desemprego juvenil em ascenção,
ao declínio da procura de mão-de-obra pouco qualificada e às preocupações
europeias relativas à perda de competitividade na economia mundial (Wolf,
1995).
Para além do espaço europeu, e considerando pertinente uma visão mais
ampla e breve do problema, os ensinos técnico e profissional inscritos nos
modelos escolares de ensino secundário foram também amplamente
desenvolvidos e incentivados. Watson (1994) analisa o impacto destes
"paradigmas ocidentais" sobre as políticas de educação dos países menos
desenvolvidos,
nomeadamente
esta
tendência
para
a diversificação
curricular e verifica que algumas organizações e agências internacionais
tiveram um importante papel na disseminação destes referentes. Destaca o
papel da UNESCO, que promoveu uma conferência mundial sobre o ensino
técnico, em 1976, em que aconselhou os países a diversificar o currículo do
ensino secundário. Além disso, refere a influência do pensamento do Banco
Mundial e da UNESCO sobre, por exemplo, o encontro de Ministros
Africanos de Educação, em Lagos, no mesmo ano, tendo-se registado
conclusões inequívocas a favor da introdução dos ensinos técnico e
profissional nos níveis de ensino primário, secundário e superior.
O mesmo autor assinala também que, nos anos oitenta, 40% da assistência
multilateral na educação se dirigiu aos ensinos técnico e profissional e que o
Banco Mundial foi responsável por 45% desse financiamento. Esta
320
organização teve, de facto, um papel de liderança na difusão destas
perspectivas educativas, o que se traduziu num apoio constante, nos anos
setenta e oitenta, à implantação daqueles tipos de ensino e formação,
conforme se pode ver no Quadro 4.5.
Quadro 4.5.
Os investimentos do Banco Mundial no Ensino Técnico e Profissional (19631988)
(em milhões de US$ dólares)
1963-
76
1977-
86
1987-
88
Dólares
969
%
100
Dólares
3223
%
100
Dólares
1176
%
100
Secundário
diversificado
268
28
94
3
0
0
Secundário
profissional
Pós-secundário
profissional
Não-formal
Sectores:
Agricultura
Indústria
248
26
609
19
172
15
202
21
940
29
102
9
251
26
1579
49
902
77
243
658
25
68
409
2591
13
80
302
588
26
50
68
7
222
7
286
24
Total
Tipo de Ensino
Serviços
Fonte: Watson (1994)
Anos 80 e 90: ensino secundário, uma alternativa ocupacional
Descrito o longo arco do "ciclo do automóvel-petróleo" (1945-meados da
década de setenta), para retomar tanto a expressão de J. Schumpeter como
a perspectiva de ciclo longo de F. Braudel, instalou-se na Europa Ocidental
um tempo de maior instabilidade e de uma muito maior imprevisibilidade. Nas
duas décadas que se seguiram ao início da crise (1973-77) sucederam-se
importantes mutações cujo impacte social, ora lento ora rápido, apresenta
321
configurações diversas em função das diversas sociedades e das suas
características próprias. Assinalem-se, pela sua relevância para a nossa
análise, algumas delas: a "década gloriosa da informática" (1975-1985) e o
incontrolável crescimento dos seus campos de aplicação, nomeadamente no
campo da produção de bens e serviços (Droz e Rowley, 1992); a queda do
Muro de Berlim, em 1989, e o processo de desmembramento do "mundo
comunista" que lhe está associado, consequência e causa do colapso das
grandes narrativas ideológicas profanas e securizadoras; a progressiva
expansão da economia de mercado a todos os mercados do mundo, a
concomitante e galopante globalização do liberalismo económico e os
processos simultâneos de aceleração da concorrência internacional e da
vincada segmentação dos mercados de trabalho; o progressivo alastramento
das desigualdades sociais no mundo, entre nações e entre grupos sociais,
com a emergência de novos fenómenos de exclusão social; a persistência do
desemprego juvenil e o aumento absoluto das actividades e dos empregos
de vínculo precário.
As mudanças foram vastas e, em certa medida, ininteligíveis. Como refere
Hobsbawm, "o facto fundamental das Décadas de Crise não é que o
capitalismo já não funcionava tão bem como na Era de Ouro, mas que as
suas operações se haviam tornado incontroláveis. Ninguém sabia o que
fazer em relação aos caprichos da economia mundial, nem possuía
instrumentos
para
a
administrar"(1996:400).
O
Estado-nação
surgia
enfraquecido ao lado das novas dinâmicas do comércio internacional e
perante o predomínio das perspectivas políticas neoliberais que atribuíam ao
"mercado" actividades que, ao longo do século, se tinham concentrado nas
mãos do Estado, em nome de uma melhor redistribuição do rendimento entre
toda a população e em nome de uma maior eficácia no desempenho dessas
actividades.
O sistema de produção havia-se transformado, por força sobretudo da
322
revolução tecnológica, da globalização e transnacionalização da economia, e
da inerente e crescente competição no mercado mundial, mas, desta vez,
sem capacidade para criar de modo automático novos empregos para
substituir os empregos perdidos. O número de trabalhadores diminuiu
relativamente, absolutamente e rapidamente (Hobsbawm,1996:405). A
sensação de insegurança no emprego foi-se transmitindo a sectores que, por
tradição, eram estáveis e alcançou os próprios serviços públicos.
Não foi fácil, nem se processou rapidamente a tomada de consciência social
e política acerca da extensão e da profundidade das duas décadas de
contínua reestruturação da economia capitalista e de vastas mutações
sociais. Mesmo no tocante ao desemprego, alimentou-se durante algum
tempo, pelo menos até à segunda metade dos anos oitenta, a perspectiva de
uma retoma iminente, capaz de reabsorver os excedentes de mão-de-obra
entretanto gerados. No entanto, eles mantinham-se e ampliavam-se, mesmo
quando aumentava a capacidade produtiva e a produtividade. A "geração"
dos governantes que enfrentava a "crise" cresceu dentro de um caldo cultural
marcado por um longo período de crescimento económico contínuo e a nova
"aceleração da história" gerava agora desorientação e perplexidade. A
expressão "desajustamento estrutural" (OCDE, 1989) enchia os relatórios
técnicos e os discursos políticos, como se deste modo tudo se explicasse,
sem nada se dizer de muito relevante.
Entretanto, como seria previsível, nos anos oitenta, mantém-se uma elevada
pressão da procura das várias modalidades de ensino secundário por parte
dos jovens de 16-19 anos e assiste-se, em alguns países, a uma primeira
quebra do número absoluto de jovens que demandam este nível de
escolarização, como corolário da quebra da natalidade. Chegados ao termo
da escolaridade básica e obrigatória, as taxas de transição imediata para
estudos ulteriores mantém-se elevada e atinge mais de 90% na Dinamarca,
na Suécia e na Finlândia, no termo da década de oitenta. Na Noruega, em
323
1975, 25% dos alunos não prosseguia estudos após o termo da escolaridade
obrigatória e um terço dos jovens de 17-19 anos estava registado como
empregado a tempo inteiro; em 1992, 95% dos alunos transfere-se
directamente da escolaridade obrigatória para o ensino secundário superior.
Na Itália, entre 1970 e 1990, a procura do ensino pós-obrigatório aumentou
65%, o que se repercutiu na respectiva taxa de escolarização que passou de
44% para 70%. Em França, a evolução é particularmente rápida: em 1960, a
percentagem de acesso ao nível Bac (nível IV de qualificação, em França)
era de apenas 11%, em 1970 este valor ascende a 25%, em 1980 sobe para
33% e, em 1992, atinge os 61% (OCDE, 1996).
Entre o fim dos anos 70 e o começo dos anos 90, a expansão da frequência
do ensino secundário e no ensino superior processou-se a um ritmo muito
intenso. Como evidencia Bourdon (1995), as taxas de escolarização de
estudos superiores, entre 1980 e 1992, cresceram para o dobro, por exemplo
em França e em Espanha, com particular destaque para as raparigas. Na
totalidade da União Europeia, segundo a Eurydice, o número de estudantes
no ensino superior duplicou em vinte anos (1975 – 1995), tendo sido
Portugal e Espanha os países onde o progresso foi mais forte, 3,4 vezes e
2,8 vezes, respectivamente. Em meados dos anos noventa, na União, um em
cada cinco jovens dos 30 aos 34 anos possui um diploma do ensino superior
(embora com fortes assimetrias entre os países). Com este aumento tão
rápido das taxas de escolarização de estudos superiores processam-se
saltos enormes na capacidade dos sistemas escolares reterem durante mais
tempo a população juvenil no ambiente escolar (Quadro 4.6). Neste mesmo
período, o mercado de trabalho foi-se progressivamente fechando para os
jovens e o ensino secundário tornou-se, como que inevitavelmente, uma
alternativa "ocupacional".
324
Quadro 4.6.
Evolução das taxas de escolarização de estudos superiores
(1980-1992)
1980
1992
Países
H
M
H
M
Alemanha
28.7
25.3
34.4
39.6
Bélgica
29.2
23.3
38.1
37.0
Canadá
54.5
6.5
88.1
101.1
Espanha
27.0
21.4
37.6
41.4
EUA
54.1
58.1
68.1
80.1
França
25.5.
25.3
41.1
50.3
Holanda
35.4
24.4
41.6
36.0
Itália
31.4
23.8
32.7
34.7
Fonte: Bourdon, 1995; o autor socorre-se do Anuário Estatístico da UNESCO, de 1994
Entretanto, enquanto a escolarização no ensino secundário e no ensino
superior prosseguia a um ritmo crescente, o desemprego do grupo etário 1619 anos diminuía aqui e ali, que mais não fosse devido ao efeito directo da
massificação deste segmento do ensino. Todavia, os níveis gerais de
desemprego mantinham-se elevados e o seu carácter "estrutural" emergia
com mais impacto do que
se tinha previsto, no fim dos anos setenta
(Papadopoulos, 1994:157). Na maioria dos países ele tinha subido e já
atingia e ultrapassava os 10% e, em alguns casos, até os 20 e os 30%
(Quadro 4.7.). Não será por acaso que Jacques Lesourne (1995:122) fala, a
este propósito, da "recessão de 1990".
325
Quadro 4.7
Taxas de desemprego juvenil (15-24 anos) em países da OCDE
Países
1983
1994
1996
Alemanha
11.0
8.2
9.6
Bélgica
23.9
18.4
22.9
Dinamarca
18.9
14.6
10.6
Espanha
37.6
42.8
41.9
Finlândia
10.5
30.9
35.3
França
19.7
27.5
28.9
Grécia
23.1
28.8
31.0
Holanda
24.9
10.2
11.5
Irlanda
20.1
25.1
18.1
Itália
30.5
30.6
33.5
Luxemburgo
6.8
4.4
9.1
Noruega
7.7
7.4
-
Portugal
18.3
12.0
16.7
Reino Unido
21.4
17.3
15.5
Suécia
8.0
16.6
21.1
Suiça
__
5.7
-
EUA
17.2
12.5
-
Japão
4.5
5.5
-
Fonte: OCDE (1992 e 1996) e Eurostat
Este
novo
ímpeto
das
taxas
de
desemprego
juvenil
requer uma
contextualização económica, em boa parte já realizada no capítulo
precedente e que sumariamos de seguida. A economia de mercado
espalhava-se por todo o mundo quase como uma referência económica
implacável,
sobretudo
após
a
queda
do
Muro
de
Berlim
e
do
desmembramento do império soviético. O mercado globalizava-se e
desenvolvia-se
um
segmento
empresarial
de
ponta,
amplamente
incorporador de novas tecnologias de informação e comunicação e
altamente concorrencial, dominado por grandes empresas mundiais. Ao nível
produtivo, a substituição tecnológica mantinha-se a um forte ritmo, os
326
processos eram racionalizados para diminuir os custos de produção e os
níveis de desemprego associados não só se tornavam permanentes, como
atingiam agora também os diplomados pelos mais altos níveis escolares.
Além disso, a par do desemprego proliferava o subemprego de diplomados
e, como o ensino superior se estava a tornar progressivamente um ensino de
massas, esta tendência só se poderia ir reforçando (Halls, 1994). Também
Juan Carlos Tedesco refere que a massificação dos ensinos secundário e
superior tornava possível um efeito de "sobrecertificação" educativa,
nomeadamente sempre que a evolução da hierarquia dos empregos não
acompanhava a evolução dos novos níveis dos diplomas escolares,
registando-se então um grave problema social de não correspondência entre
níveis educativos e postos de trabalho (Tedesco, 1995). Neste quadro geral
assinale-se também a progressiva expansão da desregulamentação dos
vínculos laborais, assistindo-se por toda a Europa a uma proliferação de
novos empregos ou "actividades", sustentados em vínculos contratuais
precários.
Para os jovens do grupo etário em apreço tornava-se cada vez mais difícil
vislumbrar o momento de obtenção de um primeiro emprego, a duração
desse emprego, a adequação do emprego à formação especializada
entretanto realizada, a natureza do vínculo contratual, o número de vezes
que teria de mudar de emprego ou de actividade ao longo da vida
profissional
e
a
quantidade
e
profundidade
das
actualizações
de
conhecimentos e competências que haveria que realizar ao longo da carreira
profissional e, inclusivamente, começava a ser colocada a questão de saber
se ainda tinha sentido falar-se em carreira profissional, nos termos
tradicionais, ou seja, tendo como referênciais fundamentais a estabilidade, a
segurança, a progressão vertical e a longevidade. Tudo levava a crer que
era possível doravante assegurar o normal funcionamento da economia
capitalista, e com os mesmos ou melhores níveis de produtividade e
rendimento, mantendo à margem do mercado de emprego uma boa parte da
327
mão-de-obra disponível. Para os novos candidatos a diplomados pelas
formações pós-obrigatórias, este universo problemático não deixaria
certamente de influenciar a orientação das suas opções escolares e, em
geral, as orientações da procura social.
Mas, se se assegurava o normal funcionamento da economia, já o mesmo
não se pode dizer do conjunto da sociedade. De facto, o trabalho tornava-se
um bem escasso numa época em que, paradoxalmente, era possível, como
nunca na história da humanidade, criar trabalho e, além disso, estabeleciamse no espaço europeu ameaças sérias à coesão social.
Uma certa ruptura cultural parecia estar a desenhar-se quando a natural
aspiração a uma vida de trabalho deixou de ser algo que impõe o seu
domínio à existência de cada um e quando, ao mesmo tempo, se desvincula
a necessidade de um jovem ter um futuro profissional dos processos de
formulação e de legitimação das suas aspirações sociais (Droz e Rowley,
1992). Os itinerários profissionais imprevisíveis, esboçados caso a caso,
como se de voos de borboleta se tratasse, representam o corolário de um
vasto conjunto de mutações de base económica e são factor de níveis de
insegurança e de individualismo que vincam bem significativas diferenças
com as décadas anteriores.
A retórica subjacente às políticas de educação foi mudando na transição das
décadas de setenta e oitenta. A retórica da "grande ilusão" da promoção da
igualdade de oportunidades por via do ensino e da formção foi cedendo
lugar a um discurso mais centrado sobre a competitividade económica e
sobre a eficácia social do ensino e da formação, revalorizando-se deste
modo o papel da escola como produtora de mão-de-obra qualificada. Mas
repisar esta função social dos sistemas de educação, no início dos anos
noventa, e encetar um processo de reprofissionalização do currículo, parecia
requerer o enunciado de novas políticas, uma vez que os contextos sociais
328
eram outros.
Como sublinha Chisholm, se as décadas de setenta e oitenta foram aquelas
em que mais se promoveu o ensino técnico e a formação profissional como a
melhor defesa contra o desemprego, também foram o tempo em que os
decisores políticos falharam em construir novas oportunidades de integração
dos jovens no emprego remunerado e estável (Chisholm, 1995). No que se
refere ao ensino e à formação profissional, um outro enfoque político estava
a ocorrer. A rarefação demográfica e o envelhecimento da população, que
tornavam mais acutilante a necessidade da economia dispor de uma mãode-obra adulta qualificada e adaptada às suas reestruturações, bem como as
rápidas mutações técnicas e a inevitável necessidade de uma requalificação
permanente, para evitar a progressão do iletrismo funcional entre os activos,
constituiram um importante núcleo de factores que estiveram na origem de
uma deslocalização do centro político da profissionalização do terreno do
ensino e da formação inicial para a formação contínua de activos.
A maior parte da mão-de-obra que estará activa nos próximos vinte anos é a
que está activa hoje. Gera-se, assim, lentamente, uma deslocação dos
olhares políticos para a formação permanente e ao longo da vida. Corolário
desta tendência é a preparação, em meados dos anos noventa, de
importantes relatórios internacionais, seja por parte da União Europeia, com
o Livro Branco sobre a Educação, intitulado "Ensinar e Aprender. Rumo a
uma sociedade cognitiva"(1995), seja por parte da UNESCO, com o
Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI,
intitulado "Educação: um tesouro a descobrir"(1996) e ainda por parte da
OCDE, o Relatório sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida, aprovado pelos
ministros da Educação em Janeiro e publicado em Abril de 1996, sob o título
"Lifelong learning for all". Este processo parece provocar uma reorientação
da própria função social da formação inicial, mormente a oferecida nos
modelos de ensino secundário superior.
329
Os Estados europeus, continuando a tomar os sistemas de ensino e de
formação como instrumentos políticos de primeira importância, encorajam a
participação juvenil no ensino e na formação pós-obrigatórios, criando-se um
clima não já de obrigatoriedade legal de frequência escolar, mas de
obrigatoriedade social. Uma vez desvalorizado o diploma do ensino básico,
constatado o fechamento do mercado do primeiro emprego, promovido o
declínio da procura de mão-de-obra pouco qualificada, alargando e
diversificando a oferta, os decisores políticos europeus instalam igualmente
um clima de quebra da relação unívoca entre educação-formação e
emprego, contexto este em que aquela obrigatoriedade social ganha toda a
sua consistência.
Em termos gerais, entre 1980 e 1992, verifica-se a persistência de
movimentos contraditórios nos vários países europeus; uns reforçam as vias
técnicas e profissionais e outros reforçam as vias de formação “geral”
(cfr.Quadro 4.4). A grande maioria dos países considerados, doze em
dezassete, apresenta índices de frequência predominantemente situados
nas vertentes técnico-profissionais do ensino secundário, registando-se até
uma deslocação da procura em direcção a estas áreas nos casos da Bélgica,
da Itália, de Portugal e da França. A título de exemplo, neste último país o
número de diplomados do ensino técnico e profissional passa, entre 1980 e
1991, de cerca de 314.000 para 426.000, no nível V, de 67.000 para
157.000, no nível IV, e de 37.000 para 86.000, no nível III, seguindo a
estrutura de níveis de qualificação adoptados em França (OCDE, 1996a:74).
A persistência das tendências mais pesadas não ocorre, no entanto, sem
que se manifeste uma evolução com novos contornos. Além do já referido
fenómeno de diversificação dos modelos escolares do ensino secundário
geral, como via privilegiada de crescimento da oferta de ensino secundário
técnico, verifica-se também que nos países em que, a par dos modelos
330
escolares
predominantes,
se
introduziram
modalidades
de
ensino
profissional e até o modelo dual, se assiste a uma lenta e progressiva
"escolarização" desses modelos. Esta aparece quer como um procedimento
de resgate e de nobilitação aos olhos da procura social quer como uma
consequência do irresistível alastramento da "forma escolar" de educação e
de formação, tal como é definida por Vincent, Lahire e Thin (1994).
A "forma escolar", e o modo escolar de socialização que lhe está associado,
estende a sua capacidade ordenadora até à panóplia de instrumentos de
formação-emprego do modelo não-formal, com um poder de atracção que lhe
advém, entre outros motivos, daquilo a que chamámos polarização do ensino
superior e das mais altas credenciais escolares e ainda da adopção
generalizada dos modos de organização das aprendizagens, dos locais e
dos programas de estudo, dos modos de avaliação e dos sistemas de
certificação escolares.
Sublinha-se, ainda, que, entre os países de ensino secundário de frequência
maioritariamente situada em modos profissionalizados, existe uma vaga de
progressivo aumento da procura de estudos gerais, como na Holanda, na
Dinamarca (Banks, 1994) e na Alemanha (Leclerq,1992; Jonen,1995; Adler,
Dybowski e Schmidt,1993; Wolf,1995), apesar de se tratar de sistemas
tradicionalmente ancorados nos percursos profissionais. Mais adiante
retoma-se esta questão, no quadro de uma leitura mais generalizada e
aprofundada das recentes reformas do ensino secundário superior, na
Europa.
Um novo mandato económico internacional
Como vimos, no momento da leitura das teorias sociológicas, o sistema de
produção industrial passa, particularmente desde os anos setenta, por
processos complexos e acelerados de mutação. Pudemos, nesse momento,
331
deixar claro que se desenvolve uma retórica tecnico-económica que obnubila
a persistência de diferentes segmentos no mercado de trabalho, tanto no
plano mundial como nos planos nacionais, retórica esta que ignora a
complexidade das mutações em curso. No entanto, ela configura-se a nível
mundial, expande-se como uma ideologia totalizante na leitura que promove
da realidade, é veiculada por vários meios, desde empresas, a peritos, a
organismos internacionais, e exerce uma notável influencia na formação do
senso-comum e na formulação das políticas nacionais, nomeadamente no
campo da educação e da formação. Pretendemos retomar agora alguns dos
traços dominantes deste enunciado retórico para argumentar, num primeiro
momento, que através dele se está a configurar um novo mandato
económico, mandato este que exerce, em cada instante, uma enorme
influência na tomada de decisão política e, num segundo momento, que este
mandato se repercute de modo directo, poderoso e global sobre o campo
das políticas públicas de educação e de formação.
Passemos rapidamente em revista esta retórica optimista dominante. Os
sectores mais competitivos e mais inovadores da economia configuram um
novo tipo de indústrias e novas formas de organização do trabalho. Como
vimos, alguns autores designam estes novos rumos da economia capitalista
como pós-industriais. Este conceito, regra geral, engloba o novo dinamismo
dos sectores de produção não-industrial de serviços e de bens imateriais
(informação, design, marketing, publicidade, gestão, serviços financeiros...),
a difusão e o impacto generalizados da informação e dos novos meios de
comunicação social, o crescimento das interdependências socioeconómicas,
a globalização dos mercados e a internacionalização contínua das
actividades económicas e dos serviços financeiros, tudo isto envolto em
crescentes pressões de índole ambiental.
Assiste-se a uma crescente terciarização das economias (comércio, serviços
às empresas, serviços financeiros, serviços pessoais, serviços de saúde e
332
administração, novos serviços de informação e de telecomunicações) e a
uma introdução massiva das novas tecnologias, quer na produção quer na
concepção, na comercialização e no consumo. Os microprocessadores (na
robótica, nas tecnologias da informação, na biotecnologia, ...) favorecem a
emergência de novos produtos, novos processos e novos empregos, além de
provocarem evidentes modificações nas funções dos empregos tradicionais
e actuais.
Desenvolveu-se, pois, de há uns anos a esta parte, uma importante retórica
técnica e política que, à luz da intensa reestruturação da economia, advoga
que " a produção em massa e a organização taylorista do trabalho a ela
associada tornam-se cada vez mais disfuncionais devido à sua rigidez e falta
de adaptabilidade" (Kovacs, 1991:116). A economia capitalista evoluiria,
assim, e como já evidenciámos no capítulo anterior, para sistemas de
produção pós-tayloristas e flexíveis.
Esta retórica tecnico-económica defende ainda que, com a passagem
descontínua e progressiva de um modelo taylorista para um modelo póstaylorista de produção, assente na flexibilidade e caracterizado por um novo
tipo de organização, as qualificações requeridas em determinados níveis do
exercício profissional também registam evoluções muito significativas. Ao
novo tipo de produção e de organização estará associado o exercício
profissional de tarefas mais amplas e complexas, ao trabalho em equipa, ao
auto-controlo de execução de tarefas pelas equipas de trabalho, à
interligação das tarefas de concepção/controlo e de execução, à autonomia
e à responsabilização das equipas de trabalho, recorrendo-se mais a
conhecimentos técnicos e teóricos e empíricos mais amplos e à capacidade
de adaptação de cada um às mudanças permanentes.
Propaga-se, por via deste discurso dominante, uma visão particularmente
optimista acerca do impacto da reestruturação da economia capitalista, dos
333
padrões de produção e de organização do trabalho. A estes são atribuídas
novas características, geralmente sem quaisquer reservas ou efeitos
negativos, que vão desde a organização do trabalho em equipa, até à
criatividade, à iniciativa e ao recurso permanente ao conhecimento, até aos
amplos poderes de decisão das equipas de trabalho e à inovação
permanente. O "novo sistema produtivo" seria, assim, baseado no uso
intensivo de conhecimentos e potencialmente gerador de maior realização
humana pelo trabalho, agora requerente de uma nova "inteligência colectiva"
( Brown e Lauder, 1995).
Este novo quadro repercute-se obviamente no emprego. As grandes
tendências que se verificam são: (a) o crescimento do desemprego,
atingindo valores acima dos 20% da população activa em vários países
desenvolvidos; (b) uma terciarização extensiva da mão-de-obra e uma
redução do emprego industrial; (c) o aumento do emprego associado a
funções mais qualificadas e o incremento do recrutamento de quadros
intermédios e de profissionais altamente qualificados; (d) o envolvimento do
emprego e do exercício profissional por uma enorme mancha de incerteza:
quanto aos tipos de profissões que se exercerão ao longo da vida
profissional, quanto à duração e ao conteúdo de cada actividade
profissional, quanto ao modelo de contratação; (e) uma progressiva
precarização dos vínculos contratuais, uma maior flexibilidade na gestão das
carreiras profissionais, maior mobilidade intra e interempresas; (f) uma
tendência para uma valorização progressiva do autoemprego e do
teletrabalho.
Se, às transformações da esfera da produção adicionarmos as que resultam
dos novos efeitos da acumulação, transmissão e utilização da informação e
das que derivam, em geral, da aplicação das novas tecnologias da
informação e da comunicação, somos compelidos a concluir, como J. C.
Tedesco (1995:22) que "o facto mais importante é o consenso em
reconhecer que o conhecimento constitui a variável mais importante na
334
explicação das novas formas de organização social e económica". Neste
campo,
o
sistema
escolar,
enquanto
produtor
e
distribuidor
de
conhecimentos e de credenciais, reveste-se de uma nova importância que o
mesmo autor apelida de "históricamente inédita".
Em França, por exemplo, no fim dos anos oitenta, o Alto-Comité EconomiaEducação estimava que, entre o ano de 1982 e ano 2000, a evolução da
estrutura dos empregos na indústria provocaria uma mudança da demografia
industrial, conhecida como a passagem do "triângulo" ao "hexágono".
Gráfico 4.2
Do triângulo ao hexágono
1982
2000
Engenheiros, técnicos
30%
17%
38%
Operários qualificados
contramestres
45%
Operários não qualificados
45%
25%
Fonte: BIPE/HCEE, 1987
Pode reafirmar-se, em síntese, que face às reestruturações em curso na
economia se formula uma retórica que valoriza o papel dos sistemas de
ensino e de formação na produção de um conjunto de saberes e de
competências gerais e profissionais que, tradicionalmente, os modelos
formativos de preparação para o trabalho produtivo não desenvolviam,
habitualmente
demasiado
preocupados
com
o
desenvolvimento
de
335
qualificações técnicas e concentrados no esforço de especialização
profissional. A isto chamamos o novo mandato social, de cariz fortemente
económico, sobre as qualificações requeridas aos trabalhadores, à entrada
no mercado de emprego e, concomitantemente, sobre o sistema de ensino e
de formação. Por mandato social entendemos aqui um conjunto articulado de
requisitos que certos grupos sociais, organizações internacionais, redes de
peritos e sectores de actividade social em geral identificam, de forma mais
ou menos explícita e coerente, para sustentar um determinado ordenamento
social global e o cumprimento de certas funções por parte de subsistemas
sociais, como o do ensino e da formação profissional inicial.
Uma retórica optimista e valorizadora da formação geral
Este mandato não se esboça nos anos oitenta; ele formula-se lentamente,
desde os anos sessenta, mas só se transforma em discurso social relevante
no fim dos anos oitenta e, de modo inequívoco, nos anos noventa. Para a
sua formulação contribuem, entre outros elementos, por um lado, o que se
refere como sendo um leque de novos requisitos dos empregadores, em
termos do perfil de competências desejáveis à entrada do mercado de
emprego e, por outro, as recomendações insistentes de organismos e
agências internacionais no sentido dos sistemas de ensino e de formação
profissional inicial de cada país promoverem a desenvolvimento desse novo
perfil de competências. Ambos os elementos interactuam e enformam um
dircurso coerente e cada vez mais omnipresente. Ficou bastante claro,
através dos estudos da sociologia do trabalho já referidos, que se trata de
um mandato enunciado pelos sectores mais competitivos da economia, pelos
sectores industriais mais modernos e pelas novas empresas de serviços,
mandato este expresso de modo veemente e recorrente por agências e
organismos internacionais, revestindo-se desse modo de uma envolvência
transnacional e de uma autoridade mundial dificilmente contornáveis e
questionáveis. Nesta ordem de ideias, os novos requisitos em termos de
336
competências profissionais, no termo da formação inicial dos jovens, derivam
sobretudo de um conjunto de novas características requeridas pela evolução
do sistema económico, terreno social onde, no entanto, se continuam a
cruzar modelos de produção tayloristas, neotayloristas e póstayloristas.
Quanto à emergência do novo perfil de competências profissionais
requeridas pelos empregadores, perfil este integrado na referida retórica
global, vários estudos empíricos aparecem como seus legitimadores e
sustentáculos. Entre um imenso rol podemos citar os estudos de Carnevale
(1988), sob encomenda do Departamento Federal do Trabalho, Emprego e
Formação dos EUA,
de H.M. Levin (1988), de H.M. Levin e Rumberger
(1989), de Wellington (1986), do Michigan Department of Education (1989) e
de L. Fitzgerald (1986). Esta autora, após uma leitura crítica acerca da
necessidade de reforçar o ensino técnico e a formação profissional como
forma de preperação para o trabalho, conclui que para se obter um "mínimo
suficiente de sucesso",
colocar-se
no
numa generalidade de ocupações, o acento deve
desenvolvimento
de
"competências
gerais
de
empregabilidade" e não de competências profissionais especializadas.
Competências "generalizáveis e transferíveis", que correspondem a hábitos
de trabalho, atitudes (responsabilidade, interesse, iniciativa), competências
de
relacionamento
interpessoal,
além
do
tradicional
"bloco"
das
competências básicas de tipo intelectual como saber ler, escrever e calcular
(1986:268).
Mas, como vimos, é nas organizações de cooperação e de financiamento
internacional que este novo mandato neoprofissionalista sustenta um dos
seus principais pilares, quer no que se refere à sua construção quer no que
respeita à sua disseminação. Organismos como a OCDE, o Conselho da
Europa, a UNESCO, a UE, a Comissão Europeia, o Banco Mundial e a OIT
são altamente responsáveis pela divulgação de um "catálogo" de novos
requisistos societais face aos sistemas educativos, disseminação essa que é
337
feita através da realização de estudos comparados, monografias nacionais,
conferências e seminários internacionais e da publicação de estatísticas,
cujo poder homogeneizador e uniformizador deve ser, desde logo,
reconhecido. Mais adiante voltaremos a esta última parte da questão e, de
imediato, abordamos alguns traços das mais recentes recomendações das
aludidas organizações sobre a problemática que nos ocupa. Face às
acrescidas dificuldades de inserção dos jovens no mercado de trabalho,
diante de uma muito lenta transformação da organização do trabalho e
perante um contexto profissional cada vez mais instável e imprevisível,
desenvolve-se, em particular, uma retórica optimista e valorizadora da
formação geral.
A OCDE, na sua análise acerca da relação entre educação-economia, no
relatório sobre "A educação e a mudança estrutural", propõe, como desafio
central ao nível do ensino pós-obrigatório, o reforço dos laços que foram
progressivamente estabelecidos ao longo dos últimos anos entre os ensinos
dispensados nos estabelecimentos escolares e as formações menos
"formais" organizadas nas empresas ou no quadro das políticas de mão-deobra. Ao mesmo tempo defende o aumento da parte dos ensinos gerais e
teóricos nas formações profissionais. "A tendência para uma convergência
mais vincada entre as formações gerais e profissionais a todos os níveis
deverá, assim, ser seguida com particular atenção em todos os países
membros" (OCDE, 1989:9).
E prossegue: "Ao longo dos últimos anos foi-se progressivamente dando
conta de que uma boa qualidade dos conhecimentos e das competências
permanece mais importante que nunca enquanto, ao mesmo tempo, o
processo de aprendizagem tem um impacto considerável sobre a motivação
dos alunos, a sua criatividade, o seu espírito de iniciativa e as suas atitudes,
tão importantes, em termos de autonomia e de cooperação.
338
Simultaneamente, a ideia de um programa de ensino comum e de
competências de bases comuns para todos suscita um interesse crescente
nos países membros. Isto implica que se identifique um conjunto de
aprendizagens às quais todos os jovens deveriam ter acesso, talvez sob
formas diferentes, para ter em conta a diversidade dos seus interesses e das
suas atitudes, deixando-lhes sempre algumas possibilidades de escolhas"
(OCDE, 1989:9 e 10).
No plano europeu, várias são as instâncias e diversos os momentos em que
se reclama uma melhoria generalizada das qualificações para fazer face ao
aumento da competitividade económica internacional. Vejamos alguns
exemplos.
O Conselho da Europa, por um lado, desenvolveu, ao longo dos anos
noventa, uma importante actividade sobre o ensino secundário. Realizaramse vários encontros e seminários internacionais e publicaram-se monografias
sobre o ensino secundário em cada um dos países, sob uma orientação
metodológica comum. Esta actividade do Conselho da Europa viria a
desembocar na aprovação de duas resoluções, por parte dos Ministros
europeus da educação, numa conferência realizada em Kristiansand, em
1997. Os ministros concordaram em adoptar como orientação comum para
as reformas do ensino secundário a "aproximação entre o ensino geral e a
formação profissional", e a "redefinição da cultura geral num mundo cada vez
mais complexo, imprevisível e em rápida mutação, onde o essencial é a
formação global de uma personalidade equilibrada, motivada e autónoma"
(Conselho da Europa, 1997: 3 e 4).
A Comissão das Comunidades Europeias, por sua vez, adoptava, no seu
relatório sobre os recursos humanos na Europa face aos anos 90, "Skills for
a Competitive Europe, A Human Ressources Outlook for the 1990's", o
seguinte enquadramento geral: "Os novos modelos de crescimento
339
acentuam que é o investimento intangível - na educação, formação e
transformação tecnológica - que está no coração do processo de
desenvolvimento"(1993:19). O investimento em "conhecimento" é visto como
tão importante como o investimento em capital e afirma-se a imperiosa
necessidade de se realizaram sempre de uma forma articulada.
As mudanças estruturais, técnicas e organizacionais nas empresas
europeias colocam os "gestores de competências" sob pressão, em ordem a
promover as seguintes competências-chave:
- competências de marketing (dentro e fora das organizações)
- competências de comunicação e capacidade negocial
- sensibilidade cultural
- habilidade para reconhecer e alcançar resultados."
E o relatório remata: "mais que tudo, os gestores (de competências)
necessitarão de criar organizações aprendentes. Os gestores precisam de
capacitar a mão-de-obra para aprender as técnicas da resolução de
problemas e a capacidade para monitorizar a progressão. Todas as técnicas
de gestão da qualidade estão a ser visadas para fazer da aprendizagem uma
actividade sistemática das organizações". (1993:19)
Finalmente, quanto às novas pontes a estabelecer entre educação e
formação o relatório identifica as prioridades para uma melhoria dos
conteúdos, dos mecanismos de acesso e da mobilidade geográfica e
profissional: (i) esclarecer as possibilidades de cada indivíduo progredir dos
estudos profissionais e técnicos para o ensino superior; (ii) estabelecer
continuidades entre a formação inicial e de adultos através, p. ex., da
transferência e acumulação de créditos; (iii) atribuir maior paridade no
tratamento entre estudantes dos cursos de formação técnica e dos cursos
académicos; (iv) promover a transferibilidade das qualificações, o que
oferece a possibilidade de prosseguir a formação, mais tarde, para níveis
340
mais elevados (1993:34).
O Memorando sobre "A formação profissional na Comunidade Europeia para
os anos 90", construído pelo Comité Consultivo para a Formação
Profissional, de composição tripartida, advoga que é na moderna
reorganização do trabalho, em que se reduzem as formas tradicionais de
divisão do trabalho, se descentralizam muitos poderes de decisão e as
tarefas requerem trabalhadores capazes de prever, organizar e realizar o
trabalho de forma mais autónoma e autocontrolada, que se sustenta "uma
necessidade crescente de qualificações múltiplas ou cruzadas" (1991:8).
Para o Comité Consultivo é na capacidade dos sistemas de formação
profissional articularem a formação e o trabalho que está, em grande parte, a
possibilidade
dos
jovens
adquirirem,
conservarem,
alargarem
e
aprofundarem as suas qualificações profissionais como processo contínuo
ao longo da vida activa.
Para tal é necessário, ainda segundo o Memorando, garantir uma
coordenação entre as aprendizagens e os contextos de trabalho concretos e
a permanente consideração do trabalho e da empresa na formação
profissional, inicial e contínua. Para as aprendizagens e para os parceiros
sociais é recomendada uma maior participação activa na formação
profissional.
Também
o
Comité
Consultivo
da
UE
para
a
Investigação
e
o
Desenvolvimento Industrial (IRDAC), no seu relatório sobre a "A carência
das qualificações profissionais na Europa", de 1991, aponta para a
necessidade de se agir com urgência no domínio da educação e da
formação para enfrentar três "situações preocupantes": o inigualável
envelhecimento da população europeia, a redução da entrada de jovens no
mercado de trabalho e o desajustamento entre a formação de que são
portadores e os novos perfis de emprego (1991:18).
341
Como principais conclusões e recomendações para o domínio da formação
inicial sublinham-se as seguintes: (i) reavaliação das políticas e das
prioridades,com ênfase para a formação contínua para todos, em ordem a
melhorar as qualificações e actualizar periodicamente a mão-de-obra no
activo; (ii) devem ser atraídos para as matemáticas e para as áreas
científicas e técnicas mais alunos do ensino primário e secundário; (iii)
nenhum jovem deve sair do sistema educativo sem uma compreensão básica
da ciência e da tecnologia; (iv) na Europa, ninguém deve sair do sistema
educativo ou de formação sem uma qualificação ou uma aptidão; (v) é
preciso fazer um esforço estrutural na flexibilização da aprendizagem e da
formação à distância; (vi) as novas tecnologias devem ser utilizadas, numa
maior escala, na produção e no fornecimento dos suportes didácticos da
formação.
O Livro Branco sobre "Crescimento, competitividade e emprego" (1993),
amplamente divulgado em todas as línguas dos países membros, estabelece
as "grandes orientações" para a reforma dos sistemas de educação e de
formação profissional para o resto da década de 90. O princípio central que
é eleito é o da "valorização do capital humano ao longo de toda a vida
activa, partindo do ensino básico e prosseguindo com a formação inicial
para, em seguida, encontrar apoio na formação contínua". A Comissão
Europeia apresenta com detalhe o seu entendimento acerca da relação entre
formação e emprego.
"Para lutar contra o desemprego dos jovens sem qualificações, o objectivo
deverá ser a instauração de sistemas e fórmulas que permitam assegurar
simultaneamente uma formação de base sólida, de nível suficiente, e a
ligação entre a formação escolar e a vida activa. As competências
fundamentais indispensáveis à inserção social e profissional abrangem ao
mesmo
tempo
um
perfeito
domínio
dos
conhecimentos
básicos
342
(conhecimentos linguísticos, científicos, etc.) e competências de carácter
tecnológico e social: capacidade de evoluir e de actuar num ambiente
complexo
e
de
particularmente,
grande
pela
densidade
importância
tecnológica,
das
tecnologias
marcado,
da
mais
informação;
capacidades de comunicação, de contacto e de organização. Abrangem,
sobretudo, a capacidade fundamental de adquirir novos conhecimentos e
novas competências, de "aprender a aprender" pela vida fora. O percurso
profissional efectuar-se-á numa lógica de progressão contínua das
competências." (1993: 126)
O Livro Branco "Ensinar e Aprender. Rumo à Sociedade Cognitiva"(1995) é
peremptório na orientação que dá aos Estados membros da União Europeia:
"o desenvolvimento da cultura geral, isto é, da capacidade para captar o
significado das coisas, compreender e formular juízos, é o primeiro factor de
adaptação à evolução da economia e do emprego" (1995:27). O relatório
constata uma "convergência cada vez mais nítida" entre os mundos
empresarial e da educação acerca da utilidade de conciliar ensino geral e
formação especializada, sublinhando que se assiste mesmo "a um regresso
em força da cultura geral", entendendo-o como um "instrumento de
compreensão do mundo fora dos quadros do ensino". É, aliás, curioso e
sintomático que a Comissão Europeia vá buscar uma posição da MesaRedonda dos Industriais Europeus, de Fevereiro de 1995, para sustentar a
sua perspectiva, a saber: "a missão fundamental da educação consiste em
ajudar cada indivíduo a desenvolver todo o seu potencial e a tornar-se um
ser humano completo, e não um mero instrumento da economia; a aquisição
de conhecimentos e competências deve ser acompanhada pela educação do
carácter,
a
abertura
cultural
e
o
despertar
da
responsabilidade
social"(1995:27).
No fim de 1996, o "Grupo de Reflexão sobre a Educação e a Formação",
constituído por peritos oriundos dos diversos países membros da União
343
Europeia, publicava um
relatório que dedicava uma parte da reflexão à
"relação entre formação geral e formação profissional". O Grupo considera
que "a evolução rápida das profissões e a necessidade de conhecimentos de
base requerem a adopção do seguinte princípio geral: nenhuma formação
geral pode dispensar a preparação para uma competência profissional,
nenhuma formação profissional pode dispensar a consolidação das
competências de base que são dadas pelo ensino geral" (1996: 36). Entre
outras recomendações, o relatório aconselha que
as escolas e os
professores devem centrar-se sobre a sua missão "que é a qualidade da
formação geral" (1993:38), tendo aí tudo a ganhar, quer em termos de
aquisição de saber quer em termos de desenvolvimento pessoal.
Estabelece-se uma clara distinção entre quem é responsável pela formação
geral tanto na escola como na empresa, os professores, e quem é
responsável pela formação profissional tanto na escola como na empresa, os
"monitores das empresas e outros formadores-engenheiros"(1996:38).
Pelo seu lado, a UNESCO aprovou, em Novembro de 1989, na 25ª sessão
da Conferência Geral, uma Convenção sobre o Ensino Técnico e
Profissional em que reforça, a par da "aquisição de conhecimentos e
técnicas indispensáveis ao desenvolvimento económico e social", a
necessidade do ensino técnico e profissional cuidar "da realização pessoal e
cultural do indivíduo na sociedade" (Artº2º, nº1). E quanto aos progressos do
ensino técnico e profissional recomenda, na esteira da Recomendação sobre
o Ensino Técnico e Profissional, aprovada em 1974 (parágrafo 26), que
"devem responder às exigências do sector profissional a que respeitam e
também assegurar a formação geral necessária ao desenvolvimento pessoal
e cultural do indivíduo e compreender, entre outras, noções sociais,
económicas e respeitantes ao meio ambiente, na sua relação com a
profissão (Artº3º, nº3).
Além disso, a Convenção afirma permanentemente a necessidade de
344
estabelecer as mais diversas pontes entre os sistemas de educação e
formação e as empresas/locais de trabalho.
No seu estudo internacional e comparado sobre a integração entre a
formação geral, técnica e profissional, a UNESCO conclui que, não havendo
uma solução para o problema da integração, uma vez que cada país
encontrou uma estratégia adequada à situação local, “uma coisa, entretanto,
é muito clara: há definitivamente uma tendência global em direcção à
integração” (Unesco, 1986:307). Em 1991, na sua 26ª Conferência Geral, a
UNESCO veio repisar que as transformações em curso na indústria e nos
serviços produzem um aumento incessante do “conteúdo conceptual dos
empregos”, o que requer “vastas competências gerais teóricas e a aptidão
para trabalhar em equipa. É por isso necessário”- conclui o documento- “dar
um lugar maior à formação geral teórica no ensino técnico e profissional”
(Unesco, 1991:7).
Mais recentemente, no seu relatório sobre a educação para o século XXI,
publicado em Abril de 1996 e elaborado por uma comissão internacional de
peritos, "Educação: um tesouro a descobrir", a UNESCO enuncia que entre
os vários papéis que estarão reservados para a educação escolar nos
próximos anos, está o de "fazer com que cada um tome o seu destino nas
mãos e contribua para o progresso da sociedade em que vive, baseando o
desenvolvimento na participação responsável dos indivíduos e das
comunidades" (Unesco, 1996:73).
E prossegue: "O princípio geral de acção que deve presidir a esta
perspectiva dum desenvolvimento baseado na participação responsável de
todos os membros da sociedade é o incitamento à iniciativa, ao trabalho em
equipa, às sinergias, mas também ao auto-emprego e ao espírito
empreendedor; é preciso activar os recursos de cada país, mobilizar os
saberes e os agentes locais, com vista à criação de novas actividades que
345
afastem os malefícios do desemprego tecnológico" (1996:73). Esta reposição
de uma visão humanista da educação escolar, centrada na formação geral,
ocorre no quadro de uma actualização teleológica dos sistemas educativos,
numa época em que parecia não haver outras finalidades para debater,
resolvida que parecia estar a submissão completa da educação quer às
finalidades económicas quer à lógica da reprodução das desigualdades
sociais.
Também a Organização Mundial do Trabalho (OIT) tem vindo a exercer uma
influência assinalável sobre as políticas nacionais de ensino e de formação.
Em 1975, foram aprovadas uma Convenção e uma Recomendação sobre “A
orientação profissional e a formação profissional no desenvolvimento dos
recursos humanos”. Nestes documentos estabelecem-se e retomam-se
permanentemente orientações políticas que percorrem dois grandes eixos:
por um lado, a necessidade de se adoptarem políticas e programas
unificados e articulados entre orientação, formação e emprego; por outro, a
importância de fomentar o desenvolvimento de cada um, “de acordo com as
suas próprias aspirações e tendo em conta as necessidades da sociedade”,
no seio de sistemas “abertos, flexíveis e complementares de ensino geral,
técnico e profissional, de orientação escolar e profissional e de formação
profissional”31.
O Banco Mundial, por sua vez, no seu documento de política geral sobre o
ensino técnico e a formação profissional, de 1991, vem recomendar a
descentralização e flexibilização da oferta de formação técnica e profissional
(World Bank, 1991). No seu entender, a adequação entre a formação e as
necessidades do mercado de emprego aumentará não só pela diminuição da
intervenção do Estado e das entidades públicas, que deverão investir
prioritariamente na melhoria da formação geral, mas também pela
progressiva intervenção do sector privado da economia na formação
31 Os dados da OIT foram recolhidos junto da Organização, em Genebra, e os textos seleccionados foram analisados na
Internet, na página ILO, através da consulta da base de dados ILOLEX (1997).
346
profissional especializada.
Como argumento para esta "mudança radical na sua maneira de abordar a
controvérsia educação-desenvolvimento" (Foster, 1992), a que nos referimos
no capítulo anterior,
o Banco Mundial aponta a maior produtividade do
ensino geral e o exemplo dos países que, por terem investido sempre e mais
na qualidade de formação geral, revelaram índices de desenvolvimento
económicos mais espectaculares.
Esta nova posição do Banco Mundial é paradigmática, na cena internacional,
do enorme arco descrito nos últimos cinquenta anos quanto ao modo
dominante como se foi encarando o lugar e o papel do ensino técnico e da
formação profissional inicial no sistema escolar. Um arco cujo traço foi
escrito em cima de uma polémica permanente acerca desse mesmo lugar e
papel. Aquilo que o Banco Mundial vem recomendar, nos anos noventa, no
que se refere ao desinvestimento neste tipo de ensino e formação,em termos
escolares, é, em boa medida, o reconhecimento oficial e a seu tempo das
perspectivas críticas que, desde os anos sessenta, os anos de investimento,
o proclamavam como uma falácia.
Nos anos 60 e 70, como vimos anteriormente, o Banco Mundial tinha
desenvolvido
a
sua
política
de
empréstimos
fornecendo
bens
de
equipamento e favorecendo o crescimento da oferta de ensino técnico e
profissional, mormente no seio do ensino secundário, onde propunha os
chamados "programas de diversificação", nos tradicionais estabelecimentos
de ensino clássico ou geral. Em 1991, no seu novo documento de política
geral em matéria de ensino ténico e profissional (World Bank,1991), o Banco
Mundial estima reduzir consideravelmente a sua ajuda financeira aos
governos para o ensino profissional e técnico e contribuir sobretudo para a
melhoria da qualidade do ensino "geral", nos ensinos primário e secundário.
347
P.Foster explica esta viragem pela intervenção de três factores, a saber: (a)
os dados empíricos obtidos pela observação dos resultados das políticas
seguidas; (b) os índices fornecidos pela história, nomeadamente o maior
investimento no ensino geral verificado nos países com melhores resultados
escolares; (c) e a renovação da equipa de economistas do Departamento de
Educação do Banco Mundial, que passaram a sustentar uma planificação da
educação "no quadro de uma economia de mercado descentralizada". Nesta
óptica, não estamos perante uma nova moda, mas diante de uma "mudança
profunda e a longo prazo de toda a política do Banco respeitante ao
desenvolvimento" (Foster,1992:173).
A nova perspectiva do Banco Mundial, apresentada por J. Middleton, A.
Ziderman e A. Van Adams, parte do pressuposto de que a formação no
sector privado, promovida por empregadores privados e instituições de
formação privadas, pode constituir "a forma mais efectiva e eficiente de
desenvolvimento das competências da mão-de-obra" (World Bank, 1991:7).
Aos governos cabe participar neste processo de melhoria da "productividade
e flexibilidade da força de trabalho" investindo na educação geral, aos níveis
primário e secundário. Ao ensino secundário académico e de qualidade é
atribuído o papel de fornecer as bases sólidas para uma aprendizagem
permanente ao longo da carreira e para sustentar o auto-emprego, sendo
inequivocamente secundarizada a introdução de cursos profissionais no
ensino secundário. Os recursos que se investiriam nestes cursos, segundo o
Banco Mundial, serão melhor realizados se incidirem na melhoria da
qualidade do currículo académico ou do acesso a esse tipo de ensino. E,
sinal dos tempos, concluem que estes programas "diversificados não são
mais eficazes do que o ensino secundário académico para habilitar os
diplomados para obter um salário ou para o auto-emprego" (1991:9).
Em consonância com esta nova óptica, o Banco Mundial sugere aos
governos a criação de um clima favorável à expansão da formação no sector
348
privado, através de incentivos que reduzam as disparidades existentes e de
políticas compensatórias, quando aqueles não puderem ser levados a cabo.
Para encorajar o incremento desta reorientação das políticas de formação os
governos devem tomar medidas em quatro vertentes: estimular o clima
político que favoreça a assunção da formação pelo sector privado, encorajar
directamente a formação dada pelos empregadores, reduzir as barreiras
colocadas ao sector privado na promoção da formação e promover a
eficiência da formação oferecida por entidades públicas.
Após esta rápida revisão do posicionamento de alguns organismos
intergovernamentais e agências internacionais que estão a marcar
profundamente um novo ritmo e uma nova direcção para as políticas de
ensino e de formação profissional inicial dos jovens, convém sublinhar de
modo mais tipificado e sintético a natureza desta pressão.
Em síntese, quando se recomenda que é necessário aumentar o nível geral
das qualificações da população jovem, quando se reitera que a formação
técnica e profissional prévia à entrada no mercado de emprego não deve
ocupar-se da especialização, mas do desenvolvimento de uma sólida
formação "geral", quando se afirma que é necessário dotar os jovens em
formação inicial da adaptabilidade requerida pelas novas configurações do
mundo profissional, quando se advoga que, nesta mesma formação inicial, é
necessário reforçar sobretudo competências do domínio comportamental,
estamos diante de uma corrente ideológica global (Benavot, 1983) que apela
à realização de "reformas" escolares que constituem, antes de mais,
importantes adaptações aos requisitos de uma economia em profunda
reestruturação e de uma sociedade em mudança acelerada.
Se nos anos setenta e em grande parte dos anos oitenta as políticas de
ensino e de formação profissional inicial se situaram predominantemente na
perspectiva de melhorar os mecanismos de "transição entre a escola e a vida
349
activa" e, em vários países, na especialização da formação profissional, na
expectativa de uma melhoria dos níveis de desemprego conjuntural, nos
anos noventa constatou-se que, em geral, estes níveis não se reduziram
significativamente e as políticas orientaram-se mais no sentido do
diferimento da entrada dos jovens no mercado do primeiro emprego,
prolongando tendências do passado, mas num quadro marcado agora por
uma incerteza e imprevisibilidade sem precedentes. Diante destes problemas
estruturais os governos europeus tendem a promover uma metamorfose
bifronte: por um lado, os problemas do desemprego e da lenta mudança na
organização do trabalho são transformados em problemas do foro político da
educação e da formação, colocando-as sob reforma contínua; por outro, a
imprevisibilidade e a incerteza que povoam os percursos de inserção
socioprofissional dos jovens e a instabilidade que se instala crescentemente
no mercado do primeiro emprego são transformados em problemas contidos
na equação formação profissional-formação geral. Esta última, a formação
“geral”, parece ser a nova via para cumprir hoje os objectivos de adaptação
da educação à economia, tal como ontem se pretendia fazer pela via da
formação especializada.
Trata-se, tudo o indica, de um mandato societal que, assente na matriz
socioeconómica, está a ter largas repercussões sociais e culturais. As
reformas em curso nos anos noventa,mormente no ensino secundário, vão
beber sofregamente esta ideologia modernizadora e estabelecer como seu
eixo estruturante a retórica que lhe subjaz. É o que veremos de seguida,
assinalando recentes reformas do ensino secundário em vários países da
Europa Ocidental.
351
Capítulo 5
As recentes reformas do ensino e da formação de nível
secundário (anos 90)
Este capítulo apresenta uma breve descrição das reformas do ensino e da
formação de nível secundário que foram consideradas na pesquisa, após o
processo hermenêutico empreendido. Os critérios que presidiram à sua
escolha já foram devidamente apresentados no capítulo 2, referente à
introdução geral à investigação. Os casos descritos, Dinamarca, Espanha,
Finlândia, França, Holanda, Itália, Noruega, Suécia e Suiça, foram
seleccionados como sendo o conjunto dos países da Europa Ocidental onde,
na primeira metade da década de noventa, ocorreram reformas no nível
secundário em que é patente o esforço de integração curricular e até
institucional e onde se empreenderam desespecializações das formações
técnicas e profissionais. O caso de Portugal, como já se referiu na introdução
geral, não é aqui incluído, embora um movimento reformador semelhante
tenha ocorrido entre nós.
Por integração curricular entende-se o esforço de aproximação entre os
planos de estudo de diferentes modalidades de ensino e de formação, ao
nível secundário, em ordem à redução progressiva das diferenças entre elas.
O conceito de integração institucional ou estrutural alude aos movimentos,
concomitantes com os anteriores, em que a integração curricular é
acompanhada de uma aproximação entre diferentes tipos de escolas,
havendo casos em que se criam novas escolas unificadas ou polivalentes.
Por desespecialização entende-se o movimento de redução, mais ou menos
drástica, do número de cursos técnicos e profissionais especializados e a
construção de planos de estudos ditos mais “gerais” e “polivalentes”.
352
Para cada país segue-se um esquema implícito de apresentação que
compreende as seguintes partes, apresentadas por este ou outra ordem: (i)
descrição da diversidade da oferta existente no ensino e na formação de
nível secundário; (ii)apresentação de fluxos da procura entre as várias
modalidades de ensino e de formação e (iii) breve enumeração de alguns
elementos relativos ao contexto socioeconómico, com destaque para a
evolução do emprego juvenil. De seguida (iv) é apresentada a reforma em
questão, nos termos em que ela é anunciada e enunciada pelos próprios
Ministérios da Educação de cada país, o seu contexto, os seus objectivos, as
suas finalidades e as suas propostas concretas. Faz-se ainda referência (v)
à criação de comissões e grupos de trabalho, ao estabelecimento de
dispositivos legais de adopção das medidas de política e à participação dos
parceiros sociais na preparação destas mesmas medidas. Pretende-se,
deste modo, com este trabalho empírico, identificar as opções políticas
realizadas e os fundamentos que subjazem às medidas tomadas.
A principal fonte de informação são os documentos oficiais dos Ministérios
da Educação de cada país, normalmente de dois tipos. De um lado,
monografias que descrevem o sistema de ensino nacional e, do outro,
documentos de apoio ao lançamento das reformas em análise. Pretendeuse, assim, reunir uma informação que fosse pertinente para tratar estes
processos de mudança, usando a sua linguagem “natural”, declarativa e
normativa.
Por outro lado, aqui são apenas consideradas as fases de implementação ou
avaliação do real impacto dos processo de reforma. Apenas se têm em conta
as fases de preparação e de concepção, de construção normativa e, se fôr
caso disso, de experimentação. Estes são os momentos que seleccionamos
como relevantes para a análise que decidimos levar por diante, pois é neles
que se traduzem mais imediatamente os fundamentos das opções políticas
que subjazem às medidas empreendidas.
353
Optamos por proceder a uma descrição de cada uma das reformas e, de
seguida, apresentamos um primeiro esforço de síntese acerca dos seus
traços comuns. Terminamos o capítulo com um sumário de outras leituras
destas mesmas reformas e das tendências que nelas se encontram mais ou
menos dormentes.
O Caso da Dinamarca
O ensino secundário superior da Dinamarca é muito diversificado e é
oferecido por diversos tipos de instituições educativas. Existem duas fileiras
principais de ensino geral do segundo ciclo: os liceus, que conduzem ao
diploma de fim de estudos secundários (Gymnasium) e os estabelecimentos
específicos (HF) que prepararam também os jovens para a realização do
exame do fim do ensino secundário (de segundo ciclo).
Paralelamente, existem as escolas comerciais e as escolas técnicas, que
preparam para o diploma superior de comércio (HHX) e para o diploma
superior técnico (HTX).
Além destas modalidades, os jovens podem ainda escolher as formações
profissionais de base, em qualquer uma dos seus novos 85 cursos, as
formações
do
sector
social
e
da
saúde
e
outras
formações
complementares.O organigrama que se segue procura ilustrar esta
diversidade (figura 5.1.). O esforço
do Ministério da Educação e da
Investigação (MER) tem sido o de coordenar toda a oferta de formação após
a realização do ensino básico. Assim, em cada ano, em Fevereiro, todos os
jovens do 9º e do 10º anos são informados acerca de todas as oportunidades
de formação e recebem um formulário de inscrição. Até 15 de Março podem
candidatar-se a três tipos de estudos diferentes e a duas escolas escolhidas
354
para cada formação desejada. A resposta da escola escolhida é dada um
mês depois e, em geral, os candidatos são admitidos (93%).
Figura 5.1.
Organigrama do sistema escolar da Dinamarca
- Ensino Secundário -
Ensino Superior e Formação Complementares
Escolas de
Continuação
Escolas de
Produção
Escolas de
Jovens
Ensino e
Formação
Profissional
Escolas
Comerciais
Escolas
Técnicas
HHX
HTX
Escola Primária (9 anos)
Escola
Infantil
Fonte: Ministério da Educação da Dinamarca
Diplomas
de
Preparação
Exame
Liceus
355
Na Dinamarca, o desemprego, em 1991, atingia cerca de 11% da população
activa. A taxa de desemprego tem vindo a subir desde 1987 e é simultânea
com uma estagnação no crescimento económico. A partir de 1991, as
estatísticas relativas ao desemprego não pararam de aumentar.
Quanto aos fluxos de distribuição dos estudantes após a escolaridade
obrigatória, o quadro 5.1. procura transmitir a dinâmica evolutiva da década
de 80. Verifica-se que as novas admissões têm vindo a dirigir-se mais
acentuadamente para as formações técnicas e profissionais, as que já eram
as mais procuradas no fim dos anos 70. No entanto, John Banks, no seu
relatório ao Programa PETRA32, sublinha que a proporção de jovens que
escolhe o ensino secundário geral está a aumentar nos anos 90 atingindo já
perto de 46% (Banks, 1994: 29).
Quadro 5.1.
Distribuição da população escolar após a escolaridade obrigatória, na
Dinamarca, entre 1981/82 e 1990/91.
%
1981/82
83/84
85/86
87/88
89/90
90/91
32
31
32
32
33
34
54
56
59
59
59
59
Outros
1
1
0
1
0
0
TOTAL
89
88
91
92
93
93
Ensino Secundário Geral
Ensino
Técnico
Profissional
e
Fonte: Ministério da Educação da Dinamarca (1994)
32 O Programa PETRA foi um programa da Comissão Europeia intitulado: Programa de acção comunitária sobre a
formação profissional dos jovens e a sua preparação para a vida adulta e profissional.
356
1989 e 1990: os anos da mudança legislativa das formações profissionais e
das escolas profissionais
O sistema dinamarquês de ensino e de formação foi objecto de uma vasta
reforma, em 1990. Esta reforma, segundo o MER, visou adaptar o sistema de
ensino e de formação às mudanças sociais recentes e torná-lo mais atractivo
para um maior número de jovens.
Em 1990, perto de 57% dos jovens entre os 16 e os 19 anos prosseguiram
estudos. Um terço encaminhava-se para o ensino geral e dois terços dirigiase para o ensino profissional e para o sistema de formação profissional.
Durante os anos 80, o desemprego juvenil foi aumentando e a procura social
dos vários tipos de ensino secundário também cresceu muito rapidamente. A
procura revelou uma orientação cada vez mais acentuada em direcção ao
ensino secundário geral, uma vez que “para muitos jovens e seus pais o
ensino geral tem um status mais elevado” (The Danish M.E.R., 1994: 20).
Simultaneamente, a população jovem decresceu consideravelmente. Criouse, assim, um quadro social que motivou os parceiros sociais e o poder
político para a realização de “um esforço extra para atrair mais jovens para o
ensino profissional e para o sistema de formação profissional”(ibidem).
Em 1985, o Ministério da Educação solicitou a um gabinete de estudos a
análise da gestão das escolas profissionais. No seu relatório de 1986 este
gabinete fez um conjunto de propostas que viriam a ser, em boa parte,
acolhidas em legislação de Março de 1989, que estabeleceu um novo
sistema de gestão para as escolas profissionais.
As principais áreas de intervenção eram as seguintes: descentralizar
responsabilidades que deviam ser delegadas às escolas; introduzir a
direcção por objectivos; fundar o sistema de financiamento sobre
357
mecanismos autoreguladores; redefinir as missões dos órgãos consultivos.
Em Maio de 1986, o Ministério da Educação designou uma Comissão
encarregada da revisão das formações profissionais de base. O mandato
desta “comissão de reforma”, em que os parceiros sociais estavam
fortemente representados, pressupunha que era necessário proceder a
mudanças significativas para que a formação “fornecesse à vida económica
um apoio suficiente” (Nielson, 1995: 30).
Os problemas que, na época, se enumeraram eram os seguintes: (a) o
sistema de formação profissional de base é difícil de compreender; (b) está
dividido em um demasiado elevado número de formações; (c) o sistema é
duplo, uma vez que contém a formação dada por um mestre artesão e a
formação EFG (Ensino Profissional de Base); (d) caracteriza-se por uma
grande lentidão na sua capacidade de reagir à evolução de sociedade e do
emprego; (e) o ensino está dividido em disciplinas especializadas e
disciplinas comuns (Nielson, 1995).
A proposta de reforma surgiu em 1987 e apontava para um sistema que
fosse ao mesmo tempo de formação dos jovens, um sistema qualificante e
um sistema que constituisse a base de estudos complementares. A proposta
traduziu-se num um novo modelo, reunindo as formações de aprendizes, as
formações EFG e as formações de técnico de nível de base.
A Lei sobre as Formações Profissionais foi aprovada pelo Parlamento em 30
de Março de 1989 (nos cem anos do sistema de aprendizagem) e entrou em
vigor em Janeiro de 1991.
Pode dizer-se que, a partir de Janeiro de 1991, o sistema de formação
profissional inicial na Dinamarca se modificou profundamente. O seu
ordenamento interno é outro, a ligação aos parceiros sociais reforçou-se e a
gestão das escolas tornou-se mais autónoma.
358
Este reordenamento do ensino e da formação profissional contém, como
grandes objectivos das suas vias de formação, os seguintes:
− suscitar o interesse dos jovens pela educação e garantir que o
conjunto dos jovens que deseja obter uma qualificação profissional
disponha de mais possibilidades de escolha entre várias orientações;
− fornecer aos jovens uma qualificação tendo em vista a obtenção de
emprego e favorecer o seu desenvolvimento pessoal e a sua
compreensão da sociedade e da sua evolução;
− satisfazer
as
necessidades
do
mercado
de
emprego
em
qualificações gerais e profissionais adaptadas à evolução do
comércio, da produção e da sociedade e, em particular, a evolução
da organização do sector empresarial, do mercado de emprego, da
organização do trabalho e da tecnologia;
− fornecer aos jovens uma base sólida para o prosseguimento dos
seus estudos e da sua formação (Jensen, 1995 e OCDE, 1995).
O novo ensino técnico e profissional de base: desespecialização e integração
curricular
O novo Ensino Profissional de Base, veio criar um novo sistema único de
ensino profissional de base, após uma longa tradição do sistema de
formação em aprendizagem e uma mais recente criação do “ensino
profissional da base” (EFG), modalidade que se debatia, desde os anos 70,
como vários problemas de inadequação e que sofria fortes críticas dos
representantes das empresas.
Antes da reforma de 1990, o ensino e a formação profissional organizavamse em aproximadamente 300 cursos diferentes e especializados. Uma das
359
principais alterações consistiu em reduzir o número de cursos para 85. Cada
um deles contempla uma ou mais especializações terminais (ex. na área dos
transportes existe um só curso mas ele contém onze especializações
terminais).
O novo sistema de ensino e de formação profissional assegura também uma
vasta gama de cursos de mais curta duração destinados a trabalhadores que
desejam aumentar as suas qualificações.
No início dos cursos de formação profissional existem duas fileiras de
formação, a fileira escolar e os estágios práticos. A “via escolar” está
organizada
como
um
1º
e
2º
períodos
escolares
combinados,
compreendendo 40 semanas de escola. A “via de formação prática” é
baseada, desde o início, num contexto de formação em empresa. Durante o
primeiro ano de formação o estudante frequenta semanalmente, em
alternância, a escola (2 dias) e a empresa (3 dias). No início do segundo
ciclo escolar (ao fim do primeiro ano), as duas fileiras formam um tronco
comum, onde os alunos recebem a mesma formação. A duração e o
conteúdo da formação são idênticos e os cursos têm entre três e cinco anos
de duração.
Em 1991, cerca de 75% dos jovens admitidos nas escolas com este cursos
técnicos escolhiam a fileira escolar (OCDE, 1995: 49), enquanto que, em
1990, os que o faziam eram apenas 56%.
A formação reforça um modelo de alternância entre a vertente escolar e o
estágio em empresa. Tendo em vista favorecer a frequência da formação
prática e da formação em empresa e como se registava uma tendência para
a diminuição do número de lugares de aprendizagem, o Parlamento adoptou,
em 1992, um sistema de incentivos para que as empresas pudessem abrir
novos lugares para acolhimento de formandos.
360
Todos os programas das várias vias de formação compreendem quatro tipos
de matérias, na vertente escolar:
− matérias fundamentais, representando um terço das horas de
cada curso;
− matérias específicas de cada sector de actividade, representando
um terço de cada curso;
− matérias especializadas e matérias opcionais, cada uma delas
representando um sexto do curso.
Na reforma do ensino e da formação profissional de 1990 as organizações
patronais e os sindicatos desempenharam um importante papel ao nível da
reorganização curricular. Actualmente, são as organizações profissionais
que definem as fileiras de formação e as suas especializações.
Para o Ministério da Educação e da Investigação as matérias fundamentais
são importantes, na medida em que visam fornecer aos alunos os elementos
de uma forma geral e profissional alargada. O objectivo deste ensino,
segundo o Ministério, é o de favorecer o desenvolvimento individual dos
alunos, facultar-lhes uma compreensão da sociedade e ainda prepará-los
para o prosseguimento de outros estudos.
Nos novos cursos procura-se combinar aquilo que é formação geral com os
assuntos específicos de uma dada área e ainda com os interesses dos
alunos. A larga base que se instituiu na formação profissional visa
desenvolver as bases de conhecimento, criar flexibilidade ocupacional e
instituir as bases para a continuação de estudos. Além disso, o
desenvolvimento pessoal dos estudantes é assegurado através de
estimulação do desenvolvimento pessoal e social dos jovens, através da
promoção de capacidade dos estudantes para aprender, do desenvolvimento
361
da independência, da criatividade, da capacidade de cooperação, das
competências analíticas e da auto-confiança pessoal. A formação dos alunos
valoriza também a sua compreensão da sociedade, dos sistemas políticos
formais e não-formais, bem como das condições de funcionamento do
mercado de emprego e do mundo do trabalho. Deste modo, pretende-se
assegurar aos estudantes adequadas qualificações profissionais, gerais e
específicas (The Danish M. E. R., 1994: 25 e 26).
O relatório dinamarquês para o CEDEFOP também acentua esta tónica: as
formações profissionais são também formações gerais que visam não só
apoiar os jovens
nas suas actividades profissionais específicas, como
preparar os jovens para o prosseguimento de estudos e ainda sustentar as
aprendizagens ao longo da sua existência (Nielson, 1995: 43).
Nesta reforma defende-se que as escolas e os professores devem adoptar
uma “perspectiva holística de ensino”. Por este conceito estende-se que as
escolas profissionais devem promover uma formação que integre matérias
profissionais e gerais, formação prática e aprendizagens teóricas; o ponto
de partida deve ser a qualificação profissional e a escolha profissional
específica de cada aluno e, a partir daí, deve construir-se uma diversidade
de articulações para o fomento de competências gerais, pessoais e sociais
(Banks, 1994:87).
O Ministério da Educação e da Investigação e os organismos ligados à
actividade produtiva e empresarial concordaram em atribuir um nível teórico
mais elevado aos cursos de formação profissional e acordaram ainda no
facto de que todos eles deveriam permitir aos estudantes o prosseguimento
directo de estudos num curso superior.
Uma vez que foi atribuída nesta reforma mais autonomia às escolas, que
passaram a dispor de organismos de cooperação com os parceiros
362
empresariais locais, o mesmo curso pode ter diferentes configurações
programáticas de local para local.
No entanto, a estrutura fundamental das formações profissionais é a
formação em alternância, em que a aprendizagem prática em empresa
constitui perto de dois terços da duração total da formação. Esta articulação,
que pode ser feita com uma ou com várias empresas, estabelece-se na
celebração de um contrato de formação entre o aluno e a empresa de
acolhimento.
Para auxiliar a implementação das reformas do ensino técnico e da formação
profissional, aprovadas em 1991, foi apresentado no Parlamento, em
Novembro de 1993, o Plano de Acção “Educação Para Todos”. O seu
objectivo principal, segundo o MER, é o de criar um sistema de educação
dos jovens mais flexível, mais eficiente e mais centrado no aluno, nos anos
seguintes, até ao ano 2000. Os objectivos centrais enumerados são cinco:
(a) o aluno deve ser o foco principal; (b) todos os jovens devem ser
envolvidos; (c) todos os tipos de educação dos jovens devem desenvolver a
personalidade e a criatividade dos alunos; (d) o sistema de educação dos
jovens
deve
possibilitar
sequências
educativas
individuais;
(e)
o
desenvolvimento de líderes escolares e dos próprios professores deve ser
estimulado através de experiências e projectos educativos de escola.
Entre as acções que são desencadeadas de novo destaca-se o
desenvolvimento de uma rede de serviços de orientação escolar e a
cooperação interministerial para fazer face aos alunos mais atrasados em
termos escolares e mais desfavorecidos socialmente.
O ensino geral e profissional de nível secundário superior
O ensino geral é desenvolvido nos “Gymnasium” e nos cursos de
363
Preparação para o Exame do Secundário (HF). O ensino técnico profissional
de nível secundário é oferecido nas escolas de ensino comercial (HHX) e
nas escolas de ensino técnico (HTX).
Os “Gymnasium” oferecem cursos de três anos, que conduzem ao diploma
de fim de estudos secundários e visam, segundo a sua lei ordenadora de
Junho de 1990, fornecer aos alunos um ensino geral e prepará-los para o
prosseguimento de estudos. Este mesmo normativo regula as fileiras HF
destinadas a fornecer um ensino geral a jovens e adultos e a preparar para o
prosseguimento de estudos.
O diploma de fim de estudos secundários de segundo ciclo pode ser obtido
não só após dois anos de estudos secundários e aprovação no exame final,
como também após aprovação em exame, disciplina a disciplina, a que se
podem candidatar quaisquer alunos oriundos de qualquer modelo de ensinoaprendizagem.
A formação nas escolas secundárias (“Gymnasium”) compreende três anos e
desenvolve-se em duas linhas diferentes: línguas e matemática. Os cursos
comportam disciplinas obrigatórias e matérias opcionais, sendo estas de dois
níveis, elevado e médio.
O Curso de Preparação para o Exame do Secundário (HF) foi uma
modalidade
introduzida
em 1967,
num contexto
de
extensão
das
possibilidades educativas para novos grupos sociais. Originalmente tratavase de uma fileira de dois anos de estudos, destinada a eventuais candidatos
a uma formação de professor e, em particular, destinada a raparigas. Os
alunos eram originalmente mais velhos ou então alunos que, por razões
sociais ou individuais, não tinham conseguido aceder à via tradicional de
acesso ao ensino superior. Actualmente, por legislação de Junho de 1990, a
fileira HF está transformada numa via alternativa de formação geral
364
conducente ao diploma de fim de estudos secundários.
O ensino técnico ao nível do ensino secundário realiza-se através de dois
tipos de vias: as escolas de estudos comerciais e as escolas de estudos
técnicos. As primeiras conduzem ao diploma de estudos secundários
comerciais (HHX) e as segundas ao diploma de estudos secundários
técnicos (HTX). Enquanto que o primeiro modelo remonta ao séc. XIX, o
segundo nasceu um século depois, nos anos 80, respondendo “a uma
necessidade de alargamento das possibilidades de ensino e formação, à
saída do primeiro ano de ensino e de aprendizagem profissional, e de
abertura de uma nova via de acesso ao ensino superior técnico, num
contexto caracterizado por uma baixa constante do número de operários
qualificados que prosseguem estudos nas instituições de formação de
engenheiros e por um aumento sensível do número de diplomados pelo
ensino secundário geral” (Jensen, 1995: 16).
Em termos pedagógicos, a fileira HTX compreende um período de ensino
profissional, de um semestre a um ano de duração, seguido de um período
de dois anos de ensino profissional secundário.O currículo abarca um certo
número de disciplinas técnicas e de ateliers, ciências naturais, línguas vivas
e ciências sociais. Um terço das horas do plano de estudos é constituído por
disciplinas de opção. No segundo ano, a fileira divide-se em várias
especialidades: técnicas de construção, mecânica, electricidade e técnicas
industriais.
Antes de se poderem candidatar ao ensino superior técnico e aos institutos
de formação de engenheiros, os alunos têm de passar por um tempo de
formação prática na empresa.
O relatório para o Conselho de Europa sublinha que os objectivos das fileiras
comerciais e técnicas foram “reforçados no plano académico” (Jensen, 1995:
365
34).
A fileira HHX compreende cursos de três anos. Em 1990 foi adoptada
também a lei sobre o Diploma superior de comércio (HHX) e o Diploma
superior técnico (HTX).Segundo o relatório de Nielson para o CEDEFOP as
formações secundárias profissionais foram reagrupadas num só lei, como
uma consequência da reforma das formações profissionais de base. As
formações profissionais secundárias “adquirem, no plano da estrutura e do
conteúdo, um maior número de traços comuns com o liceu de ensino geral”
(Nielsen, 1995: 58).
Foi introduzido um maior número de disciplinas facultativas tendo em vista
reforçar a flexibilidade. O nível das disciplinas dos cursos profissionais é
adaptado ao do das disciplinas do liceu e os alunos têm que escolher, como
no liceu, duas disciplinas de nível avançado.
Os diplomas HHX e HTX dão acesso a formações superiores oferecidas
pelas universidades, pelas escolas superiores de comércio e pelas escolas
de engenheiros.
Existem
ainda
as
Escolas
de
Continuação,
escolas
de
segunda
oportunidade, destinadas a jovens entre os 14-18 anos, que procuram levar
ao fim da escolaridade básica os jovens que, por qualquer razão, se
desvincularam do sistema formal de ensino. Estas escolas são privadas e o
seu currículo e o seu director tem de ser aprovados pelo Ministério da
Educação e da Investigação.
A par destas foram criadas as Escolas de Produção, nos anos 70, e as
Escolas Municipais de Jovens. As primeiras nasceram das articulações entre
o poder local e as organizações empresariais e oferecem cursos
eminentemente práticos. As Escolas Municipais de Jovens dirigem-se ao
366
mesmo grupo etário e visam fornecer aos jovens possibilidades de
consolidação e de melhoria dos seus conhecimentos, muitas vezes a par da
escola regular e em período diferido, bem como oportunidades de ocupação
de tempos livres, de desenvolvimento e qualificação pessoal, de integração
social e de enriquecimento do conteúdo das suas vidas (OCDE, 1995 a : 80).
Em termos quantitativos, estas modalidades complementares de ensino e de
formação têm uma expressão significativa. Para o ano de 1992, os dados
são os seguintes:
Escolas de Continuação
Escolas de Produção
Escolas de Jovens
17 000 jovens atendidos
9 000 jovens atendidos
175 000 jovens atendidos
Todas estas modalidades visam assegurar que a entrada dos jovens no
mercado do emprego se faça sempre após a obtenção de uma qualificação
de base. Esta política revela, por sua vez, a vastidão de abandonos
precoces entre os jovens que frequentam a escola básica - Folkeskole - ou
outras modalidades regulares de ensino e de formação após o ensino básico
e ainda os elevados abandonos no primeiro ano dos cursos técnicos e
profissionais (um terço dos jovens que iniciam os cursos não obtêm uma
qualificação final) (OCDE, 1995 a ).
O Caso de Espanha
Em 1990, com a aprovação de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo
(a LOGSE - Ley de Ordenación General del Sistema Educativo), o sistema
educativo espanhol consagra um prolongamento da escolaridade obrigatória
(de 14 para 16 anos), a criação de um novo ciclo de Ensino Secundário
367
Obrigatório (ESO), uma renovação acentuada do ensino secundário superior
(Bachillerato) e uma vasta mudança da Formação Profissional de base
escolar (FP).
O anterior modelo de ensino secundário e de formação técnico-profissional,
em vigor, datava de 1970. Mas encontrava-se esgotado e havia um largo
consenso social e politíco em torno da necessidade de o alterar.
O "Livro Branco para a Reforma do Sistema Educativo" afirmava que "é um
facto comummente admitido que de todos os segmentos e modalidades do
sistema educativo nenhum se encontra tão necessitado de uma profunda
reforma como a Formação Profissional (MEC, 1989:151). A própria LOGSE
veio a inscrever no seu preâmbulo que "a Lei propõe uma reforma profunda
da formação profissional, consciente de que se trata de um dos problemas
do sistema educativo vigente até agora que precisam de uma solução mais
profunda e urgente e de que é um âmbito da maior relevância para o futuro
do novo sistema produtivo" (MEC, 1990:14).
O modelo de educação técnico-profissional de 1970 compreendia três graus:
FP I, FP II e FP III. Ao primeiro grau acedia-se após a educação geral básica
(EGB) de oito anos, na posse ou não de um grau escolar. À FP II o acesso
fazia-se tanto pela FP I como pelo Bachillerato e a FP III nunca chegou a
regulamentar-se nem a implantar-se.
À formação profissional de primeiro grau acedia uma alta percentagem de
alunos com certificado de escolaridade da EGB, mas sem título de
graduação escolar, ou seja, sem diploma de escolaridade: esta era a
situação de quatro em cada dez alunos. Além disso, 66% dos alunos tinha
uma idade superior à que corresponderia normalmente à dos cursos de FPI
(14-15 anos). No primeiro ano da FPI só 41% dos alunos tinha 14 anos; dos
59% restantes, 9% corresponde a alunos que repetiam e 50% incorporavam-
368
se já atrasados na Formação Profissional.
Mais de metade dos alunos que se inscreviam no primeiro ano de FP I não
obtinham o título de técnico auxiliar e não passavam à FP II. Para Planas e
Comas (1994) "trata-se, de facto, de alunos que fracassam na FP, a maior
parte dos quais provêm de um insucesso precedente no ensino obrigatório. A
função de recuperação do insucesso escolar, atribuída à FP I ao mesmo
tempo que a da profissionalização, não se atinge senão em pequena
escala". E prosseguem: "A formação profissional inicial exposta a
desempenhar o papel de alternativa ao fracasso escolar enfrenta,
frequentemente com meios e metodologias pouco adequadas, o grave
problema de como formar os não-formados" (Planas e Comas, 1994: 10 e
22).
A LOGSE e o novo modelo de ensino e formação profissional
É neste quadro analítico que se lança, em 1983, um processo experimental
de reforma das “Enseñanzas Medias” introduzindo um novo modelo de
organização: este nível de ensino foi estruturado em dois ciclos. O primeiro
tem carácter obrigatório (ESO) e oferece um currículo comum a todos os
alunos dos 14 aos 16 anos. O segundo, dos 16 aos 18, permite optar entre
quatro modalidades de “Bachillerato”. Finda esta segunda etapa pode-se
optar ou pelo acesso à Universidade ou pela frequência de módulos
profissionais especializados.
O modelo de ensino integrado e compreensivo foi, assim, alargado a todos
os estudantes até aos 16 anos e o ensino pós-obrigatório foi renovado,
abrindo caminho à diversidade de interesses, motivações e capacidades.
Este modelo foi consagrado pela LOGSE, em 1990 (ver Figura 5. 2.).
369
Figura 5.2.
Organigrama do Sistema Educativo Espanhol
LOGSE (1990)
. Técnico Superior
idade
...
Universidade
F.P. de Grau Superior
18
. Técnico
18
"Bachillerato"
16
Ensino
Secundário
12
12
(4 cursos de 2 anos)
F.P. de Grau
Médio
2º Ciclo (2 anos)
Ensino
Secundário
Obrigatório
1º Ciclo (2 anos)
Programas de
Garantia Social
Ensino primário
6
• Diplomas
O ensino secundário passa a compreender um ciclo obrigatório (ESO, com 4
anos de duração) e o "Bachillerato" (de 2 anos) e é banida a Formação
Profissional de 1º Grau (FP I) passando a haver um único diploma referente
à escolaridade obrigatória.
O novo ordenamento geral do sistema educativo institui dois novos tipos de
formação profissional: a formação profissional de base (FPB) e a formação
profissional específica (FPE). A FPB está introduzida no tronco comum da
S
i
s
t
e
m
a
P
r
o
d.
370
formação geral de qualquer cidadão no novo Ensino Secundário Obrigatório
(12 a 16 anos) e ainda no "Bachillerato". Este compreende quatro
modalidades (Artes, Ciências da Natureza e da Saúde, Humanidades e
Ciências Sociais e Tecnologia) e cada modalidade compreende um tronco
comum, uma componente específica de cada modalidade e disciplinas de
opção.
A FPB no âmbito do "Bachillerato" (o segmento que se integra no ensino
secundário superior) concretiza-se através da oferta do curso de Tecnologia
e de um conjunto de opções, a determinar em cada região. A FPE organizase em dois ciclos formativos, de nível médio e superior. Mas, enquanto que a
FP I era obrigatória para todos os alunos que não prosseguiam os seus
estudos de “Bachillerato”, grande parte dos quais eram portanto oriundos do
fracasso escolar no ensino obrigatório, com a LOGSE os ciclos de FPE estão
reservados unicamente aos alunos que tenham obtido sucesso na ESO.
A LOGSE prevê que os ciclos de FPE tenham por objectivo a preparação
dos alunos para uma actividade num domínio profissional, assegurando-lhes
uma formação polivalente que lhes permita adaptar-se às modificações do
mercado de trabalho que podem produzir-se ao longo de toda a sua vida.
São estabelecidos dois níveis:
- nível médio: dirige-se aos jovens que finalizaram o ensino obrigatório
(16 anos) e que obtiveram resultados satisfatórios (tal como para
aceder ao “Bachilleratto”;
- nível superior: dirige-se aos alunos que terminaram os seus estudos
de Bachilleratto33.
Em ambos os níveis está incluído no currículo obrigatório um período de
estágio na empresa. Os ciclos têm durações variáveis em função do domínio
371
de formação e do seu nível. A duração "média" oscila entre as 1.400h e as
2.000 h e o tempo de estágio varia entre 300 e 400 horas. O modelo deposto
ainda era o dominante em 1994 e previa-se que a "nova" formação
profissional estivesse totalmente implantada até ao ano 2000. Entretanto,
coexistem os modelos de 1970 e de 1990.
Os ciclos formativos da FPE organizam-se por módulos, "de duração
variável, constituídos por áreas de conhecimento teorico-práticas em função
dos diversos campos profissionais." (LOGSE, artº 30) Esta formação visa
"facilitar a incorporação dos jovens na vida activa, contribuirá para a
formação permanente dos cidadãos e atenderá à procura de qualificações do
sistema produtivo" (LOGSE, artº 30).
Destaque-se ainda que a organização curricular e a planificação da FPE
terão como requisitos: (a) a participação dos agentes sociais e as
características do contexto socioeconómico dos centros onde vai ser
proporcionada a formação; (b) uma fase de formação prática nos centros de
trabalho; (c) a promoção da integração dos conteúdos científicos,
tecnológicos e organizativos e o fomento da capacidade do aluno para
aprender por si mesmo e para trabalhar em equipa (LOGSE, artº 34).
Desde 1988, o MEC está a aprovar aquilo que constitui a base dos ciclos
formativos da FPE de grau médio e de grau superior, os "módulos
profissionais". Estes módulos, que correspondem a cursos conducentes a um
diploma de técnico ou técnico superior, estavam em aplicação antecipada
nos Institutos de Formação Profissional e ascendiam já, em 1992/93, a 57.
Em 1990/91 estes "módulos" eram frequentados por cerca de 7.500
jovens,4.540 dos quais em "módulos" de nível superior. Estes, uma vez
diplomados como Técnicos Especialistas podem aceder directamente às
Escolas Universitárias e a cursos de conteúdos similares. Existe, aliás,
33 É possível aceder aos dois níveis através de outras vias, como p. ex., através da avaliação da experiência profissional.
372
nestas escolas, uma quota de 30% de lugares para estes diplomados
(decreto de 1991). Em 1996/97, os jovens que frequentam estes cursos
ascendem a pouco mais de 100.000, dos quais 54.000 em cursos de
formação de grau superior / Módulos III (cfr. quadro nº 5.2., mais adiante).
Deste modo, apesar da integração curricular realizada no âmbito da
escolaridade obrigatória (estabelecimento do tronco comum até aos 16 anos,
mantém-se, paralelamente ao sistema regular geral, um sistema de formação
técnica e profissional específica, com dois níveis distintos e com um sistema
de articulação com o ensino "académico" (ver Figura 5.3.).
373
374
Princípios e objectivos da reforma da formação profissional
Através da análise dos diversos documentos oficiais de suporte à reforma
educativa, é possível destacar alguns princípios elementares sobre os quais
o Ministério da Educação fez assentar o processo de reforma da formação
profissional de base escolar. Elegem-se seis:
a) Flexibilidade. O princípio da flexibilidade concretiza-se através do
"ajustamento entre a oferta de FP e as necessidades e recursos do
contexto produtivo, da planificação desta FP sobre as linhas de
desenvolvimento, presentes ou potenciais, de cada região e ainda na
adaptação dos programas da FP específica às características do
contexto produtivo regional ou local" (MEC, 1989:152).
b) Agilidade. Este princípio refere-se à capacidade de resposta dos
sistemas de formação às rápidas transformações tecnológicas. Os
perfis profissionais mudam frequentemente e o sistema educativo deve
dar respostas a dois ritmos: através de componentes básicas da FP,
mais duradoiras e através de componentes específicas, sujeitas a mais
rápidas modificações.
c) Promoção das pessoas, proporcionando-lhes fundamentos educativos
de carácter polivalente que lhes permita enfrentar a diversidade de
procuras do mercado de trabalho ao longo da sua vida, bem como
ulteriores actualizações profissionais. Deve educar-se especialmente a
capacidade geral do aluno para continuar e aprender, uma vez situado
num campo técnico e profissional determinado” (MEC, 1989:152).
d)Autoregulação. Este princípio prende-se com a montagem de "sistemas
de ordenação, esquemas organizativos e mecanismos que assegurem
a actualização e renovação permanente dos objectivos, conteúdos e
métodos" da FP (MEC, 1989:153).
e)Abertura às mudanças no trabalho. A FP "deve configurar-se atendendo
não só ao referencial tecnológico-produtivo actual mas também ao
375
futuro previsível". Especial atenção deve ser dada por isso, à evolução
das "principais tendências de desenvolvimento tecnológico, das formas
de organização e das modalidades de gestão que se prevêm no nosso
país" (MEC, 1988:31).
f)Vinculação com o sistema produtivo . "Trata-se da dimensão social por
excelência da FP, de referência ao sistema produtivo. Ela é tão
essencial como a sua referência, mais personalizada, de carácter
educativo". Este princípio compreende as respostas que a FP pode dar
a "determinações do sistema produtivo" tais como: configuração dos
campos profissionais, desenho da FP mais adequada para esses
campos, planificação da oferta em cada localidade, conexão entre a FP
e a Formação Ocupacional e a orientação educativa e profissional dos
alunos"(MEC, 1989:153).
Para assegurar esta vinculação é essencial a "participação dos agentes
sociais do processo produtivo, empresários e trabalhadores, no desenho,
desenvolvimento, planificação e, se fôr esse o caso, também na gestão da
FP" (MEC, 1989: 153). A mesma análise documental permite-nos
caracterizar os grandes objectivos que o Ministério da Educação e Ciência
assinala para a formação profissional de base escolar.
1. Estabelecer um único sistema de formação "geral" e "profissional de
base" a instituir nas escolas de ensino secundário. Este objectivo amplo
remete para outros mais concretos, que se enunciam de seguida:
1.1. Incorporar a tecnologia na cultura de base de todos os jovens. Ao
mesmo tempo, ao alargar a escolaridade obrigatória até aos 16 anos,
torna-se realidade a máxima que assumem, quase unanimemente, os
peritos contemporâneos em educação: que a melhor formação para o
exercício profissional reside na melhoria da formação básica, tanto no
seu nível geral, como no seu nível profissional;
376
1.2. A integração num único sistema de formação das formações geral e
profissional de base deve facilitar - apoiada por um adequado sistema
de orientação profissional - a posterior incorporação de alunos nos
ciclos formativos de formação profissional (nível médio e nível superior,
como se pode ver no organigrama do gráfico nº 5.3 ).
2. Conseguir implementar uma formação profissional "específica" de
qualidade, que prepare para o exercício de profissões com vigência
actual e alcance futuro. Para prosseguir este objectivo propõe-se:
2.1. Uma profunda renovação dos conteúdos e na composição da oferta
actual da formação profissional, adaptando-os às novas exigências e à
procura de qualificação profissional do sistema produtivo;
2.2. A par da renovação dos conteúdos, configurar todo um sistema
(instrumentos, metodologia) de adaptação das formações aos requisitos
dinâmicos das necessidades de qualificação do mercado de trabalho;
2.3. Vincular a formação profissional ao desenvolvimento regional e local e
aos diferentes contextos socioeconómicos. Trata-se de transformar uma
lógica exclusivamente "escolar" da formação profissional fazendo
adquirir novas dimensões no terreno do desenvolvimento dos recursos
humanos.
3. Descentralizar as competências em matéria de formação profissional,
tendo em vista realizar uma análise mais regionalizada das necessidades
de formação e a concertação da oferta de formação com os agentes
económicas e sociais locais.
377
4. Alcançar um sistema integrado de formação profissional com a
participação dos agentes sociais e aberto à requalificação e reinserção
educativa da população adulta e trabalhadora. Pretende-se desenvolver
novas práticas formativas em empresas prevendo-se, por isso, uma
"formação concertada" entre escolas e empresas, capaz de desencadear
a iniciativa e a criatividade profissionais requeridas por este novo quadro.
Desde 1990 até 1997 a evolução da aplicação da reforma tem sido lenta.
Basta referir que a procura do BUP/COU, por exemplo, registava 1.470.816
jovens em 1989/90 e contunua a registar 1.086.018, em 1996/97, contra
apenas 177.000 no Bachillerato (LOGSE + Experimental). Como se pode ver
no Quadro 5.2., a frequência do modelo de formação profissional anterior à
LOGSE ainda abrange, em 1996/97, perto de 600.000 jovens, enquanto os
novos Módulos Profissionais ainda só acolhem cerca de 100.000 formandos.
A procura do ensino e da formação pós-obrigatórios aumentou muito nos
anos 80 e 90. A taxa de escolarização do grupo etário 14-18 anos passou de
65,5 no ano de 1987/88 para 86,8, em 1996/97 (dados previsionais do
M.E.C.). Segundo a OCDE (1996), a procura do nível secundário encaminhase maioritariamente para os cursos gerais (59%, contra 41% nos cursos
profissionais). Estas valores indicam uma ligeira subida na procura dos
cursos gerais, que era de 54% em 1982, ao longo das décadas de 80 e 90,
aproximando-se dos valores dos anos 70 (61%)).
O desemprego juvenil não tem parado de aumentar, desde meados dos anos
70, atingindo em Espanha os valores mais elevados da União Europeia. O
primeiro pico foi atingido em 1984, com 46%, após o que desceu até 1991,
até aos 32%. Nos anos noventa voltaria a subir até aos 46% (OCDE,1994).
378
Quadro 5.2.
Evolução da frequência da FPI, FPII, Ciclos Formativos de
Grau Médio e de Grau Superior, em Espanha, entre 1987 e 1997
FPI
FPII
C.F. deGrau
Médio/Mód.II
C.F. Grau Superior
Módulo III
1987/88
438.161
321.635
-----
-----
1989/90
464.152
352.947
-----
-----
1991/92
474.156
401.645
5.188
8.605
1993/94
407.734
440.049
14.213
16.187
1995/96
301.472
410.912
28.917
31.779
1996/97
234.169
367.574
47.186
53.970
Fonte: www/mec/es/estadistica (actualização de 1997.09.19).
A formação profissional ocupacional (FPO)
O prolongamento da escolaridade obrigatória dos 14 para os 16 anos e o
consequente desaparecimento da FP I abriram as portas a um currículo
único até ao fim do Ensino Secundário Obrigatório (ESO).
No entanto, a LOGSE prevê que existam, neste último segmento de
formação, matérias optativas. Estabelece-se, assim, uma diversificação
curricular no ciclo comum, o que, segundo Planas e Comas (1994) visa
acolher os diferentes interesses dos alunos, adoptando o currículo à
pluralidade das suas necessidades e aptidões, tendo em vista permitir-lhes a
todos atingir os objectivos comuns desta etapa formativa. A introdução
destas disciplinas optativas realiza-se ainda com outros ojectivos: favorecer
379
aprendizagens globalizadoras e funcionais, facilitar a transição dos jovens
para a vida activa e adulta e ampliar as possibilidades de orientação escolar
e profissional. Entre estas opções-respostas à diversidade contam-se: uma
segunda língua estrangeira, oficinas de artesanato e de astronomia, ateliers
de comunicação, imagem e expressão, teatro, canto coral, ateliar de
matemáticas, expresão corporal, etc.
Para os que abandonam a escolaridade obrigatória sem atingir os seus
objectivos a LOGSE prevê, em vez da entrada em um sistema formal e
alternativo de formação, o acesso a Programas de Garantia Social (PGS).
Estes PGS visam dar uma formação básica e profissional como forma de
melhorar o acesso a uma actividade profissional ou o retorno aos estudos
escolares, nomeadamente através do ingresso na FP de nível médio. Os
jovens entre os 16 e os 21 anos podem aceder a estes PGS. Em 1994/95,
estes programas funcionavam apenas experimentalmente.
No termo da escolaridade obrigatória existe uma panóplia de oportunidades
de formação e de formação-emprego que, pela sua natureza não regular e
não-escolar, são designadas genericamente como constituindo o sector da
Formação Profissional Ocupacional (FPO). Este é, aliás, coordenado pelo
Ministério do Trabalho e gerido pelo Instituto do Emprego - INEM. As acções
de FPO têm por fim capacitar para a inserção laboral os que estão
desprovidos duma formação profissional específica ou aqueles em que ela é
insuficiente. Pela sua natureza, pelo seu enquadramento institucional e pelos
seus objectivos a FPO é considerada uma parte integrante das políticas de
emprego.
Para além destas acções existem, desde 1985, as "escolas-taller" e as
Casas dos Ofícios, financiadas pelo Ministério do Trabalho e destinadas a
jovens com menos de 25 anos e com dificuldades especiais de incorporação
no mundo laboral. Os cursos destas escolas duram entre 1 e 3 anos e
380
desenvolvem-se preferencialmente em regime de alternância. Em 1990,
envolveram 51.608 jovens e, em 1994, cerca de 26.500.
Em 1994, foram também criados os "Contratos de Aprendizagem", uma outra
medida de política de inserção socioprofissional de jovens, entre os 16 e os
25 anos. As formações em alternância, de que os Contratos de
Aprendizagem são a expressão mais recente, tinham sido desenvolvidas
timidamente desde 1984, particulamente na sequência do Acordo Económico
e Social assinado entre o Governo, a UGT e a Confederação Espanhola das
Organizações Patronais. Estão nesse caso os estágios em empresas para os
alunos da FP escolar e os "contratos emprego-formação" para os jovens com
menos de 20 anos e sem diploma profissional. A experiência destes últimos
permitiu criar em 1994 os Contratos de Aprendizagem alargando o limite
etário do público-alvo de 20 para 25 anos e limitando o tempo consagrado à
formação a 15% do tempo de trabalho.
Esta política de emprego-formação tem encontrado alguma oposição por
parte dos Sindicatos que vêem nela a aplicação de uma lógica de
"desregulamentação" sob a aparência de formação em alternância. Segundo
esta postura, os empregos actuais tenderão a ser substituídos por situações
legais (protegidas publicamente) de alternância, levando ao desemprego
todos os que têm hoje uma situação precária de contratação. Finalmente,
existe uma enorme quantidade de dispositivos não estandartizados de
formação que são desenvolvidos pelos poderes públicos locais e pelos
Centros de Formação Profissional.
Assinale-se ainda que estas medidas de política têm sido activamente
acompanhadas pelos parceiros sociais. Após 1990 criaram-se as Comissões
Provinciais de Formação Profissional “Regulada” com o objectivo explícito de
melhorar
a
vinculação
educação-formação/emprego,
de
fomentar
a
cooperação local entre empresas e centros educativos e de preparar os
estágios previstos nos novos módulos profissionais.
381
O Caso da Finlândia
A Finlândia apresenta um ensino básico unificado de 9 anos de duração
(Peruskoulu) e, após a conclusão dos estudos básicos, os estudantes podem
encaminhar-se para dois tipos de ensino: secundário geral e profissional (ver
figura 5.4.). Cerca de 90% dos jovens transita, imediatamente após a
conclusão da escolaridade obrigatória, para o ensino secundário geral e
profissional.
A crise económica na Finlândia repercutiu-se de modo bastante acentuado
sobre o emprego disponível. As taxas de desemprego dispararam desde os
anos 70 e de 10.5% de jovens desempregados, em 1983, passou-se já para
30,9%, em 1994. A Finlândia é um dos países da OCDE que, em meados
dos anos 90, apresenta as mais altas taxas de desemprego juvenil. Tal facto
repercute-se fortemente sobre as políticas de ensino e de formação,
sustentando em boa parte as reformas de fundo de todo o ensino
profissional, nos anos 90.
Até ao início dos anos 90, a “Senior Secondary School” foi acolhendo cada
vez mais alunos e o ensino secundário geral atraía 55% da procura de
formação pós-obrigatória (National Board of Education, 1996). O ensino
profissional acolhe cerca de 35%, em formação a tempo inteiro, em cursos
de duração variável, entre 2 e 5 anos. As escolas secundárias superiores
oferecem cursos de três anos de duração. O acesso ao ensino superior está
condicionado à passagem a um exame nacional.
382
Figura 5.4.
Organigrama do Sistema Educativo da Finlândia
- Ensino Secundário -
Ensino Universitário
Ensino Superior
Politécnico
(A MK )
E scola Secundária
Superior Geral
(3 anos)
Ensino Superior
Profissional
Ensino Profissional
Pós-Secundário
E nsino Profissional
(2 a 5 anos)
mundo do trabalho
54%
40%
6%
10º ano facultativo
Escola Unificada ( 9 anos)
Fonte: National Board of Education (após a reforma do ensino secundário de 1995)
Os valores colocados em círculo sobre os fluxos escolares referem-se a 1991.
Dos alunos que concluem o ensino secundário superior geral e o exame
final, cerca de um terço encaminha-se para a universidade e um pouco mais
40% dirige-se para as várias formas do ensino superior de tipo profissional,
seja de nível universitário ou politécnico.
O
ensino
secundário
superior
é
altamente
descentralizado.
A
responsabilidade das medidas relativas ao ensino, aos programas e à
escolha do material pedagógico foi confiada às autoridades locais. As
escolas secundárias têm como função principal “completar as funções
educativas das escolas polivalentes e preparar os alunos para os estudos
superiores” (Comission Européenne, 1995: 365). O ensino secundário tanto
383
pode ser frequentado em regime normal, por anos lectivos, como através de
um sistema de módulos (em vigor desde 1982), em que a progessão se faz
independentemente da repartição por anos lectivos. Este último modelo,
após experimentação iniciada em 1987, foi generalizado à escala nacional,
em 1994. No ano lectivo de 1992/1993 havia 463 escolas deste tipo,
frequentadas por cerca de 99.000 alunos, o que implica uma rede escolar
muito disseminada e escolas de pequena dimensão.
O sistema de ensino profissional da Finlândia rege-se por uma lei de 1987 e
comporta três níveis
ensino
geral, o
distintos: o nível
nível
superior
secundário
equivalente ao
não-universitário e o nível superior
equivalente ao universitário. Os cursos apresentam uma grande variedade
de anos de duração (entre 2 e 6 anos) e o acesso faz-se tanto após a
conclusão da escola básica polivalente, como após a conclusão do exame
de aptidão para acesso ao ensino superior, nos casos em que se pretende
frequentar cursos de índole profissional de nível superior. O ensino
profissional é oferecido em escolas estatais, municipais e privadas e as
escolas são em geral especializadas numa certa área de formação, podendo
comportar a formação secundária e pós-secundária. O sistema de
aprendizagem é alternativo às escolas profissionais, mas não acolhe mais do
que 3 a 4% dos alunos do ensino profissional.
Existem directivas gerais nacionais para a elaboração dos programas de
ensino e as escolas elaboram os seus próprios programas dentro desse
quadro geral, podendo consagrar o máximo de 30% do tempo a matérias de
âmbito local e regional. A maior parte da formação é de base escolar e pode
também ser organizada uma formação prática em empresa, de um a cinco
meses de duração.
A reforma em curso no ensino secundário superior (entre 1991e 1999) acaba
com a possibilidade de se poder frequentar o ensino profissional secundário
384
e pós-secundário como vias paralelas. Os estudos profissionais de nível
superior, após o ano de 1995, só são acessíveis aos alunos que tenham
seguido um curso completo numa escola secundária geral ou numa escola
profissional.
No fim de 1995 havia um total de 403 escolas de ensino e formação
profissional frequentadas por cerca de 195.000 jovens, sendo maioritárias as
escolas municipais (National Board of Education, 1996).
Reforma do ensino secundário (1º passo)
Durante os anos de 1982 - 1988 foi desencadeada uma reforma do ensino
secundário que procurou desenvolver a ideia de uma escola unificada que
combinava a educação geral e o ensino profissional. Os cursos teriam um
ano comum de base e uma posterior especialização. Quatro grandes
objectivos nortearam esta reforma (National Board of Education, 1992): abrir
o ensino secundário a todo o grupo etário, capacitar igualmente todas as
regiões para oferecer os cursos, promover a igualdade entre os sexos e
garantir que a diversidade de vias comportava idênticas possibilidades de
prosseguimento de estudos superiores.
Mas, como diz o mesmo relatório, a ideia da escola secundária unificada não
foi atingida através desta reforma, as vias geral e profissional continuaram
separadas e “ a popularidade da “via geral” aumentou à custa da “via
profissional”, uma vez que a primeira facilitava o acesso ao ensino surperior.
Nesta reforma, procurou-se reduzir as especialidades de 600 para apenas
26 cursos básicos, seguidos de perto de 260 especialidades. As áreas de
formação são as que constam da listagem seguinte:
385
Quadro 5.3.
Novas Áreas de formação técnico-profissional no
ensino secundário na Finlândia (reforma de 1991)
Agricultura
Engenharia Química
Indústria de Vestuário
Comércio e Administração
Indústria da Construção
Artesanato e Design
Lacticínios
Engenharia Eléctrica
Pesca
Confecção de Alimentos
Indústria Florestal e Madeira
Cuidados de Saúde
Calor, água e ventilação
Economia doméstica e institucional
Horticultura
Hotelaria e Catering
Engenharia Mecânica
Estudos dos Média
Indústria de Impressão
Navegação
Serviços Sociais
Tratamento de superfícies
Vigilância
Indústria Textil
Transportes e Veículos
Trabalhos em Madeira
Em cada um destes 26 campos existe um Comité de Educação e Formação
que compreende representantes dos empregadores, dos trabalhadores, dos
professores e dos investigadores. “O objectivo principal desta visão é
estabelecer uma escola compreensiva e comum para os jovens, onde os
mais novos possam combinar estudos gerais e profissionais ou escolher só
386
uns ou outros”. Pretende-se construir, agora, uma formação profissional mais
flexível, aberta às prioridades locais e às estruturas de emprego locais,
combinando melhor formação geral e formação profissional, capaz de
proporcionar aos jovens melhores oportunidades de prosseguimento de
estudos no ensino superior (National Board of Education, 1992).
Reforma do ensino secundário profissional (2º passo)
No fim dos anos 80 e perante o relativo insucesso do primeiro passo
reformista empreendido, o Ministério de Educação enveredou por um
processo de estudo do desenvolvimento estratégico do sistema educativo,
tendo como horizonte o fim do milénio. O debate alargou-se através do
envolvimento de vários Institutos de estudos e de investigação.
Num contexto de crise económica e de crescimento da competitividade
internacional, em que a Finlândia acelerou o processo de integração na
Europa e em que se registaram mudanças técnicas rápidas, o modelo
escolar e “institucional” finlandês foi pressionado a rever a sua interface com
o mundo do trabalho. Os empregadores passaram a ter uma voz mais activa
e a requerer cada vez mais uma formação em que houvesse lugar para
práticas de trabalho; esta pressão irá condicionar a evolução do debate e da
política educativa.
Desde 1991 (e em experiência até 1999) está em curso um processo de
reordenamento da oferta de formação entre o 9º ano e o ensino superior
(nível secundário superior). Este novo processo (que a Figura 5.5.
documenta) visa reforçar a “individualidade e a opcionalidade” da oferta de
formação tendo em vista “aumentar o sucesso num contexto de feroz
competição económica” (National Board of Education, 1992:66). Os
estudantes poderão escolher um programa combinado que englobe
temáticas de carácter geral, profissional e prática de trabalho e, para tal, as
387
tradicionais escolas de formação geral e as de formação profissional podem
unir-se num só tipo de escola. Todos os programas conterão algumas
disciplinas obrigatórias e comuns.
A área opcional de cada plano de estudos será alargada, os conteúdos da
formação serão progressivamente baseados em módulos e as práticas de
trabalho “deverão desenvolver-se na base de acordos de formação entre as
instituições de formação e as empresas (National Board of Education, 1992:
68).
Figura 5.5.
Processo de Experimentação entre 1991 - 1999
Universidade e Politécnicos ( 3 - 4 anos)
Escola Secundária
Superior Geral
2 - 4 anos
Estudos combinados
2 - 4 anos
Ensino Profissional
2 - 4 anos
Escolaridade Básica
Fonte: National Board of Education, 1992:6
Os “National Boards” responsáveis pelo ensino secundário geral e pelo
ensino profissional juntaram-se para administrarem conjuntamente os dois
tipos de ensino. Os princípios orientadores deste largo processo de
experimentação são, como vimos, o reforço da capacidade de escolha
388
individual do percurso de formação mais adequado, a base modular dos
currículos escolares, a flexibilidade com que se podem fazer combinações
entre cursos e até frequentar escolas diferentes ao mesmo tempo e o
aumento da responsabilidade local na administração das escolas e dos seus
planos de estudos.
O ano de 1995 foi o ano de adopção do novo modelo de estrutura e de um
novo ordenamento das qualificações do ensino profissional pós-obrigatório.
No ano de 1996 iniciou-se a aplicação do novo modelo de ensino
profissional superior. Neste novo ímpeto reformista o ensino profissional vai
reduzir ainda mais o número global das qualificações profissionais nacionais
- de 260 para 157 -, tornando a sua base de formação mais larga, para
responder aos desafios “das rápidas mudanças que ocorrem nas
competências ocupacionais, nas tecnologias, nas organizações produtivas,
na internacionalização e ainda para responder aos altos índices de
desemprego” (National Board of Education, 1996:11). No nível específico do
ensino secundário superior as qualificações profissionais nacionais ficam
reduzidas a 77.
A agência que conduz este processo de reforma, sob orientação do
Ministério da Educação - o National Board of Education, constituído por
representantes do sector educacional e do mercado de trabalho -, conduz os
currículos para “uma larga base de conhecimento, combinando boas
competências profissionais e educação geral”. No seu entender “a formação
deve suportar o processo de maturação e o desenvolvimento pessoal. Além
de desenvolver competências de aprendizagem, encoraja a iniciativa e o
empreendimento. As competências profissionais alargadas devem habilitar o
estudante para melhor enfrentar as tarefas do trabalho e qualificar para
estudos posteriores. Também ajuda o diplomado a adapatar-se face às
circunstâncias em mutação” (National Board of Education, 1996:11).
389
Os planos de estudo comportam cinco domínios: estudos básicos comuns,
estudos profissionais, estudos opcionais, formação prática e um trabalho
final. Os estudos básicos são comuns a todos os campos de formação, os
estudos profissionais são específicos de cada especialidade e os estudos
opcionais resultam de uma combinação entre opções de estudo que o aluno
faz, quer na sua escola de base quer em outras escolas.
Para cada área de formação o National Board of Education aprova um
currículo nacional e as escolas adaptam-no à realidade local e completam-no
preenchendo uma componente do currículo específico de cada instituição
educativa. Através da combinação das cinco componentes de cada plano de
estudos de cada curso procura-se chegar a um programa individual de
estudos dotado de uma orientação profissional específica, para que cada
estudante construa adequadamente o seu percurso pessoal.
A componente comum dos estudos engloba matérias relativas a matemática
e ciências naturais (matemática, tecnologias da informação, física, química,
educação do ambiente), matérias de humanidades e de educação cívica
(língua materna, língua estrangeira ou segunda língua nacional, educação
cívica, orientação profissional) e matérias relativas aos campos da cultura e
da moral (educação física, estudos de saúde, cultura e sociedade, ética e
culturas estrangeiras). Em boa parte, estes estudos correspondem aos das
escolas secundárias de tipo geral.
Iniciou-se, também em 1992, um processo experimental de reforma do
ensino superior profissional, que conduziu a um novo modelo adoptado em
1996. Vários institutos profissionais estão a fundir-se regionalmente para dar
origem a institutos politécnicos (AMK), com novos cursos de 3 anos de
duração. Este processo visa criar uma alternativa de qualidade ao ensino
superior universitário. As primeiras instituições permanentes AMK foram
estabelecidas em 1996.
390
Assim, considerando o ensino profissional na sua globalidade, as reformas
de 1995 e 1996 vieram a criar uma estrutura de três tipos de qualificação,
definida a nível nacional. O primeiro nível é o do ensino secundário superior
e chama-se NVQ’S - National Vocational Qualifications; o segundo é o do
ensino pós-secundário e é composto de diplomas nacionais ou diplomas de
engenheiros técnicos; o terceiro nível é o do ensino superior profissional e
chama-se grau AMK, tipo de escola equivalente ao ensino superior
politécnico de outras países (Hoogesschole na Holanda, Polytechnic em
Inglaterra).
O Caso da França
O ensino secundário francês decompõe-se em dois ciclos: o “collège”, que
equivale ao primeiro ciclo, e os liceus, que correspondem ao segundo ciclo.
O “collège” deve ser frequentado entre os 11 e os 15 anos, embora a
escolaridade obrigatória se prolongue até aos 16 anos.
Os “collèges” acolhem crianças durante quatro anos, após os cinco primeiros
anos de escolaridade. Os dois primeiros anos denominam-se ciclo de
observação e os dois anos seguintes constituem um ciclo de orientação. Ao
tronco comum acrescenta-se um ensino opcional obrigatório.
O segundo ciclo ou ensino secundário superior comporta estudos gerais,
técnicos e profissionais e dois tipos de escolas: liceus de ensino geral e
técnológico e liceus profissionais. Os estudos do ensino secundário
encaminham em direcção aos BAC (Baccalauréat) gerais, técnicos e
profissionais e aos diplomas de técnico (Brevets de Technicien).
Os dois tipos de liceus já referidos caracterizam-se do seguinte modo: o liceu
391
de ensino geral e tecnológico é um estabelecimento de ensino secundário
misto que preparara, em três anos, para os diplomas BAC geral, BAC
tecnológico e Brevet de Technicien; o liceu profissional prepara para os
seguintes diplomas: o Certificado de Aptidão Profissional - CAP, o “Brevet
d’Études professionnelles - BEP” e o BAC Profissional. Este é um diploma
preparado durante dois anos, que constitui o ciclo terminal da via
profissional. O BAC Profissional permite tanto o prosseguimento de estudos
como a inserção na vida activa, embora seja esta última a sua principal
função.
O ensino secundário francês comporta a particularidade de algumas escolas
secundárias oferecerem, depois do “bacharelato”, um ciclo de dois anos,
organizado em duas secções: as secções preparatórias para as Grandes
Escolas e as secções preparatórias para a formação de técnicos superiores,
que conduzem ao Brevet de Technicien Supérieur (BTS). Entre 1960 e 1991
o número de alunos triplicou no primeiro caso e, no segundo, passou de
8.000 para 182.000.
O organigrama que se segue procura dar uma perspectiva da diversidade de
percursos de formação relativos ao segmento do ensino secundário (Figura
5.6.).
392
393
Evolução da procura
O objectivo político fixado em 1984, de levar 80% de um grupo etário ao
nível do BAC, obteve eco na procura social. As taxas de escolarização
cresceram a um ritmo muito intenso: a percentagem de acesso ao nível
correspondente ao BAC geral, tecnológico e profissional passou de 33% em
1980 para 61% em 1992.
O aumento da frequência dos cursos do ensino secundário dá-se em boa
parte pelo crescimento da procura dos cursos tecnológicos e profissionais.
Assim, em 1970, havia apenas 36.000 diplomados por estes cursos, em 1980
esse valor já ascendia a 67.000, mas em 1991 já atingiu os 157.000
(consideram-se os BAC tecnológicos e profissionais e os Brevets de
Technicien).
Este movimento reflecte-se naturalmente sobre a procura do ensino superior.
A taxa de escolarização do grupo etário 18-25 anos passou de 17%, em
1988/89, para 21,6%, em 1991/92. Como sublinham Lhotel, Mehaut e Rouyer
(1994) este mesmo movimento não é alheio às transformações dos
contornos do ensino técnico e profissional que se “abre em direcção ao alto”.
Por um lado, a orientação em direcção ao ensino profissional, no fim do
sétimo ano de escolaridade (“cinquième”), decresceu nos anos 80 e foi em
princípio suprimida, em 1992; a deslocação da entrada no liceu profissional
para o nível do 9º ano de escolaridade (“troisième”) acentuou a orientação
em
direcção
ao
BEP;
o
desenvolvimento
do
BEP
tem
estado
progressivamente correlacionado com as possibilidades crescentes de
prosseguimento de estudos no seio dos liceus profissionais (BAC
profissional); alargamento do espectro dirigido à aprendizagem abrindo-a às
formações de nível IV e superiores (nomenclatura francesa de níveis de
qualificação escolar).
394
Em 1992/93, a frequência do ensino secundário superior repartia-se do
seguinte modo:
Quadro 5.4.
Distribuição da frequência do ensino secundário superior em
França 1992/1993
Ensino
Público
Tipo de formação
Liceus profissionais
524,100
Liceus de ensino geral e tecnológico
1,224,800
Ensino
Privado
153,600
de
l'
677,700
328,000 1,552,800
Aprtendizagem (níveis equivalentes ao
CAP,
BEP,
BAC
Pro,
Brevet -------------- -------------Professionnel)
--
Fonte: Ministère
Nationele
Total
205,300
Education
Além desta oferta e desta procura há que registar uma panóplia de
programas de formação em alternância, de que se podem destacar os
contratos de orientação, os contratos de adaptação e os contratos de
qualificação que, na sua globalidade, envolviam cerca de 267.000 jovens,
em 1990 (16 - 25 anos).
Desde 1994 que a competência no domínio das acções da formação
qualificantes que envolvem os jovens foi transferida do Estado Central para o
395
nível da Região.
A esta evolução da procura social não é estranha a evolução do emprego. O
desemprego juvenil (14 - 24 anos) cresceu sobretudo em dois momentos em
que se verificou um quebra clara na capacidade de criação de emprego: os
períodos 1974 - 1985 e a partir de 1991-92. A taxa era de 13,3% em 1979,
19,7% em 1983, 22,9% em 1987, 19,1% em 1990 e 20,8% em 1992,
segundo a OCDE (1996 a ).
Na situação dos jovens perante o emprego desempenha um papel central o
tipo de diploma escolar inicial que se obtém. Como se refere no Exame da
OCDE à política educativa da França, “o desemprego atinge muito mais
duramente os não-diplomados e o diploma constitui, mais do que em
qualquer momento antes, a melhor protecção contra o desemprego”
(OCDEa, 1996:111). Basta referir que o fosso entre as taxas de desemprego
de diplomados e de não-diplomados, nos últimos vinte anos, passou de 1.4
para 13.4 pontos (ibidem).
Um primeiro ciclo de reformas dos BAC
No nono ano de escolaridade (“troisième”), último ano do “collège” e fim do
ciclo de orientação, processa-se o principal momento de escolha em termos
escolares e profissionais. Esta escolha não é individual. As propostas de
orientação são realizadas pelo Conselho de Turma, a partir dos resultados
escolares do aluno e das expectativas e desejos tanto do aluno como da sua
família.
Os percursos de formação imediatos, como vimos, podem ser os seguintes:
o primeiro ano de um curso geral tecnológico, que pode conduzir a um BAC
geral ou a um BAC Tecnológico; um primeiro ano de tipo profissional, ligado
ou a BEP ou a um CAP; a entrada no sistema de formação em aprendizagem
396
ou em programas de formação-emprego.
O “baccalauréat” constitui, no termo do ensino secundário, a chave de
acesso aos estudos superiores, representanto como que o primeiro patamar
do ensino superior. O BAC é organizado em séries e compreende provas
obrigatórias, escritas e orais, e provas facultativas.
As vias nobres e que maior procura suscitam são, como vimos, as do ensino
geral. Mas como também sublinhamos, tem havido um crescimento contínuo
na procura do ensino tecnológico e profissional.
Este tipo de ensino tem sido objecto de várias medidas de desencravamento
e de aumento da sua fluidez interna e dentro do sistema geral de ensino
(OCDE, 1996a ).
Assim, o CAP realizado em três anos foi perdendo progressivamente a sua
frequência (cerca de 409.000 alunos em 1985/86 e apenas 63.000 em
1992/93) e ao BEP foi assegurada a possibilidade de prosseguimento de
estudos até um diploma do ensino secundário, tendo sido criado o BAC
Profissional, como sequência normal de estudos para os percursos
profissionais pós-obrigatórios.
Actualmente, cerca de metade dos alunos que finalizam um BEP
prosseguem estudos ou num BAC tecnológico ou num BAC profissional.
Para transitarem para um BAC tecnológico os alunos têm de passar primeiro
para um ano de “adaptação”.
Os BAC tecnológicos, inicialmente destinados predominantemente à
preparação para a vida activa, foram perdendo essa sua vocação. De facto,
os BAC tecnológicos já não se destinam, nos anos 90, a preparar os jovens
397
para ingressar no emprego, antes são mais uma via de preparação para o
ingresso no ensino superior. Esta sua evolução é apontada como sendo uma
das causas da criação, vinte anos depois, de um novo BAC na vertente
profissional, mais “resolutamente virado para a vida activa” (Willems e
Boumendil, 1994:39).
O BAC profissional foi criado em 1985 e oferecido pela primeira vez em 1987
e tem por finalidade dominante a “inserção imediata no mercado de
trabalho”. O BAC profissional prepara-se normalmente em dois anos após o
BEP, nos liceus profissionais, e destina-se principalmente aos titulares deste
diploma. Na formulação dos cursos e na determinação dos planos de estudo
e especialidades destes BAC’s intervêm os representantes dos sectores
económicos.
Esta modalidade de formação tem assegurado elevados índices de emprego,
obtendo
um
êxito
assinalável,
num
quadro
geral
de
tradicional
estigmatização do ensino profissional. Segundo a monografia editada pelo
Cedefop (Willems e Boumendil, 1994:39), 93% dos jovens diplomados com o
BAC profissional têm obtido emprego em menos de seis meses e a taxa de
desemprego, dois anos depois, é de apenas 8%.
O BAC Profissional atribui uma grande importância à formação prática.
Durante os dois anos de formação há um período de 12 a 24 semanas que
obrigatoriamente se passa em formação em empresa. No ano de 1993
existiam trinta e duas especialidades, que foram criadas após acordo com
“comissões profissionais” organizadas por área de actividade (Comission
Européenne, 1995).
Assim, no estabelecimento de cada BAC profissional intervêm os meios
profissionais e mobilizam-se critérios de adequação às necessidades
precisas em termos profissionais. Enquanto que os Bac tecnológicos se
398
constituem a partir de campos tecnológicos largos, já os Bac profissionais
são concebidos em função de profissões determinadas. Como diz M.
Campinos - Dubernet (1995) a criação do BAC profissional marca uma dupla
ruptura: é a primeira vez que no ensino técnico o termo “baccalauréat” é
associado ao de profissional e é igualmente a primeira vez que, num diploma
profissional, são previstos, desde a sua concepção, períodos de formação
em meio profissional.
Existe ainda a preparação ao “Brevet de Technicien “- BT, que compreende
uma componente de formação geral, comum e obrigatória, uma componente
de formação específica, segundo a especialidade, e uma componente
propriamente técnico-profissional. Após a obtenção do BT os jovens podem
ingressar de imediato na vida activa ou prosseguir estudos, através da
frequência de um BTS ou de um IUT - Instituto Universitário de Tecnologia.
As formações pós-secundárias de tipo técnico e profissional, juntamente com
o BAC profissional, constituem também casos de sucesso nas medidas de
política educativa. As Secções de Técnicos Superiores, conducentes ao BTS
(iniciativa que remonta a 1964), contava em 1980 com 68.000 alunos. Em
1991 já frequentam estes cursos cerca de 215.000 jovens, distribuídos por
um vasto leque de especializações (cerca de 155), em que predominam as
formações ligadas ao Sector Terciário (68%).
A reforma dos liceus de 1992
Estabelecida pelo decreto de 17 de Janeiro de 1992, a renovação
pedagógica dos liceus entrou em vigor, no início do ano lectivo de 1992/93,
para o primeiro ano do ensino secundário do segundo ciclo (“seconde”) e
nos dois anos lectivos seguintes para os dois anos de escolaridade
subsequentes.
399
Em conformidade com os princípios enunciados pela Lei de Orientação de
10/07/89, este decreto estabelece três vias de formação: a via geral
conduzindo ao BAC Geral; a via tecnológica conduzindo ao BAC
Tecnológico e ao “Brevet” de Técnico; a via profissional conduzindo ao CAP,
ao BEP e ao BAC Profissional.
As vias geral e tecnológica passam a compreender um ciclo de determinação
e um ciclo terminal e a via profissional passa a configurar-se de modo
idêntico: um ciclo de determinação constituído por dois anos de preparação
ao BEP e ao CAP (desde que este seja preparado em dois anos) e um ciclo
terminal, constituído por um outro período de dois anos de preparação para
o BAC Profissional.
A esta reforma são assinalados dois objectivos principais (Commission
Européenne, 1995): colocar um termo à hierarquia que existia no sistema
escolar entre as diferentes fileiras e entre as várias disciplinas e tomar
melhor em consideração a diversidade dos alunos e a heterogeneidade das
turmas.
É promovido um balanço negativo da hierarquia de prestígio associada à
fileira científica do BAC, série C. Esta hierarquia conduz os alunos a efectuar
escolhas que não correspondem necessariamente às suas aspirações e
aptidões reais, é um obstáculo à democratização e, finalmente, funda a sua
excelência na predominância da disciplina de matemática, o que não
corresponde a nenhuma exigência de qualificação, mas mais a uma
exigência de selecção.
Assim, o número de fileiras foi reduzido de sete para três, no ensino geral, e
de dezasseis para quatro, no ensino tecnológico. No seio de cada “série” há
um conjunto de disciplinas “pivot” que marcam a identidade de cada “série”.
400
Quanto ao segundo objectivo será aplicada uma maior flexibilidade na
organização do ensino secundário geral e tecnológico e no processo de
orientação (legislação complementar de Junho de 1992 e de Março de
1993). O primeiro ano (“seconde”) passa a estar constituído em torno de um
tronco comum disciplinar. Este ciclo de determinação compreende três tipos
de componentes curriculares: o ensino comum, em que os programas e o
horário são idênticos para todos os alunos; o ensino opcional, em que cada
aluno tem de escolher duas opções entre o conjunto das que são oferecidas
pelo seu liceu; o ensino facultativo, que é constituído por ateliers práticos
abertos com base em projectos pedagógicos (ex. artes plásticas, audiovisual,
teatro, desporto, tecnologias da informação).
A componente comum prevê um ensino modular de três horas por semana
em quatro das suas disciplinas (Língua Materna, Matemática, Língua
Estrangeira e História/Geografia) e em pequenos grupos de alunos.
Nos dois anos seguintes, o ciclo terminal, o ensino passou a estar
organizado em sete séries principais, em vez das vinte e três que constavam
da organização precedente. Estas séries dividem-se do seguinte modo: três
para a via geral (literária, económico-social, científica) e quatro para a via
tecnológica (ciências e tecnologias industriais, ciências e tecnologias
laboratoriais, ciências médico-sociais e ciências e tecnologias terciárias). O
ciclo terminal também se organiza nas componentes curriculares obrigatória,
opcional e facultativa ou de ateliers práticos.
A renovação pedagógica dos liceus, em 1992 e nos anos seguintes, visou,
em termos vastos, promover um reequilíbrio de prestígio entre os vários
cursos e um melhor equilíbrio das disciplinas dentro de cada curso, atribuir
uma muito maior flexibilidade quer ao processo de orientação de cada aluno
quer à organização pedagógica de cada escola, através dos módulos, das
opções e dos ateliers, e ainda conferir uma maior inteligibilidade à
401
arquitectura das formações de nível secundário, para ajudar os jovens e as
famílias na formulação das suas escolhas (OCDE, 1996 a : 32 e 33).
Ao mesmo tempo renova-se o ensino tecnológico e profissional procurando,
no essencial, evitar que a opção por uma das suas fileiras corresponda a
uma estigmatização ou uma orientação pelo fracasso. Como se lê na base
de dados da Eurydice (1995) procura-se adaptar o ensino tecnológico e
profissional ao ensino geral, mantendo, no entanto, as diferenças, “mas sem
que o desfasamento com o ensino geral seja demasiado considerável.”
Nesta perspectiva a reforma visou, segundo a mesma fonte:(a) multiplicar as
“passerelles” a diferentes níveis, oferecendo aos alunos “a possibilidade de
reintegrar o ensino geral quando o entenderem”; b)”aumentar a parte do
ensino geral nos cursos tecnológicos e profissionais a fim de aproximar as
diferentes vias de ensino, permitindo aos alunos entre outras coisas, utilizar
sempre que possível as “passerelles” oferecidas em direcção ao ensino
geral”.
Como refere o “Exame” da OCDE, procedeu-se a um grande esforço
reformador, com antecedentes nas décadas de 70 e 80, que visava retirar as
fileiras técnicas e profissionais de uma zona sombria e indesejada do
sistema escolar para criar novas “fileiras de sucesso”.
O Caso da Holanda
O ensino secundário holandês destina-se aos jovens entre os 12 e 18 anos e
compreende um período em que é obrigatório e a tempo completo, até aos
16 anos.
À entrada do ensino secundário, os alunos podem escolher entre três tipos
402
de ensino secundário geral, de seis, cinco e quatro anos de duração, e um
ensino pré-profissional de quatro anos (ver Figura 5.7.).
O ensino pré-universitário (VWO, seis anos) e o ensino secundário geral
superior (HAVO, cinco anos) preparam respectivamente para a universidade
e para o ensino profissional superior (HBO) ou para o seu equivalente, os
Institutos Universitários de Tecnologia. O ensino geral médio (MAVO, quatro
anos) conduz normalmente ao ensino secundário profissional médio (MBO) e
o ensino pré-profissional (VBO) prossegue-se habitualmente em programas
de aprendizagem, que incluem dois dias de escolarização por semana.
Existe um sistema de permeabilidade entre os percursos, devidamente
assinalado no mesmo gráfico. Sempre que um aluno quer passar de um ciclo
de ensino para um outro que lhe é superior (evoluindo da direita para a
esquerda, no organigrama), perde normalmente um ano ou mais.
403
Figura 5.7.
Organigrama do sistema escolar holandês
WO
HBO
Ensino
Universitário
Ensino
Profissional
Superior
(4 anos)
(4 anos)
MBO
Ensino Secund.
Profissional
Médio
Aprendizagem
VWO
Ensino PréUniversitário
(6 anos)
(2 a 4 anos)
HAVO
Ensino
Secundário
Geral
Superior
(5 anos)
Ensino de
Base
Ensino de
Base
MAVO
Ensino Secun.
Geral Inferior
VBO
Ensino PréProfissional
(4 anos)
(4 anos)
Ensino de
Base
Ensino de
Base
Ensino Primário de 8 anos (alunos dos 4 aos 12 anos)
Fonte: Ministério da Educação e Ciência da Holanda
Quanto à situação dos jovens (15 - 24 anos) perante o mercado de emprego
verifica-se ter havido uma tendência, entre os anos 80 e os anos 90, para
uma descida relativa do volume de desempregados. Segundo o EUROSTAT,
404
a taxa de desemprego juvenil atingiu os 21,2% em 1984, os 12,6% em 1989
e os 11,1% em 1994. Grande parte das políticas de reforma do ensino
secundário que ocorreram e ainda ocorrem, desde o início dos anos 90,
tiveram o seu início por volta de 1986 e 1987, com a constituição de vários
comités e grupos de trabalho.
A frequência escolar é muito elevada. Entre os jovens de 16 anos, nove em
cada dez frequentam escolas secundárias e estão inscritos a tempo
completo, o mesmo sucedendo a três em cada quatro, entre os jovens de 17
anos. Ao adicionarmos a estes os jovens que frequentam os cursos a tempo
parcial, as taxas de escolarização
atingem os 95% e os 86%,
respectivamente para os 16 e 17 anos.
Como sucedeu em outros países, também na Holanda a procura de ensino
secundário não parou de aumentar entre 1970 e 1985, data a partir da qual
se iniciou um processo de descida, que ainda se mantém actualmente. Entre
1995 e 1996 estima-se uma descida de 8% do número total de inscritos. De
1975 para 1987, o ensino secundário profissional inferior desceu de 31,9%
para 21,9%, enquanto que a percentagem dos que procuram o ensino
secundário geral passou de 61% para 67,8%.
A subida nas inscrições no Ensino Profissional Médio (MBO) pode explicarse por várias razões. Segundo Broekhof (1995) tal facto deve-se (i) à taxa
crescente de alunos que saem do ensino secundário profissional inferior e
que prosseguem os seus estudos, (ii) ao interesse crescente pelo ensino
profissional ao nível do ensino secundário superior, e (iii) à abertura de
novos cursos curtos de ensino profissional de nível médio (KMBO).
O quadro 5.5. apresenta a evolução da frequência dos estabelecimentos de
ensino secundário, entre 1970 e 1990.
405
Quadro 5.5.
Frequência dos estabelecimentos de ensino secundário de 1970 a 1990.
Milhares
Tipo de Ensino
1970
1975
1980
1985
1990
Secundário geral 591 59% 766 60% 824 59
804 55% 684 57
(MAVO, HAVO,
%
%
VWO)
Pré-Profissional
325 33% 403 31% 403 29
389 26% 232 19
(VBO,
antigo
%
%
LBO)
Profissional
84 8%
114 9%
168 12
276 19% 288 24
Médio
%
%
(MBO)
TOTAL
100 100 128 100 139 100 146 100 120 10
0
3
5
9
4
0
Tendo em vista garantir a permeabilidade entre os cursos e entre as escolas
de ensino secundário, tem-se seguido uma orientação política tendente a
criar escolas polivalentes. Estas podem oferecer, no mesmo estabelecimento
ou em estabelecimentos interligados, tanto o ensino geral e o profissional,
como vários tipos de ensino profissional e vários tipos de ensino geral. O seu
número é ainda reduzido (4% em 1992/93) pelo que, de facto, as escolhas
dos percursos escolares são efectivamente realizadas ainda no termo do
ensino primário de 8 anos.
De facto, quanto à distribuição por fileiras de ensino e formação, verifica-se
haver uma repartição precoce dos alunos. Em 1990, 50,5% dos alunos que
sairam do ensino profissional inferior (VBO) passaram ao ensino profissional
médio (MBO); 70,6% dos alunos que saíram do ensino secundário geral
médio (MAVO) passaram ao ensino profissional médio (MBO) e 17,5% ao
ensino secundário geral superior (HAVO). Entre os alunos que saíram deste
último (HAVO), uma percentagem crescente cursa estudos pré-universitários
(VWO). Assim, 19% passaram para VWO, 23% para MBO e 38% para HBO Ensino Profissional Superior (com tendência para descer cada vez mais).
406
Entre os estudantes de estudos pré-universitários (VWO) cerca de 61%
prossegue estudos universitários e 27% passam para o HBO - ensino
profissional superior (Broekhof, 1995).
Figura 5.8.
Fluxos de transição dos alunos entre modalidades de ensino e escolas
Aprendizagem
Univ.
HBO
MBO
27%
23%
38%
50,5%
61%
19%
VWO
17,5%
HAVO
30%
70,6%
MAVO
VBO
Fonte: Ministério da Educação e Ciência (dados relativos a1990)
As principais vias de formação
A Holanda mantém um sistema escolar bastante diversificado. Descrevemse, de seguida, as principais vias de ensino e formação entre o ensino
básico e o ensino superior. As fileiras de ensino geral (MAVO, HAVO e
VWO)
compreendem tipos de escolas com públicos, objectivos e
sequencialidades muito diferentes.
A via VWO, de ensino pré-universitário, que é seguida por cerca de 17% do
grupo etário é, segundo o exame da OCDE à política educativa da Holanda,
uma via que prepara bem os alunos “para entrar na universidade e ter
sucesso numa economia cada vez mais internacional” (OCDE, 1991: 39).
Existem três tipos de escolas VWO, clássicas, modernas e liceus.
O ensino secundário geral superior e inferior (HAVO e MAVO) completam as
407
vias de formação geral. Enquanto que o nível inferior desempenha um papel
essencialmente de preparação para o nível secundário profissional médio e
tem sido objecto de várias tentativas de articulação com as escolas de
ensino pré-profissional (antes LBO), o nível superior acolhe uma parte
importante da população jovem, que distribui, como vimos, para os vários
segmentos de prosseguimento de estudos, sobretudo pelo ensino superior
profissional.
Para o Ministério da Educação e das Ciências e para os examinadores da
OCDE, o ensino secundário geral de cinco anos (HAVO) constitui a parte
mais frágil do sistema do ensino holandês. Há mais repetências e mais
abandonos sem qualificação. A fileira recebe muitos adolescentes e jovens
mas apenas lhes faculta “performances medíocres” através da frequência de
“um programa de ensino que nem prepara bem para a vida activa nem para o
ensino superior” (OCDE, 1991: 40). O ensino pré-profissional (VBO), que
desde 1992 substituiu o LBO, desenvolve-se em quatro anos lectivos, em
que os dois primeiros são de transição e os terceiro e quarto estão
directamente ligados a uma certa profissão. O conteúdo dos cursos é
relativamente geral pois não se espera que estes alunos entrem no mercado
de trabalho sem uma outra formação complementar. No entanto é
efectivamente o que acaba por acontecer a 18% de raparigas e a 11% de
rapazes (dados de 1990). Os outros encaminham-se para o sistema
de
aprendizagem e, a maior parte, para o ensino secundário profissional do
segundo
ciclo,
continuando
estudos
a
tempo
completo.
Para
a
aprendizagem, dirigem-se 22% das raparigas e 44% dos rapazes e para o
MBO 59% das raparigas e 45% dos rapazes (OCDE, 1994 a).
Segundo um relatório preparado para a OCDE, sob a responsabilidade do
Ministério da Educação e das Ciências, esta reforma de 1992 e a criação do
VBO foi dominada pelo debate sobre “o que devia ser geral ou
especificamente profissional. De um modo geral, orientou-se em direcção a
408
um ensino de carácter mais geral” (OCDE, 1994a: 16). Aí se sustenta
também que esta mudança se deve a duas ordens de factores: às novas
possibilidades de aperfeiçoamento pessoal oferecidas aos alunos e à
evolução das empresas, onde a capacidade de adaptação e a atitude para
procurar instruir-se ao longo de toda a vida se revestem de uma importância
crescente.
O ensino pré-profissional (VBO) não tem uma boa imagem e tem tido
algumas dificuldades em se adaptar às novas necessidades do mercado de
trabalho. O acréscimo de um quarto ano de estudos e as novas
possibilidades de prosseguimento de estudos nas escolas de ensino
profissional médio (MBO) modificaram esta imagem, sublinha o relatório
Broekhof (1995) para o Conselho de Europa.E destaca: “Nos programas, o
ensino geral levou a melhor sobre a formação profissional” e a introdução do
novo programa de base em todo o primeiro ciclo do ensino secundário “será
um elemento fundamental para melhorar o nível geral do ensino préprofissional”. (1995:29).
Por sua vez, o sistema de aprendizagem destina-se a jovens de mais de 16
anos
que tenham terminado a sua escolaridade obrigatória a tempo
completo, pode durar de 1 a 3 anos e combina, como é tradicional, uma
formação prática em empresa e uma formação teórica e técnica a tempo
parcial num centro regional de formação ou numa escola.
O sistema de aprendizagem compreende três níveis sequenciais diferentes:
as formações primárias, que duram 2 a 3 anos e que qualificam com o nível
II, as formações secundárias, que duram 1 a 2 anos e que qualificam com o
nível III e as formações terciárias, que duram 1 a 2 anos e que visam uma
qualificação de nível superior, nível IV.
O ensino secundário na Holanda não obedece a um quadro etário rígido mas
409
a um quadro legal que comporta níveis etários muito diversos. Assim, o
ensino profissional médio (MBO) faz parte do ensino secundário, embora
acolha alunos entre os 16 e os 20 anos (ou mais, quando estes são
repetentes).
O ensino secundário profissional do segundo ciclo (MBO), compreende uma
variedade de cursos que podem chegar aos 4 anos de duração e engloba
actualmente quatro sectores de formação: o sector técnico, o sector de
serviços pessoais e sociais e de cuidados de saúde, o sector da economia e
da administração e o sector da agricultura.
Os cursos desdobram-se em cursos de formação longa (3 a 4 anos), cursos
de formação intermédia (mínimo de 3 anos) e cursos de formação curta e
ainda cursos de orientação e de transição, que podem durar um ano e
encaminham os alunos para uma das opções de tipo curto ou intermédio. O
acesso é condicionado não só pelo tipo de escola frequentada antes, bem
como pelo tipo de resultados obtidos na avaliação final nessas escolas.
Todas as escolas MBO oferecem formações gerais e profissionais. A
formação em empresa, que é obrigatória, ocupa um lugar importante nos
programas MBO. As novas formações MBO têm uma estrutura modular. Esta
compreende uma série de unidades de certificação, umas obrigatórias outras
opcionais. Cada unidade de certificação compreende um ou vários módulos
e a maior parte dos cursos prevê dois estágios obrigatórios: 100 dias durante
a formação e 100 dias no termo desta. A avaliação processa-se no termo de
cada módulo e no termo de um conjunto de módulos existe um processo de
certificação. Quando o aluno reune um conjunto destes certificados
obrigatórios tem direito a um diploma.
Uma lei sobre a sectorialização e a renovação deste ensino secundário
profissional foi adoptada em Maio de 1990, na sequência da “operação SMV”
410
(que se iniciou em 1987). A nova estrutura das escolas MBO entrou em vigor
em Agosto de 1991.
Estas escolas reagruparam-se, tendo passado de 438 para 145 (OCDE,
1994 a: 19) e o número médio de alunos de 712 para 1395, e
especializaram-se, em geral, em duas áreas de formação. Tornaram-se mais
independentes em relação à administração central e mais articuladas com as
empresas locais. Os objectivos dos seus programas escolares são fixadas
pelo ME, sob recomendação dos parceiros sociais e dos representantes dos
meios educativos. Os exames finais estão organizados de modo a que as
diversas unidades certificadas correspondam a qualificações concretas
obtidas em cada disciplina.
O ensino profissional médio, é um segmento de ensino a tempo inteiro, em
crescimento e, na óptica do exame da OCDE, “funciona com uma grande
eficácia” (OCDE, 1991: 37). No seu seio criaram-se também cursos curtos,
de 2 ou 3 anos, os KMBO, e desenvolveram-se formações profissionais a
tempo parcial que podem estar associadas a cursos de aprendizagem
(BBO).
A reforma do fim dos anos 80 e do início dos anos 90, denominada
“operação SMV”, de reagrupamento e de sectorialização, provocou uma
maior dependência destas escolas face às necessidades da indústria e dos
interesses da comunidade o que reforçou a sua orientação profissional e
produtiva.
Além disso vários centros de formação de aprendizes fundiram-se com
escolas de MBO, formando escolas combinadas e os orgãos consultivos
nacionais indústria/ensino que existiam para o MBO fundiram-se, em 1993,
com as instâncias nacionais do sistema de aprendizagem. O objectivo era
“dar mais clareza à organização que estrutura e controla toda a hierarquia
411
das qualificações obtidas no ensino profissional” (OCDE, 1994 a: 20).
A lei referente a este processo foi adoptada pelo Parlamento Holandês em
1992 e entrou em vigor em Agosto de 1993.
O ensino profissional superior (HBO) compreende cursos de 3 a 4 anos, que
são definidos como tendo um nível profissional e especializado muito
elevado. Desde 1983, iniciou-se um processo de reorientação deste tipo de
ensino, em torno de duas perspectivas principais: a especialização e a
concentração. Esta operação conduziu à criação de cerca de 90 escolas
HBO (contra 350, em 1986), aglomerando mais alunos e oferecendo uma
maior variedade de cursos por área.
Uma das políticas de educação da Holanda tem sido a procura da paridade
de estima entre o ensino geral e o ensino e a formação profissional, pelo que
este país decidiu desencadear um conjunto de medidas articuladas, a saber:
(a) assegurar que tanto o ensino geral como o ensino e a formação
profissionais garantem o acesso ao ensino de nível terciário; (b) adiar o mais
possível a escolha definitiva entre o ensino geral e o ensino e a formação
profissionais; (c) informar os pais e os conselheiros de orientação acerca das
oportunidades do sistema de formação profissional; (d) informar melhor os
jovens acerca do sistema de ensino profissional e de formação profissional e
as suas perspectivas de evolução de longo-prazo; (e) propor a introdução de
incentivos financeiros para eleger a escolha de cursos tecnológicos (Banks,
1994: 100)
O Novo Programa Comum do Ensino Secundário
Até muito recentemente, o primeiro ano do ensino secundário era um ano de
transição que visava prolongar o período de orientação e adiar a escolha de
uma fileira específica. A reforma do ensino secundário começou por criar um
412
novo tronco comum de três anos, idêntico em todos os tipos de escolas.
O ano de 1993/94 marca a introdução das alterações profundas no ensino
secundário, a começar pelo programa nacional comum a todo o sector, no
seu nível inferior. Além disso, as mudanças estendem-se ao tipo de gestão
escolar, em que se consagra uma muito maior autonomia, que obrigou a um
processo de aglomeração de escolas tendo em vista dotá-las de maior
capacidade autonómica, financeira e pedagógica.
Para a reforma do tronco comum do ensino secundário contribuiu um
alargado debate, particularmente, as recomendações do Advisory Council for
Government Policy, feitas em 1986, e que aconselhavam uma acção
prioritária sobre o conteúdo do currículo, manuais, exames, tipo de ensino e
orientação escolar, e uma acção posterior sobre a estrutura, caso isso se
viesse a revelar necessário.
O processo de mudança vai estender-se ao longo dos anos, 10-15 anos, e
as escolas vão entrando nele em ritmos diferenciados. Foi criado um grupo
independente, PMT-Process Management Team, que é responsável por criar
um processo de intervenção em todos os níveis do sistema, no sentido de
promover e estimular a mudança nas escolas. Além disso, o governo
disponibilizou recursos adicionais, tempo, pessoal e dinheiro, para que as
escolas possam autonomamente preparar as suas novas actividades e a
entrada no processo de reforma.
O processo de introdução de um ensino básico no início do ensino
secundário iniciou-se em 1993. Esta função básica é definida como um
currículo para os dois primeiros anos de todos os tipos de escolas. As
principais preocupações
que lhe estão subjacentes são a melhoria do nível de educação para todos
os alunos, a modernização e harmonização do currículo de todos os tipos de
413
escolas, o adiamento da idade em que os alunos têm de escolher um curso
de ensino superior, dos 12 para os 15 anos, e a mudança dos programas do
exame (Van Velzen, 1996).
Os estabelecimentos de ensino oferecem aos alunos, entre os 12 e os 15
anos de idade, um tronco comum de 15 disciplinas que representa 80% do
conjunto das horas lectivas, que passaram de 30 para 32 horas por semana.
As escolas podem utilizar os restantes 20%. Este novo programa comum de
ensino de base visa melhorar o nível de conhecimentos do aluno, reduzir o
número de abandonos durante os cursos e melhorar a qualidade e a
igualdade de oportunidades no ensino secundário. Foram também definidos
objectivos a adquirir, em termos de competências, num total de 200
objectivos.
A partir de 1998, as primeiras mudanças sequenciais ocorrerão no currículo
do ensino secundário superior, o que, segundo o National Centre for School
Improvement (APS), estará relacionado com uma considerável redução do
número de vias e de combinações de matérias de exame.
Sectorializar e integrar
Desde 1990, nomeadamente após do relatório da Comissão Rauwenhoff,
que se tem vindo a separar o ensino secundário superior de tipo geral, das
escolas que oferecem o ensino técnico e a formação profissional (Römkens
e Visser, 1994: 39). A legislação subsequente, primeiro de 1991 (Senior
Secondary Vocational Education Act) e depois de 1993 (Vocational
Education Courses Art) veio consubstanciar esta perspectiva. Procura-se,
agora, na segunda metade dos anos 90, estruturar uma rede de centros
regionais de formação que devem assegurar de modo complementar tanto o
ensino profissional superior (a tempo completo ou a tempo parcial), a
formação em aprendizagem, a formação para os que procuram emprego, o
414
ensino geral de adultos e a educação básica de adultos. Pretende-se que
estes novas escolas de ensino e de formação se tornem capazes de
contratualizar localmente a formação necessária para responder às
necessidades educativas dos indivíduos e das empresas e organizações em
geral. Como sugeriu a Comissão Rauwenhoff, uma escola profissional é um
serviço que produz qualificações, orientando para o produto à medida e um
serviço que procura ser eficiente.
A ligação da nova rede de centros às empresas locais, é, por isso, uma
permissa óbvia. Esta articulação é dimensionada não só através dos
estágios para alunos, como também de períodos de trabalho nas empresas
para professores e ainda pela realização de contratos de formação entre os
centros e as empresas.
Na monografia do CEDEFOP, que apresenta o ensino técnico e a formação
profissional na Holanda, é produzida uma reflexão sobre as novas
tendências destes domínios educativos, nos anos 90. Vários elementos são
aí apontados para justificar significativas mutações legislativas entre 1986 e
1992. Entre eles destacam-se: (a) o crescimento do emprego qualificado e a
diminuição dos empregos disponíveis para pessoas pouco qualificadas; (b) a
diminuição contínua dos abandonos escolares precoces e desqualificados;
(c) a introdução de elementos de formação geral, tendo em vista
corresponder à evolução do mundo do trabalho, que requer jovens capazes
de exercer uma ampla variedade de tarefas, de receber formação ao longo
da vida e de responder com flexibilidade às mutações do mundo de trabalho.
Considera-se também que “o debate sobre o relacionamento entre a
formação geral e a formação profissional específica dentro do ensino
técnico” estará na ordem do dia ao longo da década de 90 (Römkens e
Visser, 1994: 75).
De modo idêntico, o relatório para a OCDE, (1994a), no âmbito da actividade
415
VOTEC, sublinha que a primeira grande questão emergente no debate
educativo, nos últimos vinte anos foi a das novas relações entre o ensino
geral e o ensino profissional. Distingue dois períodos: no primeiro, até ao
início dos anos 80, apostou-se na integração, na harmonização de planos de
estudo, na igualdade de oportunidades e na redução das diferenças entre o
ensino geral e o ensino profissional; no segundo, na sequência da crise
económica, o ensino profissional tende a especializar-se tendo em vista
estabelecer uma relação mais directa entre o ensino e os seus clientes. Tais
perspectivas foram evocadas nos relatórios de Wagner e Rauwenhoff, que
sublinharam a necessidade de reforçar a participação das empresas no
ensino profissional.
A lei relativa à sectorialização e à renovação do ensino secundário
profissional (SVM) surge na sequência desta segunda orientação e define a
parte que joga o sistema de clientes na definição da estrutura do ensino e
das suas finalidades. A primeira traduziu-se sobretudo na criação de
possibilidades de “transporte” e de passadeiras entre as diferentes fileiras de
ensino profissional e geral. A segunda tem originado um caminho bem
diverso.
Duas tendências, concomitantes no tempo, parecem marcar a evolução do
ensino secundário profissional na Holanda, desde os anos 80. De um lado,
está o esforço contínuo de descentralização administrativa para as regiões e
para as próprias escolas, no sector público. Do outro está a concentração
sectorial da oferta educativa, isto é, os “fornecedores de educação” reunemse
em instâncias nacionais sectoriais para melhor responder às novas
necessidades de qualificações profissionias, e as escolas procuram adaptarse mais e mais aos clientes, o que aqui quer dizer empregadores.
Segundo o relatório elaborado para a OCDE, a diferença entre ensino geral
e profissional releva mais de grau de orientação em direcção a certos
sectores oarticulares do mercado de trabalho do que ao lugar atribuído aos
416
conhecimentos teóricos por oposição aos conhecimentos aplicados. Os
programas gerais acentuam a perspectiva de passagem a uma fase ulterior
de ensino e os programas profissionais destacam a preparação para a
entrada imediata na vida activa.
Aí defende-se também que ambos têm, no entanto, de promover o “aprender
a aprender”; o sector do ensino profissional tem todas as possibilidades de
desenvolver o “aprender a aprender” nos seus programas, com bons
resultados, não pela via da “generalização” dos programas, mas pela
utilização dos métodos pedagógicos adequados, tais como a simulação e o
ensino por projectos num quadro profissional.
Nos programas do ensino profissional do segundo ciclo (MBO) procura-se
actualmente, na segunda metade dos anos 90, definir resultados-alvo em
termos de qualificações de base, à semelhança do que se havia feito para o
ensino secundário dos menores de 16 anos, em 1992 (OCDE, 1994 a: 45).
Isto pressupõe uma racionalização dos domínios de estudo, a reorganização
das finalidades e a adopção de novos objectivos. “Isto produz-se por vezes
em função de um novo conceito tecnológico ou de um postulado de
integração” (ibidem).
A integração que se defende neste relatório não é a que se subsume na
perspectiva da existência de uma só via de estudos, mas é sobretudo a que
postula a existência de contextos de aprendizagem diversos, a que “é
acompanhada por uma melhor compreensão das relações entre as
competências cognitivos e os problemas ligados ao contexto”.
O Caso de Itália
417
O ensino secundário superior italiano é constituído por um conjunto de vias
alternativas de formação distribuídas entre as tradicionais áreas de estudos
preparatórios para a universidade e para o mercado de trabalho. Este
segmento do sistema educativo permaneceu como o único invariável ao
longo de várias décadas.
No entanto, com base no Decreto-Presidencial nº 419 de 1974, as escolas e
as equipas de professores desencadearam inúmeros processos de
actualização
de
conteúdos,
de
renovação
didáctica,
de
inovação
metodológica e de aproximação da escola à sociedade envolvente. Hoje,
63% destas escolas estão envolvidas em processos experimentais de
renovação, muitos dos quais o Ministério da Educação vai reconhecendo e
apoiando.
Há quatro fileiras principais e os cursos variam entre três e cinco anos de
duração (ver Figura 5.9).
a) Estudos Clássicos (Liceus Clássicos, Científicos e Magistério)
b) Estudos Artísticos (Liceus Artísticos e Institutos de Arte)
c) Estudos Técnicos (Institutos Técnicos)
d) Estudos Profissionais (Institutos Profissionais)
A procura do ensino pós-obrigatório cresceu muito nos últimos anos. Entre
1970/71 e 1990/91 passou de 1.732.178 jovens para 2.864.885, ou seja,
aumentou 65%. Ao mesmo tempo a frequência da escola média diminuiu 6%
e a do ensino superior aumentou 47%. No ensino secundário superior a
progressão da procura repercutiu-se na passagem da respectiva taxa de
escolarização de 44% para 70%. (MPI, 1992).
418
Gráfico 5.9.
Distribuição das frequências do ensino secundário
superior em Itália por tipo de escola (1991/92)
1.290.000
546.000
471.000
231.000
183.000
Liceus
Clássicos
Liceus
Científicos
Magistério
Estudos Clássicos
92.000
Liceus
Artísticos
Institutos
de Arte
Institutos
Técnicos
Institutos
Profissionais
Fonte: Ministero della Pubblica Istruzione, 1992
Isto quer dizer que, em 1992, frequentavam o ensino técnico e profissional
de base escolar cerca de 65% dos jovens inscritos no ensino secundário
superior.
Os Institutos Técnicos oferecem cursos de cinco anos, tal como as vias mais
clássicas de preparação para estudos superiores. Os cursos compreendem
um biénio inicial, composto de disciplinas de base (literatura italiana, história,
educação cívica e educação física) e um espaço reservado aos exercícios
práticos.
Os dois primeiros anos acabam por se traduzir num acréscimo de dois anos
à escolaridade básica e obrigatória, que termina aos 14 anos de idade.
Criados em 1931, existem actualmente nove tipos de Institutos Técnicos com
orientações de estudos e especializações terminais particulares. Os
Institutos Profissionais foram criados nos anos 50, num momento de
reconstrução económica e de crescimento industrial, que se seguiu à
419
Segunda Guerra Mundial. Dirigem-se ao grupo etário 14-17 anos e oferecem
a possibilidade de alargar os estudos até aos 19 anos para aqueles que
frequentam os cursos experimentais de cinco anos.
Estas instituições de formação, criadas paralelamente aos Institutos
Técnicos, visam a qualificação profissional em ciclos curtos, preparando o
pessoal para o exercício de actividades executivas e os trabalhadores
qualificados para os diversos ramos de actividade produtiva.
Desde 1969, existem cursos complementares de dois anos que permitem o
acesso a um certificado de "maturitá professionale".
Com a evolução do mundo produtivo e a exigência omnipresente de uma
mais forte dimensão cultural (Ministero della Pubblica Istruzione, 1992) o
MPI-Ministério de Instrução Pública lançou, desde o ano lectivo de 1988/89,
um programa experimental de reforma dos “Instituti Professionali”, designado
“Progetto'92”. Em Abril de 1992 a fase experimental terminou e foi aprovado
um novo ordenamento. A sua generalização ocorreu em Abril de 1994.
Há uma primeira motivação de ordem política que subjaz ao reordenamento
do ensino técnico e profissional italiano; trata-se da intenção de aumentar a
escolaridade básica e obrigatória em dois anos (dos 14 para os 16) e da
concomitante criação de dois anos iniciais comuns em todos os percursos
formativos do ensino secundário superior.
Os Institutos Profissionais passarão, assim, a oferecer cursos de três anos,
com um tronco comum de dois anos, idêntico ao que é oferecido nos
Institutos Técnicos e nos liceus e com um ano terminal. Estes cursos
conduzem ao "Diploma de Qualificação", após o qual os estudantes se
encaminham para:
- aceder directamente ao mundo do trabalho;
420
- inscrever-se num curso bienal de pós-qualificação dos mesmos
Institutos Profissionais;
- passar, através de exame complementar, ao 4º ano de uma escola
secundária superior de outro tipo;
- frequentar sucessivos módulos de formação profissional tendo em
vista a obtenção de um segundo nível de qualificação.
A Figura 5.10. ilustra o novo ordenamento dos Institutos Profissionais no
sistema de ensino. Verifica-se um claro realinhamento que se traduz
sobretudo numa aproximação ao modelo da escola secundária tradicional.
Mas há ainda outros importantes pressupostos atribuídos ao “Progetto'92”.
São eles, segundo o MPI:
- mais cultura geral e profissional para promover o crescimento
pessoal e social dos jovens;
- uma dimensão polivalente da profissionalidade, com exclusão do
mero adestramento repetitivo, para responder às actuais exigências
do mundo da produção;
- consequente redução do número das qualificações de cerca de 150
a cerca de uma vintena;
Figura 5.10.
Sistema Educativo da Itália
Universidades
Cursos
Sistema
Pós-Diploma
Produtivo
Diploma Final do
Maturità
Ensino Secundário
Professionale
Liceus
Institutos
Institutos
Formação
Profissiona
l
421
Técnicos
Curso
Secundário
de
3 anos
Profissionai
s
Regional
Cursos
Pós-Qualificação
2 anos
Curso
Secundário
de
3 anos
(1)
3º ano
2 anos
comuns
2 anos
comuns
2 anos
comuns
Ensino Secundário Baixo (Escola Média - 3 anos)
Escola Elementar ( 5 anos)
(1) Diploma de Qualificação
- intervenções institucionalizadas para implementar uma estratégia,
tanto
quanto
possível
individualizada,
de
recuperação
das
desvantagens socioculturais;
-
articulação com o sistema regional da formação profissional para a
integração da oferta formativa.
O Livro Branco sobre a Formação Profissional (Ministero della Pubblica
Istruzione, 1994) é bastante claro ao justificar e enquadrar estas mudanças
no ensino técnico e profissional. Aí o Ministério da Instrução Pública assinala
os seguintes objectivos:
a) reforçar a formação cultural geral dos estudantes em ordem a
complementar uma formação profissional muito mais sustentada,
respondendo às mutações culturais, sociais e produtivas da
422
sociedade contemporânea e impedindo "a especialização precoce
da formação";
b) diminuir o leque de qualificações (de cerca de 150 para 18,
exceptuando alguns casos particulares de qualificações atípicas)
que serão assim inscritos em grandes áreas de competências
polivalentes, a obter no final dos cursos de três anos;
c) construir currículos e métodos de ensino modulares e flexíveis;
d) implementar métodos personalizados de formação, criando tempos
específicos para ir ao encontro das necesidades individuais ou de
pequenos grupos;
e) criar o exame para o diploma de qualificação, articulado de tal modo
que não só se avaliem os conhecimentos mas também as
competências transversais dos estudantes, prestando particular
atenção às competências relacionais;
f) criar cursos de especialização de 3 anos, respeitando as
competências institucionais das Regiões no campo da formação
profissional. "Protocolos" especiais foram estabelecidos com 10
regiões para uma gestão conjunta de cursos integrados de pósqualificação de dois anos" (Ministero della Pubblica Istruzione,
1994:18).
A reconstrução curricular que se desenvolveu no âmbito desta reforma,
segundo o MPI, baseia-se em dois principais pontos de referência, a saber:
(a) “a tendência emergente a nível internacional, dirigida a superar o modelo
de uma instrução profissional de primeiro nível, “pobre” e adestradora, em
favor de uma mais sólida formação geral e de uma formação profissional de
423
base, polivalente e integrável, mediante percursos de estudos ulteriores e
recicláveis com o tempo”; (b) a tendência emergente a nível nacional, seja
em sede parlamentar seja em sede administrativa (desde o projecto Falcucci,
de 1987, ao disposto pela Comissão Brocca, em 1991), tendência essa que
se traduz na criação de “uma área de ensino e aprendizagem comum para
todos os alunos do grupo etário 14 - 16 anos, correspondente ao biénio
inicial da escola secundária superior”.(Ministero della Pubblica Istruzione,
1994: XIII)
Refira-se, entretanto, que o volume de desemprego jovem se tem mantido
elevado, desde finais dos anos setenta. Em toda a década de oitenta este
problema não diminuiu, mantendo-se em redor dos 30%, nos anos noventa,
continuando a ser uma das taxas mais elevadas da Europa
A reforma da formação dos Institutos Profissionais
O processo de experimentação da renovação da formação profissional inicial
desenrolou-se entre 1988/89 e 1992/93. A avaliação entretanto realizada
pelo Ministério de Educação e pelo Conselho Nacional da Educação
italianos revelou que os resultados do regime de experimentação eram
positivos e que se tratava de uma inovação oportuna. Nessa conformidade
foi adoptado por Decreto de 24/04/1992, um novo quadro de formação para
a “instrução profissional” e foram estabelecidos os programas e os horários
da área comum e dos cursos de qualificação.
Os novos cursos de qualificação do ensino profissional, aqueles cuja
experimentação se iniciou no ano lectivo de 1988/89, são todos trienais. No
primeiro biénio contêm:
- uma área de ensino, comum a todos os cursos, adstrita a uma
formação humanística, científica e tecnológica, com 22 h semanais
424
(2/3 do horário);
- uma área de especialização profissional, que preenche 1/3 do
horário, subdividida em uma área de especialização, de 14 horas
semanais, e uma área de aprofundamento, de 4 horas semanais.
O terceiro ano dos cursos caracteriza-se por uma área comum (12-15 horas),
uma área de especialização (21-24 horas) e uma área de aprofundamento (4
horas).
A área de aprofundamento está sob a responsabilidade de cada Instituto e
pode ser dirigida autónoma e flexivelmente seja para recuperação de
situações de desvantagem ou para estabelecer relações com a comunidade
seja ainda para proceder a experiências de alternância escola-trabalho, em
cooperação com as empresas.
Não foram definidos rigidamente os programas e os horários da área de
especialização, a fim de garantir uma contínua adequação em função da
constante articulação com o mundo produtivo e com o sistema regional de
formação profissional.
No termo dos cursos bienais ou trienais dos Institutos Profissionais realizamse os exames de qualificação que se desenrolam perante uma comissão
formada por professores da escola nas disciplinas culturais, técnicas e
práticas e por dois peritos externos indicados por entidades do meio
económico e produtivo que têm particular ligação a cada escola concreta.
Como se assinalou acima, os cursos são compostos por três componentes
de formação: geral, específica e de aprofundamento.
O peso relativo das componentes distribui-se no horário semanal, de 40
425
horas, do seguinte modo:
Quadro 5.6.
Componentes de formação dos cursos dos Institutos Profissionais
Componente de formação
Formação geral
Formação específica
Formação de aprofundamento
TOTAL
1º e 2º anos
22 h
14 h
4h
40 h
%
55
35
10
100
3º ano
12 a 15 h
21 a 24 h
4h
40 h
%
30-37
53-60
10
100
As disciplinas comuns assentam no ensino/aprendizagem da Língua
Materna, Matemática e Informática, Língua Estrangeira, História, Educação
Física e Religião (disciplinas comuns aos três anos), Direito e Economia
(dois anos) Ciências Naturais e Biologia (um ano).
Há apenas dezoito qualificações inscritas em 11 áreas de formação, do
modo que se segue:
426
Quadro 5.7.
Estrutura de áreas de formação adoptadas em Itália
ÁREA DE FORMAÇÃO
Agricultura
QUALIFICAÇÃO
Operador Agrícola
Operador agro-industrial
Operador de electricidade
Electricidade/Electrónica
Operador de electrónica industrial
Op. de electrónica e telecomunicações
Moda e Vestuário
Operador de moda
Química e Biologia
Operador de química e biologia
Construção
Operador de construção
Operador mecânico
Termo-mecânica
Operador térmico
Op. de Serviços de Catering (cozinha)
Hotelaria e Catering
Op. de Serviços de Catering (bar)
Op. de Serviços de Recepção
Economia e Comércio
Operador de "business management"
Turismo
Operador de turismo
Serviços Sociais
Operador de serviços sociais
Publicidade
Operador de publicidade (artes gráficas)
427
O próprio Ministério da Instrução Pública fundamenta a ampla reformulação
curricular dos Institutos Profissionais, no âmbito do "Progetto 92", de modo
inequívoco:
"Na realidade, quer os acontecimentos culturais, produtivos e sociais,
existentes no contexto e em consequência da transição dos países de
economias industriais avançadas para economias definidas, impropriamente,
como de tipo "post-industrial", quer a reconsideração dos problemas comuns
à situação das zonas com atrasos de desenvolvimento, mostraram que, entre
os principais deveres da escola está o de promover e garantir nos alunos
conhecimentos e habilidades que sejam, não só significativas para cada um
dos sujeitos que aprende - isto é, que sejam capazes de modificá-lo quer
cognitivamente quer do ponto de vista afectivo e das motivações - mas que
também representem, um saber sistemático, ou seja, não episódico, não
casual, atomizado, etc., mas estável e utilizável, isto é, capaz de deixar
marca de si no tempo e de permitir um uso inteligente e flexível de si,
capitalizável no sentido de constituir uma estrutura sólida de base, sobre a
qual se possam enxertar, com relativa facilidade, aprendizagens ulteriores,
que possa tornar-se aquela espécie de pré-requesito que permita o acesso a
novos e diferentes saberes.
De facto, é cada vez maior a convicção de que velhas e novas profissões ou
ofícios, porque podem ser desenvolvidas com eficácia e sem criar fortes
frustações naqueles que devem levá-las a cabo, presupõem uma unificação
e não uma fragmentação dos conhecimentos que o sujeito deve posuir.
Cada operador deverá resolver uma quantidade de problemas, desde a
frequente rotação das funções laborais até à mudança radical do tipo de
trabalho, problemas para cuja solução será cada vez mais eficaz um corpo
fundamental de conhecimentos altamente estruturados.
428
Neste quadro, emerge, então, a necessidade de promover uma instrução
profissional flexível e polivalente capaz de assegurar aos diversos utentes a
estruturação de modalidades adaptativas complexas graças a um corpo
orgânico de conhecimentos fundamentais de base, isto é, tais que facilitem,
por um lado a aquisição de novas e diferentes competências ulteriores,
durante a prossecução dos estudos e que facilitem a utilização, no mundo do
trabalho, das competências adquiridas na escola, também através dos
cursos estritamente dirigidos". (Ministero della Pubblica Istruzione, 1991:8)
Na prossecução do “Progetto’92” e após vários contributos do sistema de
ensino e formação e do sistema produtvio, foram aprovadas, em Maio de
1991, por uma Circular ministerial, as várias oportunidades de estudo a
oferecer aos alunos que tinham concluído o seu novo “diploma de
qualificação”, segundo o novo ordenamento didáctico em vigor para o ciclo
de estudos trienal.
Após um acompanhamento e avaliação deste processo de lançamento dos
novos currículos do biénio pós-qualificação, um Decreto de Abril de 1994
transformou os novo currículos em “cursos ordinários”. Regulamentou-se
também o modelo de exame final dos novos cursos de pós-qualificação,
conducente ao diploma de “Maturità Professionale”, exame este que deve
ser, segundo o Ministério, um instrumento de verificação quer da formação
cultural quer da formação profissional específica de cada aluno.
No ano lectivo de 1997/98, todos os alunos do 3º ano dos cursos do ciclo
trienal frequentaram, em todos os Institutos e pela primeira vez, os novos
cursos saídos do processo experimental do “Progetto’92”, concluindo-se
assim, dez anos depois, uma reforma de vasto impacto no sistema educativo
italiano.
429
Diversificação da formação profissional
A formação profissional extra-escolar de iniciativa pública é, desde 197834,
uma competência da administração regional do país. Os Centros de
Formação Profissional (CFP) organizam uma variedade de formações e
qualificações profissionais pós-escolares e é responsável pela formação em
aprendizagem.
Em 1989, perto de três milhões de pessoas frequentaram actividades de
formação tanto de iniciativa pública como privada. Os jovens são, em parte,
beneficiários destas acções; neste mesmo ano havia 529.000 jovens
recrutados em contratos de formação-trabalho (criados em 1984) e 567.000
beneficiários de um contrato de aprendizagem.
A procura desta última modalidade de formação tem decrescido: em 1980
havia 738.000 aprendizes (a aprendizagem está regulamentada desde
1955). Jallade (1988:45) anota uma análise de Meghnagi que constata o
facto
de
a
formação
complementar
estar
a
ser
progressivamente
abandonada e de a aprendizagem se estar a tornar numa formação "sur le
tas", não se cumprindo as normas legais. Os CFP regionais optaram por
alocar os recursos a outros programas de formação profissional para jovens.
Os outros tipos de formação concorrentes são: os cursos de formação
profissional dos CFP regionais, de dois ou três anos de duração, que são
oferecidos aos jovens em processo de transição entre a escola e o trabalho e
34 A transferência de competências administrativas no domínio da formação profissional iniciou-se mais cedo, em
1972. Nessa altura, em 1978, procedeu-se a uma ampla transferência de competências para o domínio
regional.
430
aos desempregados35, e os contratos formação-emprego que oferecem
possibilidades de trabalho temporário aos jovens entre os 15 e 29 anos, à
procura de emprego.
A formação profissional extra-escolar é de competência regional e tem vindo
a evoluir na sua plurifacetada configuração. Por um lado, evoluiu-se de um
sistema de formação que era subsidiário de uma política de emprego, com
um cunho marcadamente instrumental, para uma política de formação como
condição do desenvolvimento produtivo, na medida em que este último
depende crescentemente não apenas da energia e das matérias-primas, mas
também de conhecimento e de inteligência sistemática.
Por outro lado, acompanhando a evolução das tecnologias e as inovações
no aparelho produtivo, nomeadamente as que têm sido provocadas pelo
recurso sistemático às tecnologias da informação, a formação profissional foi
alargando os seus públicos-alvo:
- em primeiro lugar, os jovens do ensino pós-obrigatório;
- em seguida, os trabalhadores adultos confrontados com as crises e
as reestruturações das empresas;
- actualmente, as pessoas que apresentam um médio e elevado nível
de escolaridade.
Finalmente, à medida que se processa esta evolução, a formação
profissional extra-escolar vai deixando o seu estatuto de oferta concorrencial
para representar um papel de complementaridade e de interacção, tais são
as novas exigências em matéria de reciclagem e de aperfeiçoamento.
35 Em 1989, estes cursos dos CFP englobaram 271.000 participantes. Todavia, os dados disponíveis não são
completos.
431
O Caso da Noruega
Na Noruega, a taxa de transição entre a escolaridade obrigatória (9º ano) e o
ensino secundário superior é de 95,3%, em 1992. As saídas do sistema
escolar e de formação, no termo da escolaridade obrigatória, têm vindo a
reduzir-se a um ritmo bastante acentuado. Assim, em 1975, as saídas
abrangiam cerca de 25% dos diplomados pela escola obrigatória e em 1986,
cerca de 11%. Em 1992, abrangem apenas 4,7% (Skinningsrud e Bjornavold,
1994: 13).
A frequência do ensino secundário superior foi-se tornando, nos ano 80, uma
prática comum à generalidade dos jovens. Na verdade, entre 1977/78 e 1992
a frequência aumentou 53% e hoje, apenas uma pequena parte do grupo
etário 16-18 anos se encontra fora de um sistema de formação e a grande
maioria encontra-se a realizar estudos no ensino formal (cfr. Quadro 5.8.).
Para Skinningsrud e Bjornavold há dois motivos principais que explicam este
rápido crescimento da procura social do ensino secundário superior. Por um
lado, a capacidade de acolhimento foi drásticamente ampliada. Por outro
lado, o mercado de emprego tornou-se adverso nas suas hipóteses de
recrutamento de jovens de 16 anos. No dizer deste autor, "o mecado de
trabalho está com efeito, embora não oficialmente, fechado para o grupo
etário 16-19 anos" (Skinningsrud e Bjornavold, 1994:13). A escola
secundária superior é assim uma boa alternativa ou, no mínimo, uma
alternativa necessária.
Terminada a escolaridade obrigatória de 9 anos (6 + 3), os jovens na
Noruega podem encaminhar-se para os seguintes percursos:
432
Quadro 5.8.
Situação (a 1 de Outubro de 1992) dos jovens que concluiram a
escolaridade obrigatória na Primavera de 92, na Noruega
%
Estudos
Gerais
Estudos
Profissionais
Outros
estudos
Fora do
sistema
Voltam à esc.
obrig. (sic)
43.8
48.3
2.0
4.7
1.2
Fonte: Estatísticas Oficiais da Noruega (in Skinningsrud e Bjornavold, 1994:12)
Dos que frequentam escolas do ensino secundário superior, 44% escolhe
estudos gerais e os restantes encaminham-se em direcção a estudos
profissionalizantes, segundo a seguinte distribuição:
. Estudos comerciais
16%
. Artesanato e Indústria
23%
. Pesca
2%
. Agricultura
2%
. Saúde
8%
. Estudos domésticos
3%
. Artesanato doméstico
3%
. Desporto
1%
58%
O desemprego afecta particularmente o grupo etário 20-24 anos. No grupo
etário 16-19 o volume de desempregados tem-se mantido estável desde
1988, em termos absolutos, evoluindo embora percentualmente de 4 para
6%.
No
grupo
etário
seguinte,
o
desemprego
tem
subido
mais
vertiginosamente, tendo duplicado no mesmo período (1988 - 1993); em
termos relativos a taxa de desemprego subiu de 5% para 11%.
433
A Comissão Blegen prepara uma reforma
Na opinião do Ministério da Educação, Investigação e Assuntos Religiosos
(MERCA) urgia alterar e ensino secundário superior com base nos seguintes
aspectos críticos do sistema:
- a especialização era demasiado aprofundada, particularmente no
nível do "curso de base";
- as opções eram demasiado numerosas e confusas;
- muitos cursos do secundário superior não ofereciam um terceiro ano
de ensino;
- a progressão de um nível para outro era demasiado pobre;
- a ligação entre escola e formação na indústria era demasiado débil;
- havia muito poucos lugares para aprendizes e insuficientes
oportunidades para completar a formação profissional;
- os regulamentos que regiam a admissão a estudos superiores eram
complicados e confusos, (Ministry of Education, Research and
Church Affairs, 1994 a).
Em 1989, foi constituída a chamada Comissão Blegen com o seguinte
mandato: (i) identificar medidas tendentes a assegurar que todos os alunos
no ensino secundário superior possam obter ou as suas qualificações para o
ensino superior ou as suas qualificações profissionais, através de cursos de
três anos; (ii) avaliar a globalidade da estrutura formativa entre a
escolaridade obrigatória e o ensino superior, atendendo às vias de
progressão, à coordenação entre estudos teóricos e práticos e ao uso
eficiente de recursos; (iii) avaliar esta mesma estrutura tendo em vista
aumentar a internacionalização; (iv) inventariar modos de construir
conhecimento que possam informar as medidas de política na área do ensino
secundário superior.
434
Em 1991, a Comissão Blegen entregou ao Governo o seu relatório, contendo
um anexo com uma declaração da Confederação Norueguesa de Sindicatos
e da Confederação Norueguesa de Comércio e Indústria, sobre a formação
profissional e a aprendizagem, em que se disponibilizam para uma
cooperação mais intensa no futuro.
Em 1992, já o Governo adoptava uma lei que consagrava as principais
recomendações da Comissão Blegen. A chamada "Reforma 94" estava
preparada e entraria em vigor, posteriormente, em 1 de Agosto de 1994.
A Comissão Parlamentar de Educação, nos seus comentários ao Livro
Branco de 1992, "Conhecimento e Competência", sumariou os principais
problemas do ensino secundário, do seguinte modo:
. inexistência legal de direitos relativos ao ensino e à formação
após a escolaridade obrigatória;
. os cursos de base no ensino secundário superior (1º ano) são
demasiado
especializados,
abrangendo,
em
1991,
109
especialidades diferentes;
. os ritmos de progressão nas escolas secundárias superiores são
demasiado lentos e há níveis muito altos de abandonos;
. os currículos para os diferentes níveis, vias e categorias de alunos
são incoerentes e fragmentados; não existe uma definição de
objectivos gerais para o sistema de ensino como um todo e os
programas estão demasiado pormenorizados;
. não existe uma única agência que possua um conhecimento
completo dos jovens dos 16 aos 19 anos e que não estão
envolvidos em instituições educativas nem estão empregados.
435
Por sua vez, o Ministério da Educação adoptou um conjunto de linhas de
orientação para aplicar ao conjunto dos percursos de formação. Entre elas
destacam-se:
- é assegurado o direito de admissão em uma das três principais
escolhas do jovem, ao entrar no ensino secundário superior;
- as portas de entrada no ensino secundário superior são reduzidas de
109 para 13. Três delas são preparatórias dos estudos no ensino
superior, dez são profissionais e estão disponíveis em todas as
regiões;
- os percursos formativos têm um tronco comum inicial e ao longo dos
três anos é possível uma especialização progressiva;
- a sequência normal no novo sistema dual de formação profissional
será de dois anos de ensino na escola e dois anos de formação na
empresa, como aprendiz.
- O ensino geral é uma parte integrante da formação profissional, com
um core curriculum comum em Norueguês, Inglês, Matemática,
Ciências Naturais e Ciências Sociais;
- todos os alunos e aprendizes aprendem algumas competências
empresariais;
- no termo da sua formação, os alunos obtêm ou um diploma de
qualificação para o "college" ou para a Universidade ou um
certificado como trabalhador qualificado;
- os materiais de ensino e os conteúdos do currículo geral são
adaptados à área profissional que os alunos escolhem;
436
- é criado um serviço de acompanhamento dos alunos, em cada
município, à saída da escola, tendo em vista apoiar todos os que
abandonam os estudos;
- todos os currículos são desenhados para fazer face aos desafios do
futuro, tanto na sociedade como no mercado de trabalho;
- são desenvolvidas melhores possibilidades formativas para os
adultos através de currículos modularizados (Ministry of Education,
Research and Church Affairs, 1994 b).
Instituti-se, assim, um sistema mais unificado na base (foundation course) e
igualmente especializado no topo (ver Quadro 5.9.).
Quadro 5.9.
Progressão do número de especializações dentro do ensino secundário
superior na Noruega (1994)
Anos de formação
1º ano
(foundation course)
Nº de especialidades
13
2º ano
90
3º ano
200
4º ano
(ano de extensão, no caso da aprendizagem)
O novo modelo de formação adoptado
As áreas "fundacionais" são 13, três das quais estão intimamente associadas
ao prosseguimento de estudos, correspondendo aos antigos estudos liceais,
437
a saber:
- Estudos Gerais e Comércio
- Música, Dança e Drama
- Desporto e Educação Física
As dez restantes correspondem "às bases para uma formação ocupacional",
nos termos do Ministério. São as seguintes:
- Saúde e estudos sociais
- Estudos de artes, artesanato e design
- Agricultura, pesca e floresta
- Hotelaria e restauração
- Construção civil
- Construção técnica
- Electricidade
- Engenharia e Mecânica
- Química
- Trabalho da madeira (woodworking)
Para o MERCA, "esta reforma está concebida para uma sociedade em rápida
mudança. A ênfase é colocada no desenvolvimento de competências
alongadas, na flexibilidade e numa boa fundação para uma formação mais
avançada" (Ministry of Education, Research and Church Affairs, 1994).
As mudanças mais drásticas operaram-se ao nível da formação técnica e
profissional, no dizer do próprio Ministério. A legislação anterior que
regulava este segmento do sistema de educação reportava-se a 1 de Janeiro
de 1981. Entretanto, os serviços e a indústria reclamavam uma formação que
contemplasse novos saberes e este facto foi tido como um dado central para
a reforma das formações profissionalizantes.
438
O ensino secundário apresenta, a partir desta reforma, uma configuração
que expressa um compromisso entre a vontade de construir um tronco
comum de formação para todos os jovens do grupo etário 16-19 anos e a
necessidade de manter um modelo de especialização progressiva, como via
de obtenção de uma qualificação profissional.
Assim, na prática, existem dois percursos principais, com variantes: os
percursos dos alunos que visam o prosseguimento de estudos no ensino
superior e os percursos dos alunos que desejam obter de imediato uma
qualificação profissional.
A nova estrutura do ensino secundário superior pode ser ilustrada do
seguinte modo:
Figura 5.11.
Nova organização do ensino secundário na Noruega (1994)
439
(Na escola)
1º ano
Curso de Base
(Na escola)
2º ano
3º ano
Curso
Avançado I
(Na escola)
Curso
Avançado II
(Na escola)
Curso Avançado II (suplemento de formação geral)
(No local
de trabalho)
Formação
(No local
de trabalho)
Formação e
Trabalho
produtivo
(No local
de trabalho)
4º ano
Formação e
Trabalho
produtivo
O acesso ao ensino superior é aberto a todos os tipos de percursos de
formação, desde que satisfaçam um duplo requisito:
a) completar três anos de ensino secundário superior, qualquer que
seja a área de estudos;
b) possuir um nível mínimo de aprovação nestas matérias: Norueguês,
Inglês, Estudos Sociais. No seu conjunto, estas matérias devem
prefazer 35 períodos horários por semana.
Estes requisitos preenchem-se seja pela simples aprovação num curso de
três anos em algumas áreas de estudo (as áreas de estudos gerais e
artísticos, p. ex.) seja pela realização de um suplemento de formação geral
440
que incide sobretudo sobre as disciplinas acima mencionadas.
O desenho curricular do novo ensino secundário compreende um core
curriculum que estabelece os objectivos globais e apresenta os elementos
principais de cada curso.
No core curriculum sublinham-se os grandes princípios humanistas que
devem nortear o ensino e a formação e ordena-se o sistema educativo para
a promoção de "uma educação geral multifacetada e aberta" como "précondição para uma evolução global da personalidade e para desenvolver
uma multiplicidade de relações interpessoais, como pré-condição para se ser
capaz de escolher uma carreira e, mais tarde, exercer um emprego com
competência,
responsabilidade
e
diligência"
(Ministry
of
Education,
Research, and Church Affairs, 1994 b).
Na elaboração dos programas dos cursos seguiram-se, segundo o ME,
quatro princípios:
1) Programas abertos, embora aplicáveis aos locais onde a formação
tem lugar e aos grupos que a recebem (previamente havia
programas diferentes para as disciplinas escolares, para a
aprendizagem, para os cursos realizados nas empresas e para a
educação de adultos).
2) Os programas são divididos em módulos (seja como forma de os
aproximar mais da diversidade de necessidades dos alunos seja
como maneira de os articular com as necessidades da indústria).
3) É
adoptado
um
vasto
conceito
de
saber,
abrangendo
o
desenvolvimento de saberes e competências, atitudes e valores
éticos e qualidades pessoais, tais como competência social,
competências empresariais, competências de comunicação, etc.
4) A internacionalização, o ambiente e a tecnologia computacional são
441
incluídas em todos os programas.
5)
Gudmund Hernes (1993), Ministro da Educação da Noruega, justificava a
redução das "portas de entrada", por um lado, pelo facto de "muitos jovens
de 16 anos não estarem preparados para realizar uma decisão final acerca
da ocupação" que querem ter e, por outro lado, porque "todos devem ser
formados não para uma certa ocupação, mas também para ocupações que
ainda não existem e que ainda não foram inventadas". E sublinhava:
"aqueles que entrarem no ensino secundário em 1994, permanecerão na
nossa força de trabalho até ao ano 2040”.
Verifica-se haver uma preocupação em reforçar e rever as articulações entre
o ensino geral e especializado. O Ministro da Educação assegurava que
aquilo de que o país precisava era de desenvolver, ao mesmo tempo,
competências gerais e aplicações específicas. "As mudanças rápidas no
mundo do trabalho apelam para a transmissão de competências gerais na
educação. Quando os saberes específicos necessários estão continuamente
em alteração e emergem a todo o tempo novos factos, são necessários
quadros de referência gerais para interpertar a nova informação e para
procurar novas conexões" (Hernes, 1993).
E concluía: os jovens devem ser educados para a reeducação, dotados das
competências gerais capazes de sustentarem a aquisição de saberes
especializados ao longo da vida profissional.
Em termos administrativos, o ensino secundário é uma responsabilidade das
autoridades regionais (fylker). Com a Reforma’94 estas autoridades têm de
garantir o direito dos jovens, com idades entre os 16 e os 20 anos, a
frequentar cursos de ensino-formação durante três anos.
A aprendizagem e outras modalidades de formação
442
A aprendizagem é escolhida por 1.3% dos que completam o Curso de base
(10º ano) e por 6.5% dos que completam o Curso Avançado I (dados de
1992). A maior parte (56%) dos que, em 1992/93, completaram os seus
cursos de aprendizagem são maiores de 25 anos que procuram a obtenção
de uma qualificação formal. Para os que terminam a sua escolaridade
obrigatória, este sistema funciona apenas com uma válvula de segurança
para uma pequena parte dos jovens, os que apresentam problemas muito
particulares no processo de transição. Skinningsrud e Bjornavold atribuemlhe mesmo um "papel marginal" (1994:25).
O novo sistema de aprendizagem, saído da “Reforma'94”, está integrado no
ensino secundário e requer que os dois primeiros anos de escola secundária
superior estejam completados antes de se iniciar a formação em
aprendizagem. Esta prolonga-se, regra geral, por mais dois anos.
Para os grupos de desempregados foram lançadas uma série de "garantias
jovem" e atribuiu-se-lhes a máxima prioridade nas políticas de emprego. As
"garantias" lançaram-se em 1977, apenas para o grupo etário 16-19 e, em
1994, começaram a abranger também o grupo 20-24 anos.
Estas iniciativas envolveram cerca de 25.000 jovens, em 1993, 17.000 dos
quais pertencentes ao grupo etário 20-24 anos. As principais são a Prática
de Trabalho - 11.500, AMO (Formação no Mercado de Trabalho) - 7.000;
Esquemas de criação de Emprego, no sector público - 3.500; outras
iniciativas (3.000).
A Comissão Blegen propôs também a criação de um dispositivo especial de
acompanhamento dos jovens do grupo etário 16-19 anos que não estão
envolvidos em programas de ensino e de formação e que também não estão
a trabalhar, o "Follow-Up Service". A proposta foi adoptada e entrou en vigor,
443
sob responsabilidade municipal.
Os parceiros sociais estão envolvidos nas políticas de formação profissional
de molde a influenciá-las. Constituem a maioria no Conselho Nacional para a
Formação Profissional e para a Aprendizagem e constituem ainda os vinte e
três Conselhos de Formação36 e as organizações regionais tripartidas,
chamadas Comités para a Formação Profissional.
As regiões (nível intermédio entre os municípios e o nível central) são
obrigadas, por lei, a providenciar o número suficiente de lugares no ensino e
na formação de nível secundário para que todos os que desejam realizar um
curso de três anos possam ser admitidos.
O número de lugares a disponibilizar deve ser suficientemente amplo (prevêse sempre um volume extra de lugares) para que as preferências dos jovens
possam ser acolhidas e para que cerca de um terço do grupo etário possa
realizar uma formação em aprendizagem, após a conclusão de dois anos de
estudos na escola secundária.
Um serviço tripartido, incluindo parceiros sociais e repersentantes dos
partidos políticos ao nível regional, é o agente operacional responsável pelo
estabelecimento das ligações com as empresas e pela colocação dos
aprendizes. Este serviço é o Comité para a Formação Profissional.
As regiões são também responsáveis pelo estabelecimento do Serviço de
Follow-up destinado aos jovens do grupo etário 16-19 anos que não estudam
nem trabalham. A principal missão deste Serviço é a de orientar e informar
os jovens acerca de outras alternativas de formação ou de emprego
(regulamentação de Maio de 1994).
36 Estes concelhos eram em número superior a 60 e distribuíam-se por ramos de actividade específicos. Desde 1993
foram reduzidos para 23 e em 1994 foi nomeado um comité para reequacionar a estrutura dos Conselhos de Formação.
444
O Caso da Suécia
A Suécia apresenta um sistema de ensino e formação profissional de base
escolar, sendo até considerado um modelo deste tipo de sistemas.
Após um longo processo de reflexão, durante os anos 80, acerca do papel e
do lugar da educação e do ensino de nível secundário superior, o Governo e
o Parlamento suecos adoptaram uma lei, em Junho de 1991, que veio
estebelecer novas bases para uma reforma do ensino secundário superior.
Este processo parece repetir, vinte anos volvidos, aquele outro que se
desenrolou na segunda metade da década de 60 em que um grupo de
trabalho oficial preparou uma reforma do ensino técnico e profissional. Este
grupo viria a propôr a criação de uma escola secundária superior integrada,
o que foi relativamente bem recebido e viria a ser legalmente adoptado.
A Suécia celebrou, em 1987, os 25 anos do ensino unificado. De facto, em
1962 era aplicado o primeiro currículo básico integrado, após aprovação
parlamentar.
Esta tradição unificadora viria a estender-se lenta e
progressivamente a todo o ensino básico e secundário, inferior e superior.
Até aos 16 anos, a Grundskola oferece uma escolaridade obrigatória de
nove anos. Após esta formação geral e comum, erguiam-se vias muito
diferenciadas de formação geral e profissional.
A reforma de 1970 (decisão tomada em 1968 e implementada em 1970)
traduziu-se na instituição legal de uma escola secundária superior integrada,
colocando sob o mesmo tecto todos os tipos de vias de estudo e de
formação. Tanto o National Board of Education como os 280 comités de
educação dos municípios reformularam os programas de estudo de modo a
que os estudantes dos cursos profissionais de dois anos frequentem, agora,
445
as formações gerais, ao lado dos estudantes dos programas académicos de
dois anos.
A reforma de 1970 instituiu um ensino secundário superior com cursos de
estudos gerais e académicos de dois, três e quatro anos, cursos
profissionais e cursos especializados orientados para especializações
ocupacionais, usualmente relacionadas com o mercado de trabalho local (ver
Figura 5.12.).
446
Figura 5.12.
Oferta educativa da escola secundária superior integrada na Suécia
Cursos de formação
(90 variações possíveis)
Cursos Académicos
de 3 e 4 anos
3 anos:
Artes
Ciências Sociais
Economia
Ciências Naturais
Cursos Académicos
de 2 anos
Economia
Social
Música
Estética
Técnico
Cursos Profissionais de
2 anos
Fabricação de vestuário
Construção
Distribuição
Manutenção
Electro-Telecomunicações
Engenharia Mecânica
Agricultura
Fabricação alimentar
Restauração
Engenharia de processo
Floresta
Serviços Sociais
Horticultura
Trabalho em madeira
Cuidado de crianças
Oficina
4 anos:
Tecnologia
Cursos especializados
(530 variações possíveis)
Cursos relacionados
com a escolaridade
obrigatória
*
Cursos não relacionados
com a escolaridade
obrigatória
Cursos de subida
de nível
Fonte: Opper, 1989
(*)
Os cursos especializados são frequentados como conclusão da escolaridade obrigatória ou seu
equivalente. Cursos especializados avançados surgem após a conclusão de dois ou três anos de
escola secundária superior ou o equivalente. A duração destes cursos pode variar entre duas
semanas e dois anos.
447
Os programas académicos e gerais de 3 e 4 anos equivalem aos estudos
secundários tradicionalmente conducentes à universidade e oferecidos
anteriormente pelos liceus. Os programas académicos de dois anos
correspondem à formação dada anteriormente pelas "continuation schools".
Os cursos profissionais de dois anos substituem os cursos das escolas
profissionais, administradas a nível municipal.
Pretendeu-se assegurar a elegibilidade geral para o acesso ao ensino
superior embora haja vias claramente preferenciais e, em geral, os
diplomados dos cursos profissionais de dois anos tenham de realizar uma
formação complementar.
Durante os anos 70 e 80 aumentou muito a procura do ensino secundário
superior. Esta dirigiu-se preferencialmente para os cursos mais longos, tendo
havido uma diminuição da procura dos cursos académicos de dois anos e
dos cursos especializados. Enquanto que em meados dos anos 70 apenas
70% dos diplomados pela escolaridade obrigatória prosseguiu estudos
secundários, em 1989 esse valor já tinha subido para cerca de 97% (Ver
Quadro nº 5.10.).
Em meados da década de 80 concluíam os nove anos de escolaridade
obrigatória cerca de 110.000 jovens. Destes, 96% requeria admissão no
ensino secundário superior, dos quais 3.000 não eram admitidos e 7.000
abandonavam no primeiro ano de estudos. Dos admitidos, 25% dirigia-se
para cursos especializados e, dos restantes, 40% ía frequentar cursos
profissionais de dois anos e 30% seguia para cursos académicos mais
longos. Entre estes últimos, os cursos de Economia (3 anos) e de Tecnologia
(4 anos) eram, de longe, os mais requeridos e frequentados, sendo os
cursos mais ligados a formações terminais. A evolução desta distribuição dos
alunos dentro do ensino secundário superior, desde o fim dos anos 80 até
hoje, é documentada no Quadro 5.11. e na Figura 5.13.
448
Nesta perspectiva, pode afirmar-se que a maioria dos jovens dos 16-19 anos
faz um percurso de formação na escola secundária superior de tipo
profissional, ou seja, predominantemente orientado para o ingresso imediato
no mercado de emprego. A maioria dos diplomados pelo ensino secundário
superior entra no mercado de emprego e apenas 28% prossegue estudos,
transitando directamente para o ensino superior ou para outras formas de
ensino técnico e profissional (Opper, 1989).
A procura do ensino técnico e profissional não parou de aumentar ao longo
dos anos 80. Para Christiane Rault (1994) tal facto compreende-se à luz de
três razões: (a) a condição dos empregos que mudou muito, nomeadamente
a reorganização do trabalho; (b) o sistema de ensino atribuiu à formação
profissional escolar um estatuto equivalente aos dos cursos gerais e
académicos; (c) a estrutura salarial, em que o leque é diminuto, acaba por
valorizar socialmente as categorias socioprofissionais mais baixas.
Entretanto, o desemprego crescia entre os jovens do grupo etário 16-19
anos: o desemprego juvenil (15 - 24 anos) era, segundo a OCDE, de 2,9%
em 1970, de 5,1% em 1980, de 8.0% em 1983 e de 16.6% em 1994. O
governo desencadeou uma série de iniciativas complementares de formação
técnica
e
profissional
destinadas a estes jovens e revalorizou a
aprendizagem como modalidade de formação de âmbito escolar.
449
Quadro 5.10.
Percentagem de alunos que tendo terminado a escolaridade obrigatória
se matricularam no ano lectivo seguinte no ensino secundário superior
(escolas públicas), na Suécia.
Ano lectivo
*
1987/88
% de alunos que requer
o ensino sec. superior
97.7
% dos alunos que inicia
o ensino sec. superior
85.8
1988/89
96.9
85.1
1989/90
98.2
86.5
1990/91
98.9
89.8
1991/92
92.5/95.7*
1992/93
92.0/97.0*
Este é o valor atingido se lhe acrescentarmos os novos "programas individuais" de
formação.
Quadro 5.11.
Alunos no ensino secundário superior (local, regional e independente)
segundo o tipo de estudos que frequenta (1988-1992), na Suécia
Ano
(situação a 15 Set. de cada ano)
1989
1990
1991
49.0
49.1
48.3
1992
(15 de
Outubro)
45.1
4.6
4.5
4.6
4.4
29.0
26.8
25.4
19.8
5.0
7.9
10.1
9.0
-
-
-
8.6
Tipo de estudos
Cursos de 3 - 4 anos
(teóricos)
Cursos de 2 anos
(teóricos)
Cursos de 2anos
(profissionais)
Cursos de 3 anos
(profissionais)
Programas Individuais
Cursos especiais:
- de um período
- entre um período e um ano
- um ano e mais
0.3
0.3
0.3
0.3
1.4
10.7
1.3
10.1
1.2
10.1
1.1
11.7
TOTAL
100
100
100
100
450
Fonte: Ministry of Education and Science, 1992
451
Figura 5.13.
Distribuição dos alunos do 1º ano do ensino secundário superior, na
Suécia (Outubro de 1993)
Programas
Profissionais
Outros
e
Programas conducentes
a estudos superiores
Programas
Ciências Nat.
Programas de
individuais
Artes
Ciências Soc.
44.9%
Programas
Especiais
11.4%
38,7%
4.0%
1.0%
Universo de 103.844 alunos candidatos
Escola Unificada ( 7 -15 anos)
Fonte: Ministério Sueco da Educação e dos Assuntos Culturais
Entre as novas iniciativas de formação destacam-se os programas de
aprendizagem, o "programa follow-up", o programa" youth opportunities" e o
"youth teams".
Os
parceiros
sociais
participaram activamente
no
desenho
destas
alternativas de formação, nomeadamente através do “National Labour Market
Board” que orienta a formação técnica e profissional relacionada com os
452
locais de trabalho.
Enquanto política de combate ao desemprego juvenil este tipo de medidas
de política revelou-se eficiente: o desemprego diminuiu fortemente no grupo
etário 16-19 anos. Os empregadores privados começaram a recrutar, cada
vez mais, jovens a partir dos 20 anos.
Em 1980, o sistema escolar tornou-se responsável pela formação de todos
os jovens até aos 18 anos de idade e, em 1991, essa responsabilidade
alargou-se para todos os jovens até aos 20 anos de idade, atribuindo-se aos
municípios a responsabilidade pelo acompanhamento individual de cada um
dos jovens que não se tenha candidatado ou não tenha sido admitido nos
cursos regulares do ensino secundário superior.
Criaram-se, assim, desde Julho de 1981, uma série de "oportunidades
jovens" que constituem uma forma alternativa de acesso ao emprego para
uma franja da população do grupo etário 16-19 anos. A ambição subjacente,
reconhece o Ministério de Educação, era a de dar um efectivo apoio social a
todos os jovens deste grupo etário (Ministry of Education and Science,
1992:89).
Se é verdade que o ensino secundário superior nunca se incluiu na
escolaridade obrigatória, tornou-se obrigatório para os municípios, primeiro
até aos 18 anos e agora até aos 20, assegurar o direito de todos os jovens
de acesso ao ensino superior ou a uma formação equivalente ainda que
mais articulada com o exercício profissional concreto.
A difícil integração
Entretanto, a tão desejada e prosseguida criação da nova escola secundária
superior integrada encontrava resistências diversas. O próprio Ministério da
Educação e da Ciência assinala, em relatório oficial para a OCDE, algumas
453
dessas resistências.
Em primeiro lugar, constata-se que permaneceu a estrutura anterior de
diferenciação entre os três tipos de escola: o liceu e os seus cursos de três
anos, preparatórios para a universidade, as "escolas de continuação" e os
seus cursos de dois anos e as escolas profissionais, também com os cursos
de dois anos. Os diferentes padrões de recrutamento quer de alunos quer de
professores e os diferentes estatutos sociais das escolas permanaceram
inalterados.
Por outro lado, assinala-se que não houve sucesso na tentativa de diminuir a
conexão entre a origem social e o “background” educacional, por um lado, e
a escolha da via de estudos do ensino secundário superior, por outro. Dos
jovens que entram nos programas preparatórios para o acesso à
universidade, no fim dos anos 80, cerca de dois-terços provêm de estratos
sociais elevados e médios e apenas um quinto vem das classes
trabalhadoras. No caso dos cursos profissionais passa-se o inverso.
Mantém-se, também, a tradicional distribuição por sexos. Os rapazes
escolhem maioritariamente cursos relacionados com empregos dominados
pelos
homens
e
de
orientação técnica e as raparigas escolhem
primeiramente cursos com uma orientação social e de serviços pessoais,
aqueles que preparam para empregos em que predominam as mulheres.
Igualmente se verifica que a perspectiva de aproximar os programas dos
cursos profissionais dos programas dos cursos que preparam para o
prosseguimento de estudos, cruzando os seus conteúdos e, sobretudo,
valorizando a educação recorrente como modo de atualizar conhecimentos e
competências ao longo de toda a vida adulta, também não resultou conforme
se previra.
454
Durante a década de 80 manteve-se esta tendência para a recusa da
integração da formação profissional no sistema escolar, enfatizando-se a
necessidade de incrementar o sistema de aprendizagem.
A reforma de 1991
Em 1984, o governo central constituiu um comité para examinar os aspectos
do sistema educativo mais relacionados com o ensino técnico e profissional.
Em Fevereiro de 1986 era produzido um relatório que foi presente ao
governo.
Este relatório continha um conjunto de recomendações de entre as quais se
sublinham as seguintes:
. todos os cursos do ensino técnico e profissional das escolas
secundárias superiores devem ter três anos de duração;
. os primeiros dois anos dos cursos devem continuar a ser de base
escolar, não obstante dever desenvolver-se 10% da carga horária em
aprendizagens no local de trabalho. Cerca de 60% do terceiro ano
deve basear-se no local de trabalho. Todas as opções e
especializações do ensino técnico profissional devem sustentar-se,
nos dois primeiros anos, em disciplinas de base comuns;
. é desejável um maior envolvimento dos monitores na formação no
local de trabalho, podendo vir a leccionar disciplinas da formação
escolar na própria escola secundária, em complemento da instrução
dada no local de trabalho;
. o currículo deve conter módulos de competências a adquirir, módulos
esses que possam ser reformulados sempre que necessário e
separadamente do conjunto do programa.
455
. a adopção de um certo módulo seja na escola seja no local de
trabalho deve ser uma decisão de nível local, dentro dos limites
definidos a nível nacional;
. pelo menos 50% do tempo consumido quando os estudantes estão
no local de trabalho deve ser usado obrigatoriamente para formação
dos professores em serviço;
. devem criar-se novos grupos curriculares permanentes, que incluam
representantes do sector do emprego, que devem manter uma
supervisão da evolução do mundo do trabalho, assinalando qualquer
necessidade de mudança no ensino profissional.
Houve
uma
reacção
genericamente
positiva
em
relação
a
estas
recomendações e o governo expressou o seu acordo relativamente a boa
parte delas.
Segundo Young (1993) esta reforma do ensino secundário surgiu na Suécia
sobretudo por duas razões: porque os alunos diplomados pelos cursos
profissionais das escolas secundárias tinham dificuldade em encontrar
empregos, dado que os empregadores frequentemente davam preferência,
nas novas admissões, aos estudantes oriundos dos cursos do ensino geral
e, em segundo lugar, porque aqueles mesmos alunos dos cursos
profissionais eram excluídos frequentemente do acesso ao ensino superior.
Para o próprio Ministério da Educação, a reforma do ensino secundário
superior justifica-se tanto pela necessidade de assegurar a todos os jovens
um lugar numa escola secundária superior uma vez que "o mercado de
trabalho dificilmente terá lugar para os jovens abaixo dos 18 anos", como
pela indispensabilidade em oferecer uma formação de banda mais larga,
contrariando a tendência anterior para a especialização e oferecendo, em
456
alternativa, um "grau considerável de flexibilidade" (Swedish Ministry of
Education and Science, 1994:18).
Uma Lei de Junho de 1991 veio consagrar esta reforma do ensino
secundário superior e o princípio de que todos os municípios têm a
responsabilidade de oferecer aos seus habitantes, após a escolaridade
obrigatória de nove anos e entre os 16 e 19 anos de idade, uma
oportunidade
de
ensino
secundário
superior.
Os
jovens
têm
o
correspondente direito a esta educação e o acesso garantido a uma escola
secundária superior, até à primavera do ano em que prefazem 20 anos. Os
novos currículos e programas entraram em vigor no ano lectivo de 1993/94.
Para o Ministério da Educação e Ciência "estas escolas devem incutir nos
seus estudantes uma preparação para um mundo do trabalho em mutação,
para estudos superiores, assim como para a vida adulta, seja como
cidadãos, seja como pessoas responsáveis por modelar a sua própria
vida"(Ministry of Education and Science, 1993:3). O Ministério da Educação
e Ciência da Suécia sustenta a pertinência desta reforma em vários
postulados: (a) a exigência dos parceiros sociais, que reclemaram a
extensão de dois para três anos dos programas de formação profissional, de
modo a igualar a duração de todos os cursos regulares; (b) o reforço da
preparação profissional, pela articulação entre a escola e o mundo do
trabalho e o reforço da preparação geral introduzindo, p. ex., Inglês.
Matemática e Educação Cívica como disciplinas obrigatórias para todos; (c)
a necesidade de todos os cursos de três anos concederem a habilitação
geral de acesso ao ensino superior; (d) a necessidade de racionalizar a
oferta de formação a este nível, limitando o número de cursos e definindo um
“core curriculum” comum a todos os cursos e um sistema de especialização
gradual; (e) o aumento da diversidade de configurações na medida em que
os cursos devem ser definidos com a participação dos municípios e através
de um processo de verificação das opções individuais dos jovens; (f) os
457
jovens devem poder participar activamente na formulação do seu próprio
percurso escolar fazendo intervir as suas necessidades e os seus desejos
pessoais.
Assim, todas as escolas secundárias de segundo grau passarão a oferecer
cursos de três anos, em que o primeiro é comum e os dois últimos podem
dirigir-se a ramos específicos dentro da respectiva área de formação. De
cerca de 500 cursos especializados distribuídos por 25 áreas de formação
passa-se, agora, para 16 cursos/programas de base, 14 de tipo profissional
e 2 mais aticulados com a prepação para o prosseguimento de estudos. O
terceiro ano dos cursos profissionais poderá ser dirigido preferencialmente
tanto para a progressão de estudos superiores como para o acesso imediato
ao mercado de emprego.
Esta reforma, em aparente contradição, introduz, deste modo, um conjunto
de programas nacionais mas, ao mesmo tempo, desencadeia a emergência
de programas especialmente "desenhados" pelas escolas, de programas
individuais e de vários programas de formação em aprendizagem.
Os novos cursos secundários de três anos começaram a ser aplicados em
1992/93. Ao mesmo tempo, aos jovens que tinham completado um curso de
dois anos de tipo profissional foi dada a oportunidade de permanecerem um
terceiro ano na escola. O mesmo aconteceu em 1993/94 e 1994/95. O
Ministério da Educação justifica esta medida como um esforço para aliviar o
muito
elevado
desemprego
juvenil
e
igualmente
para
reforçar
as
oportunidades dos jovens para ganhar um lugar no mercado de trabalho
(Swedish Ministry of Education and Science, 1994:20). Uma lei de Julho de
1995 consubstancia o conjunto das alterações em curso no ensino
secundário superior da Suécia. O acesso a este nível ficará concidicionado,
a partir de 1998/1999, à passagem num exame em sueco, inglês e
matemática.
458
Como se referiu, o primeiro ano é comum e, na generalidade dos cursos, o
segundo subdivide-se em ramos (ver quadro 5.12.). Admite-se ainda a
existência de "ramos locais" além dos aprovados a nível nacional.
Quadro 5.12.
Novas áreas de formação/programas nacionais de ensino secundário superior na Suécia
. Recreação infantil (integrado)
. Hotelaria, Restauração e Catering
Ramos:
. Construção
Ramos:
Construções Metálicas
Construção Civil
Pintura e obras
. Indústria
Ramos:
. Engenharia Eléctrica
Ramos:
Automação
Electrónica
Instalações Eléctricas
. Alimentação
Ramos:
. Energia
Ramos:
. Artes
Ramos:
Energia
Engenharia Naval
Aquecimento, ventiação
pichelaria
Dança e Teatro
Arte e Design
Música
. Engenharia Auto
Ramos:
Engenharia aeronaval
Engenharia auto
Transporte e Equipamento
e
. Media
Ramos:
Hotelaria
Restauração
Catering
Indústria
Processos Industriuais
Textil, Vestuário
Trabalho em Madeira
Embalagem e pastelaria
Refeições frescas e cozinhadas
Informação e publicidade
"Graphic Media"
. Uso dos Recursos Naturais (integrado)
. Ciências Naturais
Ramos:
Ciências Naturais
Tecnologias
. Cuidados de Saúde
Ramos:
Cuidados de Saúde
Enfermagem dentária
. Comércio e Administração (integrado)
. Artesanato
. Ciências Sociais
Ramos:
Economia
Humanidades
459
(múltiplos ramos; assenta na formação em
posto de trabalho, no 2º e 3º anos)
Fonte: Swedish Ministry of Education and Science, 1994
Ciências Sociais
460
Os programas estão divididos em unidades. Uma unidade (course) pode
consistir num assunto, numa parte de um assunto ou em partes de vários
assuntos. Uma unidade compreende, pelo menos, 30 horas de leccionação.
Para cada unidade há um plano que descreve o propósito da unidade, o seu
carácter e estrutura, bem com os níveis de desenvolvimento que se espera
que o aluno alcance. Os planos da unidade são acompanhados de critérios
graduados que estabelecem o que é que os alunos devem saber para obter
a passagem e a passagem com distinção. Além das unidades nacionais, há
unidades locais que são adoptadas após uma decisão do Conselho Local de
Educação.
Para o Ministério de Educação e Ciência este sistema de unidades de ensino
compreende várias vantagens, a saber: aumenta a flexibilidade, permitindo a
cada aluno e às autoridades locais construir percursos específicos; aumenta
as possibilidades de orientação profissional dos cursos e dos alunos; permite
aos alunos controlar o ritmo de progressão que pretendem empreender aos
seus estudos (Swedish Ministry of Education and Science, 1994:19).
Paralelamente aos programas nacionais existem "programas individuais"
destinados aos jovens com menos de 20 anos e que, por qualquer razão,
não estudam. Estes programas têm em vista geralmente uma reintegração
do jovem no ensino secundário superior.
Cada um dos 16 programas nacionais desagrega-se em cinco componentes:
(a) um "core curriculum" composto por Língua Materna, Inglês, Matemática,
Educação Cívica, Desporto e Saúde, Ciências, Religião e Artes. Esta
componente comporta um mínimo de 680 horas: (b) uma componente
específica que varia conforme a área de estudos; (c) uma componente de
opções individuais constituída por 190 horas, em qualquer programa; (d)
uma componente de "adições locais e de assuntos relacionados com
práticas", de 100-130 horas, na maioria dos programas/cursos; (e) uma
461
componente residual e obrigatória de apenas 30 horas, destinada a projectos
especiais.
Nesta base qualquer jovem pode, em princípio, sustentar o seu percurso de
formação, orientando-o a seu modo, dentro dos limites genéricos
estabelecidos a nível nacional. Por outro lado, o governo e o Parlamento
pretendem assegurar que um conjunto de objectivos e de metas é atingido,
ou seja, que se verifica sempre a aquisição de um certo nível de
competências e de conhecimentos, estabelecendo, para tal, padrões de
referência.
O governo propôs-se igualmente incrementar um programa de formação em
novos cursos de aprendizagem, de três anos de duração. Estes cursos
compreendem
uma
componente
de
formação
organizada
pelos
empregadores e uma componente de formação escolar baseada na Língua
Materna, Inglês, Educação Cívica e Matemática.
Young (1993) considera que é possível que emerja um padrão de formação
em que os programas baseados no trabalho, originariamente concebidos
como a via preferencial de ensino profissional para os artesãos, se
transformem em programas residuais para os 10-15% de alunos que obtêm
fracos resultados escolares e que se encontram com dificuldades em de
aceder a uma formação qualificante a tempo-inteiro.
A revalorização da aprendizagem como via alternativa de formação, é ainda
assinalada por Rault (1994), que sublinha que as empresas desempenham
um papel preponderante neste processo e que, embora se mantenha a
formação em meio escolar, se formaliza um contrato de aprendizagem entre
o aluno e a empresa.
Globalmente, e na sequência da reforma de 1991, parece estar a assistir-se
a um aumento da procura dos cursos profissionais. Em 1991, cerca de 53%
462
dos jovens prosseguia os cursos gerais (de 2 e 3 anos) e 47% seguia os
cursos profissionais (também de 2 e 3 anos, embora a maioria fosse de 2
anos). Em 1994, a repartição da frequência entre cursos gerais de 3 anos e
cursos profissionais de 3 anos (quase só de 3 anos) passou para 39% e
61%, respectivamente.
Descentralização
A
administração
educacional
municipal
está
na
primeira
linha
do
planeamento da educação e da formação. Os Conselhos Locais de
Educação, que integram os parceiros sociais, desenvolvem uma série de
iniciativas de formação e de formação-emprego, sedimentando não só a
escola secundária superior no território, mas também e sobretudo
desenvolvendo um sistema paralelo de vias elternativas de formação e de
acesso ao emprego para todos os jovens que terminam a sua escolaridade
obrigatória.
Para Christiane Rault (1994), a relativamente bem sucedida articulação entre
o sistema de formação e o emprego, que se traduz no baixo volume de
desemprego, deve-se também a uma eficiente política de informação e
orientação escolar e profissional dentro do sistema escolar.
Existem horas disponíveis no próprio currículo da escolaridade básica para
"informação
conselheiros,
sobre
as
carreiras".
devidamente
Intervêm
especializados,
nesta
que
acção
possuem
educativa
informação
actualizada obre a evolução do mercado de trabalho.
Entretanto, o “National Board of Education” e os 24 Conselhos Regionais de
Educação foram substituídos, em 1991, por uma autoridade responsável pela
avaliação, desenvolvimento do currículo e qualidade das escolas, a “National
Agency for Education”. Esta Agência supervisiona as actividades escolares
463
dos municípios e, se necessário, orienta processos de mudança, tendo em
vista colocar aquelas actividades em sintonia com os objectivos nacionais.
O Caso da Suiça
A Suiça, país federativo, em que os cantões regulam em grande parte a
oferta pública de educação, apresenta um sistema educativo que mais se
assemelha a um mosaico, no dizer dos examinadores da OCDE. No entanto,
em termos genéricos e nacionais, pode dizer-se que pouco mais de 90% dos
alunos que completam a escolaridade obrigatória prosseguem estudos nas
modalidades equivalentes ao ensino secundário (ver Figura 5.14.).
A população do ensino secundário distribui-se do seguinte modo (dados de
1991/92):
72%
frequenta
a
formação
profissional
no
sistema
de
aprendizagem; 19% frequenta os liceus / “gymnasium”; 5 % frequenta as
escolas secundárias de diploma; 3% frequenta as escolas de formação de
professores e 1% frequenta cursos práticos de formação profissional
elementar. Os jovens que optam pelas três modalidades de ensino geral
apenas prefazem 28% do conjunto dos estudantes.
Os índices de escolarização têm estado em crescimento contínuo. Em 1977,
estavam escolarizados 78% dos jovens de 16 anos e 45% dos jovens de 19
anos; em 1992 estes valores ascendem a 90% e a 56%, respectivamente.
464
Figura 5.14.
Organigrama do sistema educativo da Suiça
- ensino secundário -
Altos Estudos
(Universidade)
Liceus que
preparam para
Certificado de
Maturidade
Formação de
Professores
Escolas Superiores e
Formação Profissional Superior
Escolas de
formação de
professores
Aprendizagem
Escolas do
Grau
"Diploma"
e
Escolas Profissionais
Escolaridade Obrigatória
(até aos 14 - 15 anos)
O sistema de aprendizagem é a modalidade de formação que acolhe a maior
parte dos jovens que prosseguem os seus estudos após a escolaridade
básica. Trata-se de um modelo semelhante ao da Alemanha (“sistema dual”)
e que tem uma longa tradição, assente na aprendizagem profissional
realizada nas empresas.
465
Os formandos dedicam maior parte da semana ao trabalho na empresa,
onde são acompanhados por um monitor e frequentam uma escola
profissional, em geral dois dias por semana, onde é facultada uma formação
mais geral.
Os cursos podem ter entre dois e quatro anos de duração e distribuem-se
por cerca de 270 profissões. Os jovens que desejam frequentar o sistema de
aprendizagem realizam um contrato de aprendizagem com o monitor de
aprendizagem.
As escolas de ensino geral, “gymnasium”, oferecem cinco tipos de vias de
formação, todas elas conducentes ao diploma de maturidade, condição de
acesso ao ensino superior (Estudos Clássicos, Línguas Modernas e Latim,
Matemática e Ciências Naturais, Línguas Modernas e Economia). Para além
destas cinco vias, as que são reconhecidas em termos de confederação,
existem outras que são oferecidas pelos cantões e que conduzem a
certificados em domínios de formação como as artes ou os estudos
socioeducacionais.
A formação liceal é considerada bastante elitista e as escolas que a
oferecem são geralmente muito selectivas (Sauthier, 1995). É por esta
modalidade de ensino que se processa, em exlcusivo, o acesso à
universidade.
Há dois tipos de escolas do ensino geral: as de continuação de estudos, em
que se incluem secções de ensino básico e de ensino secundário, e aquelas
em que apenas é oferecido o ensino secundário de preparação para o
exame de maturidade.
O número de jovens que ficam aprovados no seu exame tem vindo a crescer,
mormente o número de raparigas. Em 1970 apenas 6.440 jovens obtinham o
466
certificado e, em 1994, este número subiu para 13.691.
As escolas secundárias do grau “diploma” foram criadas depois da II Grande
Guerra Mundial em certos cantões, como uma via alternativa aos liceus
tradicionais e com níveis de exigência considerados inferiores.
Após vários debates, durante os anos 70 e 80, a Confederação Suiça
chegou a um consenso acerca do lugar e do papel das Escolas Diploma.
Elas destinam-se a um conjunto de jovens cujo número não tem parado de
aumentar nos últimos vinte anos e responde aos requisitos seguintes: (a)
favorece a conclusão do ensino geral pós-obrigatório a uma parte da
população; (b) familiariza os estudantes com todos os aspectos do futuro
emprego (embora não ofereça formação profissional como tal); (c) vai de
encontro às necessidades dos jovens que não esperam seguir estudos num
liceu mas que necessitam de uma formação cultural alargada para aceder ao
ensino superior profissional não universitário (Sauthier, 1995:29).
Estas escolas oferecem cursos em áreas como gestão, turismo, áreas de
serviços sociais e educacionais e, em geral, dão acesso a escolas
superiores em áreas equivalentes, tais como áreas administrativas, sociais,
paramédicas, educacionais e artísticas. Os cursos comportam um tronco
comum de cultura geral e um conjunto de disciplinas préprofissionais.
Existem ainda escolas de ensino secundário especialmente vocacionadas
para a formação de professores do ensino básico.
As reformas dos anos 90
Foi desenvolvido recentemente um programa nacional de investigação,
conduzido por um grupo de peritos, presidido por Walo Hutmacher, sobre a
eficiência do sistema de formação profissional na Suiça, em que se sublinha
que “novos perfis de qualificação estão a emergir na força do trabalho...
467
Estes novos perfis de qualificação em todos os níveis da indústria não
requerem só saberes e competências técnicas. A ênfase está a ser também
crescentemente colocada em competências mais gerais e em capacidades
previamente consideradas como sendo requisitos adstritos apenas a postos
mais elevados: agilidade mental, flexibilidade na aplicação dos saberes,
capacidade
para
independência,
aprender,
capacidade
capacidade
para
tomar
para
pensar
iniciativas,
em abstracto,
tomar
decisões,
criatividade e capacidade para comunicar e para cooperar” (citado por
Sauthier, 1995:41).
Apesar da sua divisão cantonal e da sua estrutura política federativa, a Suiça
tem vindo a promover algumas reformas educativas, baseadas na articulação
formal entre os directores cantonais de instrução pública.
Dois processos de reforma se podem destacar. De um lado, o que reordenou
as condições de reconhecimento dos certificados de maturidade. Do outro, o
que visa estabelecer um “bacharelato profissional” como requisito de entrada
nos institutos superiores de tipo profissional, tanto para alunos oriundos do
sistema de aprendizagem, a quem é requerido mais um ano de ensino geral,
como aos alunos do ensino geral, a quem é requerido pelo menos um ano de
experiência prática na indústria.
Reforma do Certificado de Maturidade
Desde os anos 80 que havia em preparação uma reflexão em várias frentes
que conduziu ao reordenamento do ensino secundário liceal na Suiça e, em
particular, à revisão das condições de acesso ao “Certificado de
Maturidade”, que é o instrumento de selecção do acesso ao ensino superior
universitário.
Este reordenamento foi adoptado no início de 1995 e entrou em vigor a 1 de
468
Agosto de 1995. Nele se estabelece um só tipo de certificado, a duração dos
cursos que preparam à “maturidade” (doze anos de formação), a formação
do pessoal docente, os planos de estudo e as condições de reconhecimento
dos certificados.
Os planos de estudo passam a ser organizados em quatro grandes
domínios, articulados entre si: as sete disciplinas fundamentais e comuns, a
opção específica, a opção complementar e o trabalho final de “maturidade.
Os cursos têm em geral 36 horas de aulas por semana e 38 semanas por
ano e o número total de horas por curso varia de cantão para cantão, entre
3.000 e 4.000 horas.
A reforma da “Maturidade profissional” e do ensino profissional
Desde 1993, existe uma nova via de acesso ao certificado de maturidade - a
“maturidade profissional” - através da frequência das vias profissionais, o
que constitui uma via alternativa de aceso ao ensino superior. De facto,
vários caminhos podem conduzir ao tão ambicionado certificado: a
frequência do sistema de aprendizagem (3 ou 4 anos), incorporando um
progrma mais exigente de formação geral; a frequência de um ano
suplementar de formação geral numa escola a tempo inteiro ( ou 3 semestres
a tempo parcial), após a obtenção do Certificado Federal de Capacidade, no
fim da formação de base em regime de aprendizagem; a obtenção de um
certificado de maturidade liceal, seguida de um ano de formação profissional
em empresa.
Criaram-se vários tipos de maturidade profissional: técnica, comercial,
artística, artesanal, técnico-agrícola. A “maturidade profissional” dá acesso
às escolas
Especializadas
superiores
profissionais,
(Fachhochschulen),
que
as
novas
são
escolas superiores não-
universitárias, objecto de uma reforma também em curso.
Altas
Escolas
469
O ensino superior não universitário tem uma importante expressão na Suiça.
Por exemplo, em 1992/1993, 28.000 alunos iniciaram uma formação superior
deste tipo.
O elemento político mais relevante desta reforma, para além do
reordenamento das escolas superiores profissionais, é o facto de se colocar
pela primeira vez “em pé” de igualdade a formação profissional e o curso
liceal-universitário, duas fileiras de formação doravante consideradas como
equivalentes, ainda que diferentes (OFES, 1995).
As reformas da integração e da desespecialização
A estes casos, que correspondem a reformas gerais empreendidas no nível
do ensino secundário, podemos ainda adicionar outras situações nacionais
igualmente significativas, começando por uma situação fora do campo de
análise restrito escolhido. Na Alemanha, mesmo no seio do “sistema dual”,
procedeu-se, desde os anos oitenta, a uma significativa redução do número
de especialidades. Wolf (1995) assinala que o número de jovens que obtêm
o "Abitur" tem aumentado constantemente e Leclerq (1992:56) refere que a
percentagem
dos
efectivos
em
formação
no
sistema
alemão
de
aprendizagem desceu, entre 1960 e 1985 de 79 para 61%, fazendo notar
que esta oscilação relativa se ficou a dever sobretudo ao aumento da
procura de outras fileiras de ensino a tempo completo, normalmente
"destinadas a públicos em dificuldade". Adler, Dybowski e Schmidt (1993)
sublinham o facto, sem precedentes próximos e emblemático, de que, em
1990, o número de estudantes ultrapassou o número de aprendizes. Em
cinco anos, o número de estudantes a tempo inteiro aumentou perto de 20%,
enquanto que o de aprendizes continuou a diminuir. Estes autores recordam
também que, em 1985, no quadro de uma resolução do Instituto Federal da
470
Formação Profissional (BIBB), os representantes dos empregadores, dos
sindicatos e do governo federal se tinham pronunciado a favor da
equivalência entre a formação profissional e a formação geral, condição
prévia ao alargamento das possibilidades de acesso aos estudos superiores.
Jonen (1995) conclui, para o caso alemão, que se está perante uma
mudança de atitudes face à educação. Para tal refere que a proporção de
jovens titulares de um diploma de acesso ao ensino superior não parou de
crescer ao longo da década de oitenta e que as escolas onde mais aumenta
a frequência escolar são as escolas de ensino geral a tempo inteiro, o
Gymnasium e a Gesamtschule, havendo uma enorme descida na procura
das Hauptschule (Jonen,1995:75). Adler, Dybowski e Schmidt caracterizam
este mesmo movimento e sustentam a evidência da elevação do número de
jovens diplomados pelas formações gerais com alguns dados oficiais
relativos à ex-RFA e ao período entre 1960 e 1990, do modo que se segue:
Quadro 5.13
Elevação do nível de formação geral, entre 1960 e 1990,
dos que saem do sistema de ensino secundário
Fim da
"Hauptschul
e" (com ou
sem
certificado)
1960
73,0
1990
31.2
Exame do fim
"Arbitue" ou
"Fachhhochschurei
da
"Realschule"
fe"
(acesso ao ensino
(fim do 1º
ciclo
superior)
secundário)
18.2
8.8
35.0
33.8
Total
100
100
Fonte: Bundesminister (RFA). Citado em Adler et ali (1993)
Note-se ainda, como oportunamente assinala Wolf (1995:145), que esta
redução do número de jovens que acedem a um diploma de nível secundário
471
através do sistema de aprendizagem é concomitante com uma diversificação
e maior procura de diplomas de ensino superior de tipo técnico-profissional,
o que pode ser lido como um suave deslizamento do nível a que se obtêm as
qualificações profissionais iniciais.
Mike Hickox também faz notar que o novo nível 3-GNVQ do sistema britânico
de produção de qualificações (General National Vocational Qualification),
introduzido em Setembro de 1992 e estipulado como sendo o equivalente
profissional do "Level A", ao enfatizar as competências nucleares da literacia
e da "numeracy", revela "algum sinal deste processo que ocorre,
actualmente,
de
aproximação
com
o
ensino
académico
existente"
(1995:160).
Refira-se ainda que, em Portugal, se promoveu também a uma reforma
educativa que procedeu a uma alteração do ensino secundário superior em
todos as suas modalidades, cujos contornos foram definidos em 1989 e
aplicados generalizadamente em 1993. O Ministério da Educação afirma ter
empreendido o "reordenamento do ensino pós-obrigatório" e atribui aos
diferentes percursos uma equivalência global, facultando aos diferentes tipos
de ensino e diplomas - ensino geral, ensino tecnológico e ensino
profissional- o acesso ao ensino superior. Todos os tipos de cursos
passaram a conter três componentes de formação-sociocultural ou geral,
científica e técnica-, tendo em vista facultar a todos os cidadãos "sólidas
bases científicas e técnicas para sobre elas construirem, ao longo da sua
vida profissional novas e contínuas aprendizagens" e assegurar a
permeabilidade entre as modalidades (Ministério da Educação/GETAP,
1993:27 e 29). O Quadro 5.14 dá conta da nova matriz comum aos vários
percursos e cursos do ensino e da formação pós-obrigatórios (Azevedo,
1994:81).
A componente de formação geral dos cursos tecnológicos das escolas
472
secundárias, entre a reforma de 1983 e a reforma de 1989, passou a ter o
dobro do peso (de 16% passou para 34%) e as especializações técnicas
reduziram-se, neste mesmo intervalo de anos, de trinta e três para onze.
473
Quadro 5.14.
Matriz comum aos percursos de formação sistemática pós-obrigatória
em Portugal (1992)
COMPONENTES DA FORMAÇÃO
(% da carga horária total)
Características
Percursos
ENSINO SECUNDÁRIO
A. Cursos Gerais (4)
B. Cursos Tecnológicos
(11)
Escolarida Duração
de/
Anos/Hora
Acesso
s
9º ano
9º ano
Geral ou
sóciocultural
3 anos
(3.270hora
s)
3 anos
(3.270hora
s)
34
Específic
a
ou
científica
45
Técnica ou
Tecnl.
(teórica e
prática)
21
34
30
36
ESCOLAS
PROFISSIONAIS
9º ano
3 anos
(3.600hora
s
25
25
50
APRENDIZAGEM
(Nível 3 - CE)
9º ano
3 a 4 anos
(4.800 Horas
em média)
19
19
62
(com prática no
posto
de
trabalho)
Notas:
1 - O nível de que se fala é um nível de qualificação profissional, definido no âmbito da C.E.
(decisão 85/386/EEC) e que corresponde aos técnicos intermédios.
2 - No regime de Aprendizagem, o peso da componente técnica inclui a “prática simulada no
posto de trabalho” pois este constitui um elementos característico intrínseco deste modelo
de formação.
Ainda em Itália, em 1992, a Comissão Brocca propunha o desaparecimento
da distinção entre Liceus e Institutos Técnicos e o consequente desenho de
um biénio de base comum, seguido de um triénio mais diferenciado, mas
onde deveria ocorrer uma fusão das especialidades em cerca de dezassete
áreas de formação, de modo a superar a ruptura entre disciplinas
humanísticas e científicas (Rico, 1995). Além de se aconselhar o adiamento
474
das especializações para os 18 anos, recomenda-se que qualquer destas
formações profissionais iniciais sejam polivalentes e favoreçam a aquisição
de uma sólida base formativa científico-tecnica.
Finalmente, refiram-se também os casos do Japão e dos EUA, países com
uma incontestada centralidade na economia mundial, com taxas de
escolarização dos jovens de 16-19 anos muito elevadas, 92% e 95%,
respectivamente. Nestes países, a grande maioria destes jovens estão
inscritos no ensino secundário de tipo geral, uma vez que o ensino técnico e
a formação profissional têm sido sucessivamente remetidos para o ensino
pós-secundário e para as empresas.
Uma acentuada desespecialização nos anos 90
Uma primeira tendência que inequivocamente atravessa estas medidas de
política e marca uma nova fase na história do ensino e da formação de nível
secundário é a da integração entre cursos e entre percursos escolares, até
então diferenciados, a construção de novos troncos comuns de formação,
predominantemente situados nos primeiros anos dos cursos e a sua
desespecialização, ou seja, a redução do número de especializações
profissionais a que conduziam os cursos de teor tecnológico e profissional.
O quadro 5.15. dá conta, de forma sintética e clara, do fenómeno de
desespecialização que ocorre no ensino secundário, mormente nas suas
modalidades escolares de ensino técnico e de formação profissional. Neste
quadro não se dá conta, porém, de situações em que se tem vindo a reforçar
o leque de especializações em certas modalidades de formação técnica e
profissional inicial de nível secundário, especializações estas inscritas por
475
vezes em novas matrizes curriculares, oriundas igualmente de reformas
recentes, como no caso da Espanha e de Portugal37. Importa sinalizar que,
em alguns países, mesmo quando se verifica uma desespecialização
acentuada nos percursos situados no âmbito escolar tradicional, ocorre por
vezes uma especialização, situada, agora, fora deste âmbito específico, seja
em outras modalidades de ensino e formação profissional seja nas iniciativas
de formação-emprego.
37 No caso português, as escolas profissionais vieram aumentar o leque de especializações, ao mesmo tempo que elas
se reduziam no ensino secundário regular. No entanto, quer o currículo do ensino secundário quer o currículo das
escolas profissionais se inscrevem numa nova matriz comum de objectivos de formação, de componentes de formação e
até de disciplinas, no caso da formação “geral”, conforme se explicitou no Quadro 5.14.
476
QUADRO 5.15.
Desespecialização no Ensino Técnico e Profissional na Europa (1)
País
(ano nuclear da
reforma)
Nº de especializações
antes
das reformas mais
recentes
Nº de novas áreas de
formação e de
especializações
Dinamarca, 1990
300 (~)
85 (cursos de base. Há
uma
especialização
progressiva)
Finlândia, 1991-1999
600 (~)
(no início dos anos 80)
26 (cursos de base. Há
uma
espe-cialização
progressiva que pode
chegar a 157 domínios
específicos)
França, 1992
7 (ensino geral)
16 (ensino tecnológico)
3 (ensino geral)
4 (ensino tecnológico)
(2)
150
Itália, 1992
18 cursos
109
Noruega, 1994
Suécia, 1991
13 cursos (comporta um
sistema de progressiva
especialização)
500 (~)
16 cursos de base
(1) Nos casos da Espanha, Holanda e Suíça a integração processa-se por outras vias. Em
Espanha o número de especializações da nova formação profissional aumenta.
(2)Foi entretanto criado o Bac Profissional (1985) que em 1993 se organiza em 32
especializações.
A principal dinâmica que acompanha este processo mais ou menos
acelerado e aprofundado de redução das especializações, neste nível de
ensino e de formação e nestes países, é a da integração curricular. Esta
percorre diversos caminhos e gradações conforme os contextos sociais
nacionais e as suas próprias histórias educacionais. Se em alguns casos a
477
integração se pretende levar até à criação de um só tipo de escola
secundária, como aconteceu na Suécia, as mais das vezes ela traduz-se por
um certo modelo de "convergência subestrutural" (Kämäräinen,1995), em
que permanecem lado-a-lado os vários percursos e vários tipos de
instituições de ensino e de formação e se integram apenas componentes dos
currículos. Este processo estende-se por um vasto campo de possibilidades,
desde a duração dos cursos, à organização dos currículos em componentes
idênticas para todos os percursos, até à eventualidade da frequência de
mais do que um tipo de escola para realizar um só curso do ensino
secundário. Mas um dos campos onde a integração é mais evidente e
recente é na aproximação entre os vários modelos de ensino e de formação,
escolar, dual e não-formal, que se interpenetram por força do recurso que a
eles se vêem forçados a fazer, com carácter de permanência, a generalidade
dos governos europeus.
A diversidade de vias que o movimento desespecializador e integrador
percorre requer um esforço de sistematização, tendo em vista proceder ao
seu questionamento mais rigoroso e profundo. Consideramos que estamos
diante de dois tipos principais de estratégias de integração, retomando a
tipologia enunciada no capítulo 1 e as contribuições de Kämäräinen (1995 e
1996).
Uma primeira visa a integração estrutural entre as modalidades e as
instituições de ensino geral e de formação técnica e profissional, tendo em
vista vir a oferecer aos jovens do grupo etário 16-18/19 anos um currículo o
mais possível unificado, combinando formação teórica e prática, formação
académica e formação profissional. Esta estratégia também se insere no
esforço político de estabelecer a paridade entre percursos formativos de
cariz mais acentuadamente profissionais e mais acentuadamente gerais e
académicos.
478
Refira-se que a unificação que se estabalece neste tipo de políticas de
educação está longe de se traduzir na proposição da frequência de um
currículo único, um currículo geral e comum para o ensino secundário.
Sendo verdade que se coloca cada vez mais ênfase na oferta de um "core
curriculum" geral e comum, deixa-se, por outro lado, à livre escolha de cada
jovem a construção de percursos formativos individuais com base nas
restantes componentes curriculares, de base mais opcional. Se a integração
é evidente e inequivocamente aumenta, a livre escolha individual e a
flexibilidade curricular também. Como vimos, a integração estrutural tem sido
ténue, no palco europeu, apesar das tentativas já realizadas no norte da
Europa.
Uma segunda estratégia, de que falamos no primeiro capítulo, reúne um
conjunto vasto de medidas que consideramos de integração subestrutural,
uma vez que se deixa de lado, pelo menos por agora, a integração entre
instituições de ensino e de formação, habitualmente com histórias bem
diversas. O núcleo desta estratégia é a quebra de barreiras e a aproximação
entre vias até agora diferenciadas e estanques, e os seus objectivos são,
regra geral, a procura de maior polivalência dos cursos, a criação de
sistemas de permeabilidade entre os diferentes percursos e a determinação
da paridade legal entre estes percursos.
Entre o vasto leque de medidas deste tipo destacamos cinco mais
importantes, três das quais com incidência curricular e as restantes de
carácter mais geral. Com maior incidência curricular:
a) estabelecimento de perfis de formação com uma estrutura comum de
componentes (formação geral, formação científica, formação prática, área
opcional e formação em atelier, etc.) para os vários percursos existentes nos
479
vários tipos de escolas e centros de formação, que todavia permanecem
institucionalmente separados;
b) uma integração curricular mais limitada do que a anterior, mas igualmente
muito significativa, seja devido à adopção de uma estrutura modular para
todas as disciplinas de todos os percursos ou de uma parte deles seja pela
criação de uma panóplia de opções nos diferentes cursos e percursos, tendo
em vista nomeadamente facilitar as pontes entre eles;
c) inclusão de novos conteúdos disciplinares e revisão do número de anos
de duração nos cursos de formação técnica e profissional, de modo a alargar
os seus objectivos e a aproximar estes cursos dos das tradicionais vias de
formação geral académica.
A nível mais geral:
d) estabelecimento de novas regras tanto de equivalência legal entre
diplomas obtidos por diferentes vias de ensino e de formação, como de
acesso a cursos de ensino pós-secundário e superior, abrindo o leque de
oportunidades aos diplomados pelo ensino técnico e pela formação
profissional;
e) desenvolvimento (geralmente ainda experimental) de mecanismos de
cooperação inter-institucional entre diferentes instituições de ensino e de
formação,
flexibilizando
os percursos individuais e aumentando as
possibilidades de escolha dos jovens, que chegam a poder frequentar mais
do que um estabelecimento de ensino e de formação para realizar apenas
um curso do ensino secundário.
A tendência desespecializadora e “generalizadora” tem sido também
constatada por vários autores, que a configuram como um importante e
comum movimento das políticas educativas na Europa. Assim, se Williams
480
(1994) assinala uma aproximação cada vez maior entre formação geral e
formação profissional, Keeves (1986), no seu trabalho para o Bureau
International de l´Éducation sobre os modelos de escolaridade pósobrigatória, regista a tendência para uma "maior flexibilidade" e para a
"aquisição de um maior número de competências, mais do que para uma
orientação escolar ou profissional específica".
Boaventura Sousa Santos (1989) sublinha que, num quadro de novo
questionamento da dicotomia educação-trabalho, a mutação constante de
perfis profissionais tem vindo a viabilizar a recuperação do valor da
educação geral e da formação cultural de tipo humanista. Assiste-se, assim,
segundo este autor, a "um certo regresso ao generalismo", concebido como
uma "formação não-profissional para um desempenho pluriprofissionalizado"
(1989:23).
Outros autores, como Levin (1978) e Jallade (1988), constataram a
existência de um movimento de "generalização" do ensino secundário
superior e associaram-no a um processo de transferência gradual da
especialização profissional para o ensino pós-secundário e para o ensino
superior. Os EUA e o Japão são apontados como os modelos mais coerentes
de desenvolvimento desta tendência, assinalando-se o seu papel de
percursores nesta matéria, nomeadamente para os países europeus,
mormente os de base escolar.
Leclercq e Rault (1992), num estudo sobre as formações pós-obrigatórias
em vários países assinalam o "generalismo crescente das formações
profissionais", ou seja, "a tendência cada vez mais forte para inscrever as
transformações necessárias dos cursos na perspectiva do seu alargamento
em direcção a uma maior generalidade" e "simultaneamente a tendência
para dar mais importância aos conhecimentos gerais"(1992:74). No primeiro
caso, estão processos recentes de redução do número de especializações
481
profissionais inscritas nas formações iniciais e, no que se refere à segunda
tendência para o reforço dos conhecimentos gerais, os autores apontam
quer casos em que se introduzem anos iniciais comuns a vários cursos e
tipos de cursos, como na Suécia, e casos em que apenas cresce o peso
relativo das disciplinas ditas de ensino geral, tais como Ciências Sociais,
Matemática, Língua Materna ou Línguas Estrangeiras.
Francesc Pedró (1992), após uma análise acerca da evolução dos sistemas
de formação técnica e profissional na Europa, conclui que, se houvesse que
destacar uma tendência comum nos currículos de formação profissional apesar da diversidade de especialidades, áreas e ocupações - essa seria "a
tendência para fomentar os conteúdos de educação geral naqueles níveis ou
ciclos da formação profissional que se articulam de algum modo com o
ensino obrigatório" (1992:111). Outra tendência é a que passa por agrupar
as inumeráveis especialidades com que conta o sistema de formação
profissional de cada país, em torno de alguns campos profissionais, eixos
comuns ou famílias de profissões. Este e outros autores espanhóis ( Garrido,
Pedró e Velloso, 1992) consideram que esta evolução deriva da pressão
social a favor de mais educação e durante mais tempo. A formação técnica e
profissional seria, assim, cada vez mais, um continuum, que partiria de uma
ampla base geral e comportaria especializações sucessivas e combinações
diversas com a formação geral.
Francesc Pedró (1995) assinala ainda, para o caso da Alemanha, o aumento
da procura dos cursos de formação profissional escolar a tempo completo e
a tendência crescente para a formalização ou escolarização dos sistemas de
formação profissional dual, o que relaciona, entre outros factores, sobretudo
com a necessidade de dar uma base tecnológica e científica mais sólida e
cada vez maior à formação profissional inicial, mesmo que a sua oferta se
centre nas empresas.
482
Também Papadopoulos (1994), no seu estudo da evolução da reflexão sobre
as políticas de educação no seio da OCDE, conclui que a tendência mais
recente, no início dos anos 90, vai no sentido de os países construirem
sistemas de ensino que privilegiam uma "formação geral inicial sólida e
completa" e uma "larga base de competências". O autor assinala também
que uma das linhas de força dos debates da Conferência Intergovernamental
de 1989 consistiu na constatação da necessidade de se examinar o
conteúdo e a estrutura dos estudos do segundo ciclo do ensino secundário,
a fim de melhor equilibrar a fileira geral e as fileiras profissionais e técnicas e
transferir progressivamente para o posto de trabalho as formações que
visem
o
desenvolvimento
de
competências
específicas
ligadas
às
profissões(1994:199). Aliás, a OCDE vinha, desde há muito, propondo o
investimento preferencial das formações técnicas e profissionais iniciais no
fomento de "competências gerais e transferíveis", face a um contexto
económico marcado por mudanças "sem precedentes e imprevisíveis".
Buechtemann e Solof (1995), depois de salientarem o facto de alguns
países, como a França dos anos oitenta, terem desenvolvido políticas
estatais de reforço da profissionalização dos estudos secundários e póssecundários, como resposta à penúria de competências profissionais nos
níveis intermédios da mão-de-obra, constatam a manutenção de estratégias
de recrutamento que continuam a valorizar os diplomas tradicionais, o que
tem constituído um sinal suficientemente claro para que os jovens, mesmo os
que optaram pelas vias profissionalizantes, prefiram prosseguir estudos em
direcção às licenciaturas tradicionais e às mais altas credenciais. Estes
comportamentos, sublinham, relacionam-se bem com a forte estima social
dada ao ensino geral e tornam visíveis os limites das reformas do ensino
para transformar as estruturas do mercado de emprego e os sistemas de
valores sociais (1995:14).
Finalmente, J.L.Garcia Garrido além de constatar que "independentemente
483
das fórmulas institucionais particulares, a tendência geral é a de uma cada
vez maior compenetração entre a formação profissional e a educação
considerada
no
seu
conjunto"
(1992:220),
conclui
que
os
países
industrializados tardaram muito e gastaram enormes recursos até chegarem
à simples constatação de que uma boa formação profissional para amanhã
não será, seguramente, uma formação excessivamente especializada.
Além destes autores e segundo estimativas realizadas em 1995, com base
nos dados do EUROSTAT e da OCDE, na segunda metade dos anos oitenta
e no início dos anos noventa, acentuou-se a tendência para o aumento da
participação dos jovens nos programas de ensino e de formação pósobrigatória nos segmentos de ensino “geral” (Quadro 5.16.). No âmbito do
programa europeu Youthstart, ao analisar-se o período entre 1986 e 1990,
além de se constatar um crescimento generalizado da procura do ensino
secundário em quase todos os Estados-membros, sublinha-se que o
aumento da frequência do ensino técnico e profissional e da formação
profissional inicial é significativamente inferior ao que ocorre no ensino
“geral”. Esta preferência é aí explicada quer como uma consequência da
ruptura entre formação e trabalho, que nos últimos vinte anos se vem
acentuando, quer como um resultado da crescente tendência para a
progressiva retirada das empresas de toda a responsabilidade directa pela
formação profissional inicial dos jovens, devido aos processos contínuos de
reestruturação e como medida de reforço da sua competitividade.
Quadro 5.16.
Evolução da participação dos jovens de 16 e 17 anos no ensino e na formação
(% do grupo etário)
Anos
Alemanha
Bélgica
Dinamarca
Grécia
Espanha
França
Ensino e
comparados
Ensino geral
formação
Aumento total
1986/90
1986/91
1986/90
1988/90
1986/90
1986/91
+ 4.5
--- 1.5
+ 5.0
+ 3.5
---
- 4.5
--+ 2.5
+ 2.0
- 5.0
---
+ 0.0
+ 4.5
+ 1.0
+ 7.0
+ 3.0
+ 5.0
484
Holanda
Irlanda
Itália
Luxemburgo
Portugal
Reino Unido
1986/89
1986/90
1988/91
--1988/90
1987/90
+ 1.0
+ 9.5
+ 1.0
--+ 6.5
+ 4.0
+ 0.0
- 1.5
+ 5.0
--+ 2.0
+ 5.0
+ 1.0
+ 8.0
+ 6.0
--+ 8.5
+ 9.0
Fonte: Estimativas da Comissão Europeia, baseadas em dados do EUROSTAT e da OCDE.
485
Os dados mais recentes da OCDE e da Eurydice não são iguais, mas
conduzem-nos para uma tendência geral idêntica. Comparando os dados
dos anos noventa, verifica-se que permanece uma grande diversidade de
situações entre os vários países europeus, mas que a maioria se encaminha
para um reforço da frequência do ensino geral académico. O quadro 5.17, o
gráfico 5.15 e o quadro resumo 5.18 ilustram a evolução das frequências,
entre 1970 e 1994, e assinalam de modo inequívoco esta mais recente
tendência: a procura deste tipo de ensino cresce em nove países, estabiliza
no Reino Unido, na Áustria e na Holanda e diminui em quatro países, sendo
certo que em dois destes, Grécia e Portugal, a procura se situava e continua
a situar maioritariamente no ensino geral académico (68% e 76%,
respectivamente).38
38 Os dados inscritos no volume de 1997 do “Regards sur l’ éducation”, da OCDE revelam que, em 1995, os valores de
frequência do ensino “geral” aumentam, em relação a 1994, na Espanha, Finlândia,Grécia, Irlanda, Itália, Noruega,
Suécia e Suiça.
486
Quadro 5.17.
Evolução da distribuição das frequências segundo o tipo de ensino
secundário
(Tempo Inteiro + Tempo Parcial)
Países
Alemanha
Aústria
Bélgica
Dinarmarc
Espanha
Finlândia
França
Grécia
Holanda
Irlanda
Itália
Noruega
Portugal
Reino
Suécia
Suiça
Turquia
1982
Técnico
e
Geral
79.5
20.5
82.6
17.4
55.5
44.5
62.5
37.5
45.8
54.2
49.5
50.5
60.2
39.8
18.5
81.5
59.3
40.7
32.7
67.3
66.1
33.9
56.4
43.6
2.0
98.0
43.3
56.7
70.0
30.0
75.1
24.9
28.8
72.2
1992
Técnico
e
Geral
79.6
20.4
76.0
24.0
59.0
40.8
56.2
43.8
41.4
58.6
54.4
45.6
54.1
45.9
----70.1
29.9
----67.4
32.6
59.8
40.2
18.0
82.0
57.6
42.4
----73.2
26.8
43.5
56.5
Fonte: OCDE e Ministério de Educação, para o caso de Portugal.
1994(7)
Técnico e
Profission
Geral
77.5
22.5
77.8
22.2
67.7
32.3
54.1
45.9
40.9
59.1
53.6
46.4
52.5
47.5
33.4
66.6
70.2
29.8
23.1
76.9
73.1
26.9
58.4
41.6
21.5
78.5
57.7
42.3
63.4
36.6
70.2
29.8
41.4
58.6
487
Gráficos
488
gráficos
489
gráficos
490
Quadro 5.18.
Tendências da evolução do ensino secundário “geral, na Europa (anos 90).
Países
Estável
Descida
Alemanha
Aústria
Subida
X
X
Bélgica
X
Dinamarca
X
Espanha
X
Finlândia
X
França
X
Grécia
Holanda
X
X
Irlanda
X
Itália
X
Noruega
X
Portugal
Reino Unido
X
X
Suécia
X
Suíça
X
491
Além desta primeira tendência geral e bastante comum na recente evolução
do ensino secundário, é mister assinalar outras que são concomitantes e que
são igualmente comuns a vários países europeus:
(i) a persistência da tendência de longa duração para o aumento da duração
dos ciclos unificados de estudos e para o intrínseco prolongamento do ciclo
básico, comum e obrigatório, como aqui é destacado nos casos da Itália,
Espanha e Holanda, e ainda para o adiamento da idade em que o aluno tem
de proceder à realização de escolhas entre percursos alternativos de
formação;
(ii) a criação de novos sistemas de permeabilidade entre os diferentes
percursos de ensino e de formação, geral e profissional, através da
instalação de passadeiras de passagem entre cursos, embora com diferentes
graus de dificuldade no processo de transição. Entre os países que criaram
este sistema contam-se a Espanha e a França, embora com um elevado grau
de rigidez, a Dinamarca, a Suécia, a Holanda e a Finlândia, sendo este último
o que apresenta o maior grau de flexibilidade;
(iii) a criação de novos troncos comuns de formação, similares para todos os
percursos deste nível de ensino e de formação, geralmente com um ou dois anos
de duração, findos os quais se admite de novo uma especialização de percursos,
mais ou menos acentuada, conforme os países. Esta via reformista ficou patente
sobretudo nos casos da Holanda, Suiça, Suécia, Noruega, Dinamarca e
Finlândia;
(iv) a reestruturação dos planos de estudos deste nível de ensino e de
formação num modelo de várias componentes, a primeira das quais é o
conjunto das disciplinas gerais e comuns, seguida de uma componente
específica adstrita ao curso que se elege, uma componente opcional
individual e em, alguns casos, ainda uma componente de formação prática
492
em empresa, a ser composta por cada escola. No caso da Suécia e da Suiça
existe ainda uma componente de projecto individual ou de atelier, a ser
desenvolvida por cada aluno. A esta nova estrutura curricular, nas suas
componentes opcionais, e ainda à introdução de uma organização curricular
modular, é normalmente atribuído oficialmente o papel de reforço da
opcionalidade e da individualidade dos percursos escolares que os jovens
podem seguir. Além dos países já referidos, este propósito é acentuado
também nos casos da Finlândia, da Noruega, da França e da Itália;
(v)
verifica-se
que
os
parceiros
sociais,
com
destaque
para
os
empregadores, passam a ter em vários países uma intervenção directa mais
reforçada, seja no plano nacional seja no plano regional e local, na
construção dos planos de estudo deste nível de ensino e de formação. Esta
acção ora incide sobre todos os percursos de formação pós-obrigatória nos
casos em que os países optam por integrar os vários percursos, quebrando
as barreiras tradicionais entre o ensino geral e o ensino profissional e as
respectivas instituições de formação, ora se mantém ligada aos percursos
estritamente técnicos e profissionais. A presença dos parceiros sociais é
reforçada nos casos da França, Holanda, Dinamarca, Noruega, Finlândia,
Espanha e Itália. Esta tendência surge frequentemente associada a uma
descentralização da administração destes segmentos de ensino e de
formação e a uma maior autonomia dos estabelecimentos de ensino e de
formação, circunstância que, em maior ou menor grau, ocorre em todos os
casos em estudo;
(vi) a generalidade dos países, ao alargar a oferta de formação pósobrigatória, estabelecendo uma vasta palete de cursos e programas de
formação, adoptando e estabelecendo articulações entre os modelos
escolar, dual e não-formal, com o fim de acolher o maior número possível de
jovens do respectivo grupo etário, combina a integração entre modalidades
de ensino e formação com um reforço da diversificação interna ao nível das
493
opções e dos cursos;
(vii) em algumas das reformas em análise introduzem-se, nos planos de
estudo, períodos obrigatórios e mais ou menos longos destinados à
realização de experiências de trabalho. Estas destinam-se aos alunos que
pretendem obter um diploma técnico e profissional, e são reforçadas nos
casos da Itália, Espanha, Finlândia, Dinamarca, Suécia e França;
(viii) finalmente, vários são os países que acentuam no seu discurso
reformador o objectivo de imprimir maior flexibilidade ao ensino e à formação
a este nível. A flexibilidade é referida sob várias facetas: a possibilidade de
combinar disciplinas de diferentes tipos de cursos e até de escolas, como é o
caso mais extremo da Finlândia; a já referida permeabilidade entre os
percursos e os cursos; a necessidade de responder à diversidade dos
interesses e aptidões dos jovens, bem como às suas necessidades de
orientação, como se denota nos casos da Noruega, da Suécia e da França; a
necessidade de aproximar mais certas componentes terminais e opcionais
dos cursos das necessidades locais do sector produtivo, como se refere no
caso da Noruega; a possibilidade das escolas organizarem os seus cursos
de modo diferenciado, em função de um conjunto estabelecido de critérios,
como se salienta no caso da França.
Concluindo
Assim, retomando a leitura histórica do capítulo anterior e a investigação
deste capítulo, pode dizer-se que a evolução do ensino secundário na
Europa, na segunda metade do séc. XX, foi profundamente marcada por um
lastro ideológico, omnipresente e comum, que se traduziu sobretudo na
crença acerca das enormes virtualidades da educação e da formação para o
494
desenvolvimento
da
economia,
qualificando
os
recursos
humanos
necessários e reforçando a competitividade das empresas nacionais. O
técnico-funcionalismo e diversas variantes da teoria do capital humano
orientaram, como uma ideologia global, um espantoso crescimento da oferta
e da procura, nos últimos cinquenta anos.
Nos primeiros trinta, os chamados “trinta gloriosos”, a Europa ocidental viveu
um clima de optimismo, de expansão económica e de confiança social num
eficiente Estado de bem-estar, um ambiente de promessa e de esperança,
em que seria possível fazer chegar a todos os cidadãos benefícios sociais
fundamentais, entre os quais o da educação e da formação. Estas
expandiram-se continuamente e, de certo modo, irracionalmente, segundo o
entendimento de Grégoire (1967) e de Coombs (1985), acima expostos. As
políticas educativas tornaram-se preciosos instrumentos de promoção da
mobilidade social e da igualdade de oportunidades e os vários grupos
sociais tomaram a educação e a formação como meios fundamentais de
acesso a um estatuto e a um reconhecimento social. A procura escolar
cresceu, a duração da escolaridade obrigatório foi-se ampliando e parecia
evidente a capacidade dos sistemas educativos em preparar adequadamente
os recursos humanos necessários ao crescimento económico.
A crise económica dos anos setenta, com todo o cortejo de mutações sociais
que lhe estão associadas, viria a mudar substancialmente este clima cultural
dominante na Europa ocidental. Numa primeira fase, dominada ainda por
algum cepticismo e pela expectativa de uma retoma iminente, opta-se, em
geral, por manter e adaptar as políticas passadas. O desemprego cresce e
afecta particularmente os jovens, começam a ser mais notórios os
desajustamentos entre a educação/formação e a economia/emprego e tem
início um lento processo de crescimento da desconfiança social face às tão
apregoadas virtualidades da educação e da formação na mobilidade e na
democratização sociais. Nesta fase, desdobram-se as medidas de política
495
educativa, as reformas educativas, como suporte de políticas sociais mais
vastas, entre as quais avulta a necessidade de conter o desemprego juvenil
e de manter o clima social de optimismo associado ao desenvolvimento dos
sistemas educativos nacionais. Estes continuaram a acolher uma procura
que não parava de aumentar e diversificaram a sua oferta ao nível pósobrigatório, criando novas modalidades e novos percursos de ensino e de
formação, nomeadamente em áreas técnico-profissionais.
Assim se desenvolveram, na generalidade dos países, medidas de política
educativa de nível secundário que se apresentavam como capazes de servir
uma procura cada vez mais diversificada, medidas estas que funcionavam
também como instrumentos de substituição do não-funcionamento do
mercado do primeiro emprego. À míngua do funcionamento deste mercado
ampliou-se o espaço social do “mercado” do ensino e da formação. Esta
tendência manteve-se e até se ampliou na segunda fase, o período dos vinte
anos de reestruturação económica contínua.
Como deixámos amplamente referido e documentado, na segunda metade
dos anos oitenta e sobretudo nos anos noventa, foi-se instalando um clima
social muito diverso do que dominou o Ocidente no pós-guerra. A procura
social de educação e de formação não parou de crescer, tanto a nível
secundário, onde já a taxa de frequência ultrapassa os 90% em vários
países, como a nível superior. No entanto, trata-se de uma procura mais
desencantada, trespassada pela desconfiança crescente em relação ao valor
dos
diplomas
escolares
e
em
relação
ao
ajustamento
entre
educação/formação e economia/emprego, além de ser claramente mais
competitiva e dirigida à obtenção dos mais altos títulos escolares por parte
de um maior número. O desemprego estrutural persistente, a turbulência que
se expande nos perfis profissionais e nas profissões, a flexibilização das
relações de trabalho e a imprevisibilidade acerca da evolução de uma
economia dominada pelo liberalismo à escala mundial, são alguns dos
496
elementos que coligimos, em devido momento, para fundamentar a drástica
mudança de clima social entretanto operada.
É neste contexto, em que os Estados-nação atravessam crises profundas de
poder e de legitimidade, que surge a formulação de um novo mandato social
para a educação e a formação. Este mandato tem cariz mundial, apresentase sobretudo na sua faceta técnico-económica e é subsidiário de uma
retórica igualmente optimista acerca das virtualidades das mutações técnicoeconómicas em curso. Aos sistemas educativos será requerida, diante das
mutações técnicas constantes, mormente face à revolução das tecnologias
da informação e da comunicação, diante um novo modo de produção póstaylorista emergente e fortemente incorporador de recursos humanos
altamente qualificados, será requerida, dizíamos, a formação em torno de um
novo núcleo de competências, entre as quais pontuam uma sólida e
polivalente qualificação geral e de base e uma capacidade de adaptação
permanente a novas actividades e profissões. Esta retórica política,
liofolizada em torno do discurso técnico-económico, a sua verdadeira pedra
angular, é fortemente valorizadora da formação “geral”, entendida como
aquela que melhor promove em todos os cidadãos o desenvolvimento de
competências gerais e transferíveis.
Sucedem-se, um pouco por toda a Europa ocidental, reformas educativas
que têm por finalidade essencial responder a este novo mandato e que se
traduzem nomeadamente por uma série de medidas de desespecialização e
de integração curricular. Quando a aquisição de certas qualificações não se
mantém ligada à obtenção de um certo tipo de empregos, o "rationale"
histórico do ensino técnico e da formação profissional inicial sai
enfraquecido, como salienta Chisholm (1995), e quando os jovens alcançam
que
as
suas
qualificações
não
ligam
aos
empregos
esperados,
frequentemente optam por frequentar mais cursos, mais ligados às
modalidades conducentes à obtenção de altas credenciais, de modo
497
simultaneamente mais desencantado. Por outro lado, este movimento em
direcção ao ensino “geral” tem um lastro histórico, que ficou patenteado ao
longo deste capítulo e que está relacionado quer com a evolução recente da
economia quer com tendências de longa duração para o prolongamento do
ensino de massas e, concomitantemente, para a extensão das políticas de
unificação escolar que lhe estão habitualmente adstritas.
Continua a ser quase ilimitada a capacidade das referidas organizações
internacionais e dos governantes europeus em transfigurar os problemas
sociais, tanto os que enfrentam os jovens, como as empresas ou as
profissões, em problemas eminentemente educacionais. Estes fenómenos
sociais, entre os quais avulta um desemprego, persistente e imprevisto na
sua extensão e duração (ver Figura 5.1639) e a turbulência profissional, são
politicamente considerados como os grandes problemas educacionais, e as
políticas educativas tomam-nos como os principais critérios de renovação
curricular que norteam as reformas educativas, que se sucedem na
generalidade dos países, algumas delas ainda em curso na segunda metade
dos anos noventa.
39 Este gráfico está aqui incluído, no final do capítulo, porque contém a virtualidade de demonstrar os dois tempos em
que dividimos o meio século do pós-Guerra. Até meados dos anos setenta a curva tem um comportamento e após essa
data tem outro bem diferente. Quando as políticas educativas tomam como referente principal a evolução técnicoeconómica, amplia-se a força deste gráfico.
498
499
Esta leitura diacrónica permite-nos concluir também que a economia e as
suas sucessivas reestruturações tendem a ser sempre tomadas como o
principal referente para sustentar a evolução global das políticas de
educação e, particularmente, ao nível do ensino secundário. Estas variaram
necessariamente de país para país, em conformidade com contextos sociais
e históricos diversos. Mas, globalmente, retomando os conceitos de Martin
Trow (1978), o ensino secundário que, no pós-Guerra, era um ensino
propedêutico de elite, no fim do século passou a ser, pelo menos em todos
os países da União, um ensino predominantemente propedêutico de massas.
As mutações técnicas e económicas verificadas na segunda metade do
século XX, sobretudo após a década de setenta, e as suas enormes
repercussões sociais interferiram profundamente na descrição deste arco
evolutivo.
Finalmente, os vários modelos de organização do ensino secundário na
Europa, o escolar, o dual e o não-formal, tendem, no final deste século, a
constituir-se não já como soluções típicas e isoladas de um ou de um
conjunto de países, mas como uma panóplia de recursos de que cada
governo pode dispor para alargar a sua oferta nacional de educação e de
formação, tendo em vista reter o maior número possível de jovens fora do
acesso imediato ao mercado do primeiro emprego. Embora continue a haver
uma localização histórica dos modelos e cada um deles tenha, em geral,
predominância em cada um dos países, assiste-se igualmente a uma
contínua deslocalização daqueles modelos de ensino e de formação, como
tecnologias sociais úteis, produtos políticos disponíveis no mercado e bolsa
de recursos para a construção de novas soluções políticas.
As relações entre a educação e a economia, marcadas agora por um contexto de
incerteza e de imprevisibilidade, talvez estejam a um passo de (finalmente) se
processarem um quadro de correspondência nunca antes alcançado, apesar de
muito propagado, ao longo do Séc. XX. Estas e outras questões do mesmo tipo é
500
o que pretendemos discutir de seguida, num capítulo breve de problematização
e de releitura do problema de partida, empreendida que foi esta primeira
incursão teórica e de análise documental.
501
Capítulo 6
O neoprofissionalismo em questão
Realizada uma organização e uma identificação do campo de problemas que
volteia sobre o objecto da nossa investigação, percurso talvez longo e
integrador de ângulos de visão muito diversos, que passou pela definição de
uma base conceptual relativamente estável, por uma ancoragem no
património
teórico
disponível
e
aplicável
e por um imprescindível
enquadramento diacrónico, é tempo de se proceder a uma síntese deste
percurso, etapa que consideramos necessária e prévia à realização da
segunda fase da análise empírica.
Os actuais movimentos curriculares em direcção à desespecialização das
formações técnicas e profissionais da formação inicial e à integração
estrutural e subestrutural mais geral do ensino secundário, constituem
tendências que são agora interrogadas como manifestações sociohistóricas,
à luz do conjunto dos contributos teóricos já aqui mobilizados. Por fim,
revisitaremos as hipóteses inicialmente formuladas, tendo em vista proceder
à sua reformulação.
Ao conjunto das tendências recentes inscritas nas reformas do ensino
secundário de vários países da Europa e que acabamos de descrever,
vamos chamar neoprofissionalismo, retomando a identificação conceptual
feita inicialmente. Ele integra, assim, políticas de redução do volume de
especializações técnico-profissionais que eram contempladas a este nível,
um movimento de reforço da formação geral académica nos planos de
estudo, mormente através da instalação de troncos comuns de formação
para parte ou para todas as modalidades de ensino e de formação ao nível
secundário, a adopção de uma vasta e diversificada palete de cursos de
ensino e formação, cuja elasticidade vai desde os cursos liceais aos cursos
502
de
formação-emprego,
o
estabelecimento
de
novos
sistemas
de
equivalências entre percursos de ensino geral e de formação técnica e
profissional, a criação de passadeiras entre os percursos que se mantêm
diferenciados, o reforço curricular das componentes opcionais de escolha
individual, uma mais poderosa presença dos parceiros sociais na construção
da oferta formativa, com destaque para os empresários e o reforço das
componentes de prática de trabalho em empresa, no caso dos percursos de
índole técnico-profissional.
O neoprofissionalismo alimenta-se de um discurso optimista dominante, que
declara os benefícios da emergência de uma sociedade pós-industrial, a
sociedade da informação, e de um modo de produção pós-fordista, cenário
social apresentado como sendo requerente de mais elevadas e mais
polivalentes qualificações por parte de todos os cidadãos. Para actualizar a
função social do ensino e da formação ao nível secundário, os governos
atribuem-lhe o papel de desenvolver não só um leque mais alargado de
competências, como uma maior capacidade de adaptação e de mobilidade
nos contextos profissionais, através da assunção de um novo rosto, também
ele marcado pela flexibilidade, para fazer face à diversidade de interesses de
uma procura crescente, para responder às novas necessidades do mercado
de trabalho, em constante mutação, e para formar cidadãos mais críticos,
socialmente activos e criativos.
O neoprofissionalismo é tributário de uma retórica funcionalista generalista,
que ignora as segmentações
entre empresas e as segmentações do
mercado de emprego, em que impera uma economia de mercado
crescentemente globalizada e competitiva, em que o recurso ao saber
desempenha um papel cada vez mais central e em que uma nova
organização pós-taylorista do trabalho requer dos sistemas de ensino e de
formação inicial o fomento de novas e mais elevadas competências.
503
A leitura crítica do neoprofissionalismo deve começar por interrogar a sua
base ideológica, exactamente o seu nervo central e a sua força.
A ideologia neoprofissionalista é um consenso abstracto veiculado por um
leque muito diverso de actores sociais - empregadores, educadores,
investigadores, políticos, legisladores (Stasz, Kaganoff e Eden, 1994) -,
sustentado por uma retórica que deflui continuamente de organismos,
agências internacionais e redes internacionais de peritos, com ligação à
economia, à educação e ao desenvolvimento e é adoptado pelos decisores
políticos nacionais, a braços com crises de legitimidade, que o incorporam
como um discurso próprio, subsumido nas reformas educativas nacionais.
No caso do ensino secundário esta ideologia suporta a adopção de um
conjunto de medidas ao serviço do ajustamento funcionalista do sistema
educativo a três realidades sociais europeias: o crescimento do desemprego,
a universalização crescente da frequência do ensino secundário, por força
da explosão da sua procura e da sua oferta, e ainda o que se designa por
novas exigências em qualificações por parte do modelo emergente pósfordista de produção flexível.
Antes ainda de discutir cada um destes campos de ajustamento social do
sistema educativo, é forçoso constatar que existe, no plano político nacional,
uma base de legitimação bastante clara para as reformas do ensino
secundário. Mas isto não quer dizer que ela tenha de ser tomada pelo seu
valor facial, como prudentemente adverte Hickox (1995). Pode até suceder
que a retórica política adoptada no plano nacional derive mais de um
processo isomórfico com a retórica política internacional, quer sobre a
economia quer sobre a educação, do que da análise e da real necessidade
de enfrentar problemas nacionais, económicos ou educativos. Além disso, é
mister sublinhar que o neoprofissionalismo se traduz essencialmente por
reformas curriculares do ensino secundário, que o abarcam no todo ou em
parte, com predominância nítida para as modalidades de ensino técnico e de
504
formação profissional inicial. Em poucos casos este movimento deixa de ter
uma matriz de mandato legislativo, necessariamente promovido de cima para
baixo na hierarquia dos sistemas nacionais de educação e também
raramente deixa de revelar que se subsume em adaptações curriculares e
pedagógicas que não integram mudanças mais vastas e mais profundas da
organização escolar. De facto, se as mutações económicas e sociais são
céleres e generalizadas, elas poderão interrrogar não só a pertinência dos
planos de estudo e dos currículos, mas a globalidade da formulação social
do campo educativo.
O ajustamento face ao desemprego
Vejamos então por partes. O desemprego, mormente o que afecta o primeiro
emprego, impõe-se aos decisores políticos como um flagelo social que se
torna necessário combater. Como bem revela o gráfico que se apresentou no
termo do capítulo precedente, o desemprego nos países da OCDE não tem
cessado de aumentar e atingia, em 1994, 34 milhões de pessoas. Os
sistemas escolares nacionais constituem dispositivos privilegiadamente ao
dispor dos decisores políticos para serem mobilizados socialmente como
instrumentos
de
regulação
da
correspondência
entre
as
supostas
necessidades de mão-de-obra qualificada e a produção escolar de
qualificações.
Como
tecnologia
social
de
combate
ao
desemprego
juvenil,
o
neoprofissionalismo, com a sua panóplia de instrumentos e de programas de
ensino, formação e "formação-emprego", tem produzido um triplo efeito. Por
um lado, tem sido eficiente na sua capacidade de retenção dos jovens no
seio do sistema de ensino e de formação durante um tempo mais
prolongado. Por outro e por esta mesma via, tem igualmente contribuído para
adiar a entrada dos jovens no mercado de emprego e, finalmente, tem
505
facilitado a aquisição de leques de saberes e de saberes-fazer que, na hora
de integrar a "fila de espera" das colocações, se deverão vir a revelar de
uma utilidade ainda relativamente escassa, ao lado da primazia dada ao
sinal-diploma.
Apesar da sua eficiência, não é de esperar, no entanto, que as políticas
neoprofissonalistas resultem em diminuição drástica do desemprego juvenil,
pela simples razão de que é evidente o facto de que este não tem parado de
aumentar, ao mesmo tempo que elas se adoptam. O que se pode verificar,
isso sim, é a sua atenuação pelo efeito da contribuição directa do novo e
ampliado "mercado de formação", assim constituído, para alargar o efeito de
socialização juvenil e para travar uma progressão ainda mais galopante das
taxas de desemprego juvenil.
As
reformas
neoprofissionalistas,
no
entanto,
mormente
movimentos em ordem ao reforço da formação “geral”
enquanto
dos cidadãos, ao
aumento da opcionalidade individual e ao incremento da polivalência da
formação de base, são apresentadas e defendidas também como
potenciadoras de um desenvolvimento pessoal mais harmonioso e como
capazes de formentar o desenvolvimento de cidadãos mais críticos,
participativos e empreendedores. Importa, por isso, interrogar o problema
nas suas várias formulações, entre as quais está a política e retórica, uma
vez que estamos perante a análise de medidas de política com fluxos
causais e com repercussões sociais de enorme complexidade.
Assim, as reformas neoprofissionalistas do nível secundário, além de se
manterem no quadro histórico do tecnico-funcionalismo, devem ser
consideradas como um dos resultados da transfiguração do problema
socioeconómico do desemprego juvenil em medidas de política do campo
educativo, cujo objectivo é adiar, esconder e, em parte, resolver este mesmo
problema social do desemprego. O sistema educativo, ao substituir o nãofuncionamento do mercado do primeiro emprego pelo funcionamento de um
506
mais amplo mercado de ensino e de formação, socorrendo-se de uma vasta
panóplia de modelos e programas, actua assim como um ponto de apoio
muito funcional de uma alavanca social a que todos os governos europeus
recorrem. A generalidade dos actores sociais parace tomarem o que resulta
desta transfiguração como a base de sustentação do seu discurso e da sua
acção no campo educativo.
Um ajustamento à procura social
Por outro lado, enquanto tecnologia social de ajustamento escolar à
explosão da procura social, o neoprofissionalismo demonstra a sua eficácia
em vários planos: (a) porque diversifica o ensino geral e as modalidades de
formação profissional inicial, criando um muito mais amplo e elástico
mercado de ensino e de formação, tendo em vista acolher uma procura cada
vez mais socialmente diversificada; (b) porque, ao incluir nos planos de
estudos mais formação geral académica e ao desespecializar as formações
técnicas
e
profissionais,
cria
uma
aproximação
dos
percursos
correspondentes ao ensino secundário com a mais tradicional "via geral",
mais propedêutica de estudos posteriores, tornando-os desde logo mais
atractivos para a procura juvenil (Kyro,1995) e criando a apelativa ilusão do
prosseguimento de estudos superiores para um maior número de jovens; (c)
porque ao atribuir equivalências entre o ensino técnico e a formação
profissional inicial e o ensino geral académico, para efeitos de continuação
de estudos, retira em boa parte a carga de estigmatização que
tradicionalmente recai sobre aquelas primeiras formações, numa boa parte
dos países europeus; (d) porque se socorre de todos os modelos de ensino
secundário-escolar,
dual
e
não-formal-
para
alargar
o
leque
de
possibilidades dos jovens para escolher e para obter um diploma do ensino
secundário ou equivalente ou uma qualificação profissional legalmente
reconhecida; (e) porque a redução da fragmentação do ensino e da
507
formação pós-obrigatórios e a sua maior uniformização podem ser vistos
como tendentes a aumentar a transparência do sistema face à procura
social, a facilitar o acesso e até a própria progressão escolar (Green,1995);
(f) porque aumenta aquilo que algumas das reformas chamam o reforço da
opcionalidade e da individualidade, ampliando as possibilidades de escolha
de cada aluno e permitindo-lhe, em teoria,
construir o "seu" percurso
pessoal de formação.
O neoprofissionalismo, enquanto oferta educativa, apresenta-se assim como
um movimento do campo educativo que responde a um novo mandato social,
indo ao encontro da procura social e reconhecendo que esta não se orienta
principalmente pela racionalidade tecnicoeconómica, mas antes por uma
racionalidade social. A ela preside a elaboração de micro-estratégias
familiares de mobilidade social. Para a alcançar, as famílias, além de
procurarem prolongar a permanência no sistema de ensino e de formação,
elegem os percursos que se revelam mais atractivos, tendo em conta o
"status" de partida e os recursos disponíveis, numa perspectiva de
optimização de oportunidades de mobilidade ou, no mínimo, na expectativa
de uma mais bem sucedida inserção socioprofissional futura. É esta
racionalidade social, eminentemente credencialista, que explica a tendência
manifestada para a orientação crescente da procura para as fileiras que
conduzem ou ao prosseguimento de estudos ou a uma garantia de imediata
inserção socioprofissional.
Estes actores sociais, diante deste facto de enorme visibilidade social,
configuram um sistema de representações e de práticas sociais que lhes
permite percepcionar e decantar, com enorme perspicácia, os valores e as
práticas concretas de recrutamento dos empregadores, concluindo que,
regra geral e apesar das incertezas serem volumosas, os diplomados pelas
mais altas credenciais escolares posicionam-se melhor perante o emprego
que todos os outros jovens (acesso, vinculação, nível remuneratório,
508
estabilidade, gratificação pessoal), como aliás as estatísticas e os estudos
empíricos bem demonstram (Prieto e Homs, 1995:566; Tanguy, 1995:720;
OCDE, 1996; Lesourne, 1997). Assim, as vias de ensino e de formação de
mais fácil acesso à universidade e aos diplomas do ensino superior em
geral, as tradicionais vias de formação "geral", hoje mais abertas e mais
disponíveis em termos de oferta educativa, são mais e mais procuradas,
como constituindo tentativas mais consistentes e caminhos mais rentáveis
para
o
acesso
quer
às
mais
altas
credenciais
escolares
e,
consequentemente, a um emprego quer como investimentos a prazo com
maiores recompensas sociais associadas (Lutz,1992).
Ao descreverem o percurso que lhes é assinalado pela carta de intenções de
políticos,
empregadores,
legisladores,
investigadores,
educadores
e
organismos internacionais, os sistemas de ensino e de formação nacionais
estão a descrever um arco de proteccionismo social dos jovens, mantendoos afastados durante mais tempo de um meio social adverso, onde sobressai
a incerteza e a escassez de empregos. Os percursos de formação "geral",
tradicionalmente muito selectivos, destinados a elites e intimamente adstritos
ao prosseguimento de estudos superiores, são como que "devassados"
agora por novos fluxos de procura social, procura esta que é massiva e que,
pela evidente ruptura que representa, é apelidada, como se notou, de
irracional e desorientada.
Estamos, de facto, diante de um arco social complexo em que operam efeitos
em cadeia e que se pode sintetizar deste modo: (a) no contexto de escassez
prolongada de emprego, os jovens que melhor se posicionam no mercado do
primeiro emprego, os que mais facilmente obtêm colocação e para quem
esta é menos precária e mais bem remunerada são os possuidores das mais
altas
credenciais
profissionalização
escolares,
e
da
sua
independentemente
do
seu
grau
de
especialidade;
as
estratégias
de
(b)
recrutamento dos empregadores, sendo a procura de um emprego muito
509
superior à oferta, primam pela admissão dos jovens portadores de elevados
diplomas escolares, mesmo que isso corresponda a uma evidente e imediata
"desclassificação", devida à posterior ocupação de postos de trabalho
normalmente
ocupados
por
profissionais
menos qualificados; (c) a
selectividade do mercado de trabalho baseia-se, portanto, em geral, mais no
nível do diploma do que nas qualidades adstritas aos títulos do ensino e da
formação profissional inicial; (d) as famílias e os jovens empreendem leituras
racionais e realistas dos comportamentos dos empregadores e da situação
geral do mercado do primeiro emprego e investem mais em percursos
escolares
conduncentes
ao
prosseguimento
de
estudos
superiores,
exactamente aqueles que comportam actualmente mais potencialidades de
afastamento das adversidades do mercado do primeiro emprego e de
ascenção social; (e) estes percursos são normalmente dependentes do
modelo de formação geral académica e fortemente dependentes, no seu
conteúdo e na sua organização, do ensino superior universitário e dos seus
respectivos títulos.
Assim, é o funcionamento do mercado do primeiro emprego e o
comportamento dos empregadores que determinam, em boa parte, a
atracção pelos percursos escolares mais apropriados para aceder às mais
elevadas qualificações e títulos, exactamente os mais "gerais" e mais
próximos das "velhas" vias liceais40. O ensino secundário superior constitui,
nesta ordem de ideias, uma escada rolante de passagem, na qual se entra
em um dos seus percursos com o objectivo central de passar para mais
além. O percurso a escolher é cada vez mais uma questão menos central,
desde que assegure a referida passagem.
40 Dizemos “em boa parte” pois há outros factores conhecidos que participam na formação das escolhas familiares que
se dirigem para a formação geral académica, tais como: a própria ordem escolar dominante e os seus percursos
privilegiados, as representações que os professores, formados nessa ordem, transmitem aos alunos e aos seus
familiares, os factores simbólicos e a apreensão social acerca dos mecanismos da mobilidade social, os próprios
investimentos do Estado, por exemplo, em equipamentos, na qualificação de professores, no apoio à elaboração e
difusão de manuais escolares, na elaboração de referenciais de carreiras profissionais.
510
O funcionamento do mercado de emprego, particularmente do mercado do
primeiro emprego, e o papel que aí detém o sistema de educação e
formação, são tão importantes para a formação das escolhas familiares, que
as variações de comportamento na procura social de educação e formação,
de país para país, se prendem muito com as variações do funcionamento
daquele mercado e da sua relação com o sistema de formação. Verdier
(1995) assinala, por exemplo, que enquanto em França o diploma não
constroi uma qualificação e uma identidade profissionais reconhecidas,
sendo o nível de estudos o indicador das competências globais, já na
Alemanha, com o sistema dual, o diploma constroi-se no mesmo quadro da
qualificação profissional e esta é "reconhecida e transferível no quadro dos
mercados profissionais de trabalho". Assim também, este é um importante nó
onde
se
amarram importantes
diferenças
entre
o
modelo
escolar
generalizado e o modelo dual alemão.
Sendo impossível escapar ao conflito inerente à hierarquização das
formações de tipo secundário, porque portadora de prestígios sociais
diferenciados
e
conducente
à
ocupação
de
diferentes
lugares
e
remunerações na hierarquia dos empregos, é compreensível que sejam as
formações de tipo técnico e profissional a ser preteridas nos micro-processos
silenciosos de elaboração das escolhas escolares, sobretudo nos países em
que predomina o modelo escolar. A procura crescente de ensino "clássico",
já Philip Foster o tinha sublinhado, longe de ser um acto social irracional,
corresponde a uma leitura racional dos indicadores socioeconómicos, pois
essa escolha equivale, bem vistas as coisas, a procurar a melhor via de
preparação "profissional".
"Os que criticam o carácter irracional da procura africana de ensino de tipo
clássico em detrimento do ensino profissional não veêm que a força deste
primeiro tipo de ensino reside precisamente no facto de ele ser
eminentemente profissional, na medida em que permite aceder aos
511
empregos mais prestigiados e, sobretudo, aos melhor remunerados" (citado
por Salmi, 1990:109)
Esta análise da reacção da procura social, que é incitada a elevar a
escolarização, requer ser completada com a constatação de que ela é
influenciada, mas não é determinada, pelas novas exigências específicas
dos postos de trabalho disponíveis ou da evolução recente do seu conteúdo
funcional. Os empregos compatíveis e ajustados a essas elevadas
qualificações podem até nem existir, mas, como se referiu, não são estes os
critérios que sobredeterminam as escolhas dos adolescentes e das suas
famílias, escolhas estas, apesar disso, racionais, realistas e razoavelmente
a-retóricas.
Constata-se, deste modo, que as teorias credencialistas explicam de modo
pertinente este movimento crescente em direcção à educação "geral" na
oferta e na procura do ensino secundário. A crença no valor de troca das
mais altas credenciais escolares, embora beliscada com o desemprego de
diplomados pelo ensino superior, ainda permanece um dos eixos centrais
que sustentam uma certa procura "desencantada" da educação, constituindo
o seu suave e indizível encanto.
Sublinhe-se também que o movimento neoprofissionalista, ao descrever esta
trajectória,
em
que
se
reforça
a
opcionalidade
individual,
produz
simultâneamente um fenómeno de neodiversificação, centrada agora no
aluno e não já nas "necessidades do mercado de emprego". Este é um sinal
de mudança de rumo das políticas de ensino e de formação e deve ser lido
também como um sinal de afastamento em relação ao referente produtivo
que importa reter e ao qual se voltará mais adiante.
O ajustamento face às novas competências
512
Para o ensino e a formação profissional inicial formula-se, assim, um novo
mandato social, em que se supõe que as novas tecnologias da informação e
da comunicação e a irrupção de um modelo de produção pós-fordista e
flexível exigem uma população activa não só mais qualificada, o que aqui
quer dizer com títulos escolares mais elevados, como menos especializada,
isto tendo em vista assegurar uma maior mobilidade profissional, a
rotatividade
entre
os
postos
de
trabalho
e
até
a
alternância
emprego/desemprego, características do novo "modus faciendi" de uma
economia de mercado crescentemente globalizada.
Enquanto que nas décadas de crescimento económico contínuo, que se
seguiram à II Guerra Mundial, as políticas de educação e de formação inicial
foram dominadas pela ideologia do capital humano e da correspondência
entre a produção de qualificações escolares e os empregos disponíveis, num
quadro em que se desenvolveu uma planificação nacional e internacional de
necessidades de formação, já no termo dos anos oitenta e nos anos noventa,
embora se mantenha a mesma ideologia e a mesma expectativa geral de
correspondência entre formação e emprego, estas são dominadas pela
incerteza e pela imprevisibilidade acerca da evolução das profissões e dos
empregos disponíveis, uma vez que o emprego se tornou um bem escasso e
o
funcionamento
do
mercado
do
primeiro
emprego
se
alterou
substancialmente. Deve notar-se, no entanto, que a retórica que subjaz
actualmente à construção política da oferta educativa, ou seja, às reformas
educativas, é de igual modo optimista, uma vez que a relação entre a
educação e o trabalho se continua a elaborar num quadro de adaptação
funcional das políticas de educação e formação à evolução da economia,
revestida portanto de uma racionalidade produtivista.
Enquanto tecnologia social de ajustamento estrutural à evolução da
economia, particularmente na medida em que se procura promover o
513
desenvolvimento de novas competências ajustadas a um novo modelo de
produção pró-fordista, num ambiente pós-industrial, o neoprofissionalismo
tem manifestado uma enorme ambiguidade. E isto por várias razões.
Em primeiro lugar, a sua retórica fundadora de cariz tecnicoeconómico
esbarra logo com o intransponível facto de que é difícil, ou mesmo
impossível, predizer a natureza da estrutura ocupacional da sociedade pósindustrial (Hickox,1995), dadas as suas matriciais marcas de incerteza e de
imprevisibilidade. Neste particular, as mutações escolares, ainda que
circunscritas ao seu enunciado normativo, desenvolvidas neste quadro
neoprofissionalista, parecem estar ainda prisioneiras da inércia da anterior
planificação central e estatal de necessidades de formação para sustentar o
desenvolvimento económico, prática tão típica da "manpower approach",
agora
já
tão
substancialmente anacrónica. Este primeiro nível de
ambiguidade traduz-se geralmente no enunciado de listagens mais ou
menos exaustivas de competências a desenvolver, sem que se enfatize o
modo, o lugar ou a modalidade de ensino ou de formação a privilegiar em
ordem ao seu ensino e aprendizagem. A referência à “formação geral”
parece constituir o grande e o único consenso abstracto comum, por todos e
a todo o tempo aduzido.
A ambiguidade está também presente no facto de se desenvolver uma
retórica demasiado optimista acerca da existência de uma relação
mecanicista entre a generalização da aplicação das novas tecnologias da
informação e da comunicação e a generalização das admissões de novos
perfis de trabalhadores, dotados de elevadas qualificações escolares. Ora,
sabemos que uma grande parte dos novos empregos criados nos últimos
anos são substancialmente indiferenciados ou apenas requerem um curto
período de adptação no posto de trabalho e que há segmentos do mercado
do trabalho que incorporam mão-de-obra sobrequalificada pela simples
razão de que a procura excede em muito a oferta (Levin e Rumberger, 1988
514
e 1989; Barbier, 1998). Também reconhecemos que sectores limitados do
mercado do trabalho e certos grupos profissionais incorporam mão-de-obra
altamente qualificada e muito especializada; tal circunstância não nos
permite, porém, seja ignorar a forte segmentação existente nos mercados de
trabalho seja ir para além do que a realidade da efectiva distribuição da mãode-obra por níveis de qualificação nos permite afirmar.
Todavia, é muito provável que a retórica gongórica em torno das novas
qualificações e das novas competências se possa explicar também pelo facto
de, em virtude da progressiva universalização do ensino secundário e da
massificação do ensino superior, o mercado estar transbordante de altas
credenciais escolares que inflaccionam os títulos e se traduzem em
“sobrequalificação” profissional.
Por outro lado, como já referimos, a construção de um amplo e diverso
conjunto de oportunidades de ensino e de formação, combinando os
modelos escolar, dual e não-formal, apresenta-se como um muito importante
contributo à reestruturação da economia, não só pelo amplo mercado de
ensino e de formação que se constroi e pelas qualificações que aí se
produzem, mas também na medida em que este mercado ao funcionar
eficazmente substitui com eficácia o precário funcionamento do mercado do
primeiro emprego.
É mesmo de admitir que, a manter-se esta matriz de pensamento e de acção
política como sustentáculo das reformas educativas, no ambiente de
incerteza e de constante reestruturação económica, com reduções contantes
do volume de emprego disponível, a ambiguidade neoprofissionalista seja
levada ao ponto de se vir a prescindir totalmente, nos planos de estudo
destinados ao grupo etário 16-19 anos, em qualquer das suas modalidades,
de qualquer finalidade de qualificação eminentemente técnica e profissional.
Nesta óptica, o movimento de integração subestrutural e estrutural que
515
analisamos poderia ser apenas o início de um novo ciclo longo de unificação
crescente do ensino secundário, evoluindo agora de uma diversificaçao
profissionalista para uma diversificação neoprofissionalista, de base
predominantemente opcional e individualista.
Mas não só. Este ciclo, na medida em que corresponde em boa parte a um
reforço curricular do ensino geral académico pode, deste modo, ser também
questionado como um movimento em ordem a um novo tipo de
especialização do nível secundário, uma resposta do sistema escolar ao
novo mandato social construída pelo fechamento/enquistamento curricular
em torno da mais tradicional matriz académica do ensino secundário. O
ensino e a formação técnica e profissional de nível secundário e a sua
missão de preparação de mão de obra qualificada especializada seriam
progressivamente preteridos como inadequados para integrar o núcleo da
missão dos sistemas educativos na preparação dos cidadãos para o
exercício profissional qualificado.
O ajustamento ao mundo empresarial
Como se anotou, em tempo, as reformas educativas empreendidas têm-se
traduzido também por um generalizado aumento da participação formal dos
representantes dos empresários e dos representantes dos trabalhadores nos
organismos nacionais, regionais e até locais, que regulam a oferta de ensino
técnico e de formação profissional inicial. O Estado, a braços com uma crise
de legitimação, tem vindo a partilhar o poder de exercício desta regulação,
em
benefício
sobretudo
dos
empregadores
e
de
instâncias
mais
descentralizadas e territorializadas da própria administração pública. Embora
o caso mais marcante possa ser o da já referida criação, em Inglaterra, da
MSC-Manpower Services Comission, em muitos outros países se criaram
novos orgãos ou se reestruturaram organismos pré-existentes, no sentido de
516
reforçar este tipo de participação dos empresários. Este reforço do vector
produtivo na política educativa e formativa dos jovens processou-se tanto no
plano nacional como no plano regional e local, registando-se uma grande
variedade de práticas, de país para país.
Anote-se, todavia, que este processo corre em paralelo com um outro em
que as empresas se retiram progressivamente da responsabilidade da oferta
directa de formação profissional inicial aos jovens (Comissão Europeia,
1995). Esta inibição surge inclusivamente na Alemanha, palco do modelo de
mais intenso envolvimento das empresas na promoção da formação inicial,
assistindo-se a uma diminuição do número de lugares de aprendizagem, ao
mesmo tempo que aumenta simultaneamente o número de jovens que
terminam a sua formação escolar geral e o número dos que aguardam um
lugar no sistema dual. Em sectores como o da indústria metalúrgica, segundo
a Associação Patronal Hessen Metall, não pode estar a ocorrer senão uma
diminuição do número de lugares de aprendizagem, seja porque o sector
perdeu mais de um milhão de empregos nos últimos dez anos seja porque as
empresas reestruturaram a organização da produção com o objectivo de
aliviar os custos da mesma e ainda porque o sector continua a perder
importância relativa face às empresas de serviços (CEDEFOP, 1995).
O acréscimo de influência dos empresários na educação e na formação a
este nível de ensino não tem normalmente um equivalente directo no
aumento do seu envolvimento na oferta de lugares de formação, antes se
traduz essencialmente na participação mais activa e preponderante na
formulação, na aplicação e na avaliação das próprias políticas nacionais,
regionais e locais de preparação e de selecção dos jovens para o ingresso
posterior no mercado de trabalho. Assim, de uma intervenção política
centrada na regulação da procura, como era típico da época em que
predominavam as teorias do planeamento estatal, central e previsional do
capital humano necessário ao incremento económico, a participação dos
517
empregadores evolui para uma determinação da oferta, tanto do ponto de
vista quantitativo como qualitativo, desde os objectivos, até aos conteúdos,
às metodologias, aos perfis e à organização do que se ensina. Esta mutação
é profunda e pode bem constituir o novo rosto do funcionalismo educativo
face à economia de mercado em reestruturação. Já não basta regular a
oferta educativa pública com base no encaminhamento dos fluxos
quantitativos da procura, tarefa em que a "joint venture" entre o Estado e os
empregadores dá sinais crescentes de esgotamento e fracasso, é preciso
passar a regular a oferta educativa com base na determinação dos seus
aspectos qualitativos, a própria produção do "software".
Esta
mutação
corresponde
a
um
acréscimo
de
intervenção
dos
empregadores no campo educativo, o que representa mais um traço
caracterizador do neoprofissionalismo crescente das políticas relativas ao
ensino e à formação, ao nível secundário. De um quadro de intervenção
hegemónica do Estado evolui-se para um quadro de parceria, quanto à
responsabilidade na definição do sistema de ensino e de formação inicial.
Mas este acréscimo de envolvimento e, sobretudo, este novo tipo de
envolvimento na construção da oferta educativa vão a par, de modo
aparentemente paradoxal, com um afastamento entre o mundo empresarial
e produtivo e o ensino e a formação de nível secundário, por via da
desespecialização, da integração curricular e do reforço da formação “geral”.
Por outro lado ainda, o movimento neoprofissionalista tem convivido com
uma deslocalização de uma parte do ensino técnico e da formação
profissional inicial exclusivamente para o terreno da empresa, apresentada
como o único meio capaz de proporcionar eficientemente as aprendizagens
relacionadas com as "condições sociais da produção" (Tanguy, 1983:352),
tais como saber comportar-se num local de trabalho, aprender normas e
hábitos de trabalho ou adquirir qualidades pessoais e sociais indispensáveis
518
à participação num processo de produção, (relembre-se, por exemplo, a
nova política do Banco Mundial a este respeito).
Aqui chegados, devemos admitir que o neoprofissionalismo, na sua tentativa
de ajustar a educação à evolução da economia, se traduz por um efectivo e
desejado afastamento da escola em relação ao trabalho. Em resumo, por
várias razões: (i) porque diversifica a oferta e atrai mais e melhor a procura;
(ii) porque adia o acesso dos jovens ao mercado de emprego; (iii) porque
retira dos planos de estudo as práticas oficinais em benefício do aumento da
formação geral académica; (iv) porque retira ao nível secundário parte do
seu lugar e do seu papel na especialização profissional; (v) porque privilegia
crescentemente o campo da empresa como o mais adequado para a
preparação para o trabalho.
É certo que se aduzem importantes motivos que legitimam estes rumos das
políticas de ensino e de formação. Por um lado, refiram-se os contributos
acerca da empresa como organização qualificante ou aprendente, um
contexto sociocultural novo, em que cada activo tem a ocasião de ser mais
autónomo no seu exercício profissional e tem a necessidade de aprender em
cooperação com os outros. Por outro, correlacionem-se estes rumos com a
perspectiva da "formação ao longo da vida" que, baseada na mesma retórica
económica, advoga que todos os cidadãos devem adquirir na escola uma
sólida educação básica, tendo em vista edificar sobre ela uma qualificação
permanente e ao longo da vida, qualificação essa que pode consistir em
momentos de actualização, de reciclagem ou de reconversão. Por outro
ainda, lembre-se o esforço recente de algumas correntes de opinião no seio
da União Europeia no sentido de incrementar o desenvolvimento da União
do Conhecimento, para lá da União Económica e Monetária e da União
Política.
519
Como quer que seja, a ambiguidade do ajustamento entre a educação e a
economia promovido no quadro do neoprofissionalismo reside também no
facto de ele se traduzir na prática pela ampliação do fosso entre as escolas e
as empresas. Como bem evidenciaram as teorias da segmentação do
mercado do trabalho, as actividades económicas dominadas pelo paradigma
da produção flexível constituem um segmento minoritário, estando adstritas a
sectores mais modernos e competitivos da economia. Nesta ordem de ideias,
o fosso que se está a cavar entre as escolas e as empresas, entre a teoria e
a prática, entre os saberes académicos e os saberes profissionais, pode, por
um lado, servir bem um sector restrito da economia, mas pode estar a não
responder e até a prejudicar importantes segmentos do mercado do trabalho
e, por outro, representar sobretudo um novo modo do ensino e da formação
de nível secundário exercerem o seu papel de selecção social. Como
Conceição Alves Pinto (1990) demonstrou para o caso português da
unificação do ensino, embora os decisores políticos pretendessem aumentar
a formação geral de todos os jovens e assegurar uma maior igualdade
perante o ensino, para uma parte da população em questão a mudança
revelou-se inadequada e traduziu-se pelo afastamento do sistema escolar de
grupos consideráveis de jovens.
Além disso, mesmo que se admita como razoável que qualquer empresa é
um local de produção e de síntese de saberes e de saberes-fazer, como
avisa Lucie Tanguy, isso pouco nos diz acerca das condições e da
capacidade para se transmitirem esses saberes, mesmo nas empresas mais
modernas e competitivas, acrescente-se.
Em síntese, em nome do modo de produção pós-taylorista e das novas
formas de organização do trabalho, as reformas neoprofissionalistas parece
afastarem o campo escolar do campo do trabalho. Vão-se apagando, deste
modo, no perfil do ensino secundário europeu, os estigmas vincados da
desvalorização
tendencialmente
social
que
um ensino
o
relacionam
secundário
com
"clean",
o
trabalho.
Cria-se
sem oficinas,
sem
520
especialização profissional, sem óleo e sem tornos mecânicos, pronto a
conduzir os jovens para estudos posteriores, apto a mantê-los afastados do
mercado de emprego por mais tempo. Pela mesma lógica, os percursos
técnicos e profissionais que entretanto se mantiverem isolados, como
vestígios arqueológicos, a par de outros percursos muito mais valorizados
política e socialmente, tenderão a ser ainda mais estigmatizados e,
potencialmente, banidos. O mesmo pode não suceder quando, mesmo que
minoritários, os percursos técnicoprofissinais correspondam a elevadas
prioridades
políticas,
estejam
entretecidos
com a
economia
e
as
necessidades locais de emprego e, mesmo especializados, se mantenham
raros, pois aí reside o seu principal valor de troca (Charlot,1987:138). O
mesmo pode não suceder também se a tão propagada “formação geral” não
se liofolizar no reduto da tradicional educação geral académica e acolher a
própria educação geral tecnológica como sua componente de parte inteira.
Porém, a ambiguidade acabada de descrever deve ser vista mais como
aparente do que como real. Talvez haja pouca ou mesmo nenhuma
ambiguidade na vertente económica do novo mandato social que é
enunciado na actualidade e no fosso que parece cavar-se mais fundo entre o
ensino e a formação e as empresas e o trabalho. Para o actual processo de
reestruturação da economia europeia já não será decisivo contar com um
ensino técnico e uma formação profissional inicial, inseridos no sistema
educativo formal, aptos a produzir os diplomados diferenciados para uma
economia altamente diferenciada (Benavot,1983). O que se passou a
requerer do ensino e da formação inicial é a "produção" de cidadãos com
uma formação geral de base e prolongada, aptos a exercer uma pluralidade
de papéis sociais, entre os quais o de trabalhador, se e quando for caso
disso, cidadãos detentores de um perfil de competências não especializado,
que não crie obstáculos à mobilidade e adaptabilidade profissional, um perfil
que favoreça a rotatividade entre diversas actividades e diferentes postos de
trabalho, um perfil que facilite a alternância entre o emprego e o
521
desemprego, ao longo da vida, um perfil, finalmente, que é muito mais
adequado ao actual "modus operandi" da economia de mercado. Advoga-se,
por isso, que a racionalidade que estruturava a relação educação-trabalho
de modo utilitário, especializado, instrumental e estratificador deixou de ter
correspondência com o mercado de trabalho. A mesma racionalidade
produtivista advoga actualmente para o ensino e a formação de nível
secundário a desespecialização e a integração curricular como o novo e
melhor modo de estabelecer aquela correspondência. O referido fosso não
aumenta, o modo de aproximação é que é diverso. A ambiguidade é
sobretudo aparente. Dentro do mesmo quadro genérico de uma resposta
"aggiornata" do sistema escolar aos imperativos da evolução económica há
novas
tensões
e
confrontos
que
se
desenham.
A
retórica
da
desespecialização e da integração curricular relevam, por isso e antes de
mais, da nova ordem económica e produtiva, embora, como veremos
adiante, este mandato se cruze com outros ordenamentos ideológicos
igualmente relevantes, que questionam esta retórica e as políticas que com
ela se edificam.
O impacto do sistema educativo mundial
Como vimos, há um novo sulco de interconexões mundiais que é rasgado
quer pela aceleração da globalização da economia de mercado quer pela
forte aceleração da comunicação iner-nacional. Nele se desenha um
processo social de crescente influência de fenómenos globais nas
sociedades locais e de crescente abertura das sociedades locais para os
fenómenos globais. Nele circulam com destreza, facilidade e eficiência as
orientações e o pensamento das organizações internacionais, das redes de
peritos, das edições de maior difusão. O local e o nacional não
522
desaparecem, transformam-se e pensam-se a si próprios de outro modo,
imersos na teia que as novas relações entre o global, o nacional e o local
tecem. A interdependência é cada vez maior, o que se traduz no facto de
muitos problemas locais de educação e de formação só se poderem resolver
com soluções globais e de muitos problemas suscitados pelos modelos
educacionais transnacionais dependerem de soluções locais.
O mandato social acima referido apresenta-se, como vimos, com a
configuração de uma retórica macroeconómica de base transnacional, o que
reforça a pertinência do quadro teórico que propõe o sistema mundial como
unidade de análise das recentes reformas educativas nacionais. Desenvolvese ao nível mundial, mais do que em qualquer plano nacional ou local,
embora em interacção com estes níveis, um núcleo de representações e de
significados que se espalham por todo o mundo, um novo paradigma de
relação entre a economia e a educação, que tem a capacidade de se impor
do todo para as partes e do centro para a periferia, que circula rapidamente
transportando no seu movimento uma força normalizadora e de convergência
inter-nacional, que se reveste cada vez mais do "dom" da simultaneidade e
que possui, além disto, importantes carimbos legitimadores e virtuosismos ou
vantagens adicionais de grande poder sedutor, como sejam: a atractividade
dos mitos que nascem no centro, no seio dos países mais poderosos, das
economias mais competitivas ou das organizações e empresas mais
performantes; o ímpeto da globalização galopante da economia de mercado
e o vigor dos mitos que ela inscreve na retórica política mundial e que
circulam, à velocidade da luz, por todos os continentes; o facto de os
decisores políticos nacionais absorverem com enorme vontade e facilidade
as retóricas mundialmente legitimadas, dado o poder destas para
transcender os problemas nacionais concretos e para funcionar como um
véu que desce mansamente sobre esses problemas; o poder altamente
legitimador da assunção deste paradigma por organizações internacionais,
por redes de peritos e encontros permanentes em todo o mundo e pelo
523
sistema de comunicação científica, que o disseminam permanentemente pelo
mundo. A este quadro teórico podemos ainda acrescentar a força das
práticas habituais de contemplação inter-nacional, para assinalar que
nacional e localmente se integram padrões mundiais de institucionalização
educacional que, em cada momento e em função de cada realidade local,
são reelaborados e reinterpretados.
À luz da teoria do sistema mundial, o quadro nacional em que ocorrem as
reformas educativas em estudo deve ser considerado um terreno
manifestamente insuficiente para nele caberem a intensidade política, a
intencionalidade constitutiva e a simultaneidade das reformas empreendidas.
O movimento neoprofissionalista pode considerar-se, assim, também como
uma construção do sistema educativo mundial; é uma pan-dinâmica envolta
numa torrente ideológica global, que entronca, antes de mais, nas
reestruturações contínuas de uma economia globalizada, sob o comando dos
seus
segmentos
mais
modernos,
mais
internacionalizados
e
mais
competitivos. A homogeneidade retórica que subjaz às reformas do ensino
secundário em estudo exprime com veemência uma harmonização
ideológica e institucional cerzida quotidianamente à escala transnacional na
interacção
permanente
frequentemente
local-nacional-global.
consensos
nacionais
diante
Geram-se
de
tão
fácil
e
virtuosos,
estandardizados e "científicos" modelos de compreensão de uma realidade
social em acelerada mudança (e por isso mesmo ainda de mais difícil
apreensão).
A ênfase que se coloca na força desta ideologia global e na importância
destes consensos não pode obnubilar nem desvalorizar tanto a diversidade e
a complexidade das interacções entre forças sociais nacionais e locais,
como a espessura sociohistórica sobre a qual esta retórica volteia
permanentemente. Sob os acordos genéricos e transcendentalizadores, há
profundas segmentações e enormes discordâncias acerca, por exemplo, dos
524
modelos produtivos, das relações educação e formação, do papel dos
parceiros sociais e da própria desespecilazação ou desprofissionalização.
De facto, as elites nacionais e locais organizam a recepção e a apropriação
nacional e local do novo paradigma, numa tensão contínua entre a poderosa
força centrípeta mundial e a poderosa força centrífuga da tradição, da
diversidade e das rotinas nacionais e locais. À teoria da reinterpretação
nacional deve, por isso, ser também atribuído um importante papel e um
elevado grau explicativo na análise internacional das reformas do ensino
secundário. As recentes reformas neoprofissionalistas na Europa devem,
pois, ser entendidas como intersecções entre as construções do sistema
educativo mundial e os esforços de reinterpretação nacional e local dos
consensos mundiais, promovidos pelos decisores políticos e pelos actores
sociais, sendo certo que estes esforços são diversos no conteúdo, na forma
e na intensidade, variando de país para país, de região para região, de
sector de actividade para sector de actividade.
Mas, apesar de ser patente, nas reformas educativas em análise, uma
grande diversidade de situações nacionais, torna-se bem visível uma
tendência não só para a adopção de uma mesma retórica legitimadora, de
cariz internacional, mas também para o estabelecimento de normas e de
medidas de política de características semelhantes, resultantes do labor do
sistema educativo mundial e do seu encontro-confronto com os actores e as
realidades sociais nacionais. Estas medidas são objecto de políticas dos
Estados, realizam-se, como refere Lucie Tanguy (1995), num quadro de
relativo consenso social e são elas mesmas construtoras do sistema
educativo mundial, como se deixou explicitado antes.
Finalmente, as medidas de política que analisamos inscrevem-se também
em dinâmicas de legitimação de políticas públicas. Retomando Ginsburg e
Cooper (1991), estas reformas escolares empreendidas pelos governos
nacionais pretendem também minimizar os custos políticos que resultam das
525
mutações
socioeconómicas,
como
o
desemprego
estrutural
e
os
disfuncionamentos do mercado do primeiro emprego, maximizando em
simultâneo os ganhos políticos inerentes ao facto de se desenvolver uma
reforma e se procurar melhorar a sociedade, em nome de um melhor
ajustamento entre a educação e a economia, frequentemente inscrito nos
fenómenos globais que inquietam a humanidade.
Processo de unificação e função propedêutica: ligações históricas
O movimento neoprofissionalista deve igualmente ser analisado, à luz da
incursão histórica empreendida atrás, como um momento da evolução do
lugar e da função do ensino secundário na Europa. Este momento inscrevese na continuidade de uma tendência de longa duração das políticas
educativas que consiste na promoção da unificação escolar como estratégia
subordinada
às
políticas
de
democratização
das
oportunidades
educacionais. Embora não seja certo que estas intenções políticas se
concretizem, ou seja, que a unificação curricular crescente corresponda,
melhor do que uma diversificação curricular crescente, à expansão da
educação de massas, à medida que o neoprofissionalismo se adopta, em
íntima conexão com o aumento da procura social do ensino secundário e
com o aumento do desemprego juvenil, modifica-se o campo da função
selectiva que o modelo escolar dominante tem vindo a atribuir ao ensino e à
formação pós-obrigatórios. De facto, a função mantém-se, o modo de
selecção é que se altera lentamente. Esta função, por um lado, elege certos
núcleos curriculares como os melhores para todos os alunos e, por outro,
desloca para o nível subsequente de ensino e formação, o pós-secundário e
o superior, a tradicional especialização e a fragmentação curricular.
O processo da unificação generalizada do ensino universal e obrigatório,
que compreende geralmente o ensino secundário inferior, segue um
526
referencial geral cuja explicitação se torna importante para a compreensão
do movimento neoprofissionalista como movimento em parte herdeiro do
processo unificador. Os marcos mais salientes são: (a) criar uma estrutura
curricular geral e comum; (b) abolir a divisão entre escolas e cursos com
prestígio social diverso, dentro do mesmo patamar de ensino e formação; (c)
prever uma certa margem de flexibilidade opcional para favorecer escolhas
individuais; (d) e induzir o prolongamento da frequência escolar, ao retirar
carácter terminal aos percursos de ensino e de formação. Por outro lado,
como refere o "rationale" de M. Trow (1978), que aqui adoptamos, a função
social predominante no ensino secundário de massas é de novo
propedêutica, perante a nova realidade social de um ensino superior de
massas. Ao vincar-se esta nova função social do ensino e da formação de
nível secundário, acentua-se o conflito entre finalidades propedêuticas e
terminais, entre uma polarização determinada pelo ensino superior e pela
selecção dos segmentos profissionais que vão participar activamente na
nova economia globalizada e a polarização exercida pela procura de mãode-obra mais indiferenciada, possuidora de uma “formação geral de base”.
Neste quadro de análise compreendem-se as políticas seguidas pelos
governos e as recentes reformas do ensino secundário.Por um lado, os
segmentos terminais tendem a ser alvo de medidas excepcionais de
"dignificação", que vão desde os investimentos especiais em recursos
humanos e financeiros, passando pela introdução de disciplinas "gerais" e
de troncos comuns ao ensino secundário propedêutico, até à atribuição aos
cursos terminais de uma equivalência escolar aos diplomas dos cursos
orientados para o prosseguimento de estudos. E como vimos, quando
medidas deste tipo não surgem associadas aos percursos terminais, estes
constituem-se muito claramente como vias de deserdados, o que
insistentemente se tem procurado evitar. Por outro lado, os governos são
socialmente pressionados a tomar medidas para uniformizar todos os
percursos do ensino secundário, aproximando-os o mais possível de um
527
mesmo modelo, dominantemente propedêutico, modelo este que pode
conviver com diferentes tipos de escolas e de diplomas, ou até reduzir mais
ou menos drasticamente esta diversidade. No limite, poderá haver um único
tipo de escola, com um currículo de base comum e uma multiplicidade de
opções individuais.
A desprofissionalização dos percursos mais vincadamente terminais do
ensino secundário deve ser percepcionada, a esta luz, como um processo
histórico, em que se destaca a vasta e contínua dinâmica social de expansão
do modelo de educação de massas, primeiro no ensino secundário e depois
no ensino superior. Aliás, é isto mesmo que Verdier (1995) reconhece
quando fala do efeito social da célebre convocação governamental, em
França, no início dos anos oitenta, de 80% de cada grupo etário ao "Bac".
Por um lado, os percursos escolares secundários tornaram-se mais gerais,
por outro, os diplomas técnicos vieram a perder a sua finalidade de inserção
profissional, que estava na base da sua criação, nos anos sessenta, e
passaram a fazer parte integrante de um processo de escolarização de
massas. O seu papel passou, assim, a ser mais o de filtro para as
oportunidades de estudos pós-secundários do que o de suporte ao
investimento em capital humano profissionalmente qualificado de nível
intermédio.
Sublinhe-se ainda que a acentuação da marca propedêutica dos estudos
secundários se repercute no perfil de formação de todos os estudantes,
mesmo dos que, por força dos processos de selecção, não acedem ao
ensino superior. O carácter propedêutico e de passagem ou ponte é-o para
todos. Os estudantes que tiverem como destino o ingresso imediato no
mercado de emprego terão de realizar cada vez mais aí, nas empresas ou
em centros de formação especializados a elas ligados, a sua fase terminal
de qualificação, mais ou menos especializada. E este não é certamente um
facto estranho à proliferação do sector não-formal dos sistemas educativos.
528
Nestes processos de reforma, há evidentes mudanças na relação hierárquica
entre o ensino geral académico e o ensino técnico e a formação profissional
inicial. Todavia, descrever e constatar estas alterações não equivale a dar
por adquirida a superação da hierarquia que subjaz a esta relação. Este
mesmo ponto é observado por Andy Green (1995), quando refere que à
medida que os percursos do ensino técnico e da formação profissional do
ensino secundário se tornam mais gerais e académicos, nos seus conteúdos
e nas suas normas, há o perigo, já descrito, de todos os cursos técnicos e
profissionais não abrangidos pelas mesmas reformas ficarem ainda mais
desvalorizados e marginalizados.
Como vimos, a hierarquia de prestígio entre cursos e títulos escolares é
inelutável. Se ela não se desenvolve no ensino secundário, vai deslocalizarse e desenvolver-se no ensino superior, diversificando-o cada vez mais.
Como vimos, as desigualdades inerentes às relações sociais e a estrutura
diferenciada dos empregos constituem vinculações a que o sistema escolar
não escapa; esta dependência não impede, no entanto, que as políticas
educativas evoluam na consecução de objectivos democratizadores sobre o
sistema escolar e sobre a sociedade, ainda que os seus limites saltem
depressa à vista. A questão que aqui nos mobiliza reside em saber se esta
hierarquia se continua a arquitectar com base na dicotomia académicoprofissional ou se esta se esbate e se estrutura mais sobre componentes
acrescidas de ensino geral académico e sobre os investimentos que os
diferentes membros dos diferentes grupos sociais estão em condições de
fazer face à educação escolar, investimentos que podem variar sobretudo na
sua duração, no prestígio social associado a certas formações especilazadas
e conducentes a profissões socialmente prestigiadas (ex. engenharia ou
medicina). Aliás, a proliferação de níveis no ensino superior não pára de
aumentar: ensino pós-secundário, ensino superior curto, bacharelato,
licenciatura, pós-graduação, mestrado, doutoramento e pós-doutoramento.
529
Em síntese, o movimento neoprofissionalista ao nível do ensino secundário
deve ler-se também, nesta visão multifacetada, como uma nova etapa no
movimento de longa duração em ordem à unificação escolar em torno do
referencial do ensino geral académico, como resposta do campo educativo à
procura social incessante e ao contínuo prolongamento da permanência dos
jovens no terreno do ensino e da formação, mantendo-os mais tempo
afastados do exercício profissional. Segundo a Comissão Europeia, no seu
Relatório anual sobre o emprego na Europa, de 1994, entre 1960 e 1994, a
proporção de jovens entre os 15 e os 19 anos, profissionalmente ocupados,
diminuiu de 55% para 30%. Atente-se, finalmente, que esta retenção num
ambiente protegido e muito peculiar, exactamente desligado dos contextos
de trabalho, pode traduzir-se, do ponto de vista do desenvolvimento
educativo dos alunos, num longo adiamento da assunção de algumas
responsabilidades sociais ligadas ao trabalho que, anos antes, eram
assumidas pelos jovens do mesmo grupo etário, o que não deixa de ser uma
importante problemática a assinalar.
Retomando a categorização inicial dos sistemas escolares europeus de
ensino secundário superior, pode-se argumentar, em meados dos anos
noventa, em síntese, que os modelos escolares tendem a desespecializar-se
e a flexibilizar-se, incluindo até componentes de alternância e experiências
de trabalho, de certo modo desescolarizando-se, que o modelo dual tende a
reduzir o seu campo de adequação e a formalizar-se e, de certo modo, a
escolarizar-se, mormente pela introdução de novos anos de base comuns e
direccionados para os conhecimentos teóricos, científicos e tecnológicos, e
que os modelos não-formais se inclinam também para uma maior
formalização, tornando-se, além disso, quase omnipresentes em todos os
sistemas escolares nacionais, ao lado dos outros dois modelos tradicionais,
como régua para fazer recuar o desemprego juvenil e para amparar
socialmente os que já sairam da escola e ainda não chegaram ao emprego.
530
A esta luz pode também explicar-se, em boa parte, a simultaneidade deste
movimento neoprofissionalista em países com tradições culturais e sistemas
escolares tão diferentes.
Um conflito entre mandatos societais
Uma questão central que importa discutir neste momento é a da evolução
que se está a processar no conflito entre diversas racionalidades em
presença no ensino e na formação de nível secundário. Os mandatos sociais
não são unívocos nem se reduzem ao imperativo económico, por mais que
se tenha de reafirmar a real força deste imperativo e da matriz tecnicofuncionalista que ainda envolve e impregna as políticas de ensino e de
formação.
Para a formulação das recentes reformas do nível secundário contribuiram
factores que estão muito para além do cumprimento por parte dos sistemas
educativos de um novo mandato económico de adaptação técnico-funcional
do sistema escolar às novas configurações do sistema produtivo. Situam-se
nesta ordem de ideias as perspectivas que veiculam a necessidade de o
sistema escolar, para cumprir um papel educativo, não se subordinar
centralmente aos veios económicos dos sucessivos mandatos sociais.
A educação escolar, segundo uma outra retórica e um outro mandato
societal transnacional, deveria escapar à imposição exclusivista da
racionalidade produtivista que obnubila todas as outras, na medida em que
ocupa feudalmente o espaço de legitimação da função social do ensino
secundário. Perante os novos "défices de socialização" que caracterizam a
sociedade contemporânea, a educação escolar deveria desempenhar um
papel activo como factor de coesão social, contribuindo para a formação do
531
"núcleo base da personalidade" (Tedesco,1995), numa época em que se
exige cada vez mais a cada indivíduo a construção da sua própria identidade
social, num quadro cultural relativista e carregado de incerteza. Para o
filósofo J.M. Domenach é a uma "nova cultura geral" que pertence recuperar
o valor social do ensino secundário (1989:143). Em seu entender, deve
prevalecer, nos empreendimentos reformadores, o "princípio de uma cultura
geral, única e prolongada", incorporadora de tratamentos pedagógicos e
cronológicos diferenciados, capaz de conciliar teoria e prática, formação
geral e profissional, apta a preparar os cidadãos para "itinerários largamente
imprevisíveis" (1989:63).
Segundo este mesmo autor francês, a armadura do "corpus" curricular é uma
cultura geral que não se pode subjugar aos imperativos da rentabilidade e da
preparação para a vida profissional, por mais justificados que eles sejam,
sobretudo neste período de crescimento do desemprego juvenil. A utilidade
não pode tomar a dianteira sobre a relação pedagógica e sobre o cultivo da
verdade, da beleza, da liberdade e da convivialidade (Domenach, 1989:63).
Também o relatório da UNESCO sobre a educação para o século XXI se
inscreve dentro desta mesma racionalidade, atribuindo à educação escolar
do futuro o papel de "fazer com que cada um tome o seu destino nas mãos e
contribua para o progresso da sociedade em que vive, baseando o
desenvolvimento na participação responsável dos indivíduos e das
comunidades". E prossegue esclarecendo: "o princípio geral de acção que
deve presidir a esta perspectiva dum desenvolvimento baseado na
participação responsável de todos os membros da sociedade é o do
incitamento à iniciativa, ao trabalho em equipa, às sinergias, mas também ao
auto-emprego e ao espírito empreendedor; é preciso activar os recursos de
cada país, mobilizar os saberes e os agentes locais, com vista à criação de
novas actividades que afastem os malefícios do desemprego tecnológico"
(1996:73).
532
A racionalidade produtivista dominante é assim temperada por uma
racionalidade humanista, agora de novo retomada por vários discursos,
nomeadamente pela UNESCO; a educação escolar deve formar pessoas
qualificadas para o mundo da economia, mas ela não se destina ao ser
humano apenas enquanto agente económico, mas enquanto fim último do
desenvolvimento. Assim, a qualificação profissional ou a qualificação mais
geral para o trabalho deverá passar a inscrever-se como uma das facetas da
qualificação humana global que as escolas e os centros de formação
promovem, em cooperação com outras fontes de saber e qualificação. Estas
são cada vez mais numerosas e acessíveis, desde a infância e ao longo de
toda a vida. A relação de ensino e de aprendizagem evoluiu do modelo "um
para muitos" para o modelo "muitos para muitos", desenhando uma enorme
multiplicidade de percursos de aprendizagem e uma imensa rede horizontal
de meios de ensino e de aprendizagem.
Em meados dos anos noventa, esta reposição da ideologia humanista na
educação escolar coloca na agenda política a pertinência e a oportunidade
da actualização finalista dos sistemas escolares, numa época em que
parecia não haver mais finalidades para debater, resolvida que parecia estar
a submissão completa da educação escolar quer às finalidades económicas
quer à lógica da reprodução das desigualdades sociais.
Esta reposição teleológica leva, no entanto, a questionar fortemente o
movimento de atracção pela formação geral académica e as reformas
curriculares assentes no reforço deste tipo de formação. Já argumentámos
que o generalismo crescente do ensino e da formação de nível secundário
podem estar a conduzi-lo para uma nova forma de especialização,
igualmente selectiva e eminentemente profissional. Sob esta reposição
também pode estar escondida uma oportunidade de renovação e de
enriquecimento curricular, pela inclusão de uma formação mais atenta à
multidimensionalidade inerente ao desenvolvimento humano. O ensino e a
533
formação de nível secundário poderiam ancorar a sua reestruturação como
ensino e formação de massas, não já sob o signo de uma ou outra
funcionalidade predominante, mas pelo superior objectivo de formar
criadores. Criadores de sentido, tanto de um ponto de vista pessoal como
sob um prisma social, criadores de cooperação humana, criadores de novas
soluções e de novos projectos, empreendedores, criadores de trabalho e
criadores na fruição do seu “tempo livre”.
Ora, se é verdade que esta perspectiva abre novas oportunidades sociais de
associar
a
preparação
para
o
desempenho
profissional
com
o
desenvolvimento do conjunto multifacetado da personalidade dos jovens, ela
parece encontrar-se ainda pouco presente nas reformas neoprofissionalistas
do ensino secundário na Europa. Aliás, para alguns autores, as reformas
desespecializadoras e integradoras que ocorrem no ensino secundário
exprimem uma "atitude" profundamente defensiva das políticas escolares,
que reformam e inovam para promover um "mínimo denominador comum"
para todos os empregos (Enguita,1991). Além de traduzirem uma
acomodação escolar face à economia, já evidenciada, estas medidas podem
representar ainda um fechamento do campo do ensino e da formação sobre
si próprio, reforçando-se sobretudo os saberes escolares tradicionais,
disciplinares, académicos e estanques face ao meio envolvente, como se se
procurasse responder à fragmentação cultural e das fontes de saber (Martí,
1996) com a revitalização da excelência dos saberes escolares académicos.
De certo modo, podemos estar perante um regresso à "velha instituição total"
(Arroyo,1991), eleita agora como o principal recurso social disponível para
se fazer frente não só às novas fracturas da coesão social, como à incerteza
social face ao futuro profissional, à voragem das reestruturações da
economia, à falta de novos rumos culturais que as lideranças políticas
europeias revelam, à necessidade de manter os jovens afastados durante
mais tempo do mercado de emprego e à procura social crescente das mais
534
altas credenciais escolares, um regresso que não questiona a necessidade
de rever ou até de abandonar o modelo escolar e de formação industrial
tradicional.
Num clima de tensão e de uma aparente convergência entre finalidades
produtivistas
e
personalistas,
é
pertinente
interrogar
o
movimento
neoprofissionalista na medida em que ele pode representar sobretudo um
processo de desqualificação da educação escolar, ou pelo menos do ensino
secundário superior, como capacitador para proporcionar uma qualificação
para o trabalho e uma qualificação para a vida. Nesta óptica, como segmento
escolar de massas, o ensino secundário pode estar a ser conduzido para
eleger a função de parqueamento juvenil como a sua mais relevante função
social. A interrogação deve ir ao ponto de procurar perceber se estamos
diante de uma mera adaptação técnico-funcional do sistema escolar ao
sistema produtivo, mantendo-se a racionalidade produtivista como a
racionalidade
hegemónica
do
recente
ímpeto
reformista
do
ensino
secundário europeu, ou se se está perante um processo de descolagem em
direcção a um pós-profissionalismo, como elemento constitutivo de um
modelo escolar integrador de outras racionalidades, mais auto-referenciado
e mais potenciador do desenvolvimento humano.
Catalogado apressadamente por alguns autores como uma iniciativa política
da nova direita (Green,1995), o neoprofissionalismo pode conter, nesta
hipótese, nos novos percursos do ensino secundário, as possibilidades reais
de um muito maior número de estudantes (tendencialmente todos) se
apropriarem de
uma combinação de saberes e de competências,
comummente enunciados como necessários à formação dos cidadãos como
"seres sociais e sujeitos políticos", como diz Lucie Tanguy (1985), na medida
em que faculte o acesso de todos os jovens a uma cultura comum, em que a
cultura técnica e profissional não tenha um lugar de prescrição mas de
eleição, uma entre outras vertentes constitutivas da cultura humana, em que
535
se combinem visões do mundo e valores, entre os quais estão
necessariamente os que brotam da vida profissional e da actividade
empresarial, em que se integrem teoria e prática, instrução e formação,
disciplina e projecto, colectivo e pessoal.
De facto, as políticas educativas que, face a um novo quadro de
selectividade social e de evolução económica, retiram do ensino secundário
o paradigma da especialização e da diferenciação escolar como modelos
dominantes da sua configuração e não reestruturam simultaneamente o
ensino secundário geral académico, o ensino "liberal", para usar o termo
inglês, podem traduzir-se, na prática, na subordinação acrítica aos
imperativos da produção e da reprodução da ordem social dominante e na
manutenção da histórica e profunda dicotomia entre formação geral e
formação
profissional.
O
movimento
neoprofissionalista,
enquanto
movimento que recusa o profissional por desnecessário e rapidamente
obsoleto, e que se acomoda no geral, ou seja no academismo, recusando ou
evitando a fecundação entre geral e profissional, rompendo a reiterada
dicotomia, encaminha-se para uma nova especialização e responde a um
mandato necessariamente económico, mas fica aquém de um mandato
cultural que, assim, apenas se entreabre, impedindo um desenvolvimento
mais
equilibrado
da
neoprofissionalismo
personalidade
equivale
a
dos
indivíduos.
neogeneralismo,
Nesta
medida,
ou
melhor,
neoacademicismo, na senda do movimento "back to basics", propagado do
outro lado do Atlântico.
Haverá mesmo uma cultura geral sem cultura profissional, pergunta Bertrand
Schwartz (1978) ? Não terá chegado o tempo, ou a oportunidade histórica,
de ultrapassar e enterrar a velha inscrição de Husén, que correu o mundo e
fez a sua época, de que "a melhor preparação profissional é uma boa
formação geral"(1989)? Sem se quebrar esta dicotomia, o ensino secundário
536
continuará a dificultar aos jovens uma participação social bem sucedida
(Copa e Bentley, 1992).
O corpo das hipóteses de investigação
Encerra-se esta discussão da problemátiva com uma breve revisitação do
corpo das hipóteses atrás enunciadas.
À medida que, no palco europeu e na segunda metade do Séc.XX, o ensino
secundário se vai lentamente tornando um ensino de massas, acentua-se
inevitavelmente a sua função propedêutica de estudos posteriores. A
atracção pela formação geral, os movimentos de desespecialização e de
integração curricular no ensino e na formação ao nível secundário
inscrevem-se, assim, numa evolução historicamente situada das funções
sociais mais relevantes desempenhadas pelo ensino secundário. De um
ensino propedêutico de elites, o ensino secundário evoluiu para um ensino
propedêutico de massas, tornando-se uma via de passagem para o ensino
pós-secundário e para o ensino superior, via essa onde se filtra não tanto
quem continua e quem termina o ciclo secundário, mas cada vez mais que
tipo de continuidade poderá cada um estabelecer, para além do nível
secundário. Impera, assim, no ensino secundário europeu, no fim do Séc.XX,
a racionalidade inerente ao predomínio da função propedêutica de um
ensino de massas.
A esta racionalidade dominante e bem articulada com ela, deve-se aduzir
ainda o predomínio da racionalidade económica e produtivista. Num contexto
social mundial novo, em que as escolas nacionais e locais são cada vez
mais instituições educativas da sociedade mundial, as reformas educativas
empreendidas em cada país europeu e aqui analisadas integram-se num
projecto reformador mais global, numa dinâmica global regulada por
537
ideologias veiculadas a nível mundial por organismos e agências
internacionais, redes de peritos, publicações, estudos e estatísticas,
correntes ideológicas estas que transmitem uma feição homogeneizante e a
perspectiva de que os sistemas educativos nacionais têm de evoluir e de se
adaptar aos novos requisitos da economia e do novo modelo produtivo póstaylorista emergente. Cremos também que a similitude e a simultaneidade
das reformas em apreço, por outro lado, correspondem a um fenómeno de
convergência retórica entre os sistemas educativos nacionais, que se
apropriam politicamente, de modo localmente diverso, do novo mandato da
economia e das novas "directivas" do sistema educativo mundial.
Reiteramos, por isso, a hipótese que havíamos formulado em último lugar, de
que os decisores políticos e os parceiros sociais nacionais agem sob a
orientação desta ideologia global, que transformam em retórica política
reformadora do sistema educativo nacional, processo este em que se
transcendem a realidade local e os seus problemas específicos, mas em que
se legitima a acção do Estado-nação. Faz parte deste processo uma efectiva
apropriação e uma intransponível reinterpretação nacional e local dos
referidos mandatos ou directivas, o que explica em boa parte a diversidade
de medidas de política nacionais que coexistem com as referidas similitude e
simultaneidade e que nelas se integram.
O neoprofissionalismo surge, neste âmbito, como uma poderosa tecnologia
social, adoptada e seguida pela generalidade dos actores sociais associações empresariais e sindicais, associações de pais, professores,
peritos do campo da educação - com vasta aplicação na Europoa dos anos
noventa, ao serviço da criação de um mais amplo mercado escolar de ensino
e de formação pós-obrigatória, capaz de suscitar, atrair e acolher uma
procura social em expansão, afastada que está do acesso ao mercado de
emprego. Cria-se por esta via um ensino secundário de massas e este, em
qualquer das suas modalidades -escolar, dual e não-formal -, cada vez mais
538
próximas entre si, apresenta-se como uma larga estrada de passagem para
um ensino superior de massas. Este parece ser o mais relevante serviço
social que o movimento e a ideologia neoprofissionalista prestam à
economia: promover um ambiente escolar de ajustamento seja ao novo
mandato económico seja à procura social.
Mantemos, por tudo isto, a hipótese de que o mandato social que preside a
estas reformas é de raíz económica, embora a sua concretização pouco
tenha que ver com a chamada adequação imediata do sistema escolar às
novas necessidades concretas de emprego, pela simples razão que já não é
através da promoção de uma formação profissional especializada de
preparação para o emprego que o sistema escolar serve a economia, a este
nível etário. Antes de mais, as reformas neoprofissionalistas subordinam-se
à situação de desemprego estrutural e de desemprego juvenil, ao cortejo de
disfuncionamentos existentes no mercado do primeiro emprego e à retórica
avassaladora do pós-taylorismo e do modo de produção flexível, na esteira
do tradicional e omnipresente técnico-funcionalismo, que continua a ser
tomado como o mais importante princípio regulador entre e educação e a
sociedade.
Apesar de aparentemente ser muito pouco eficaz este ajustamento do
sistema escolar às "necessidades da economia", uma vez que já não se
traduz tanto na preparação de profissionais qualificados, é historicamente
compreensível que a retórica neoprofissionalista atribua a esse ajustamento
o seu fundamento principal. No entanto, a conclusão provisória que
formulamos, num primeiro lanço, é a de que estamos perante um
ajustamento tipicamente escolar, direccionado a satisfazer tanto a procura
social crescente como a necessidade mais imediata do sistema produtivo, a
saber, manter os jovens por mais tempo afastados do mercado de emprego e
renovar os processos de selecção escolar, em ordem à adaptação
meritocrática à nova hierarquia dos empregos.
539
Num segundo lanço e uma vez que o ajustamento com a economia e com a
procura social se faz em boa parte pelo reforço "generalista" dos planos de
estudo e pelo prolongamento do afastamento dos jovens do mercado de
trabalho, advogamos também que este mesmo ajustamento compreende
também um progressivo “afastamento” entre o sistema escolar e o sistema
produtivo.
De facto, as reformas neoprofissionalistas traduzem-se em processos de
“afastamento” progressivo entre as escolas e as empresas, ao mesmo tempo
que se reforça, de modo só aparentemente paradoxal, em vários países, a
intervenção dos empregadores e dos trabalhadores na orientação das
políticas de ensino e de formação. O distanciamento entre escolas e
empresas, ao ampliar-se aparentemente, não se traduz, porém, em um
desfasamento entre educação e economia ou em distanciamento, por parte
do sistema escolar, do novo mandato económico; o referido “afastamento”,
na nossa hipótese, surge exactamente como o rigoroso cumprimento desse
mandato, como a função social mais actual e relevante do ensino e da
formação de nível secundário, o novo modo de aproximação entre sistema
escolar e sistema produtivo.
Por outro lado e no que se refere à relação entre educação geral e educação
profissional, o neoprofissionalismo equivale as mais das vezes ao reforço da
formação geral académica, mantendo-se a dicotomia curricular entre ensino
geral e ensino profissional, enquanto obviamente este último perde espaço e
relevância. Os novos currículos que emanam destas reformas moldam-se
mais e mais à procura individual de ensino e de formação e nesse mesmo
processo, na matriz ordenadora do ensino e da formação ao nível
secundário, vai ficando cada vez mais longe e aparentemente esquecido o
referente das necessidades de qualificação oriundas do mercado de
trabalho. Ora, este distanciamento é precisamente um dos modos do campo
540
do ensino e da formação responderem à vertente técnico-económica do novo
mandato social.
O ensino secundário geral académico parece constituir, qual último recurso,
a vertente mais segura e menos "reformada" do ensino secundário, uma
espécie de percurso necessário de um novo ensino secundário de massas,
tendencialmente universal, o único percurso que é tomado como capaz de
proceder à filtragem dos jovens para as várias modalidades de estudos póssecundários e superiores. Reforçamos, por isso, a nossa hipótese de que o
ensino secundário geral académico deve ser lido como uma via
especializada de ensino e de formação, pois, em resumo, é sendo mais
“geral” que o ensino
e a formação de nível secundário são mais
“profissionais”.
Será, assim, oportuno procurar saber até que ponto existe na actualidade um
reequilíbrio entre finalidades do nível secundário e, caso exista, saber até
que ponto se está a reforçar ou limitar a função educativa multidimensional
dos jovens que frequentam o ensino e a formação a este nível. Pode
suceder, e é isso que também deve ser verificado, que o novo modo de
especialização, segundo o figurino do ensino geral académico (o liceu),
reforce a selectividade deste mesmo nível de ensino, em função dos
percursos posteriores, pós-secundários e superiores. O novo quadro de
especialização em torno do eixo do ensino geral académico atrai, por um
lado, todos os segmentos para o seu figurino, criando no limite um só
percurso para o ensino secundário de massas, repleto de diversidade e de
flexibilização internas, e pode, por outro, atirar os segmentos minoritários e
mais direccionados para a preparação para o ingresso imediato no trabalho,
que ainda sobrevivam a este nível, para uma ainda maior desvalorização e
estigmatização sociais.
541
Aquilo que se auto-intitula frequentemente como um retorno necessário ao
que é escolarmente essencial e fundamental, à tão difundida formação de
base sólida e polivalente, em oposição à instabilidade dos empregos e das
profissões, e em consonância com a flexibilidade laboral e com a formação
para a adaptabilidade, deve ser interrogado não só como um processo de
acantonamento das propostas educativas nos saberes disciplinares gerais e
académicos, mas também como processo de liofilização do que se podem
considerar as traves mestras educacionais ou a multidimensionalidade da
educação. Pode suceder que as razões que mobilizam a escolha do mais
geral, do mais polivalente e do mais flexível pouco tenham que ver com
motivações educacionais, cujas propostas e processos educativos não se
chegam sequer a questionar, mas com meras adaptações funcionais do
sistema escolar, profundamente tecnocráticas na sua origem, na sua
formulação e nas suas finalidades, modos de legitimação de uma ordem
social existente.
No entanto, emerge também, neste processo de reformas dos planos de
estudos e dos currículos, na medida em que que cresce a opcionalidade e a
individualidade nos percursos de formação, uma neodiversificação curricular,
agora colocada mais ao serviço das escolhas dos alunos e menos das
necessidades do mercado de emprego. As escolhas passam a referir-se a
um leque de opções, onde tanto há lugar para as componentes mais
académicas, como para as componentes tecnológicas e profissionais e para
um contacto mais estreito com o mundo envolvente, o que dota as propostas
curriculares de uma maior multidimensionalidade educativa. Ora, cremos que
este investimento na “personalização” curricular também vai de encontro a
um mandato cultural que historicamente atribui ao sistema de educação
escolar a função da promoção do desenvolvimento humano, acima e antes
de qualquer outra função social, inclusivamente a produtiva.
542
Verifica-se,
deste
modo,
que
o
ensino
secundário
poderá
estar
simultaneamente a encaminhar-se para uma maior auto-referenciação,
regulando-se mais por uma ideologia educacional que assenta no
desenvolvimento da diversidade humana e cultural e que prossegue também
a finalidade da formação multidimensional dos jovens, em ordem ao
exercício livre, autónomo e criativo dos mais diversos papéis sociais. Esta
perspectiva, a vingar e ao ganhar terreno no plano da estruturação das
políticas, poderá vir a estabelecer novas e importantes tensões dentro do
ensino e da formação ao nível secundário, dado ela entrar frequentemente
em rota de colisão com os mandatos económicos e instrumentais, em geral,
na medida em que estes tendem a centrar-se na especialização (ainda que
esta se chame ensino “geral”) e na selecção. Em que medida é que este
mandato cultural também está presente nas reformas em curso? Como é que
os diversos actores sociais locais o formulam e valorizam? Não será a
flexibilidade curricular um mero ajustamento à flexibilidade produtiva, que
ocorre actualmente na reestruturação da economia de mercado? Não será a
individualização curricular uma outra face da individualização crescente nas
relações laborais, em que se transferem muitas das tensões e conflitos entre
grupos e estruturas para a esfera individual?
A nossa hipótese é esta: o mandato cultural está presente, a par e em
conflito com outros referentes, sobretudo com o mandato económico, mas a
sua visibilidade política é escassa e é ainda muito ténue a sua tradução em
medidas de política nas reformas em apreço. De facto, é também possível
desde já argumentar que o tipo de políticas seguidas, de especialização em
torno do ensino geral académico, ainda é muito escassamente capaz de
acolher, respeitar e desenvolver a diversidade social, a multiplicidade de
experiências pessoais e a variedade de aspirações e expectativas sociais
dos jovens do grupo etário 16-18/19 anos. Ao liofilizar o ensino secundário
em torno do referencial do ensino geral académico, as políticas educativas
podem estar apenas a cumprir uma nova funcionalidade, que pouco mais
543
será do que uma velha funcionalidade agora revisitada. Assim, mais do que
a orientar-se decididamente para outro tipo de missão social e outro modo
de organização escolar, mais centrados sobre o desenvolvimento humano,
que escapam decididamente a uma matriz e a uma prisão funcionalista, o
ensino e a formação secundários na Europa atravessam uma crise tanto
teleológica como estrutural, que se traduz pela manifestação de um novo
foco de tensões entre finalidades e modelos e pelo seguidismo em relação à
evolução da economia e das empresas.
Cruzam-se, assim, nas recentes reformas do ensino secundário na Europa,
ideologias e mandatos sociais divergentes e conflituantes, uma pluralidade
de modos e de tempos, degladiam-se vontades nacionais e mandatos
mundiais, constroem-se representações fantasiosas da realidade do trabalho
e da escola, que revelam no seu conjunto um quotidiano com um forte sabor
a incerteza, típico dos tempos de transição, e um cheiro acre a crise cultural.
Os debates sobre estas matérias continuam a alargar-se e a controvérsia é
muito grande. A reflexão e a análise sobre o sentido e as prováveis
consequências das medidas de política que analisamos é, particularmente
no nosso país, muito escassa. A acção política dos governantes europeus
parece limitar-se, regra geral, ao esperar para ver, como se este fosse o
cenário mais sensato, como se à acção política em educação mais não
restasse do que reagir "a posteriori" ao que a sociedade, a economia ou este
e aquele parceiro social reclamam da educação, ou seja, como se a acção
política em educação e formação não pudesse também ser criadora de
sentido e fomentadora de civilização, de um modo pró-activo.
Admitimos, no termo desta incursão teórica, que se reabre, no entanto, na
fase de transição cultural em que vivemos, início de um novo século, um
importante e novo ciclo de debate (um debate que tem sido sempre
recorrente ao longo da sua história) sobre as finalidades do ensino
secundário, as suas racionalidades preponderantes e as novas tensões
544
entre si, quando parecia já não haver outro caminho socialmente útil que não
fosse o da sua submissão crescente às finalidades produtivas e à
reprodução das desigualdades sociais. Este processo de religitimação social
e teleológica do ensino e da formação ao nível secundário parece ser um
processo lento, complexo e conflituoso. É provável que se, mantenha, no
futuro próximo, o clima de inquietação acerca da capacidade genérica do
sistema de ensino e de formação interpretar e desenvolver eficientemente as
"novas competências" sociais e a humanidade da pessoa que mora em cada
jovem aluno, sob o peso de uma herança histórica muito pesada, em que um
certo modo de produção escolar se enleava pacífica e inquestionavelmente
com um certo modo de produção económica, sempre sob o manto
imprescindível de uma teleologia construída de fora para dentro do acto
humano de ensinar e de aprender.
Concluída a revisitação deste corpo de hipóteses, dirigimo-nos agora para
uma segunda abordagem empírica que teste a sua pertinência e relevância
explicativa em relação aos fenómenos em análise. Tal abordagem foi
realizada através da aplicação de um inquérito junto de alguns interlocutores
nacionais significativos, nos nove países europeus em estudo. De facto, crêse que os sentidos que, em termos práticos e concretos, as medidas de
reforma educativa aqui em análise tomam, dependem em grande medida do
modo como delas se apropriam os principais actores sociais envolvidos. Ou
seja, como agem perante as novas orientações normativas os diversos
agentes sociais locais, com destaque para os jovens, os pais, os
professores, os empresários, os sindicatos e os peritos. O modelo de
questionário apresenta-se em anexo. Os principais resultados desta fase da
investigação apresentam-se de seguida.
545
Capítulo 7
O inquérito e os seus resultados
Apresentam-se agora os principais resultados da aplicação do inquérito
sobre a evolução recente do ensino secundário na Europa. Conforme já ficou
descrito no capítulo onde se explicita a metodologia, aplicou-se um
questionário, em nove países europeus, a um conjunto de actores sociais
mais ou menos envolvidos nas recentes reformas empreendidas no ensino e
na formação àquele nível de ensino, a saber, confederações patronais e
sindicais
nacionais,
associações
de
pais
nacionais,
sindicatos
de
professores, membros de partidos políticos, peritos participantes nas
reformas e investigadores ligados a centros de investigação envolvidos nas
reformas.
Este inquérito pretendia conhecer, para lá da descrição e fundamentação
oficial dos Ministérios da Educação dos vários países, a opinião de um
conjunto muito significativo de actores sociais acerca das reformas do ensino
secundário empreendidas pelos vários governos. A audição destes actores,
situados numa grande diversidade de campos ideológicos e políticos, é
capaz de nos dar a conhecer a diversidade e a conflitualidade de
posicionamentos face às reformas em análise. Duas questões centrais são
objecto desta investigação e, portanto, do questionário aplicado: por um
lado, a simultaneidade e a similitude com que as reformas se apresentam no
conjunto dos países europeus, evidenciando a acção do sistema educativo
mundial, e, por outro, a atracção pela formação geral académica e a
desespecialização que, em boa parte, caracterizam estas reformas. Procurase, agora, estabelecer um diálogo entre os contributos teóricos mobilizados,
as hipóteses formuladas e as respostas obtidas, o que implica que se
retome, a cada passo, cada uma das questões centrais da investigação.
546
Recolheram-se 67 respostas distribuídas, por país e por tipo de actor social,
do modo que se segue:
Quadro 7.1
Distribuição dos respondentes por país e segundo o tipo de actor
social
País
Nº de respostas Sindicato Associação Confederações Confederações Partidos / Peritos
recebidas de Professores de Pais
Patronais
Sindicais
Força Política
(1)
(1)
Dinamarca
5
1
---
2
1
---
1
Espanha
8
3
1
---
---
1
3
Finlândia
8
1
2
1
---
1
3
França
8
2
2
---
1
---
3
(2)
(3)
Holanda
10
1
1
3
5
---
---
Itália
7
2
---
1
---
1
3
Noruega
7
1
1
1
1
1
2
Suécia
4
1
---
1
2
---
---
Suíça
10
2
---
2
2
2
2
12
6
17
(1)
Total
67
(1)
14
7
11
(1) Uma das respostas não foi tratada porque não respeitou o questionário proposto.
(2) Na Holanda contabiliza-se duas vezes a resposta da Organização COLO - Association of National Bodies for Vocational Training, instância de parceria social
que reúne associações patronais e sindicais e que foi tratada quer como associação patronal quer como associação sindical, aliás o modo como ela própria
se apresenta.
(3) Uma das confederações sindicais é a LAKS - Federação Nacional de Estudantes que, apesar de excepcional, se optou por incluir dentro desta categoria mais
geral.
Tendo em conta que o número de respostas desejado oscilava entre oito e
catorze, por país, e que foram efectivamente distribuídos 103 questionários,o
número de respostas recolhidas (67) e tratadas (66) representa um retorno
de 65% dos questionários e fica muito próximo do universo potencial, no seu
limiar inferior (72), ou seja, 8 por país. Na Suécia e na Dinamarca houve uma
real dificuldade na obtenção de respostas, em ambos os casos devido ao
fraco envolvimento do contacto ou "pivot" nacional.
547
Quadro 7.2
Questionário enviados e recebidos, por país e por actor social
Sindicato de Confederação Confederação Associação
PAÍS
Professores
Sindical
Patronal
de Pais
Env. - Rec. Env. - Rec. Env. - Rec.
Partido /
Peritos
Força Política
Total
p/ País
Env. - Rec. Env. - Rec. Env. - Rec. Env. - Rec.
1
1
Dinamarca 2
1 2
1 2
2
__
__
1
__ 4
1 11
5
Espanha
3
3 2
__ 2
__
2
1
2
1 3
3 14
8
Finlândia
1
1 1
__ 1
1
2
2
3
1 3
3 11
8
França
2
2 2
1 1
__
3
2
__
__ 3
3 11
8
Holanda
3
1 5
5 3
3
2
1
__ 13
10
Itália
2
2 2
__ 2
1
1
__
1
1 3
3 11
7
Noruega
1
1 1
1 1
1
1
1
2
1 2
2 8
7
1
2
1
__ 8(4)
4
2 2
2 2
2
2
Suécia (4)
Suíça
2
(3)
__
2
__
__
(3)
__
3
2 5
2 16
10
1
Total p/
actor social 16
14 17
12 14
11
1
13
7 12
6 23
17 103
67
(1) Uma das respostas não viria a ser tratada porque não respeitou o questionário proposto.
(2) Contabilizou-se duas vezes a resposta da Organização COLO (Patronal e Sindical)
(3) O "pivot" nacional não forneceu elementos sobre partidos políticos e peritos a inquirir por entender, apesar dos nossos esforços, que não há
nenhuma personalidade a destacar num processo que ele considera que foi construído pelos actores sociais
(4) O "pivot" nacional não enviou a lista das entidades e personalidades a quem o questonário foi distribuído por si mesmo, na Suécia (em princípio, oito
no total) .
Quanto ao tipo de respondentes, verifica-se que há uma distribuição
razoavelmente homogénea, com excepção dos membros das associações de
pais e de partidos e de forças políticas directamente envolvidos nas
reformas, cuja adesão foi mais difícil de alcançar, sobretudo devido à sua
falta de disponibilidade e ainda devido ao facto de ter sido impossível
percorrer cada um dos países a recolher as respostas ou até a realizar
entrevistas presencialmente. No entanto, esta conclusão deve ser temperada
pelo facto de alguns destes políticos terem respondido como peritos, pois em
alguns casos já não se encontram a exercer actualmente as mesmas funções
desempenhadas ao tempo da concepção e do lançamento das reformas. O
nível de respostas, em termos absolutos, é mais elevado para os peritos e os
548
sindicatos de professores, seguindo-se as confederações sindicais e
patronais.
Quanto à qualificação dos respondentes para participarem neste estudo,
verifica-se que a grande maioria dos actores que produziram a sua reflexão
(92%) tinham efectivamente participado nos diversos processos de reforma
em análise, havendo 64% que assinalam terem tido mesmo uma participação
"muito activa" nas reformas nacionais. Entre estes destacam-se os peritos
(15 em 17) as confederações patronais (8 em 10), os partidos políticos (4 em
6) as confederações sindicais (8 em 12). Os sindicatos de professores (6 em
14) e as associações de pais (1 em 7) assinalam uma participação menos
activa, o que, pelo menos no primeiro caso, não deve significar ausência de
participação.
A intervenção dos actores consistiu sobretudo na participação em
seminários, debates e conferências (35 respondentes), na participação em
grupos de trabalho que elaboraram as propostas de reformas (27
respondentes) e na elaboração de pareceres (24 respondentes). Outros
intervieram através dos processos de negociação entre o governo e os
parceiros sociais, enquanto dirigentes de organizações sociais, outros
participaram muito activamente como membros dos gabinetes dos ministros
que lançaram as reformas e outros ainda participaram como animadores de
debates nas escolas.
Para a grande maioria destes actores, as reformas empreendidas, na sua
fase de concepção e de construção normativa, incorporaram os seus
contributos específicos (83%), sendo muito residual o número dos que
consideram que pouco ou nada foi tido em consideração - 8 casos, sendo 4
deles sindicatos e 3 deles associações de pais.
Segundo o conjunto dos respondentes, os sectores das sociedades
nacionais que mais influenciaram as reformas em estudo foram os
549
Ministérios da Educação, os seus ministros e os governos (35%), os
representantes do patronato e dos sindicatos (20%) e os partidos políticos
(13%). A intervenção dos restantes actores não é valorizada de modo
significativo.
Em síntese e quanto à caracterização dos respondentes constata-se que o
número de respostas obtidas é bastante razoável, que na Dinamarca e na
Suécia o número de respostas é escasso, que os actores sociais que
respondem são muito qualificados para o fazerem, o que permite afirmar
como expectável um alto grau de credibilidade nas respostas dadas, e que
estes actores consideram que as reformas em apreço incorporaram os seus
contributos específicos. Por outro lado, verifica-se que os grandes mentores
e motores das reformas educativas em apreço foram os Ministérios da
Educação, no quadro de medidas de política estruturadas centralmente,
registando-se também um significativo nível de envolvimento dos parceiros
sociais tradicionais, patronato e sindicatos.
As motivações e os objectivos das reformas
Esta parte do questionário procura indagar a opinião dos actores sociais
envolvidos nas reformas acerca das motivações e dos objectivos que
orientaram estas reformas. O nosso propósito é o de desvendar a percepção
destes diferentes tipos de actores sobre as principais motivações que
subjazem aos empreendimentos reformadores ao nível do secundário. Seis
questões foram formuladas. As cinco primeiras, de um modo recorrente e
talvez excessivo, procuram, passo a passo, decantar uma opinião
suficientemente reflectida sobre o lastro de motivações e de objectivos que
sustentaram as iniciativas de política educativa em apreço. A ênfase neste
tipo de perguntas prende-se também com a necessidade, central na
economia da investigação, de confrontar as percepções dos actores sociais
550
com a retórica dominante acerca das motivações que sustentaram as
decisões políticas nacionais em apreço. A análise das respostas dadas deve,
pois, ser apresentada retomando o encadeado que une as perguntas.
Como vimos, sobressaem entre as motivações destas reformas do nível
secundário na Europa, no fim dos anos oitenta e na primeira metade dos
anos noventa, o ajustamento técnico-funcionalista dos sistemas educativos
quer à evolução da economia quer à evolução da procura social do ensino
secundário.
Constituem-se, através destas reformas neoprofissionalistas, amplos e novos
mercados de ensino e de formação, traduzidos sobretudo no alargamento e
na criação de uma panóplia de instrumentos e de programas que amarram
os jovens ao terreno da educação e os afastam, por mais algum tempo, da
disputa dos empregos e do mundo das empresas. Por outro lado, uma
retórica "global" que enfatiza a emergência de um novo modelo de produção,
o pós-fordismo, e o predomínio de uma economia de mercado globalizada e
transnacional é igualmente apontada como responsável por uma fatia
significativa do esforço legitimador das medidas de política em análise. Esta
ideologia global, que é transfigurada em retórica legitimadora das reformas
educativas, afecta as representações não só dos partidos políticos mas
também dos representantes dos empregadores, dos sindicatos, das
associações de pais, dos centros de investigação e dos peritos, actores que
são chamados a ter uma participação cada vez mais activa nas mudanças
protagonizadas pelos poderes políticos.
Ao mesmo tempo, estas medidas promovem um ajustamento escolar face à
explosão da procura do ensino secundário superior, na medida em que se
diversificam as oportunidades de ensino e de formação inicial e na medida
em que a oferta se orienta em direcção à procura, procurando dar satisfação
às principais orientações dos fluxos desta mesma procura. As reformas
551
podem, assim, ser analisadas como iniciativas políticas que traduzem a
necessidade dos governos tecerem tecnologias sociais seja para enfrentar
os processos de reestruturação da economia capitalista na Europa, em
particular o desemprego juvenil em crescimento, a flexibilidade laboral e a
turbulência profissional, seja para satisfazerem a procura social.
Neste processo vai-se produzindo uma lenta e progressiva acentuação da
função propedêutica do ensino secundário (Trow, 1978), o que, como
pudemos explicitar, se repercute tanto no conteúdo dos perfis de formação
que são propostos, que se "generalizam" e se aproximam do modelo do
ensino secundário académico tradicional, como na desvalorização social de
todos os percursos de ensino e de formação cujas características se afastem
da função de ponte para estudos subsequentes (Verdier, 1995). Esta
“generalização” deve ser lida também como a expressão de um novo modo
de especialização do ensino e da formação de nível secundário, agora ao
serviço da passagem e da filtragem dos jovens para a continuação de
estudos.
Por outro lado, ficou também formulada a hipótese de que estas reformas se
encontram, em boa parte, entre si, tanto na sua similitude como na sua
simultaneidade, fruto da pressão do sistema mundial sobre os sistemas de
decisão nacionais. De facto, existe um intenso movimento internacional, que
deflui dos países economicamente mais poderosos e que é veiculado
mormente por organismos mundiais e por redes de peritos, que é
comandado por uma ideologia macroeconómica de base transnacional e por
uma retórica resplandecente que lhe está associada, movimento este que
formula um paradigma dominante na relação funcional entre educação e
economia e que provoca um efeito isomórfico e mimético na formulação das
políticas de ensino e de formação nos espaços nacionais. O movimento
reformador neoprofissionalista que analisamos é, a esta luz teórica, uma
construção do sistema educativo mundial.
552
Finalmente, estas reformas também foram interpretadas como aproximações
dos sistemas de ensino e de formação a uma finalidade cultural que os
governos, os actores sociais nacionais e os organismos internacionais
atribuem crescentemente aos sistemas educativos. Subjacente às medidas
de política aqui analisadas estará também presente, para além de um efeito
de acomodação face à economia e de ajustamento face à procura, a
necessidade de dotar os sistemas de ensino e de formação de uma maior
capacidade de fomentar nos jovens o desenvolvimento multidimensional das
suas potencialidades humanas, o que é traduzido geralmente pelo reforço da
formação geral académica e da opcionalidade curricular. Tal necessidade (e
não tal concretização) é considerada, na economia desta investigação, como
parte integrante do mandato social que se formula para os sistemas
educativos, de tipo eminentemente cultural. Enunciamos, no corpo das
hipóteses, que era essencial saber como é que os actores sociais eram
permeáveis e valorizavam este mandato, a par dos outros, já descritos.
A análise das respostas realiza-se sob este manto de hipóteses. A sua
verificação inicia-se pela constatação das principais razões que, na óptica de
cada actor social, levaram os responsáveis políticos a desencadear as
reformas do ensino e da formação ao nível secundário. O Quadro 7.3
expressa os resultados constantes nas respostas dadas.
553
Quadro 7.3
Principais razões que levaram os responsáveis políticos
a desencadearem as reformas
ÂMBITO
"Nada relevante" e
"pouco relevante"(1)
"Relevante" e
"muito relevante"(1)
A razão mais
relevante entre
as "muito relevantes"(1)
2 - Formação mais polivalente para os jovens de 16-19 anos
17
47
10
5 -Estamos diante de um ensino secundário de massas
26
36
3
8 -Sólida formação geral para todos os cidadãos
19
45
8
14 -Ampliar possibilidades de escolha dos jovens
11
52
8
_____
_____
29
9
55
6
4 - Desemprego juvenil
33
31
1
6 - Reter no sistema escolar durante mais tempo
37
25
1
7 - Divisão internacional do trabalho
52
9
0
13 - Pressão dos empregadores
35
28
3
16 - Fraca preparação para o trabalho
15
49
2
19 - Evolução do mercado de emprego
24
36
2
TIPO
Sócio-Cultural
Respostas aqui
Subtotal
3 - Evolução da economia
Económico
15
Subtotal
Político
9 - Ocultar problemas sociais
55
7
0
. Geral
10 - Ineficiência do Ensino Técnico e Profissinal
23
38
5
12 - Reduzir hierarquia geral - profissional
16
46
2
15 - Diferir idade das escolhas escolares e profissionais
30
33
1
17 - Melhor formação profissional e sólida formação geral
22
39
2
18 - Investimentos no ensino técnico e profissional não se justificam
37
21
0
20 - Ensino e formação secundários já não preparam técnicos qualificados
37
16
1
.Isomorfism
1 - Aproximar os sistemas de ensino da Europa
25
39
3
Internacional
11 - Recomendações internacionais
44
17
1
_____
_____
15
.Educativo
Subtotal
(1) Número de vezes que este tipo de apreciação foi feita
Como se pode constatar, os vinte items da pergunta estavam agrupados em
três grandes grupos, as razões de ordem sociocultural, as razões de ordem
económica e as razões de ordem política. Dentro desta última, ainda
separámos aspectos de política geral de aspectos relacionados com as
políticas educativas e escolares e os aspectos relativos ao isomorfismo
554
internacional, retomando assim o quadro de análise que tínhamos esboçado.
Por comodidade de leitura, reunimos em apenas dois grupos as apreciações
negativas (nada relevante e pouco relevante) e as positivas (relevante e
muito relevante) e incluimos também neste mesmo quadro a escolha da
principal razão, entre as vinte assinaladas.
Os resultados apontam para uma conclusão geral: os inquiridos consideram
que as razões de ordem sociocultural sobredeterminaram o desencadear das
reformas, destacando-as bem das razões de ordem política e económica,
estas valorizadas de modo idêntico entre si. Além de cada uma das razões
de ordem social e cultural reunir sempre um grande número de apreciações
positivas, elas recolhem também o maior número de escolhas da "razão das
razões", 29 num total de 59 respostas.
Entre estas razões de ordem sociocultural, ganha especial relevância "a
necessidade de se promover uma formação mais polivalente para os jovens
do grupo etário 16-19 anos" e "o facto de as sociedades contemporâneas
requererem uma sólida formação geral a todos os cidadãos", isto é, os
actores sociais interrogados opinam que as políticas reformadores
empreendidas estão sustentadas na necessidade dos sistemas educativos
proporcionarem agora uma formação mais geral e polivalente a todos os
jovens, como resposta aos novos desafios sociais actuais.
Entre as razões de ordem económica, afloram como mais valorizadas as que
se referem aos novos requisitos das empresas em técnicos altamente
qualificados (o aspecto tido como mais relevante, fora da área sociocultural),
a incerteza e a imprevisibilidade da evolução do mercado de trabalho e
ainda a necessidade de preparar melhor os jovens para o trabalho. Factores
como o desemprego juvenil, a necessidade de reter os jovens no sistema
educativo durante mais tempo e a forte pressão dos empregadores para
mudar a "res" educativa recolhem mais considerações negativas que
555
positivas. O que de todos é considerado menos relevante é o item que atribui
a reforma às exigências da divisão internacional do trabalho no seio do
sistema capitalista ( 15% de referências como “relevante” e O referências,
em termos de “muito relevante”).
Entre as motivações de ordem política, é desde logo recusada pelos vários
actores sociais a ideia de que as reformas empreendidas pelos governos
visaram ocultar outros problemas sociais e políticos do país (apenas 11% o
considera relevante). No que se refere às políticas de ensino e formação, os
respondentes atribuem a sua sustentação à ineficiência do ensino
secundário técnico e profissional que existia antes no país (62%), à
necessidade de reduzir a hierarquia entre a formação geral e a formação
profissional, nas formações pós-obrigatórias (74%), à perspectiva de que a
melhor formação profissional é uma sólida formação geral (64%).
Finalmente, na vertente do isomorfismo internacional, os respondentes
valorizam como relevante o facto de os governos nacionais pretenderem
actualizar o sistema educativo nacional, aproximando-o mais dos seus
congéneres europeus (61%), embora ao mesmo tempo não considerem
relevante a influência das recomendações dos organismos internacionais
(OCDE, UNESCO, ...) sobre a lançamento das reformas (28%). A esta
questão voltaremos mais adiante.
O questionário previa, numa tentativa de melhor conhecer o pensamento dos
respondentes, que estes fundamentassem livremente e pelas suas próprias
palavras a sua escolha de um item, entre os vinte listados, exactamente
aquele que considerassem mais relevante, entre os já assinalados como
"muito relevantes". A análise destas respostas abertas é, por isso, muito
importante. Enquanto que, para as escolhas relacionadas com as razões de
ordem económica e de ordem política, a explicitação dos porquês não
acrescenta nada de novo em relação à preferência atribuída, o mesmo não
sucede para a selecção dos aspectos relacionados com as motivações de
556
ordem sociocultural, aliás os que merecem mais comentários dos inquiridos.
A necessidade de promover uma formação mais polivalente (item 2), o facto
das sociedades contemporâneas exigirem uma sólida formação geral a todos
os cidadãos (item 8) e a necessidade de ampliar e diversificar as
possibilidades de escolha dos jovens (item 14) são escolhas fundamentadas
com os seguintes argumentos: (i) para além de saberes, a escola deve
desenvolver aptidões e atitudes, chaves indispensáveis para entrar numa
sociedade que exige autonomia, flexibilidade, mobilidade e um sentido
acrescido das responsabilidades, um mundo complexo e interconectado; (ii)
a incerteza do futuro do mercado de trabalho, o aumento da procura, por
parte dos empregadores, de pessoal mais qualificado, bem como a
necessidade de dotar os jovens trabalhadores com a capacidade de serem
reconvertidos rapidamente, diante dos processos de reestruturação e de
reconversão empresarial; (iii) a necessidade de evitar a especialização
precoce, de aumentar as possibilidades de escolha por parte dos jovens, no
fim do secundário, e de não provocar a segregação social, promovendo
antes a igualdade; (iv) a necessidade de satisfazer uma nova procura social,
muito intensa e generalizada, um nível secundário de massas; (v) a
necessidade de melhorar a reputação do ensino ténico e profissional e de o
tornar mais atractivo, além de responder a requisitos de formação mais
abrangente, oriundos do ensino superior politécnico; (vi) responder à
necessidade de uma aprendizagem ao longo de toda a vida.
Esta leitura permite compreender, por um lado, como as razões que
fundamentam as preferências estão entrelaçadas umas nas outras (culturais,
económicas, sociais e de política educativa) e como é forçado separá-las e,
por outro, que as mutações nas sociedades, nas economias e nas empresas
constituem o núcleo das motivações que, ao nível do discurso dos actores
sociais, sustentaram as reformas.
A desagregação destas respostas segundo o tipo de actor social impõe
557
algumas considerações. Tomamos como referente o Quadro 7.4, que
segmenta as razões mais relevantes entre as muito relevantes. A primeira é
a de que só as confederações patronais é que atribuem maior relevância a
factores não contidos na categoria sociocultural, dando uma leve primazia
aos factores de ordem económica. Os sindicatos de professores, as
confederações sindicais e os peritos são os que mais valorizam a
componente da política educativa, embora sempre em segundo lugar, após a
componente sociocultural.
Quadro 7.4
Aspectos mais relevantes (entre os “muitos relevantes”) que levaram os
responsáveis políticos a desencadear as reformas, segundo os actores
inquiridos
558
AMBITO
TIPO
Respostas aqui
A razão mais
relevante entre
as "muito relevantes"
Sindicato Associações Confede- Confede- Partidos Peritos
de
de
rações
rações
Professores
Pais
Patronais Sindicais
10
1
2
1
2
1
3
3
1
1
---
---
---
1
Sócio-Cultural8 -Sólida formação geral para todos os cidadãos
8
1
1
---
2
1
3
14 -Ampliar possibilidades de escolha dos jovens
8
2
---
2
1
2
1
29
5
4
3
5
4
8
3 - Evolução da economia
6
1
---
2
---
1
2
4 - Desemprego juvenil
1
1
---
---
---
---
---
6 - Reter no sistema escolar durante mais tempo
1
---
---
---
---
---
1
2 - Formação mais polivalente para os jovens de 16-19 anos
5 -Estamos diante de um ensino secundário de massas
Subtotal
0
---
---
---
---
---
---
13 - Pressão dos empregadores
3
---
---
1
2
---
---
16 - Fraca preparação para o trabalho
2
---
---
1
1
---
---
19 - Evolução do mercado de emprego
2
---
1
---
---
---
1
15
2
1
4
3
1
4
9 - Ocultar problemas sociais
0
---
---
---
---
---
---
10 - Ineficiência do Ensino Técnico e Profissinal
5
2
---
1
2
---
---
12 - Reduzir hierarquia geral - profissional
2
---
1
---
---
---
1
15 - Diferir idade das escolhas escolares e profissionais
1
1
---
---
---
---
---
2
---
---
---
---
---
2
18 - Investimentos no ensino técnico e profissional não se justificam
0
---
---
---
---
---
---
20 - Ensino e formação secundários já não preparam técnicos qualificados
Económico 7 - Divisão internacional do trabalho
Subtotal
Político
.Geral
.Educativo 17 - Melhor formação profissional e sólida formação geral
1
---
---
---
---
---
1
.Isomorfism 1 - Aproximar os sistemas de ensino da Europa
3
---
---
1
1
1
---
Internacional 11 - Recomendações internacionais
1
1
---
---
---
---
---
Subtotal
15
3
1
2
3
1
4
Outras
---
1
---
---
---
---
1
Não responde
---
2
1
1
1
---
---
A segmentação por países revela-nos que os items 3 e 14 são os mais
relevados no conjunto dos países, obtendo sempre uma apreciação muito
positiva41. As motivações de ordem sociocultural são as que reunem, para o
conjunto dos países, as notas mais relevantes entre os vários tipos de
motivações. A desegração permite, no entanto, perceber que os países onde
aquelas motivações são mais valorizadas são a Itália e a França e os países
em que elas são menos valorizadas são a Holanda e a Dinamarca. As
motivações de ordem económica são mais assinaladas pela Suécia, que
41 Consultar o quadro nº A1, constante do anexo. O item 3 refere “a evolução da economia, em que as empresas
requerem, cada vez mais, técnicos altamente qualificados” e o item 14 refere “a necessidade de ampliar e diversificar as
possibilidades de escolha dos jovens”.
559
também é o país que mais relevo dá às motivações de ordem política, ao
lado da Itália, da Espanha e da Noruega.
O segundo modo de desvendar o véu das motivações reformadoras consistiu
em pedir
para
os
respondentes
assinalarem qual
dos
objectivos,
sinteticamente descritos, visou a reforma empreendida (Cfr. Quadro 7.5). As
reformas visaram responder "a um imperativo de desenvolvimento pessoal e
social dos jovens". Esta é a opinião inequívoca dos actores sociais
inquiridos. Quisemos aqui separar e destacar, dentro do imperativo
sociocultural, um aspecto que melhor se pudesse relacionar com uma
perspectiva marcadamente humanista do ensino e da formação. As
preferências dirigiram-se para este factor. Em segundo lugar, opina-se que
se está a responder a um imperativo económico e político.
560
Quadro 7.5
Em poucas palavras, a reforma do ensino secundário visou
essencialmente o seguinte objectivo
Objectivos:
Total e parcialmente
em desacordo
Parcial e
totalmente de acordo
Totalmente de
acordo
Responder a um imperativo político.
18
44
14
Responder a um imperativo económico.
16
48
19
Responder a um imperativo cultural.
19
42
15
Responder a um imperativo de desenvolvimento
pessoal e social dos jovens.
10
53
34
20
44
18
Promover um ajustamento escolar, agora que se
universializa o ensino secundário.
A repartição por países42 evidencia que “o imperativo do desenvolvimento
pessoal e social dos jovens” é o que recolhe o maior acordo em Espanha, na
Finlândia, na Itália e na Suiça. Neste país há um item ainda mais
seleccionado, que é o que refere que a reforma nacional visou
essencialmente
“promover
um
ajustamento
escolar,
agora
que
se
universaliza o ensino secundário superior”, aspecto este que também reune
um bom nível de concordância nos casos da Itália, da França e da Espanha.
No caso da Noruega há uma escolha muito nítida do “imperativo político” e,
de seguida, do “imperativo económico” e, no caso da Holanda, verifica-se o
inverso, ou seja, uma preferência pelo “imperativo económico” como
fundamento da reforma empreendida, seguida da escolha do “imperativo
político”.
A segmentação por actor social43 permite concluir que são os sindicatos de
professores e as confederações sindicais que mais valorizam o “imperativo
político”, seguidos pelas confederações patronais e pelos partidos e forças
políticas. As confederações sindicais e os partidos são os que mais
42 Consultar o quadro nº A2,em anexo.
43 Consultar o quadro nº A3, em anexo.
561
valorizam o “imperativo económico”. Já o “imperativo cultural” é o mais
destacado pelos peritos e é também destacado apenas pelas associações
de pais. O aspecto “responder a um imperativo do desenvolvimento pessoal
e social dos jovens” obtém a concordância de todos os actores sociais, com
destaque para as confederações patronais (em que é o aspecto que obtém
maior concordância), para as associações de pais (idem) e para os partidos.
A perspectiva de que se trata sobretudo de um “ajustamento escolar” ao
ensino secundário universalizado obtém em geral um bom nível de
concordância, com destaque para os partidos e com excepção das
confederações sindicais, que discordam maioritariamente da afirmação.
Pediu-se, de seguida, que os respondentes, para lá do modo como as
reformas foram sustentadas pelos decisores políticos, emitissem a sua
própria opinião sobre as motivações "reais" acerca do processo de reforma
estabalecido. (Cfr. Quadro 7.6). Esta pergunta visava situar o respondente
no seu próprio terreno, procurando separar a sua opinião da de outros,
mormente dos responsáveis políticos pelas reformas. Constata-se, no
entanto, que as respostas convergem com as anteriores. Segundo todos
estes actores sociais, aquilo em que realmente se centraram as reformas foi
na construção de um novo currículo, capaz de combinar melhor formação
geral e formação profissional, no acréscimo do peso das disciplinas da
"formação geral” e também no ajustamento do sistema escolar a uma
economia em reestruturação, aproximando as escolas e os centros de
formação das empresas. Decididamente, os respondentes não consideram
que as reformas tenham correspondido a um modo de mudar as coisas para
ficar tudo na mesma ou a um momento de desorientação política.
562
Quadro7.6
563
Os actores sociais respondentes não consideram que os processos de
reforma
tenham
sido
centrados
na
redução
das
especializações
profissionais, mas antes em algo prévio e mais importante, o acréscimo da
“formação geral” e a melhor combinação entre “formação geral e formação
profissional”. As opiniões dividem-se mais, entre acordo e desacordo, acerca
de outros aspectos como o do aumento da duração dos troncos comuns de
formação, o do adiamento das escolhas profissionais e do adiamento da
selecção para o ensino superior e ainda sobre o objectivo de aproximar o
seu país dos vizinhos europeus e das tendências internacionais. A este
propósito sublinhe-se, no entanto, que a maioria dos respondentes
reconhece que um dos pontos nevrálgicos de sustentação das mudanças foi
a necessidade de “aproximar o seu país dos outros e das tendências
internacionais”.
A segmentação por actores sociais, expressa no mesmo quadro em análise,
conduz-nos à anotação de algumas e significativas variações. Assim,
embora o aspecto “redução das especializações profissionais” tenha
globalmente maior volume de discordâncias, ele reune mais concordâncias
que discordâncias entre os peritos e estas são mais esbatidas exactamente
entre as confederações sindicais e patronais. É provável que estes actores
estejam particularmente sensíveis a este vector e o tenham relevado, apesar
de já se ter anotado que, nos casos da Espanha, da Holanda e da Suiça, as
reformas não incidiram sobre a desespecialização. Em segundo lugar, é
interessante verificar o imenso nível de discordância relativamente ao facto
de se tratar de “um momento de desorientação política”. É que as não
concordâncias expressas não representam apenas desacordos parciais, elas
são discordâncias totais, tanto entre os peritos (14), os partidos (5), as
confederações patronais (8) e os sindicatos de professores (9). Apenas entre
as confederações sindicais há alguma repartição entre os níveis de
discordância. Este apontamento é de grande utilidade pois pode revelar um
elevado nível de adesão destes actores sociais às iniciativas políticas em
564
que se consubstanciaram as reformas em estudo. Em terceiro lugar, note-se
que há um elevado nível de acordo em relação ao motivo que refere que se
tratou “de um modo de aproximar as escolas e centros de formação das
empresas”. Haja ou não uma efectiva aproximação, conforme queremos
discutir nesta investigação, uma coisa é certa: a percepção dos actores
sociais, mormente entre as confederações patronais e sindicais, é a de que,
com estas reformas, se busca uma maior aproximação entre o mundo da
educação e o das empresas.
Em quarto lugar, é importante sublinhar o modo tão decisivo como as
opiniões dos actores sociais se inclinaram para centrar os processos de
reforma em processos de reestruturação curricular capazes de “combinar
melhor formação geral e formação profissional”. Há, nesta resposta, como
que a constatação de que os actores sociais entendem que se deve evoluir
para um paradigma de formação que extravase o modelo liceal tradicional,
que não reduza mas que combine as componentes de formação. A este
respeito, é muito sintomática a resposta dos peritos, que indirectamente
mostram a recusa da via da redução das componentes de formação.
Em quinto e último lugar, refira-se ainda que vários actores manifestam uma
clara concordância com o facto das reformas se terem centrado em
processos de “aproximação do seu país dos vizinhos europeus e das
tendências internacionais. Os peritos (11 contra 5) os partidos (5 contra 1),
as associações de pais (4 contra 3) e os sindicatos de professores (7 contra
7) são os que melhor evidenciam esta posição, tendo os dois restantes
manifestado posição maioritariamente discordante.
A análise das respostas por país44 traduz o mesmo resultado global, ou seja,
há uma concordância generalizada com o objectivo de alterar o currículo
44 Consultar o quadro nº A4, em anexo.
565
para “melhor combinar formação geral e formação profissional”. O país onde
esta escolha é menos contundente é a Holanda. Aliás, é neste país que é
mais significativo o nível de concordância com os dois items relacionados
com um processo de reforma centrado nos ajustamentos à economia, nível
este também elevado nos casos da Espanha e da Itália.
Os actores sociais respondentes não concordam, nos casos da Dinamarca,
da Espanha, da Finlândia, da França e da Holanda, que as reformas se
tenham centrado em processos de redução da especializações. A divisão por
países revela também que há uma grande disparidade na concordância com
o facto das reformas se centrarem também em processos de aproximação de
outros países e das tendências internacionais. Assim verifica-se haver
grande concordância nos casos da Espanha, Finlândia, Itália e Suiça e uma
grande discordância nos casos da Dinamarca, Holanda, França e Suécia.
Finalmente e a título de síntese, os respondentes foram chamados ainda a
validar um conjunto de afirmações, como traduções mais ou menos exactas
da principal finalidade das reformas empreendidas (Quadro 7.7). A primeira
escolha caiu inequivocamente na finalidade "qualificar os jovens com uma
formação mais geral, sólida e polivalente". Esta foi também a primeira
escolha de cada um dos actores sociais inquiridos e para cada um dos
países, excepto nos casos da Dinamarca e da Holanda. Como segunda
escolha este mesmo aspecto teve ainda uma eleição significativa e a
finalidade de "diminuir a hierarquia de prestígio entre a formação geral e a
formação profissional" foi a terceira escolha mais seleccionada.
566
Quadro 7.7
567
As outras finalidades valorizadas foram "adaptar o sistema educativo aos
requisitos actuais dos empregadores e do sistema produtivo" e "tornar o
ensino secundário e a formação a este nível mais atractivos para todos os
jovens". As próprias associações patronais e sindicais elegem como primeira
escolha finalidades não directamente económicas ou produtivistas, mas
finalidades culturais.
Dada a relevância da questão da aproximação entre as escolas e os centros
de formação e as empresas, quisemos inquirir de modo particular esta
problemática. A grande maioria dos respondentes considera que as reformas
estabelecidas irão contribuir para melhorar a relação entre escolas e
empresas (51 em 60 respondentes que emitiram opinião). Procuramos
investigar melhor o sentido desta posição (Cfr. Quadro 7.8). Todos os
actores inquiridos consideram que as escolas e as empresas irão cooperar
melhor, nos domínios da formação técnica e profissional dos jovens (o
mesmo resultado se obtém por país, excepto para o caso da França, em que
a maioria dos actores inquiridos considera que a anterior relação entre
escolas e empresas não se vai alterar) e todos discordam da afirmação de
que as escolas vão ficar mais afastadas das empresas, porque o que se
altera é a formação geral académica. Os inquiridos discordam também da
afirmação de que o aumento do número de contactos entre escolas e
empresas pouco vá alterar a distância que existe entre os dois mundos,
discordando também da perspectiva de que as escolas são para a formação
geral e as empresas para a especialização. Manifesta-se, assim, uma visão
bastante consensual acerca das virtualidades da cooperação escolasempresas e acerca da perspectiva de melhoria progressiva desta relação.
Interessante é o resultado relativo à opinião das confederações patronais:
elas consideram que as escolas e as empresas não vão ficar mais afastadas
entre si e discordam frontalmente (6 escolhas "totalmente em desacordo" e
nenhum acordo) da afirmação de que as escolas sejam dirigidas para a
568
formação geral e as empresas para a especialização.
Quadro 7.8
569
Estes resultados evidenciam que, quanto às motivações que sustentaram as
reformas, os actores sociais tendem, na generalidade, a reproduzir a retórica
governamental, como se de um espelho se tratasse. Fazem-no relevando a
necessidade do sistema se ajustar à procura social crescente e
sobrevalorizando as razões de ordem sociocultural e dando-lhes primazia na
fundamentação das opções políticas, sem que, todavia, abandonem como
referente um novo mandato económico. Há leituras dissonantes entre
actores sociais que se assinalaram em devido tempo e que se retomarão na
discussão final. No entanto, parece haver de facto uma poderosa e idêntica
retórica global que atravessa diferentes países e que é tomada como
referencial comum por diferentes actores sociais em cada um dos países em
análise.
Ora, o nosso corpo de hipóteses enfatiza a relevância do mandato
económico e das funcionalidades a ele adjacentes, a importância do
ajustamento escolar face à procura, sem esquecer a concomitante
emergência de um mandato cultural. Esta discrepância de valorações, que
por ora se assinala, deve ser objecto de uma mais aprofundada reflexão, o
que se promoverá no capítulo de conclusão da investigação. Provavelmente,
dada a complexidade das questões em análise nas reformas e o já
constatado entrelaçamento que existe entre as motivações que lhes
subjazem, são simultâneamente consistentes quer a visão dos actores quer
a leitura teórica que mobilizamos para a compreensão do problema de
partida.
A atracção pela formação geral e a desespecialização da oferta
Esta parte do questionário visa auscultar os modos como os diferentes
actores sociais compreendem e interpretam uma das marcas distintivas da
generalidade das reformas do ensino secundário em apreciação, a saber, a
570
atracção crescente pela "formação geral" e a decisão de desespecializar os
percursos mais ligados ao ensino e à formação técnico-profissional.
Propusemos um quadro analítico que atribui estas tendências das políticas
educativas a um conjunto de factores que se acham entrelaçados.
Por um lado, a atracção pela "formação geral" faz parte de uma orientação
que deflui da referida ideologia macroeconómica global e hegemónica no
discurso político educacional a nível internacional, que vai no sentido de
encaminhar cada vez mais os sistemas educativos nacionais para a
"produção"
de
qualificações
adaptadas
aos
novos
requisitos
dos
empregadores e de um modelo produtivo pós-taylorista emergente. Dadas as
características essenciais deste "novo" modelo produtivo, que aqui se
preferiu nomear como neo-taylorismo, as organizações empregadoras já não
necessitariam hoje de uma mão-de-obra muito especializada, à saída do
sistema escolar (sobretudo ao nível secundário, quando o ensino superior se
transforma num ensino de massas e "produz" uma outra e larga oferta de
diplomados
de
nível
superior,
inflaccionando
os
diplomas)
.
Os
desajustamentos entre os subsistemas sociais educativo e produtivo são,
pelo menos aparentemente, muito significativos, e a incerteza sobre as
contratações é tão elevada, nos processos de reestruturação económica
permanentes, que se torna cada vez mais desajustado atribuir ao ensino
secundário uma função de especialização em ordem à posterior ocupação
de postos de trabalho prédeterminados, além do mais porque se torna muitas
vezes difícil mesmo ocupar um qualquer posto de trabalho.
Por outro lado, dissemos que estas políticas educativas resultam de um
ajustamento escolar face à procura social. À medida que o ensino
secundário se expande e se universaliza, no pós-Guerra, acentua-se a sua
função propedêutica de estudos ulteriores, o que o desqualifica enquanto
lugar social de tradicional oferta de formações com funções fortemente
terminais. A racionalidade predominante nas políticas educativas atira o
571
ensino secundário de massas para uma função de ponte entre um ensino
obrigatório e básico e um ensino superior, também ele crescentemente
massificado.
Ora, estes dois veios explicativos de certo modo encontram-se num só: a
ideologia neoprofissionalista promove um ambiente escolar de ajustamento
tipicamente funcionalista seja a um "novo" mandato económico seja a uma
"nova" procura social. Aumentar a dita formação geral, desespecializar e
integrar
percursos,
outrora
especializados,
constituem
recursos
de
ajustamento funcional à procura e aos requisitos do sistema produtivo,
recursos estes que possibilitam a criação de um amplo mercado de
formação.
Por outro lado, o neoprofissionalismo aqui descrito e analisado pode ser
também lido como o resultado mais óbvio das fragilidades e das falências,
constatadas ao longo de décadas, do ensino técnico e da formação
profissional de base escolar na promoção da qualificação profissional, na
adaptação do sistema educativo ao sistema produtivo e na diminuição do
desemprego. Esta leitura os governos só a fazem, no entanto, no momento
em que se constata que o desemprego não diminui por este efeito e que o
ajustamento entre os sistemas sociais passa, na actualidade, pelo abandono
da tradicional função de especialização, a este nível.
Advoga-se ainda que as reformas recentes ao dirigirem os currículos do
ensino e da formação a nível secundário para um núcleo mais "generalista",
revalorizando o ensino geral académico, estão a promover um novo tipo de
especialização do ensino e da formação de nível secundário, em torno do
eixo da tradicional característica do ensino "liceal", o academismo. Deste
modo, o ensino secundário manterá o exercício de uma função selectiva,
orientada agora em função dos percursos posteriores de formação, póssecundários e superiores. Ao fazê-lo, invoca-se geralmente uma retórica
572
educacional, mas é também evidente o propósito de uma adaptação
tecnocrática e funcional do sistema educativo à evolução do sistema
produtivo.
Neste processo, que não é linear, nem simples ou unívoco, mas entrelaçado,
está igualmente presente uma perspectiva cultural de reforço de uma
formação mais acolhedora da diversidade humana, mais personalizada e
mais multidimensional. Nesta medida, o reforço da formação "geral", a
desespecialização e a integração curricular, o que apelidamos de
neoprofissionalismo, em geral, podem ser interpretados como movimentos do
sistema educativo em ordem ao reforço da sua vocação cultural e humanista,
pese embora o facto destes movimentos se encontrarem enredados na
mesma prisão funcionalista que continua a dominar, na actualidade, a matriz
conceptual e organizacional do modelo moderno de educação escolar.
Note-se ainda, antes da apresentação dos resultados, que, nos casos da
Holanda,
da
Suiça
e
da
Espanha,
o
fenómeno
particular
da
desespecialização no ensino técnico e profissional não ocorre. A reforma do
ensino secundário espanhol (obrigatório e "bachillerato") compreendeu um
prolongamento da escolaridade obrigatória em dois anos e o adiamento da
escolha das especializações profissionais para um período posterior, de
maior maturidade pessoal dos jovens. O ensino secundário superior
("bachillerato") reordenou-se em quatro grandes modalidades, uma das
quais é a "Tecnologia", permitindo uma formação tecnológica de base mais
geral e com um tronco comum com as outras modalidades. O número de
especializações profissionais oferecidas no âmbito da formação profissional
de jovens, a este nível de formação, é hoje inclusivamente mais elevado,
mas está incluído num sistema paralelo de formação profissional inicial. Nos
casos da Suiça e da Holanda, como já foi assinalado no capítulo 3, também
não se verifica uma redução das especializações. Na Suiça, a reforma da
"maturité professionnelle" não reduz as especializações mas alarga a
formação de base para lhe aceder e abre mais possibilidades aos alunos
573
destes percursos para prosseguirem estudos, seja académicos seja
profissionais. No caso da Holanda, foi criado um novo ciclo greal e comum
para o ensino secundário e foram igualmente adiados os momentos em que
os jovens têm de proceder a escolhas de fileiras específicas. As respostas
destes três países não foram pois consideradas relevantes para a análise
das respostas dadas a esta parte do questionário.
A primeira questão desta secção do questionário interroga os inquiridos
acerca do seu entendimento sobre os motivos que presidiram à redução do
número de especializações técnicas e profissionais. Os doze items
apresentados são agrupados nas mesmas categorias gerais anteriores:
razões de ordem sociocultural, de ordem económica e de ordem política. Os
resultados apontam para uma mesma tendência, a saber, a valorização dos
motivos que se inscrevem na categoria sociocultural, com destaque para o
que assinala a necessidade de aumentar a cultura geral dos jovens e de
fomentar e seu crescimento humano (Quadro 7.9). Todavia, fica aqui mais
claro que quando se privilegiam motivações como "tornar o ensino
profissional mais polivalente" e "aumentar o leque de competências dos
jovens" isso visa prepará-los melhor para enfrentar a actual situação do
mercado de emprego e dos contextos de produção. Há como que um
entrelaçar inextricável de motivações de ordem cultural e de ordem
económica, de difícil separação.
574
Quadro 7.9
Motivos a que se fica a dever a redução do número de especializações
no ensino e na formação ao nível do ensino secundário
MOT IVOS
Total
e parcialmente
em desacordo
Total
e parcialmente
de acordo
O motivo mais
relevante entre os
"Totalmente de acordo"
9
36
7
12
34
6
9
37
10
10
36
4
7 - Uma moda passageira sem significado
43
1
1
1 - Reduzir
um ensino
30
18
1
formação
29
17
1
vez
16
30
---
24
22
1
28
16
---
29
15
---
24
23
3
Tipo
Socio-Cultural
Descritivo
4 - Desemprego juvenil
10 - Aumentar o leque de competências dos jovens,
à entrada do mercado de emprego
Económico
2 - Tornar o profissional mais polivalente, pois a
economia assim o requer
12 - Atender às novas exigências do modelo de
produção, flexível e pós-taylorista
Político
. Geral
. Educativo
os
custos afectos a
especializado
3 - Reconhecimento de que lugar da
profissional é a empresa
5 - O ensino
secundário
é
cada
mais
propedêutico de estudos superiores
8 - Criar troncos comuns e diferir a especialização
profissional para as empresas
9 - A especialização e a selecção são adiadas para
o ensino superior
prolongamento
11 - Simples
unificadores do ensino
. Isomorfismo
Internacional
das
tendências
6 - Tornar o sistema de ensino nacional
mais
próximo dos outros sistemas da Europa
Quer a segmentação por países quer a segmentação por actores sociais não
potenciam clivagens entre os diversos tipos de resposta. Estas orientam-se
de modo muito idêntico, concentrando-se nas mesmas três motivações
principais. Ainda assim, é possível afirmar que nos casos da Itália, da
Dinamarca e da Noruega valoriza-se mais o motivo "tornar o ensino
575
profissional mais polivalente", no caso da Finlândia valoriza-se "a
necessidade de atender às novas exigências do modelo de produção flexível
e pós-taylorista", seguido da "necessidade de aumentar o leque de
competências à entrada do mercado de emprego", no caso da França
destaca-se a "necessidade de aumentar a cultura geral dos jovens e de
fomentar o seu crescimento humano", a necessidade de criar troncos
comuns e de tornar o ensino profissional mais polivalente, e no caso da
Suécia sobressai a escolha deste último motivo e ainda a "necessidade de
aumentar o leque de competências dos jovens".
A pergunta número dezassete, um pouco mais adiante, confrontava os
respondentes com um conjunto de afirmações que sutentavam as decisões
de promoção destas reformas, comportando a desespecialização e a
integração curricular. Cinco motivos são considerados capazes de explicar
as decisões tomadas: esta é a melhor via para garantir uma maior igualdade
de oportunidades educativas, é a melhor maneira de preparar os jovens para
a vida, é fruto da necessidade de actualizar os programas e o currículo e
deriva do facto de o ensino secundário ser cada vez mais universal.
Uma outra pergunta ainda (a número dezasseis) procurava conhecer a
opinião dos actores sociais, bem por dentro da história e da experiência
nacionais,
sobre
os
resultados
esperados
para
as
políticas
de
desespecialização e integração curricular que se inscrevem no grupo de
reformas em análise. Num primeiro lanço quisemos apreender os resultados
ao nível do sistema educativo e, logo depois, no que se refere à inserção
social dos jovens.
Quanto a ambos os passos verifica-se que há uma expectativa muito positiva
acerca dos resultados esperados (Quadro 7.10). No primeiro passo,
constata-se uma concentração das escolhas nos seguintes resultados: uma
melhor integração socioprofissional dos jovens, uma melhor preparação para
576
a vida activa e uma melhor adequação ao mercado de emprego. Quanto ao
segundo passo, 47 em 49 respondentes consideram que vai melhorar a
integração socioprofissional dos jovens. É de salientar, neste momento, que
qualquer um destes aspectos valoriza uma dimensão funcionalista do ensino
e da formação e das reformas empreendidas. O aspecto que considera
apenas "uma melhor formação cultural dos jovens" surge num lugar menos
destacado.
Quadro 7.10
Resultados esperados para as reformas de desespecialização e de
integração curricular, considerando a história de cada País
a) No que se refere ao sistema educativo
Escolhas
1ª
2ª
3ª
4ª
Uma melhor integração socioprofissional dos jovens
16
10
9
1
Uma melhor preparação para a vida activa
14
15
10
4
Uma maior adequação ao mercado de emprego
11
12
9
2
Nenhum resultado é de esperar
3
---
---
---
Uma melhor formação cultural dos jovens
6
6
2
8
Uma melhor preparação para o prosseguimento de estudos superiores
4
10
13
4
Um abaixamento do nível de educação e de formação dos jovens
---
---
---
1
Outro efeito
4
---
1
---
Aspectos considerados
b) No que se refere à inserção dos jovens
Vai haver mais obstáculos à inserção socioprofissional
2
Vai haver uma melhor integração socioprofissional
47
Não responde
17
As justificações qualitativas dadas para a tão positiva expectativa sobre a
integração socioprofissional rodam à volta da mesma narrativa retórica com
577
que os governos justificam as suas medidas de política. Assim, destacam-se
seis grupos de razões para sustentar tal expectativa: (i) a formação técnica e
profissional torna-se de melhor qualidade, mais geral, mais polivalente e
flexível, e isso é uma garantia importante face à evolução do mundo do
trabalho e das profissões e face à necessidade de aprender ao longo de
toda a vida, ou como refere um inquirido, "melhor cultura e mais flexibilidade
facilitam uma melhor integração social e profissional dos jovens"; (ii) passa a
haver mais aproximação e concordância entre a formação técnica e
profissional que se promove e os perfis profissionais requeridos pelo
mercado de emprego e pelas empresas; (iii) desaparece a discriminação
entre percursos liceais e percursos técnicos e profissionais e são dadas mais
oportunidades aos jovens que cursam o ensino técnico e a formação
profissional; (iv) a partir de agora combina-se melhor formação geral e
formação profissional; (v) passa a dar-se mais importância à formação do
cidadão (educação cívica); (vi) dão-se mais instrumentos aos jovens para
serem mais autónomos, mais responsáveis e para melhor construirem a sua
própria vida.
Procurou-se também recollher a opinião dos actores sociais sobre os
porquês da promoção da desespecialização, da integração curricular e da
ampliação dos troncos comuns de formação (Quadro 7.11). As razões que
merecem a preferência dos respondentes relacionam-se com o facto de esta
ser "a melhor maneira de preparar os jovens para a vida" e a "melhor via
para garantir a igualdade de oportunidades educativas". De seguida surgem
os aspectos "era necessário actualizar os programas e o currículo" e
"diminuir a hierarquia de prestígio entre e formação geral e a formação
profissional". Este último aspecto é particularmente sublinhado pelos
sindicatos de professores.
578
Quadro 7.11
579
Todos os actores valorizam genericamente as duas primeiras razões. Além
do que já ficou dito antes, importa destacar o facto dos actores sociais
transportarem uma visão das reformas do sistema educativo como tecnologia
social. Neste caso, como instrumento de democratização social, como meio
de esbater o menor prestígio do ensino e da formação técnica e profissional
ou ainda como meio de melhor acolher a procura de um ensino secundário
quase universal. Esta tendência universalizante do ensino e da formação de
nível secundário reune um número muito significativo de opiniões favoráveis
e muito favoráveis.
Os respondentes desvalorizam muito os aspectos que referem que é a
escassez de empregos que faz com que a especialização perca importância
e que se trata de uma moda a nível europeu a promoção deste tipo de
medidas de política. As opiniões dividem-se muito sobre os outros aspectos
considerados, p. ex., que o lugar da formação profissional seja nas
empresas, embora entre as confederações sindicais e os peritos a opinião
maioritária seja o acordo com a afirmação.
Finalmente, dentro desta parte do questionário procuramos recolher as
opiniões destes actores sobre a formação "geral" e a formação técnica e
profissional que existiam em cada país, antes dos processos de reforma se
terem desencadeado (Quadro 7.12).
Quanto à formação "geral" as escolhas dividem-se entre três tipos de
considerações principais: a via "nobre", herdeira do "liceu" tradicional e
elitista, um bom instrumento de formação integral dos jovens e um bom
instrumento de selecção dos jovens. Este último aspecto é o mais destacado
nas duas primeiras escolhas. Se a este dado lhe adicionarmos o segundo
aspecto mais destacado nas duas primeiras escolhas, ou seja, o ser uma via
"nobre" e elitista, parece estarmos perante um quadro em que prevalecem as
considerações do ensino secundário "geral" como uma via herdeira do
580
"liceu", destinada à selecção de elites para ingressar no ensino superior.
Assim opinam sobretudo os peritos, as associações de pais e os sindicatos
de professores.
581
Quadro7.12
582
Estes e as confederações sindicais e patronais valorizam particularmente a
formação "geral" como um bom instrumento de formação integral dos jovens.
O mesmo sucede, por países, com os respondentes da Finlândia e da
Suécia. Os restantes respondentes, em qualquer país valorizam o elitismo e
a selectividade da formação "geral", com destaque para o caso da França.
Quanto ao ensino e à formação técnica e profissional, a maioria dos actores
sociais considera que eram "um instrumento de selecção dos jovens" e "vias
para deserdados e escolarmente insucedidos". A afirmação de que estes
percursos eram o "melhor modo de satisfazer os anteriores requisitos dos
empregadores" também reune um bom número de escolhas. Além destes
aspectos, o que refere que estas vias eram "a melhor forma de preparar os
jovens para o mundo do trabalho" é o que acolhe, a seguir, maior número de
primeiras e segundas escolhas.
A avaliação de pendor negativo em relação a estes percursos de ensino e de
formação é mais saliente entre as associações de pais, os peritos e os
sindicatos de professores (embora também valorizem a dimensão de "melhor
forma de preparação para o mundo do trabalho"). Aliás, as confederações
sindicais e patronais destacam também a dimensão positiva destas vias, ao
sublinharem o seu papel de preparação para o trabalho, de promoção de
igualdade de oportunidades e de formação integral dos jovens.
Entre os países, as respostas dividem-se entre os dois tipos de visões,
sendo certo que as visões mais negativas em relação a estes percursos
sobressaiam nos casos da Espanha, da França e da Itália (este em menor
grau), exatamente países onde o peso do ensino secundário geral liceal é
preponderante; as valorizações mais positivas são as que proferem os
respondentes da Finlândia e da Suiça.
Em síntese, a leitura desta parte dos resultados do questionário permite-nos
583
sublinhar
que
os
actores
sociais
interpretam
estas
reformas
neoprofissionalistas como: (i) uma tecnologia social eficiente em ordem a
reabilitar o estatuto social do ensino técnico e da formação profissional e a
promover melhor igualdade de oportunidades, não discriminando o acesso
ao emprego pela especialização; (ii) um melhor caminho para a integração
socioprofissional pela via do reforço da formação geral, polivalente e flexível;
(iii)
um
modo
de
melhor
desenvolver
nos
jovens
o
sentido
de
responsabilidade, a autonomia e a capacidade de construção de identidades
pessoais. São escassas as diferenças entre esta fundamentação dos actores
sociais e o discurso oficial dos governos acerca das reformas empreendidas,
o que nos remete para uma grande sintonia de perspectivas de acção social
e política entre governos e parceiros sociais.
Por outro lado, as respostas dadas a esta parte do questionário permitemnos perceber que os actores sociais inquiridos consideram maioritariamente
o ensino liceal como selectivo e elitista, vendo do mesmo modo a formação
técnica e profissional paralela ao ensino liceal, mas consideram ao mesmo
tempo que a formação geral, que é tipicamente liceal, como referimos, pode
ser um bom instrumento de formação integral dos jovens e neles fomentar o
desenvolvimento de competências humanas gerais e o sentido e gosto pela
participação social. Existe, assim um terreno social em que se destacam
quer uma crença nas virtualidades da formação geral como instrumento
potenciador de melhor inserção socioprofissional, em período de turbulência
das empresas, dos empregos e das profissões quer uma dificuldade nítida
em entender as opções por um certo tipo de formação “geral” como
fomentadoras de um novo tipo de selectividade do ensino e da formação de
nível secundário.
Assim, a óptica dos respondentes evidencia que a formação geral
académica, ao reforçar-se, promove por arrastamento o modelo "liceal" do
ensino secundário, uma vez que é este o modelo que prevalece como
584
referencial da chamada "formação geral". As formações de pendor técnico e
profissional, mais discriminatórias e terminais, apreciadas de modo negativo
sobretudo pelos actores sociais do sul da Europa, tendem a perder
relevância nas novas funções atribuídas ao "novo" ensino secundário, cada
vez mais massificado e com uma função propedêutica do ensino superior de
massas.
Finalmente, pode concluir-se que existem, entre os actores sociais
inquiridos, expectativas muito positivas relativamente ao impacto das
reformas
neoprofissionalistas
sobre
os
processo
de
integração
socioprofissional dos jovens, na Europa, expectativas estas fundadas numa
cadeia causal em que os movimentos de reforço da formação geral
académica são tomados como parte de um esforço de ajustamento escolar
face à procura social e face a uma economia em reestruturação, que arrasta
incertezas e uma grande imprevisibilidade quanto ao emprego e às
profissões, e são também identificados com movimentos de reforço da
função cultural dos sistemas educativos, em que sobressai a perspectiva da
formação de cidadãos mais autónomos e responsáveis. O paradigma
funcionalista orienta o pensamento dos actores sociais, como comanda a
acção dos governos e como sustenta as reformas do ensino secundário.
Constata-se, deste modo, a amplitude do consenso social implícito que
existe, na Europa, em torno das reformas do ensino e da formação de nível
secundário.
A decisão política: pressões internas e externas
Procura-se, nesta outra parte do questionário, conhecer a opinião dos
actores sociais sobre as pressões internas (nacionais) e externas
(internacionais) que se exerceram sobre a tomada da decisão política
relativa às reformas em análise. O número de respostas a esta parte do
585
questionário ficou, por vezes, reduzido, talvez por um efeito de cansaço e
talvez também por desinteresse, uma vez verificada, em três países, uma
menor aplicação das questões da parte anterior aos casos nacionais.
O nosso ponto de partida era o da valorização do sistema mundial como
quadro adequado de explicação da similitude e da simultaneidade das
reformas em análise. As escolas locais e nacionais, como instituições
educativas da sociedade mundial, são reguladas por dinâmicas e ideologias
globais, formuladas e veiculadas tanto por organismos internacionais, cuja
missão é a reflexão sobre o social, a adopção de recomendações e de
tratados internacionais e, em alguns casos, o financiamento internacional,
como
por
redes
de
peritos,
encontros,
produção
de
estatísticas
internacionais e mundiais, edição de publicações e estudos comparados.
Todos estes meios produzem uma corrente ideológica poderosa que
transmite feições homogeneizantes às partes do todo, que a tomam como a
sua principal fonte retórica e legitimadora, em boa parte independentemente
das realidades locais e dos seus problemas específicos e também em boa
parte como superação de problemas de legitimação no estreito quadro
nacional. A diversidade das medidas que são tomadas, país por país, sob
uma retórica tão similar, é também ela o espelho de uma reinterpretação
nacional e local de mandatos globais, orientações que habitam acima dos
contextos históricos nacionais, mas que neles são reescritas.
Procuramos, por isso, conhecer o modo como os actores nacionais
conhecem e interpretam este labor do sistema educativo mundial, através da
tomada de posição sobre questões ordenadas em torno das pressões de
ordem interna e de ordem externa sobre a iniciativa política de empreender
as reformas e sobre o conteúdo dado às mesmas.
As respostas revelam que internamente foram os partidos políticos no
governo, os empresários e as associações empresariais e os sindicatos e
586
centrais sindicais, os actores e interesses que mais influenciaram as
reformas empreendidas. Verifica-se que os respondentes consideram que a
comunidade científica, as associações de pais de alunos e os professores
quase não influenciaram as reformas. Numa posição intermédia surgem as
personalidades e os peritos (Quadro 7.13).
Quadro 7.13
Pressões internas sobre as reformas do ensino e da
formação ao nível secundário
Sectores
Escolhas
1ª
2ª
3ª
Comunidade científica
3
5
2
Partido(s) Político(s) no governo
30
8
7
Associações de pais de alunos
2
1
2
Empresários e associações empresariais
11
12
12
Professores
2
4
6
Sindicatos e centrais sindicais nacionais
7
17
10
Personalidades e peritos
6
7
9
Nenhum, porque não as houve
---
1
---
Outro
1
1
1
Uma segmentação por países revela que se valoriza muito a intervenção dos
partidos
políticos
no
poder
nos
casos
da
Espanha,
Finlândia,
Noruega,Suécia e Suiça. Na Holanda e na Itália destaca-se o papel dos
empresários e das associações empresariais. A segmentação por actor
social não revela nenhum elemento significativo.
587
Podemos inscrever estes diferentes modos de participação interna, em que
sobressai o contributo mais activo dos sindicatos e do patronato, numa
tendência geral para o desenvolvimento do partenariado social como
estratégia de governabilidade das sociedades, como modo de regulação das
políticas sociais e de reforço da participação democrática na construção
contínua das mesmas.
Quanto às influências internacionais sobre as medidas de política em
apreço, uma escassa maioria dos respondentes (34 em 64) considera que
elas efectivamente s
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O ensino secundário na Europa, nos anos noventa