. UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO O ENSINO SUPERIOR NO CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO - UNISAL – Discutindo Sua Identidade Salesiana Doutorado Em Educação DILSON PASSOS JUNIOR PIRACICABA 2011 O ENSINO SUPERIOR NO CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO - UNISAL – Discutindo Sua Identidade Salesiana Doutorado Em Educação DILSON PASSOS JUNIOR ORIENTADOR: PROF. DR. BRUNO PUCCI Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIMEP como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Educação. PIRACICABA 2011 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Bruno Pucci (Presidente e orientador) UNIMEP Prof. Dr. José Maria Paiva - UNIMEP Prof. Dr. Ely Eser Barreto César Prof. Dr. Renato Kraide Soffner - UNISAL Prof. Dr. Luis Antônio Groppo - UNISAL A história é como uma grande teia. Não se vibra um fio sem vibrá-la toda. Não se vibra a teia sem vibrar cada fio. Não existe história de um fio. Este só se sustenta integrado no emaranhado da teia. Visualizar o particular descolado do todo é não visualizar nada. Não existem “histórias”. Existe a História. . O homem. Eis o epicentro da educação salesiana: instruílo, profissionalizá-lo, formá-lo fazendo que chegue à sua plenitude como ser guiado pela reta razão, embalado por nobres afetos e integrado na cidade dos homens a caminho da cidade de Deus. RESUMO Este trabalho investiga se o Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL – permanece fiel aos critérios educacionais elaborados por João Bosco no século XIX para atender então a adolescentes e jovens das classes populares. Para esta análise adota-se como referencial teórico o Historicismo. Analisa-se a Itália no século XIX no seu Risorgimento político e o confronto entre a mentalidade rural de matriz medieval e a urbana, burguesa e liberal. Neste contexto de confrontos João Bosco elabora seu projeto educativo denominado Sistema Preventivo, em que a presença física e afetiva do educador é a chave para a educação. Este projeto educacional é implantado em vários países, inclusive no Brasil, como um braço da romanização encetada pelo papa Pio IX e entendida pelos salesianos como uma ação catequética e civilizatória. Em 1952 os salesianos estendem sua ação para o Ensino Superior implantado sucessivamente nas cidades paulistas de Lorena, Americana e Campinas. Como o fundador não havia contemplado em seus projetos de trabalho com a juventude, o atendimento ao ambiente universitário, há a rejeição da maior parte dos sócios salesianos a essa presença no ensino superior, entendendo-a como infidelidade ao projeto da congregação que se destinava aos jovens pobres e marginalizados. No final do século XX o projeto universidade salesiana, já implantado e consolidado, é assumido por meio das IUS – Instituições Universitárias Salesianas - congregando mais de cinqüenta escolas salesianas de ensino superior no mundo. O questionamento central deste trabalho é se existe efetivamente uma identidade salesiana no UNISAL ou se ela seria apenas um simulacro. A questão é analisada a partir do discurso institucional e da prática docente procurando verificar se os alunos do UNISAL estão imbuídos dos princípios e valores educacionais salesianos. A tese, a partir da análise do Mito fundacional, dos ritos institucionais e dos símbolos da fundação salesiana, procura verificar se a incidência do ideário desta agência de educação confessional é real no ambiente universitário ou se sua ação está antes nos discursos institucionais que nas práticas da docência. Palavras-chave: Ensino superior; Dom Bosco; sistema preventivo; salesianidade; UNISAL. ABSTRACT This paper investigates whether the Salesian University Center of São Paulo - UNISAL - remains faithful to the educational criteria established by John Bosco in the nineteenth century to meet then the teenagers from the popular classes. For this analysis we adopt as a theoretical Marxist historicism. It looks at Italy in the nineteenth century political Risorgimento and the confrontation between the rural mentality with medieval matrix and urban, bourgeois and liberal. In this context of confrontation, John Bosco prepares its educational project called Preventive System, where the physical and emotional presence of the educator is the key of the education. This educational project is implemented in several countries, including Brazil, as an arm of Romanization initiated by Pope Pius IX and understood by the Salesians like catechetical and civilization activity. In 1952 the Salesians extended their action successively deployed Higher Education in the cities of São Paulo: Lorena, Americana and Campinas. As the founder had not included in their project work the youth service to the university environment, there is the rejection of most members of the Salesian presence in the higher education, understanding it as disloyalty to the design of the congregation, for poor and marginalized young. In the end of twentieth century the Salesian University design, already implemented and consolidated, is assumed through the IUS - Salesian Institution University - bringing together more than fifty Salesian schools of higher education in the world. The question of this paper is whether there is indeed a Salesian identity in UNISAL or if it would just be a sham. The question is examined from the institutional discourse and practice of teaching students trying to verify whether UNISAL are imbued with the Salesian educational principles and values. The thesis, based on the analysis of the foundational myth, rites and symbols of the institutional foundation Salesian seeks to verify the incidence of the ideals of this agency confessional education in the university environment is real or if its action is before the speeches institutional practices of teaching. Key-words: higher education, John Bosco, Preventive System, Salesian identity, UNISAL DEDICATÓRIA Aos meus pais Dilson e Laurete Que construíram Sonhos, projetos e família Á sombra – física e espiritual – Das grandes chaminés Da indústria têxtil Ao professor doutor Manoel Isaú Ponciano dos Santos Pesquisador apaixonado e meticuloso A quem muito deve a historiografia salesiana E que me incentivou No ingresso no doutorado. AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor Bruno Pucci, pela serena e firme orientação e pela postura sempre amiga em acolher-nos em nossas inquirições. Ao corpo docente de Pós Graduação da UNIMEP ao qual voto respeito, pelo profissionalismo, e admiração pelo ambiente cordial. Ao professor Doutor Lino Rampazzo pelo apoio recebido na revisão metodológica, histórica e nas traduções. Ao Analista de Sistemas Ronaldo Luis de Souza Pereira pelo suporte técnico e metodológico nas pesquisas junto ao corpo discente. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – Brasil. Pelo apoio e suporte nas traduções e diagramação: Prof. Rafael Galvão Barbosa Prof. Paulo Pereira Neto Prof. Samir Biaggi LISTA DE SIGLAS ADMA Associação das Damas de Maria Auxiliadora CCSS Cooperadores Salesianos CG Capitulo Geral ETEC Escola de Tecnologia (Campinas) FASTEC Faculdade Salesiana de Tecnologia (Campinas) FMA Filhas de Maria Auxiliadora – (salesianas) FS Família Salesiana IEV Instituto de Estudos Vale-paraibanos IUS Instituição de Universidades Salesianas SBD Salesianos de Dom Bosco – (Salesianos) UNISAL Centro Universitário Salesiano VDB Voluntárias de Dom Bosco SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 22 CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL ....................................................................................................... 35 1.1 - Delimitação de Conceitos.................................................................................. 38 1.2 - Evolução dos pressupostos teóricos da salesianidade do século XIX na Itália até o UNISAL do século XXI ..................................................................................... 43 CAPITULO II - OS SALESIANOS NA ITÁLIA E SEU TRANSPLANTE PARA O BRASIL: TEORIA E PRÁTICA, IDÉIAS E IDEOLOGIAS .......................................... 46 2.1 - 1.800: A Itália no século da liberdade ............................................................... 48 2.2 - O Fundador: um camponês com coração do feudo e a razão da cidade – Uma visão histórica............................................................................................................ 60 2.3 - Uma Pedagogia com o coração do Feudo e a Razão da Cidade no século da liberdade.................................................................................................................... 86 2.4 - O Transplante da Obra Salesiana para o Brasil - Sua missão civilizatória....... 98 2.4.1 - Os 1900 – Os salesianos na sociedade brasileira num tempo de conflitos.. 114 2.4.2 - O Ensino Superior salesiano no Brasil ......................................................... 125 2.4.2.1- Faculdade Salesiana de Lorena: clerical e tomista ................................... 128 2.4.2.2 - Faculdade Salesiana de Americana - Humanista e Pedagógica ............... 150 2.4.2.3- Faculdade Salesiana de Campinas - Tecnologia e Pesquisa ................... 155 2.5 - O Ensino Salesiano no Brasil em Busca de identidade .................................. 160 2.5.1 - Dúvidas sobre a eficiência e sentido do ensino confessional no Ensino Superior ................................................................................................................... 162 2.5.2 - Uma reflexão sobre o Ensino Superior Salesiano em nível mundial – As IUS ................................................................................................................................ 167 2.5.3 O UNISAL – à luz dos princípios emanados das IUS revendo sua história.... 171 CAPÍTULO III - O UNISAL ENTRE OS SÉCULOS XX E XXI EM BUSCA DE SUA IDENTIDADE: TENSÕES ENTRE O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO .... 177 3.1- Passado, presente e Futuro: Da quietude da Idade Média para o movimento da idade moderna e a aceleração da idade contemporânea ....................................... 180 3.1.1 - As bases espirituais da cosmovisão salesiana: a ideologia medieval .......... 184 3.1.1.1 - Pressupostos para o entendimento da cosmovisão salesiana: a História em movimento ............................................................................................................... 187 3.1.1.2 - João Bosco diante do seu tempo .............................................................. 194 3.1.2 - Década de 1960: abalos nas crenças e estruturas da congregação ............ 203 3.1.2.1 - Abalos em nível de mundo ....................................................................... 204 3.1.2.2 - Abalos em nível de Igreja .......................................................................... 206 3.1.2.3 - Abalos em nível de congregação ............................................................. 211 3.1.3 - A Igreja após a crise dos anos 1960 ............................................................ 216 3.1.4 - Religião no século XXI e tensões com o pensamento contemporâneo....... 222 3.1.4.1 - Dom Bosco – Mito ou lenda ..................................................................... 225 CAPÍTULO IV - O CENTRO UNISAL NO SÉCULO XXI ......................................... 232 4. 1 - O UNISAL no século XXI - desafios ............................................................... 236 4.2 - O Lugar da Educação Salesiana ..................................................................... 240 4.3 - O pensamento de Dom Bosco na prática docente e pastoral do Centro UNISAL ................................................................................................................................ 255 4.3.1 - Salesianidade e corpo docente .................................................................... 259 4.3.2 Salesianidade e corpo discente ...................................................................... 280 CONCLUSÃO.......................................................................................................... 307 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 326 GLOSSÁRIO ........................................................................................................... 336 LINHA DO TEMPO.................................................................................................. 340 ANEXO .................................................................................................................... 345 22 INTRODUÇÃO As instituições nascem, crescem, amadurecem, envelhecem e morrem. E, em se tratando de uma analogia, podem ao invés de envelhecer e definhar, explodir em vida produzindo sementes e lançando rebentos. Há uma “previsibilidade biológica” na vida das instituições que nascem fecundadas pelo húmus de grandes ideais. São quatro os momentos inevitáveis e necessários em suas vidas: a fundação, a consolidação, a institucionalização e o predomínio da estrutura. Após estes momentos ela deixará de existir ou se metamorfoseará em outra instituição com outros e novos ideais ou poderá ainda viver a experiência da re-fundação com o retorno às origens, na busca da fidelidade primeira. Num primeiro momento a instituição nascente é marcada pelo ardor do fundador, figura ímpar com seus ideais e crenças que transcendem sua vida e seus interesses, imprimindo impulso criador à sua ação. Há o predomínio deste homem e de sua individualidade, tendo sua experiência fundante um caráter quase divino. A paixão é o sentimento predominante que impulsiona sua vida e com tal intensidade que atrai e apaixona discípulos. Muitas “fundações” não duram para além da vida do seu fundador. Pareciam ter um futuro promissor, mas se esfarelaram qual castelo de areia, na falta de ardorosos seguidores e intérpretes de seus ideais. Os discípulos das primeiras horas não podem ser entendidos como meros atores coadjuvantes, pois serão eles, e, somente eles, que darão sustentabilidade às idéias fundacionais que permitirão à obra transcender para além da vida do seu fundador. O segundo momento é o da consolidação. A paixão ainda palpita no coração dos discípulos das primeiras horas e como co-fundadores são intérpretes qualificados do fundador, porque receberam suas confidências e conviveram com ele, sendo suas narrações feitas com enlevo de testemunhas. Nasce o mito fundacional que com suas histórias e ideário dá sustentabilidade à fundação, sendo aos poucos não só narrado, mas celebrado e ritualizado. A experiência vivenciada pelo fundador e seus primeiros discípulos é exemplo para seus futuros seguidores, crescendo o sentido de comunidade quando o sentir-se “nós” dá forças aos que abraçam este projeto. O terceiro momento é o da institucionalização, quando o impulso inicial do fundador e de seus discípulos começa a ser organizado, sendo um tempo de estabilização, 23 sabendo-se que os ardores dos primeiros seguidores precisa agora ser organizado, disciplinado e racionalizado. Há o predomínio de normas, sendo que a experiência institucional se conduz por leis e princípios. Não mais prevalece a intuição e a criatividade, mas a legalidade do que e como se deve fazer e viver. O sentimento que prevalece é o da simpatia. Acredita-se com certa benevolência nas idéias e ideais do fundador. O quarto momento é quando os ideais fundacionais sucumbem pelo predomínio de estruturas organizacionais poderosas e fortes que ignoram ou mesmo desconhecem as motivações primeiras da fundação. A experiência fundacional fica esmaecida frente à vigorosa máquina administrativa e às sólidas estruturas que se impõem na instituição. Prevalece o poder, o domínio, os burocratas, as estatísticas, os resultados e a eficiência administrativa sem considerar a pulsões fundacionais. Nem a pessoa do fundador, nem os primeiros discípulos e nem mesmo a dimensão e a legalidade disciplinadora do ideal fundacional prevalecem, mas a estrutura e o poder. Aquele ideal e sonho inicial, os princípios e sentido da fundação, a experiência do fundador e dos co-fundadores não conta mais. Neste momento se está longe da paixão do fundador, do amor dos co-fundadores, da simpatia dos discípulos, prevalecendo o simulacro, quando a aparência é mais importante do que o ser. Esses pressupostos são importantes quando se quer analisar instituições de educação que nasceram a partir de ideais, sejam eles políticos, filosóficos ou religiosos. Sabemos que não existe Instituição de ensino neutra. Seja ela qual for e em qualquer nível, se apoiará em concepções filosóficas que serão apropriadas por teóricos da educação que, assumindo essa visão de mundo, irão elaborar programas educacionais que visem à construção de um determinado tipo de pessoa e cidadão. A sociedade será fruto de suas escolas, pois é na força deste espaço que ela se configura. O controle ideológico do ensino é estratégico, como forma de se construir a mentalidade da nação, sendo este espaço objeto de disputa por seu controle. E nem sempre a posse material de uma Instituição de ensino é garantia de seu controle ideológico. As primeiras universidades – Paris, Oxford e Bolonha – emergiram do coração da cristandade medieval, tendo sido tuteladas e vigiadas, não apenas pelo zelo da 24 ortodoxia, mas também pela força convincente da inquisição. Nelas já se confrontavam as correntes dos espirituais, dos racionais e dos naturais. O combate ao racionalismo aristotélico que invadira a universidade de Paris e que fora banido da mesma em 1277 pelo zeloso bispo Étienne Tempier parecia garantir uma vitória dos místicos sobre os racionais, conservando o tradicional espaço ideológico dos místicos que se inspirava em Platão e, sobretudo, em Agostinho que dera sentido à mentalidade da Idade Média com a idéia da Cidade de Deus. O zeloso bispo não percebera que a escola anexa ao mosteiro de Chartres já vinha tendo seus flertes com as ciências experimentais, minando a plácida contemplação que deveria reger os mosteiros. Neste momento se abria um processo, consolidado posteriormente pelos escritos de Tomás de Aquino de valorização da razão. As catedrais góticas, se com suas torres esguias apontam para o infinito indicando explicitamente o ideal medieval de elevar a alma ao Transcendente, indicavam de outro lado, implicitamente, a vitória da racionalidade matemática do homem de construir com ousadia. E mesmo a Suma Teológica de Tomás de Aquino racionalizava a fé por meio de uma “engenharia mental” que primava pela exatidão de sua terminologia latina pensada com lógica aristotélica. O que se assiste nessa passagem de tempo não é a erosão assustadora das enxurradas que descem encostas arrastando consigo volumes imensos de terra. É a erosão do vento que, pacientemente, vai mudando de forma imperceptível a paisagem. Duns Escoto, numa tentativa conciliadora, procurara separar em campos autônomos a fé e a razão, tentando de certo modo conciliar as tensões geradas pelos racionais que desorganizaram a epistemologia medieval submissa a Deus pela iluminatio. A imagem “do vento que, pacientemente, vai mudando de forma imperceptível a paisagem1” pôde ser usada até para Duns Escoto. A primeira imagem, porém “da erosão assustadora das enxurradas que descem encostas arrastando consigo volumes imensos de terra2” é perfeita para Guilheme de Ockham que, mais que símbolo e marco do fim do período escolástico, representa antes o seu desmantelamento total ao negar não só a possibilidade de um real conhecimento de Deus, vislumbrado na densa névoa da revelação, mas também de negar toda e 1 - frase do autor. 2 - Ibidem. 25 qualquer metafísica, prendendo-se ao mais radical empirismo do qual também desconfia, pois que incapaz de universalizar o conhecimento experimental. Seu desmonte atinge as próprias estruturas eclesiais denunciando o contra testemunho da riqueza da igreja e a inconsistência do poder temporal e espiritual do papa e do restante da hierarquia. Condena ainda o poder teocrático civil, afirmando que todo poder advém do consenso do povo. Este frade franciscano explicitará em germe os grandes pressupostos que darão sustentação às reformas sociais, políticas e religiosas dos séculos seguintes. O resgate histórico que fazemos a partir dessas universidades nos permite apreender uma verdade não percebida num primeiro momento pela cristandade. Sua matéria prima é a razão que, inicialmente, até pode aceitar certo controle, mas conforme avança nas suas inquirições e descobertas campeia livre fora do controle dos poderes constituídos da sociedade que ora a reprimem, ora a perseguem, ora tentam corrompê-la ou aniquilá-la. As universidades concentram num espaço físico e, hoje também virtual, uma elite de pensadores que estarão sempre revertendo a ordem, quebrando paradigmas, e, mesmo quando no seu ambiente há facções que se corrompem e se vendem, outras parcelas se rebelam e denunciam. As universidades não são animais domesticáveis. É sempre preciso olhar o passado histórico – da sociedade e das universidades – para tirarmos lições para o presente. Nos séculos seguintes, após a fundação das primeiras universidades, o mundo ocidental conhecerá profundas alterações. Passemos nosso olhar superficialmente pela história, não para reconstituí-la, mas para que, tendo esse panorama frente aos nossos olhos, possamos ter motivações que dêem sustentação às nossas posteriores reflexões. Em mais de quinhentos anos após o grande abalo da universidade de Paris, em que a Iluminatio agostiniana foi destronada pela Ratio tomista e ambas foram retaliadas pela navalha de Ockham, a história dos homens e suas instituições no ocidente viveram num delirante redemoinho. Há um estonteante processo de aceleração da cultura, do saber, dos costumes, da política e da tecnologia. Século após século o mundo se supera, avança como grandiosas vagas a destruir e decompor o que anteriormente havia sido reconstruído e recomposto após a vaga anterior. Um olhar descuidado e superficial sobre os últimos séculos apenas fazendo menção aqui e 26 acolá a eventos nos permite a reminiscência de quanto tudo mudou. São lampejos que apenas tocam nossos sentidos e nossa memória com a rapidez dessas luzes emitidas em negras noites de tempestades que mais nos cegam que iluminam. Que “olhemos” sob as luzes fugazes desses “relâmpagos” de forma superficial alguns eventos que se erigiram na planície da história nos últimos séculos. Apenas vislumbremos numa rápida passagem de olhos esses episódios que, por sua natureza, demandariam a demorada contemplação do sol a pino. No Renascimento o humanismo se infiltrará nos “vasos capilares” da religião e da igreja apresentando temas religiosos onde os corpos de um Davi, um Moisés, uma Pietá e de tantas madonas santas, com seus seios fartos de mulher e mãe, falando do transcendente, mostram uma beleza imanente, ou para sermos menos filósofos, carnal. Às vezes os temas eram mais explicitamente humanos, como no sorriso enigmático duma Mona Lisa, deixando num lusco-fusco indecifrável de seu olhar e sorriso, os segredos ocultos de uma alma de mulher, ou numa epopéia como os Lusíadas, pagã e cristã, a exaltação do povo luso a singrar desconhecidos mares, ou num Dom Quixote de la Mancha, nos seus ridículos e delirantes sonhos de um anti herói e, que por ser tão fragilmente humano, torna-se herói. Martinho Lutero, doutor em Teologia, que fizera preleções de Filosofia na Universidade de Wurtenberg entre 1508 a 1512, procura refletir a organização da cristandade a partir de uma razão crítica e ao querer colocar em disputatio suas noventa e cinco teses acadêmicas conhecerá o zelo da ortodoxia. É o homem que continua a ser vislumbrado no Iluminismo, no século das luzes, da Razão e da Revolução Francesa. É ainda o homem que aparece no Positivismo capaz da ciência, da exatidão matemática e do conhecimento objetivo. Paradoxalmente há ambigüidade na afirmação e negação do homem, pois sua dignidade é valorizada pelo conhecimento, pela posse do dinheiro e do poder. São ambigüidades de um tempo. O Liberalismo defende a dignidade e a liberdade do homem enquanto a classe burguesa acumula suas riquezas a partir da mão de obra escrava ou explorada. Na Revolução industrial, Marx e Engels, polarizaram a sociedade em dois extremos: opressores e oprimidos, burgueses e operários. O Neo-colonialismo realiza a partilha do mundo entre os países industrializados da Europa. No século XX há crises e confrontos que bastam ser citados: Duas Guerras mundiais; ONU; Guerra fria; Regimes totalitários de direita e esquerda; Fascismo e comunismo; Ogivas 27 nucleares; Revolução Cultural na China; Ida do homem à lua; Woodstock; Hippies; Concilio Vaticano II; Ecumenismo; Guerras do Vietnam, do Laós, do Camboja e da Coréia; Queda do muro de Berlim; Desmonte da União Soviética; Formação dos Blocos econômicos; Modernidade e Pós-modernidade. No século XXI: Globalização; Mundo virtual... Nestes séculos, desde a fundação das primeiras universidades nascidas no coração da cristandade, o mundo fez um longo caminho sinalizado por algumas palavrasícones de idéias e momentos históricos da vida e do pensamento humano. Nem ousamos entrar no emaranhado campo das idéias e ideologias políticas, religiosas e filosóficas. Seria inviável neste campo trabalhar apenas com citações. O que importa para o foco de nosso estudo é que em todo este processo histórico há um crescente afastamento da cultura cristã, que vai perdendo paulatinamente sua incidência sobre a sociedade ocidental. Novos filósofos ocupam as cátedras e novas universidades são fundadas distantes das sombras dos campanários da igreja. E não faltarão filósofos da morte de Deus e que apontem a religião como ópio do povo. Nas últimas décadas, os meios de comunicação escapam ao controle de grupos poderosos com a popularização das redes sociais que veiculam informações em demasia e nem sempre confiáveis, comprometendo a formação de internautas que não estejam preparados para o uso criterioso desta ferramenta. As Instituições de ensino superior de matriz católica sobreviveram aos séculos e aos diversos tempos e contra tempos da história procurando manter sua identidade. Esta afirmação, porém, deve ser filtrada. A própria Igreja Católica, apesar de seus dois milênios de existência, possui certo mimetismo oficioso de adequar-se aos tempos. E esta adequação é natural porque a Igreja-instituição está plantada num período histórico com fiéis filhos deste tempo. Ainda que a adesão às religiões institucionalizadas venha diminuindo, nossa cultura ocidental ainda é cristã em sua matriz, afinal, foram séculos em que o ensino esteve aos cuidados das igrejas cristãs que ainda hoje ocupam espaço como agências de ensino procurando reagir ao secularismo e materialismo modernos. Há, porém a possibilidade que muitos dos ideais cristãos elaborados nos projetos das universidades confessionais estejam mais nos seus documentos institucionais que em suas práticas de docência. Haveria, supomos, um crescente processo de desconexão entre os ideais 28 fundacionais abraçados por essas instituições como sua missão e o seu dia-a-dia que se materializa nas pessoas concretas do seu corpo docente e discente. Essa pesquisa sobre o Centro Universitário Salesiano de São Paulo coloca o questionamento se os universitários que aí estudam receberiam o influxo formativo salesiano proposto por essa escola que se auto-define como uma Instituição de Ensino Superior, de Inspiração Cristã, Caráter católico e Índole Salesiana? A proposição pedagógica de João Bosco que nasceu de sua história pessoal vivida na península itálica no século XIX chega ao século XXI? Criaremos três conceitos chaves como ferramentas interpretativas que permitem auferir se uma instituição é fiel aos princípios que a fizeram surgir: o mito, o rito e o símbolo. A partir deles poder-se-á verificar se o UNISAL é uma agência de ensino que se mantém fiel aos ideais educacionais do fundador. O projeto educativo salesiano tem seu ponto de partida em João Bosco, um camponês do Piemonte na Península itálica, atingida então por convulsões revolucionárias inspiradas nos ideais da Revolução Francesa, quando se busca a integração política da Península, atendendo aos interesses da nascente burguesia industrial do norte e tendo por maior obstáculo os Estados Pontifícios, já que sua incorporação à Nova Itália era entendida como um ataque, não a um Estado constituído, mas à própria Igreja Católica entendida como Instituição Divina. João Bosco é um homem dividido entre uma religiosidade camponesa de origem medieval e o novo mundo industrial que surge com seus benefícios materiais e malefícios sociais, com jovens marginalizados, aos quais Bosco procura atender religiosa e socialmente, elaborando uma pedagogia baseada na bondade, no acolhimento, no espírito de família, na formação humana, cristã e profissional. O sucesso do seu empreendimento educacional atrai seguidores e se expande pela Europa e América, chegando ao Brasil com dupla finalidade: no pensamento de Dom Bosco de atender à população pobre dos jovens marginalizados num país que faz seus primeiros tímidos passos de industrialização. No olhar da hierarquia eclesiástica era mais um braço da romanização iniciada por Pio IX, que buscava restabelecer a autoridade do papado sobre a Igreja do Brasil, enfraquecida no período imperial pelas práticas do padroado e beneplácito, por um clero iluminista, 29 pelo liberalismo e positivismo e por uma religiosidade popular à margem do controle clerical. O trabalho com jovens no ensino superior jamais fizera parte dos ideais educacionais do fundador. O ingresso neste campo foi, no caso de Lorena, a necessidade de garantir que os salesianos continuassem a lecionar nas suas escolas por meio de um diploma reconhecido pelo governo. As faculdades de Americana e Campinas surgiram por ação unilateral de seus diretores, sem apoio e autorização de seus superiores. Aos salesianos não cabe mais discutir se deveriam ou não atuar no ambiente universitário. Essa é uma questão superada. O questionamento atual é se a proposta educacional da congregação salesiana chegaria aos estudantes desta instituição. Chegariam a conhecer Dom Bosco como modelo e educador? Conheceriam suas idéias? O UNISAL nas suas proposições e práticas educacionais estaria afinado com a matriz salesiana? O UNISAL é uma agência de ensino que se mantém fiel aos ideais educacionais do fundador? A congregação salesiana não se abriu ao diálogo com as diversas pedagogias praticadas no Brasil e nem tampouco se propôs como um dos possíveis caminhos de se educar, salvo nos seus próprios ambientes. Isto fez com que ela no Brasil não se constituísse numa Escola de Educação que disputasse espaço com outras teorias educacionais, se constituindo num centro de irradiação do pensamento do Sistema Preventivo para além dos pórticos das obras salesianas. Isso parece se refletir até hoje nas licenciaturas do UNISAL que parecem não enfocar com vigor – se é que enfocam – essa pedagogia. São hipóteses que devem ser verificadas. Iremos analisar no UNISAL se, por meio da narração do rito fundacional, da celebração dos ritos e no uso dos símbolos, se tem conseguido atingir os objetivos educacionais propostos pelo fundador. É uma empreitada complexa que, passando pelos quase cento e cinqüenta anos da fundação da congregação, tem o seu foco de aferimento no sistema preventivo como núcleo fundamental dessa instituição com seus colorários: Presença, Razão, Religião e Bondade. A obra salesiana possui seus fundamentos educacionais na pessoa do fundador como protagonista de atitudes e ações que foram só posteriormente teorizadas. 30 Capturar sua vida é capturar sua pedagogia, pois Bosco encarnou em sua vida cotidiana seus ideais educacionais. O primeiro passo para entender o fundador é apreender a situação da Itália no século XIX marcada por tensões, crises, convulsões políticas, sociais e religiosas. É neste contexto que emerge a figura de João com seu entorno familiar e cultural. Indo para a cidade confronta sua formação cristã de matriz medieval com o pensamento liberal. Sem abrir mão de sua matriz religiosa deverá construir pontos de diálogo com os liberais e anticlericais que vão assumindo o controle econômico e político da Nova Itália. O segundo passo é apreender o significado do transplante da obra salesiana para o Brasil, entendido então como uma missão cristianizadora e civilizatória, sendo ao mesmo tempo instrumentalizada pelo Vaticano no seu projeto de romanização. O ingresso dos salesianos no ensino superior aconteceu sob forte rejeição da maior parte dos salesianos que o consideraram como infidelidade, na melhor das hipóteses, e traição, na pior, dos ideais do fundador que somente pretendera atender aos jovens pobres e marginalizados. Como já foi assinalado anteriormente, o ensino superior é um fato consumado e assumido pela congregação. Cabe constatar se o corpo docente conhece e assimila os valores educacionais salesianos e os faz incidir sobre o corpo discente. Buscar-se-á elaborar um diagnóstico que permita definir em que intensidade e qualidade acontece a proposta salesiana neste espaço educativo. As considerações apresentadas nos oferecem referenciais que norteiam esta tese. Retomamos agora de forma simplificada os elementos fundamentais de nosso trabalho. O Tema central desta pesquisa é a identidade salesiana do UNISAL, entendida como fidelidade aos critérios educacionais elaborados pelo fundador João Bosco no século XIX. O Problema colocado é se hoje o Centro Universitário Salesiano mantém-se fiel ao ideal educacional proposto pelo fundador, verificando se é praticado na docência da instituição, atingindo como conhecimento e prática pedagógica o corpo discente. 31 A Hipótese que se coloca é a de que o Centro Universitário Salesiano de São Paulo estaria se distanciando do projeto educacional elaborado por João Bosco, denominado de Sistema Preventivo, que se sustenta na presença do educador, na razão, na religião e na bondade. Verificar-se-á se, sob as narrações oficiais sobre o fundador e seu método educativo, existe uma real prática de sua pedagogia ou prevalece o simulacro de seus princípios educacionais e práticas pedagógicas. O referencial teórico apóia-se nos princípios do Historicismo enfocado sob dois ângulos: o marxista que envolve a economia, a política e a sociedade e o agostiniano com sua visão religiosa da História, abordagem que é assumida por João Bosco. Será a partir do século XVIII, com o iluminismo, que os pensadores ligados às Ciências Sociais, e entre eles os historiadores, serão vistos como intérpretes da sociedade. A teoria linear da história, reconhecendo a autodeterminação do homem, é assumida por Santo Agostinho, tendo como chave interpretativa a vontade de Deus, e por Marx que, ainda que inspirado na dialética idealista de Hegel, a inverte e a adapta ao conceito materialista da história. O pensamento marxista possui pressupostos que nos oferecem chaves para a decodificação da História. Ainda que não o assumamos na sua concepção dogmática, reconhecemos que o modo de produção, mais do que determinar, condiciona a organização das superestruturas sociais. No Historicismo marxista temos como referências alguns de seus intérpretes como Galeano, Hobsbawn e Huberman. Ao assumir o referencial teórico do historicismo marxista, o fazemos reconhecendo sua limitação, como afirma Antônio Gaspareto Júnior: A Historiografia Marxista demonstrou ter seus limites. Por causa do grande enfoque dado às relações econômicas, os historiadores perceberam que não seria possível explicar todos os aspectos da vida social. Muitas facetas importantes para as relações do cotidiano na humanidade não eram abordadas. Hoje se entende que a História é feita em diversas circunstâncias da vida humana e estão muito em 32 foco as proposições feitas pela quarta geração da Escola dos Annales que enfatiza as implicações da cultura nas explicações da sociedade 3. É a partir desse enunciado, afastando-nos do reducionismo do marxismo ortodoxo e dogmático que simplifica a realidade, acreditamos ser importante entabular diálogo com a mentalidade do historicismo agostiniano que se faz presente nas obras e epistolário de Bosco produzidos ao longo de sua vida. Não assumindo o pensamento de Popper4, para quem o historicismo não se sustenta5, acreditamos que os historicismos marxista e agostiniano, ainda que partindo de matrizes antagônicas, aquele na afirmação da matéria como a realidade fundamental e este na afirmação do divino como fonte da matéria “ex nihilo”, ambos oferecem ferramental teórico consistente porque acreditam na história como resultado da ação livre do homem, seu único artífice. Como intérprete do hiponense, Amério é incisivo: A história depende toda do homem e toda de Deus; é objeto da livre iniciativa humana e da onipotente eficácia divina. Se da multiplicidade e variedade dos indivíduos ela brota como capricho, desarmonia, contraste e caos; da unidade simplicíssima da providência divina deve surgir como continuidade, plano, ordem e sistema. É através do primeiro aspecto que se tem como penetrar no segundo: o enigmático entrefecho das vicissitudes da vida de cada indivíduo aparecerá como trama sapiente dum único plano: a história tem um sentido 6. É nos intrincados sucederes da história que as instituições, através dos seus mitos, ritos e símbolos, dão sentido e significado à sua existência e ação. Hoje se entende que a história é feita de diversas circunstâncias da vida humana 7 sendo os princípios teóricos dos historicismos marxista e agostiniano instrumentos, neste trabalho, para o entendimento do Centro UNISAL. No primeiro capítulo, pressupostos teóricos para uma avaliação institucional, se analisa o conceito de experiência fundacional e como ela se perpetua através do Mito, do Rito e do Símbolo, chaves interpretativas que permitem avaliar o grau de 3 -GASPARETTO JÚNIOR, Antônio. Historiografia Marxista. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/historiografia-marxista/>. Acesso em: 10 maio 2011. - Karl Popper (1909-1994) – Defendeu o racionalismo crítico e foi contundente no seu ataque ao Historicismo que define como “método pobre – que não produz fruto algum”. Cf. POPPER, Karl. A Miséria do Historicismo. São Paulo: Cultrix, 1961, p. 2. 4 5 - POPPER, op. cit. 6 - AMERIO, Franco. História da Filosofia Antiga e Medieval I. Coimbra: Casa do Castelo, 1960, p. 175. 7 - Ibidem. 33 fidelidade das instituições à experiência do fundador. Estes princípios são utilizados para avaliar o UNISAL do Século XXI. No segundo capítulo, Os salesianos8 na Itália e seu transplante para o Brasil: teoria e prática, idéias e ideologia, apresentamos as grandes transformações econômicas, políticas, sociais e religiosas da Itália no século XIX e o quanto elas impactaram sobre o camponês João Bosco9 que teve, como educador, de realizar uma síntese entre sua mentalide camponesa de matriz medieval e o novo mundo urbano de matriz liberal. É neste contexto histórico que elabora seu sistema de educação que é, posteriormente, transplantado para o Brasil com dupla finalidade como já afirmamos: em nível eclesial, ser um dos braços da romanização capitaneada por Pio IX e, em nível social, promover uma ação civilizatória para um país concebido como rude e distante da modernidade industrial. Neste contexto é implantado o Ensino Superior salesiano consecutivamente em Lorena, Americana e Campinas. Não tendo sido querido por boa parte dos sócios salesianos até o final do século XX, o ensino superior salesiano encontrou dificuldades em “verbalizar” sua identidade salesiana adequando-a para uma clientela que já ultrapassara a adolescência. No capitulo terceiro O UNISAL no século XXI e a Busca de sua Identidade: Tensões entre o passado, o presente e o futuro, apresenta-se a luta dessa instituição para definir o seu lugar ideológico como agência de educação católica e salesiana num mundo de grandes transformações econômicas, políticas, sociais, morais e religiosas. Pesa sobre a instituição sua mentalidade medieval e romanizada frente a um mundo em permanente processo de aceleração e modernização onde esses conceitos se tornam obsoletos. O Capitulo quarto, O Centro UNISAL no século XXI, trabalha-se os desafios e o lugar da educação salesiana no contexto urbano e cultural das três cidades onde está inserido. Analisam-se como os ideais educacionais estão presentes nas praticas docentes e como esse conteúdo é percebido e passado para o corpo discente. 8 - Cf. Glossário no final do trabalho com terminologias salesianas. 9 - Cf. Linha do tempo da congregação salesiana no final do trabalho. 34 Na conclusão faz-se uma síntese da situação da identidade salesiana no Centro UNISAL e apontam-se alguns caminhos que permitam configurar uma identidade salesiana de forma inequívoca. Este trabalho pretende ser uma contribuição de forma direta para o UNISAL avaliando-se a qualidade de sua ação a partir dos valores que o fizeram surgir. E, ainda que voltado para uma instituição católica, acreditamos que as reflexões expostas servirão para outras instituições confessionais de ensino superior que se erigiram a partir de crenças e valores que deveriam lhes conferir, num mundo fragmentado, uma inquestionável identidade. 35 CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL As Escolas10 de Ensino Superior confessionais nascem sob a égide de princípios e valores dos seus fundadores, sendo espaço de interlocução com o mundo acadêmico. A principal fonte de renda destas instituições é a mensalidade de seus alunos, base de sua sustentação. As leis de mercado, as exigências do governo, a competitividade, a necessidade de agregar ao seu corpo docente profissionais qualificados, não raras vezes faz com que princípios idealizados fiquem relegados a um segundo e até terceiro plano, frente aos problemas de sustentação de estruturas e pela incessante necessidade de atualização de pessoal frente a um mercado dinâmico e competitivo. Some-se a isso o crescimento destas instituições com o distanciamento entre os ideais elaborados pelos fundadores e o cotidiano acadêmico com professores de diversas procedências ideológicas, quando nem sempre a capacidade profissional está alinhada com os ideais dessas fundações. A Missão Institucional acaba, em muitos casos, sendo desconhecida por educadores e, conseqüentemente, por educandos. Deve-se ainda destacar que, pela própria natureza do mundo universitário, muitos dos docentes e coordenadores não comungam e até mesmo se opõem ideologicamente às crenças e princípios da fundação e, coerentes com seus princípios, acabam por não sublinhar e assumir os aspectos relevantes dos princípios institucionais, quando não partem para contestálos. A pluralidade e a liberdade de pensamento é inerente ao meio universitário. O importante neste contexto é que a instituição, coerente com sua matriz ideológica, possa garantir com clareza, em meio a essa pluralidade, os princípios e valores que a norteiam, confrontando-os com outras visões. Esta pesquisa tem por escopo verificar o impacto na Academia dos princípios da Filosofia e da Pedagogia salesiana no Centro Universitário Salesiano de São Paulo já que o significativo aumento de professores contratados pela capacidade técnico10 - Os pressupostos teóricos são do autor. 36 pedagógica nem sempre permite um consistente acesso aos princípios filosóficoeducacionais da Instituição. Além disto, questões financeiras e administrativas absorvem grande energia espiritual de seus gestores, preocupados com a saúde financeira da instituição. Tem-se por objetivo diagnosticar até que ponto os valores educacionais e humanos deste centro de educação salesiano são conhecidos por seus educadores e destinatários, não como uma proposta confessional, mas como um conhecimento a ser confrontado com outros saberes. Pretende-se trabalhar inicialmente com os documentos que delineiam os princípios educacionais da pedagogia salesiana, transplantados para o Ensino Superior, já que foram elaborados, inicialmente, para adolescentes. Retomamos as idéias já expostas que o ingresso no mundo universitário 11 foi visto com desconfiança por muitos salesianos12 até o fim da década de 1990. A fundação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena em 1952 foi apenas a legalização do Instituto de Filosofia voltado para formação de seminaristas salesianos que, impedidos de dar aulas pela crescente exigência de diploma reconhecido, tiveram necessidade de legalizar seus cursos. Poucos salesianos da época avaliaram a implicação do seminário de Filosofia ser reconhecido pelo governo: as portas deveriam se abrir para alunos externos tornando-se uma instituição de prestação de serviço ao público em geral. 11 - Alguns salesianos acreditaram na possibilidade de ingresso no Ensino Superior. Uma primeira tentativa foi a criação do Curso superior de Administração e Finanças implantado no Liceu Coração de Jesus no bairro de São Paulo de Campos Elíseos e reconhecido pelo Decreto 20.158 de 30 de junho de 1931. No dia 18 de março de 1939 formava-se a primeira turma. Como Decreto Lei 7.988 de 22 de setembro de 1945 se extingue este curso sendo substituído pelo de Ciências Econômicas. Há, porém, forte resistência dos salesianos que, de um lado não se sentem preparados para abraçar o ensino superior e, de outro, acreditam que esse não seria o tipo de trabalho fiel o fundador. Os poucos que o defendem não resistem às pressões da maioria. E, apesar do curso ser reconhecido definitivamente pelo decreto 25.225 de 15 de julho de 1948, neste mesmo ano, porém, no dia 3 de agosto o curso é agregado à Universidade Católica de São Paulo. Cf. SANTOS, Manoel Isaú Ponciano dos. Liceu Coração de Jesus. São Paulo: Salesiana, 1985, p. 348-356. 12 - O termo “salesiano” refere-se aos religiosos consagrados por votos religiosos na Congregação Salesiana. Ainda que seja uma “congregação Religiosa” no sentido estrito, ela se camuflou frente à sociedade e aos políticos liberais e anticlericais italianos do século XIX adotando uma nomenclatura e procedimentos leigos, assumindo o nome civil de Sociedade de São Francisco de Sales, sendo seus religiosos denominados de Sócios, o Superior Geral assume o nome de Reitor Mor e os superiores das casas religiosas de Diretor. Atualmente O termo “salesiano” diz respeito, em sentido amplo, a todos seguidores dos princípios e práticas pedagógicas elaboradas por João Bosco. Em sentido restrito se refere aos religiosos que fazem parte da Sociedade São Francisco de Sales. 37 Outras duas faculdades de Ensino superior salesianas foram fundadas em Americana e Campinas que em 199313 se uniram com a de Lorena formando o Centro Universitário Salesiano; e em 07 de janeiro de 2003 se integraram às IUS14 congregando mais de cinqüenta instituições de Ensino Superior em quatro continentes. Esse rápido crescimento fomentou o distanciamento entre os ideais da pedagogia salesiana e o corpo discente cada vez mais numeroso, crescendo o hiato entre os ideais institucionais e seus destinatários15. Pretende-se avaliar em que nível e intensidade o conhecimento e a aplicação da pedagogia salesiana acontece nas unidades de Americana, Campinas e Lorena16. Antes de se abordar especificamente o UNISAL é preciso analisar como os ideais nascem e se institucionalizam sofrendo a erosão do tempo e das circunstâncias. Por que há nas instituições um descompasso entre os ideais da fundação e a prática do cotidiano, gerando em alguns membros dessas comunidades desalento e descrença. Serão apresentados pressupostos que se configuram como pano de fundo desta pesquisa delimitando-se alguns conceitos utilizados para análise desta instituição. Partir-se-á da experiência individual do fundador que se transforma em experiência fundante atraindo para si seguidores que procurarão se inspirar nas suas intuições, reproduzindo-as. A narração dessa experiência fundante será realizada através do Mito, atualizado pelos Ritos e pelos Símbolos. Será sob essa ótica que se avaliará se o UNISAL consegue manter e transmitir princípios e valores que devem nortear sua ação educativa. 13 - O Centro Universitário Salesiano de São Paulo foi definitivamente credenciado pelo Ministério da Educação por Decreto Presidencial no dia 24 de novembro de 1997. 14 - “Instituições Universitárias Salesianas” congregando inicialmente os seguintes países fundadores: Argentina, Bolívia, Brasil, Checoslováquia, Chile, Equador, Itália, Papua Nova Guiné, Polônia, Espanha, El Salvador, Índia, Japão, México e Peru. 15 - Esta questão será objeto neste nosso trabalho de sondagem de campo junto a discentes para avaliar o impacto da pedagogia salesiana sobre suas formações. Analisaremos também como a salesianidade é tratada nos projetos dos cursos e nas práticas pedagógicas. 16 - No caso de Lorena deve-se considerar que uma significativa parte do corpo docente teve contato com a Pedagogia salesiana no antigo Colégio São Joaquim com cento e vinte e um anos (1890-2010) de existência. Acredito que essa pesquisa nos permitirá ampliar para outras instituições confessionais algumas conclusões plausíveis de universalização. 38 1.1 - Delimitação de Conceitos O homem se constrói a partir de experiências. Prevalece o conceito aristotélico de que nada está na inteligência sem que por primeiro não tenha passado pelos sentidos17. O experimentar faz parte intrínseca da vida, sendo um patrimônio pessoal na construção da personalidade. Em geral as experiências vividas esgotamse na temporalidade da própria vida do cada indivíduo. Há experiências, porém, que transcendem ao individuo e são apropriadas por outras pessoas que vêm nelas algo de singular e extraordinário e, ainda que vivenciadas por outrem, possuem um lastro de sabedoria que passa a ser para muitos um referencial de vida. A essa experiência pessoal de alguém, quando transferida ou apropriada por outras pessoas, denominaremos de experiência fundante. Tal experiência de uma pessoa, assumida por outras, dá ao individuo que a vivenciou a imediata ou crescente consciência de que é “mestre”, “guia” e “fundador” e a "consciência de que tem uma missão” a cumprir. Tal experiência vai aos poucos se desmaterializando e assumindo um halo místico. A experiência fundante, ao perder sua materialidade, se torna um princípio, uma doutrina e uma mística. O fundador atrai seguidores mais fervorosos que o apontam como exemplo a ser seguido. Os discípulos das primeiras horas são co-fundadores que avalizam a experiência do fundador como referencial e palavra final. Sua morte qualifica-os com autoridade porque conviveram com o mestre sendo reconhecidos como seus verdadeiros interpretes. Com o tempo a experiência fundante se encaminha para a institucionalização que procura organizar e perpetuar o carisma do fundador e dos seus primeiros seguidores. A imagem, a vida, as ações e ideais do fundador são perenizados pelo Mito, pelo Rito e pelo Símbolo. O Mito é a narração da vida, dos ditos e feitos do fundador e de seus primeiros discípulos. Não é, porém, uma narração feita uma única vez como numa comunicação, mas é sempre narrada, porque aquele evento fundacional do passado se torna sempre presente na comunidade que o assume. Os iniciados ouvem com 17 - Este conceito elaborado por Aristóteles e conhecido como “tabula rasa”, não leva em conta, obviamente, a carga genética do ser humano. Sem abstrair essa carga, objeto de estudos recentes, damos especial destaque à dimensão das experienciais sociais, familiares e psicológicas dos fundadores que trazem na construção dos seus ideais elementos do ambiente psico-social no qual se formam como pessoa e cidadãos. 39 unção a história de como tudo começou. Este resgate tem não só a função de memorial, mas de entendimento do “agora” da Instituição. Perder esse referencial histórico é perder a própria identidade, pois, os seguidores devem entender que são continuadores do fundador. O mito é um fato do passado que se atualiza pelo Rito. O Rito é a atualização do Mito que “indo” ao passado, atualiza a experiência fundante tornando-a presente aqui e agora no hoje, sendo, portanto, não só evocativo, mas também celebrativo. É a atualização do ontem no hoje, quando tomamos consciência que “nós” somos a continuação da mesma história. O cerimonial integra e dá unidade ao passado e ao presente quando temos consciência que não somos meros observadores, mas protagonistas desta história. Nas celebrações religiosas, à guisa de exemplo, a divindade sai de sua transcendência e está “aqui” no rito interagindo com seus crentes ouvindo-os e atendendo-os. Em Instituições não religiosas o cerimonial também diz a mesma coisa: os sonhos dos fundadores não ficaram no passado: somos este sonho tornado realidade, não havendo entre o fundador e seus discípulos o vácuo do tempo. O ontem é o hoje em nós. Daí a necessidade de uso de roupas e insígnias que indiquem que o membro da comunidade transcende a sua própria individualidade. O Símbolo é o que nos faz remontar e lembrar a experiência do fundador por sinais. O vestir-se e o envolver-se de símbolos representa conectar o hoje com o ontem. O paramentar-se, não só no sentido religioso, significa dar identidade ao Rito indicando a fonte de onde se vem. O Símbolo é um referencial ao Mito inicial. Mesmo as construções são sinais de uma determinada Instituição que procura se impor pela grandeza, esplendor e majestade para assinalar o que representa. O Ideal do fundador, nascido naturalmente ou forjado por seus discípulos, se visualiza no Mito, no Rito e no Símbolo que sintetizam a experiência fundante. Essa experiência precisa se institucionalizar para organizar o impulso inicial que vai sendo ordenado por regras, normas, princípios e procedimentos para garantir a fidelidade de como a coisa deve ser. Se essa fundação é bem sucedida isso se materializa no reconhecimento social, garantia de status e poder. Os seus gestores têm como missão ser intérpretes dos ideais fundacionais e, como guardiães zelosos, manter a “chama sagrada” da experiência fundante. 40 Uma Instituição que se consolida é um atrativo para novos membros, ora por uma clara opção pelos ideais fundacionais, ora pela procura de status, poder ou remuneração. Cria-se tensão entre as dimensões carismática e institucional, entre os ideais do fundador e o cotidiano pouco romântico com sua materialidade prosaica: contas, captação de recursos, remunerações, competições de mercado, captação de clientes, direitos e lutas sindicais, contratação de funcionários alinhados com os ideais do fundador e a demissão dos menos integrados profissional ou ideologicamente. Acontece de se ver o retrato de fundadores fixados em paredes de vestutas fundações, antes venerados e amados, hoje, rostos anônimos a assombrar, como fantasmas do passado com seus ternos antigos, às novas gerações sedentas de modernidade e desejosas de sepultarem nos porões dos prédios esses quadros velhos. Assim como esses retratos, objeto de veneração no passado, também os mitos, ritos e símbolos podem perder sua atualidade apesar de pendurados na Instituição. Aqui está diagnosticada a crise profunda de uma fundação onde o Mito deve ser narrado, o Rito deve ser celebrado e o Símbolo deve ser mostrado por funcionários sem paixão, sem emoção, sem adesão afetiva, sem se identificar com eles. Parecem velhos funcionários de velhas instituições apresentando com voz pastosa e sem brilho nos olhos os “ideais” de fundações das quais recebem o sustento enquanto esperam com ansiedade a aposentadoria. O Mito fundacional torna-se mera mitologia, estórias do passado; o Rito torna-se ritualismo, suportado com olhares constantes ao relógio conscientes de que está demorando muito e se tem coisa importante a fazer. E os Símbolos não simbolizam mais, sendo relegados às gavetas ou envergados em cerimônias com tédio ou, tornam-se ainda enfeites sem seu significado inicial. Essas coisas só são suportadas porque através delas se tem status ou remuneração. A Erosão dos paradigmas fundacionais e institucionais faz com que se mantenha um verniz superficial que apenas se refere ao fundador e à sua experiência fundante. Os discursos tendem a ser vazios e as ações tornam-se pragmáticas até no fingir que se adere aos critérios fundacionais quando se vive, efetivamente, atitudes diferentes das propostas pela Instituição. O Mito não narra mais, o Rito não celebra mais e o Símbolo não simboliza mais. O que sobrevive é o simulacro. Esta Instituição está 41 em crise, pois, há uma efetiva ruptura entre o sonhado e o vivido. E ainda que sobrevivam em seu comando poucas pessoas apaixonadas pela experiência inicial, efetivamente, porém, não há mais canais entre o impulso inicial repleto de paixão e os destinatários. Numa escola, para concretizarmos essas afirmações, há educadores que não crêem nas propostas dos mantenedores e alunos que não recebem os influxos desta experiência fundante. O destino desta Instituição será, ou a radical presença de vigorosos e violentos reformadores que busquem retomar o espírito da fundação, ou a ruptura com os paradigmas fundacionais substituindo-os por outros ou, ainda, o melancólico encerramento de suas atividades. Ainda uma questão provocadora: seria destino inexorável de que todas as experiências fundantes devem viver períodos de institucionalização, apogeu e decadência? Os ideais e princípios educacionais sofreriam erosão inevitável do tempo tornando-se arcaicos e ultrapassados? Seriam, na história, alguns valores apenas sazonais? Teria sentido uma Instituição de Ensino Superior possuir princípios pétreos? São questões que perpassam o suceder histórico e, acima de tudo, o filosófico. Essas mesmas questões deveriam ser equalizadas para uma interpretação filosófica: Existiria o perene? Ou prevaleceria a intuição do velho Heráclito que via no permanente fluir e na mudança em si aquilo que era o mais certo? Certos valores são de momento ou perenes? Os valores fundantes de uma Instituição de ensino não perpassariam o tecido acadêmico por incompetência de seus gestores ou porque seria já um produto fora de linha e, portanto, não interessante aos consumidores? Seriam os gestores de uma fundação como vendedores de loterias que gritam a todos os transeuntes que o “bilhete premiado” está em suas mãos, mas o vendem por um punhado de moedas tidas, então, por mais valiosas? Por que experiências fundantes perdem seu vigor e exuberância? O Iluminismo, o Positivismo, o Capitalismo e o Marxismo foram totens que se erigiram grandiosos nas planícies da história e que conheceram a erosão do tempo. Será que Mito, Rito e Símbolo das instituições educacionais sofreriam a inexorável erosão da descrença: ser um mito que não narra mais, ser um rito que não celebra mais, ser um símbolo que não simboliza mais? São questões que, se respondidas, independente de qual seja a resposta, darão um norte no governo nas Instituições de Ensino Superior. Os ideais dos fundadores nas Instituições de Ensino Superior 42 sofreriam crises conjunturais ou estruturais? São questões que necessitam de respostas para que o ideário e a missão das universidades seja uma realidade exeqüível e não uma formalidade nos planos das instituições. 43 1.2 - Evolução dos pressupostos teóricos da salesianidade do século XIX na Itália até o UNISAL do século XXI Os pressupostos teóricos anteriormente expostos serão aplicados para a avaliação institucional do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, tendo como pressuposto que os fundadores desta instituição acreditavam no projeto educacional de João Bosco. Deve-se ter presente, porém que a institucionalização de experiências fundacionais costuma, de um lado encobrir as pulsões primeiras que apaixonaram os fundadores, minimizando-as e burocratizando-as, e, de outro, elevando-as a tal nível de idealização que deixam de ser exeqüíveis. A recuperação histórica desmistificadora é elemento essencial para se avaliar quais são os reais fundamentos duma instituição já que, como afirmamos, toda narração do passado sofre inevitável processo de idealização. A desmistificação das origens não diminui, mas plenifica tanto o fundador como sua fundação. Uma historiografia crítica nos permitirá retornar o mais próximo possível do inicio da fundação, retirando todos os adereços inúteis fixados por narradores fantasiosos, fazendo-nos perceber que o fundador foi filho de uma época, possuindo qualidades e limitações, sendo capaz de artimanhas e articulações, conformando-se com o seu mundo e a mentalidade de sua época, sabendo-se que suas intuições e dificuldades não foram diferentes da que se tem hoje. Não raro esses primeiros ideais corporificados agora em princípios iluminadores do presente parecem distantes de nossas realidades e possibilidades. As raízes ideológicas, educacionais e pedagógicas do UNISAL estão postadas no século XIX no norte da Itália na região do Piemonte. Essa mundividência filosóficoeducacional gestada e nascida no contexto do Risorgimento da Itália do século XIX confronta-se no século XXI com um novo mundo e uma nova mentalidade, materializando-se nos princípios educacionais que dão fundamento à existência e a prática pedagógica salesiana aplicada ao UNISAL. Temos, pois, que entender que a gênese desta pedagogia se deu como resposta para os problemas sociais, políticos e morais do seu tempo, tendo sido transplantada para o Brasil também como resposta aos problemas em parte similares aos da Itália no ocaso do século: préindustrialização, anticlericalismo, pensamento liberal e romanização da Igreja. A 44 seguir aprofundaremos que itinerário essa pedagogia teve que fazer para se adequar ao ensino superior18. Explicitemos esses passos. Um primeiro passo é a reconstituição do ambiente econômico, político e social do início da fundação no século XIX. A península itálica vive então um contexto conturbado com o Risorgimento19 com contestações à Igreja20 e ao sistema político vigente de reinos. A partir da ótica liberal, “l’ancien regime” mostra-se obsoleto e insuficiente para atender às novas demandas econômicas, sociais e políticas. Os múltiplos reinos da península se viam fragilizados frente a uma nova ordem política que desejava se livrar da herança medieval, quando se configura uma préindustrialização incrementando a urbanização. Para o homem comum desta época parece reinar o caos ao sentir que antigas instituições eram abaladas por novas propostas que pareciam conter em si a desagregação e a instabilidade. Um segundo passo é contextualizar João Bosco neste cenário, pois também ele vive as contradições e inseguranças deste tempo. Possui um pé fincado no campo com uma mentalidade tradicional apoiada nos valores da família, da igreja e do ritmo sazonal de plantio e colheita. Ao migrar para a cidade em busca de vida melhor toca nas contradições que os conglomerados humanos mais densos explicitam, sobretudo numa época de crise. Assiste a revoltas, a movimentações de tropas, violência urbana, injustiças, ataques explícitos à igreja e a miséria que campeia entre os migrantes. Como neo-sacerdote se vê numa encruzilhada em que deve optar por ser um padre com funções estáveis e rotineiras e com proventos suficientes para uma vida digna, ou se integrar nos inseguros redemoinhos dos novos tempos que não possuem nem caminhos e nem soluções prontas. A experiência psico-existencial daquele que mais tarde se tornará um fundador são fundamentais para compreender a construção de seu ideário de educador. 18 - Logo após a Índia o Brasil foi um dos primeiros países a ter ensino superior salesiano. Houve uma primeira “join venture” com o ensino superior em São Paulo no com a fundação de uma faculdade de Administração como já foi explicitado na nota 1 deste trabalho. 19 - Giuseppe TALAMO (Org). Gli Ideale del Risorgimento e dell’unità - Nel Primo centenario dell’Unità d’Italia. Roma, Ente Nazionale Biblioteche Popolari e Scolastiche, 1961. p. 7 20 - Francesco MORONI. I Cattolici e Il Risorgimento. Torino. Elle DI CI 1961. p. 37 45 Um terceiro passo é apreender as práticas e elaborações teóricas que João Bosco cria a partir do seu tempo e que se configuram como seu ideário educacional que foi capaz de atrair discípulos e se projetar para os séculos futuros. Esse transcender da pedagogia salesiana ao momento histórico do fundador demonstra que se construiu um conjunto de princípios capazes de ter vida atemporal e válida para diversos tempos e lugares. Um quarto passo é perceber que esses princípios educacionais com suas práticas pedagógicas são transplantados para outros continentes. Aqui, no final do século XIX e inicio do XX, se recriam condições similares às da Itália no campo econômico com uma pré-industrialização em marcha tanto no entorno da baía de Guanabara como, posteriormente em São Paulo Ao chegar ao Brasil os salesianos tiveram metas bem explicitas: atender a adolescentes e jovens das classes populares, viverem com fidelidade sua obediência à Igreja, preparar clérigos que se tornassem professores em seus colégios, internatos e obras sociais. O ingresso no mundo do Ensino Superior teve alguns impactos sobre as concepções e práticas da pedagogia salesiana que foram elaboradas e organizadas para a educação de adolescentes e jovens das classes populares. Sua transposição para o mundo universitário mostrou-se problemática quando deveriam, sem perder a fidelidade aos procedimentos elaborados pelo fundador, se adequar a um universo não pensado por este. De outro lado o próprio mundo também mudou drasticamente: a popularização dos meios de comunicação social, o crescente materialismo, o relativismo moral, a aceitação do pluralismo, a reformulação dos conceitos de família, a globalização, o mundo virtual e a pluralidade são apenas algumas das muitas facetas que assume a sociedade moderna com drásticas mudanças no convívio social e no comportamento dos destinatários da educação. Algumas questões se colocam: no século XXI o Mito Fundacional, os Ritos e os Símbolos salesianos são assumidos como valores? Os educadores destas instituições acreditam neles e os reproduzem para seus discípulos e para sociedade? Os elementos pedagógicos da fundação ainda palpitariam como crenças ou estariam relegados a status de meras formalidades institucionais? São questões que queremos aprofundar. 46 CAPITULO II - OS SALESIANOS NA ITÁLIA E SEU TRANSPLANTE PARA O BRASIL: TEORIA E PRÁTICA, IDÉIAS E IDEOLOGIAS A História, enquanto suceder de fatos apreendidos pela mente e compilados em textos, é uma abstração enquanto captura os eventos e lhes dá significado, estabelecendo conexões com outros acontecimentos e conferindo-lhes um sentido. A organização das primeiras sociedades primitivas veio acompanhada de narrações que justificam seus costumes, regras e leis. E, quanto mais complexas elas se tornavam, mais elaboradas eram as narrações que justificam seus costumes, sempre a partir do seu modo de produção. Este processo de racionalização é um emaranhado de ideologias explicativas que justificam práticas sociais, tradições e formas de dominação. Nenhuma estrutura erigida numa sociedade pode ser entendida e explicada sem desvendarmos e desvencilharmos as intrincadas teias ideológicas que se embaralharam na sua construção e nenhum ser humano pode ser entendido isoladamente, mas como um filho da sua cultura e do seu tempo. Cabe ao estudioso decodificar o entorno histórico deste homem, sem o que, jamais poderá apreender em verdade suas idéias, ideais e projetos. Não se trata de um fatalismo ou determinismo histórico, mas de algo que de certo modo está na “genética cultural” de cada geração e de cada tempo. Uma última sinalização importante. A história jamais se refaz ou se repete. Ela traz lições e mostra caminhos. Ideais, idéias e instituições vindas do passado não são peças arqueológicas que devem ser mantidas em vitrines. São experiências válidas e sábias, mas que devem ser recriadas, refeitas, readaptadas para novos tempos, por novos homens e para novas sociedades. O passado lança luzes para o entendimento do presente para que se possa construir o futuro. Caberá, porém, a cada geração, construir o seu futuro do seu modo a partir de sua realidade dando respostas para suas necessidades e para o seu tempo que sempre será novo e único. 47 A Sociedade São Francisco de Sales tem suas raízes no século XIX como resposta de João Belchior Bosco aos desafios de uma época de tensões econômicas, sociais, políticas e religiosas e que nasceram a partir da desestabilização e paulatina mudança do modo de produção. João Bosco deu respostas ao seu contexto histórico, conseguido, porém elaborar princípios que transcenderam o seu tempo e ainda hoje são acolhidos por educadores que os assumem como instrumentos de educação de jovens confiados aos seus cuidados. Um conceito que merece especial destaque é o termo desafio. Os protagonistas dos grandes momentos históricos só se mostraram em tempos de desestabilizações. Inexistem heróis no mormaço monótono do cotidiano com seu dia-a-dia previsível e rotineiro. São nas situações de instabilidade que emergem e ganham destaque homens aparentemente comuns que lideram movimentos, desestabilizam sistemas e quebram paradigmas. Somente a História nos faz compreender a gestação, o nascimento, o crescimento e o desenvolvimento dos grandes ideais, não importando se políticos, econômicos, religiosos ou sociais. Esses ideais, porém não se cristalizam no passado, mas se confrontam com os novos desafios. Entender a gênese da educação salesiana no contexto dos desafios do século XIX é fundamental para apreender os critérios que a iluminaram. Dar, porém, as mesmas respostas para nossos desafios do século XXI é partir de imediato para o fracasso. É importante compreender o momento histórico da gênese da pedagogia salesiana. Cabe às gerações do século XXI responder aos desafios deste século aproveitando as lições do passado naquilo que possuem de perene e essencial. 48 2.1 - 1.800: A Itália no século da liberdade Em 1789 ao eclodir a Revolução Francesa fica explicito que um antigo mundo começava a se desintegrar21. As diversas facetas que assume essa revolução com seu discurso libertário indicavam que não se sabia muito aonde ir, mas certamente era explicito onde não se queria ficar: o modelo absolutista de governo e medieval de relações campesinas de tradição feudal22. A paulatina mudança no modo de produção com uma emergente burguesia exigia da sociedade adequações nos terrenos econômico, social e político. Hobsbawn apreendeu o espírito desta época ao cunhar os termos era das revoluções e do capital. Essa Revolução se torna exacerbada pela incapacidade de adequação e diálogo entre o antigo modelo do modo de produção econômico e o novo, capitaneado pela burguesia em fase de consolidação como força econômica. As revoluções burguesas de 1848 em maior ou menor escala vão acontecendo aonde o modo de produção industrial vai se implantando e exigindo um modelo político e social mais adequado aos interesses dos detentores dos meios de produção. Era um tempo de rupturas. A nobreza de origem feudal se constituía num entrave aos novos tempos, quando as grandes propriedades, a servidão e os privilégios que lhes eram conferidos oneravam as classes efetivamente produtivas 23. Os monarcas absolutos até então tinham dado guarida e proteção à nascente burguesia, subordinando-a aos seus caprichos, monopólios e impostos. Paralelamente, o proletariado ia crescendo em consciência de classe passando a reivindicar e lutar por direitos24. Esses ingredientes sociais explosivos ganharam inicialmente visibilidade com a Revolução Francesa que “verbalizou” insatisfações que posteriormente se alastraram na Europa em movimentos cujo escopo era sempre a ruptura com o antigo sistema sócio-político-econômico, buscando condições favoráveis de governança para a burguesia industrial. 21 - Cf. HOBSBAWN. Eric J. A Era das Revoluções. S. Paulo: Paz Terra, 1981, p. 23-42. 22 - Cf. HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 155-164. 23 - A França é o mais explicito modelo onde a nobreza e o alto clero se constituíram como classes parasitárias. 24 - Cf. HUBERMAN, op. cit., p. 225-245. 49 A Revolução francesa é o divisor de águas entre o antigo e o novo mundo. Práticas medievais de produção e absolutistas de governo ao adentrarem o século XIX mostraram-se obsoletas frente à nova ordem econômica que exigia uma organização política adequada a esse mundo em evolução. Toda mudança histórica não é um episódio isolado, mas resultado de longos e demorados processos que ganham visibilidade em determinados episódios que parecem ser de imediato uma ruptura, mas que de fato, é apenas o momento visível de processos que vão tendo maturação por séculos. Qualquer episódio que aparente ser “o divisor de águas” deve ser entendido como, à guisa de exemplo, as explosões dos vulcões, imensas e assustadoras, mas que foram maturadas no recôndito da terra por séculos. É preciso ter uma visão ampla sobre a história e na mentalidade que nela se constrói para compreender os acontecimentos e fatos ditos revolucionários. O modo de produção é o elemento que determina a configuração e a mentalidade de uma época e os fatos históricos só podem ser compreendidos em profundidade se se tiver uma ampla visão de suas formações e configurações a partir da produção dos meios de sobrevivência. A partir do século IX na Europa os primeiros comerciantes ensaiam a retomada de suas atividades. No século XI se consolidam as feiras medievais e em seu entorno os primeiros burgos25. Nos séculos XIII e XIV no campo do pensamento há significativas mudanças. As catedrais góticas assinalam um extraordinário avanço da engenharia ao superar os compactos e sólidos prédios de origem românica. Na Universidade de Paris jovens professores rompiam com o pensamento místico do agostianismo-platônico para assumirem o pensamento aristotélico despido das distorções de Averóis26. A escola de Chartres inclinava-se para o humanismo e as 25 Cf. Rubim Santos Leão de AQUINO. Denize de Azevedo FRANCO. Oscar Guilherme Pahl Campos LOPES. História das Sociedades. Rio de Janeiro, Editora ao Livro Técnico, 1980. pp. 408-411. 26 -“A grande crise que abalou a universidade de Paris em 1277 e que culminou com a expulsão dos mestres aristotélicos representa um momento de enorme significação dentro do contexto medieval e é motivo para profundas reflexões sobre o sentido histórico e sua importância para o pensamento ocidental. (...) O decreto de1277 não é específico contra Siger de Brabante. Nem mesmo é específico contra o averroísmo, que vinha conquistando o interesse de grande número de mestres da Faculdade de Artes e até mesmo de alguns teólogos. O decreto de 1277 é muito mais amplo pois procura atingir o próprio aristotelismo como via para a construção do saber”. Carlos Bento MATHEUS. A Grande Crise de 1277 na Universidade de Paris. In. Revista da Educação, Lorena, Editora Stiliano, 1999. pp. 43 e 44. 50 ciências naturais27 procurando na experimentação a confirmação de teorias acrisoladas, então, pela confirmação empírica. No final da Idade Média não eram poucas as mudanças que, como tremores no fundo do oceano geram tal quantidade de energia que se tornarão nos séculos seguintes qual tsunami em devastadoras enchentes a demolir cidades e civilizações. Nos séculos XV e XVI vai se impondo o modo de produção comercial. A necessidade de abertura de novas fronteiras comerciais incrementa não só a elaboração de tecnologias de navegação como também de práticas políticas que visam garantir a hegemonia das metrópoles sobre imensas áreas coloniais. Comerciantes e reis entrelaçam seus interesses, estes procurando consolidar um poder centralizado e absoluto e aqueles financiando esses projetos de poder total e, ao mesmo tempo, ampliando seus espaços de ação comercial. Se essa classe burguesa tivera seu início de forma modesta, tendo singrado os oceanos e acumulado riquezas, se via agora tolhida e cerceada pelos amplexos do poder absolutista, pois não mais queria o papel de coadjuvante, mas de protagonistas primeiros da economia nas atividades comerciais. Se a burguesia inglesa não vivera esse problema de forma crônica, pois a Revolução Gloriosa28 lhe dera, prematuramente, a governança da Ilha e de suas colônias, cabendo então à realeza uma função meramente simbólica de poder, em outras regiões, porém, prevalecia, ou poder absolutista do rei, como no caso da França, ou a fragmentação em pequenos reinos, gulosos de impostos vendo na classe dos abastados burgueses fonte de captação de recursos para financiar os interesses dos príncipes, como é o caso da península itálica. Com a pré-industrialização intensifica-se as relações comerciais com o enriquecimento das burguesias comercial e pré-industrial em detrimento da classe operária que, explorada, não deixa de crescer na consciência de classe. Neste contexto as práticas comerciais e econômicas da burguesia não mais suportavam o autoritarismo centralizador de monarcas absolutos e nem os interesses paroquiais de pequenos reinos com seus impostos, taxas alfandegárias e dízimos. Em contrapartida a crescente concentração urbana de 27 - “Se preocuparon por las ciencias naturales, las matemáticas, la astronimía y hasta la medicina”. Guillermo FRAILE. Historia de la Filosofia, vol II. Madrid, BAC, 1966. p. 427. 28 - “Um novo movimento, a chamada Revolução Gloriosa, estoura em 1688, depondo Jaime II. Esse movimento marca a ascensão definitiva da burguesia comercial ao poder. O novo rei Guilherme III, devendo o trono ao parlamento, que o chamara, abre mão de muitas das prerrogativas laçando-se as bases da democracia representativa inglesa”. Francisco de B.B. de Magalhães FILHO. História Econômica. São Paulo, Sugestões Literárias S.A, 1979. p. 263 51 classes populares permitia o encrudescimento de insatisfações sociais que abalavam lentamente os pilares ideológicos que até então tinham dado sustentação ao mundo feudal. Falávamos, anteriormente, usando uma analogia da formação de um “tsunami cultural” nos século XIII e XIV. Nestes séculos a razão é valorizada com o racionalismo aristotélico, com o matematismo da engenharia e do controle da natureza pelas ciências empíricas. Esta “descoberta” da razão irá gerar e dar sustentação à reforma protestante e posteriormente ao Iluminismo. A razão, porém, continua “sua evolução”. Não só a descoberta de novos meios e técnicas de navegação, mas a razão burguesa racionaliza ao máximo seu controle nos negócios reduzidos então à férrea lógica matemática. Ainda a razão vai presidindo o domínio de tecnologias de produção com a industrialização. Os homens pensantes ganham confiança na sua capacidade e com isso, no século XIX, é difícil para a burguesia e a classes mais cultas suportar a tutela de senhores absolutos que agem em nome de Deus e mesmo da Igreja que também se habituara a ser senhora de terras e de almas e que agora não aceita ter menos terras 29 e almas. Em 1789 tantos “tremores” adentram furiosos na civilização européia demolindo e destruindo tudo o que lhe oferecesse resistência, crescendo a dicotomia entre o espiritual e o material, o dogma e a liberdade, a fé e a razão, o clérigo e o leigo. A racionalidade é a chave desse processo histórico global. Foi ela que deu sustentação à ruptura com o modo de produção feudal e à eficiente ação dos primeiros comerciantes. Ergueu catedrais de pedra e de pensamento30 nas universidades de Bolonha, Oxford e Paris já no século XIII com a valorização do pensamento aristotélico e nas primeiras incursões nas práticas experimentais, contestando no século XIV a própria estrutura social e eclesiástica organizada sob a ótica de uma teocracia medieval em que a autoridade tinha sua fonte de validação em Deus. Deu significado às práticas comerciais e à 29 - “A Igreja em certa época toda poderosa tantos em assunto espirituais como temporais, perdeu o controle sobre os Estados, mas expandiu seus esforços na esfera religiosa. A Reforma Protestante trouxe, por sua vez, grandes alterações nas práticas religiosas e a Renascença revolucionou os aspectos culturais da vida européia”. John Fred BELL. História do Pensamento Econômico, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976. p. 76. 30 - “Há mesmo certa afinidade entre as Sumas de teologia e as belas igrejas românicas ou góticas emergindo bem no tempo em que as solenes melodias gregorianas fraternizavam com as joviais canções de amor e a gestas improvisadas dos trovadores. Ativas escolas de teologia e santuários bem cinzelados brotaram nos mesmos espaços e datas aproximada”. Carlos JOSAPHAT. Tomás de Aquino e a Nova Era do Espírito. São Paulo, Loyola, 1998. p. 13. 52 ocupação do mundo colonial. A Revolução Francesa foi o coroamento teórico e prático desta ruptura com a mentalidade feudal e cristã tendo seu referencial teórico no Iluminismo. Aqui estão postos os ingredientes das convulsões sociais e políticas do século XIX, pois a mudança de estruturas passa por ações revolucionárias e busca de novas reformulações. É a tensão entre o antigo mundo com o seu status quo e as sementes de uma nova sociedade pré-industrial que se configurava. Após Napoleão Bonaparte, a Europa parecia se estabilizar com o Congresso de Viena em 1815, com o retorno de l’ancien regime de antes de 1789. Esse retorno, porém, teve duração efêmera tendo sido derrubado com as revoluções de 1848 em Paris, Viena, Berlim e Milão, denominadas em seu conjunto de Revolução Européia. Será neste lastro de revoluções que também na península itálica se articularão os movimentos liberais buscando superar o poder da Igreja e dos príncipes pela unificação dos diversos reinos na constituição de um estado-nacional burguês. A península itálica viverá com intensidade esses momentos com grupos que procuram subverter a ordem vigente como os carbonários, maçons, jacobinos e illuminati. Lambruschini31 expressa perplexidade pelos novos tempos em que ancestrais valores são questionados: Tudo se agita ao meu redor. A Itália, e poderia dizer toda a Europa é sacudida como um mar em tempestade. Pensamentos desordenados, paixões furiosas vão e vêm como ondas que correm desenfreadamente, colidem e ameaçam engolir-nos. Não é desordem passageira, por motivos passageiros e recentes. É transtorno profundo preparado faz séculos. Mas os homens fecharam seus olhos para não ver os novos transtornos que se acumulavam; taparam seus ouvidos para não ouvir os trovões que antecedem a tempestade. Ninguém quer receber a salvação a não ser dos seus próprios males. O orgulho humano é deste jeito: só a adversidade 31 - Raffaello Lambruschini (1788 – 1873), político, religioso, agrônomo e pedagogo italiano. Teve marcante influência política. Sua obra póstuma Dell’Autorità e Della Libertà foi compilada por Angiolo Gambaro e reúne diversos manuscritos, entre os quais cartas arquivadas na Biblioteca Nacional central de Florença. A coletânea dessas cartas, anotações e escritos diversos confere a Raffaerllo Lambruschini especial destaque porque escritos ao longo de sua vida, o que nos permite captar as palpitações dos momentos históricos por ele vividos da unificação da Itália. Seus escritos, neste livrocoletânea nos permitem sentir os impactos e percepções deste pensador-pedagogo no exato momento em que aconteciam, dando-nos uma apreensão mais qualificada dos sentimentos que permeavam a alma desse autor e seus coetâneos frente aos diversos sucederes históricos dos quais participava: o Congresso de Viena, o Risorgimento, a invasão dos território papais e constituição do estado-nação da Itália. 53 pode domá-lo. E Deus nos ensina com a adversidade. Será que bastariam ao menos os males do passado para sacudir-nos e iluminar-nos? 32 A Igreja se constitui no maior obstáculo neste momento enquanto mentora e guardiã da organização social e política vigente. Os reformistas devem, necessariamente, enfrentá-la e enfraquecê-la para se obter a unificação da península que se configura não só como uma luta contra os Estados Pontifícios, mas, sobretudo contra os princípios religiosos que davam sustentação ao poder temporal do papa. De fato, a Igreja consolidara até então um imenso poder econômico, político e social que, mesmo se contestado pela Reforma Protestante, garantia-lhe, porém, o efetivo controle social, político, econômico e ideológico da região sendo significativo empecilho de progresso para a burguesia por sua tradição e mentalidade medieval centrada na posse da terra e na dependência das populações ao seu comando. Além do mais, seu prestígio se estendia pelo mundo católico entendido por seus fiéis como de origem divina. A Igreja se configura como espaço de resistência às mudanças políticas e sociais, fortalecida por uma visão teocrática que justificava suas propriedades, seus reinos-bispados e, sobretudo, os Estados Pontifícios, sério obstáculo material e espiritual para unificação da península, porque encravado no seu centro impedindo a integração física entre norte e sul. Na mentalidade católica da época se associa esse confronto com o que Agostinho expressara em sua obra ‘”A Cidade de Deus” que polarizara as duas cidades, a de Deus e as dos homens, esta dissoluta e pecadora, aquela santa e prefeita. Pelas armas os exércitos papais defendiam a integridade territorial e nos púlpitos se denunciavam os ataques a Deus e à religião. Daí, o anátema ao liberalismo tinha sentido para os católicos porque atingia em cheio os interesses materiais e espirituais da igreja. A unificação italiana construída entre 1815 e 1870 teve nos ideais da Revolução Francesa o modelo para se construir um novo Estado-nação. 32 - “Ogni cosa s’agita intorno a me. L’Italia, e potrei dire l’Europa tutta, è sconvolta come um maré in tempesta. Pensieri disordinati, passioni furiose vanno e vengono como onde che si accavallano da opposte parti, e si scontrano e minacciano d’inghiottirci. Non è disordine passaggero per lievi e recenti cagioni. È sconvolgimento profondo preparato da secoli. Ma gli uomini han chiuso gli occhi per no vedere i nuovi che si accumulavano: han chiuso gli orecchi per non udire la romba della procella. Nessuno vuol recivere saviezza (sic) se non da’ propri mali. Così è fatto l’umano orgoglio: la sola l’avversità può domarlo.E Iddio ci ammaestra com l’avversità. Basteran eglino almeno i passati Mali a scuoterci, e a illuminarci?”. LAMBRUSCHINI, Raffaello. Dell’Autorità e Della Libertà. Firenze: La Nuova Italia, 1926, p. 5. . 54 Na França os acontecimentos que se sucederam à convocação dos Estados Gerais (5 de maio de 1789) tiveram um rápido contragolpe em toda a Itália: frente ao grande evento que modificava radicalmente o relacionamento entre classes sociais com a definitiva abolição dos privilégios feudais e a afirmação de igualdade de todos os cidadãos diante da lei, a opinião pública rapidamente se dividiu entre aqueles que viram nessas novas idéias o fim da ordem constituída, a vitória da violência, o declínio de todos os princípios sobre os quais até então tinham sido fundamentados os Estados, e os outros que olharam para a nova experiência política como a um farol de nova luz, um exemplo a ser mantido sempre presente por ser válido também além da terra da França. Estes últimos formaram o movimento que foi chamado de jacobino por analogia com a homônima corrente política para além dos Alpes, mas cujos participantes preferiam chamar-se de “patriotas” para sublinhar mais a dimensão nacional de sua ação do que a dependência ideológica e prática da França. (...) Através do movimento jacobino a consciência nacional passa na Itália de um plano cultural para um plano político, e 33 sucessivamente, da formulação ideal para a concreta ação política . Os Estados Pontifícios dividiam a península em duas regiões bem definidas: o norte com vocação urbano-industrial com um marcante pensamento liberal e o sul agrário e tradicional. O Risorgimento deveria no norte enfrentar a ocupação estrangeira e no sul o tradicionalismo rural afeiçoado ao papado e ainda os vários reinos com seus príncipes vistos pelos revolucionários como incapazes de buscar o bem comum. A vontade do príncipe é volúvel, sujeita às mais vis e mais perniciosas paixões; de tal forma que no Despotismo todas as abominações, todas as iniqüidades, todas as patifarias podem assumir o aspecto de bondade, 34 justiça e honestidade . 33 - Gli avvenimenti succeduti in Francia alla convocazione degli Stati Generali (5 maggio 1789) ebbero um rapido contracolpo in tutta Italia: di fronte al grandioso evento che modificava radicalmente i rapporti fra classi sociali con la definitiva abolizione dei privilegi feudali e l’affermata uguaglianza di tutti i cittadini di fronte alla legge, l’opinione pubblica si divise bem presto tra coloro che nelle nuove idee videro la fine dell’ordine constituito, la vittoria della violenza, il declino di tutti i principii sui quali si erano fino ad allora fondati gli stati, e quanti alla nuova esperienza politica guardarano come ad un faro di nuova luce, ad um esempio da tenere costantemente presente perchè valido anche al di là della terra di Francia. Questi ultimi formarono il movimento che venne detto giacobino per analogia con l’omonima corrente politica di oltr’Alpe, ma i cui partecipanti preferirono chiamarsi patrioti per sottolineare piuttosto l’aspetto nazionale della loro azione che la dipendenza ideológica e pratica della Francia. (...) Con il movimento giacobino la coscienza nazionale passa in Italia de un piano culturale a un piano político e, sucessivamente, dalla formulazione ideale alla concreta azione politica. Cf. TALAMO, op. cit., p. 17. 34 - La volontà del príncipe è variable, e soggetta alle più vili, ed alle più perniciosi passsioni; talché nel Despotismo tutte le abbominazioni, tutte le iniquità, tutte le ribalderie, possono prendere aspecto di buono, di giusto, e di onesto. Cf. N. SPEDALIER, apud TALAMO, op. cit., p. 19. 55 Giuseppe Mazzini é o principal ideólogo35 da unificação fundando a Jovem Itália com a idéia de união dos estados da península numa única república com o fim de libertar os autóctones das invasões e domínio estrangeiro, sobretudo das casas de Habsburgos da Áustria e dos Bourbons da Espanha. A Jovem Itália é a fraternidade dos italianos que acreditam numa lei de Progresso e de Dever; e estão convencidos que a Itália é chamada a ser uma Nação – que pode com suas próprias forças se auto-criar. (...) A Itália compreende: a continental e peninsular entre o mar ao sul, o círculo superior dos Alpes ao norte, a foz do rio Varo (“Varo” é o rio que se encontra em Nice, na época considerada terra italiana hoje se encontra na França) ao oeste, e Trieste ao leste; as ilhas declaradas italianas pelo discurso dos habitantes nativos e destinados a entrar, com uma organização administrativa especial, na unidade política italiana. A Nação é a universalidade dos italianos, irmanados por um pacto e vivendo sob uma 36 lei comum ”. O jornal Il Risorgimento, fundado em Turim em 1847 configurou e divulgou os princípios destes ideais de unificação. Giuseppe Garibaldi foi o braço armado destes ideais e Giuseppe Verdi, através da ópera, o seu divulgador criando uma mentalidade social a favor da unificação. Especial destaque neste processo tem o Conde Cavour que representa os ideais de unificação a partir de uma visão conservadora e elitista, acreditando nos acordos diplomáticos e nas guerras localizadas, diferente de Mazzini que coloca nas forças populares a base do levante revolucionário. Giuseppe Garibaldi defende uma ditadura popular que se imponha através de grandes ações militares, enquanto Giuseppe Verdi populariza a ópera com fortes conotações políticas em defesa dos ideais da unificação. Seus temas operísticos, em geral de origem bíblica do Antigo Testamento, tratam da libertação 35 - Destacam-se neste período alguns escritores e políticos da península que divulgaram, aprofundaram e deram sustentação teórica a ideal do Risorgimento. Destacamos: Giovanni Dominico Romagnoni (1781-1835). Escreveu Ciência das Constituições que só foi divulgada em 1848 mas que teve forte impacto no nível das idéias e princípios; Vicente Gioberti (1801-1852). Escreveu Primato Morale e Civile degli Italiani (1843); Prolegomini al Primato (1847); Il Rinovamento Civile d’Italia (1852). Cesar Balbo (1789-1853). Escreveu As Esperanças da Itália (1844). Giuseppe Mazzini (18051872). Os seus escritos foram compilados em 18 volumes. Sua atuação política com significativa militância republica lhe deram o lugar de principal ideólogo da construção do Estado Italiano moderno. Cf. MOSCA, Gaetano; BOUTHOUL, Gaston. História das Doutrinas Políticas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975, p. 245-252. 36 - La Giovine Italia è la fratellanza degli italiani credenti in una legge di Progresso e di Dovere; i quali convinti che l’Italia è chiamata ad essere Nazione – che può con forze proprie crearsi da sè (...). L’Italia comprende: l’Italia continentale e peninsulare fra Il mare al sud, Il cerchio superiore dell’Alpi al nord, le bocche del Varo all’ovest, e Trieste all’est; le isole dichiarate italiane dalla favella degli abitanti nativi, e destinati ad entrare, con un’organizazione amministrativa speciale, nell’unità politica italiana. La Nazione è l’universalità degli Italiani, affratellati in un patto e viventi sotto uma legge comune. “Giuseppe MAZZINI - Istruzione Generale per Gli Affratellati Nela Giovine Italia (1831)”. In: TALAMO, op. cit., p. 49. 56 do povo da escravidão, numa explícita analogia à situação vivida por diversos reinos. A música Va Pensiero se torna hino da unificação tendo na liberdade e na autodeterminação o ideal do Risorgimento. A Áustria, após 1815, impusera sua hegemonia no norte da península constituindo reinos absolutistas que gravitavam ao seu redor. Os governos desses reinos não gozavam de apoio popular o que favorecia a propagação de ideais nacionalistas e revolucionárias. Essa situação favorecia a formação de diversas associações secretas que buscavam a libertação de potências estrangeiras vendo na unificação o melhor meio de garantir a estabilidade da região até então sujeita a sucessivas invasões. Os carbonários, oriundos da pequena burguesia e sem ligações com bases populares, não encontravam apoio dos camponeses católicos tradicionalistas. A Jovem Itália, fundada por Mazzini, pretendia se libertar do domínio austríaco pelas armas buscando a unificação dos reinos, enquanto os neoguelfos defendiam a união da península sob a tutela do papado. Na Europa os anos de 1848 e 1849 são marcados por inúmeras revoluções de cunho liberal, quando então em 9 de fevereiro de 1849 os revolucionários cercaram o palácio papal tendo Pio IX fugido disfarçado enquanto era proclamada a república Italiana. Com apoio da Áustria, França e Espanha o papa retorna a Roma retomando o comando da cidade em 1850. Com a derrota dos revoltosos há a restauração do absolutismo em quase todos os reinos da península. Nas áreas já integradas à nova Itália há crescente política de restrição aos poderes da igreja. Em 1850 a lei Siccardi determina a abolição das imunidades eclesiásticas. Há ruptura diplomática entre a Santa Sé e o Estado sardo, sendo o arcebispo de Turim expulso do reino. Em 1855 é feita a lei contra os conventos que são estatizados com apropriação de seus bens pelo Estado. Em 1860 parte dos Estados Pontifícios é anexada ao Estado Sardo sendo, em 1861, proclamado o Reino da Itália 37. A partir de 1870, com a dissolução 37 -Coube a Vitor Emanuel II, com o significativo apoio do seu chefe de gabinete Conde Cavour obter a unificação da Itália. Com o apoio da França e Inglaterra fez frente à Áustria nas guerras de independência que foram concluídas em 10 de novembro de 1859 com o Tratado de Zurique. Em 1860 com o apoio de Garibaldi Nápoles e a Sicilia foram integrados à Itália. Neste ano também o exército de Vitor Emanuel conquista os Estados Pontifícios. Em 17 de março de 1861 é proclamado rei da Itália sendo reconhecido pela comunidade internacional com exceção da Áustria. Restava como focos de resistência o Veneto em poder da Áustria e Roma em poder do papa. A Região do Veneto foi integrada à Itália em 1868 depois que a Áustria foi derrotada pela Prússia. O exercito francês que protegia Roma teve que se retirar para se integrar na campanha contra a Prússia, deixando a cidade desguarnecida e a 20 de setembro de 1870 que foi ocupada pelo exército de Vitor 57 dos Estados Pontifícios, Roma se torna a sua capital. No dia 25 de Março de 1861 Cavour como presidente do Conselho dos ministros profere um histórico discurso 38 na câmara dos deputados justificando o sentido de Roma ser a capital da Itália. Afirma: Senhores, agora em Roma concorrem todas as circunstâncias históricas, intelectuais, morais que devam determinar as condições de capital de um grande estado. Roma é a única cidade da Itália que não tenha lembranças exclusivamente municipais; toda a história de Roma desde o tempo dos Césares até hoje é a história de uma cidade, cuja importância vai muito além do seu território; quer dizer, de uma cidade que é destinada a ser a capital de um grande Estado. Convencido, profundamente convencido desta verdade, sinto-me obrigado a proclamar isso da forma mais solene possível diante de vós, diante da nação, e me sinto obrigado, nesta circunstância, de apelar ao patriotismo de todos os cidadãos e dos representantes das mais ilustres cidades, de tal maneira que cesse toda discussão sobre essa questão, afim de que possamos declarar à Europa, a fim de que quem tem a honra de representar este país diante das potências estrangeiras possa afirmar: a necessidade de ter Roma por capital é reconhecida e proclamada 39 por toda a nação ”. Em 1866 são suspensas as corporações religiosas e no ano seguinte a liquidação dos bens eclesiásticos. Em 1870, politicamente enfraquecido, Pio IX se auto-declara “prisioneiro voluntário do Vaticano” recusando-se aceitar as “leis das garantias” que lhe propunha o governo italiano. O contexto era dramático porque polarizara Igreja e Estado Italiano: São anos nos quais parece impossível compor juntos religião e pátria: o católico está ao lado do papa e, por isso, contra a Itália. O verdadeiro patriota não pode deixar de ser anticlerical. Após 1870 as coisas, evidentemente, pioraram: posições intermediárias e conciliatórias pareceram faltar e a oposição entre Estado e Igreja repercutiu-se no íntimo da consciência de cada um como antítese entre italiano e católico. Tinha Emanuel. O papa Pio IX se nega a qualquer negociação com o novo governo italiano se auto declarando prisioneiro do Estado Italiano e proibindo aos católicos de votarem nas eleições do novo Reino. 38 39 - O discurso foi em vários momentos aplaudido e no fim ovacionado com “vivi applausi”. - “Ora, o Signori, in Roma concorrono tutte le circunstanze storiche, intellecttuali, morali che devano determinare le condizioni della capitale di un grande stato. Roma è la sola cità d’Italia che non abbia memorie esclusivamente municipali; tutta la storia di Roma dal tempo dei Cesari al giorno d’oggi è la storia di una città la cui importanza si estende infinitamente al di là del suo territorio; di una città, cioè, destinata ad essere la capitale di un grande Stato. Convinto, profondamente convinto di questà verità, io mi credo in obbligo di proclamarlo nel modo più solenne davanti a voi, davanti alla nazione, e mi tengo in obbligo di fare in questa circostanza appello al pattriotismo di tutti i cittadini e dei rappresentanti delle più illustri città, onde cessi ogni discussione in propósito, affinché noi possiamo dichiarare all”Europa, affinché chi ha l’onore di rappresentare questo paese a fronte delle estere potenze possa dire: la necessita di aver Roma per capitale è riconosciuta e proclamata dall’intera nazione”. Discorso detto nella câmera dei deputati Il 25 marzo 1861 in ocasione della discussione sulle interpellanze del deputato Audinot al Ministero intorno alla questione di Roma. TALAMO, op. cit., p. 170. 58 sido fácil ao neoguibelinismo triunfante envolver o papado político com o papado religioso. Afirmavam que combater e golpear o papa como chefe do Estado pontifício era combater e golpear ao mesmo tempo o papa como chefe da Igreja católica. Profetizavam que a ruína do Estado pontifício teria sido a ruína ao mesmo tempo da religião católica. Para eles a tomada de Roma não era mais apenas o cumprimento de uma legítima aspiração nacional com a realização da unidade italiana, mas assumia um significado de luta religiosa, de triunfo sobre o catolicismo, de fim do pontificado 40 romano e coisas semelhantes . O Risorgimento radicalizava e polarizava a antítese entre ser católico e patriota. É um período de uma Itália anticlerical e qualquer ato cívico era tido como um ato contra o Vaticano. Tais radicalizações fizeram com que a unidade política não fosse acompanhada da unidade de espírito. A Itália nascia cindida e radicalmente anticlerical passando uma imagem de um Estado frágil, pois repercutia internacionalmente sobre milhões de católicos o fato do papa ser tido como prisioneiro. A nova nação nascia com duas grandes fraturas: burguesa e anticlerical. A massa pobre católica não participava da vida política por imposição do papa, explicitando e radicalizando a incompatibilidade entre a vida política e a vida católica. Também no parlamento tenta-se calar as vozes de deputados que eram católicos militantes. Radicaliza-se a proposição da fórmula “né eletti né elettori, fortalecendo a imagem de um governo que assumia o papel de usurpador do poder papal. Qualquer participação política, então, seria dar legitimidade aos usurpadores dos Estados papais e da Igreja e, portanto, inimigos da religião. Este é o panorama da península Itálica do século XIX quando em 1815 nasce Giovanni Belchior Bosco. Campesino, ele teria sido um dos milhares de rostos anônimos do campo levando uma vida previsível, lavrando a terra, realizando plantios e colheitas, garantido a sobrevivência de sua família, indo às missa dominicais e ouvindo as prédicas de curas rurais. Essa vida previsível, porém, foi rompida. Camponês e católico fervoroso, ao sair do seu mundo rural e adentrar na 40 -“Sono gli anni nei quali sembra impossibile comporre insieme religione e pátria: Il cattolico è per il papa, dunque è contro l’Italia. Il vero patriota non può non essere anticlericale. Dopo il 1870 le cose, evidentemente, peggiorarono: le posizioni medie e concilianti sembrarono scomparse e l’antitesi fra Stato e Chiesa si ripercosse nell’intimo della coscienza di ciascuno come antitesi fra italiano e cattolico. Era stato facile al neoghibellinismo trionfante coinvolgere nel papato político Il papato religioso. Professavano che combattere e colpire Il Papa come capo dello Stato pontifício era combattere e colpire, insieme, Il Papa come capo della Chiesa cattolica. Profetavano che la rovina dello Stato pontifício sarebe stata la rovina, insieme, della religione cattolica. Per essi la presa di Roma non era più soltanto l’adempimento di una legittima aspirazione nazionale col compimento dell’unità italiana, ma acquistava un significato di lotta religiosa, di trionfo sul cattolicessimo, di fine del pontificato romano, e simili”. MORONI, op. cit., p. 48. 59 vida da urbe confrontou-se com o anti clericalismo e o liberalismo e, ao assumir a missão de educador das classes marginalizadas pelas estruturas de uma economia pré-industrial, teve que responder aos graves problemas sociais que assolavam a juventude de seu tempo, tornando-se interlocutor com um governo contrário aos seus valores religiosos e cívicos, e que, paradoxalmente, não raras vezes o ajudou e foi seu parceiro. Foi neste contexto que o ministro Cavour não só fechou os olhos para a fundação de sua congregação, como ainda o aconselhou que desse um aparente rosto civil à nova agremiação religiosa que nascia na contra mão da história quando se fechavam conventos, confiscavam-se os bens da igreja e, acima de tudo, odiavam-se frades. Foi a partir da Sociedade São Francisco de Sales que seus “sócios” numa Itália conturbada, liderados por Giovanni Bosco construíram abrigos, internatos, obras sociais, escolas profissionais, gráficas e oratórios41 festivos. Quando de sua morte em 1888 sua “Sociedade” possuía reconhecimento e respeito civil e eclesiástico e tinha elaborado e consolidado um conjunto de princípios educacionais que respondiam às necessidades dos novos tempos e que seria o diferencial de suas inúmeras fundações implantadas e em fase de consolidação na Itália, França, Espanha, Argentina e Brasil. 41 - O Oratório festivo era um espaço que funcionava nos finais de semana com esportes, recreações, música e formação religiosa com a finalidade de retirar adolescentes e jovens das ruas nos dias em que não trabalhavam, quando, ociosos, estavam mais vulneráveis à bebida, jogos, pequenos furtos e violência. 60 2.2 - O Fundador: um camponês com coração do feudo e a razão da cidade – Uma visão histórica A vida de um fundador não pode ser abstraída do seu meio econômico, político e social. Costuma-se chamar o contexto onde alguém vive de fundo histórico. Esta expressão, ainda que consagrada, é pobre porque passa a idéia dum fundo de cena que apenas contextualiza o “ator”. Cada pessoa é produto de seu meio, reagindo e interagindo a ele. A cultura é resultado do modo de produção das riquezas e dos meios de subsistência. O ser humano, ainda que dotado de potencialidades racionais e espirituais, tem como necessidade primeira o atendimento de suas exigências biológicas ou, de uma forma menos elegante, de suas necessidades animais. A única e real riqueza é o alimento. Todos os outros elementos culturais são adereços a essa necessidade primária. Garantida sua vida biológica o homem organiza a sociedade, as leis e os costumes em torno dos seus meios de subsistência. Quando a sociedade se torna complexa, a luta pela sobrevivência ganha foros de embate político, de poder e de status. Nas sociedades mais complexas os mais capazes de acumular meios de sobrevivência se impõem psicológica e materialmente, ostentando, através das riquezas acumuladas, sua capacidade não só de sobreviver, mas de se sobrepor sobre os outros numa ótica darwiniana. Esta demonstração de força animal primária emerge e está subjacente em todas as formas de modos de produção, seja através do acúmulo de metais preciosos, seja no capitalismo comercial ou industrial, expressando sempre, de forma subliminar, o poder de sobrevivência dos mais adaptados. Essa desmistificação da globalidade do suceder social é desconcertante, mas real. O modo de produção dos meios de subsistência será determinante para a organização ideológica da sociedade nos seus aspectos teóricos e eruditos. Portanto, lutas sociais e políticas em qualquer época da história, ainda que em seu meio existam idealistas que aparentemente transcendam a esse impulso primário, terão essa premissa em sua origem. Assim, os grandes embates ideológicos, sociais e políticos do século XIX, ainda que elegantemente etiquetados com as mais variadas e eruditas denominações, terão na sua essência essas forças primárias que tendem a determinar os rumos da história. É nesta “calda primária” que estão envoltos os fundadores e, por mais espirituais que sejam seus ideais e suas visões, no momento em que promovem interferências na sociedade, explicita ou implicitamente serão 61 expressão desses impulsos primários. Daí, a agressividade dos detentores do poder a todo e qualquer movimento que de alguma forma promova mudanças na sociedade desestabilizando ou enfraquecendo o status quo. Todo reformador sempre encontrará hostilidade dos senhores da situação, seja ela econômica, política, ou religiosa. Com relação à experiência fundante de João Bosco no século XIX, seguindo a lógica dos raciocínios anteriormente expostos, não procede se falar dum “pano de fundo” histórico-social, mas de uma realidade econômico-social que lhe moldou a personalidade numa época de conflitos e tensões ideológicas quando se mesclam, confundem e confrontam modos de produção antagônicos. O subsolo econômico deste século se mostra instável gerando “abalos sísmicos” sociais. Numa mesma península estão presentes relações campesinas oriundas da idade média, grupos de comerciantes e uma nascente classe industrial que se conflitam e antagonizam desestabilizando a um só tempo a igreja, reinos, feudos, manufaturas e trabalhadores. Para o homem simples ou letrado dessa época essas movimentações econômico-sociais eram de difícil compreensão e assimilação porque antigos modelos eram abalados sem que os novos apresentassem consistência convincente. A obra iniciada por João Bosco ao projetar-se para o mundo possui uma explicita proposta religiosa e educacional. Apreender e compreender o perfil deste homem representa nos apropriarmos do embasamento humano e religioso que deu sustentação à elaboração da pedagogia salesiana que, nascida no século XIX, se projetou para o século XX e procura estabelecer diálogo com o século XXI. Entender o homem e o seu entorno humano e cultural é captar o modelo pedagógico de educação que propôs, procurando vislumbrar neste retorno ao passado aqueles elementos educacionais que transcendem tanto a mentalidade do homem Bosco, como a de seu tempo, porque atemporais. João Bosco viu sua experiência pessoal se transformar em experiência fundante. Ele fez parte daquele contingente de jovens que migraram, foram aprendizes e passaram necessidades. No entanto, na narração do mito fundacional salesiano essas experiências são narradas como únicas, heróicas e épicas. A casa pobre que morava era como a de todos os campesinos. Mas nas narrativas, a “dele”, tende a 62 ser descrita como a mais pobre, a mais sofrida e limitada que as outras. A idealização exagerada distancia de tal forma a realidade vivida pelo fundador que seu ideal pode parecer também inexeqüível porque demais desencarnado e idealizado. Não se trata de diminuir os fundadores e relativizar suas experiências fundacionais que, por dotes especiais e/ou circunstâncias históricas, fizeram diferença na história com soluções inovadoras. Foram homens determinados que agregaram a si discípulos e fizeram transcender para além de suas vidas e do seu tempo seus ideais. Essa projeção no tempo e na história de experiências fundantes não pode ser minimizada, pois houve efetivamente algo de especial e significativo na vida e nas ações dessas pessoas capazes de criar propostas atemporais. Daí a importância do mito fundacional como essencial para a perpetuação e reprodução da experiência fundante. Uma análise crítica da história traz a vida dos fundadores para a sua real dimensão que, longe de desmistificá-los, ao torná-los mais humanos e próximos de nós, os fortalece porque a realidade de suas vidas com seus sucessos e percalços permite ao homem de hoje perceber que os ideais fundacionais existem como ideais, mas seus fundadores passaram pelas dificuldades naturais da vida no processo de sua implantação, nem sempre atingindo a perfeição elaborada teoricamente. E isso pode ser constatado por uma análise real dos caminhos trilhados pelos fundadores. A vida do fundador é como a dos outros homens. Há um momento, porém, em que, de alguma forma, suas ações se destacam das outras, inicialmente, por uma tímida liderança entre seus pares, ganhando corpo aos poucos e atraindo seguidores, até que há o “insight” de que algo começa ser diferente de outras ações e pensamentos. O próprio fundador toma consciência que algo de especial emana de sua vida, o que é reforçado por seus seguidores, ganhando importância para além do seu próprio grupo com o reconhecimento da sociedade. Uma aura o envolve começando acreditar que tem uma missão, divina ou humana, de caráter soteriológico para a humanidade. Consciente ou inconscientemente criam-se mitos e idealizações sobre o fundador e seus discípulos, desencarnando suas experiências do cotidiano e do trivial ao dar-lhes um caráter que transcendente a vida comum. Os primeiros discípulos se auto-qualificam como intérpretes autênticos, se mostrando arredios a 63 críticas e a contestações, não raro, demonizando opositores e críticos. Eventualmente alguns discípulos fanatizados adquirem tal miopia frente ao mundo que assumem uma visão reducionista de apreender a realidade unicamente sob a ótica dos princípios do fundador. Acreditam-se também possuidores de uma missão e, essa certeza, tanto mais se fortalece na medida em que crescem em prestigio. Mesmo suas edificações são provas-símbolo de sucesso de “predestinação” enquanto materialização de seus ideais. Os elementos agora elencados devem ser levados em consideração quando se estuda fundações. Este processo também aconteceu com Dom Bosco que, como tantos camponeses do Piemonte, também deixou o mundo rural e ingressou no urbano. Essa passagem não é apenas física, mas, sobretudo espiritual. No século XIX ir para uma cidade em início de industrialização é mais que percorrer alguns quilômetros entre o campo e a urbe, mas era transpor no percurso de uma pequena viagem a barreira de vários séculos com a quebra de paradigmas culturais, religiosos e sociais. Sua história pessoal42 é como a de tantos adolescentes e jovens que saíram dos campos para se integrarem no ambiente urbano-industrial que começa a se organizar em algumas cidades da península, acreditando-se que nelas as oportunidades seriam melhores. João Bosco na cidade busca sua subsistência43 como aprendiz. Em 1835 ingressa 42 - Bosco nasce no dia 16 de agosto de 1815 numa modesta família de meeiros na região de Turim. Margarida Occhiena é casada com Francisco Bosco, viúvo que trazia para essas segundas núpcias um filho de nome Antônio. Dois anos após o nascimento de João seu pai vem a falecer vitimado por pneumonia. A vida da família fica transtornada pela ausência de seu chefe. São a mãe, três irmãos e uma velha avó. As dificuldades de sobrevivência se ampliam sendo inclusive Margarida Occhiena processada por não cumprir compromissos assumidos com um arrendatário. A figura de Margarida é um referencial significativo na vida dos filhos. . Cf. BOSCO, João. Memórias do Oratório São Francisco de Sales. São Paulo: Salesiana, 2006, p. 23-27. 43 - Camponeses alternam suas vidas entre as lidas do campo, os trabalhos nos celeiros e a freqüência a vida religiosa. O piemonte é uma região de significativa tradição religiosa e mística com a religião perpassando toda a vida dos camponeses. A Igreja com seus capelães dá significado à vida e à morte, ao plantio e às colheitas. A liturgia dos templos se confunde e se mescla com o suceder das estações. João Bosco, adolescente e jovem, assistindo a desintegração dos estados papais, o avanço do liberalismo e os movimentos anticlericais, não deixa de descrever de forma idealizada a vida no campo regida pelas duras lidas do manejo da terra, mas adocicada pelo som dos campanários a lembrar a caducidade desta vida. Prevalecia aí o tempo de Deus e não o tempo dos homens, retratando quase de forma idílica esta sociedade com reis, trabalho e reza com o olhar sempre voltado para eternidade. Essa cosmovisão cristã impregnará alma de João Bosco por toda vida, mesmo depois que adentrando na cidade e se relacionando politicamente com os liberais, tenha assumido ações afinadas com o mundo urbano e industrial. Os ideais inculcados em sua educação no campo serão referencias por toda sua vida, mesmo quando realize ações pragmáticas no mundo industrial que nasce. Cf. BOSCO, op. cit., p. 23-27. 64 no seminário de Chieri44 para os estudos eclesiásticos. Ordenado sacerdote em 1841, por conselho de seu amigo José Cafasso45, ao invés de assumir logo um trabalho pastoral, ingressa no Convitto ecclesiastico46 que preparava sacerdotes para um trabalho religioso próximo das necessidades do povo, fugindo da índole teórico-acadêmica do seminário de Chieri, algo que se enquadrava bem com sua índole pragmática de camponês. A finalidade explicita era a formação moral prática com finalidade pastoral. Entretanto, de modo crescente, revelou-se determinante seu impacto com a cidade de Turim e o envolvimento na sorte de uma juventude que no futuro Dom Bosco definiria como “pobre e abandonada”, “em perigo e perigosa”. (...) Turim era uma cidade burocrática, rica de manufaturas e oficinas de artesanato, em expansão idílica e demográfica, também em razão da crescente imigração. (320 mil habitantes). Aumentava ao mesmo tempo os problemas sociais, inclusive a delinqüência juvenil, masculina e feminina: 47 era a outra face da cidade . Após três anos de estudo coloca-se a serviço da marquesa Barolo48 na sua obra de assistência a meninas carentes e órfãs. Egresso do mundo acadêmico, 44 - Chieri é um município italiano da região do Piemonte, província de Turim. 45 - José Cafasso nasceu em 1811 em Castelnuovo D’Asti. Ordenou-se sacerdote aos 23 anos e foi responsável pela formação de mais de 100 sacerdotes. Exerceu boa parte do seu ministério no atendimento aos condenados à forca. Foi formador de João Bosco a quem fez sentir a miséria moral em que vivia a juventude pobre. Faleceu em 1860 aos 49 anos. 46 - A anotação que segue é extraída dos regulamentos e objetivos que regem a fundação do Convitto: “A necessidade de ter bons eclesiásticos ministros da Igreja, e a calamidade dos tempos que fizeram encalhar todos os meios para isso, fizeram refletir. Sempre se reconheceu ser necessário aos eclesiásticos, depois do qüinqüênio de teologia, o estudo da moral prática. Ser necessário para os jovens eclesiásticos algum exercício de preparação para o púlpito antes de nele se encontrarem obrigados por razão de emprego, e por isso foram tomadas providências pelos nossos reverendíssimos arcebispos a esse respeito”. BOSCO, op. cit.,. Nota AAT 19,15, p. 117. 47 - BRAIDO, Pietro. Dom Bosco, Padre dos Jovens no Século da Liberdade Vol. I e II. São Paulo, Editora Salesiana, 2008, v. I., p. 160. 48 - Julieta Colbert de Maulévrier (1764 - 1838), mais conhecida como Marquesa Barolo, foi famosa dama Turinese do século XIX. Preocupava-lhe a situação de crianças e jovens marginalizadas ou em situações difíceis, num tempo em que Turim vivia sua Revolução Industrial e a Itália marchava para sua unificação, o que de fato aconteceu plenamente em em 1870. Foi fundadora de vários institutos religiosos e civis, todos em benefício das meninas. Está associada as outros turineses ilustres como Dom Bosco e José Allamano. A descrição de sua personalidade e de seu apostolado foi elaborada cuidadosamente pelo biógrafo de Dom Bosco, Lemoyne. São de fato dois dois personagens notáveis da sociedade piemontesa. SPEEDYLOOK. Cf. Marquesa de Barolo. < www.myetymology.com/encyclopedia/Marquesa_de_Barolo.html>. Acesso em: 23. abr. 2011. 65 paulatinamente, vai tomando contato com a realidade social do entorno miserável de Turim, sensibilizando-se com o grande número de crianças, adolescentes e jovens nas prisões, muitos deles condenados à forca. Percebe que qualquer ação nas cadeias seria apenas um paliativo a uma situação já sem solução de criminalidade. Intuí que seria necessário evitar que os jovens chegassem às prisões. Um episódio será marcante em sua vida. No dia 8 de dezembro de 1841 tem um primeiro contato que lhe forneceria um horizonte de trabalho. O adolescente de 16 anos, Bartolomeu Garelli, amedrontado e faminto, adentrara a sacristia da igreja São Francisco de Assis, sendo acolhido com atenção e, após uma cordial conversa, lhe propõe que retorne no final de semana para ter catecismo e que traga alguns colegas. Garelli traz alguns colegas que, em poucos meses, já chegavam a quatrocentos. Vinham em busca de alimento e brincadeiras organizadas por aquele padre que se mostrava amigo. Essa forma de reunião de jovens se chamava de oratório festivo49 e tinha por finalidade o ensino do catecismo e a criação de um ambiente recreativo saudável para adolescentes e jovens de famílias que freqüentavam as paróquias, mas se mostrava insuficiente para atender a vida concreta destes jovens marginalizados. A preocupação inicial de Bosco fora o atendimento religioso a esses adolescentes e jovens e a prática de algumas recreações que os mantivessem afastados dos ambientes onde pudessem se corromper. Sente, porém, que é necessário dar-lhes meios para que se integrem na sociedade pré-industrial que se implantava, constatando que jovens oriundos dos campos não estavam aptos profissionalmente para o nascente mundo industrial. A profissionalização lhes traria vantagens como 49 - Os Oratórios festivos já eram uma prática da Itália dos mil e oitocentos. Em torno das paróquias criavam-se esses ambientes que tinham por objetivo o atendimento das crianças das famílias que freqüentavam as igrejas, sendo espaço especificamente paroquial e familiar. Reunir um grupo de 400 adolescentes com dificuldades de integração social, sem família e propensões a ações anti-sociais não era bem visto. Rodeado de um grupo numeroso, suspeito e itinerante pelas ruas de Turim fazia com que a sociedade se sentisse ameaçada. Era um padre que se misturava em nível de igualdade com essa gente. Os locais de recreação iam variando conforme as reclamações dos vizinhos chegassem à policia ou aos líderes da Igreja. A situação só irá melhorar com o aluguel e posterior compra da Casa Pinardi que será então o primeiro oratório com sede própria, se bem que comprado num bairro suspeito tendo com vizinho um prostíbulo conhecido como a Jardineira. 66 mão de obra especializada com poder de barganha por melhores salários. Cria as Escolas Profissionais de Artes e Ofícios a partir duma visão humanista cristã. Elabora contratos de trabalho salvaguardando salário digno, direitos, tempo de descanso sendo, ele mesmo, o negociador com os patrões como avalista de que tais contratos seriam cumpridos de ambas as partes. O internato é outra solução para jovens que perambulavam pela cidade vivendo de esmolas ou pequenos furtos. Implanta ainda escolas noturnas para os jovens trabalhadores, percebendo no estudo uma necessidade fundamental para a integração deles no ambiente urbanoindustrial. Essa sua busca de soluções para os problemas sociais dos jovens de Turim, longe de ser entendida como um benefício, é recebida pelas autoridades e parte da burguesia com estranhamento e eventuais hostilidades. Aos poucos chama a atenção da cidade, menos pelo trabalho realizado, e mais pela clientela que reunia e que parecia – em tempos tão conturbados – uma ameaça à segurança pública, pois se eram tempos de revoltas e insatisfações, temia-se que se tornassem massa de manobra para sublevações políticas ou mesmo para tumultos de arruaceiros. Essa preocupação é explicitada do diálogo encetado entre João Bosco e Cavour 50: Um dia, ao ver que com um simples gesto de mão eu impunha silêncio a cerca de 400 jovens que pulavam e faziam algazarra no prado, um guarda pôs-se a exclamar: - “Se esse padre fosse um general, poderia combater contra o mais poderoso exército do mundo”. (...) Essa afirmação ridícula novamente mereceu crédito entre as autoridades locais e especialmente o marquês Cavour. (...) Mandou-me chamar ao palácio municipal e depois de muito discorrer sobre as intrigas que circulavam a meu respeito, concluiu: -“Meu bom padre, aceite meu conselho: não se meta com esses canalhas. Eles só causarão aborrecimentos ao senhor e às autoridades públicas, Garantiram-me que essas reuniões são perigosas e por isso não posso tolerá-las. 50 - Camilo Benso, Conde de Cavour. (Turim 1810- 1861) - Político piemontês, iniciador da unidade italiana. Funda o jornal Il Risorgimento que exerce uma considerável influência na unificação da península e na divulgação do pensamento liberal. Foi presidente do conselho por volta de 1852, permanecendo no cargo até sua morte. Em política interna preocupa-se em afirmar a liberdade individual, a liberdade de imprensa e a dos cultos, combate o clero, cuja influência se encarrega de limitar, faz vender os bens eclesiásticos improdutivos e arrebata às ordens religiosas o monopólio do ensino. VIDAS Lusófonas. Conde de Cavour. Disponível em: <http://www.vidaslusofonas.pt/conde_de_cavour.htm>. Acesso em: 23 abr. 2010. . 67 -Não tenho outro objetivo, senhor marquês – respondi – que não o de melhorar a sorte desses pobres filhos do povo. Não peço recursos pecuniários, mas somente um lugar para recolhê-los. Espero desse modo diminuir o número de desordeiros e dos que vão para a cadeia. -Engana-se, meu bom, padre. O senhor se cansa inutilmente. Não posso arranjar-lhe nenhum lugar, pois suas reuniões são perigosas; e onde arranjará recursos para pagar aluguéis e fazer frente a tantas despesas que lhe trazem esses vagabundos? Repito que não posso permitir essas concentrações. -Os resultados alcançados, senhor marquês, dão-me a certeza de que não estou trabalhando em vão. Muitos rapazes totalmente abandonados foram recolhidos, libertados dos perigos, encaminhados a algum ofício e não foram parar na cadeia. (...) - Tenha paciência, obedeça-me sem mais; não posso permitir-lhe essas reuniões. - Não é por mim, senhor marquês, mas pelo bem de tantos rapazes abandonados, que talvez tivessem um triste fim. -Cale-se. Não estou aqui para discutir. Trata-se de uma desordem e eu 51 quero e devo impedi-la. (...) Sua determinação, porém, em agregar esses jovens é maior que as considerações e ponderações das autoridades civis e eclesiásticas. Há até os que chegaram a ajudálo, mas, seus métodos fora dos padrões educacionais e assistenciais da época criavam conflitos com esses voluntários que, no mínimo, não o entendiam ou, no máximo, achavam insensatez seu método de educação, acabando quase todos por abandoná-lo. Faz então uma opção ousada: seleciona entre seus assistidos os mais velhos e de melhor índole e os constitui seus auxiliares na educação dos mais novos, conferindo-lhes responsabilidades cada vez maiores na medida em que correspondiam aos seus projetos educacionais52. Apesar do crescente anticlericalismo acirrado pelos embates do governo com os Estados Pontifícios e a radicalização dos liberais com crescentes hostilidades aos “frades53”, Bosco começa a angariar reconhecimento pelo impacto social positivo do seu trabalho, enquanto apresenta resultados tangíveis ao problema dos jovens 51 -BOSCO, op. cit., p. 152-154. 52 - Inicialmente João Bosco não cria um projeto de ação, mas apenas dá respostas às emergências que surgem. 53 - No contexto do Risorgimento o termo “frade” torna-se pejorativo indicando ordens religiosas não produtivas e parasitárias da sociedade. Fundar mais uma ordem religiosa neste contexto é estar na contramão da história. 68 marginalizados por ele atendidos e que recebem educação e qualificação profissional. Se as coisas iam se resolvendo em nível civil o mesmo não acontecia no contexto da diocese de Turim. Dois bispos, inicialmente seus amigos, tornaram-se, posteriormente, seus adversários54. Dom Alexandre Riccardi55 esfriará seu antes amistoso relacionamento com Dom Bosco, enquanto Dom Lorenzo Gastaldi56 farlhe-á sistemática hostilidade com retaliações que cerceavam sua ação, procurando desacreditá-lo junto à Santa Sé. O reconhecimento definitivo por Roma, já em andamento e que daria autonomia à congregação declarando-a de direito pontifício e ligando-a diretamente ao papa, torna-se emergencial frente às hostilidades autoritárias de Gastaldi. Propor, porém, a fundação de uma associação religiosa quando o liberalismo rejeitava os “frades” tidos como improdutivos no sistema da Nova Itália e muitas congregações eram fechadas e seus bens confiscados seria uma utopia. João Bosco usará, porém, de uma artimanha que lhe garantirá o reconhecimento civil, considerando o impacto social positivo de seu trabalho. A solução para a constituição da nova congregação partirá, paradoxalmente, do 54 - Se com Dom Riccardi as tensões se iniciaram, elas se tornaram exarcebadas nos dez anos seguintes com Dom Gastaldi feito bispo de Turim por influência direta de Bosco junto do papa Pio IX. Inicialmente eram amigos. João Bosco, porém, cometera a inabilidade diplomática ao lhe falar que lhe devia o cargo de Arcebispo. Essa afirmação os distanciou de forma radical. O arcebispo expressara toda sua mágoa ao ex-aluno do oratório teólogo Tereso ao desabafar-se: “Vangloria-se de ter conseguido minha nomeação para bispo. Aliás, escreveu-me até uma carta, lançando-me isso no rosto”. Na catedral de Turim numa pregação inflamada dissera que “a sua eleição era um gesto inesperado da divina providência, para a qual não havia contribuído nenhum favor humano. Fora o Espírito Santo, e somente ele, a pô-lo à frente da Arquidiocese de Turim”. Após dez anos de confronto, o caso é levado a julgamento no Vaticano e a maior parte dos cardeais que julgaram a questão ficou favorável a João Bosco, mas, visando não quebrar a autoridade de Dom Gastaldi e, portanto enfraquecer a hierarquia, Leão XIII impõe a João Bosco a obrigação de pedir perdão em carta pública ao bispo e, determina que o bispo, também em carta publica, lhe dê o perdão. Essa situação – com forte impacto em Turim - não deixou de ser um rude golpe na congregação quando seu fundador recebia a pecha de indisciplinado e desobediente à hierarquia. Alguns sacerdotes e clérigos abandonaram a congregação. Frente à obediência incondicional de João Bosco neste episódio, Leão XIII, talvez com fim reparar a injustiça cometida, com rapidez atendeu a todos os trâmites solicitados por ele para o reconhecimento definitivo e autonomia de sua congregação. O desgaste emocional dessa querela, porém, começou a minar fortemente a saúde do fundador. Cf. BOSCO, Terésio. Dom Bosco: uma Biografia Nova. São Paulo: Salesiana, 2008, p. 487-499. 55 - Bispo de Turim entre 1867 a 1870. 56 - Bispo de Turim entre 1870 a 1883. 69 ministro liberal e anticlerical Urbano Rattazzi 57 que lhe proporá a fundação de uma sociedade civil58 dedicada à juventude. Numa tarde de verão de 1857, Dom Bosco foi recebido pelo ministro Rattazzi, A conversa foi cair sobre a “obra dos oratórios” que o ministro apreciava, especialmente depois da dedicação dos jovens em favor dos coléricos da generala. Segundo a relação de Lemoyene, a conversa teve o seguinte desenvolvimento: .(...) senhor ministro, que poderei fazer para a sobrevivência de minha obra? - a meu ver, deveria escolher dentro os leigos e os eclesiásticos de sua confiança, algumas pessoas. Impregná-las do seu espírito. Adestrá-las no seu sistema. E formar uma sociedade. Por ora, serão seus auxiliares. Amanhã, seus continuadores. Dom Bosco sorriu. - Mas Vossa excelência, há dois anos, fez aprovar uma lei para a suspensão de muitas comunidades religiosas. O que está propondo é exatamente uma nova comunidade religiosa. Deixá-la-á sobreviver o governo? -Eu conheço muito bem a lei da suspensão – sorriu por sua vez, Rattazzi. O senhor poderá fundar uma sociedade que nenhuma lei poderá jamais afundar. - E como? - Um Estado leigo não poderá nunca reconhecer uma sociedade religiosa, como dependente da igreja, isto é, de uma autoridade diferente da sua. Mas, se nasce uma sociedade, em que cada membro conserva os direitos civis, se submete às leis do Estado, paga os impostos, então o Estado nada poderá objetar. Perante ele, tal sociedade é apenas uma associação de cidadãos livres, que se unem e vivem juntos com uma finalidade de beneficência, assim como outros se unem para uma finalidade de comércio, de indústria e de mútuo socorro. E depois, internamente, esses sócios aceitam também a autoridade dos bispos e do papa, o Estado lava as mãos. 57 - Primeiro ministro da Itália. 58 - “Em 1857, Dom Bosco conversava com o ministro Urbano Rattazzi. Este, uma vez encaminhado o discurso para a continuidade que deveria ter a obra dos Oratórios, mesmo após a morte de dom Bosco, o aconselhou a fundar uma sociedade para tal fim. Diante do governo não seria mais que uma associação de livres cidadãos, os quais se unem e vivem juntos para o escopo de uma obra de beneficência. Para Dom Bosco, tal conselho foi o início de uma série de reflexões e consultas a várias pessoas que o levaram a uma conclusão: transformar os salesianos em congregação religiosa. Conservariam os direitos civis, cumpririam as leis do Estado, não se apresentariam com bens de mão morta e pagariam os impostos e taxas, como era seu dever”. FERREIRA, Antônio da Silva. Dom Bosco e a Política. São Paulo: ISSP, 2009, p. 59. 70 Qualquer associação de cidadãos livres é permitida. “Basta que respeite as 59 leis e a autoridade do Estado . João há muito tempo vinha planejando o esboço de uma congregação. No dia 9 de dezembro de 1859 reunirá no seu quarto um grupo de dezenove jovens propondolhes a formação de uma comunidade religiosa para o bem da juventude. Essa proposta na contramão da história e da mentalidade da época parecia-lhes, então, descabida porque, se votavam a Bosco respeito e veneração, eram, porém, filhos dos 1800 com forte rejeição aos “frades”60. Em suas cabeças essa proposta estava na contramão da história e da mentalidade da época. Frente à perplexidade e temor da vida religiosa desses jovens, João Bosco propõe que retornem ao seu escritório uma semana depois para uma resposta definitiva. No dia 18 de dezembro dezessete retornaram e aceitaram “ficar com Dom Bosco”61. O projeto de uma nova ordem ficara guardado no seu íntimo até que o encontro com o ministro Rattazzi lhe dera a idéia da “fundação de uma sociedade civil”. A obra salesiana poderia ir em frente assumindo dupla face, uma interna para a Igreja e outra externa para o governo. Funda-se assim a Sociedade São Francisco de Sales que adota organização e a terminologia civil62 com a manutenção das obrigações para com o Estado dos seus sócios. No âmbito civil as coisas se assentavam melhor que em nível de igreja. A congregação trilharia um difícil caminho para obter reconhecimento junto à Santa Sé. Não eram poucos os que se opunham à pessoa de João Bosco e ao modelo dessa congregação fora dos padrões tradicionais. Pio IX, que antes de ser papa havia visitado sua obra, manifestava irrefutável simpatia por ela. Não é, porém, sem sentido que a Cúria romana olhasse com desconfiança para uma congregação que 59 - BOSCO, T., 2002, p.339-340. 60 - Essa rejeição torna-se oficial em 29 de maio de 1855 com a lei contra os conventos quando são fechados os que não possuem finalidade social como hospitais e orfanatos, sendo seus bens confiscados. O critério da manutenção é a utilidade social. 61 - “No aposento do sacerdote João Bosco, reuniram-se, às 21 horas o sacerdote João Bosco, o sacerdote Vitório Alasonatti, os clérigos diácono Ângelo Sávio, subdiácono Miguel Rua, João Cagliero, João Batista Francésia, Francisco Provera, Carlos Ghiavarello, José Lazzero, João Bonetti, João Anfossi, Luís Marcelino, Francisco Cerruti, Celestino Durando, Segundo Pettiva, Antônio Rovetto, César José Bongiovanni e o jovem Luís Chianale. Aprouve aos mesmos erigirem-se em Sociedade ou Congregação...” Ata redigida pelo padre Alasonatti. – BOSCO, T., 2002. p. 344. 62 - A terminologia religiosa é substituída por terminologia civil: congregação por sociedade; superior geral por reitor-mor; superior local por diretor; confrades por sócios. 71 fugia dos padrões tradicionais e cujo fundador estava envolvido em conflitos com seus dois bispos, sucessivamente. Além do mais, o ativismo dos salesianos nos pátios contrastava com a solidão e o silêncio dos claustros, ou, pelo menos, com a rígida disciplina dos internatos católicos de então. E a descompostura dos clérigos e dos sacerdotes envolvidos em jogos em meio aos recreios, representava, na visão de alguns, uma afronta ao estado sacerdotal que religiosos deveriam honrar. Dom Caetano Tortone, encarregado dos negócios da Santa Sé junto ao governo de Turim, em longo relatório, escreverá em 1868: “experimentei bem penosa impressão ao ver, nas horas de recreio, aqueles clérigos misturados com os outros jovens, que lá aprendem a profissão de alfaiate, carpinteiro, sapateiro etc., a correr, a jogar, pular com pouco decoro... o bondoso Dom Bosco, satisfeito com que os clérigos se mantenham recolhimento na igreja, pouco se interessa em infundir neles aqueles sentimentos de dignidade do estado que querem abraçar”. Segundo Dom Tortone, Dom Bosco devia ensinar aos clérigos a “conservar as distâncias” dos... vulgares alfaiates e sapateiros. Nada mais distante, porém, da 63 sensibilidade de Dom Bosco ”. Num tempo de desestabilizações, toda novidade era vista pelos prelados maiores como ameaça à Igreja, já questionada e fragilizada pelas novas mentalidades, quando o Vaticano havia perdido muito de seu prestigio político, social e religioso. Ao se constituírem os Estados Modernos a partir do século XV, eles ainda traziam consigo a visão medieval do orbis christianus, conceito este que a Igreja, em pleno século XIX ainda não conseguira perceber que estava em descrédito, pois tal visão era inadequada para os tempos de Revolução Industrial: O orbis christianus é uma imagem cristã medieval do mundo. Fundou-se na crença que o mundo é de Deus, cujo representante na terra é a Igreja Católica. Este Deus por ser verdadeiro, exigia que todos o reconhecessem e prestassem culto. (...) papas e reis tinham por missão precípua tirar-lhe os óbices, estender e sustentar a fé, fazer reinar a graça de Deus.(..) mais importante , porém, era fazê-la viger. Este era o reino de Deus que se constrói nesta terra; por conseguinte devia se identificar com os reinos 64 existentes . De fato, tal conceito, aceito pelos reinos católicos, começa a se deteriorar, pois o. papado vivia embates com o mundo que o rodeava ao querer impor sua hegemonia. 63 64 - BOSCO, T., 2002. p. 497. - PAIVA, José Maria. Colonização e Catequese. São Paulo: Arké, 2006, p. 22. 72 A prática do beneplácito65 em vários reinos católicos punha as decisões papais sob o crivo de seus governantes e o padroado conferia-lhes poder para nomear bispos e párocos, criar dioceses e paróquias subordinando a hierarquia eclesial aos governantes, considerada como funcionária dos governos que lhes pagava os proventos. Isso distanciava o papado das igrejas dentro das diversas nações. Havia ainda parcelas do clero mais intelectualizadas sob forte influência do iluminismo e do liberalismo, o que enfraquecia o poder papal, inclusive com inclinação a constituirem igrejas nacionais. Neste contexto de desestabilização do poder político e religioso do papado, Pio IX encetava sua luta pelo fortalecimento do centro de comando da Igreja, procurando constituir um episcopado e um clero alinhados com o Vaticano. A congregação de João Bosco apresentava para Pio IX alguns traços fundamentais para o fortalecimento da Igreja. Professava uma religiosidade tradicional com profunda veneração e fidelidade ao papado e, ao mesmo tempo, respondia aos novos tempos por sua ação atualizada no mundo urbano, atendendo de um lado aos interesses da burguesia industrial e de outro às necessidades espirituais e materiais das classes urbanas empobrecidas, sobretudo entre os jovens. O papa via na sociedade salesiana um dos muitos braços do seu projeto de romanização. Muitos liberais, ao hostilizarem a congregação, o faziam porque percebiam sua absoluta e incondicional fidelidade ao papado, o que minava os projetos de integração e formação de um novo Estado laico, a Nova Itália. De outro lado, ainda que paradoxalmente, o reconhecimento papal dessa congregação e o impacto positivo dela sobre as classes populares impediam que fiéis se bandeassem para o socialismo marxista66 que ampliava sua incidência junto das classes trabalhadoras, sobretudo através dos sindicatos. Isso não deixava de ser, paradoxalmente, simpático à parte da burguesia que se sentia atemorizada frente ao crescimento das idéias socialistas e marxistas. Nos últimos anos de sua vida seu empreendimento é visto como uma ação educacional de sucesso que responde aos desafios sociais do mundo industrial, 65 - O que aqui está sendo desestabilizada é a visão do “Orbis Christianus” que no contexto quinhentista haviam fundido fé e império numa única visão. Todos deveriam concorrer sempre para a glória de Deus não existindo mundo “civil e religioso”. Cf. PAIVA, op. cit., p. 22. 66 - O manifesto comunista fora lançado em 1848. 73 quando começa a se construir o mito sobre o homem Bosco e sua fundação 67. Frente ao liberalismo e ao socialismo seu trabalho se apresentava como resposta católica68 ao mundo do trabalho em que se priorizava, além da eficiência do operariado, uma boa formação humano-cristã. João Bosco mesmo participa conscientemente da construção deste mito de sua obra ao procurar mostrar a eficiência e os resultados obtidos e ao idealizar alguns de seus educandos como modelo e resultado positivo de sua ação educativa. Isso atraía não só simpatia, mas abria portas e, sobretudo, captava recursos para suas obras em franca expansão. Nos ditos e nos escritos de Dom Bosco encontram-se muitas figuras de jovens exemplares, hóspedes reais ou ideais do seu oratório (...). A história de Bartolomeu Garelli encontra-se toda ela no episódio narrado nas Memórias do Oratório. A pesquisa anagráfica não individuou ainda a origem, o meio e o termo do protagonista. No jovem encontrado na festa da Imaculada, Dom Bosco parece querer simbolizar, em uma narração relativamente tardia, todos os jovens – entre os quais aqueles que lhe foram confiados pelo padre Cafasso – encontrados em datas diversas em suas primeiras experiências de beneficência turinesas. Com esse jovem, além disso, ele pretende sublinhar a singularidade dos inícios do oratório, da dúplice origem, terrena e celeste, ele mesmo símbolo de diversas formas de convivências juvenis, enfim, de um movimento para os jovens dos jovens, sem limites espaciais e temporais. Dessa dimensão biográfica indeterminada parece eco as documentações que dizem respeito ao adolescente que chega por acaso à sacristia da igreja de São Francisco de Assis. É, ao invés, rica a significação ideal e exemplar do episódio, seja para o oratório, seja para os jovens que o buscam e os adultos que aí 69 agem, em particular graças ao padre que é o protagonista . Nos últimos anos de sua vida João Bosco vê a obra salesiana adquirir reconhecimento internacional por seu trabalho com os jovens empobrecidos e marginalizados, granjeando simpatia de governos, empresas e de vários segmentos da igreja. De várias partes do mundo pede-se a presença da congregação com oferta dos meios materiais necessários para sua implantação. 67 - Em suas viagens ao final de sua vida à França e à Espanha fora aclamado por milhares de pessoas nas ruas, sendo esse fato noticiado pelos principais jornais da época como Le Figaro e Le Pélerin. Cf. BOSCO, T., 2002, p. 507-512. 68 - Em 1891, Leão XIII lança a Rerum Novarum, primeiro documento que dá origem à Doutrina Social da Igreja. Essa resposta aos problemas sociais é, porém, tardia já que soluções como o liberalismo de Adam Smith ou o socialismo de Karl Marx já tinham forte aceitação entre a classe patronal e operária, respectivamente. 69 - BRAIDO, 2008, op. cit., p. 579. 74 O trabalho social, as linhas de uma pedagogia inventiva e a capacidade de interlocução com o mundo industrial e político não devem, porém, enfraquecer um traço determinante deste fundador. João Bosco interpreta a realidade a partir de uma visão de tradição medieval, em que Deus com sua providência preside a todos os acontecimentos da vida e da história. Ele é um místico e sua cosmovisão essencialmente religiosa. Entende-se como instrumento dos desígnios de Deus. A narração de seus feitos e sucessos é creditada à providência divina. Pio IX, apesar de político e das lidas palacianas, era também o líder espiritual do catolicismo e como cristão sentia-se perplexo e desnorteado frente aos novos tempos de liberalismo. No campo espiritual e na concepção religiosa esses dois homens, um príncipe e outro camponês, possuíam a mesma leitura da realidade, ainda que de lugares e posições diferentes, como filhos de uma espiritualidade com raízes medievais quando a organização mental desses homens tinha seu epicentro em Deus. As atitudes políticas de Pio IX na defesa dos Estados Pontifícios e contra o pensamento liberal eram movidas pela defesa da religião. O movimento por ele promovido e definido pela historiografia como “romanização” era, na sua ótica, zelo pelas coisas de Deus. Bosco será um dos primeiros interlocutores do catolicismo a estabelecer diálogo com os interesses do mundo industrial que se sustentava numa política liberal, unindo as expectativas desse segmento com os interesses da igreja. As fábricas queriam operários qualificados, os novos Estados Nacionais procuravam criar a consciência de cidadania a antigos súditos de reinos e a igreja desejava cristãos fervorosos. Os interesses com relação ao trabalhador eram diferentes, mas João os aproximava ao propor formar bons cristãos e honestos cidadãos. A obra salesiana era para a igreja-instituição um importante veículo de acesso ao mundo urbano. Para Giovanni Maria Mastai-Ferretti70 e Giovanni Belchior Bosco tudo era ação da providência divina na história. Pio IX quando impõe a João Bosco que deixe por escrito suas primeiras experiências como fundador, o exige não por uma preocupação histórica, que até poderia existir, mas por uma finalidade mais profunda: essa história do homem e de sua instituição escondia nas entrelinhas do suceder dos fatos a invisível ação de Deus e da sua providência. Daí nasce o livro 70 - Nome de batismo de Pio IX. 75 Memórias do Oratório São Francisco de Sales71 escrito em linguagem amena e familiar, quase como um colóquio ao narrar a vida e as peripécias de Giovanni, quando o autor confere à narrativa o sabor das cálidas conversas em torno das lareiras das casas de campo da Itália nas frias e nevadas noites de inverno. Mas, por trás dessas saborosas narrações, se entrevê a providência divina que a tudo encaminha. O espírito e a mentalidade dessa obra não diferem da das Confissões de Santo Agostinho escrita no século IV. Ainda que o estilo e linguagem sejam diferentes, há uma matriz comum: ambos possuem uma mesma visão dos fatos cotidianos dirigidos por Deus no projeto maior da história da salvação. Alguns elementos perpassam as Memórias. Existe o tempo de Deus, como muito bem define Le Goff, que é principio e fim de toda ação humana e o único capaz de dar sentido à história pessoal e social. O tempo da Bíblia e do cristianismo primitivo é antes de tudo um tempo teológico. “Começa com Deus e está dominado por Ele”. Como conseqüência a ação divina em sua totalidade, está tão naturalmente ligada ao tempo que este não seria motivo de problema, aliás, muito pelo contrário, 72 é a condição necessária e natural de toda ação divina . 71 - Ao escrever essa obra, Bosco já possui considerável reconhecimento pelo seu trabalho, o que gera esse pedido explicito do papa que não lhe esconde admiração e respeito; sua congregação está sendo convocada a ser presença em vários países por autoridades civis e religiosas; há um significativo ingresso de jovens em suas fileiras; cresce para Bosco uma explícita certeza: percebe-se como fundador, possuindo discípulos que o amam e o seguem, começando a gozar de respeito social e eclesiástico. Ao escrever sua vida dois elementos se somam: suas reminiscências reais e históricas que são importantes, ao se perceber modelo para milhares de seguidores e a necessidade de, com sua vida, apontar um caminho a ser trilhado por seus seguidores. Braido não titubeia em afirmar que sua obra é, acima de tudo, uma descrição do futuro, de como as coisas deviam ser. As descrições do seu passado são apresentadas como modelos ideais de como deveriam ser as práticas educacionais e o relacionamento dos educadores com seus educandos no futuro. Cf.BRAIDO, 2008, p. 14-17. 72 - “Le temps de la Bible e du christianisme primitif est avant tout um temps théologique. Il “commence avec Dieu” et il “est dominé par Lui”. Par conséquent l’acion divine, dans sa totalité, est si naturellement liée au temps que cellui-ci ne saurait donner lieu à un problème; Il est au contraire, la condition nécessaire et naturelle de tout acte divin”. GOFF, Jacques le. Au Moyen Âge: temps de l’Église et temps du marchand. Annalles, Economies, Sociétés, Civilisations, France, 1960, v. 15, n. 3, mai-juin. n. 3 p. 419. 76 Repudia-se, assim a tudo que não concorra para a glória de Deus, sendo a igreja sua intérprete. Nesta chave de leitura, entende-se que Deus escolhe João Bosco e o destina para um projeto explicitado no sonho73 dos nove anos. Na idade de 9 anos tive um sonho, que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida. Pareceu-me estar perto de casa. Numa área bastante espaçosa onde uma multidão de meninos estava a brincar. Alguns riam, outros se divertiam, não poucos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias, lancei-me de pronto no meio deles, tentando, com socos e palavras, fazêlos calar. Neste momento apareceu um homem venerando, de aspecto varonil, nobremente vestido. Um manto branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém, era tão luminoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo nome e mandou que me pusesse à frente daqueles meninos, acrescentando estas palavras: Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude. Confuso e assustado, repliquei que eu era um menino pobre e ignorante, incapaz de lhes falar de religião. Senão quando aqueles meninos, parando de brigar, de gritar e blasfemar, juntaram-se ao redor do personagem que estava a falar. Quase sem saber o que dizer, acrescentei: - Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis? - Justamente porque te parecem impossíveis, deves torná-las possíveis com a obediência e a aquisição da ciência. - Onde, com que meios poderei adquirir a ciência? - Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, - Mas quem sois vós que assim falais? - Sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia. - Minha mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que não conheço; dizei-me, pois, vosso nome. 73 - Neste sonho tido aos nove anos Dom Bosco acredita que nele estaria expressa sua missão de educador dos jovens devendo tornar “ferozes lobos” em “mansos cordeiros”. Neste “sonho” estaria já definida a missão de sua vida. Tudo que realizar a partir daí estaria nos projetos de Deus. Não entramos aqui na questão se esses sonhos seriam apenas narrações didáticas para seus discípulos, sobretudo porque narrado nas Memórias do Oratório São Francisco Sales que Braido entende que, mais que um livro de reminiscências, teria sido escrito, sem fugir ao seu fundo histórico, com a finalidade didática de “como deveria ser o oratório”. Pietro Braido é historiador e mestre em salesianidade do Instituto histórico de Roma. Sua ultima obra reúne em dois volumes uma análise profunda sobre Dom Bosco e o seu tempo. Seu livro, “Dom Bosco, padre dos jovens no século da liberdade” é o coroamento de sua vida de pesquisador. Cf. BRAIDO. P., 2008. p. 11-17 . 77 - Pergunta-o à minha mãe Nesse momento vi ao seu lado uma senhora de aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse fulgidíssima estrela. Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas perguntas e respostas, acenou para que me aproximasse e, tomando-me com bondade pela mão, disse: - Olha. Vi então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar deles estava uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos, e outros animais. Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto; e o que agora vês a esses animais, deves fazê-los aos meus filhos. Tornei então a olhar, e em vez de animais ferozes apareceram mansos cordeiros que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele homem e daquela senhora, como a fazer-lhes festa. Neste ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi que falassem de maneira que eu pudesse compreender, porque não sabia o que significava tudo aquilo. A senhora descansou a mão em minha cabeça dizendo: - A seu tempo tudo compreenderás. Após essas palavras, um ruído qualquer me acordou, e tudo desapareceu. Permaneci atônito. Parecia que minhas mãos doíam devido aos socos que tinha dado, que minha face doía pelos socos recebidos. Aquele personagem, aquela senhora, as coisas ditas e ouvidas, me ocuparam de 74 tal forma a mente que não consegui retomar o sono aquela noite. " João Bosco entende-se como escolhido por Deus que, em vários momentos de sua vida e através de sonhos75, mostra-lhe caminhos que deve trilhar em vista da salvação da juventude sabendo que a providência divina não o deixará carente de recursos espirituais e materiais. Aos seus seguidores dá a certeza que a causa pela qual batalham é uma causa de Deus76. Uma análise historiográfica mostra que a narração nas Memórias do Oratório São Francisco de Sales possui traços de partilha familiar dirigida aos seus discípulos, membros da sociedade salesiana. A obra dá a 74 - BOSCO, J., 2006, p. 28 et seq. 75 - Os sonhos de Dom Bosco ocupam um lugar de destaque na elaboração de sua pedagogia. Os seus interpretes se dividem no sentido de entendê-los. Para alguns seriam apenas parábolas motivadoras para seus discípulos, através dos quais dava força aos seus projetos deixando um espaço de mistério para suas ouvintes que veriam neles sinalizações de Deus. Outros, a partir de interpretações psicanalíticas, acreditam que teriam seu fundo real, como expressão das preocupações e angústias que permeavam sua vida de educador e fundador e que afloravam do seu inconsciente como sinalizações das preocupações que levava para o leito após um dia de intensa atividade. Nas suas descrições, porém, haveria o colorido dramático de um bom narrador. 76 - Quando seus seguidores sentiam-se esgotados repetia uma promessa: Pão, trabalho e paraíso. 78 certeza da atuação de Deus em sua vida. A proibição que esses escritos fossem divulgados tem sentido enquanto o autor mostra, em clima de confidência, o segredo do seu sucesso: Deus o escolheu e à sua obra para realizar uma imensa missão: a salvação da juventude. Todos os eventos que vivem não são obra do acaso, mas um bem arquitetado plano da providência divina 77. A essa visão mística e visionaria, se soma a estrutura de um homem pragmático, trabalhador, empreendedor, ousado, idealista e esperto78, transitando em meio à alta sociedade da época e conquistando benevolência política e milhões de liras para suas imensas construções em todo mundo. Essas posturas pragmáticas não empanam suas crenças e convicções, mas, ao contrário, as reforçam pelos resultados e conquistas. João Bosco, se nos seus relacionamentos pessoais com os jovens e as classes populares agia como um pai bondoso, frente aos líderes da sociedade urbanoindustrial mostrava ousadia e capacidade de pensar com a lógica do capital e do capitalismo, quando demonstrava ousadia, esperteza, capacidade de negociar e barganhar até com certo atrevimento na abordagem dos ricos, não pedindo esmolas, mas recursos substanciosos para suas obras. Em confidências a amigos dizia que pela juventude pobre era capaz de se humilhar, sabendo que seu orgulho camponês mostrava resistência em freqüentar ricos salões da alta sociedade em busca de recursos sob o olhar não poucas vezes simpático de anticlericais e liberais. Tinha consciências que suas inúmeras e grandes obras não seriam financiadas pelos pobres, mas pelas avultadas contribuições de nobres e burgueses. A um rico industrial que não queria lhe dar contribuição, responde com serenidade: “Esse dinheiro irá para os pobres. Se eu não levá-lo hoje, daqui alguns anos, esses mesmos pobres que não terei podido educar, virão “buscá-lo” como ladrões”. O maior de todos os argumentos, porém que permitia a João Bosco captar grandes quantias era a visibilidade do seu trabalho e os resultados trazidos à sociedade. Em 1870 quando Pio IX se auto-declarava “prisioneiro do Vaticano” e em que a tensão 77 78 - Cf. BRAIDO, 2008.pp. 14-17. - No ambiente salesiano consagrou-se a palavra “furbo” em italiano para denominar a esperteza de João Bosco caracterizada por uma argúcia marota e inteligente, não sendo em geral traduzida para não perder a força do seu sentido. 79 entre a igreja e a nova Itália chega ao seu mais alto grau, quando se polarizavam Igreja e Estado e o anti-clericalismo era levado a grau máximo, paradoxalmente a Itália de norte a sul era sacudida pela Grande Rifa de Dom Bosco, com distribuição de talões inteiros para os ricos que, se a rejeitavam das mãos dos emissários de dom Bosco, recebiam-nos de novo por suas mães e esposas. O sucesso de seu empreendimento em favor dos jovens das classes populares era inquestionável, mesmo na década de 1870. Apesar de toda a crise do governo com o papado, os salesianos eram chamados aos palácios episcopais e de governos para receberem pedidos de fundações de novas frentes de suas obras. De outro lado não faltaram os detratores que o definiam como ganancioso e oportunista: Dom Bosco foi acusado de astúcia declarada, de manipulação dolosa e outras coisas mais. Não só a imprensa – determinada imprensa – estava contra ele, mas também pessoas bem intencionadas, que não conseguiam compreender a grandeza dos seus sentimentos e a retidão. (...) quem não o conhecia bem, observando seus gestos mais audazes e sua desenvoltura em se expor à opinião pública, podia julgá-lo um padre temerário, até mesmo exibicionista. (...) suas contas estavam sempre no vermelho. (...) Por meio das loterias e das incessantes solicitações de ajuda, (...) oferecia aos políticos, crentes e não crentes, aos filantropos contrários à igreja, a todos em suma, um “modo de fazer beneficência, por assim dizer, charmosa” – como bem escreveram – isto, é, bem aceita, não 79 comprometedora. E não se pode chamar a isso de ingenuidade . A vida de Bosco pode ser narrada pelo suceder cronológico de seu cotidiano, com a seqüência dos episódios que marcam a vida de um homem do seu tempo. Sua vida, porém, pode ser capturada e compreendida a partir das impressões que lhe tocaram a mente e a alma. É a visão dos fatos a partir de dentro do seu psiquismo, procurando captar como o mundo lhe parecia e era percebido. Essa percepção da vida, do mundo e da história a partir do olhar do protagonista, primeiro em forma de autobiografia, nos permite angulações privilegiadas e não capturadas por um narrador externo. E João através das Memórias do Oratório São Francisco de Sales, pelos seus escritos e intensa correspondência, deixa entrever não só como pensava, mas como via o mundo. 79 - BROCADO, Pedro. Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo. São Paulo: Salesiana, 1986, p. 91 et seq. 80 Sua vida poderia ter ficado restrita aos estreitos horizontes dos Becchi80, se desdobrando na previsível lógica campesina de arar a terra, plantar e colher, ter uma esposa e filhos, fazer as preces de um bom cristão e se dirigir a cada domingo à igreja para os serviços religiosos. Neste momento histórico, porém, muitos jovens do campo quebrando essa lógica camponesa, seja pela necessidade ou pelo desejo do novo, partem para as vilas e cidades procurando algo melhor e com mais futuro, rompendo o secular círculo de camponês tem filho camponês, pois os canteiros de obra e as indústrias pareciam oferecer mais que a vida rotineira e previsível do campo. João Bosco poderia também ter sido um dos tantos migrantes anônimos que povoaram os principais centros urbanos da Europa buscando subsistência. Sua lembrança ficaria para os parentes próximos até ser apagada pelo tempo, restando um nome nos registros paroquiais de batismo, crisma e casamento ou ter sido, numa outra hipótese, obscuro cura cuidando da vida religiosa do povo. Este século de liberdade introjetava, porém, nos jovens, o desejo de superar o passado campesino de seus pais, saindo do interior e procurando se integrar no ambiente urbano em formação e do qual sequer poderiam avaliar a dimensão revolucionária que possuía. É compreensível a revolta do seu meio irmão Antônio, ao perceber neste irmão mais novo sua inclinação para os livros e estudos 81. O acesso à cultura não fazia parte dos horizontes de pobres agricultores que mal conseguiam o necessário para sua subsistência, tendo sentido a agressividade de seu irmão com os devaneios deste pré-adolescente que não se enquadrava neste estreito mundo rural, que ia ficando pequeno frente às oportunidades que se delineavam no horizonte de sua vida. O adolescente João Bosco, que sai do campo para a cidade, tinha uma rígida formação pautada em severos princípios morais e de religiosidade popular. Aprendera a obediência e o respeito a todas as formas de autoridade: família, governantes e eclesiásticos, numa ótica medieval na qual se concebia que toda a autoridade viria de Deus. L’ancien régime é mais que um modelo político e econômico: é uma mentalidade. 80 - Distrito de Turim. - Cf. WIRTH, Morand. Dom Bosco e os Salesianos. São Paulo: Dom Bosco, 1971, p. 24-25. 81 81 Dom Bosco nasceu em 16 de agosto de 1815, ano que, também para a mentalidade dos chefes de Estado reunidos no Congresso de Viena (18141815), real e simbolicamente coloca-se entre l’ancien régime e o novo mundo iniciado ou entrevisto pelas revoluções que tinham acontecido, proximamente, a partir da segunda metade do século anterior. Isso o marcará pela vida toda, numa não resolvida ambivalência de tradição e modernidade, também ela fecunda, além de interpretações antitéticas, como 82 a propósito se verifica na realidade o reino Sardo, do qual nasce cidadão ”. João se deslumbra com a cidade, mas também testemunha situações inexistentes no campo. Impressionam-lhe as prisões e aí as crianças e adolescentes presos, muitas vezes, condenados à morte, assim como os costumes devassos contrários ao pudor do campo, a violência, os furtos, o desprezo pela igreja e pelo papado e a miséria das periferias em tudo diferente da frugal e digna pobreza das famílias rurais. Esse descompasso social deixa-o perplexo. Ao invés de se refugiar numa religiosidade intimista procura interagir com esse mundo urbano. Sua personalidade83 fogosa, voluntariosa e criativa o faz entender que é preciso ir além do puro e tradicional assistencialismo para a promoção do homem, sabendo que o jovem só terá condições de vida digna e cristã se estiver apto para ter um lugar produtivo no sistema urbano-industrial. É preciso, portanto, formá-lo em sua totalidade humana e espiritual. Será esse projeto que norteará sua ação: formar bons cristãos e honestos cidadãos. Terá no mote Da mihi animas, coetera tolle84 o farol que guiará sua ação pastoral, que fez da educação um instrumento para salvar almas. Idoso, faz com que seja seu sucessor um dos primeiros jovens de seu oratório, Miguel Rua, que foi um dos que mais contribuíram para o crescimento da obra e fortalecimento da imagem de João Bosco. O zelo pela memória e fidelidade ao 82 - BRAIDO, 2008. p. 22-23. 83 - BROCADO, op. cit., p. 40-47 . 84 - Dai-me Almas, fique com o resto. Essa expressão foi tirada do livro do Gênesis quando Abraão e o seu sobrinho não conseguem mais se manter juntos pelas desavenças dos seus pastores e se dividem. Abrão diz, “dai-me os homens e fique com o resto”. Essa passagem bíblica foi entendida por João Bosco num sentido restrito que pretendia a “salvação das almas”. No texto bíblico “animas” tem o sentido amplo de “homens” e não de “almas”. 82 fundador foi seu empenho maior. Apoiou a confecção do livro Memorie Biografiche di Don Giovanni Bosco85 que narrava em detalhes a vida do fundador. Com sua morte esperava-se o arrefecimento de seu projeto e até mesmo o término da sociedade. Os burocratas da Cúria Romana previam que, passado um pequeno prazo da morte do fundador, a exuberância alcançada pela Sociedade cairia, existindo até alguns pré-estudos e hipóteses de se anexar seus membros remanescentes a outra congregação. A figura de Miguel Rua, magro e esquálido, não permitia aos observadores externos imaginar que, sob aparência tão frágil, estava um líder empreendedor. João Bosco sabia que a sobrevivência e a continuidade do seu projeto dependeria de jovens educados nos padrões e mentalidade dos valores do oratório. Assim, ao longo de sua vida, prepara um seleto grupo de jovens que deveriam assumir seu projeto sem desfigurá-lo. E entre esses jovens de sua confiança e que lhe votavam incondicional fidelidade destacava-se Miguelito, filho de operários nascido em 1837 e que ingressara no oratório em 1845, mesma data em que perdera o pai, vindo a se ordenar sacerdote em 1860. Bosco perceberá que por baixo das aparências daquele jovem pobre e tímido, havia uma das pedras fundamentais de sua obra. Certa ocasião João Bosco distribuía brindes aos adolescentes do oratório. Miguelito era o último e chegando sua vez não havia mais nada para lhe oferecer. Bosco fez como se cortasse metade de sua mão e a oferecesse ao jovem dizendo-lhe: Facciamo la metà86,explicando-lhe que a partir daquele momento tudo que tivesse e tudo que fizesse seria dividido com o adolescente Rua87. Mais do que uma metáfora 85 - A congregação salesiana sempre teve preocupação com o arquivamento de todas as documentações e narração da própria história. Logo após a morte de Dom Bosco, padre Rua, seu sucessor, incentivou que fosse escrita uma detalhada biografia, hoje em inglês e Italiano. Essa tarefa durou 50 anos e foi escrita por quatro autores perfazendo um total de 20 volumes e cerca de 18 mil páginas, rica em farta documentação e detalhes. Responderam por essa obra, intitulada Memorie biografiche di Don Giovanni Bosco os autores G.B. Lemoyne (I a IX), A. Amadei (X), E. Céria XI-XIX e E. Foglio (volume índice). A partir dos centros históricos salesianos se vem trabalhando com uma historiografia crítica com significativas produções em nível mundial. Em Roma existe um Centro Histórico dedicado à pesquisa e ao recolhimento e conservação de documentos. No Brasil, na cidade de Barbacena – MG - está constituído um centro de História e Documentação de todo o país. Na cidade de Lorena o arquivo histórico possui documentações dos 120 anos da congregação no Brasil com atas, relatórios, diários, documentos pessoais de salesianos, crônicas e cerca de 55 mil fotos. 86 - Façamos tudo meio a meio. 87 - BOSCO, T., 2008, p. 172. 83 isto foi uma realidade, pois Miguel dividiu com Bosco os projetos, sonhos e dívidas. Grande parte da exuberância da obra de Bosco esteve apoiada neste discípulo que, como estrategista, teve que conter e “domesticar” os exuberantes sonhos do fundador, tornando-os exeqüíveis. Sua vida junto de Dom Bosco foi um tirocínio até assumir a liderança da obra. Possuía inteligência lúcida, inata propensão à disciplina, bom preparo cultural, propenso a uma vida mística, gosto pela ordem e exatidão na administração financeira e no cuidado do gerenciamento material das obras. Se aos 17 anos, apesar da aparente timidez, se mostrava líder88 e aos 22, mesmo antes de se tornar sacerdote, Bosco o fez responsável pela dimensão espiritual e carismática de sua obra. Sua inteligência a capacidade de aprendizagem conferiam-lhe bases para uma boa liderança. Além do italiano e de vários dialetos de sua região, falava, lia e escrevia com facilidade o latim, o hebraico, o grego, o árabe, o inglês, o espanhol e o francês. Dom Bosco já o nomeara seu vice em 1865, e em 1884, quando sua saúde se debilitava, o nomeou seu sucessor. Quando Miguel Rua assume o lugar de Bosco, a congregação89, que já mostrava exuberância, passa a crescer muito rapidamente. Ele assume o cargo de reitor-mor de 1888 até 1910. Nestes 22 anos o projeto salesiano não foi uma ação de meros 88 89 - Cf. DESRAMAUT, Francis. Vida do Padre Miguel Rua. São Paulo: Salesiana, 2010, p. 14-31. - A Congregação salesiana estava composta por uma ala feminina e outra masculina. No ramo masculino eram 773 salesianos em 58 casas espalhadas por 22 nações. Vinte e dois anos depois quando morre Rua eram 4.001salesianos em 387 casas e 38 nações. Nas mesmas condições as salesianas eram 415 em 54 casas e 6 nações. Quando da morte de Dom Rua, neste momento o Vaticano já havia separado integralmente os dois ramos masculino e feminino, formando uma nova congregação, eram 2.716 religiosas em 320 casas em 22 países. João Bosco havia fundado um movimento leigo autônomo que seguia sua pedagogia e fazia a mesma ação dos religiosos denominados de Cooperadores Salesianos (CCSS). Esses leigos assumiam de forma solene e publica um compromisso anual de viver o espírito salesiano praticando o Sistema Preventivo pelo bem da juventude podendo fundar colégios, oratórios, obras sociais sob sua direção e tendo no Reitor Mor não um superior, mas guia espiritual. Em 1888 eram 30.000 e em 1910 chegam próximos dos 300.000 compromissados em todo mundo. Para ser cooperador salesiano é necessário filiar-se à associação dos Cooperadores Salesianos (CCSS) possuindo uma regra de vida e assumindo trabalho ligados à juventude. Possuem uma hierarquia local, regional e mundial. Podem possuir bens e patrimônio. Equivaleriam às “ordens terceiras” de outras congregações. A Única relação com a Congregação salesiana é o reconhecimento oficial de pertencerem à família salesiana e de terem como diretor espiritual um sacerdote salesiano, acolhendo os referenciais doutrinários e carismáticos do Reitor Mor, sempre visualizado como centro de unidade da Família salesiana e guardião da fidelidade ao carisma do fundador. 84 visionários, mas dependeu de um profundo espírito pragmático que levantou imensas quantias que permitiram sua implantação em diversas partes do mundo90. O prestígio da nova congregação e seu estilo de vida jovial e moderno atraiu grande contingente de jovens para suas fileiras. As solicitações de fundações partem de dioceses, governos e entidades de caridade de todas as partes do mundo 91 oferecendo-se condições materiais como terrenos, construções e recursos financeiros. As motivações para o aporte de recursos e condições para a congregação iam desde a preparação de mão de obra qualificada, assistência social eficiente à juventude até a busca do fortalecimento da Igreja, combalida por sua dificuldade em dialogar com os novos tempos. É um momento de especial euforia, tanto dos jovens que a ela aderem, como dos que a buscam, vendo nela respostas para os novos desafios do ambiente urbano industrial. Nenhuma fundação em nível mundial e com expansão tão ampla e em tão pouco tempo pode ser explicada com um ou dois motivos. Há uma junção de elementos que favoreceram seu surgimento, crescimento, expansão e consolidação. Deve-se destacar, porém, que houve um núcleo teórico que, aplicado, correspondeu às necessidades não só de um momento histórico, mas atravessou um século e hoje está presente em mais de 120 países. A educação e a pedagogia elaboradas e praticadas por João Bosco possuem um conjunto de elementos que só podem ser denominados de salesianos se existirem organicamente integrados, tanto na sua elaboração teórica como na sua aplicação prática, sem o que se perde a autenticidade. Ela poderá adequar-se aos tempos e 90 - Deve-se destacar que entre 1888 e 1910 foi feito o envio de 31 expedições missionárias para novas fundações, com o envio de 1.515 salesianos e 24 expedições do ramo feminino com o envio de 395 salesianas para regiões do Equador, Brasil entre os indígenas bororos, Argentina na Terra do Fogo, México e Tunísia. Entre as Escolas profissionais e regulares já se contabilizava cerca de 300.000 jovens atendidos na Itália, Inglaterra, França, Egito, Israel, Espanha, Polônia, Argentina, Uruguai, Brasil, Estados Unidos e outros. Dom Bosco havia fundado a revista Boletim Salesiano, até hoje editado, sendo o principal veículo de comunicação da Família Salesiana. A edição italiana fora fundado por Bosco. Rua o lança em diversos idiomas: em 1892 em inglês, em 1893 em alemão, em 1897 em polonês, em, 1901 em português, em 1903 em húngaro e em 1907 em esloveno. Em 1910 a congregação atende, contando-se os ramos feminino e masculino, em nível mundial a 677 oratórios festivos, 1.121 escolas profissionais, 77 internatos e 40 editoras. 91 - Até hoje anualmente a congregação envia Expedições Missionárias para algumas partes do mundo fundando novas comunidades. São arregimentados salesianos de todas as partes do mundo para essas novas fundações ou, em alguns casos, para o reforço de pessoal em fundações em fase de implantação. 85 aos desafios das sociedades, não poderá, porém abrir mão desses elementos que formam o seu núcleo e, sem os quais deixará de existir ou será um grotesco arremedo, uma falsificação grosseira onde o “rótulo” salesiano não dará identidade a um conteúdo falsificado. A “grife” salesiano é uma marca, nem pior e nem melhor que outras. É apenas uma identidade. Qualquer outra coisa é outra coisa, talvez até melhor e superior, mas “outra coisa”. 86 2.3 - Uma Pedagogia com o coração do Feudo e a Razão da Cidade no século da liberdade. João Bosco não foi um teórico da educação. Sua ação educativa nasceu de sua intuição a partir de suas experiências de vida, de sua índole e de sua inteligência arguta e observadora. Sua formação familiar foi embasada no respeito à autoridade de seus progenitores, nas tradições camponesas do Piemonte e nas prédicas dos capelães de sua região. O ambiente em que viveu sua infância em pouco se ressentia dos questionamentos políticos e econômicos que já abalavam os centros urbanos. A religião e suas práticas ofereciam aos camponeses uma organização mental que integrava os ciclos dos campos, o ano litúrgico e o devocionário popular com suas festividades religiosas. Deus era o centro explicativo da vida e da morte, a tudo presidindo com sua providência. Não se podem minimizar na vida de Bosco suas experiências existenciais: a perda do pai aos dois anos, os conflitos com o irmão mais velho, sua saída precoce de casa, sua vida de adolescente migrante e aprendiz e, finalmente, seu ingresso no seminário de Chieri, marcado por uma teologia espiritualizada e desencarnada das realidades terrestres, que será revista mais tarde com seu ingresso por três anos no convitto ecclesiastico que o sensibilizará para o sofrimento e carências das populações pobres do entorno de Turim. No campo filosófico, o pensamento aristotélico92 com sua concepção antropológica deu-lhe, como educador, a base teórica do seu projeto de construção do homem. Nos 1800 o pensamento platônico-agostiniano, que presidira a mentalidade de toda a idade média, continuava a ser um significativo referencial teórico com forte impacto na espiritualidade cristã. Se entre o clero intelectualizado o aristotelismo era um referencial, nos ambientes mais simples permanecia a visão de mundo herdada da idade média de matriz significativamente agostiniana. Platão, ao elaborar o seu mundo das idéias, identificara o homem com a alma aprisionada ao corpo, visto como elemento indesejado e que lhe ofuscava a percepção das idéias eternas. O 92 - O concílio de Trento (1345-1563) foi uma das ações da Igreja no processo de contra reforma. Além da fundação dos seminários e da imposição de uma rígida disciplina para o clero, o pensamento tomista-aristotélico vai progressivamente conquistando cidadania nos seminários católicos até se impor como o grande referencial filosófico a partir do “doutor angélico”, Santo Tomás de Aquino. 87 objetivo existencial da alma era libertar-se do corpo e retornar ao mundo ideal. Essa visão enquadrava-se como uma luva na mística medieval que tinha no franciscanismo um dos mantenedores desses princípios que espiritualizavam o homem. Nos três primeiros séculos do cristianismo os pensadores da patrística tentaram equacionalizar o relacionamento entre fé e razão. Três correntes 93 polarizaram a questão: a africana que apregoava a superioridade da revelação, afirmando que a filosofia é mãe de todas as heresias, enquanto que a gnóstica reduzia a fé cristã à ciência. Será a escola alexandrina que aceitará a convivência entre fides et ratio destacando-se Agostinho de Hipona que, tendo passado por várias experiências religiosas e filosóficas, consegue realizar a síntese entre o pensamento cristão e o filosófico, entendendo que não se contrapunham, mas se complementavam, vendo inclusive no platonismo muitos elementos pré-cristãos. O pensamento platônicoagostiniano será responsável pela formação da mentalidade medieval, em que o corpo é minimizado, visto como fonte de pecado, enquanto que a alma será exaltada. O homem é a alma. A espiritualidade medieval buscará na ascese uma forma de domar os impulsos do corpo vendo nele fonte de pecado. Esta é uma típica visão do cristão do Piemonte. Quando na universidade de Paris94 um grupo de jovens professores redescobre Aristóteles, entre eles Tomás de Aquino, procuram num primeiro momento despi-lo das influências de Averóis que o havia “arabizado” e passam a estudá-lo no original grego. O ingresso de Aristóteles na Universidade de Paris apresenta-se como um elemento demolidor dos valores e da cosmovisão da Idade Média. Os filósofos racionais são estigmatizados vigorosamente pelo bispo de Paris, Etiene Tempier, que procura eliminar essa “má” influência expulsando os racionais da universidade como desestabilizadores da arquitetura mental medieval. Efetivamente apresentavam uma epistemologia que quebrava o pensamento agostiniano predominante até então. Para os místicos, representados especialmente pela escola franciscana, tendo como matriz o hiperurânio platônico, o conhecimento era uma “Iluminatio” divina. Deus, como o mundo das idéias de Platão, era a fonte do 93 - Cf. AMÉRIO, op. cit., p. 155-158. 94 Cf. MATHEUS, op. cit., p. 43-78. 88 conhecimento. Sendo assim, era necessário para se conhecer, ser um místico, um homem de Deus. Platão afirmara que só o conhecimento racional intuitivo permitiria ao homem ver as idéias eternas. O misticismo, de fonte platônico-agostiniana, vira nessa proposta do filósofo o modelo do êxtase. Entende-se então que o pensamento aristotélico assumido pelos racionais da universidade de Paris causasse impacto quando afirmavam que a Razão por si mesma era capaz de chegar à verdade. Ao se afirmar a autonomia da Razão para o conhecimento, por simples lógica, a iluminatio ficava excluída. De outro lado, seguindo o conceito de substância de Aristóteles, que concebia a realidade composta de matéria e forma, esta determinante, aquela determinada, realizava-se uma nova quebra com o pensamento platônico-agostiniano. O homem é concebido como uma unidade substancial entre matéria e forma, corpo e alma. A salvação, portanto, deve ser do homem, e não de um os seus componentes. O platonismo fizera do nosso mundo uma cópia empalidecida do verdadeiro mundo das essências puras, uma realidade menor que enganava nossa razão pelos sentidos. Agostinho não só acolherá essa idéia no mundo físico, mas a fará também impactar na ótica social e política ao engendrar a Cidade de Deus versus a cidade do homem. O conceito aristotélico, ao contrário, punha somente este mundo como realidade ontológica e, portanto, objeto de verdadeiro conhecimento. João Bosco jamais gastou tempo com essas filigranas filosóficas, mas elas são o fundo do seu pensamento como matriz teórica de sua organização mental e de sua ação pedagógica. O primeiro ponto a se destacar é que seu sistema educativo é apoiado na razão, sendo o educando por meio dela capaz de conhecer. O segundo ponto é a visão do homem dotado de corpo e alma. Cabe aqui o velho adágio latino: Mens sana in corpore sano. Isto se impacta diretamente nas atividades lúdicas e recreativas, vistas como dimensões do viver bem. Esse entendimento do homem como um todo – corpo e alma – impulsiona também no campo social a superação do simples assistencialismo para a promoção da pessoa. No assistencialismo medieval, apenas se atenuavam pela caridade as necessidades biológicas do corpo, na ótica de que tudo era transitório e que os verdadeiros bens seriam obtidos com a vida eterna. No pensamento de Bosco, não bastava apenas atenuar as necessidades físicas, como fome e frio, mas era preciso ir muito além, 89 dando autonomia ao homem por meio do trabalho, o que lhe conferia dignidade e cidadania, sendo este um dos objetivos da educação elaborada por ele. Em terceiro lugar, finalmente, há uma visão otimista do mundo que nos cerca, sendo o mal existente na sociedade resultado do livre arbítrio do ser humano ao não se deixar guiar pelos princípios éticos apreendidos pela razão. O mundo que nos cerca é belo e bom e o homem seu construtor pela sua racionalidade e capacidade de empreendimento. Essas idéias de matriz aristotélico-tomista, exaltando a interação entre fides et ratio, eram entendidas como um “anelo” amoroso, pelo qual fé e razão se complementavam em defesa da ortodoxia95. Essa racionalidade exaltada pela escolástica clássica naquele período, que se convencionou chamar de seu apogeu, qual corcel fogoso não se conteve nos cercados da ortodoxia. Como dissemos anteriormente a racionalidade não é domesticável. Duns Escoto, prenunciando ou explicitando de certo modo a crise entre a visão dos místicos e racionalistas, voltava de certo modo e com grande ambigüidade ao conceito da dupla verdade de Averóis, sem afirmá-la, porém. Procurava acalmar as tensões ao afirmar linearmente e sem maiores desdobramentos especulativos a autonomia dos campos da fé e da razão. No século XIV o franciscano Guilherme de Ockham, ao buscar o retorno à pobreza e simplicidade do franciscanismo primitivo, abominava as inúteis guirlandas racionais com seus intrincados silogismos de argumentos e contra argumentos. Radicaliza negando a metafísica. A fé é um ato cego de crença em Deus que não precisa de justificativas. Deus – por ser Deus – age de forma arbitrária e não previsível, daí a impossibilidade de “conhecer” as leis que regem as coisas físicas e espirituais. Defende o puro nominalismo em conjunto com o empirismo, única porta para algum conhecimento, mesmo assim duvidoso, porque incapaz de formular leis universais. O papado com seu poder temporal e espiritual e as teocracias imperiais sucumbem sob a fina lâmina da navalha de Ockham. Convencionou-se escolhê-lo como o demolidor final da escolástica. A partir deste momento, qual corcel selvagem, a razão campeia descomprometida dos cercados da ortodoxia religiosa e filosófica, chegando nos séculos seguintes a uma quase divinização. O Iluminismo exalta essa razão que se torna objeto de “culto quase religioso” no Positivismo, com seus 95 - cf. JOSAPHAT. Op. Cit., p.5 90 templos à razão, ao se erigir não só como sistema filosófico, mas também “religioso”, ou para escapar deste termo com toda a carga histórico-metafísica que traz consigo, num sistema mítico onde a “contemplatio” da “Ratio” em sua plenitude e poder eleva o sábio ao “êxtase”. Se o aristotelismo no século XIII fizera adentrar a racionalidade na Universidade de Paris, e posteriormente nos seminários por meio de Tomás de Aquino, esta ganhará cidadania no comércio no século XV e nas indústrias no século XVIII. Os negócios em vista do lucro são elaborados a partir de uma racionalidade matemática e pragmática que mede e avalia os empreendimentos em vista do lucro. Se a intuição fora guia do mundo rural, a razão presidia a organização da cidade comercial. Não é sem motivo que o livre exame proposto por Lutero fora uma reação racional à credulidade e subserviência que presidira a mentalidade medieval ao considerar toda forma de autoridade advinda de Deus. Aliás, a racionalidade avança por toda a idade moderna passando sob seu crivo crítico a religião, a ciência, a sociedade, a mente humana e o sistema de produção. Durante a vida de João Bosco discutia-se – ainda que num círculo restrito – as idéias do positivismo, do liberalismo, do marxismo e mesmo Freud já iniciava seus primeiros ensaios de psicanálise. A distância do tempo nos permite visualizar que novas concepções imiscuíram-se sorrateiramente no tecido social, atingindo homens ligados às velhas instituições, entre elas a igreja, para a qual parecia ruir um mundo sem se repor outro. João Bosco viveu essas angustias do seu tempo e no ambiente da urbe não se fechou em sua visão campesina, mas acolheu essas novas formas de racionalidade, sendo não apenas capaz de dialogar com elas, mas também de utilizá-las de forma instrumental para atingir seus fins educacionais, As primeiras práticas educacionais de Bosco, como já se afirmou anteriormente, foram baseadas nas suas intuições e bom senso. Mais tarde, porém, surge a necessidade de elaborá-las teoricamente, sobretudo quando saem do estreito círculo do Piemonte e seus discípulos necessitam de referenciais teóricos para ação. Seus escritos são simples, lineares, claros e objetivos feitos do tempo roubado de suas atividades e dirigidos aos educadores de suas obras. João Bosco escreveu sobre seu método educativo e muitas vezes o apresentou em palestras e boas- 91 noites96 anotados e compilados por seus alunos e salesianos. Para uma a apreensão dessas produções97 é necessário visualizá-las ao longo de toda sua vida. Deve-se assinalar que a partir da Revolução Francesa ampliou-se a educação para o povo com discussão de diversas propostas pedagógicas. João Bosco sofreu influência deste contexto e a ele deu resposta98. O núcleo da pedagogia salesiana é o Sistema Preventivo99 oposto ao sistema repressivo. Este se apóia no educador autoritário, distante e pronto a fazer uso do castigo onde a dimensão hierárquica100 entre educador e educando é explicita, não existindo proximidade entre ambos101. Nele não existe afeto, mas leis, regras e castigos que geram nos jovens mágoas, ressentimentos, rancores e até desejo de vingança. No Sistema Preventivo a finalidade da educação não é punir, mas impedir que faltas aconteçam a partir da presença do educador em meio aos educandos, também nos recreios, onde se misturam com eles participando de suas atividades. É importante sublinhar que essa presença não é um episódio casual ou acidental. Ela é o fundamento do seu sistema e, portanto deve ser intensa, sistêmica e cotidiana. 96 - O “Boa-noite” era uma mensagem dada aos alunos e educadores no final do dia devendo durar cinco minutos. Era um bom pensamento para a noite. Nela tratavam-se dos acontecimentos do dia ou de fatos agradáveis e edificantes. Dom Bosco era um excelente narrador prendendo seus ouvintes com a dramatização das narrações dramatizadas. Em não poucas boas-noites narrou seus sonhos. Essa prática permanece até hoje em todas as obras salesianas conhecida por esse nome nos internatos e adaptada para as escolas e obras sociais com o nome de “bom-dia” ou “boa-tarde”. 97 - Ao longo da vida de João Bosco houve uma boa produção de textos que permitem visualizar sua proposta pedagógica. São autobiografia, biografias de alunos, regulamentos, livros didáticos e religiosos, cartas, textos pedagógicos e a coletânea mensal das “leituras católicas” com estórias infanto-juvenis, teatros, vida de santos, tendo em vista os jovens das classes populares. 98 - Cf. BRAIDO, Pietro. Prevenir, não Reprimir. São Paulo, Editora Salesiana, 2004. pp. 89-112. 99 Cf – BOSCO, João O sistema Preventivo na Educação dos Jovens. In.Constituições e Regulamentos, São Paulo, Editora Salesiana, 2003. Pp. 266-274 100 - “As Relações do jovem com o diretor criou a imagem de ser ele onisciente, onipresente, todo poderoso, árbitro irrecorrível, “ungido” como Providência divina e como tal lembrado por pais e mestres para intimidar e submeter à criança. Em O Ateneu, diretor, Aristarco assume as feições de um deus assassino e antropófago, selvagem. Essa imagem aparece em toda vida interna da escola no Brasil”. SANTOS, Monoel Isaú Ponciano dos. Luz e Sombras – Internatos no Brasil. São Paulo, Editora Salesiana, 2000. p.. 101 101 - O filme Sociedade dos Poetas Mortos retrata bem essa realidade da educação tradicional. Cf. WEIR, Peter. Dead Poets Society, USA, 1989. 92 Não é tampouco uma presença meramente física, mas, afetiva e efetiva na qual o educador interage com o educando, seja como pai, amigo ou irmão, captando-lhe não só a simpatia, mas também o afeto. Nada e ninguém podem substituir essa presença qualificada do educador salesiano, entendido como educador somente desta forma. Sem ela, neste formato, não se consolida e nem se realiza a educação entendida como salesiana. João Bosco realiza um novo conceito de educação ao propor que o educador seja objeto de afeto e amor dos educandos. Esta proposta se coloca na contramão da educação católica do século XIX, que tinha por escopo levar os educandos ao amor a Deus, à prática da virtude e à fuga do vício como objetivos finais, em que os educadores eram concebidos como instrumentos para se alcançar esse fim. Bosco, ao contrário, coloca a figura do educador como objeto primeiro da educação já que o adolescente não trabalha com idéias abstratas, mas com modelos e experiências concretas. O Educador deve assim não só captar a benevolência, mas o afeto do educando, tratando-se na linguagem do educador piemontês, de fazer-se amar. Chegando-se a este estágio de interação, acreditava então que as propostas educativas seriam acolhidas pelo jovem que, sabendo-se amado, veria na presença participativa e alegre do educador um referencial para sua vida e felicidade. Este estilo de educação foi definido como pedagogia da presença. Para que isso acontecesse era necessário que o Educador amasse tudo que os jovens amam102. Nesta pedagogia o jovem, e não os princípios, é o foco de uma prática educativa personalizada, em que os ambientes e situações favorecem essa integração. Os espaços físicos das obras devem ser amplos, permitindo ao aluno correr e se divertir à vontade e sem restrições. Nos recreios não deve haver momento para a ociosidade, mas ser marcado por jogos, brincadeiras, música e ensaios de teatro, sendo os educadores a alma do recreio, reinando aí um clima de família, 102 - O educador nesta pedagogia promove e apóia a tudo que seja agradável ao jovem desde que isso não possua aspectos morais negativos e nem impacto desaconselhável em sua vida. 93 acolhimento e respeito com uma eventual “parolina all’orecchio103” de incentivo e apoio individualizado, fazendo o adolescente sentir-se importante e centro das atenções e dos educadores. A presença entre os jovens não é, porém, “genérica”. Ela apóia-se no tripé Razão, Religião e Bondade, e basta que falte um destes elementos para que todo o sistema desmorone. Esses elementos foram extraídos das vivências de João Bosco em vários momentos de sua vida. Viveu numa família marcada pelo afeto de sua mãe Margarida, mulher terna e de temperamento resoluto. Na pré-adolescência recebeu o apoio do padre João Melquior Calosso que, percebendo sua inteligência, lhe instruíra nos primeiros rudimentos do latim. Foi um tutor que o fez se sentir valorizado, granjeando-lhe o afeto. João viveu também, como contraponto, a experiência psicológica da ausência paterna, pois seu pai falecera quando tinha dois anos e as hostilidades do irmão mais velho que deveria fazer às vezes de pai. Soube tirar lições desta ausência, sublimando-a quando assume uma presença firme, terna e provedora junto dos adolescentes e jovens submetidos ao frio sistema de produção, “órfãos” da ternura familiar, que passavam a encontrar em Dom Bosco e nos seus cooperadores aquele pai que lhes faltava, como faltara a João. O fundador não abre mão de sua formação camponesa. Valoriza o trabalho e a religiosidade eivada de confiança e submissão a Deus que, como acreditava, com sua providência, a tudo preside. Esta é a espiritualidade simples vivida pelos camponeses e que Bosco implanta nas suas obras. Finalmente, a Razão, que conhecera na academia e que estava presente na lógica da cidade industrial, guiará a condução dos seus jovens para o Bem, entendido como tal. Bosco integra suas experiências familiar, religiosa e acadêmica num sistema de educação que se fundamenta na intimidade da família, na religiosidade do campo e na racionalidade da urbe. A Razão, a Religião e a Bondade104 possuem no seu pensamento e na sua prática educacional um sentido bem definido. 103 - Essa expressão, “uma palavrinha no ouvido” é consagrada na pedagogia salesiana e representa a atenção e preocupação personalizada para cada adolescente que se sente objeto da atenção do educador. 94 A Razão deve presidir a educação enquanto leva o jovem a entender 105 a verdade e o bem. Bosco acredita que uma determinação dos educadores só calaria fundo no jovem se esse apreendesse o seu sentido, acolhendo-a para sua formação; daí, a necessidade das orientações dos educadores serem explicitadas no seu sentido lógico e nos benefícios que trarão para a vida do educando. Somente quando o jovem entende e está racionalmente convencido das orientações dos educadores, só então as assumirá. A Religião com seus ensinamentos e preceitos oferecia a mística da verdade abraçada pela razão. Valoriza sobremaneira a conversa pessoal e o aconselhamento de um guia espiritual para moldar e formar o bom cristão. A religião é vista como fonte e sustentáculo dos grandes ideais de vida. A Bondade,106 ainda que sempre nomeada em terceiro lugar, após a razão e a religião é, porém, a primeira a ser sentida pelo jovem ao perceber o respeito e amor com que é acolhido. Não é uma forma afetiva pegajosa, mas, temperada pela razão e sobriedade. O jovem deve se sentir compreendido naquilo que é e do que gosta, sabendo-se respeitado no seu modo de ser e, acima de tudo, percebendo-se amado. Esses três elementos se articulam organicamente num sistema educacional que envolve um conjunto de valores, atitudes e situações que devem corroborar para se atingir a finalidade fundamental do seu projeto que é formar bons cristãos e honestos cidadãos107. Apreender essa cultura educacional é possuir um coração oratoriano que é a incorporação de uma mentalidade e modo de pensar e agir a partir dessa cosmovisão filosófico-educacional. Alguns fatores devem ser organicamente articulados para que exista educação salesiana, somatório de 104 - Cf. BRAIDO, 2005, op. Cit., p. 365-278. 105 - Sócrates, segundo Platão, punha uma profunda confiança na razão que, compreendendo a verdade racionalmente, estaria determinada a abraçá-la. É neste sentido que Sócrates pode afirmar: “Ao que erra não se deve castigar, mas educar”. Cf. FRAILE, op. Cit., p. 262 106 -A palavra “bondade” se diz em italiano “amorevolezza” . Os teóricos salesianos mostram resistência em traduzi-la, por considerarem que ela teria seu sentido enfraquecido. Alguns a traduzem por ternura, bondade, o amor demonstrado e o afeto. 107 - O conceito de cidadania corresponde ao cumprimento dos deveres cívicos com a nação. Bosco discretamente insere esse objetivo que atendia à nova situação da Itália unificada. 95 diversos elementos para a formação integral de seus destinatários. Identifiquemos os principais. Um primeiro ponto é a mística do educador que, mais que o conhecimento de princípios, encarna na sua pessoa os valores dessa educação. Seria como rasgar os conteúdos teóricos e, ao se conviver com o educador, se pudesse reescrevê-los a partir de sua vida e atitudes. Sua figura física e humana deve ser a materialização dos mais profundos ideais educacionais. Apresenta-se como modelo que se impõe pela presença jovial, ativa e cativante. O Educador jamais fala de si: mostra-se. Convive. Está presente. Não fala de trabalho, trabalha. Não fala de esportes, praticaos. Não fala de honestidade, age com retidão. Não prega o amor, é amigo. Bosco procurou sintetizar todo esse modo de ser com a expressão: a educação é obra do coração. Em vários “sonhos” dramatizou o que entendia por verdadeiro e falso educador. No sonho dos dez diamantes108 apresenta as virtudes que devem ornar o educador salesiano. Descreve um jovem com um rico manto cravejado de dez diamantes. Cinco são visíveis na parte da frente do manto e cinco encontram-se escondidos na parte de trás. Nesta parábola-sonho mostra o educador com tal gama de virtudes que é modelo de perfeição e, sobretudo, de serviço. Na mesma parábola apresenta de novo esse jovem, agora com o manto puído, desbotado e com buracos nos lugares dos diamantes. É o modelo de como o educador não deve ser. Na parábola-sonho do caramanchão de rosas indica as dificuldades a que está submetido o verdadeiro educador. Quem olha de longe o vê num caminho de rosas, mas de perto sabe que pisa em espinhos. Somente os que acreditam na educação são capazes de trilhar esse caminho enquanto que os fracos e inconstantes desanimam nas primeiras dificuldades. A educação possui uma dimensão de aparentes rosas, mas é realizada na dureza de espinhos invisíveis. 108 - Os diamantes são valores humanos e cristãos que devem fazer parte dos valores do educador salesiano, com especial destaque para o trabalho e o amor. Cf. VIGANÓ, Egidio. Un Progetto Evangelico di Vita Attiva. Torino: Elle di Ci, 1982. 96 Na carta de Roma mostra um pátio onde os alunos brincam, enquanto seus educadores estão distantes conversando entre si sem lhes prestar atenção. Há alunos cheios de maldade não percebidos por seus educadores, porque distantes. Não basta que estejam num canto do pátio, deveriam estar inseridos no meio dos educandos como animadores, pois presença não se delega e sem ela não se educa. Um segundo ponto é visão otimista do adolescente e do jovem entendidos como capazes de receber a educação e assumi-la. O ser humano é apto para o bem sendo capaz de progredir de sua situação atual para uma melhor. Um bom educador consegue, ainda no pior jovem, descobrir um lado bom que possa ser o ponto de partida para a construção de uma vida virtuosa. O jovem é o protagonista de sua formação ao se apossar do conteúdo teórico da própria educação e aplicá-lo a si e aos seus pares. A educação é entendida não como ação passiva de receber, mas ativa de autoconstrução com o apoio dos educadores. É preciso incentivar a liderança de cada jovem, tornando-o participante de todas as atividades que envolvam sua formação. Pelo fato dos adolescentes gostarem de viver em grupo, deve-se favorecer e promover o associacionismo em que possam não só desenvolver seus gostos e habilidades, mas ainda ampliá-los. Numa comunidade educativa se deveria favorecer a formação de grupos religiosos, de teatro, música, esportes e o que mais fosse necessário de acordo com a índole de cada jovem. O ambiente de família é fundamental nessa educação para que o adolescente se sinta com liberdade de correr, brincar, rir e desenvolver suas potencialidades. A esse ambiente familiar deve-se somar um ambiente físico109 com amplos espaços para esportes e recreações que dê a sensação de liberdade. Passeios e excursões favorecem o estreitamento de relacionamento entre os jovens e com seus educadores. 109 - Esse ambiente deve ter harmonia, beleza, luz e claridade. Em síntese as obras devem ter largos pórticos, marcados pela música, pela alegria e pelos jogos, que permitam ao adolescente extravasar suas energias sendo um ambiente favorável para desenvolver sentimentos nobres, sentindo-se amado, respeitado e percebendo-se centro da atividade educativa. 97 A aplicação destes ingredientes deve ser vivida pelos educadores, jovens e funcionários110 pressupondo-se que todos conheçam e pratiquem este sistema. No pensamento de João Bosco cria-se um ambiente educativo onde tudo tem importância: construção, jardins, campos de esporte, iluminação, espaços vazados por vidro, cores alegres, recreios, salas de música e teatro. Todos que prestam serviço na obra, não importando a função, são entendidos como educadores pelas atitudes, posturas, palavras e exemplos. Finalmente, o diretor deve ser, antes de tudo, um pai com seu escritório aberto com acesso livre para os educandos,sendo o primeiro a chegar e o último a sair do pátio nos horários de recreio como presença qualificada neste espaço que é o termômetro de sua fidelidade ao projeto educativo, pois a presença não é um acessório da educação, mas sua essência mesma e chave do seu sucesso. O “fazer-se amar” é conquistado por uma presença amiga e significativa na vida dos educandos. A Educação salesiana ao ser elaborada o foi tendo por destinatário primeiro o adolescente. Estendia-se um pouco atendendo a pré-adolescentes e a rapazes111 egressos da adolescência. Outras idades não são contempladas na sua elaboração inicial. Estes são princípios pétreos para que uma educação seja chancelada como salesiana. 110 - João Bosco entendia que todos que estivessem num ambiente de educação salesiana eram educadores, não importando a função que exercessem, mesmo se distante dos alunos. Um funcionário que não tivesse atitudes de educador salesiano, não importando o profissionalismo da função que exercesse, deveria ser desligado da obra. 111 - No século XIX a educação dada a rapazes e moças era separada. Para atender às moças foram criadas as salesianas, tendo como co-fundadora com João Bosco, Maria Domingas Mazzarello, natural de uma pequena aldeia do norte da península itálica, com o nome de Mornese. 98 2.4 - O Transplante da Obra Salesiana para o Brasil - Sua missão civilizatória A revolução francesa, como divisor de águas do antigo regime para o novo mundo liberal, teve influencia não somente na Europa, mas também nas colônias da América. No século XIX o Brasil viverá significativas mudanças políticas. Deixará de ser colônia em 1808 com a vinda da família real de Portugal em fuga da invasão napoleônica às terras lusitanas, assumindo o status de Reino Unido a Portugal. Em 1822 se separará da metrópole se constituindo em império, ainda que de fato subordinado economicamente à Inglaterra. Após um breve período regencial seu segundo imperador governará por 49 anos, tendo seu poder enfraquecido com sucessivos desencontros que desestabilizam seu relacionamento com suas bases de sustentação política: o exército, a igreja e os grandes proprietários de terra. Em 1889 será proclamada a república. O poder político central estava nas mãos dos grandes proprietários de terras do Vale do Paraíba e, regionalmente, com os coronéis no nordeste e os caudilhos no sul. Uma frágil classe média de profissionais liberais, funcionários públicos, militares e clérigos estava presente com alguma visibilidade em algumas cidades maiores. A política nacional se polariza entre conservadores e liberais de fachada, oriundos das classes ricas e que defendiam, em última análise, seus interesses. As grandes massas populares, analfabetas e despolitizadas viviam alijadas das questões políticas. No campo econômico o Brasil terá no café seu principal produto de exportação, ainda que apoiado num modo de produção arcaico escravista em processo de extinção por um conjunto de leis implantadas por pressão da Inglaterra, necessitada de mercados consumidores de seus produtos industrializados. Surgiram algumas indústrias, que são porém, fragilizadas frente ao avanço tecnológico das indústrias inglesas, a uma política alfandegária complacente com o mercado internacional e à falta de capitais e de mão de obra qualificada. A Igreja implantada no Brasil possuía então características sui generis, fruto dum longo processo daquilo que foi definido por Eduardo Hoonaert como Espírito 99 português,112 nascido do catolicismo guerreiro gestado em Portugal na luta contra os mouros que lhes ameaçaram por mais de setecentos anos a fé e as terras. Esta luta de resistência por séculos permitiu que se configurasse quase que uma igreja nacional nas terras lusitanas. A Igreja do Brasil nasceu como um departamento do Estado Lusitano, em vista dos direitos do padroado conferidos pela Santa Sé à Coroa de Portugal. Durante todo o período colonial, e ainda nas primeiras décadas do século XIX, o chefe efetivo da Igreja aqui estabelecida era o monarca 113 lusitano, sucedido posteriormente pelo monarca do Brasil . De outro lado, devido à grande extensão de terras, há a organização de um catolicismo leigo em que predominavam irmandades e confrarias com suas normas, celebrações e hierarquias à margem da igreja oficial que, sem se opor a ela, se organizava, não raro, mesclando elementos sincréticos afro-ameríndios, dando vazão às necessidades espirituais do povo simples, com seus rezadores, beatas, sacristãos, rituais e folias com tênues laços com a igreja dos padres. Para compreender o catolicismo luso-brasileiro, é preciso se considerar sua obrigatoriedade114. Em Portugal não existe outra interpretação da realidade que não seja a cosmovisão cristã. Nossa colonização é feita por católicos portugueses com sua organização social, política e religiosa. A configuração do povo brasileiro só acontecerá depois de alguns séculos de ocupação, quando novas gerações vão tendo aqui o seu referencial de pátria. Como já afirmamos, a mentalidade portuguesa115 se configura a partir da invasão moura quando os peninsulares sistematicamente lutaram para expulsar os invasores 112 - Hoornaert utiliza o termo “espírito português” representando a mentalidade lusitana que fez da fé e do Estado uma unidade indissociável. Cf. HOORNAERT, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro 1550 – 1800. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 13 113 - Riolando AZZI, R. Os Salesianos no Brasil à luz da História. São Paulo: Salesiana, 1983, p.15 114 115 -.Cf. HOORNAERT, op. Cit., p. 13 - A formação da mentalidade portuguesa que é apresentada a seguir, ainda que assumida no presente texto, não possui unanimidade, porém. Não há dúvidas de que Hoorrnaert possui uma decodificação da história a partir de uma ótica da teologia da libertação que polariza, numa visão marxista, oprimidos e opressores. José Maria Paiva no livro “Colonização e Catequese” trabalha com o contexto da imagem de um “mundo indiviso” constituído pelo “orbis Christianus” que “é uma imagem cristã medieval do mundo”. A lógica que permeia o seu pensamento dá profundo significado 100 infiéis, sendo a catolicidade um dos elementos ideológicos fundamentais de resistência. A luta de Reconquista da península ibérica possui a tríplice finalidade: no campo religioso a expulsão dos infiéis, na ótica dos proprietários de terras e comerciantes a autonomia econômica e na ótica dos nobres, a independência política. Esses séculos de luta foram moldando o espírito português, que fundiu numa só idéia os conceitos de fé e nação, que se entranharam e se fundiram de forma orgânica e unitária na alma portuguesa, lembrando-nos que Portugal será o primeiro estado moderno mercantil a ser constituído. A partir disto, a expansão comercial é vista como uma missão religiosa e a conquista de terras é marcada pela cruz fincada no solo como sinal de posse e submissão daquelas terras e do seu povo ao rei e à Igreja, fundidos na mentalidade da época a uma unidade: o orbis christianus. A expansão comercial, indo além de sua materialidade, é vista como expressão desse catolicismo guerreiro que vê no domínio econômico sobre os infiéis uma expressão dessa guerra santa de um povo com uma visão messiânica e missionária da sua existência. Concretamente há invasão, imposição, submissão e expropriação, sendo essa mentalidade não só portuguesa, mas também espanhola, enquadrando-se na da lógica de “guerra santa contra os infiéis” como nos atesta Galeano ao citar Daniel Vidart no seu livro Ideología y Realidad de América: Antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os índios, sem intérprete, mas diante de um escrivão público, um extenso e à expansão portuguesa, fora da lógica do catolicismo guerreiro. “A missão aos infiéis – infiéis não por terem renegado a fé mas por não a terem conhecido ainda – era dever de todos (...). Havia urgência de anunciar a Palavra da Salvação, para que, crendo, fossem batizados e ingressassem no mundo verdadeiro, e não crendo, fossem castigados e escravizados. (...) Era a sua mesma sobrevivência que impunha a conquista, pela força das armas, em guerra santa, guerra justa, para declarar aos índios o seu direito de se tornarem cristãos, de se salvarem. Os direitos humanos do orbis christianus eram, com efeito, direitos esses de ser cristão, direitos estes que ninguém poderia restringir, mas direitos estes, também que ninguém podia recusar. Daí o compelle illos intrare. Não se perguntava, a esta época, se os ouvintes tinham condições de entender o que se passava, tão evidente era a necessidade da cristianização, tão evidente a naturalidade da sobrenatureza. O importante era a execução aparente, legal, pública, da anexação dos novos territórios, incluindo evidentemente o batismo dos seus habitantes. A ação externa significava (era sinal de) a conversão: a realidade se tornava outra, ainda que não se percebesse de imediato toda a sua conseqüência. Uma vez batizados, os atos que contradissessem a fé cristã expressariam tão-somente distorção individual da vontade, e não mais, deformidade total da realidade, deformidade coletiva. Disposições especiais se ativariam para sanar a situação individual, mas a ordem estaria preservada. Salvava-se o orbe cristão, preservava-se sua estrutura, permanecia o equilíbrio”. Cf. PAIVA, op. cit., p. 21-23. Ambos autores partem de interpretações diferenciadas da colonização portuguesa. Hoornaet como uma luta de resistência que teria forjado e fundido no homem português uma mentalidade de resistência gerando o catolicismo guerreiro; Paiva, como uma forma de manutenção de uma cosmovisão teocêntrica unificadora medieval. Apesar, porém, de interpretações divergentes quanto à origem da mentalidade do colonizador do Brasil, ambos concluem que a cristandade e tudo aquilo que ela significava era uma verdade a ser imposta pela pregação e pela espada. Subjugar-se a Deus era subjugar-se a Portugal e subjugar-se a Portugal era subjugar-se a Deus. 101 retórico Requerimiento que os exortava a se converterem à santa fé católica: “Se não o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos 116 farei todos os males e danos que puder... ” Frente a tão cáusticos e explícitos propósitos deste Requerimiento, as palavras que Dom João III escreve ao primeiro governador geral do Brasil soam como um enlevo místico de um evangelizador zeloso pela salvação das almas, mas que efetivamente participa do mesmo processo e da mesma lógica de expropriação do gentio: “A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se convertesse à nossa Santa fé Católica”117. A ocupação territorial é marcada por sinais religiosos como ermidas, capelas e cruzes, sendo o batismo não só um sinal de conversão, mas de integração ao Reino de Portugal. Acolher a fé é integrar-se no Reino. Padre Antônio Viera bem define essa missão ao afirmar: Todos os reis são de Deus, mas os outros reis são de Deus feitos pelos homens: o rei de Portugal é de Deus feito por Deus e por isso mais propriamente seu. [...] os outros homens por instituição divina tem a obrigação de ser católicos: o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico. Os outros cristãos têm obrigação de crer a fé. O português 118 tem a obrigação de crer e, a mais, de a propagar . A expansão religiosa e comercial é a expressão de um único ato que impõe aos infiéis a fé e a hegemonia portuguesa, daí a devoção a muitos santos guerreiros que pugnam pelas causas de Deus e de Portugal. Ocupam-se terras e dominam-se povos para Deus e para o rei. Na colonização predominou essa mentalidade nas primeiras populações. A religião organizava e mantinha a vida social e ao mesmo tempo era mantida pelo Estado 116 - GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 25. 117 - Ibidem. p. 32 118 - Apud HOORNAERT, op. cit,. p. 35. 102 justificando seu poder. Hoornaert cita, como exemplo, o Triunfo Eucarístico celebrado em 1733 na cidade de Ouro Preto quando o governo português, identificando-se com a própria religião, justificava a forte repressão portuguesa aos moradores da Vila: Nenhuma comunidade colonial brasileira sofreu repressão tão rigorosa como a comunidade mineira [...]. a hóstia sagrada carregada entre as mãos do sacerdote e cercada de perto pelas autoridades repressivas significou simbolicamente o triunfo da ordem colonial. Após ter mostrado o braço forte em violências e castigos, o governo mostrou sua piedade e união com Deus. O povo tinha que saber guardar o seu devido lugar na sociedade e respeitar a força consagrada por Deus, através de ordens e hierarquias tão manifestadamente apresentadas no caminhar da procissão em confrarias, irmandades, ordens terceiras divididas segundo as posições sociais e raciais, pois “nas procissões as cores não se confundiam”. A procissão toda ensinava: cada qual no seu devido lugar, respeitando as leis impostas pelos 119 fortes e poderosos, pois o “triunfo” é deles . Na mentalidade portuguesa a sociedade se divide em ordens sociais por vontade de Deus, criando-se no Brasil uma postura subserviente frente aos representantes do poder temporal e espiritual, tidos como representantes diretos de Deus. Esta submissão ao divino não impediu que se vivesse uma dupla moral, rígida e exigente nos discursos, permissiva, porém, no cotidiano. Em contrapartida, no século XIX, nos ambientes do clero culto, sobretudo o paulistano, há forte influência dos filósofos iluministas. Substituem a “iluminatio” agostiniana pelas luzes da razão. Liberdade e realização nesta terra é o escopo desta vida. Há o conceito de Deus como origem do movimento cósmico cabendo à racionalidade humana, e não à providência divina, a organização deste mundo, ficando a cargo da religião ser apenas fonte de princípios morais. Essa mentalidade impregna os seminários dos beneditinos e dos franciscanos do Rio de Janeiro e de Olinda em consonância com as tendências ilustradas da Europa. Os padres ilustrados, longe de ser místicos, abraçavam as realidades terrestres sendo fazendeiros, professores, homens de negócios e políticos120. Eram intelectuais 119 - HOORNAERT, op. cit., p. 50. 120 seq. Cf. WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no Século XIX. São Paulo: Ática, 1987, p. 37 et 103 deístas vendo nas práticas do catolicismo tradicional, sobretudo o popular, formas de superstições e de fetichismo ou politeísmo primitivo, enquanto que para o catolicismo tradicional, o deísmo iluminista não passava de irreligiosidade e ateísmo121. O quadro apresentado mostra que a situação da Igreja do Brasil era preocupante, sobretudo se se considerasse as reformas exigidas pelo concílio de Trento com suas propostas rigoristas para se constituir uma igreja reformada. O Catolicismo que já vivera um rude golpe com a perda do seu poder temporal na península itálica, se via fragilizado para enfrentar os muitos problemas do Brasil: a divisão do seu poder com o imperador através do padroado, a existência de uma religiosidade popular marginal e sincrética, um clero iluminista e deísta, a decadência moral das ordens religiosas tradicionais e os desregramentos do clero diocesano. Pio IX no seu longo pontificado122 enfrentara com firmeza esses problemas procurando criar um episcopado alinhado com os valores do tridentino apoiando as ordens afinadas com seus ideais. Através da convocação do Concílio Vaticano I123 procura fortalecer a fé católica, na só reafirmando as doutrinas do Concílio de Trento, mas atacando as tendências modernas do racionalismo, liberalismo e materialismo. Um dos pontos mais controversos dentro e fora da igreja será a proclamação do dogma da infalibilidade do papa nos campos da fé e da moral quando fala “ex-cathedra”. Seu sucessor, Leão XIII124, manteve essa política de fortalecimento do poder do Vaticano e da centralidade do comando da Igreja na figura do papa e da cúria romana. A situação do clero do Brasil preocupava também ao imperador Pedro II. Em 1855 o ministro Nabuco havia proibido por decreto que as antigas ordens recebessem noviços e impedira que novas ordens ingressassem no Brasil, esperando realizar uma concordada com a Santa Sé através da qual a mesma realizaria a reforma das ordens aqui existentes. 121 - Ibidem, p. 39-40. 122 - Pontificado de 1846-1878 123 - O concilio Vaticano I durou de 8 de dezembro de 1869 a 18 de julho de 1870, tendo sido interrompido pela eclosão da guerra franco-prussiana. 124 - Pontificado de 1878 a 1903. 104 Na mente de Dom Pedro II, os frades e os monges, vivendo de seus patrimônios e dedicados especialmente à vida contemplativa, constituíam um grupo de pessoas inúteis para a sociedade. Daí seu desinteresse em prover a reforma das antigas ordens. Em seu diário particular, o imperador fazia seguinte observação: “Concordo com os meus ministros que acham as 125 ordens monásticas aqui irrecuperáveis” . Padre Lasanha126, um dos responsáveis por implantar a ordem salesiana no Brasil, testemunhava em carta datada de sete de agosto de 1883: Lembre-se, o caríssimo, de que o clero está aqui numa situação que causa espanto; e as velhas ordens dos carmelitas, beneditinos, mercedários e franciscanos estão para extinguir-se, o que, aliás, é uma fortuna, porque eles não têm mais o espírito religioso. Nadam na abundância e na devassidão, com rendas fabulosas, com milhares de escravos (que horror!) 127 às suas ordens. . Duas coisas preocupam o império a respeito do clero: a falta de observância do celibato e as ideais liberais que ameaçam a ordem social escravocrata tradicional. O imperador percebe ser premente a reforma do clero nos costumes, na mentalidade e na formação. No Brasil a reforma da igreja128 se inicia com os lazaristas129, que assumem a direção dos seminários do Caraça, Campo Belo e Mariana, que serão celeiros de 125 - AZZI, 1983. p. 59-60. 126 - Dom Luigi Lasagna nasceu em Montemagno (Asti) em Monteferrato, Itália, no dia 4 de março de 1850. Foi aluno de Dom Bosco no Oratório São Francisco de Sales. Torna-se salesiano e missionário no Uruguai. Firme nas suas posições, fidelíssimo a Dom Bosco, homem de visão ampla possui presença destacada no Uruguai onde consolida a presença salesiana. Atua com grande eficiência no Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina. Feito bispo é homem de ampla visão para o futuro dos salesianos no Brasil. No dia 6 de novembro de 1895 sua vida é ceifada em acidente ferroviário próximo da estação ferroviária de Mariano Procópio, Juiz de Fora. Sua morte possui eco nos principais jornais do Brasil e da Europa, representando um rude golpe na organização dos salesianos no Brasil. Cf. FERREIRA, Antônio da Silva. Epistolário, Mons. Luigi Lasagna. Roma: LAS, 199, p. 5-41. 127 - AZZI, 1983, p. 60. 128 Pio IX percebera a fragilidade do poder papal quando a autoridade do sumo pontífice não era referencial para muitos segmentos da igreja. Iniciara, então, o projeto de fortalecimento da igreja nomeando bispos alinhados com o papado que, por sua parte, formavam um clero com a mesma mentalidade, preferencialmente formado em Roma. 129 Congregação da Missão (Congregatio Missionis, CM), Lazaristas ou ainda Padres e Irmãos Vicentinos, é uma congregação religiosa masculina católica fundada em Paris, no dia 17 de abril de 1625, por São Vicente de Paulo (1581-1660). A origem remonta às missões junto aos pobres realizadas por Vicente de Paulo e cinco outros padres. Em 1624 a comunidade religiosa instalou-se no Collège des Bons Enfants, em Paris, França. Receberam aprovação episcopal em 1626. Em 1634, 105 sacerdotes alinhados com os valores ultramontanos e dos quais sairão reitores de vários seminários e bispos de grande destaque na reforma da igreja do Brasil 130 como Dom Luís Antônio dos Santos, bispo de Fortaleza, Dom Antonio dos Santos, primeiro bispo de Diamantina e Dom Pedro Maria Lacerda que, em 1861 tornou-se arcebispo do Rio de Janeiro, sendo responsável pela vinda dos salesianos ao Brasil131. Dom Lacerda será um dos grandes baluartes da restauração da igreja do Brasil. Trouxera os lazaristas franceses para o seminário diocesano do Rio de Janeiro, fortalecera a presença dos capuchinhos italianos do Morro do Castelo tidos como fiéis observantes dos valores da igreja reformada e instalou os jesuítas em Nova Friburgo no final do império. Mesmo antes da chegada dos salesianos, o nome de Dom Bosco era exaltado pela imprensa católica que destacava suas grandes obras na Europa. Sua viagem à França em 1883 e a calorosa acolhida pelos parisienses teve grande repercussão na imprensa católica, enquanto que na imprensa liberal percebia-se que a nova congregação que se implantaria no Rio de Janeiro seria mais um reforço à afirmação do movimento dos bispos reformadores, com sua marca ultramontana e antiliberal132. De fato, a vinda dos salesianos para o Brasil fazia parte de uma política gestada por Pio IX de retomada do poder central de Roma levada a cabo por bispos reformadores de todo o mundo. Segundo Roger Bastide133 alguns elementos marcaram esse processo de romanização: a afirmação de uma igreja institucional através da bula Salvatoris Nostri do Papa Urbano VIII a Congregação teve aprovação pontifícia.Seus membros são conhecidos como padres e irmãos vicentinos ou lazaristas porque a primeira casa da Congregação, em Paris, se chamava «Casa de São Lázaro». Cf. CONGREGAÇÃO DA MISSÃO. Padres Vicentinos. Disponível em: <http://ssvpportugal.org/component/content/article/81/760-congregacao-da-missao-padres-vicentinos.html>. Acesso em: 10 maio 2011. 130 - Cf. WERNET, op. cit., p. 97. 131 - Dom Bosco quisera que sua congregação fosse missionária e já havia enviado algumas expedições à América, especialmente à Patagônia. O Brasil, porém, não fazia parte de seus projetos imediatos. A insistência, porém, de Dom Lacerda, inclusive pessoalmente com Dom Bosco fez com que este antecipasse a vinda dos salesianos ao Brasil. 132 133 - AZZI, 1983, p. 23 - Roger Bastide, sociólogo francês, integrou a missão de professores europeus Universidade de São Paulo. 106 hierárquica que se impunha a todas as formas de catolicismo popular; o controle da doutrina, das instituições, do clero e mesmo do laicato; a dependência da igreja brasileira a um clero estrangeiro europeu, principalmente de ordens religiosas, para realizar a transição do catolicismo colonial para um catolicismo mais universalista, com absoluta rigidez doutrinária e moral; a imposição das decisões de Roma acima dos interesses locais e, finalmente, a integração da igreja no plano institucional e ideológico nas estruturas altamente centralizadas e centralizadoras da cúria Roma.134. João Bosco,, como assinalamos anteriormente, professara incondicional fidelidade ao papado e imbuíra seus discípulos deste sentimento. Pio IX era considerado o insigne benfeitor da congregação e a quem, seja em nível pessoal, seja em nível institucional, os salesianos professavam incondicional fidelidade nos mínimos detalhes, como ensinara Dom Bosco. Dom Lasagna, a guisa de exemplo, ao chegar à América entendia que essa fidelidade estava até em se manter a pronúncia do latim à moda romana e não à moda espanhola, como era usado na América. Só muitos anos mais tarde se entenderá que essa “fidelidade” em coisas acidentais criava obstáculo para a convivência com os demais segmentos da igreja e da intelectualidade laica. Entende-se, então, que apesar do governo imperial haver se posicionado contra o ingresso de ordens religiosas no Brasil, os salesianos são aceitos pelo imperador Pedro II, tendo por princípio que as portas do império estariam abertas para ordens estrangeiras que, tendo lisura moral, se dedicassem a atividades missionárias e à educação da juventude135. Dom Lasagna narra a boa acolhida do imperador Pedro II em audiência concedida a pedido de dom Lacerda: O próprio imperador D. Pedro II, monarca sábio e ativíssimo como nenhum, dignou-se admitir-me em audiência particular no seu palácio de Petrópolis, no dia de Pentecostes, e se entreteve comigo em familiar conversação, a informar-se minuciosamente sobre a origem dos salesianos, sobre o objetivo de sua missão na Igreja de Deus, sobre o método de ensino e de educação da juventude, sobre os meios com que se conseguem sustentar as suas obras de beneficência, sobre os resultados obtidos e ainda sobre muitas outras coisas. 134 - Cf. AZZI, 1983, p 27 135 - Ibidem, p. 61. 107 Depois de bem informado acerca de nossos oratórios, colégios, escolas profissionais, colônias agrícolas, missões na Patagônia nos Pampas, sumamente satisfeito, exprimiu vivo desejo de ver transplantado a nossa instituição para o seu vasto império, prometendo-nos sua augusta proteção, sobre os resultados obtidos e ainda sobre muitas outras coisas·. O conde d’Eu e a Princesa Isabel manifestaram imediata simpatia com os salesianos querendo já de inicio confiar-lhes uma obra social de amparo à infância e, da parte do governo da província do Rio de Janeiro, de inicio já obtinham subsídios financeiros para manutenção de quarenta crianças pobres136. Da parte da imprensa liberal as hostilidades não foram poucas, pois entendiam que o Brasil sempre estivera sob o poder do clero e que era necessário diminuir essa influência, já que os religiosos estrangeiros que chegavam apenas reforçavam o poder de Roma na política nacional. O jornal A Folha Nova tecia ácidas criticas aos estrangeiros e aos “novos jesuítas”, vendo neles o fortalecimento do clericalismo e do jesuitismo, que consolidava o processo de reforma da igreja católica do Brasil que, nada mais era do que configurá-la ao modelo romano. O estilo salesiano de sacerdotes modernos apresenta-se como um perigo pela sua simpatia como meio de cativar o povo. Implantada a república, os salesianos souberam se adaptar aos novos tempos mantendo um fecundo diálogo com o governo, não criando atritos, apesar do predomínio de idéias liberais e positivistas nas elites. Tinham consciência de serem padres modernos que respondiam às necessidades de progresso do Brasil. Apesar disso, os liberais continuavam a vê-los como inimigos perigosos por não se enquadrarem nos esquemas dos velhos sacerdotes e, com sua simpatia e estilo extrovertido, serem acolhidos com grande simpatia pelos filhos do povo. A modernidade dos salesianos foi certamente uma chave que lhes abriu a porta à sociedade brasileira, em vias e abandonar um padrão arcaico, patriarcal e escravocrata, rumo a uma concepção social mais burguesa, 137 progressista e democrática . 136 - Cf. AZZI, Riolando. A Obra de Dom Bosco no Brasil. Barbacena: Centro de Documentação e Pesquisa, 2000. v. I. p. 101-105. 137 - Ibidem, p. 75. 108 Esperados pela igreja, acolhidos pelo governo imperial e rejeitados pelos liberais e anticlericais, os primeiros salesianos chegaram ao Brasil trazendo uma proposta educativo-pedagógica nova nos seus métodos. Por outro lado perscrutavam com olhar crítico a realidade religiosa, social e humana da cidade onde deveriam atuar. Era um olhar europeu para a América, de homens do berço de uma civilização clássica para um lugar de pessoas rudes. Mesmo o catolicismo praticado nestas plagas parecia-lhes distorcido e desfigurado, com práticas estranhas para pessoas habituadas às rígidas rubricas do ritual romano. Poder-se-ia falar de um “país atrasado” como o já fizeram alguns escritores locais. Euclides da Cunha alguns anos mais tarde, já no período republicano, expressara nos Sertões o conceito de um Brasil arcaico, atrasado e interiorano e o mesmo fizera Monteiro Lobato ao descrever o caipira vale-paraibano. Essas visões do homem brasileiro eram também os da Europa, acrescidas ainda com a idéia de ser um povo devasso. São abundantes no centro histórico salesiano de Roma as cartas trocadas pelos primeiros missionários com seus superiores. Se de inicio se mostram deslumbrados com as belezas naturais da Baia da Guanabara, a seguir descrevem a miséria moral e material da população. O Rio é descrito pelo padre Tiago Costamagna a Dom Bosco em carta datada de 14 de dezembro de 1877, numa parada em direção a Argentina, como “covil de Satanás, mísera cidade, a qual muito mais que pela febre amarela, é atribulada pela febre negra da irreligião e da imoralidade”138. O Editorial do jornal O Apóstolo do dia 10 de janeiro de 1878 no Rio de Janeiro assim se expressava: Se há cidade em a qual maiores progressos tenha feito a devassidão dos costumes, o vício e o crime, com certeza é esta Babilônia a que se deu o nome de Rio de Janeiro. As messalinas, além de viverem em completa ociosidade, debruçadas nas janelas em quase completa nudez, com a lascívia provocadora estampada no rosto desbotado pela devassidão, saem e percorrem as ruas da cidade, umas de carro, outras a pé, cada qual mais indecente, e andam na maior ostentação de um luxo escandaloso, envergonhando os homens honestos, escandalizando as famílias, dando ao 139 estrangeiro o triste certificado de nossa desmoralização . 138 - AZZI, Riolando. Os Salesianos no Rio de Janeiro Vol. I 1875-1884 – Os Primórdios da Obra Salesiana, São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1982. v. I., p. 37. 139 - Ibidem, p. 38. 109 A cidade é ainda apresentada como imunda e desorganizada não só por estrangeiros, mas também por brasileiros140. Tal situação mostrava a uma congregação de educadores o quanto urgia atender a essa população. Apreender essa percepção dos europeus é fundamental para se entender suas posturas educacionais frente ao nosso povo. A grande missão que lhes cabe é civilizatória que, como europeus, se entendem portadores de uma cultura superior que deve ser passada para um povo bárbaro. Como educadores devem passar o saber para ignorantes. Como sacerdotes devem converter a pecadores devassos. Como católicos devem restaurar a verdadeira religião fiel ao papa. Da nova terra nada têm a receber e tudo tem a dar. Transplantar, literalmente, a Europa, com seus costumes, mentalidade, hábitos e práticas é um ato de caridade cristã e civilizatório. Daí, os colégios se fecharem como ilhas para o mundo “lá fora” e se constituírem “cidades” perfeitas de sabedoria, ciência, saber e conhecimento. Ignora-se a realidade dos autóctones que serão educados quando forem europeizados e serão evangelizados quando forem romanizados. Alguns elementos são fundamentais para se entender a mentalidade destes religiosos que estavam iniciando sua inserção na história da América. A figura de Dom Bosco, ainda vivo, estava envolta numa imensa mística por seus seguidores, sendo amado, respeitado e imitado. O conceito de fidelidade ao fundador era tal que seus primeiros seguidores não possuíam sequer preocupações de aculturação à nova realidade. O transplante da ordem para a América buscava ser fiel ao que se vivia na Europa. Em Niterói mantinha-se o horário da Itália em contraponto com o clima tropical do Brasil. O cardápio servido nas refeições era o mesmo de Turim, incluindo o vinho e o pão. O banho diário foi banido mesmo sob o calor dos trópicos, mesmo após à prática de esportes como o futebol, quando para manter o decoro, os clérigos jogavam de batina e os irmãos leigos com sua roupa civil, quando muito tirando o paletó. Essa roupa iria acompanhá-los pelo dia afora, mesmo após dois momentos de práticas esportivas e de corridas pelos recreios em meio à meninada sob os quarenta graus do entorno da Baía de Guanabara ou de qualquer outro ponto 140 - Cf. FREIRE, Gilberto Vida Social no Brasil nos meados do século XIX. Rio de Janeiro: Artenova, 1977. 110 dos trópicos. Fidelidade... Tradição... Transplante... Com a morte de Dom Bosco em 1888 seu primeiro sucessor Miguel Rua consolidou a congregação tendo por idéia central a fidelidade incondicional aos caminhos traçados pelo fundador. No Brasil o engenheiro e arquiteto italiano Delpiano141, como salesiano, foi responsável por grandes construções no Rio de Janeiro, São Paulo e Nordeste, que mantiveram a mesma estrutura arquitetônica da Europa. As escolas e oratórios possuem um pátio142 interno rodeado por pórticos com imensas colunas com um bom espaço para recreações nos dias de chuva e um pátio central para jogos. Essas estruturas arquitetônicas se possuem em si a praticidade para a assistência dos educadores dentro dos padrões da pedagogia salesiana, ao mesmo tempo, gerando um espaço acolhedor e envolvente, se fecham sobre si mesmas delimitando com clareza o “lá de fora” do “aqui de dentro”. Os educadores procuram, na medida do possível, passar uma cultura mais refinada e, além das matérias exigidas pelo país, ensinam o latim, o italiano143, o gregoriano, a literatura internacional e a história da Itália. O Colégio possui tudo a oferecer e pouco a receber, sendo passada uma mentalidade da Europa que se compreende como berço da civilização e da cultura. O colégio é uma ilha de progresso e civilização no meio das populações de rudes fazendeiros do Vale do Paraíba e de Minas. 141 - Domingos Delpiano arquiteto salesiano cujo nome está ligado à história do Colégio Santa Rosa. Fez parte do primeiro grupo de salesianos que chegou a Niterói em 1883. Tinha 38 anos. Veio da casa salesiana de Villa Colón, Montevidéu, Uruguai. Como arquiteto, fez o projeto para o Monumento de Nossa Senhora Auxiliadora, inaugurado na passagem do século e, posteriormente, também o projeto para a construção do Santuário de Maria Auxiliadora. Dedicou-se muito à construção dos nossos colégios e principalmente das igrejas, tendo bom gosto, afinando seu estilo pelas obras do célebre arquiteto francês Jean Pierre Bossan, com quem estudou em Paris e de quem recebeu forte influência. Obras de Delpiano: No Uruguai, de onde veio, o Santuário Nacional de Maria Auxiliadora, Villa Colón, Montevidéu. No Brasil, o Monumento de Nossa Senhora Auxiliadora, em Niterói, os santuários de Nossa Senhora Auxiliadora: de Niterói (RJ), do Bom Retiro (SP) e de Jaboatão (PE) e o santuário do Sagrado Coração, em Recife (PE). Em São Paulo, obras como: a torre do Liceu Coração de Jesus, o Colégio Santa Inês, o Liceu de Artes e Ofícios Nossa Senhora Auxiliadora (Campinas), o Colégio São Joaquim de Lorena, o primeiro teatro do Liceu de São Paulo, a Vila Dom Bosco (parte primitiva), em Campos do Jordão, o projeto do Instituto Dom Bosco, no Bom Retiro, e o jazigo da Congregação Salesiana, no Cemitério do Santíssimo, que foi inaugurado com o seu sepultamento em 09 de setembro de 1920 – Cf. SLIDE5HARE. Monumento. Disponível em: <http://www.slideshare.net/thiagopetra/monumento>. Acesso em: 23. abr. 2011. . 142 - Em italiano “cortile”. 143 - Ainda hoje em Lorena encontram-se velhos ex-alunos fluentes no italiano e francês que ainda mantêm conversações nesses idiomas entre si e com, os atuais salesianos. 111 Os salesianos se inseriram inicialmente em três cidades: Niterói, São Paulo e Lorena. Essas fundações, implantadas num breve espaço de tempo,144 tiveram características próprias em cada uma dessas cidades. Em nível estratégico Niterói representou a porta de contato com o resto do Brasil, através do porto do Rio de Janeiro e da capital da República. São Paulo teve sua importância como região onde mais intensamente se incrementava a industrialização da república e, finalmente, Lorena como ponto estratégico, por estar entre São Paulo e Rio de Janeiro e por ser uma região onde os barões do café, ainda que decadentes, controlavam o governo central juntamente com a oligarquia mineira. Em cada cidade se viveram situações diferenciadas. A chegada a Niterói foi difícil. Se de um lado existia o apoio incondicional da igreja e do império, de outro as hostilidades dos liberais e dos anticlericais não podiam ser ignoradas, sobretudo porque usando da imprensa atacaram sem tréguas os “novos jesuítas”. Além da falta de recursos, os salesianos iniciaram com poucos alunos, só aos poucos conquistando a confiança da população. A implantação da obra nesta cidade foi heróica, pela resistência dos primeiros salesianos às hostilidades que foram de tal monta que mesmo o bispo Dom Lacerda havia proposto que desistissem da empreitada de ficar no Brasil. Assim os primeiros tempos no Santa Rosa (Niterói) não foram fáceis. Basta dizer que o Oratório Festivo não se manteve, o diretor recebeu um forte soco na cabeça, quando num bonde um bando de moleques chegou a gritar para Pereto: ‘mata jesuíta’. Até no carnaval o padre diretor foi ridicularizado num boneco, como conta o padre Marcigaglia: ‘Era a representação fiel do padre Borghino: baixo, gordo, aquela fisionomia, aquele jeito dele! E o povo gritava: olha o padre Miguel! Dê nele seu moço! Mata! O bispo Dom Lacerda chegou a desanimar: Vejo que não mereço ter os salesianos na minha diocese. Não tenho ânimo para vê-los sofrer assim. Podeis retirar145 vos... A segunda casa fundada na cidade de São Paulo vive uma situação bem diferente. É querida pela nascente indústria paulistana que precisa com urgência de mão de 144 - As três primeiras fundações seguiram a seguinte ordem: 1883 – Niterói; 1885 – São Paulo; 1890 – Lorena. 145 - EVANGELISTA, José Geraldo. História do Colégio São Joaquim. 1890-1940. São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1991, p. 52. 112 obra qualificada para a indústria. A majestade do prédio do Liceu de Artes e Oficio edificado no bairro dos Campos Elíseos ainda hoje impressiona por sua grandeza com sua majestosa igreja riquíssima em detalhes146 construída em estilo romano e com seus majestosos pórticos, salas, amplos ambientes, teatro e campos esportivos. Nela se formaram muitas gerações de jovens absorvidos pelas indústrias paulistas, contribuindo na formação de mão de obra no início da industrialização da cidade. A localização da cidade de Lorena a meio caminho entre Rio de Janeiro e São Paulo com acesso à região das Minas Gerais pela Antiga Estrada Real é estratégica. Some-se a isso o apoio incondicional dado pelo Conde Moreira Lima 147, que deu suporte financeiro à implantação da obra salesiana na cidade. Lorena tornar-se-á a sede de governo da congregação e local de formação dos novos salesianos e centro de irradiação da presença salesiana para o Brasil. Na cidade abre-se o internato para filhos de fazendeiros, a escola agrícola, o noviciado e o curso de filosofia para seminaristas. A Congregação Salesiana com sua presença no Brasil dava suporte ao capitalismo industrial em formação, contribuía na sustentabilidade política da República Velha promovendo a paz social enquanto dava oportunidade de empregabilidade às 146 - Até 1922 a torre da igreja do Liceu coração de Jesus estava entre as três mais altas edificações da cidade de São Paulo. Sua nave central é uma cópia da basílica de Santa Maria Maior de Roma. O altar é feito de mármore de carrara. É ornamentada por quarenta lustres de cristal da Boêmia. 147 - Joaquim José Moreira Lima – nasceu em Lorena no dia 11 de junho de 1842, filho do negociante e capitalista Joaquim José Moreira Lima, natural de Portugal e de Carlota Leopoldina de Castro Lima, filha do capitão-mor de Lorena, Manoel Pereira de Castro e Ana Maria de São José. Foi comerciante, agente dos correios, fazendeiro, político, titular do império, mecenas e capitalista. Na Guarda Nacional de Lorena obteve as patentes de Alferes Secretário e Major Ajudante de Ordens. Fundador da Santa Casa de Misericórdia de Lorena e seu provedor por mais de cinqüenta anos. Um dos fundadores e diretor do Engenho Central de Lorena, inaugurado em 1884. Fazendeiro, foi um dos maiores senhores de terras e de escravos, proprietário de 52 fazendas de café na região valeparaibana. Suas propriedades agrícolas espalhavam-se pelos municípios de Caçapava, Taubaté, Pindamonhangaba, Campos do Jordão, Lorena, Cachoeira Paulista, Lavrinhas, Cruzeiro, Silveiras, Areias, São José do Barreiro, Itajubá, Resende. Benemérito lorenense, contribuiu com avultadas quantias para a reforma da igreja matriz, e para a construção do santuário São Benedito, das igrejas do Rosário e de São Miguel das Almas do Asilo e da Casa dos pobres de São José. Para as obras de reforma e ampliação da velha igreja matriz de Nossa Senhora da Piedade contratou os serviços do célebre arquiteto e engenheiro Francisco de Paula Ramos de Azevedo, contribuindo com mais de trinta contos de réis, além de superintender as obras e adiantar todo o dinheiro necessário para sua continuidade. Trouxe os salesianos para Lorena, auxiliando-os na construção do Colégio São Joaquim. Presidiu a Conferência São Vicente de Paulo de 1912 até sua morte. Cf. PASIN, José Luiz. Os Barões do Café. Aparecida: Vale Livros, 2001, p. 70. 113 classes populares e com isso favorecia a estabilidade dos detentores do poder e dos meios de produção e fortalecia a igreja por estarem inseridos no processo de romanização. A implantação do modo de produção industrial se fortalecia e se estabilizava na medida em que a mão de obra se tornava especializada e eficiente no movimento da máquina industrial e, qualificada, recebia da indústria, em contrapartida, a remuneração que lhe garantia, na vida pessoal, dignidade, e na vida social, estabilidade. É uma contribuição significativa dos salesianos neste momento histórico. Não se pode perder de vista nesta abordagem que, por trás da organização burocrática e administrativa de uma instituição religiosa, há homens que através de uma visão de fé empenham suas vidas num projeto religioso que dá sentido às suas vidas numa dimensão humanista e espiritual. Suas ações e sentimentos individuais e subjetivos, porém, não deixam de estar a serviço de macros sistemas econômico, político e religioso Durante todo o século XX, os salesianos se expandirão por todo o Brasil, atingindo inclusive a tribos indígenas do Mato Grosso e região amazônica, em inumeráveis frentes de trabalho, sempre voltadas para a juventude. O Ensino superior será um novo campo que se descortinará em meio a grandes incertezas, sobretudo a partir da segunda metade do século. 114 2.4.1 - Os 1900 – Os salesianos na sociedade brasileira num tempo de conflitos A Sociedade São Francisco de Sales teve sua origem no conturbado século XIX. Implantada na Itália, iniciou sua expansão por várias partes do mundo. Suas ações foram quase sempre reconhecidas de imediato como beneméritas pelos resultados sociais obtidos juntos de adolescentes e jovens, atraindo para si não só a simpatia, mas generosa ajuda financeira de vários segmentos sociais e políticos. Muitas vezes se confrontaram com condições adversas que dificultaram sua ação como educadores e religiosos da Igreja. É importante traçar uma visão geral das grandes questões que envolviam a igreja, a educação, a política e a economia do Brasil nas primeiras décadas do século XX. Os grandes colégios e obras sociais serão implantados em meio a essa realidade com a qual devem interagir. No Brasil o regime imperial que os recebera cai seis anos após sua chegada. Instalam-se governos de tendência liberal, positivista e anticlerical. Deparam-se com uma Igreja fragmentada com desmandos morais e sem organização e lideranças significativas. A república recém implantada vive os primeiros embates sociais entre o operariado e a classe patronal. É uma jovem república que busca construir sua identidade quando intelectuais, sobretudo a partir da década de 1920, questionam a educação católica no lastro liberal da Europa desde a Revolução Francesa. Logo de início os salesianos recebem apoio daquela parcela da igreja comprometida com a restauração que, internamente, lutava para qualificar o clero moral e intelectualmente, e, externamente, buscava consolidar de forma inequívoca a autoridade papal frente aos desafios de uma religiosidade popular leiga e autônoma, de um catolicismo tradicional barroco, formalista e laxo, procurando impor o prestígio da religião ao poder político por meio da demonstração da força do catolicismo. Neste contexto, conta-se com a fidelidade incondicional desses educadores frente às muitas tensões entre o Estado e a Igreja e que não lhes eram estranhas porque, de certo modo, as tinham vivido na península itálica. Nas cinco primeiras décadas assiste-se ao surgimento do regime republicano, à decadência das oligarquias rurais, à emergência de uma burguesia industrial, aos movimentos sindicais operários, à luta por uma educação laica e positivista, às grandes discussões sobre 115 a educação e à luta da igreja para impor seu prestigio. Como estrangeiros era-lhes difícil entender os mecanismos e a mentalidade cultural que permeavam a política e a vida do povo. Como sacerdotes católicos recém chegados não tinham influência nos embates e confrontos da Igreja com os poderes políticos laicos e positivistas, nem com parte do clero católico, em parte relapso e em parte iluminista. Como educadores, porém, tinham muito a oferecer: ao Estado, o atendimento e a promoção de grupos de adolescentes marginalizados ou em via de marginalização, ao povo a educação, a formação e a profissionalização de seus filhos; à Igreja, o compromisso de aliados incondicionais da restauração nas dimensões da fé, da moral e da ortodoxia. A rapidez com que se expandiram nos primeiros anos pode ser materialmente visualizada pela monumentalidade dos prédios construídos por uma congregação recém chegada à América, sinalizando um acolhimento por parte do Estado, da Igreja, das elites e do povo. O Brasil que os salesianos encontram ainda procura definir sua identidade política, econômica, social e religiosa. Implantada a república148, a elite agrária dos cafeicultores do Vale do Paraíba assume o controle político em nível federal, enquanto oligarquias menores davam continuidade ao controle de suas regiões. Há uma crescente, ainda que modesta, participação política da classe média e da nascente burguesia industrial. A república oscila entre os interesses da oligarquia agrária, da classe média e da burguesia urbana que desejava o desenvolvimento de atividades ligadas à indústria, comércio e serviços. Com a eleição de Prudente de Morais, em 1894, prevalecem os interesses da oligarquia cafeeira. A partir de 1910 as oligarquias regionais buscam apoio nas camadas urbanas como forma de conquistar maior espaço em nível federal. Há o crescimento do mercado interno fortalecendo a classe industrial e dando maior consistência ao operariado como classe, segregada em vilas operárias e nas periferias das cidades e que vai se fortalecendo ao ampliar e organizar sua vida sindical. 148 - Nossa historiografia convencionou chamar de República Velha o período que vai da queda do regime imperial em 1889 até 1930 com a tomada do poder por Getúlio Vargas. O império em processo de erosão era uma monarquia enfraquecida, desatualizada e ineficiente que paulatinamente perdia suas bases de sustentação política até que uma simples quartelada o derrubou sem derramento de sangue. 116 A discriminação contra os operários, desenvolvida pela classe dirigente, introduziu uma verdadeira situação de segregação geográfica sociocultural. Assim nasceram as vilas e os bairros operários, concentrando os trabalhadores, isolando-os das proximidades dos centros urbanos onde se instalavam as atividades comerciais e os bairros burgueses. Esse isolamento propiciou maior integração dos trabalhadores assalariados. Não demorou muito que essa aglutinação revela-se profícua na luta travada entre os interesses do capital e do trabalho. (...) da mesma forma que nesses espaços se reproduziam o regime de trabalho nas fábricas, a que os membros das famílias operárias se submetiam, como extensão necessária aos rigores da produção de mais-valia, também se solidificaram os laços de 149 companheirismo e solidariedade de classe . As reivindicações dos movimentos operários da Europa ecoavam em meio à classe trabalhadora que em São Paulo, até a primeira guerra mundial, era 90% estrangeira150 com idéias anarquistas, socialistas e comunistas. Até 1930 mais de 200 greves tinham eclodido no Brasil, sinalizando que uma economia voltada apenas para os interesses da classe agrária dominante não correspondia ao novo rosto da república que ia deixando de ser rural, o que é demonstrado pelas manifestações de insatisfação de um povo marginalizado num mundo urbanoindustrial que emergia. As elites dominantes expressavam forte xenofobismo acrescido por um grande desprezo pelo trabalho manual, herança do regime escravocrata. Dessa maneira era negada ao proletariado a condição de cidadania, pois eram vistos como força de trabalho. À margem do mercado de trabalho formou-se um enorme “exército de reserva industrial” típico das sociedades em transição ao mundo industrial. Nas cidades, era integrado por desempregados, artesãos arruinados, migrantes subnutridos e prostitutas; no campo, camponeses pobres, colonos, parceiros, posseiros e índios aldeados compunham o resto deste contingente de reserva. Destituídos de mínimas condições de vida, não hesitavam em participar de revoltas contra 151 opressão . O movimento tenentista, o romantismo da coluna Prestes, a fundação do partido comunista e o inconformismo da Semana de Arte Moderna eram apenas sinalizações de uma ruptura com um Brasil arcaico que deveria ser superado. 149 - PENNA, Lincoln de Abreu. República Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 125. 150 - Ibidem, p. 117. 151 - Ibidem, p. 125. 117 Do ponto de vista das condições histórico-sociais, e de acordo com a afirmação de que “os movimentos espirituais precedem sempre as mudanças de ordem social”, o modernismo foi apresentado como o “criador de uma festa do espírito revolucionário e de um sentimento de arrebentação”, embora não tenha sido o “o fator das mudanças políticosociais posteriores a ele no Brasil”. Procurou-se, também, mostrar a ligação entre o modernismo e São Paulo – fruto da economia do café e do industrialismo e com um comércio incontrastável. Daí ser “natural o tom profético da arte modernista, ao contar o aparecimento de uma sociedade nova, que é a sociedade industrial”. Foi então, “a primeira arma brandida contra a mentalidade do burgo”, embora não tenha sido uma “atitude 152 proletária ”. Essas diversas manifestações que afloram de forma pontual e desarticulada no início do século XX são expressões de que era necessário configurar um novo Brasil, para além daquele arcaico. O povo é concebido por intelectuais como primitivo, inculto e incivilizado, que deveria ser trazido à luz da civilização153. Os ideais positivistas da bandeira da república propõem a ordem e o progresso. Acredita-se que é preciso organizar o Brasil, tornando-o verdadeira “res-publica” modernizando-o e libertando-o do estigma de um país foco de doenças tropicais. O Prefeito Pereira Passos resolve tornar o Rio de Janeiro uma cidade civilizada como Paris. Abrem-se grandes avenidas retirando-se os pobres para as periferias. Os sanitaristas Oswaldo Cruz e Carlos Chagas lançam campanhas para sanear, curar e vacinar o país. O médico é o que cura. É preciso acabar com os dois “brasis” e isso se fará dentro dum processo civilizatório passando-se do mundo arcaico para o moderno. Os intelectuais acreditam que a chave libertadora do Brasil arcaico seria a educação. Oscar Thompson cria a Escola Caetano de Campos para qualificar o 152 - NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 115. 153 - O breve comentário traçado por Ricardo Oticica, doutor em Literatura da PUC do Rio de Janeiro na introdução do livro “Os Sertões”, Euclides da Cunha apresenta um víéis de interpretação que nos permite conferir na leitura da obra um autor republicano e positivista que, ao descrever sucessivamente a terra, o homem e luta desvenda que a descrição do suceder dos fatos – descritos a partir de uma visão de uma republica positivista e liberal – o homem, Euclides da Cunha, vive uma luta interior ao visualizar o preconceito contra o sertanejo, e neste embate a única vitória é do literato sobre o cientista, quando este sucumbe à constatação do genocídio do sertanejo em nome do progresso. Cf. Ricardo OTICICA, Apud CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 5-8. 118 aparelho escolar154. As escolas normais, grandiosas nas suas arquiteturas e com decorações explicitamente positivistas exaltando a Ciência, são responsáveis pela formação de professores que, acreditam, renovarão o país. Nagle sintetiza o espírito e a mentalidade deste tempo como um período marcado pelo entusiasmo pela educação e pelo otimismo pedagógico. Será pela educação que a civilização urbano-industrial se contraporá à civilização agrário comercial, sendo a escolarização o motor da história: Uma das maneiras mais diretas de situar a questão consistem em afirmar que o mais manifesto resultado das transformações sociais mencionadas foi o aparecimento de inusitado entusiasmo pela escolarização e de marcante otimismo pedagógico: de um lado existe a crença de que, pela multiplicidade de instituições escolares, da disseminação da educação escolar, será possível incorporar grande camada da população na senda do progresso nacional, e colocar o Brasil na senda dos grandes países do mundo; de outro lado existe a crença de que determinadas formulações doutrinárias e a escolarização indicam o caminho para a verdadeira 155 formação do homem brasileiro (escolanovismo) . Estas palpitações da intelligentsia brasileira terão sua expressão mais visível no Manifesto dos Pioneiros capitaneado por Fernando de Azevedo156. Seus signatários ainda que de matizes ideológicas diversas, eram intérpretes dessa realidade, desde um Paschoal Lemme que, fiel aos seus princípios marxistas, de fato não acreditava na educação como elemento transformador da sociedade157, mas somente numa ação revolucionária que modificasse a infra-estrutura econômica, até um Anísio Teixeira de formação inicial jesuítica, que ao retornar dos Estados Unidos, mostravase “convertido” ao progresso gerado pela democracia americana e pelo american way of life. Acreditava que uma educação igualitária gerenciada pelo Estado158 ofereceria oportunidades iguais para todos e diagnosticara o mal da educação 154 - Dermeval SAVIANI, Dermeval. História das Idéias Pedagógicas no Brasil. Campinas, Autores Associados, 2008, p. 171. 155 - NAGLE, op. cit., p. 134. 156 - SAVIANI, op. cit., 2008, p. 234-239. 157 - Cf. PASSOS JÚNIOR, Dilson. Pioneiros: convergências e divergências na interpretação dos ideais da educação. Revista de Ciências da Educação, Lorena, ano 5, n. 8, p. 146-150. 158 Anísio TEIXEIRA, Anísio. Educação é um Direito. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1968a, p. 13-25. 119 dual159 do Brasil que, por sua própria prática, impedia o progresso dos pobres, polarizando uma educação para as elites e outra para as classes populares, consolidando uma sociedade de privilégios. Anísio, no lastro do pensamento de John Dewey, acreditava que somente uma escola pública, gratuita e laica promoveria o progresso do Brasil. A defesa dessas idéias polarizavam as escolas católicas e as públicas. Aqui está o grande nó da questão entre a Igreja e República brasileira. No período imperial fora a igreja a detentora da educação. E, apesar dos desmandos de muitos de seus membros, a igreja pós tridentina tivera, sobretudo nos jesuítas, guardiães fiéis da ortodoxia e educadores ímpares. Na Restauração disciplinar, doutrinal e moral da igreja, que teria reflexos na sua prática educacional, a escolástica e o tomismo erigiram-se como únicas possibilidades e formas de ser igreja. Alguns princípios eram explícitos: Ela era uma organização divina. Todo o poder, hierarquicamente organizado, provinha de Deus e a obediência a Ele e aos seus legítimos representantes era condição sine qua non para poder ser um bom cristão. As verdades da fé160 e a santa tradição deveriam ser acolhidas sem restrições. A escola era uma extensão da igreja paroquial e sua função era catequizar e converter, oferecendo aos seus alunos os sacramentos e a salvação eterna. O processo de romanização atinge não somente a disciplina da Igreja, mas possui impacto também sobre a educação e o modelo de sociedade a ser construído. Pio IX e seus sucessores não foram românticos, mas hábeis estrategistas, sabendo que o processo de restauração aconteceria a partir de uma hierarquia sintonizada com o Vaticano e da formação de um clero com uma vida austera, coerente, fiel à Igreja, aos valores do Evangelho e aos caminhos traçados pelos Concílios de Trento e Vaticano I. A constituição da República, ao separar o Estado da Igreja, fazia com que essa saísse fortalecida, sobretudo a partir da liderança de Dom Leme, cardeal do Rio de Janeiro. Já no Império a ação da Igreja ultramontana se vinha fortalecendo pela ação dos lazaristas no seminário do Caraça, no envio de teólogos para Roma e na locação de bispos em pontos estratégicos do país. 159 - Anísio TEIXEIRA. Educação não é Privilégio. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1968b, p. 22-29. 160 - Depositum fidei. 120 Na década de 1920, ganha visibilidade um grupo de educadores leigos guiados pelo positivismo, pelo pensamento de Durkheim e de John Dewey, para os quais a escola é uma necessidade social. Fernando Pessoa, Lourenço Filho, Anísio Teixeira e outros, ao ocuparem pontos estratégicos no governo, implantam suas idéias acreditando que o escolanovismo é a forma de educação que irá construir uma verdadeira democracia, consciente, igualitária e crítica, respeitando a individualidade e integrando o individuo na sociedade. A escola para Dewey não prepara para a vida, mas é vida, tendo função democratizadora de igualar as oportunidades. O choque das escolas católicas com a estatal apóia-se em bases ideológicas das partes litigantes. Há explicito confronto entre Anísio Teixeira e o episcopado brasileiro. Estes viam na defesa de uma escola laica uma forma de descristianização, enquanto que aquele entendia que as escolas privadas, religiosas ou não, eram formas de perpetuar privilégios das classes dominantes. A Revista Vozes assume a defesa da escola particular, enquanto que a Anhembi a defesa da pública. Nos mútuos ataques as facções em disputa se demonizam 161. A década de 1920 é um período crucial na vida política do país, pois é quando se procura definir numa dimensão ideológica qual será o rosto da República. Segmentos do movimento sindical operário buscam no socialismo, no anarquismo e no marxismo, referenciais na luta por seus direitos, enquanto que a igreja parte para a condenação destes movimentos por sua matriz atéia e pela negação da propriedade privada, embasada na Rerum Novarum de Leão XIII de 1889, primeiro documento social da igreja. O catolicismo respondera até então por significativos trabalhos sociais nos últimos séculos através de hospitais, escolas, asilos, atendimentos aos pobres e sepultamentos. O socialismo rejeitava, porém, esse assistencialismo caritativo, vendo nele apenas paliativo de injustiças, que só seriam superadas com a distribuição igualitária dos bens, já que entendia que a posse deles era resultado da mais-valia. A Igreja ao contrário justificava esta posse, se honestamente acumulada, como materialização do trabalho do homem. Com essas posições a igreja entrava 161 - BUFFA, Ester. Ideologias em Conflito: Escola Pública e Escola Privada. São Paulo: Cortez & Morales, 1979, p. 21-36. 121 em linha de choque com segmentos da esquerda operária parecendo defender as classes detentoras do capital e, portanto, a ordem burguesa. A Igreja, porém lutava em diversas frentes contra as idéias que queriam se impor diferentemente dos princípios do cristianismo, tanto do lado positivista e liberal como do lado socialista e marxista. Ela encontrará no Integralismo de Plínio Salgado uma expressão urbana e conservadora do cristianismo tradicional, enquanto defendia valores como a família, a pátria e a religião. Ela cooptava com esse fascismo caboclo e com as forças arcaicas tradicionais contra os movimentos modernistas e de esquerda que ameaçavam o modelo de cristandade defendido pela romanização. O principal campo de batalha destas correntes é o da educação. Alguns segmentos da intelectualidade brasileira acreditavam que a escola Nova e Ativa era um modelo de educação que levaria a sociedade para a modernidade, resgatando-a do mundo arcaico. A igreja, ao contrário, procurava neutralizar os traços brasileiros da religião, impondo o modelo romano ao clero e aos fiéis. Ao se engajar nas questões 162 candentes da época, como educação, questão operária e relações entre Estado e Igreja, o faz para, acima de tudo, preservar um modelo de sociedade hierárquico, estamental e conservador. Se as décadas de 1920 e 1930 ofereceram ao nosso país uma elite de pensadores leigos da educação que, além de teóricos, foram engajados na ação política, não se pode de outro lado minimizar a ação agressiva e bem orquestrada da Igreja neste mesmo período, que saindo do torpor que vivera durante o império, iluminada pelos ideais da restauração ultramontana, agiu, no seu interior, procurando purificar seu clero moralmente, prepará-lo cultural e pastoralmente e, sem as benesses do Estado, em seu exterior impor sua hegemonia religiosa, cultural e moral sobre a república que nascia. Uma elite de bispos e padres romanizados e um grupo de leigos preparados por eles não temeram se bater no campo intelectual com a nascente elite positivista e liberal que ganhava espaço no Brasil. Será um longo confronto. 162 - Essas questões que definimos como “candentes” aqui no Brasil já haviam sido vividas intensamente no século XIX pelos principais países da Europa central. Cf. SUFFERT, Georges. Tu És Pedro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 382-418. 122 Dom Leme tinha consciência que era um tempo de confrontos e medição de forças. O império se dissolvera na incapacidade administrativa de se adequar aos novos tempos e novas mentalidades. A Igreja, até então por ele sustentada, padecera deste mesmo marasmo que se refletia num clero acomodado, patrimonialista, familiar e com uma moral ambígua. A República nascia agressivamente positivista, liberal e laica, afirmando sem equívocos a ruptura da interdependência entre Estado e Religião. Leme entendia que, apesar da perda das côngruas estatais, podia-se agora governar a Igreja sem interferência do Estado. Era tempo de implantar o Concílio Vaticano I pela seleção de bispos e pelo envio do futuro clero para ser formado na sede da Igreja Universal. Essa forma vigorosa de ação entre os anos de 1890 a 1940 consegue realizar uma radical reviravolta na qualidade da igreja no Brasil163 atingindo não só o clero, mas também as elites católicas. Dom Sebastião Leme164 coloca no topo de suas prioridades a educação como forma de solidificar a fé, procurando consolidá-la ainda mais pela implantação da Educação Superior Católica165. Fomenta o surgimento de intelectuais católicos como expressão desta nova Igreja, que têm na revista A Ordem o meio de divulgação dos ideais da igreja renovada, fazendo parte do seu corpo de editores, Jackson de Figueiredo representante do Integralismo e que buscava a cristianização da vida brasileira em todos os aspectos166 e Alceu de Amoroso Lima, numa linha mais jesuítica. O cardeal procura mostrar a Igreja como força religiosa, social e política. Promove eventos sempre grandiosos marcados por celebrações impecáveis. Em 1922, entre os dias 26 e 30 de setembro, realiza-se o Congresso Eucarístico Nacional. A 04 de outubro é lançada a pedra fundamental do Cristo Redentor. Em 1923 é realizado o primeiro Congresso do Apostolado da Oração,167 irmandade nascida à sombra da romanização sob o controle do clero. Em 1924 – num Estado de origem positivista – 163 - CASALI, Alípio. Elite Intelectual e Restauração da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 60. 164 - Ibidem p. 79. 165 - Ibidem. p. 80. 166 - FIGUEIREDO, Jackson. Correspondência. Rio de Janeiro: A.B.C., [s.d.], p. 23. 167 - CASALI, op. cit., p. 83. 123 é feita a Páscoa dos Militares. Em 1930, quando Getúlio Vargas dá o golpe de Estado, o cardeal tem no padre Leonel Franca um intelectual amigo do presidente que lhe garante acesso seguro a esta instância maior de poder. Em 1931 é feita a coroação de Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil e inaugurada Estátua do Cristo Redentor. No mesmo ano em que era lançado o Manifesto dos Pioneiros, 1932, era aberto o Instituto Católico de Estudos Superiores, que viria a ser o núcleo da Universidade Católica168 do Rio de Janeiro. A Igreja romanizada se consolidara como presença influente no Brasil recebendo respeito, consideração e status do Estado que lhe reconhece um poder apoiado nas bases populares e intelectuais católicas. No maior país católico do mundo mantémse essa relação ambígua do poder religioso com o Estado laico, onde autoridades religiosas têm assento cativo ao lado de autoridades civis. São traços de nossa cultura, por mais ambíguos que possam parecer. É neste contexto político, religioso e educacional que os salesianos se inserem na história do Brasil. Integram-se no exato momento em que Miguel Rua, primeiro sucessor de Dom Bosco, tinha como meta consolidar a nova congregação. Neste momento de consolidação não podiam despender energias nem com questões locais da igreja do Brasil e nem tampouco com questões nacionais do Estado. Eram estrangeiros alheios aos problemas da política e da igreja no Brasil. E, como suas obras se destinavam especificamente à educação de jovens pobres, o seu espaço de ação era fisicamente limitado ao prédio, às salas e pátios de suas obras, atraindo para esses ambientes jovens para educá-los e catequizá-los, não participando dos grandes embates da Igreja do Brasil, já que, recém chegados, focavam suas ações num trabalho definido de implantação e consolidação de suas obras. Essa ausência no conjunto da história global do país e da Igreja perdurará por muitos anos, gerando desconforto pelo fato da congregação restringir sua ação às suas obras e ao entorno onde estavam inseridas, ausentes dos grandes eventos da Igreja e do Estado. No fundo assumiam a política do Pai-Nosso que o fundador defenderá na Itália quando da unificação política, quando as paixões se 168 Ibidem, p. 87-88. 124 exarcebavam: aos salesianos cabia rezar e cuidar dos meninos pobres e não se imiscuir em questões políticas. 125 2.4.2 - O Ensino Superior salesiano no Brasil O Centro Universitário Salesiano de São Paulo169 nasceu da junção de três faculdades isoladas fundadas pelos salesianos em Lorena, Americana e Campinas. Lorena foi uma das primeiras170 faculdades salesianas do mundo, quebrando o paradigma de que os salesianos deveriam se voltar apenas para educação de adolescentes. Sua evolução para escola de ensino superior, no sentido próprio da palavra, foi, porém, um processo repleto de equívocos, pois seus fundadores não dimensionaram os desdobramentos da legalização do estudo oferecido por um seminário que se transformava numa faculdade legalmente constituída, pois, não existia um projeto nem Inspetorial171 e nem local para o trabalho com o ensino 169 - UNISAL . 170 - A primeira Escola de Ensino Superior salesiana foi a a St. Anthony’s College fundada na Índia em 1932. Cf. DIREZIONE GENERALE OPERE DON BOSCO. IUS - Istituzioni Salesiane di Educazione Superiore. Roma: S.D.B., 2003. archive n. 2. 171 - A Sociedade São Francisco de Sales – salesianos – se organiza da seguinte forma: Reitormor e seu Conselho que também possui funções à semelhança de ministérios de governos civis. O Governo central se faz representar mundialmente por Conselheiros regionais que fazem a ponte direta respondendo delegadamente por suas regiões diretamente ao Reitor-mor. Equivalem a embaixadores que representam e falam em nome do Reitor Mor. No mundo há oito regiões: América Latina - Cone Sul; África e Masdagascar; Ásia Leste e Oceania; Ásia Sul; Europa Norte; Europa Oeste; Interamérica e Itália e Oriente Médio. No segundo grau da hierarquia está o Inspetor. No Brasil existem seis Inspetorias: Norte, Nordeste, Minas (Leste e parte do Centro Oeste, menos São Paulo), São Paulo, Sul e Centro Oeste. Elas se congregam num Conselho Consultivo chamado CISBRASIL, sendo seus membros os inspetores. E, finalmente o Diretor e seu conselho. Toda a congregação é dirigida por dois documentos fundamentais: As Constituições que definem a dimensão carismática, religiosa e a base organizacional da Instituição e os Regulamentos. Todos os setores são regulamentados detalhadamente nos padrões do governo de uma sociedade civil. A cada três anos são realizados os Capítulos Inspetorias, durante os quais todos os sócios possuem poderes iguais, inclusive os cargos de direção. Suas decisões, se sancionadas pelo Reitor Mor, possuem força de lei e só podem ser revogadas por outro Capítulo. E a cada seis anos são feitos os Capítulos Mundiais, quando é eleito o Reitor-mor. A organização da Congregação – respeitados os princípios das Constituições – é democrática. Há três níveis reais de poder: O Reitor-mor, o Inspetor e o Diretor. Efetivamente, porém, a missão desses cargos é mais carismática devendo fazer cumprir as Constituições e manter o carisma da congregação. O verdadeiro poder deliberativo nas três instâncias é confiado respectivamente ao Conselho Geral, ao Conselho Inspetorial e ao Conselho local. As decisões de governo não previstos na rotina das casas devem emanar das decisões dos conselhos locais por voto presidido pelo diretor. Algumas ações, pela sua magnitude, devem, depois de aprovados localmente, ter a aprovação por voto do Conselho Inspetorial. Certas questões ainda devem ser levadas, aprovadas nas instâncias inferiores, ao Conselho Mundial. Em casos mais raros, decisões do Conselho Mundial devem ser aprovadas pelo Vaticano. Todos os cargos são objeto de consulta e de voto a todos os sócios, mesmo a jovens que já possuam votos simples de apenas um ano, alguns até com dezoito anos. Essas consultas se estendem aos cargos de Diretor, Conselheiros Locais e Inspetores e muitas decisões que são objeto de avaliação e posicionamento de todos os sócios. É previsto peso diferenciado entre sócios temporários e perpétuos. Decisões arbitrárias de diretores ou administradores, sem a aprovação do Conselho podem ser anuladas. Nenhum cargo é permanente. O Reitor-Mor exerce seu cargo por seis anos, podendo ser reconduzido a mais seis. O 126 superior para leigos. E, as duas unidades que surgiram posteriormente, foram resultados de iniciativas individuais e circunstanciais de salesianos que fizeram dessas fundações um fato consumado e arbitrário, apenas para ser referendado pelos conselhos superiores. O ensino superior dos salesianos no Brasil foi um incidente de percurso e não um projeto planejado e pensado. Quando os salesianos vieram para essas terras, como para o resto do mundo, o fizeram num momento de exuberante crescimento numérico e de prestígio da congregação, que no lastro da romanização, prestigiados pelo papado e pelos bispos reformadores, eram reconhecidos como competentes educadores das classes populares e formadores de jovens profissionais para a indústria. No final do século XIX e início do XX não faltavam convites e facilidades em várias partes do mundo para implantarem suas obras. Estrategistas, estudavam minuciosamente as ofertas que se apresentavam considerando a região, sua população, previsão de crescimento, população jovem pobre, doações de terrenos e recursos materiais para a construção e manutenção das fundações. Suas construções e projetos nasciam grandiosos e eram pensados para se ampliarem e se expandirem. Pensavam as coisas de Deus com a mentalidade da indústria: crescer, ampliar e multiplicar. As fundações se sucedem umas às outras com rapidez. Inspetor exerce seu cargo por seis anos. O Diretor por três anos, podendo ser reconduzido a mais três na mesma obra. O cargo de diretor pode ser suspenso a qualquer momento pelo Inspetor, com aprovação do seu conselho e geralmente acontece por necessidade de transferências. Não existe carreira. Os salesianos se alternam entre os cargos mais altos e os mais simples. Não existe remuneração, dentro dos princípios religiosos da congregação. Remunerações tidas por atividades profissionais devem ser postas em comum, assim como aposentadorias e todo e qualquer recurso obtido. Se fossemos abstrair de toda dimensão religiosa, usando de uma – digamos – ousada analogia - poderíamos definir a sociedade São Francisco de Sales como uma “República Democrática Socialista” em que os “cidadãos-sócios” trabalham para o “Estado” em vista do bem comum e têm suas necessidades humanas, sociais e culturais garantidas por esse mesmo “Estado religioso” através da socialização de todos os bens, fruto do trabalho de todos e onde todos participam de forma colegiada das decisões em vista do bem comum dos seus sócios e da sociedade onde atuam. Se abstraíssemos das motivações religiosas que movem uma congregação, esta definição leiga explicitaria o modo de vida desta sociedade nascida nas entranhas do capitalismo comercial e industrial e que absorve de certo modo, para a milenar vida religiosa uma forma de governo que – paradoxalmente – os superiores não personificam a vontade de Deus de forma arbitrária, muitas vezes atribuindo Lhe seus caprichos, mas se submetem a uma constituição e chegam ao comando por um período temporário e pela “vontade popular majoritária” dos seus sócios, desde que seja coerente com a vida religiosa e com as constituições. São paradoxos radicais: num período de romanização em que se firmam as diversas instâncias de poder da Igreja como advindas de Deus, inclusive com a declaração do dogma da infalibilidade papal, nasce uma congregação, ou melhor, uma sociedade, fidelíssima ao papa, mas que se organiza interiormente com ideais de governo defendido por liberais e marxistas para um novo tempo, para um mundo mais liberal, para a Jovem Itália. Paradoxos não se explicam, se constatam. 127 A chegada dos salesianos numa cidade seguia em geral um roteiro préestabelecido: fundava-se um oratório festivo, uma obra social e escola, seqüencialmente ou concomitantemente e eventualmente uma escola profissional. Não se pode, portanto, falar em fundação de faculdades salesianas 172, sem se considerar, anteriormente a implantação dessas estruturas materiais em geral amplas e grandiosas. Quando as faculdades foram criadas, já existia uma infra estrutura física construída que facilmente se adequava a essa nova finalidade. 172 - Nosso estudo refere-se especificamente ao Centro UNISAL de São Paulo. Não trabalharemos fundações de faculdades e universidades surgidas em outras áreas do Brasil (Campo Grande, Nordeste, Amazonas) e nem tampouco pouco no Estado de São Paulo que não estejam ligadas ao UNISAL, como as faculdades salesianas de Piracicaba, Lins e Araçatuba. 128 2.4.2.1- Faculdade Salesiana de Lorena: clerical e tomista O início da obra em Lorena se dá em três de março de 1890 que rapidamente se torna o centro irradiador da presença salesiana para o Brasil173. Em 1892174 já existia o noviciado com brasileiros. Em 1895 Lorena já se consolidava como uma casa de importância, residindo nela sete capitulares175. Em 1894 Dom Lasagna parte para a fundação de três novas casas no Estado de Minas Gerais, morrendo, porém, tragicamente em desastre ferroviário em Juiz de Fora. Sua morte apressa a fundação da Inspetoria Salesiana de Nossa Senhora Auxiliadora de São Paulo, em 1896, tornando-se Lorena a sede da nova Inspetoria que abrangia as atuais regiões sudeste e sul. A expansão da congregação pelo Brasil depende apenas do número de salesianos disponíveis, tornando-se então necessário de imediato garantir a formação de religiosos autóctones. Em Lorena, onde já funcionava o noviciado, funda-se em 1895 o Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia,176 para preparar clérigos que sejam sacerdotes e professores nas escolas, pois na mentalidade da época, a presença de leigos como professores ou em qualquer outra atividade escolar deveria ser exceção. Esse Instituto funcionará em Lorena até em 1913 quando será transferido para a cidade de Lavrinhas, distante cerca de trinta 173 - A implantação da obra salesiana no Brasil foi bastante rápida no fim do império até Revolução de 1930. Eis a listas das fundações: Colégio Santa Rosa, Niterói, 1883; Liceu Coração de Jesus, São Paulo, 1885; Ginásio São Joaquim, Lorena, 1890; Escola Dom Bosco, Cachoeira do Campo, 1895; Liceu Nossa Senhora Auxiliadora, Campinas, 1897; Liceu Leão XIII, Rio Grande, 1901; Ginásio Municipal Nossa Senhora Auxiliadora, Bagé, 1904; Escola Agrícola Coronel José Vicente, Lorena, 1908; Externato São João, Campinas, 1910; Colégio São Manoel, Lavrinhas, 1914; Instituto Dom Bosco, Bom Retiro – São Paulo, 1919; Colégio São Paulo, Ascurra, 1922; Colégio Anchieta, Virginia, 1923; Colégio Dom Bosco, Araxá, 1926; Instituto São Francisco de Sales, Rio de Janeiro, 1929. Instituto Teológico Pio XI, São Paulo, 1931. No inicio da década de 1930 já existiam casas em fase de implantação nas seguintes cidades: Araras, Guaratinguetá, Ponte Nova, Ipiranga, São José dos Campos e Campos do Jordão. Já havia incursões estudando fundações em Rio dos Cedros, Luís Alves, Rio Oeste, Rio Sul e Nova Breslau. Esta enumeração refere-se apenas ao ramo masculino da congregação. Semelhante expansão tinha também o ramo feminino das irmãs salesianas que tinham a mesma origem, o mesmo fundador, os mesmos princípios e escopo educacional. Cf. André DELL’OCA, A Obra salesiana no Brasil no seu Cinqüentenário 1883 – 1933. São Paulo, Escolas Profissionais salesianas, 1933. p. 35 174 - José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890-1940. Editora Salesiana Dom Bosco, 1991. p.75 175 São Paulo, - Na ordem salesiana os Capitulares são salesianos e que se reúnem a cada três anos, tendo um poder legislativo, desde que respeitadas as Constituições. Esse Número é significativo para uma casa recém fundada. Cf. Ibidem. p.76 176 - Será este Instituto que será em 1952 reconhecido oficialmente como faculdade. 129 quilômetros, funcionando aí até 1943, quando retornará para Lorena. Efetivamente torna-se “uma verdadeira universidade católica, de estudos gerais, sem contar, no entanto, com o reconhecimento oficial”177. A Teologia era realizada em Roma, garantindo-se, assim, aos brasileiros beberem na fonte a fidelidade à Igreja e à Congregação. A Educação na história do Brasil coube à Igreja, desde os padres mestres das fazendas, passando pelos jesuítas e pelas diversas congregações religiosas dedicadas para esse fim. Com a República, passados os primeiros momentos de estabilização do novo sistema político, a partir de 1920 aprofunda-se a reflexão sobre a educação pública e a responsabilidade do Estado frente a ela. A Igreja continua sua ação educadora. O Colégio salesiano São Joaquim de Lorena 178, já na segunda década do século XX era equiparado ao colégio Pedro II do Rio de Janeiro podendo seus alunos realizar “todos os exames de conjunto, como era chamado, na própria casa, embora diante de bancas de professores nomeadas pelo governo federal”179. Isso demonstra que o Estado reconhecia que o título dos professorespadres adquirido numa “faculdade” juridicamente não reconhecida, mas atrelada à tradição educacional da Igreja, sobretudo nos seminários, conferia-lhes, ipso facto, legitimidade. Na história do Brasil, muitos intelectuais serão formados pelos seminários com professores sem titulação oficial. É a partir de 1920 que começa uma reflexão mais sistemática sobre a educação pública, com a efervescência de idéias liberais e positivistas em que a dimensão laica da república é acentuada, cabendo-lhe a implantação de uma educação moderna e desligada dos tentáculos da Igreja, identificada então com o passado e o arcaico que devem ser superados. No conceito de Iglésias, a educação católica não foi capaz de gerar uma intelectualidade que fosse significativa nos destinos educacionais da nação: O catolicismo continua a ser a vaga religiosidade, epidérmica, sem consistência, apegado a exterioridades e convenções. É mínimo o número de padres e baixo o seu nível intelectual. A carreira eclesiástica ainda é em grande parte – embora menos que no império – seguida por alguma 177 - Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e Ensino Superior: A Faculdade Salesiana de Lorena. Taubaté, Cabal Editora e Livraria Universitária, 2003. p. 34. 178 179 Fundado em 1890. -José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim. 1890 – 1940. São Paulo. Editora Salesiana, 1991. p. 100 130 conveniência, pelo prestígio que dá, pela imposição materna ou da madrinha sobre os jovens, com a conseqüente falta de aptidões. Dominando o ensino através dos colégios, os padres nacionais e estrangeiros, marcam a instrução com o sinal acadêmico, retórico, formalizado. A grande prova do relativo malogro da Igreja está na sua completa perda de terreno em matéria de direção intelectual. Basta que se lembre que as camadas mais expressivas da intelectualidade brasileira são 180 positivistas, evolucionistas ou apenas indiferentes . Esta década é marcada por fortes tensões ideológicas entre a antiga mentalidade rural e patriarcal e o mundo que se moderniza. As classes operárias vêm no anarquismo, socialismo e marxismo possíveis saídas para suas lutas sociais. O integralismo, com o seu nacionalismo, defendendo a Religião, a Pátria e a Família, procura garantir os interesses e a estabilidade das novas classes médias urbanas181, antiliberais e antidemocráticas, e o modernismo que, mais que um movimento estético, é uma corrente de idéias e um movimento político-social, “pois nosso modernismo investe essencialmente em sua fase heróica, na libertação de uma série de recalques históricos, sociais étnicos, que são trazidos triunfalmente à tona da consciência literária”182. A quebra da bolsa de Nova York em 1929, ao desestabilizar os produtores de café, explicitando de forma contundente sua fragilidade que já vinha de tempo, favorece a Revolução de 1930 que tem como ideário um novo Brasil moderno, industrial e urbano. Adota-se “um modelo nacional-desenvolvimentista com base na industrialização”183. A questão da Educação, que já vinha sendo objeto de profundas reflexões na década de 1920, tem sua visibilidade maior no Manifesto dos Pioneiros de 1932. O governo de Vargas toma de imediato providências práticas para o gerenciamento da educação em nível nacional. Já em 1930 cria o Ministério da Educação e Saúde Pública, traçando uma política educacional nacional com um sistema escolar centralizado. 180 - IGLÉSIAS, Francisco. História e Ideologia. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 132. 181 - O Integralismo apresenta facetas bem complexas. Possui sua origem em vários segmentos conservadores da sociedade, urbanos e rurais. Possui elementos do modernismo unidos a aspectos do catolicismo conservador. Não é nosso objetivo aqui aprofundar esse tema, mas apenas assinalálo como um dos fenômenos da época. Nagle apresenta uma análise de suas várias vertentes em sua formação. Cf. NAGLE, 2001, p.118-129. 182 - Ibidem, p. 117. 183 - EVANGELISTA, 1991. p. 39. 131 Na década de 1930 os salesianos já possuem colégios consolidados em várias cidades da região sudeste e sul. O Colégio salesiano São Joaquim de Lorena continua sendo referência e mais, se consolida no interior do Estado de São Paulo. Alguns salesianos compõem livros para atender às necessidades das escolas salesianas como, por exemplo, padre João Ravizza, autor de densa obra de livros didáticos de latim utilizados até a década de 1970. Continua a prevalecer o não envolvimento da congregação com a política educacional do Brasil. Esse desligamento das políticas educacionais tão intensamente discutidas no Brasil tem parte de sua explicação no fato de que a congregação está se implantando no mundo, e neste momento foca suas energias em mostrar competência e resultados avalizando com isso seu fundador como educador. Há também empenho em mostrar que João Bosco poderia ser beatificado, pois um santo como fundador daria à congregação status na Igreja. A declaração de santidade de João Bosco, porém, não estava sendo fácil, pois ele fugira pelo seu estilo de vida dos padrões clássicos dos místicos e contemplativos da igreja. Era um homem pragmático, esperto e calculista. Entrava nas cidades e povoados acompanhado por ruidosa fanfarra que competia com a algazarra e alarido dos seus educandos, atraindo a atenção de todos. Era seu modo de fazer marketing. Não possuía aos olhos da igreja e, mesmo da sociedade, aquele clássico estereótipo dos homens de Deus. Sua vida de oração não tinha nada de especial. Sisudos monsenhores da Cúria romana não se sentiam confortáveis em apresentar como modelo de santidade um sacerdote que participava nas ruas de jogos e corridas liderando uma barulhenta molecada. Os intelectuais da congregação despenderam grande energia na defesa deste novo modelo de santidade e somente a partir de 1934, quando ele é canonizado, é que poderão se dedicar em aprofundar um novo foco de interesse da congregação: a pedagogia salesiana184. Se essas considerações não justificam, ao menos ajudam a entender a constante ausência dos salesianos na construção dos rumos da educação católica no Brasil e seus confrontos com o governo. 184 - E no final do século, a partir do centro Histórico salesiano de Roma, volta-se para decifrar a dimensão humana de Dom Bosco procurando despi-la de idealizações dentro dos mais modernos métodos da historiografia moderna. 132 Nas reformas que são realizadas com relação à regulamentação do Ensino no Brasil uma decisão atinge de modo especial aos salesianos. A constituição de 1946 exigia que para a prática do magistério era necessário ter concurso de títulos reconhecido pelo Estado. Essa exigência desestabilizava as escolas salesianas de todo o Brasil, que tinham como professores salesianos com certificados fornecidos pelo Instituto de Pedagogia e Filosofia salesiano não credenciado pelo governo. No dia dois de setembro de 1950, o padre José Stringari era recebido pelo ministro da Educação e Saúde, Dr. Pedro Calmon, solicitando que os clérigos salesianos, após terem feito o curso de Filosofia, Pedagogia e Didática e terem adquirido o certificado do seminário desses cursos, fossem declarados pelo ministério idôneos, ao menos para lecionar nos colégios salesianos. O ministro fez ver ao sacerdote a inconstitucionalidade desta proposta e, em contrapartida e de forma inesperada, faz-lhe uma contra proposta: “Por que não resolve o caso dos seus seminaristas fundando uma faculdade?” Essa proposta teve resposta imediata e, realizados os procedimentos legais, no dia 14 de fevereiro de 1952 pelo decreto 30.552 o presidente Getulio Vargas autorizava o “funcionamento dos cursos de Filosofia, Pedagogia, Geografia, História, Letras Clássicas, Letras Neolatinas e Letras Anglo-Germânicas, da Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras”185. O Historiador professor Francisco Sodero Toledo, membro do Instituto de Estudos Vale-paraibanos, capta o significado desta fundação ao defina-la como uma Instituição de ensino superior singular186. Efetivamente, esta “singularidade” representará para a história da Instituição um profundo conflito de identidade, que só será superada depois da década de 1970. O seu nascimento atípico e inesperado impede-lhe o amadurecimento como instituição educacional a serviço da sociedade brasileira, já que existia há 57 anos como Instituto de Filosofia de um seminário de religiosos fechado, não só às realidades políticas do Brasil, como também às grandes lutas da própria Igreja na sua busca por um lugar de prestígio dentro da sociedade republicana. 185 - CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Lorena. 186 - TOLEDO, op.cit., p. 60. 133 A Era Vargas, com seu projeto de modernização do Brasil, herdara também os grandes debates sobre o Ensino superior travados nas décadas de 1920 e 1930 sobre sua importância para a formação do Brasil. Boa parte dos intelectuais que discutiam a Educação no Brasil fará parte do governo. Prevalece a tese da necessidade da formação de uma elite intelectual para conduzir pela educação a nação do obscurantismo para o progresso. Era necessário, portanto, também interiorizar a educação para além das grandes capitais. Debatia-se mesmo a necessidade de um “estudo desinteressado” que desse uma base teórica para que o educando pudesse agir não como técnico, mas como portador dos princípios educacionais187. A obra de Vaidergorn intitulada As Seis Irmãs: As Faculdades de Filosofia Ciências e Letras do Interior Paulista nos permitem uma análise das motivações da fundação dessas instituições na década de 1950. Elas estão no bojo da política do governo de ampliar a educação para o interior com a meta de formação das elites. Deve-se destacar que nos grandes debates nacionais sobre a educação o conceito de “elite” não tem o sentido capitalista burguês, mas o sentido que é exposto por Fernando de Azevedo e como nos explicita Vaidergorn: As elites seriam para ele (Fernando de Azevedo) “as verdadeiras forças criadoras da civilização” de quem dependeriam as grandes civilizações, fossem antigas ou modernas. A Marca das civilizações não seria dada pela educação popular, mas pela força das elites dirigentes. (...) Fernando de Azevedo definia “elite” de acordo como seu conceito de democracia (que “consiste não no governo do povo pelo povo” – uma ficção – “mas no governo constituído por elementos tirados do povo e preparados pela educação”) como uma classe “francamente aberta e acessível”, formada por cooptação que “se renova e se recruta em todas as camadas sociais” sendo “aquela que teria condições de propor um projeto de nacionalidade que estivesse acima das paixões partidárias na medida em que seria composta pelas iniciativas particulares esclarecidas e sustentadas em todas as 188 classes e direções ”. A fundação na década de 1950 das Faculdades de Araraquara, Assis, Marília, Presidente Prudente, Rio Claro e São José do Rio Preto, fora do eixo da capital, numa nova política do governo, em que se discutia o tipo de conhecimento a ser ministrado, foi precedida por profundos debates nacionais sobre a educação e o seu sentido na formação da nação do Brasil, onde se discutia desde um ensino 187 Cf. VAIDERGORN, José. As Seis Irmãs: As FFCL do Interior Paulista. Araraquara, UNESP, FCL, Laboratório Editorial. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2003, p. 75-102. 188 - Ibidem,- p. 97. 134 pragmático até “uma cultura geral e desinteressada, baseada num ensino comum a todos e voltado à formação do caráter e da mentalidade”189. O governo brasileiro começa essa nova política de interiorização da Educação num projeto debatido ad nauseam pela sociedade. Mesmo as universidades católicas, ao se constituírem, são resultado de confrontos e embates na luta por manter e defender uma cultura e uma visão do mundo herdada da colonização. Daí entende-se a força da expressão do professor Sodero ao afirmar a “singularidade” dessa fundação. Até este momento os salesianos não haviam participado dos grandes debates educacionais travados no Brasil. Até em nível de Igreja, contrariando a prática de toda a América Latina, utilizavam o latim com a pronúncia romana e não a espanhola, criando desconforto frente ao clero local e dificuldades aos seus alunos egressos de suas escolas, que poderiam ser reprovados nos exames orais em outras escolas que adotavam a pronúncia espanhola. Quando o governo realiza exigências legais para o exercício do magistério numa conversa amigável, solicita-se um favor e se ganha, sem se pedir, uma faculdade no interior. Isso não é, obviamente absorvido em seu sentido pleno dentro dos grandes debates travados sobre educação no país. Essa é a chave para se entender o contexto social no qual a faculdade salesiana nasce. Para a mentalidade dos salesianos da época, parece não ter havido o real entendimento da extensão do que significava ser “ensino superior reconhecido”. Para a maioria deles apenas o estudo do seminário era validado pelo governo como oficial. Houve dificuldade em entender que a partir deste momento as portas da faculdade estavam abertas para toda a sociedade brasileira. Lorena neste período era uma cidade provinciana. Seus alunos eram jovens seminaristas oriundos de diversas partes do Brasil que queriam ser padres salesianos. Era em suma, um seminário. Como afirma Sodero: Nascia mais uma instituição e nível superior de caráter privado e católico. Ligada, portanto ao projeto de Igreja, formulado no bojo dos processos da romanização e de restauração com total unidade com o Vaticano e obediência ao papa e à Cúria romana. (...) seus esforços tendem a acompanhar o processo conservador, seletivo e excludente que caracteriza o sistema educacional brasileiro. (...) Os salesianos, em seu movimento 189 - Ibidem, p. 99. 135 educacional, buscavam a disciplina moral, o rigor intelectual e total afinidade 190 com os superiores da ordem e com o Vaticano” . A faculdade nasce como um seminário reconhecido, como atesta o artigo 153 que reza: os alunos eram “do sexo masculino e em de regime de internato, cabendo somente ao diretor abrir exceção a este dispositivo191” Tinha-se o paradoxo da existência de um curso de ensino superior interno e masculino com 80% dos professores sendo padres e mantendo-se a estrutura de seminário. A sociedade local começa desde o inicio a exigir vagas, sendo os superiores obrigados a admitir leigos denominados então de externos e que devem se submeter ao estilo seminarístico da faculdade. Exige-se também a presença feminina – inconcebível então dentro dos rígidos padrões de uma igreja romanizada – o que é solucionado com a criação da faculdade feminina que funciona na escola das irmãs salesianas, ainda que mantenha uma administração unificada. Sendo a cidade de Lorena provinciana e tradicional, essa formatação não causa incômodo. Os clérigos, dentro da tradição tridentina, vivem isolados das coisas do mundo não podendo se ausentar dos claustros sem autorização e não podendo ter acesso a jornais e revistas, salvo se antes censurados por seus superiores. O estudo acadêmico continuava embasado no pensamento tomista e com abordagens a partir de uma ótica apologética da igreja e da religião. A cultura era ampla e clássica, sem, porém, trabalhar uma dimensão crítica. Não era permitida a leitura de muitos autores vetados pelo Index Librorum Prohibitorum192 da igreja e da congregação. Era a opção de não permitir aos clérigos o acesso a um conhecimento diferente da ortodoxia católica. O fato de o Instituto ter se transformado em faculdade não mudava o modelo de formação. A principal força da manutenção de uma igreja com um clero coeso e tradicional, sem as contaminações do mundo, era o modelo de seminário tridentino onde a formação era dada completamente isolada do mundo e permitia incutir na mente dos seminaristas um único modelo de vida e de igreja sem o confronto com a realidade. Alguns seminários recebiam os meninos com 10 ou 11 anos e estes só 190 - TOLEDO, op. cit., p. 63. 191 Ibidem, p. 77 192 - Índice dos livros proibidos. 136 voltavam às suas casas com 24 a 26 anos, já sacerdotes. Mantinham frágeis laços com a família e tinham irmãos que sequer conheciam. Viviam completamente isolados da sociedade, conhecendo apenas as coisas da Igreja. Era prática comum e aceita nos seminários que todas as correspondências fossem abertas e lidas pelos superiores, tanto as que chegavam como as que saíam. Algumas eram retidas ou mesmo destruídas. As noticias eram filtradas ou censuradas, sendo fixadas apenas as aprovadas pela censura dos superiores no quadro das tiras de jornais. Os livros de crônicas dessas comunidades nos documentam que os seminários se constituíam em verdadeiras ilhas193. Revistas e jornais externos eram “traficados” como leituras não autorizadas. Os problemas abordados eram sempre sob a ótica apologética do catolicismo, tendo como referenciais a hierarquia ou a intelligentsia católica liderada por Jackson Figueiredo ou Gustavo Corsão. Toda “análise da realidade” é sempre realizada a partir da ótica da igreja romanizada e numa postura apologética194. A década de 1960 em nível mundial é um divisor de águas na história do século XX. Nela eclodiram movimentos sociais que representaram divisores de água em nível cientifico, político, social, econômico e religioso que impactaram diretamente na vida da Faculdade Salesiana. O início das viagens interplanetárias, o concílio Vaticano II, o Movimento estudantil de Paris, o festival de Rock de Woodstock, o movimento hippie, a liberação sexual, a polarização do comunismo versus capitalismo, a luta pelos direitos civis de Luther King e o cerco de Cuba pela marinha americana são apenas alguns dos movimentos emblemáticos que deram novo formato ao mundo. O Brasil, a partir de Jânio Quadros e João Goulart, começa a adernar para a esquerda 193 - Como exemplo cita-se três dias de anotações da “Crônica da casa” que até hoje é feita pelos clérigos. No dia 31 de março de 1964 são feita anotações domésticas. “Comemoração mensal de Dom Bosco. Não houve comemoração porque o rito não permitia. Bodas de ouro de ordenação do Rev.mo senhor padre Júlio Deretz. Não houve festa porque se esperava comemorar essa data quando o padre Julio pudesse celebrar. À noite houve uma pequena manifestação de afeto. Passeio geral à fazenda do Mondezir. Recebemos a notícia do falecimento do senhor coadj. João Trombeta”. Nenhumas referência ao golpe militar. A casa de formação está distante apenas um quilometro do quartel. Houve grande movimentação de tropas. No dia primeiro de abril há está lacônica nota: “30º. Aniversário da canonização de Dom Bosco. Revolução no país. Demitiu-se o presidente e tudo se acalmou”. No dia 15 de abril de 1964: “Tomada de posse do novo presidente da República Sr. Mal. Castelo Branco”. Nada mais. Cf. CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Crônicas da Casa, de 18/07/61 a 10/07/61, Lorena. 194 - Mereceria especial estudo no CEDOC dois tipos de documentos. As Crônicas da casa que a partir de um clérigo redator narra o dia a dia e as Atas do Conselho da Casa onde se sente o embate dos Salesianos entre si frente aos problemas que começam a atingir a sociedade. 137 até o golpe de 64, que criando um regime político reacionário de direita, tem sua radicalização em 1968 com o Ato Institucional numero 5. Após o Concílio Vaticano II, há na Igreja Católica significativa crise de identidade, com grande numero de sacerdotes abandonando a batina ou aderindo a linhas de esquerda de matriz marxista. Os superiores maiores dos salesianos continuavam na sua linha tradicional procurando que seus clérigos não se contaminassem com essas novas idéias, procurando mantê-los numa redoma ideológica tomista e tradicional. Julgou oportuno, senhor padre Inspetor, que as aulas de Filosofia para os clérigos não fosse feitas com os alunos externos, mas separados (...) Há clérigos, observa-nos padre Inspetor, que se mostram muito autosuficientes. Se não vivermos os sinais de verdadeira vocação será necessário tomar decisões mais firmes, permitindo-lhes uma vida prática 195 salesiana . Não raro, porém, nos quadros de tiras de jornais do seminário apreciam noticias favoráveis à revolução cubana, contra o imperialismo americano ou a favor da libertação dos pobres e oprimidos postas por mãos “desconhecidas”, certamente padres, que são “denunciados” no conselho da casa: “até padres e teólogos inteligentes com teorias que em pouco tempo fariam grandes estragos. (...) Muito cuidado em pôr os clérigos em contato com essas coisas. Bastam as idéias gerais, Claríssimas”196. Houve também salesianos mais radicais que provocaram o exército, seja por discursos, seja colocando ramalhetes de flores na boca de um canhão de um tanque de guerra. A ala feminina, sobretudo sob a liderança da Irmã Iracema 197, 195 - Cf. CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Atas do Conselho da Casa do Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia. 15/03/67 a 14/08/73 – Lorena, p. 49 v . 196 197 - Ibidem, Ata da Casa. De 14 de março de 1956 a 07 de maio de 1968. Lorena, p. 64v-65v. - Iracema Noemia Farina - 1920 – 2011. Graduada em Filosofia, Pedagogia, Teologia e Ciências Religiosas, e Orientação Educacional, pós-graduada em Filosofia, Psicologia Educacional, Educação Moral e Cívica, Monitoria, Comunicação e Educação Cinematográfica, Mestre e Doutora em Ciências pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Cursou inúmeras extensões universitárias nos campos da Psicologia, Sociopolítico e Econômico, Cultura Brasileira, Filosofia, Comunicação e Artes, todos em renomadas instituições como USP, PUC, Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, Faculdade Católica de Belo Horizonte, Faculdade Jesuíta São Luiz/SP, FMU. Em 1969 esteve em Roma, onde participou de um curso sobre Cultura Cinematográfica promovido pela Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação Social (CPMCS). A partir de 1959 até 1974, desenvolveu suas atividades docentes na Faculdade Salesiana de Filosofia Ciências e Letras de Lorena – sessão feminina. Em Lorena criou o Cine Clube de Lorena da FATEA que funciona até hoje. “Era uma professora com idéias avançadas tendo lutado muito pela 138 partia para uma linha muito mais progressista e engajada, dividindo ideologicamente a faculdade entre padres conservadores e irmãs progressistas. Irmã Iracema teve atuação marcante na formação dos alunos, mesmo antes do golpe militar (...). Ela tinha uma cabeça incrível, muito aberta. Formou uma geração de discernimento, de saber o que era bom e o que não era. (...) A professora fazia de sua aula um instrumento esclarecedor e conscientizador da realidade brasileira, com o objetivo de formar cidadãos justos e com desejo de transformação. (...) Foram anos áureos de conscientização e de ação, porque nós acabávamos tendo uma missão junto aos jovens. Mesmo antes da implantação da ditadura militar, pela própria característica da disciplina de Sociologia, irmã Iracema discutia questões relativas às injustiças sociais, como a pobreza, a falta de moradia 198 e o trabalho mal remunerado . Fazia então grande sucesso o cine-fórum em que eram apresentados filmes do momento para discussões. Escandalizavam-se os padres conservadores quando as irmãs pregavam o engajamento, a inserção nas periferias e a discussão com a realidade brasileira. Apesar de toda redoma em que os formadores pretendiam manter seus formandos, a convivência no ambiente da faculdade impedia essa filtragem da realidade externa, como nos testemunha o historiador Pasin, membro do Instituto de Estudos Vale-paraibanos (IEV): Elas eram progressistas e sempre estavam à frente em todos os sentidos desde o espaço físico da faculdade -, lá havia um campus universitário, uma liberdade de idéias e filmes no Cine-clube fundado pela irmã Iracema. Hoje a FATEA tem uma ótima videoteca e lá você encontra todos os filmes, inclusive "Je Vous Salue Marie" proibido pela CNBB. Se você quiser assistir ou projetar o filme vai lá e retire a cópia seja aluno, professor ou consulente.... Isto significa que, embora elas sendo religiosas têm uma visão moderna e científica do que seja uma universidade e fazem uma leitura correta dos filmes. O Cine Clube funciona a mais de 25 anos e todas as sextas feiras à noite projetando um filme de um bom diretor com temas polêmicos e, depois da projeção, é feito um debate com a participação de todos os cinéfilos presentes. Você vai à biblioteca Conde Moreira Lima e consulta todos os livros, jornais e revistas. Nunca houve nada censurado ou interditado. Isso explica o choque ocorrido na década de 70, entre padres e as freiras. Elas estavam sempre à frente, com uma mentalidade aberta e liberdade e democracia. Foi educadora propositiva, acreditava nas possibilidades da juventude como protagonista da história e capaz de mudar a situação socioeconômica e política do País. – Cf. FATEA. Saudades de uma grande educadora. Disponível em: < http://fatea.br/fatea/blog/saudades-de-uma-grande-educadora-salesiana/>. Acesso em: 10 ago. 2011. 198 - BORREGO, Beatriz; MARIA, Letícia; MAIA, Paula. Uma Lacuna na História: Movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil. 2000, p. 5253. 139 progressista para época. Eu participei, como representante dos professores, da reunião que resultou no rompimento das duas seções da faculdade. Nesta reunião presidida pelo padre Anderson Paes da Silva, estavam presentes entre outros, o padre Antônio Lages de Magalhães e o padre José Pereira Neto, que assistiam às sessões do Cine Clube e professor Francisco Sodero Toledo, como representante dos alunos. No calor das discussões padre Anderson, referindo-se ao Cine Clube disse às irmãs: "As senhoras com o Cine clube comprometem a moral da faculdade porque para mim filme de arte é pornografia". Eu saí em defesa das irmãs e apelei para o padre Pereira pedindo que ele desse sua opinião, e ele respondeu: "arte para mim é algo subjetivo” e não disse mais nada. O motivo fundamental da ruptura foi, entre outros, o Cine clube. Os padres achavam que as irmãs estavam fora do espírito das faculdade. Elas eram modernas e progressistas e modernas demais para os padrões e conceitos da época. Em 1970 houve a prisão de vários professores e alunos da faculdade pelo quinto Batalhão de Infantaria Leve de Lorena. Eu, o Ivo Malerba, o João Bastos, o Carlos Chagas, o Nelson Pesciota, irmã Iracema e penso que Irmã Olga, também. Este fato, na época abalou toda a sociedade lorenense e vale paraibana e repercutiu de maneira chocante dentro da faculdade, contribuindo no desdobramento da crise que resultou na ruptura entre as duas secções. Acredito, que naquele momento o padre Anderson estivesse tentando deter a onda revolucionária que tomara conta da faculdade 199 salesiana . Não se pode também ignorar que os documentos emanados pelo Vaticano II desestabilizaram essa visão de igreja fechada que os formadores tinham cultivado até então. Analisando-se os Livros do Conselho e as Crônicas da Casa verifica-se que timidamente vão sendo tratados temas externos. Na década de 1960 o número de alunos externos já era maior que o de internos, seja pelo crescimento da faculdade, seja pela diminuição das vocações e o seminário começava ser um apêndice da faculdade. O ano de 1968 será decisivo. Na academia começa a discussão do documento de Buga elaborado em 1967 e que procurava definir o lugar da universidade católica frente ao mundo moderno à luz do Vaticano II. A proposta do CELAM, expressa no documento de Buga tinha como meta para as Universidades da América Latina: gerar a conscientização da realidade histórica; realizar a promoção social que conduza ao desenvolvimento; criticar a mentira social e política; resgatar a autenticidade da cultura; promover a integração do continente; ter uma participação ativa e crítica na sociedade; tornar-se, enfim, uma esfera privilegiada de encontro entre a Igreja e o mundo. O Documento de Buga sintetizava o projeto de Universidade Católica para a América Latina. Uma verdadeira universidade católica, crítica, libertadora, dialogal, politizada, denunciadora da mentira social, conscientizadora, cientificamente competente, inserida no processo de mudança social, inovadora, enfim revolucionária, procurando uma efetiva participação no processo de libertação da América Latina. Buga busca 199 - CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Entrevista a José Luis Pasin em maio de 2002, Lorena. 140 assegurar o diálogo entre as Ciências, as Técnicas e as Artes, de um lado, e de outro, a Filosofia e a Teologia. Uma universidade que não pode querer se reduzir a formar profissionais, mas, sobretudo, deve cuidar da promoção 200 humana . Dom Cândido Padim, bispo da Diocese e Lorena, em duas ocasiões201 analisará a importância do diálogo da universidade no seu interior com a sociedade que a circundava. O Vaticano II abria através dos seus documentos, novas vertentes de diálogo da igreja com o mundo e, também, do mundo universitário católico com a sociedade, respeitando-lhe as diversidades. As reflexões e os debates que se sucederam, indicaram uma virada na concepção do Ensino Superior Católico. O ponto de partida dos presentes foi a análise da pergunta fundamental: “nós estamos realmente dialogando com a realidade que nos circunda? Estamos de fato servindo aos interesses 202 dessa realidade? . O que se refletia na congregação era algo inédito nos padrões de um seminário organizado hierarquicamente. Existiam até propostas bem concretas de diálogo com o mundo discente: Convidar pelo menos o presidente do DA e presidentes dos diversos Centros de Estudos para participarem das reuniões, como forma concreta de começar um diálogo mais profícuo no interior da faculdade e a facilitação do diálogo com sociedade, visto também os alunos conhecerem essa realidade, com a própria experiência de vida, que nos pode iluminar sobre muitas decisões a tomar, para melhor servir região na qual estamos 203 inseridos (Cg, 1968, 46v) . Essas idéias tinham algo de novo e somente salesianos com uma longa vida no mundo universitário podiam perceber o seu alcance. Para os salesianos, que trabalhavam apenas na casa de formação e que viam o espaço universitário apenas como uma extensão do seminário, essas proposições não eram apreendidas na dimensão e profundidade que tinham. Aliás, o próprio Vaticano II no seu espírito ainda não era bem compreendido. Havia neste momento uma reta intenção de reestruturação da faculdade dando-lhe uma maior consistência no seu espírito de 200 - TOLEDO, op. cit., p.164. 201 1º. De abril e 7 de maio de 1978. Ibidem, p. 167-168. 202 -Ibidem, p.168. 203 - TOLEDO, 2003, p.169. 141 universidade. As reuniões congregando professores e alunos eram conduzidas pelo padre Ferreira204. A partir das reflexões de Dom Padim o processo participativo passa a ser significativo. Discutiu-se organização, gestão acadêmica, administração, estruturas físicas. Entre os muitos pontos debatidos optava-se pela criação de um clima ecumênico e pela abertura da faculdade para a sociedade local e seus problemas. Este momento, e a crise que viria a seguir, vistos numa perspectiva de distância do tempo pode ser entendido como o verdadeiro início da faculdade salesiana no seu sentido próprio de academia. Será um nascimento doloroso com rupturas e tensões na busca do equilíbrio na formação de uma verdadeira mentalidade de uma academia. O momento político era tenso e os ambientes acadêmicos eram focos de resistência à ditadura. Desde 1966 alunos já faziam manifestações públicas pedindo mais verbas para educação e o cancelamento do acordo MEC-USAID. Em 1967 o Diretório Acadêmico da Faculdade sofrerá intervenção policial. O presidente do DA apresentou à Congregação da faculdade as dificuldades vividas recebendo apoio da mesma que, inclusive, se dispôs a contratar um advogado em defesa dos alunos. 204 - Padre Antônio da Silva Ferreira nasceu em São José do Rio Pardo, no dia 13 de junho de 1927. Licenciado em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia e Letras de São João del Rei, Teologia pelo Instituto Pio XI em São Paulo e Pedagogia pela Faculdade de Ciências e Letras de Cruzeiro, SP. Doutorou-se em Pedagogia pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Professor e diretor das Faculdade Salesiana, foi assessor para o setor das Escolas da Pastoral Juvenil do Conselho Geral da Congregação salesiana em Roma. Psicólogo. Foi membro fundador do Instituto Histórico Salesiano de Roma, onde atou por 18 anos Foi vice diretor e membro do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. É membro fundador da Associação Nacional de profissionais de administração e membro da Associação de Cultores da História Salesiana, com sede em Roma. Autor de muitos livros sobre educação e salesianidade no Brasil e na Itália. Autor de várias pesquisas com edições de documentos inéditos e artigos em Revistas especializadas. A publicação da última edição das “Memórias do Oratório São Francisco de Sales” de Dom Bosco na edição italiana, posteriormente traduzida para vários idiomas, com comentários e notas historiográficas do padre Ferreira tornou-se um referencial obrigatório para o estudo critico da personalidade, dos escritos e da obra de João Bosco. Sua presença em Lorena foi marcante como pensador, tendo dado à Faculdade Salesiana seriedade, sobretudo na dimensão das pesquisas. No momento da grande crise da universidade em 1968 manteve uma postura acadêmica que, sem abrir mão dos seus princípios, soube respeitar e dialogar com todas as correntes de pensamento e defendê-las publicamente frente à crescente truculência do regime militar. Defendeu a liberdade de pensamento dos alunos marxistas ligados ao DA, desde que suas argumentações estivessem embasadas em critérios científicos da academia. Sua autoridade moral como pensador, escritor, pesquisador e professor granjeou-lhe respeito até mesmo do regime militar, apesar de ter sofrido uma breve detenção. Quando irmã Iracema foi detida por sua liderança política, conta hoje com um sorriso brejeiro, se dirigiu ao comando militar avisando que “estariam criando um sério problema diplomático internacional com o Estado do Vaticano, pois uma das normas da Igreja é que jamais uma freira deveria pernoitar fora do convento. Foi-lhe solicitado então que garantisse que naquele mesmo dia a “irmã revolucionária” fosse banida da cidade de Lorena, o que aconteceu. Atualmente reside na unidade de Santa Teresinha do UNISAL em São Paulo onde atua como professor convidado, pesquisador, tradutor, consultor dos centros históricos do Brasil e de Roma e escritor. 142 Essa atitude da direção foi entendida por quatro membros da direção do DA como sendo uma interferência e com isso parte da direção da representação dos alunos se dividiu e os membros dissidentes pediram demissão. Em Assembléia os alunos optaram por nova eleição. Havia um clima de desconfiança de toda parte. Agentes militares do exercito de Lorena e da aeronáutica de Guaratinguetá estavam infiltrados em todos os segmentos da sociedade. A direção do Diretório Acadêmico de 1968 radicalizava também contra toda forma de autoridade. O aumento da radicalização do processo político nacional, a partir do mês de outubro, acabou por repercutir no interior da vida universitária na Faculdade Salesiana: Era o corre-corre com as urnas da UNE, as reuniões noturnas, e os congressos universitários (...). Eram a divisão de idéias políticas entre padres, seminaristas, professores, alunas e alunos externos, e os alunos do 205 exército e da aeronáutica . As tensões políticas no Brasil se avolumavam. A UNE tornara-se um dos significativos focos de resistência ao regime militar. Neste ano vence a chapa AGIR liderada pelo jovem Ivo Malerba que promovia a mobilização dos estudantes em consonância com o movimento nacional da UNE, setor USP. A faculdade já vinha desde inicio da década se abrindo para algumas questões, isso, porém, sob o crivo de uma visão aristotélico-tomista que fazia uma leitura “crítica” a partir desta ótica. Os conferencistas vindos à faculdade por convite da direção eram alinhados com a linha romanizada da Igreja e mesmo o bispo Dom Padim206, com explícita inclinação 205 - Hércio PEREIRA, apud TOLEDO, op. cit., p. 176. 206 - Dom Cândido Padin – 1915-2008 - Graduado em Direito (USP) Filosofia e Teologia. Foi um dos fundadores da Juventude Universitária Católica no Brasil, Participou do Concílio Vaticano II. Foi bispo auxiliar de Dom Jaime Câmara (1962 e 1965) no Rio de Janeiro atuando como assistente nacional da Ação Católica. Em 1966 foi nomeado bispo diocesano de Lorena, onde permaneceu por quatro anos e a seguir foi bispo de Bauru até 1990 quando retornou ao Mosteiro de São Bento de São Paulo. Na CNBB trabalhou no setor de comunicação social e de educação. Presidiu o Departamento de Educação do Conselho Episcopal Latino-Americano - CELAM (1967-1972). Foi consultor da Congregação para a Educação Católica, entre 1968 a 1973. (espaço) Em 1962, no governo João Goulart foi membro do Conselho Federal de Educação. Foi vice-reitor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Empenhado na causa da justiça e da promoção humana, foi um dos primeiros juristas a denunciar a inconstitucionalidade da Lei de Segurança Nacional durante o regime militar. Era considerado um bispo da ala progressista da Igreja Católica por seu engajamento social e político. Insistia que a vocação dos leigos exigia que fossem agentes transformadores da sociedade. Atuou, ainda, no setor de comunicação social e de educação da CNBB. Foi membro do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), presidindo o Departamento de Educação. Fundou, em Bauru, a Comissão de Justiça e Paz, atento à dignidade da pessoa humana, conforme sempre se empenhou 143 para a Teologia da libertação, apesar de suas convicções pessoais, por ser membro da hierarquia católica, devia manter certa postura esperada de um bispo de uma conservadora e provinciana cidade do interior. A greve dos 100 dias dos estudantes no ano de 1968, porém, precipitou os acontecimentos assumindo um contorno que escapava ao controle dos padres salesianos. A ala radical do DA pretendia o controle da gestão da faculdade assumindo algumas estratégias para enfraquecer a interferência dos salesianos: proibiu a presença de professores nas assembléias, sabendo ser na sua maioria religiosos salesianos; marcou as assembléias na ala feminina, esperando que os clérigos estudantes não participassem pelas restrições do seminário que impedia por seus regulamentos que os clérigos convivessem ou freqüentassem ambientes femininos. No livro Uma Lacuna na História207 é apresentada a descrição da situação da faculdade salesiana no ano de 1968 a partir da ótica de alunos que destacam acontecimentos, nomeiam educadores salesianos e salesianas, assim como leigos que estiveram intelectual e fisicamente ao lado deles nos momentos de repressão da ditadura militar. A estratégia que os superiores salesianos adotam para enfraquecer o movimento estudantil era a de que os clérigos participassem das assembléias sem batina e que estudassem os “livros proibidos208” para estarem aptos a participarem dos debates. em unir a promoção humana à evangelização de modo especial em favor dos pobres e excluídos. Foi um dos primeiros juristas a apresentar estudo sobre a inconstitucionalidade da Lei de Segurança Nacional em vigor no período da Ditadura. Destacou-se assim dentre o episcopado brasileiro. Cf. CNBB. Pastoral Familiar. Disponível em: < http://www.pastoralfamiliarcnbb.org.br/novo_site/noticias/noticia.asp?id=1092>.Acesso 207 em: 10 out. 2011. - Destacam-se os professores José Luiz Pasin, Irmã Iracema Farina, Irmã Olga de Sá, Padre Carlos Leôncio, Padre Antonio da Silva Ferreira, Padre Eliseu Cintra. Todos são intelectuais de destaque comprometidos com o mundo acadêmico formados com o verdadeiro espírito do Ensino Superior. Junte-se a estes, também destacado pelos alunos, o bispo Dom Cândido Padim também alinhado com as lutas estudantis. Este livro recebeu no Congresso da Intercom – encontro de pesquisadores, profissionais e alunos de comunicação do pais dois prêmios: primeiro lugar como livro reportagem e o melhor trabalho de jornalismo do Brasil de 1997. Cf. BORREGO et al., 2000. 208 - O Capital; Manifesto Comunista. 144 O prolongamento da paralisação das aulas gerou cansaço nos próprios alunos que começaram a temer a perda do ano letivo, e enfim as aulas retornam enquanto o líder estudantil Ivo Malerba é preso no Congresso da UNE de Ibiúna209. Neste ano de 1968 a Faculdade Salesiana deveria apresentar ao Ministério da Educação o seu novo regimento com a participação do corpo docente e discente. Essas tensões, porém, comprometeram todo processo, com o retorno das aulas após quase cem dias de paralisação. Padre Ferreira, encarregado de redigir as contribuições dos alunos e professores para o novo regimento da faculdade, não consegue obter a contribuição destes últimos e, usando de uma estratégia, protocola o processo em Brasília sabendo que, incompleto, o regimento entraria em diligência, quando se teria tempo para recolher as contribuições do corpo docente. Três episódios, porém alteram o processo. O Ato Institucional No. 5210 radicalizará o golpe militar com a suspensão dos direitos civis; o regime militar assume uma política educacional211 tecnicista e finalmente no âmbito interno em Brasília a senhora Nair Fortes Abu-Mehry, ao perceber as falhas no processo das faculdades salesianas, ao invés de submeter o documento a diligências, por conta própria completa o que faltava, fora de todo ideal da participação acadêmica, e, mais ainda, divide a faculdades em duas, uma das irmãs, o Instituto Santa Teresa,212 e outra dos padres. Da crise emergia, paradoxalmente, sem conhecimento das partes, duas faculdades. Eis como padre Ferreira narra este episódio: Preparou-se um regimento que tratava somente da estrutura da faculdade deixando em descoberto outros itens. Tal regimento, entregue em tempo, satisfaria a exigência de prazo do CNE e cairia em diligência. No satisfazer a diligencia, já com um ambiente mais calmo, seria possível uma comissão estudar o regimento definitivo. E foi o que se fez preparando-se um regimento parcial e protocolando-o no MEC. A diligência não veio. Tratavase da aprovação de um curso novo na faculdade e era necessário um Regimento de acordo com a lei. Dona Nair Fortes Abu-Mehry, relatora do processo, fazendo notar as incoerências e falhas do regimento aprovado, preparou ela mesma um regimento novo, que foi aprovado e enviado para Lorena. Evidentemente os grandes debates sobre a aplicação do sistema 209 210 - 12 de outubro de 1968. - 3 de dezembro de 1968 211 - Lei 5,540/68 de 28/11 impõe a reforma do Ensino determinado pelo acordo MEC/USAID. “Os Decretos leis 464 477 de 1969 davam o golpe de misericórdia nos avanços e sonhos desenvolvidos pela Faculdade Salesiana, na busca de sua reestruturação”. Cf. TOLEDO, 2003, p 177. 212 - Atual FATEA – Faculdades Integradas Santa Teresa D’Ávila, das irmãs salesianas. 145 educativo de Dom Bosco na faculdade e demais preocupações da assembléia Universitária não figuravam nesse regimento. Ao Mesmo tempo, a Escola Superior de Ciências Domésticas e Educação Rural das FMA (irmãs salesianas), que era uma instituição ligada à faculdade salesiana, foi 213 reconhecida como faculdade independente . O tumultuado ano de 1968 em Lorena é visto, pelos superiores de São Paulo e de Roma como um período de desestabilização do seminário e, não tendo captado o que efetivamente acontecera, entendem que é preciso pôr ordem na casa214. Os jovens clérigos tinham saído vitoriosos dos embates nas assembléias. Muitas das idéias que haviam combatido, porém, não deixaram de tocá-los, como os conceitos de participação, liberdade, decisões colegiadas e acesso a pensadores fora do eixo tomista. Ao retornar para a vida regular do seminário, suas mentes já não eram as mesmas. Os livros de atas das reuniões dos superiores demonstram preocupações com os “tempos atuais”. Sem que os superiores percebessem, os formandos haviam “se contaminado” em parte com os ideais e mentalidade dos anos 60. Na ótica dos formadores era o momento de reordenar e disciplinar o seminário. Enquanto o AI 5 impunha uma linha dura à sociedade, o mesmo acontecia com a casa de formação. Professores salesianos progressistas são transferidos. Seminaristas rebeldes e progressistas são dispensados. O novo diretor apresenta-se como quem veio restaurar a ordem e disciplina215. Essa proposta, porém, que representava um forte freio na vida do seminário, não iria apresentar os resultados que imaginavam os superiores-interventores. A vida do claustro voltava à rotina monástica216. O sino, sinal da voz de Deus, ecoava pelo cortile indicando os horários sagrados da liturgia e da vida. Tudo aparentemente voltava ao ritmo do passado, como deveria ser. Tudo. Menos as mentes. Nelas palpitavam as idéias de liberdade, 213 - Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice-diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, MG, 16 de julho de 2002. In: CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Lorena. Arquivo CEDOC – UNISAL – Unidade de Lorena – SP. 214 - Ibidem. 215 - TOLEDO, op. Cit., p. 186. 216 - Tanto o termo “claustro” como “monástica” são aqui usados de modo impróprio. A vida salesiana possui toda uma organização interna com regulamentos e vida em comum. Prevalece, porém, um clima de família muito diferente dos mosteiros. Elas aqui são usadas apenas para definir a regularidade, a sistematicidade do cotidiano duma casa religiosa, mas são usadas de forma até caricata. 146 participação, luta contra a opressão do governo, da igreja, dos formadores e do conservadorismo. Acreditava-se que era tempo de aggiornamento, rupturas com estruturas, opção preferencial pelos pobres. Tudo era igual. Externamente tudo volta a ser igual. Menos as mentes. Então tudo era diferente... as décadas seguintes no seminário não serão tranqüilas. A mão de ferro, que procurava a tudo pôr em ordem, não conseguirá mais domesticar as mentes, nem adestrar os corações. Serão anos de rebeldias em que a militância política contra todas as formas de opressão encontrarão na Igreja e em suas alas mais progressistas o amparo e a defesa. A “pax” imposta pelo novo diretor será só momentânea. Os atos de rebeldia no seminário não deixarão de conhecer retaliações contra os clérigos que não mais possuem o espírito de obediência. A década de 60 representará uma forte reorganização e redimensionamento do mundo e da sociedade. O Vaticano II estabelecerá um novo modelo de igreja, já que o antigo mostrava-se inadequado para um mundo em crescente processo e mudança. Milhares de sacerdotes e religiosos abandonam a igreja, não mais conseguindo se identificar com antigos modelos e tão pouco sendo capazes de elaborar novos, com fortes baixas no numero de vocações religiosas e sacerdotais, havendo crise de identidade mesmo para os que permaneceram nas suas fileiras. Na faculdade salesiana o número de clérigos decai radicalmente, não representando mais a maioria dos alunos. Por outro lado, a Lei da Reforma Universitária217, imposta a todas as instituições de Ensino Superior, criava um novo modelo de universidade tecnicista, distante de um modelo social inovador, transformador e revolucionário218. Entre os anos de 1969 e 1972 duas coisas se explicitam para os salesianos mais esclarecidos. A tentativa de volta ao modelo do antigo seminário não era mais viável como fora no passado. A Igreja mudara com o Vaticano II. As vocações diminuíram drasticamente, com boa parte do clero em crise de identidade frente a um mundo de rápidas mudanças tecnológicas, sociais e, sobretudo, de mentalidade. O sonho da reestruturação da faculdade nos moldes de um seminário estava acabado, pois ela 217 - lei 5.540/68. 218 Cf. TOLEDO, 2003. p. 180 147 deveria se enquadrar ao modelo de uma escola superior atendendo às exigências do MEC e do mercado. O Novo regimento será aprovado no dia 12 de dezembro de 1972 pelo parecer 1.433/72, organizando-se segundo o modelo tecnicista imposto pelo regime militar. O novo diretor das Faculdades salesianas, Padre Anderson Paes da Silva, tomara posse em agosto de 1969, “com a leitura da Sagrada escritura em que se viam claras as dimensões da verdadeira autoridade”219. O governo do novo diretor mostra-se de imediato ousado, abrindo novos cursos já nos anos seguintes, como Química, Ciências Naturais e Psicologia. Em 1971 já se conta com 11 Cursos. Em 1970 termina a divisão dos alunos por sexo a partir do curso de Psicologia. Essa rápida modernização da faculdade, porém, não foi bem absorvida pelos formadores. O curso de Filosofia deixou de ser oficialmente desenvolvido pela faculdade. Ele continuou existindo para os alunos internos, os clérigos salesianos, no ambiente separado da faculdade, junto ao Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia, que passou a ocupar todas as dependências que até então abrigara a faculdade. A sua oficialização foi resolvida com a aplicação de exames de validação. O motivo do surgimento da Faculdade Salesiana de Lorena como “doação do Estado que autorizou seu funcionamento, reconheceu seus cursos e validou os documentos expedidos”220 fora o de se ter um espaço especial de formação de professores e educadores salesianos com diplomação reconhecida pelo governo. “A Faculdade foi criada para a formação dos seminaristas, e ao multiplicar seus cursos, ela se desestruturou”221. Essa ambigüidade inicial obstaculou a formação de uma verdadeira mentalidade universitária. Alguns salesianos, como padre Leôncio e padre Ferreira, vivenciaram e defenderam esses ideais da verdadeira universidade. Serão homens fora de época. Passada as crises da década de 60, quando enfim as faculdades assumem seu perfil de Escola de Ensino Superior, os Cursos de Pedagogia e Filosofia se desligam da faculdade reconhecida pelo governo e se recolhem à interioridade do claustro e do cortile no Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia sob a visão escolástico-tomista. As validações darão legalidade aos 219 - Ibidem, p. 187. 220 Ibidem, p. 200 221 - Guido NASCIMENTO, apud TOLEDO,2003, p. 193. 148 “estudos de seminário” não só dos salesianos, mas também de seminários de dioceses e de pastores de igrejas evangélicas. Uma parte dos salesianos professores recolheu-se como professores no Instituto, deixando a faculdade. Em 1975 as divergências ideológicas com as irmãs salesianas se radicalizam e surge a ruptura afetiva e efetiva de mentes, deixando mágoas, ressentimentos e cicatrizes que não mais se apagarão, assumindo-se definitivamente a separação legal e de corações, o que já fora feita formalmente pela senhora Nair Fortes Abu-Mehry, criando-se Instituto Santa Teresa (FATEA). Com tristeza relembro um período de crise da Faculdade, no momento em que as duas, a “Masculina” e a”Feminina” pareciam se dividir, sem ter nada uma com a outra: briga com os padres, as freiras, os alunos, 222 incompreensões, discussões (...) . A Faculdade nesta década de 1970 começa a se organizar atendendo à demanda do mercado, quando o corpo docente de sacerdotes é substituído por leigos. Há a preocupação de se contratar, na medida possível, ex-alunos que tivessem, além da competência profissional, a formação salesiana. O curso de psicologia foi composto em boa parte com professores oriundos de correntes conflitivas, o que representou a primeira grande quebra da unidade da faculdade. “Havia conflitos entre professores contratados da PUC de Campinas (que seguiam orientação skineriana, na linha comportamental) com outros professores cuja orientação era rogeriana ou freudiana (Andrade 15)” 223. A faculdade de Lorena se consolida apesar da linha tecnicista imposta pelo golpe militar, continuando numa linha de uma educação libertadora ligada ao pensamento de Buga224, Medellín225 e mais tarde Puebla226. Apesar dos clérigos terem sido retirados da faculdade reconhecida pelo governo para o interior do antigo Instituto de Filosofia não reconhecido, validando só posteriormente os estudos, muitos deles haviam absorvido uma mentalidade crítica própria do ensino superior. 222 - Ney GUIMARÃES, Apud TOLEDO, 2003, p. 191. 223 - Ibidem, p. 193. 224 - Documento de Buga – fevereiro 1967. 225 - Documento de Medellin - 1968. 226 - Documento de Puebla – 1979. 149 Os diretores salesianos dos primeiros tempos da faculdade serão ex-diretores de escolas de primeiro e segundo grau, sem uma visão universitária, em contraponto, outros serão egressos destes tempos de confrontos e terão presença marcante na configuração do Ensino Superior salesiano. Os salesianos obedientes às orientações do Vaticano procuram assumir as orientações pós-conciliares e dos documentos de Buga e Medellín, ainda que tendo de conviver com os constantes ajustes do Estado, como em 1961, com a promulgação das leis de diretrizes Básicas da Educação Nacional, com a centralização do ensino de 1964 e com modelo tecnicista de 1968. Preocupam-se em formar os alunos para o mercado, mas também imbuídos de valores humanocristãos e salesianos. A partir da década de 1980 o número de salesianos vai diminuindo e aquela figura do salesiano sonhada por dom Bosco como “alma do recreio” no meio dos jovens vai desaparecendo das salas de aulas e do recreio, pela diminuição de pessoal salesiano, sobrecarga de trabalho e mesmo desinteresse em trabalhar no meio universitário. De fato a ampliação desmedida das obras vai comprometendo a pedagogia da presença que vai sendo transferida para funcionários, nem sempre afinados com a pedagogia e os princípios educacionais da instituição. Para muitos salesianos a nomeação para o trabalho na faculdade é suportado como obediência religiosa, sendo assumido sem paixão e comprometimento. O crescimento das obras vai comprometendo na raiz a pedagogia da presença que passa a ser terceirizada. São novos tempos... 150 2.4.2.2 - Faculdade Salesiana de Americana - Humanista e Pedagógica A presença dos salesianos em Americana227 se deu a partir do empenho de exalunos do Liceu Nossa Senhora Auxiliadora de Campinas228 que residiam nesta cidade e que se mobilizaram para que a obra salesiana fosse aí implantada e, por meio do ex-aluno do liceu de Campinas, Eric Marrhiensen, entram em tratativas com a sede da congregação para esse fim. Houve apoio por parte da prefeitura que tinha carência de escolas primárias, frente ao rápido crescimento da população e do bispo, que conhecia e desejava a presença salesiana na diocese, pois faltavam sacerdotes para atender as diversas colônias de italianos. Em 16 de outubro de 1949 o trem especial da Companhia Paulista de Estradas de Ferro deslocava para Americana os superiores maiores da Inspetoria de São Paulo e seiscentos alunos do Liceu de Campinas com sua banda de Música que festivamente percorreu as principais ruas da cidade abrilhantando a inauguração da obra salesiana, com a presença de autoridades civis, militares, religiosas e grande multidão. Começava o Oratório Festivo e uma Escola Primária229. A experiência escolar durante várias gestões, porém, não foi suficiente para consolidar economicamente a obra. De 1949 até 1968 passaram por ela cinco diretores 230 sem conseguirem equilíbrio econômico. Apesar do grande envolvimento com a comunidade e uma significativa vitalidade, as questões de sobrevivência se 227 - Tanto na apresentação do histórico de Americana como de Campinas seremos mais sucintos, pois essas fundações seguem um caminho menos conflitivo como instituições de terceiro grau na sua organização interna, ainda que tenham sido fundações que geraram estremecimentos em nível de congregação religiosa, por serem atos de rebeldia de seus diretores. 228 - O Liceu foi fundado em 25 de julho de 1897 pelo empenho do jovem cônego João Batista Corrêa Nery como Liceu de Artes e Ofícios para atender os jovens órfãos da peste de 1889 que se abatera sobre a cidade dizimando inúmeras famílias. A partir desta fundação partiu-se para o internato com escola que atenderia a jovens de toda a região paulista. 229 - DENARDI, Cláudia Bevilaqua; BARBOSA, Silvana Mota. Os Salesianos em Americana: 50 anos tecendo a educação. Campinas: Arte Brasil, 2001, p. 10-27. 230 - 1949-1952 P. Osvaldo de Andrade; 1953-1954 P. Luiz Gonzaga de Oliveira; 1955-1960 P. José Del Mônano; 1961 P. Fausto Santa Catarina; 1961-1968 P. José Dal Mônaco. 1968-1974 P. João Baldan. Ibidem, p. 14. 151 agravavam seriamente. Toma-se, então uma drástica decisão. Em 1968 o padre João Baldan é nomeado diretor com instruções de encerrar as atividades da casa caso não conseguisse resolver sua viabilidade econômica. No seu dizer, “tinha como missão fechar tudo”. Apostava-se na sua nomeação como última cartada nessa obra fadada ao fracasso. Em 1970 o novo diretor celebra um convênio com a prefeitura para manter uma escola municipal onde se aplicaria a pedagogia salesiana com a estrutura e funcionários mantidos pela cidade. Já no mesmo ano se percebe que o projeto não daria certo, pois os professores se mostravam resistentes em assumir o estilo de educação salesiana, sendo o convênio desfeito no fim do ano, com reflexos em 1971 quando a fragilidade financeira é sentida de modo especial. No livro do Conselho da casa do dia 15 de abril de 1971, após vários arrazoados sobre a saturação do mercado de escolas de primeiro e segundo grau na cidade de Americana, padre Baldan conclui com a seguinte reflexão: Pensa-se então numa obra que possa garantir a vida das demais. Essa obra seria uma faculdade? Um curso técnico superior? Não sabemos, precisamos de levantamentos, e de estudos, digo, de pesquisa de 231 mercado . Uma pesquisa inicial mostra que a cidade está em franco crescimento com a perspectiva da construção de grande numero de escolas para atender à crescente população, atraída, sobretudo pela indústria têxtil. Constata-se, porém, não existir cursos superiores na cidade232. A isso se soma uma política adotada pelo governo militar que, numa ótica progressista, promove entre o final da década de 60 e início da década de 70, uma política favorável à autorização de abertura de novas instituições de ensino superior que atendessem a essa procura233. Deve-se lembrar, porém, que os salesianos estavam traumatizados com os eventos ocorridos na faculdade de Lorena no ano de 1968. As greves estudantis em que se havia perdido o controle da situação consolidavam para muitos a certeza que a congregação não nascera para atender ao ensino superior. Além disso, sob a influência dos 231 - Ibidem, p. 68. 232 - Ibidem, p. 89. 233 - Ibidem, p. 93. 152 movimentos eclesiais de base, crescia em outros não só a rejeição ao ensino superior, mas ampliava-se o questionamento sobre a atuação nas escolas de primeiro e segundo grau para classe média que, entendiam, fugia ao carisma fundacional. Levar, portanto, o tema da fundação de uma faculdade em Americana ao Capitulo234 seria ter a questão sepultada para sempre. Padre Baldan assume a criação da faculdade unilateralmente,235 justificando-se: Argumentavam muitos salesianos: "nós fomos feitos e criados por dom Bosco para tomar conta de meninos e da juventude. Mas eu sempre pensei assim: a juventude é o maior tesouro de um povo, os meninos são a jóia das famílias, mas o homem vai crescendo, e vai amadurecendo, e vai se formando e nós precisamos formar homens para o dia de amanhã. 236 “Cabeças que saibam governar como se deve ”. Por iniciativa pessoal padre Baldan abre o processo de criação da faculdade que é aprovada em 10 de maio de 1971 pelo Conselho Nacional de Educação, 237 sendo oficializada no Diário oficial pelo decreto do dia 13 de julho de 1971, 238 com aprovação das faculdades de Educação, Administração de Empresas e Serviço Social. A aprovação é objeto de uma festa improvisada no Instituto Dom Bosco para onde acorrem autoridades e amigos dos salesianos para se confraternizarem pela conquista indicando o envolvimento da sociedade americanense, que entendia que essa fundação correspondia aos seus anseios, uma resposta para uma real 234 - O “Capítulo” nas congregações religiosas é uma assembléia periódica que toma decisões com poder de lei e que só podem ser vetadas pelos superiores maiores de Roma. Um veto ao ingresso neste caso tornaria legalmente inviável qualquer possibilidade de abertura de um curso superior e certamente essa decisão capitular em São Paulo seria sancionada pelos superiores maiores de Roma. 235 - Não é objetivo de nossa pesquisa fazer um levantamento dos bastidores deste processo de aprovação. A historiografia oficial fala da estratégia da fundação de uma Instituição leiga constituída por personalidades da cidade e que assumiriam a gestão da nova faculdade. O fato é que padre Baldan tendo tirado férias, ao retornar à Inspetoria havia assumido a condução dessa nova fundação. Cf. DENARDI et al., 2001, p. 91-100. 236 237 238 - Cf. Entrevista a padre Baldan, apud DENARDI et al., op. cit., p. 93. - Ibidem, p. 97. - Ibidem, p. 97. 153 demanda dessa comunidade. Da mesma forma o decreto de 12 de julho foi saudado por um foguetório danado na cidade!239 O surgimento da faculdade salesiana de Americana possui características diferentes da de Lorena240, pois, ainda que não fosse um projeto oficial da congregação, nasce com raízes numa sociedade que a quer, assume e dela participa respondendo às necessidades regionais e ao mercado com envolvimento da igreja, das autoridades civis, de educadores e empresários. Padre Baldan241, condutor primeiro deste processo, tem ainda consciência das limitações com que se começa essa frente de ação salesiana. os salesianos tinha experiência com o ensino fundamental e com alguns professores leigos que eram contratados, contudo, agora se deparavam com outro profissional, o professor universitário, e também com um novo perfil de aluno, adultos e trabalhadores. Nossa estrutura universitária, o relacionamento entre os salesianos e os professores era algo novo, pois requeria uma instância de decisão mista, de leigos e salesianos, para garantir os rumos do ensino superior. pois poucos percebiam que formar um ambiente universitário seria algo que provocaria mudanças não só nos espaços físicos da casa, mas também na mentalidade, dos padres e cooperadores da obra. E uma mudança desta natureza demanda tempo. O terreno desconhecido foi sendo explorado com muito trabalho de todos 242 aqueles que queriam ver a faculdade funcionar. É importante verificar a lucidez do primeiro diretor nessa etapa da fundação. De certo modo, essa fundação "era sua," por não ser uma opção oficial da congregação, mas um corajoso ato seu contra a mentalidade da maioria dos salesianos da época 239 - Ibidem, p. 27. 240 - Na pesquisa realizada fora das produções da historiografia salesiana, nunca se encontrou até o presente momento nenhuma referência à fundação da Faculdade salesiana de Lorena. Ainda que tenha sido criada por decreto presidencial e, portanto, histórica e legalmente, devidamente documentada, sua criação é desconhecida para a maioria dos historiadores da educação no Brasil, o que reforça a tese do professor Sodero de ser uma “fundação singular”. 241 - Em pesquisa de campo tivemos sinalizações que essa fundação causou certo mal estar em alguns segmentos da Inspetoria por se ter feito sem anuência expíicita do comando central. Nos bastidores do livro “Os salesianos em Americana: 50 anos de Educação”, houve censura a uma pretendida homenagem ao padre Baldan porque então alguns ressentimentos ainda estavam vivos. Aos poucos, porém, vai sendo reconhecido como um visionário e responsável pelo início de um projeto que representa uma das grandes frentes e referência da presença salesiana no Estado de São Paulo. Esses bastidores, porém, não serão objeto de nossa pesquisa, mas mereceriam futuras pesquisas de acontecimentos que hoje só podem ser captados na oralidade das narrações. 242 - Ibidem, p. 99-100. 154 que acreditavam que o único espaço de trabalho deveria ser, dentro de um conceito de fidelidade ao fundador, junto de adolescentes. Fora ousado, pois tendo recebido ordens que encerrar as atividades de uma obra, não só não a encerrou, mas a incrementou, tornando-a maior e ainda acima de tudo e de certo modo, na contra mão da história e tradição da inspetoria, fundando uma faculdade - que se tornaria mais tarde a sede do Centro Universitário Salesiano. Foi um homem de visão, pouco entendido nessa época. Enquanto no inicio da década de 1970 Lorena procurava “restaurar a autoridade,” fechando-se, Americana iniciava suas atividades em profunda sinergia com a sociedade onde estava se implantando. 155 2.4.2.3- Faculdade Salesiana de Campinas - Tecnologia e Pesquisa Em comemoração ao cinqüentenário do Liceu Nossa Senhora Auxiliadora de Campinas, fundado em 25 de julho de 1897, foi lançada a pedra fundamental de uma nova obra salesiana na cidade, a Escola salesiana São José. Em 25 de maio de 1952 fundava-se oficialmente esta obra que foi projetada para ensino da prática agrícola243. Esse projeto já existia como uma ramificação das atividades do liceu através da Escola Agrícola Campineira. Em 1950 já se havia construído imponente complexo para ministrar cursos profissionalizantes e agrícolas a meninos pobres, órfãos e necessitados244. A evolução dessa obra foi rápida adequando-se às modificações da economia produtiva de Campinas, respondendo de imediato às transformações econômicas da cidade que se tornava importante pólo industrial e tecnológico da região. Na primeira década de 1950 instalara-se a Escola Agrícola com o internato e uma escola regular. Na década de 1960, período politicamente conturbado, sobretudo nos governos de Jânio Quadros e João Goulart quando se discutia a intelectualização do ginásio secundário que se mostrava inadequado às exigências político-econômicas245 porque, para pessoas de baixa renda e que deviam se integrar no mercado de trabalho, esse estudo nada acrescentava, pois saíam da escola com uma cultura inútil. Acreditava-se que a escola deveria ter um caráter eminentemente social, assumindo o ginásio industrial, que mantinha seu caráter de cultura geral, permitindo, entretanto uma iniciação em atividades nos ramos industriais predominantes na região da escola246. Nos fins dos anos 60, sensíveis a essas demandas, muitos salesianos da escola partiram para cursos de aperfeiçoamento e especialização em eletrônica, artes gráficas, marcenaria, mecânica de máquinas e tudo o que se mostrasse tecnologicamente necessário para responder às rápidas mudanças industriais da região. As oficinas são rapidamente modernizadas com a criação do Ginásio Industrial. Segundo a tese de doutorado de Maria de Lourdes Pinto de Almeida, o pioneirismo da Escola São José 243 - SANTOS, Manoel Isaú dos. Com Dom Bosco e com os Tempos. Campinas: Escola Salesiana São José. Campinas: Arte Brasil, 2003, p. 32. 244 - Ibidem, p. 62. 245 - Ibidem, p. 86. 246 - Ibidem, p. 88 – Esta política assumida pela escola estava de acordo com o decreto 50.942 de 25 de abril de 1961. 156 antecedia ao da UNICAMP247. Neste momento os contatos internacionais em busca de tecnologia e recursos passaram a ser uma das marcas da escola que perdura até hoje. Avançou-se para tudo que estivesse na vanguarda da tecnologia da época: Eletrônica Geral, Áudio e Tele-comunicações, Metrologia Eletrônica, Eletrônica Industrial e Computação Digital. Ao mesmo tempo vão sendo desativados com rapidez cursos que deixavam de ter interesse no mercado, como por exemplo, o de Artes Gráficas, que é transferido para a Editora salesiana no bairro da Mooca em São Paulo. Intensificavam-se as parcerias internacionais, especialmente com a Misereor Alemã e com grandes empresas multinacionais implantadas ou em fase de implantação na região que, em parceria com a escola absorvem a mão de obra especializada formada por ela. A escola assume um perfil eminentemente profissionalizante tornando-se também responsável pela formação de salesianosirmãos que na congregação são religiosos não sacerdotes, que se tornam profissionais qualificados e trabalham nas oficinas como educadores e mestres de oficio248. A escola São José passa a ser uma referência na formação profissional na congregação salesiana para toda a América e África. Na década de 70 a Escola São José ingressa no ramo da eletrônica, respondendo ao modelo tecnicista do governo golpista. O Brasil precisava neste período formar cinco mil técnicos por ano e formava mil. A região Metropolitana de Campinas vê ameaçado seu progresso pela falta de técnicos para sua expansão, estando este 247 248 - Ibidem, nota 93, p. 100. - A compreensão desta vocação religiosa é de difícil entendimento no sentido como foi elaborada por João Bosco, porque revolucionária para o seu tempo. No seu conceito o que existe é a vocação salesiana, isto é, aquelas pessoas que se sentem chamadas por Deus para educar a juventude com o sistema preventivo baseado na Razão, Religião e Bondade. Podem ser leigos, casados e, até... padres. O Vaticano para aprovar sua obra engessou-a dentro dos padrões de outras congregações. No século XIX ele, apesar de sua formação medieval, falava em “padres em mangas de camisa”. Assim dentro da moderna Congregação salesiana existem padres e irmãos. Por imposição da igreja o diretor religioso de uma comunidade sempre deve ser um padre. Mas todas as outras funções podem ser exercidas por irmãos leigos como diretores de escolas, universidades, obras sociais, economatos etc, tendo inclusive sob sua jurisdição sacerdotes. No inicio das suas obras sociais João Bosco contratou profissionais para ensinar aos aprendizes. Percebeu, porém, que esses não ensinavam os segredos da profissão, pois teriam nos seus próprios alunos futuros concorrentes. Muitos jovens entraram na congregação sem o desejo de serem padres, mas dispostos a se consagrem na vida religiosa se profissionalizando. Esse é o perfil definido do chamado “irmão salesiano”: um religioso consagrado por votos e que é um profissional qualificado se fazendo presente nas oficinas como mestre de ofício e educador. Sua atuação modernamente se estende a todos os campos de atuação salesiana. 157 profissional no meio termo entre o engenheiro e o trabalhador qualificado 249. Os técnicos formados na região de Campinas não conseguiam sequer atender à demanda no campo da eletrônica e da computação das empresas IBM e Companhia Telefônica Brasileira, que ofereciam boa remuneração. Por se tornar um importante pólo de atração de empresas de tecnologia de ponta, a região metropolitana da cidade já era denominada de a região do silício brasileira. A direção da escola possui sensibilidade a essa exigência de mercado e age com rapidez. Em convênio com a MISEREOR250 obtém-se moderno equipamento da Alemanha e de imediato instala-se a ETEC251 com apoio do Banco Itaú e a presença dos primeiros técnicos252 da Alemanha que se hospedavam na própria comunidade salesiana. São celebradas parcerias com grandes multinacionais de eletrônica instaladas no Brasil com urgência de mão de obra especializada, além de diversos convênios com empresas do Vale do Silício nos Estados Unidos. O avanço e sucesso da ETEC se tornam de tal nível que muitas multinacionais, agora parceiras da escola, a pressionam para que abra cursos superiores que possam melhor atender às crescentes demandas de mercado, já que apenas tecnólogos não atendem a todas as necessidades destas empresas em crescente necessidade de mão de obra cada vez mais especializada. Começam em nível Inspetorial as discussões da necessidade da implantação de uma faculdade de tecnologia. A resistência é total. Além do Ensino superior não ser contemplado no carisma salesiano e já se ter duas faculdades, Lorena e Americana, os salesianos não possuíam experiência na área tecnológica em nível superior, além do que muitos entendiam que a área de atuação da congregação era na dimensão humanística e não tecnológica. Os salesianos que dirigem a escola, porém, vivenciam o problema 249 - Ibidem, p. 116 et seq. 250 - A MISEREOR é uma organização católica alemã que capta recursos no período da quaresma com a finalidade de ajudar instituições ligadas à igreja católica no campo social. Existe movimento similar que capta recursos no tempo do advento e cujos recursos são aplicados em obras especificamente religiosas, chamando-se essa organização de ADVENIAT. 251 252 - Escola Técnica de Campinas - Fundada em Primeiro de março de 1972. - Era contra os regulamentos da congregação salesiana que não salesianos se hospedassem e convivessem na comunidade religiosa. A premência, porém, em implantar e implementar novos programas da ETEC eram considerados de tal urgência, que essas normas foram decuradas. Os primeiros a serem hospedados foram Walter Gotzemberger, mecânico de rádio, e Christoph Shween, engenheiro eletrotécnico. Cf. ISAÚ,. 2003, p. 118, nota 107. 158 mais de perto e conseguem uma primeira e tímida vitória. O Capitulo Inspetorial de 1975 admitiu ao menos estudar o tema. Superiores de Roma, porém, acreditam não ser o momento de se tratar disto e travam essas pretensões: Em 1975, o Capítulo Inspetorial, art. 48, aprovava o estudo da viabilidade da implantação dos cursos superiores da Escola Salesiana São José. Mas por ocasião da sua visita extraordinária, o padre Edmundo Vecchi dava parecer desfavorável, aduzindo o seguinte: “não é o caso no momento de pensar 253 em faculdade, ao menos por nossa conta”. O diretor padre Juvenal Zonta não se dá por vencido. Os estudos continuam. No dia 18 de abril de 1977 é realizada uma reunião com o professor Sérgio Zanilato que apresenta um longo relatório em que apresenta situações favoráveis. (...) Nesta perspectiva, quer-me parecer que a Escola Salesiana São José está situada numa região das mais propícias uma vez que inúmeras são as indústrias e empresas de Campinas e região circundante que diariamente estão a solicitar técnicos. Faz-se conveniente lembrar aqui que nem a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), nem a Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC), possuem ainda muita iniciativa ou atividade relativa a cursos superiores de curta duração (a não ser na área da Tecnologia de alimentos), por falta de espaço físico ou falta de instalações adequadas e de material específico a ser utilizado nesses cursos. (...) Quanto às instalações devo afirmar que, dentro de todas as escolas que visitei em inspeções pelo MEC, seguramente colocaria estas no grupo das melhores. À qualidade das instalações acresce o corpo docente especializado em eletrônica e telecomunicações, bem como o prestígio que a escola goza na região de Campinas. “Tudo isso me leva a crer que a iniciativa de instalar curso de alto nível superior é altamente viável e apenas com gastos relativamente pequenos poder-se-ia aproveitar o equipamento 254 já existente e atender a enorme clientela que aspira e tem solicitado ”. São realizadas conferências na ETEC ainda neste ano com diretores de universidades e pessoal ligado à gestão de indústrias sobre a necessidade do curso superior de tecnologia255. Neste momento o diretor da Escola São José não titubeia: está certo, moralmente, que esse é o caminho e parte para a solicitação unilateral da aprovação da faculdade, o que acontece no dia 26 de fevereiro de 1980, quando o Conselho Inspetorial se mostra surpreso ao tomar conhecimento desta aprovação, 253 - Ibidem, p. 130. 254 - Ibidem, p. 131. 255 - Ibidem, p. 131-133. 159 pedindo a presença do diretor da Escola para obter informações oficiais do fato 256. Esta faculdade será denominada FASTEC257, sendo uma continuidade do curso de tecnologia da ETEC, e tendo sua base na computação e robótica. Esse estilo de Faculdade deixava completamente perplexos os salesianos mais conservadores que viam na formação humanista e não na tecnológica o espaço da ação de educadores. Desta vez a resistência à implantação da faculdade foi forte. Nem mesmo o conselho inspetorial conseguia unanimidade. Além dos altos custos, considerava-se o problema pastoral de como passar os valores salesianos num espaço voltado especificamente para a tecnologia. Passaram-se sete anos da aprovação e só sob a direção do padre Vicente Moretti Guedes, a conselho de alguns salesianos, instalaram-se os cursos, após se verificar que os mesmos não haviam caducado, porque baixados via-decreto presidencial estando a autorização ainda válida258. Implantava-se a terceira faculdade salesiana da Inspetoria Salesiana, sendo uma continuidade natural da ETEC, a FASTEC, que apenas plenificou os convênios e parcerias mantidas em nível nacional e internacional. 256 - Ibidem, p. 173. 257 - Faculdade Salesiana de Tecnologia 258 - Ibidem p. 175 160 2.5 - O Ensino Salesiano no Brasil em Busca de identidade Por décadas os salesianos do Estado de São Paulo adquiriram reconhecimento e respeitabilidade por suas obras sociais e colégios. Este prestígio atinge de imediato as três faculdades quando de suas fundações porque associadas aos colégios onde passaram a funcionar. João Bosco simplificara seus objetivos educacionais no mote: formar bons cristãos e honestos cidadãos. As instituições educacionais salesianas possuíam um ideário filosófico-cristão que norteava inequivocamente sua ação educativa. Quando se tratou da transposição da prática pedagógica das escolas e obras sociais para o ensino superior, isto ensejou desencontros e equívocos, quando nem sempre se adequaram conteúdos e metodologias praticadas para adolescentes para o atendimento de jovens e adultos. A implantação das faculdades, especialmente a de Lorena, se fez a partir de sua origem confessional católica e seminarística, quando não se favoreceu inicialmente a abertura da academia para a pluralidade da sociedade nas dimensões política, social e religiosa. Deve-se entender que homens e mulheres que deram início a essa incursão no ensino superior eram formados em critérios de matriz medieval com horizontes fechados em nível de diálogo com o mundo externo e com outras confissões religiosas. Apesar do movimento salesiano ter sido instrumentalizado como uma das pontas de lança no fortalecimento do papado no processo de romanização do século XIX, estes homens e mulheres subjetivamente tinham consciência que consagraram suas vidas a um projeto religioso longe de estratégias políticas e de fortes confrontos com visões não cristãs, ao menos nos seus nos ambientes fechados onde atuavam e que estavam marcados pela cultura católica. Acreditavam terem sido chamados por Deus pela vocação religiosa a educar a juventude pela catequese. Entendiam ainda que pela vocação salesiana deveriam imitar Dom Bosco na doação das próprias energias físicas e espirituais em favor da juventude pobre. O ensino superior voltado para classes sociais financeiramente aquinhoadas não fazia parte dos seus horizontes. O foco posto na juventude pobre e marginalizada parecia-lhes como única forma de ser salesianos. 161 A incursão no ensino superior parecia trair os projetos do fundador, especialmente quando esta escolha não foi feita pela congregação, mas uma aventura de um ou outro salesiano mais afoito. Inicialmente não se pensa sequer em discutir a identidade dos salesianos no ensino superior, mas sim sua presença neste ambiente. Para alguns a crise que viveu Lorena em 1968 era o sinal de que os salesianos não deveriam estar presentes no ensino superior, pois não tinham sido fundados para essa finalidade. Ao contrário alguns sócios defenderam e defendem a presença dos salesianos no ensino superior acreditando que a congregação deve responder aos desafios dos tempos sem abrir mão de sua identidade. A faculdade no campo do conhecimento filosófico-religioso deve ser propositiva,259 como portadora duma mundividência própria e tendo uma proposta de mundo, de homem, de sociedade e de sentido da vida. Erige-se em instituição de ensino com a proposta de sinalizar o cristianismo como uma plataforma de diálogo com a sociedade. Acreditam que a academia é o espaço de acrisolamento dos ideais fundacionais salesianos que devem ser apresentados, discutidos, questionados, aprofundados e confrontados com a diversidade dos saberes. Sabem dos perigos que vivem instituições confessionais quando não se apresentam com sua identidade bem definida e delineada: ela não representará nada ou fomentará a criação de efeitos cenográficos ilusórios com momentos pirotécnicos que quanto mais parecem verdadeiros, mais fomentam o simulacro. 259 - Este princípio aplica-se não só a instituições confessionais, mas também a comunitárias e àquelas que se erigem sob determinada escola filosófica, seja ela marxista, tomista, positivista etc. É a lógica da matriz Fundacional de uma instituição de ensino superior. O importante é que ela seja espaço da pluralidade e uma instância de diálogo da corrente mantenedora com as demais correntes. 162 2.5.1 - Dúvidas sobre a eficiência e sentido do ensino confessional no Ensino Superior Um dos equívocos mais constantes na história das fundações é quando se confunde fidelidade às ações do fundador com a fidelidade ao seu espírito e aos seus critérios. Nesse erro incorreram os salesianos dos primeiros tempos que, preocupados que estavam em ser fiéis ao fundador, respeitavam nos trópicos horários, hábitos e costumes das comunidades européias. O tempo os fez descobrir que a verdadeira fidelidade não era reproduzir as ações e atitudes de João Bosco, mas se apossar do seu espírito, entendendo que foi um homem de vanguarda dando respostas aos desafios do seu tempo, sendo capaz de ir além de sua formação campesina medieval para a lógica de mundo urbano e moderno. Salesianos do período pósconciliar captaram esse espírito quando assumiram a expressão: com Dom Bosco e com os tempos. Houve e ainda há rejeição à presença salesiana no ensino superior. Muitos segmentos da congregação contestaram e ainda contestam essa presença, tanto da Igreja, como dos salesianos na gestão e propriedade de Instituições de Ensino Superior. Os argumentos oscilam entre as dimensões carismáticas da congregação, que deveria se voltar para a promoção social e evangelização dos jovens pobres, até aos aspectos da descristianização da sociedade, que não mais comportaria uma ação religiosa no campo da educação formal. Essas teses estariam em boa parte embasadas no descrédito da eficiência e incidência do pensamento cristão e católico no meio intelectual. Esses debates se prolongam polarizando posições. Alguns se apóiam na crença de que as Instituições salesianas de Ensino Superior não conseguem mostrar sua identidade de forma explícita e, portanto, se tornam incapazes de conferir aos seus egressos um perfil salesiano como expressão dos princípios e valores que emanam dessa pedagogia. Acreditam que o objetivo e o projeto de educação salesiana de jovens das classes populares numa obra social, lhes conferiria elementos suficientes de formação para que, como egressos, levassem valores apreendidos por essa educação para a vida pessoal e profissional. Mas, quando se trata de aplicar a pedagogia salesiana para alunos do ensino superior, ela se tem mostrado insuficiente, pois muitos dos egressos quando ocupam espaços de importância na sociedade, na economia ou educação, por 163 exemplo, se são reconhecidos como competentes no exercício de suas profissões, nem sempre se vislumbra neles e na sua formação humana as marcas dos valores que a educação salesiana pretendia imprimir em suas vidas. Num conceito de custobenefício acredita-se que os resultados são pífios. João Bosco sintetizara o objetivo de suas obras numa singela frase: Formar bons cristãos e honestos cidadãos. Os que contestam a presença salesiana no ensino superior argumentam que, se ela pôde ser acolhida como significativa na configuração da vida de adolescentes, torna-se, porém, insuficiente quando se trata de jovens e adultos. A Educação superior salesiana tem por escopo formar humana e profissionalmente pessoas que sejam significantes na sociedade. Para que essa formação humanística e salesiana aconteça supõe-se que haja estreita e orgânica interação entre projeto curricular, o ambiente acadêmico e os valores salesianos que efetivem esses objetivos. E isso é quase impossível de ser gerido numa universidade pela sua própria natureza plural enquanto acolhe diversas correntes e tendências de pensamento e a presença de educadores salesianos. Para muitos salesianos, críticos260 do ensino superior salesiano, a globalização não é só um fenômeno cultural, mas também econômico que atinge a educação pensada como negócio rentável para quem a vende e investimento para quem a compra, em que não mais contaria a identidade religiosa, política ou social, mas apenas os dividendos que com ela se possa auferir num conceito essencialmente mercantil. As expressões religiosas tradicionais e históricas, ao perder seguidores, perderiam na mesma proporção espaço para formas mais ecléticas de espiritualidade, à moda self-service, que atenderiam aos anseios imediatos do espírito. Portanto, não teria sentido impor um ensino confessional sob uma bandeira, quando a grande maioria dos consumidores da educação não seriam “consumidores” de religiões confessionais e sim de uma espiritualidade eclética e genérica que não se prende aos limites do dogma e aos códigos morais de conduta proposto pelas religiões, mas às experiências momentâneas e tópicas que se apóiam na crença de um divino cada vez mais compreendido como energia cósmica ou, numa visão mais simples e 260 - Em geral salesianos com mais de 60 anos que representam um compacto grupo de resistência à implantação do Ensino Superior. 164 direta, na negação total do transcendente, ao se afirmar a matéria como única realidade. Esses mesmos salesianos afirmam que as universidades católicas teriam perdido seu espaço e finalidade, seja pela laicização da sociedade frente ao surgimento de uma sociedade pós-cristã, seja pela incapacidade do cristianismo de entabular um diálogo fecundo com a modernidade pela falta de interlocutores católicos competentes. A pluralidade cultural ofuscaria propostas educacionais fechadas, acreditando que a dimensão religiosa pertenceria nesta nova sociedade ao âmbito privado. Consideram ainda que as bases da pedagogia salesiana estariam assentadas numa espiritualidade de origem medieval, em que se sublinha o respeito pela Igreja e pelo papado, com conceitos que não mais fariam parte da mentalidade do homem moderno, como graça e pecado, salvação e perdição. Ainda que existam alguns conceitos como bondade e espírito de família simpáticos ao homem de hoje, a matriz católica que deu origem ao pensamento salesiano, porém, não mais se sustentaria no mundo contemporâneo. Existem, enfim, contestações à simples presença salesiana no ambiente do Ensino superior, quando esses críticos mais radicais argumentam que a congregação teve na sua origem e finalidade de evangelizar adolescentes das classes populares, devendo simplesmente, como pleito de respeito ao fundador, retornar às periferias e aos pobres deixando o espaço elitista e infecundo, no sentido religioso, das escolas de ensino superior. Essas afirmações dificilmente são verbalizadas numa escola confessional. Mas podem estar implícitas no agir e no viver do seu pessoal, salesiano ou não, podendo permear as relações e atitudes, sendo um clima que se respira, um “sujeito” oculto da ação, quando uma instituição faz de conta ser o que de fato não é, confessional e religiosa. A presença de mito, rito e símbolos institucionais poderiam mascarar elementos nos quais não se acredita, se constituindo, portanto, em simulacro, não só para funcionários, mas mesmo para religiosos que acreditariam que tudo estaria funcionando como o fundador queria. 165 Em contrapartida há uma linha otimista de salesianos, em geral mais jovens, que consideram que um elemento que favorece apriori a pedagogia salesiana é que a residência dos salesianos está dentro dos ambientes físicos da faculdade, garantindo uma presença constante, um dos elementos essenciais da educação salesiana. Acreditam que se na universidade essa presença for alegre, participativa, paterna, bondosa e integrada com os alunos ela, por si só, já passaria os valores salesianos. Nestes embates pró e contra a presença da Congregação Salesiana no Ensino Superior as posições assumidas tendem a ser superficiais com análises periféricas que carecem de embasamentos profundos, seja no ataque, seja na defesa. Os educadores de todos os tempos sempre tiveram que propor valores à sociedade acima do nível que em esta estava, fosse ele político, econômico, social ou religioso. A educação tem por finalidade não apenas manter, mas propor novos e maiores valores, pois educar é sempre ir além de onde se está propondo ideais e projetos para além do cotidiano dos educandos e da sociedade onde vivem. As grandes invenções não nasceram do ócio de seus inventores, mas foram respostas a desafios que se colocaram e que exigiram soluções. Os salesianos que entendem o ensino superior como um problema que deve ser deletado, parecem se distanciar do espírito do fundador. O surfista nunca luta contra o oceano, mas enfrenta cada onda no momento em que ela se delineia, cresce e ameaça. Para ele nenhuma derrota ou vitória é definitiva. Novas ondas se formarão para desafiá-lo, para derrotá-lo ou para serem vencidas. E o mar, manso ou bravio, seguirá seu inexorável destino de “problematizar” a vida do surfista, que, por ser surfista, sempre há de querer as maiores ondas, e nunca as tranqüilas águas das tépidas baías. Só existirão grandes surfistas se existirem grandes ondas. Só existirão grandes educadores se existirem grandes desafios, porque só esses elementos desestabilizadores, não importando se filosóficos, sociais, religiosos ou morais permitirão o surgimento de pensadores que os enfrentem com criação de novas respostas criativas e inventivas. O UNISAL pode ser visto na ótica da pedagogia salesiana, sob dois ângulos: um problema ou um desafio. A resposta a essa questão depende do olhar. Se João 166 Bosco tivesse olhado a nascente urbe industrial como um problema, teria tomado sua enxada e sido um digno camponês do Piemonte como foram seus irmãos. Deitou-a, porém, por terra e escolheu fazer da urbe um desafio com todos os riscos que isso comportava. Foi uma opção. 167 2.5.2 - Uma reflexão sobre o Ensino Superior Salesiano em nível mundial – As IUS No século XXI quando a sede da congregação traça as primeiras elaborações para a educação de universitários salesianos em nível universal, o que não tinha sido feito até então, elabora-se uma definição que pontua a identidade das IUS: Instituições de Ensino Superior, de Inspiração Cristã, Caráter Católico e Índole salesiana261. Essa declaração de identidade não é em si algo novo, pois ainda que tenham sido fundações realizadas aleatoriamente, foram sempre iluminadas pela cosmovisão do fundador João Bosco. A tradução e transposição de sua pedagogia, porém, para o mundo universitário tem sido complexa frente a esse novo público. Bosco não cogitou a universidade, pois no século XIX respondia aos desafios imediatos do seu tempo procurando estar alinhado com os problemas de então, que eram atender às necessidades de profissionalização de jovens pobres e tirá-los dos perigos de degradação moral e da criminalidade. Procurou intervir na mentalidade do seu tempo com a divulgação de suas idéias educacionais262 e de sua pedagogia através da imprensa, então um meio moderno e avançado de comunicação e, quando grupos opositores tentaram impedi-lo de realizar essas publicações, não teve dúvidas em construir gráficas263, montar escolas profissionais de edição e até mesmo uma fábrica de papel, impedindo que a divulgação de suas idéias educacionais fossem truncadas por seus opositores. 261 - Cf. IUS, op. cit., archivio n. 14. 262 - Já no século XIX e inicio do século a educação é tratada não apenas como prática, mas também como teoria, como elaboração acadêmica. Não podemos ignorar, à guisa de exemplo, que no Brasil a Educação foi muito teorizada, sobretudo na década de 1920 com as teses da Escola Nova e do positivismo. Os pioneiros da Educação – por mais variadas que fossem suas matizes – não só defenderam idéias – mas atuaram de forma incisiva no processo educacional do Brasil República. Nesta década em que a Igreja está numa verdadeira cruzada em defesa da educação católica, os salesianos, no Brasil, não divulgam suas idéias educacionais de forma incisiva, se bem que já em 1906 fossem publicadas as Leituras Catholicas da Typographia salesiana com o Título “Moral em Exemplos”. Esse tipo livros mensais com contos e ensaios teve grande aceitação no Brasil, sobretudo nos internatos. 263 - Essa tradição editorial se projetou em suas obras pelo mundo. Na Inspetoria de São Paulo foi constituída a Editora Salesiana que, além de escola profissional com seu parque Gráfico, garante também a produção das obras salesianas para todo o Brasil. Se isso de um lado é uma vantagem, de outro gera certa endogenia que dificulta a divulgação dessas obras, sobretudo, as pedagógicas, para além das fronteiras e dos ambientes salesianos. 168 As fundações de faculdades, em muitos casos na congregação, foram ações isoladas de pessoas ou de comunidades não tinha jurisdição para tal. Isso fica explicito numa entrevista ao Boletim Salesiano Espanhol do padre Garulo, que é questionado se as universidades salesianas atuais seriam mais fruto de instituições salesianas individuais ou derivariam de projetos assumidos pelas inspetorias? Ele responde: Ambas as coisas. Contudo eu inclinaria a balança um pouco mais no sentido da primeira. O que não significa nada de mal ou deficiência. Ao contrário. A leitura que faço do fenômeno expressa que a vida é mais forte que os planejamentos, um sinal de que há salesianos cuja fidelidade à vocação despertou o olfato ou a sensibilidade para a descoberta de novos cenários nos quais se requer a presença desses salesianos, sua companhia, seus serviços. A industrialização, os planejamentos vêm quase sempre depois. E bem-vindos sejam! Desse modo, o serviço melhora e passa a ser compartilhado por maior número de pessoas, consolidando com 264 maior sucesso . Em 152 anos os salesianos se tornaram a segunda maior congregação masculina da Igreja Católica, presente em mais de 120 países com mais de 18 mil membros consagrados no ramo masculino. Gravitam ao redor da congregação mais de 27 instituições denominadas como da Família Salesiana que, juridicamente independentes, seguem o projeto educacional e pedagógico elaborada por João Bosco. Reconhecem o Reitor Mor265 e o seu Conselho como intérpretes e guardiães do ideário do fundador e estes validam a pertença destes grupos ao vasto movimento nascido sob a inspiração de Dom Bosco. Em nível mundial as escolas de ensino superior foram surgindo, como já foi afirmado, aleatoriamente por circunstâncias diversas, jamais, porém, fruto de um projeto orgânico. Ao serem fundadas eram assumidas como “mais” uma frente de ação. Na medida em que iam ganhando importância, as inspetorias lhes davam maior atenção e, concomitantemente, sofriam contestações também maiores vistas como um corpo estranho, pois, nas constituições da congregação não existia uma única linha referente a essa frente de trabalho. Padre Garulo, porém, justifica esse 264 265 - Cf.ius.edinf.com/portal/images/2assembly/chronicle_por.pdf - O Reitor Mor é o sucessor direto de Dom Bosco e é considerado como o interprete e o centro de unidade da congregação, cabendo-lhe garantir a fidelidade carismática de todos os ramos da Família salesiana aos princípios do fundador. É eleito pelo Capitulo Mundial por um período de seis anos, podendo ser reconduzido ao cargo por mais uma vez. 169 ingresso no ensino superior como forma de fidelidade a Dom Bosco e como espaço carismático da congregação, sempre aberta aos novos tempos e novos desafios. Um problema de fundo, porém se coloca de forma contundente. A maioria dos salesianos não se entende vocacionados para o trabalho universitário. Alguns até consideram que a incursão neste campo é uma infidelidade ao carisma do fundador que direcionou sua vida e suas obras para os adolescentes e jovens empobrecidos, sobretudo nas obras sociais. O forte dos salesianos seriam o colégio, o pátio e o oratório. A isso Garulo responde: Os salesianos nasceram em Valdocco, a periferia pobre de Turim que começava a se industrializar, e não no recinto universitário da Sorbonne em Paris, como os jesuítas. Isso define uma vocação, uma marca sem qualquer dúvida. Por fidelidade ao carisma de suas origens, a missão salesiana se desenvolveu tradicionalmente – creio que com competência e sucesso - em lugares e ambientes pobres. As grandes virtudes de Dom Bosco, porém, são a flexibilidade e a versatilidade em função da presença dos jovens, objeto de nossa consagração. Os jovens “pobres e necessitados” e os setores populares da sociedade continuam a ser o campo da missão salesiana. Contudo, esses mesmos estratos sociais evoluíram e são distintos hoje do que eram em tempos anteriores, e é evidente que têm necessidade de novos serviços. A entrada dos salesianos no campo universitário é um sinal dessa versatilidade posta a serviço dos destinatários 266 de sempre . O primeiro encontro mundial para refletir sobre a identidade do ensino salesiano de terceiro grau foi realizado em Brasília em julho 1995 sob a presidência do vigário 267 do Reitor Mor, padre Luc Van Loy, com salesianos representantes das principais Instituições Superiores de todos os continentes. Funda-se então um organismo internacional para congregar de forma colegiada todas as Instituições Universitárias Salesianas (IUS). Nesse encontro são traçados os rumos a serem assumidos pelo ensino superior salesiano. O ano de 1997 é considerado como um divisor de águas, quando o Reitor Mor declara que o ensino superior passa a fazer parte da Missão salesiana268,deixando de ser considerado um corpo estranho na Congregação. Em julho de 1998 realiza-se o segundo encontro das IUS em Roma com todos os 266 Cf.ius.edinf.com/portal/images/2assembly/chronicle_por.pdf 267 - Equivaleria a um vice-reitor mor, mas sem direito a sucessão. 268 - Cf. IUS, op. cit., archivio n. 06. 170 reitores e diretores das faculdades e universidades, o Conselho Mundial da Congregação e os Inspetores em cuja jurisdição houvesse escolas de ensino superior para um diagnóstico da ação salesiana nestas instituições e para definir as políticas da presença salesiana no ensino superior. Em 8 de dezembro de 1998 é nomeado o padre espanhol prof. Dr. Carlos Garulo para a direção geral das IUS. Entre os anos de 1999 e 2000 foi constituída uma comissão para definir um programa comum aplicável em nível mundial. Em junho de 2000 e fevereiro de 2001 foram feitos estudos sobre o potencial de nossa sinergia nas cidades de Quito, Benediktbeum e Bangkok, sendo posteriormente apresentadas as provas dos documentos a fim de que fossem lidas, repensadas e debatidas dentro das comunidades acadêmicas para melhorar-lhes as propostas269. Finalmente no dia 07 de janeiro de 2003 o Reitor-Mor e o seu Conselho aprovaram os documentos “Identidade das Instituições Salesianas de Educação Superior” (IUS) e as “Políticas para a presença salesiana na educação superior, 2003-2008”, a fim de alcançar essa identidade ainda ideal270. Estes documentos traçam as linhas gerais de como a educação e a pedagogia salesiana devem ser aplicadas no ensino superior, já que até então o que se fizera fora uma transposição de práticas educacionais elaboradas para atender a adolescentes e que foram artificialmente adaptadas para adultos. A nota final é muita assertiva ao afirmar uma “identidade ideal”, pois se trata de uma nova cultura a ser implantada no mundo universitário salesiano, marcado pela dinâmica e desafio da modernidade e pós-modernidade, num mundo globalizado. Estes documentos são antes de tudo uma “carta de intenções”, ou como foi definido, Carta de Navegação que aponta um norte para as instituições superiores salesianas a partir dos princípios filosófico-pedagógicos de João Bosco. O mérito das IUS foi a elaboração teórica em nível acadêmico dos princípios e referenciais que definem uma instituição salesiana de Ensino Superior. Essa identidade, se bem definida, somada aos seus objetivos e práticas, permitirá que essas instituições mantenham a fidelidade ao fundador e ao mesmo tempo consigam delinear um perfil salesiano adequado para o ensino superior. 269 - Ibidem 270 - Ibidem. 171 2.5.3 O UNISAL – à luz dos princípios emanados das IUS revendo sua história Passados 50 anos da fundação das Faculdades Salesianas no Estado de São Paulo, hoje centro universitário, com pretensões a ser universidade271, cabe auferir se os ideais fundacionais construídos no século XIX são conhecidos, se foram adequados ao século XXI e se são hoje diferencial na vida dos universitários desta instituição. Para o Centro UNISAL os documentos, Identidade das Instituições Salesianas de Ensino Superior e as Políticas para a presença salesiana no Ensino Superior, ofereceram, de imediato, respostas e orientação para a ação educativa e pedagógica dos salesianos de São Paulo, junto desta nova frente. As fundir as unidades de Americana, Campinas e Lorena, inicialmente em faculdades integradas e posteriormente em centro universitário, a Inspetoria procurou dar organicidade acadêmica e ideológica a essa fundação. Coincidentemente esta preocupação em nível local era a mesma em nível mundial. O Centro da Congregação buscava com sua intervenção configurar a identidade salesiana do ensino superior de forma inequívoca. A partir de uma releitura crítica da História do Ensino Superior salesiano em São Paulo tendo como parâmetro de avaliação os referencias do carisma salesiano numa ótica agora objetiva, será possível perceber luzes e sombras, encontros e desencontros, acertos e desacertos na implantação das três unidades. Parte-se para se reconstituir a história do ensino superior salesiano da Inspetorial de São Paulo, procurando verificar se as metas da pedagogia salesiana teriam sido alcançadas nas práticas pedagógicas até então vivenciadas. Constata-se inicialmente, como já foi exposto, que o ingresso dos salesianos no ensino superior não fora um projeto orquestrado a partir de um projeto global, mas de eventos isolados nascidos de circunstâncias diversas e, não raras vezes, por 271 - Esta “pretensão” não tem sido unânime. Uma corrente deseja manter o status de centro universitário, enquanto outra opta por se tornar universidade. Essas duas possibilidades irão se confrontar nos próximos anos, não se podendo prever o desfecho. 172 iniciativas de pequenas comunidades e mesmo de indivíduos. Não houvera em nível de salesianidade a elaboração de princípios norteadores específicos para o ensino superior, mas a simples transposição para o contexto universitário de práticas pedagógicas e pastorais utilizadas com adolescentes. O sucesso dessa transposição e adaptação dependia muito mais do engenho e arte do educador do que de um projeto com objetivos claros. De fato muitos salesianos bem intencionados nem sempre entendiam que os destinatários do ensino superior possuíam exigências diferenciadas e mais maduras que adolescentes. Faltava assim um projeto orgânico. É oportuno retornar de forma sintética e unificada às situações históricas que ensejaram a organização do UNISAL como hoje está configurado. A Faculdade Salesiana de Lorena foi um “presente” inesperado do governo constituindo-se numa unidade “singular” de ensino superior onde o que prevalecia era o seminário. O fato de Lorena não se ter preparado para ser uma faculdade fez com que se perdesse uma oportunidade ímpar de se constituir numa verdadeira instituição de Ensino superior, já que seu primeiro diretor, Padre Leôncio272, trazia consigo uma vasta experiência, tendo sido o fundador da faculdade salesiana de Pedagogia de Roma onde teve que convencer a setores da Cúria Romana que a Pedagogia se constituía numa Ciência. Sua ação junto da faculdade salesiana de Lorena, porém, foi amortecida, porque a mesma estava atrelada ao seminário. 272 - Padre Leôncio nasceu no Recife a 6 de dezembro de 1887, filho de tradicional família pernambucana, descendente de senhores de engenho. Em 1902 estudou no colégio salesiano do Recife. Tornou-se salesiano em 1910, indo em 1913 para Turim onde concluiu seus estudos teológicos. De 1917 a 1937 atuou no nordeste como professor e diretor de colégios salesianos, sendo que em 32 fundou o Centro de Cultura Religiosa e Pedagógico-didática. Em 37 foi transferido para o Instituto teológico Pio XI em São Paulo onde se tornou professor. Neste ano trabalha em sua primeira obra pedagógica: Manual teórico-prático para uso dos educadores. Em 1939 vai para a Itália a fim de dirigir e organizar a fundação do Instituto de Pedagogia do Pontifício Ateneu, sendo a primeira faculdade de Pedagogia reconhecida pela Igreja. Na Itália dedica-se a escrever sobre o Sistema Educativo de dom Bosco. Na Universidade católica de Friburgo doutora-se em Pedagogia. Em 1952 retorna para o Brasil por problemas de saúde e assume a direção da recém fundada Faculdade Salesiana onde permanece como diretor até 1965, quando se afastou da direção por problemas de saúde. Por duas vezes participou, a convite do governo brasileiro, de reuniões da ª UNESCO: em 52, em Paris, como delegado do Brasil na 7 Conferência daquele órgão, e em 53 em uma reunião de educadores, como representante das escolas particulares. Deste período ficaram amizades com Lourenço Filho, Carneiro Leão, Tristão de Athayde e outros. Faleceu no dia 21 de julho de 1969 na cidade de Lorena. Cf. TOLEDO, 2003, p.116-119. 173 A Faculdade Salesiana de Americana se nasceu como resposta a uma crise econômica da obra, ao mesmo tempo, foi a que melhor se configurou como uma faculdade, inclusive com seu diretor procurando ter prudência em ser fiel ao projeto educacional salesiano e tendo consciência de que pisava em um solo novo no qual não era especialista. Seu nascimento envolveu a sociedade americanense que via nessa instituição de ensino superior resposta às suas necessidades. A unidade de Campinas foi uma resposta à mentalidade tecnicista do golpe militar e às necessidades imediatas das indústrias da região em rápido desenvolvimento e carente de mão de obra especializada. Os próprios salesianos da época tiveram dificuldade em configurá-la como faculdade salesiana, pois não viam como aplicar de forma eficiente uma pedagogia humanista para um curso técnico. Na história das faculdades, conforme os salesianos foram se distanciando de sua direção deixando de dar aulas, cresceu a discreta pressão de coordenadores e colegiados de cursos para a diminuição de disciplinas humanísticas e religiosas, priorizando-se a formação profissional273. A busca da identidade salesiana do Ensino superior tem sido um caminho trilhado com grande dificuldade por ter faltado até recentemente referenciais teóricos e por se tratar de um espaço novo de ação dos salesianos. Alguns elementos dificultaram a clara definição e consolidação da identidade salesiana de forma efetiva. Em primeiro lugar, com a redução do número de salesianos, a presença destes como sonhada por Dom Bosco tem sido inviável, pois estão envolvidos em múltiplas atividades com jornadas triplas, sem descanso nos finais de semana, em equipes pequenas que se desdobram em atender as demandas administrativas e ao mesmo tempo ao colégio, à obra social, ao ensino superior e aos oratórios festivos, além do atendimento religioso ao bairro no entrono da obra. Como religiosos, devem ainda manter uma mínimia vida comunitária com orações e refeições em comum, atividades em nível inspetorial, retiros e encontros de formação. Esse acúmulo de atividades fomenta o distanciamento dos destinatários, pois a gestão administrativa sugam suas energias físicas e espirituais. 273 - Mereceria um estudo de como aos poucos as disciplinas de formação humana e cristã foram sendo retiradas do currículo ou ao menos diminuídas, não raras vezes com um conteúdo rarefeito e genérico onde a identidade institucional sequer era percebida. 174 Em segundo lugar, a organização da vida religiosa dos salesianos também interfere na estruturação do Centro Universitário. O diretor de uma comunidade só pode exercer essa função no mesmo lugar pelo prazo máximo de seis anos 274, sendo nomeado por um primeiro triênio, podendo ser reconduzido por mais um. Assim, as transferências são constantes, gerando descontinuidade de direção. Mesmo os que pensam o Ensino superior acabam por fazê-lo por pouco tempo, pois as transferências acontecem até para áreas diferentes, muitas vezes antes mesmo dos seis anos, quando se pode, por exemplo, passar do ambiente universitário para uma obra social ou escola, bastando para isso que o inspetor, com o consentimento do seu conselho, o destine a outro encargo que julgue necessário. O Centro UNISAL tem procurado através de reforma regimental garantir sua estabilidade por meio de direções leigas locais que não mais seriam entregues a religiosos salesianos, como forma de dar estabilidade às políticas universitárias. A Congregação salesiana, ao assumir o Ensino Superior como uma das novas vertentes da missão salesiana junto à juventude e ao fundar as IUS como organismo colegiado para garantir a sinergia mundial das universidades salesianas, sinaliza com clareza que os princípios educacionais de João Bosco, adaptados à faixa etária e maturidade dos universitários, é um instrumento válido para a sua formação humana embasada em princípios cristãos. Além disso, há o favorecimento do intercâmbio internacional entre instituições que já mantêm entre si denso relacionamento no âmbito religioso e que facilmente poderão distendê-lo para o ambiente acadêmico. Deve-se compreender de que maneira a pedagogia salesiana foi elaborada para os adolescentes para capturar o que nela pode ser transposto para o mundo universitário com as devidas adaptações e o que deve ser descartado. O fato é que a transposição e práticas pedagógico-pastorais elaboradas para adolescentes para os universitários é um novo desafio. No pensamento de Bosco, sua pedagogia se organiza a partir da integração orgânica entre ambientes, atividades, horários, princípios, educadores, professores e funcionários, sendo sua educação concebida 274 - Cf. DIREÇÃO GERAL OBRAS DE DOM BOSCO. Constituições e Regulamentos. Roma: Elle di Ci, 1984, no. 177. 175 de forma sistêmica e global tendo no Sistema Preventivo e na presença do educador junto dos educados uma das chaves fundamentais de sua prática e do seu sucesso, ensejando um clima de familiaridade. Esses elementos fizeram com que sua congregação pudesse se expandir com rapidez por todo o mundo, atraindo seguidores religiosos e leigos que acreditaram neste método educativo. Para João Bosco todos, desde o diretor ao mais humilde funcionário, são educadores. A História dos salesianos granjeou simpatia dos destinatários e da sociedade onde se implantou. João Bosco com sua pedagogia, sua obra e seus discípulos formaram gerações de homens e mulheres que tiveram nos seus ensinamentos referências para suas vidas. Existiram educadores que vestiram a camisa, apostando neste modelo de educação o melhor de suas energias e competências. Valores religiosos e humanos foram incrustados em muitas vidas fazendo-as melhores. Foi uma experiência vivida por muitos adolescentes que se sentiram amados e respeitados e que reproduziram essa experiência nas famílias que constituíram. Muitos adultos se recordam275 como memórias saudosas dos pátios, dos jogos, teatros, academias literárias, excursões, mágicas, conselhos e “pitos” são memórias276 quase sempre idealizadas como costumam serem todas as memórias. E existem também as que foram negativas e que marcaram para o resto da vida. De qualquer forma essas experiências, boas e más, permitiram identificar uma prática educacional e até 275 - Odor de santidade, tibieza, temperança, murmuração, abstinência, (...)”Angelus”, Tantum Ergo, “Magnificat”, “De Profundis”, (...) oratório festivo, gramática do Ravizza, o grêmio (...), o sistema preventivo, o espírito salesiano, o boa noite, o rendiconto mensal, as leituras edificantes, as sessões liter-musicais, o porquê das festas, aulas de civilidade, português, latim, grego, italiano, inglês, francês, espanhol, os terríveis escrutínios, brinquedos gerais, estafeta, cajado, barra cumprida, espiribol, boccia, amizades particulares, jogo de botão, ping-pong, colóquios, superiores, Notas A-BC-D (Aptus, Bonus, Corrigens, Demitens), os feijões pretos, banho frio, festas, colunatas, refeitório, sino, passeios gerais, Escola Agrícola, Horto Florestal, os aparelhos do laboratório, (...). Aroldo Azevedo de PAIVA – Reminiscências (folha avulta s.d.).In: CENTRO UNISAL. SEDOC: Arquivo histórico, Lorena. 276 - Merece especial referência o livro A República dos Sciuschiá que trata do oratório no bairro da periferia de Roma chamado Borgo. um projeto único de intervenção em favor da infância e da adolescência na periferia de Roma. Trabalhando com a História Oral, Alessandro Portelli e seu grupo de pesquisadores do Circolo Gianni Bosio recuperam uma parte importante do período que se prolonga do pós-Segunda Guerra Mundial até hoje, mostrando o valioso trabalho dos salesianos junto aos jovens em situação de risco social. Cf. PORTELLI, Alessandro (Coord.). República dos Sciusciá: a Roma do pós-guerra na memória dos meninos de Dom Bosco. São Paulo: Salesiana, 2004. 176 avaliá-la ao longo da vida. São experiências subjetivas de educadores e de educandos que possuem percepções não quantificáveis, mas que estão presentes nas narrações, estórias, episódios e reminiscências. A presença em mais de 120 países após 150 anos de fundação testifica uma acolhida significativa destas práticas educacionais Hoje milhares de jovens freqüentam o ambiente universitário salesiano. Esta pedagogia nos seus fundamentos os atinge? O que isso significa na formação de suas vidas? Agrega algum valor? Faz algum diferencial? O que significam o mito o rito e o símbolo salesianos para esses jovens? Sabem quem é Dom Bosco? O que ele representou? Algo muda em suas vidas? Em suas histórias? Conhecem, ao menos no nível teórico a pedagogia salesiana? Seus valores? João Bosco quisera, pela sua ação educativa, gerar mudanças qualitativas na vida dos seus destinatários. As questões acima expostas ainda tocariam superficialmente os objetivos mais profundos da Educação salesiana. Ela almeja, mais do que ser objeto de conhecimento, gerar atitudes, atingindo o próprio sentido da existência humana. Se as questões apresentadas acima tiverem resposta negativa, isto significa que nem sequer perifericamente a educação salesiana estaria acontecendo. Se, ao contrário as respostas forem positivas , poder-se-ia partir para questões mais profundas, a saber: Neste novo ambiente de ação da pedagogia salesiana, tem-se configurado uma linguagem propositiva, que sinalize valores que favoreçam a construção de uma integridade humana embasada em valores espirituais e morais? Favorece-se a formação de pessoas integradas consigo mesmas que, nos ambientes da família e do trabalho, sejam mais que provedores ou técnicos? Seriam facetas tangíveis da integração da racionalidade, dos valores do espírito e da amorevolezza277 que se tornariam quase como uma segunda natureza desses egressos. É um tipo de ser humano que João Bosco e seus discípulos almejaram formar. 277 - bondade. Cf. glossário. 177 CAPÍTULO III - O UNISAL ENTRE OS SÉCULOS XX E XXI EM BUSCA DE SUA IDENTIDADE: TENSÕES ENTRE O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO A obra salesiana fundada por João Bosco vem respondendo aos desafios de cada tempo: no século XIX atendeu jovens empobrecidos procurando integrá-los no mundo industrial pela profissionalização. No início do século XX voltou-se para internatos e colégios e na segunda metade deste século teve início uma join venture com o ensino superior. Este estudo é restrito a três dessas escolas superiores, circunscritas à Inspetoria e Estado de São Paulo. No final do século passado, o governo central da congregação não pode desconsiderar a existência de mais de cinqüenta instituições de ensino superior salesianas em várias nações, resultado de ações isoladas e circunstanciais de alguns salesianos. Como já analisamos anteriormente, em resposta a estes fatos consumados e irreversíveis, ainda que bem sucedidos, em 1995 são fundadas as Instituições Salesianas de Educação Superior - IUS – e, em 2003 é elaborado o documento “As Políticas para a presença salesiana na educação superior, 20032008”, denominado no meio acadêmico salesiano internacional de carta de navegação, tendo por meta fazer com que estas instituições, já em funcionamento, pudessem em nível de salesianidade alcançar essa identidade ainda ideal278. Com ele se encerram as discussões e questionamentos sobre o sentido da presença dos salesianos no ensino superior que, agora, oficialmente ganha reconhecimento e cidadania na congregação. O ensino superior salesiano nasce no contexto de uma instituição confessional, com dupla identidade, católica e salesiana279. Nada havia sido elaborado ou pensado para organizar o ensino superior a partir dos princípios educacionais elaborados por 278 279 - Cf. IUS, op. cit., archivio n. 06. - Católica enquanto apoiada nos princípios do cristianismo sob a chefia do papa e salesiano enquanto adota o catolicismo sob a ótica educacional e pedagógica de João Bosco. 178 João Bosco. Fez-se então o simples transplante das práticas pastorais e pedagógicas das escolas e obras sociais para o ambiente universitário olhado, pela maioria dos salesianos, como um corpo estranho na congregação e até mesmo como uma traição dos ideais do fundador, pois, na maioria das vezes, fora fruto de “ação isolada” e “ato de desobediência e insubordinação” de diretores que “levianamente” haviam fundado faculdades contra o espírito da congregação que surgira para atender jovens e adolescentes pobres. Alguns poucos salesianos nela trabalharam comprometidos com o projeto do ensino superior, enquanto que a maioria ocupou esse espaço e exerceu nele funções, até acadêmicas, por obediência religiosa, sem um envolvimento real com esse projeto. Os primeiros momentos das faculdades em nível de identidade foram mais fáceis, pois se viviam tempos em que a igreja desfrutava de prestigio junto às sociedades de Lorena, Americana e Campinas, contando com o apoio de influentes e tradicionais famílias católicas. As contestações da década de 1960 não deixaram incólumes as instituições tradicionais, como a família e a igreja, que se confrontariam com as novas mentalidades que desconstruiriam o passado, um momento de desmoronamento de antigos paradigmas e de seus valores. A década de 1960 é um período de crise da política internacional e dos valores das sociedades ocidentais com um crescente processo de descristianização e acentuada laicização, quando muitos religiosos não se sentem mais confortáveis com a mentalidade da igreja e não conseguem se enquadrar a uma nova identidade que norteasse suas vidas e que desse re-significação à consagração religiosa abraçada por eles. Essa crise de identidade pessoal se refletia nas instituições que governavam. É bem verdade que essa identidade era reafirmada e atualizada pelos intelectuais da igreja e da congregação gerando, ideologicamente, qualificada documentação. Tais produções, porém, por si só não bastavam: eram “apenas” textos. Os conflitos aconteciam nos corações das novas gerações que, ao romper com antigos modelos de igreja e de mundo, não conseguiam delinear, existencialmente, que caminhos seguir. Neste contexto de perda de identidade pessoal era impossível definir a identidade de instituições e lhe dar um destino frente aos desafios que se apresentavam quando não se sabia como e para onde encaminhar a própria vida. Era um norte que deveria primeiramente ser descoberto 179 pelos indivíduos para, posteriormente, ser aplicado para as instituições, pois somente com a resolução desses problemas pessoais, esses religiosos, no caso salesianos, teriam condições de entrar de corpo e alma na luta pela construção da identidade das faculdades. O mito fundacional atualizado pelo rito só teria eficácia se fosse crença, vida e projeto pessoal280. Caso contrário se viveria numa instituição onde o mito não narra mais, o rito não celebra mais e o símbolo não simboliza mais. Este é o tributo que devem pagar as instituições confessionais: seus fundamentos não se sustentam em definições de identidade, ementas de cursos e descrições de ideais, mas em mitos narrados com paixão, ritos celebrados com vida e símbolos que não sejam desfigurados por interpretações apócrifas. Sem esse pulsar de crenças, ainda que subjetivas, os ideais fundacionais serão um punhado de textos relegados e esquecidos em empoeiradas prateleiras. 280 - A vida dos religiosos acontece dentro dos ambientes onde trabalham. O “quintal’ de suas casas são os pátios, a “varanda” são os pórticos. Não existe um “fim de expediente” e nem “ir para casa”. A vida da instituição mescla-se, funde-se e confunde-se com a vida pessoal. 180 3.1- Passado, presente e Futuro: Da quietude da Idade Média para o movimento da idade moderna e a aceleração da idade contemporânea A congregação salesiana281 possui suas raízes espirituais na cosmovisão e mentalidade medieval. João Bosco, sem perder essa base, foi capaz de se adequar ao mundo urbano industrial que se implantava na Itália. A reconstituição do seu pensamento e do cotidiano de suas obras é muito facilitada pela abundância de fontes primárias. Poucos fundadores tiveram tanta preocupação com o registro histórico, com o arquivamento e preservação das crônicas, atas, fotos, impressos e panfletos, exigindo que todas as casas tivessem arquivos bem cuidados e em dia. No arquivo histórico de Roma, mantido pela congregação, há muitos cadernos de alunos com anotações das conferências do fundador, assim como de sucessores, seus proferidas em formações, palestras e diversas circunstâncias. Este farto material permite um retorno às motivações primeiras e às movimentações estratégicas dos salesianos desde a fundação, permitindo realizar confrontos e paralelos entre os desafios do século XIX e hoje. O conselheiro mundial da congregação salesiana para o cone sul da América, padre Natale Vitali,282 em conferência em março de 2011 aos salesianos de Lorena, afirmava: Os desafios educacionais do século XXI são imensos. Aliás, não são diferentes dos vividos por Dom Bosco nos tempos em que viveu. Disso nasce a necessidade de aprofundá-lo e conhecê-lo no seu tempo. Como nos tem afirmado o reitor mor Paschoal Chaves, é preciso retornar a Dom Bosco, não para imitá-lo, pois estaríamos realizando ações do passado, mas para redescobrir seus critérios de ação e aplicá-los nos tempos atuais. Esta é a síntese do nosso pensamento: retornar a dom Bosco para, a partir dele com seus critérios de ação iluminar nossa presença na realidade do nosso tempo. É preciso retornar a Dom Bosco, não para 281 - A Congregação Salesiana foi fundada em 1859 tendo sido reconhecida de direito pontifício em 1874 pelo papa Pio IX. Está presente em 132 países.. Cf. Annuario 2011 vol. I e II. Roma, Editrice S.D.B, 2011 282 - Padre Natale Vitali é chileno responsável pelo Cone Sul da Congregação salesiana que atinge os seguintes países: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. Doutor em Educação foi inspetor no Chile entre os anos de 1991 a 1994; 1995-2000 e 2006 a 2008 quando foi eleito para o Conselho Mundial da Congregação salesiana com sede em Roma. 181 recomeçar dele, não para imitá-lo, mas para apreender seus critérios de 283 ação . Ainda que os princípios elaborados e praticados pelo fundador sejam atualizados pelos Capítulos Gerais,284 que respondem aos desafios de cada época, não se pode prescindir de se lançar um olhar retrospectivo sobre a história para se entender os salesianos do século XXI. O pensamento e a prática educacionais salesianos não foram elaborações de escritório e nem tampouco fruto de algum desdobramento lógico de alguma escola filosófica. Nasceram como resposta pragmática aos desafios de um tempo, de circunstâncias e embates de um momento histórico, utilizando-se dos “ingredientes à mão” da idade média, do nascente mundo industrial, dos contatos com adolescentes nos canteiros de obras e das cálidas conversas familiares ao redor das lareiras nas frias noites invernais. Nasceram da vida e dos seus embates, combates, alegrias e tristezas. Não foram planejados, inicialmente, mas resposta às circunstâncias, com muito de intuição e pouco de razão. Primeiro se fez o laboratório, sem se ter consciência de que era um laboratório e só depois se pôs por escrito os princípios já testados e aprovados no cotidiano. Daí a necessidade de se falar de histórias de vidas, pois, só capturando e organizando mentalmente esses diversos sucederes humanos se pode apreender o sentido desta pedagogia que brotou no sistema industrial da península itálica como uma “adaptação genética” do cristianismo, tomando emprestada a visão de Darwin, para garantir sua sobrevivência nesse meio hostil. O sistema educacional salesiano com sua pedagogia é uma resposta a um desafio pontual da história que, possuindo uma base teórica, adota um critério de ação móvel, adaptável285 às circunstâncias, 283 - Padre Natale VITALI – Conselheiro mundial da congregação Salesiana. – Conferência aos salesianos de Lorena. No dia 30/034/2011. Cf. Livro de Atas das Visitas Canônicas 1991 a.. anexada: Ata da Visita Extraordinária do Conselheiro do Cone Sul. p. 28 v. In: CENTRO UNISAL. Sedoc. Lorena. 284 - Até hoje foram celebrados 26 capítulos gerais que atualizam os projetos congregacionais aos desafios de cada tempo. O ultimo foi realizado em 2008. 285 - Entende-se então porque um colégio salesiano pode sobreviver, por exemplo, num ambiente islâmico, ter mais de 90% de alunos não cristãos e ser defendido por pessoas que não são cristãs. Como exemplo pode-se citar que no Líbano onde havia estabilidade entre cristãos e islâmicos, quando estourou a guerra civil, essa estabilidade foi quebrada, mas um colégio de irmãs salesianas de 800 alunos, dos quais apenas poucas dezenas eram cristãos, foi defendido por grupos armados 182 procurando preservar no torvelinho da história os valores humanos e cristãos. É necessário apreender como se moldou o espírito salesiano e quais os seus critérios para enfrentar os desafios do seu tempo e como resposta para o momento histórico que então se vivia. Tentar, porém, “congelá-lo” nos moldes praticados no século XIX seria traí-lo no seu espírito; apreender, porém o seu espírito e os seus critérios de ação é capturar aquela postura essencial que é aplicável em qualquer tempo e lugar porque fundamentado em princípios e valores atemporais. Para o surfista cada onda é um desafio sempre novo e diferente que deve “encarar” com suas peculiaridades e desafios sem, porém, jamais deixar a prancha, que é sua única base de segurança. É uma boa imagem para os desafios da educação salesiana no século XXI. O educador salesiano apóia-se em alguns poucos princípios, dos quais jamais pode abrir mão, com o risco de perder sua identidade. Mas quanto ao resto, deverá “surfar” no momento presente enfrentando os obstáculos sem medo. O Salesiano não desanima diante das dificuldades, porque tem plena confiança no Pai. “Nada te perturbe”, dizia Dom Bosco. Inspirando-se no humanismo de S. Francisco de Sales, acredita nos recursos naturais e sobrenaturais do homem, embora não lhe ignora a fraqueza. Acolhe os valores do mundo, evita lamentar-se do tempo em que vive; conserva tudo que é bom, especialmente quando agrada aos jovens. Já que anuncia a Boa Nova, está sempre alegre. Difunde essa alegria e sabe educar à 286 felicidade da vida cristã e ao sentido de festa (...) João Bosco educador só é entendido a partir dos desafios do seu tempo. Os atuais educadores salesianos devem ter como diferencial a capacidade de se adequar aos tempos, sem abrir mão dos princípios iluminadores de sua ação. Nos cento e cinqüenta anos da fundação da congregação salesiana se conseguiu implantar uma bem definida identidade, sendo hoje a segunda maior congregação islâmicos, que tinham nesta escola também abrigo contra os bombardeios. Era o único lugar seguro para cristãos e islâmicos. A comunidade islâmica do povoado, inclusive com seu chefe tribal, tinha nas salesianas um referencial de amizade e respeito como educadoras de seus filhos. Cf. o Documentário: Hadath Baalbek, costruendo insieme Il futuro. Valdocco – Media centre Torino – Associazione Missioni Don Bosco – 2009. 286 - DIREÇÃO GERAL OBRAS DE DOM BOSCO Constituições e Regulamentos. Roma: Elle di Ci, 1985, p. 24, n. 17. 183 em numero de membros287 da igreja católica. Com mais de 50 instituições de Ensino superior gravitando em torno da Sociedade São Francisco de Sales, torna-se necessário dar respostas imediatas e adequadas ao mundo universitário, não apenas em nível pedagógico, mas também em nível humanista, salesiano e cristão, pois a força desagregadora da sociedade moderna com muita facilidade poderia pôr em risco essa identidade preservada até agora. É na história, com a história e pela história que nasce a congregação como reação a situações desestabilizadoras da igreja, da sociedade, da família, da economia e do ambiente político. Estudá-la desencarnada destes contextos é construir ideais fugidios e “metafísicos”, pois toda educação irá sempre incidir sobre homens encarnados num tempo, numa mentalidade e num ambiente, a partir do modo como realiza a busca de sua sobrevivência. É a partir da história que se entende a gênese e o desenvolvimento da congregação. E será somente inseridos nela que se continuará sua missão, pois é no viver de cada homem e de todos os homens e nas formas que garantem suas sobrevivências que se organiza a sociedade. E é neste espaço que necessariamente interfere o educador imprimindo valores, apontando horizontes e preparando gerações para a construção de suas vidas e da sociedade na qual viverão. 287 - A congregação chegou a contar com cerca de 22.000 mil membros consagrados só no ramo masculino. 184 3.1.1 - As bases espirituais da cosmovisão salesiana: a ideologia medieval Quem circula pelas dependências físicas das unidades do UNISAL percebe que as diversas edificações acompanharam as tendências da engenharia do Brasil de cada época. As últimas construções abandonaram por completo as antigas concepções italianas dos enquadramentos dos pátios pelos pórticos. Lorena, a unidade mais antiga, ostenta suas colunas fundidas na Inglaterra, retrato da dependência tecnológica do nosso país com o exterior. O ultimo prédio concluído em 2008 tentou ser um arremedo dos tempos passados nas suas forçadas linhas arquitetônicas. A Unidade de Campinas possui três conjuntos de construções bem definidos. Um primeiro que compõe a fachada central – solene – remonta às grandes construções italianas pela sua imponência e austeridade com o pórtico imenso tomando toda sua frente. Do seu lado direito surgem dois conjuntos, um, hoje com aparência de envelhecido, lembra o final da década de 50 e inicio da de 60. O outro, repleto de meandros, contrariando de forma gritante tudo que a pedagogia salesiana ensina sobre ambientes288, remonta aos anos 70 pretendendo passar a idéia de modernidade. Finalmente a unidade de Americana possui dois Campi. O Campus Dom Bosco é um conglomerado de estilos dos anos 60 e 70, enquanto que o da Auxiliadora é contemporâneo com seus prédios de concreto e vidros entre os canaviais. Num dos seus prédios investiu-se em avançada tecnologia de construção com paredes duplas para conter o calor, estudos de ventilação e iluminação. O segundo, ainda que siga as linhas do primeiro, foi construído sob o peso de dificuldades financeiras, com menos tecnologia, mas sem perder o aspecto de futuro e de devir. Poder-se-ia falar da evolução das faculdades a partir dos seus prédios que demonstram num crescendo a constante adequação aos novos tempos. As construções, porém, podem esconder as verdadeiras fundações ideológicas que sustentam as idéias que ergueram esses prédios. Paradoxalmente, ainda que a congregação salesiana tenha sido fundada oficialmente em 1859, ela foi um conglomerado de tensões, sendo, contraditoriamente, foco de resistência e de integração, ponte entre a idade média e a modernidade em mão dupla. Nela tanto se 288 - As construções salesianas devem possuir layout próprio que favoreça a assistência dos educandos. Para que um arquiteto desenvolva bem um projeto, é necessário que tenha um bom conhecimento da pedagogia salesiana e seja supervisionado por salesianos competentes para que a construção possa corresponder e facilitar a prática dessa pedagogia. 185 passava da idade média para a modernidade como da modernidade para a idade média. João Bosco foi um dos cavaleiros medievais que adentraram a cidade moderna, não para se submeter a ela, mas para dominá-la e subjugá-la pela força da Igreja e da fé. Não levou as armas medievais, mas utilizou as que a cidade produzia para submetê-la: a tecnologia, a educação e a profissionalização. Atraiu seus filhos, primeiro para torná-los cristãos e católicos e, depois, os preparou para sobreviverem material e espiritualmente. Capturar “este espírito” significa entender de que têmpera foram moldados os antigos salesianos e como esses formaram seus discípulos. Os ex-alunos, no projeto educacional de Dom Bosco, deveriam manter sólidos laços com as casas que os tinham formado, não apenas sendo cristãos, mas intervindo na sociedade com os ideais da cristandade. Este era o ideal da educação salesiana. As construções modernas, portanto, enganam exatamente pela suas contemporaneidade, pois sendo construídas com tecnologia de ponta, são erigidas a partir dos ideais da cristandade. É necessário, portanto, realizar uma verdadeira arqueologia dos fundamentos que deram sustentação aos ideais salesianos na sua fundação e que foram expressos por cantos, marchas, entradas grandiosas nas cidades, demonstrações de força e presença frente à cidade dos homens. Por trás das estruturas visíveis das obras sociais, das máquinas nas oficinas, nas escolas e nos seminários palpitavam no coração dos antigos salesianos os grandes ideais que sustentaram por mil anos a cristandade ocidental, a Cidade de Deus. Apesar da distorção de se conceber a idade média como uma noite de mil anos de trevas iluminada pelas fogueiras da inquisição, ela é um referencial para o estudo da história,289 porque congrega em si aspectos que lhe dão uma identidade e que a 289 - Enciclopedistas: consideraram a Idade Média um período bárbaro, supersticioso, tenebroso, tirano, escravocrata e estéril. Afirma isso Diderot [1713-1784], Voltaire [1694-1778], Montesquieu [1689-1755] e Helvético [1715-1771]. A Escolástica [período medieval da formação de escolas de pensadores] representa a tirania do poder eclesiástico sobre o poder socio-político. Isso segundo eles foi herdado da Patrística [Primeiros Teólogos Cristãos que como os pais, buscavam transmitir aos seus discípulos as heranças advindas da tradição apostólica]. Em geral denominavam este período como “Noite de mil anos de obscurantismo ou de recuo da cultura”. Esta terá sido cultivada brilhantemente pela Antigüidade greco-romana até 476 e haverá caído em decadência tenebrosa até o século XV [1450]. A Idade Média haverá sido um túnel escuro. Gótico e Bizantino serão vistos como sinônimos de bárbaro. Caracterizaram-na como um período de superstição [alusão à ciência do sobrenatural – a Teologia], de ingenuidade da mente [alusão à ciência racional – a Filosofia – que ascendia à verdade como instrumento e serva da teologia] e de loucura [alusão à ciência empírica – Ciências físicas, alquimia, biologia etc. – que pautavam suas investigações em teoremas filosóficos].[d] Historiografia: a partir do século XVIII, com a ascensão da paleografia, paleontologia, 186 diferencia de outras épocas, sendo um contraponto quando confrontada com a idade moderna. Prevalece o questionamento que deve avaliar se estes ideais fundacionais perduram e fazem sentido no século XXI, seja da parte dos mantenedores da Instituição que devem conhecer, acreditar, divulgar e praticar esses princípios, e se estes chegam até os educandos, inicialmente como conhecimento e, posteriormente, como valor a ser assumido e integrado em suas vidas pessoal e profissional como princípio e referencial iluminadores de suas ações. Em outras palavras, se o ideal salesiano gestado com conceitos medievais possui incidência sobre os egressos do mundo contemporâneo. arqueologia e da historiografia, ainda prevaleceu num primeiro momento a mentalidade pejorativa e pouco informada dos pesquisadores que classificaram a Idade Média como ‘noite de mil anos iluminadas pelas fogueiras da inquisição e entregue às superstições e à bruxaria’. A partir do século XIX até meados do XX, com a influência marxista, observavam-se mais a dimensão sócio-econômica e política em detrimento da visão cultural e científica, por estarem atreladas à Fé cristã e a Religião, considerada teórica, utópica e ópio social. Isso sem dúvida contribuiu para não analisar a cultura, a ciência, negar e piorar ainda mais a visão preconceituosa da Idade Média e deixá-la no esquecimento. Mas ainda no século XIX, isso mudaria, com novos estudos que buscavam entender o período no conjunto, e a partir de então, a visão cada vez mais crítica do período, foi melhorando. Não obstante, ainda estamos vivendo um período de descoberta dos valores medievais em Ciência teológica e filosófica e Cultura arquitetônica, lingüística e musical etc. Em nossos dias duas são as reações: a agressiva que em geral pauta-se numa visão negativa e preconceituosa, marcada pela influência não douta, pejorativa, por ignorância factual ou por soberba intelectual contemporânea das visões anteriores; a outra visão é serena ou positiva, acenando para um interesse e abertura de estudo deste universo ainda tão desconhecido. Prof. Dr. Paulo Faitanin/ Dept. Filosofia –UFF – Editora PDF – 1910 – ISSN – 1808-5733 . s/p. 187 3.1.1.1 - Pressupostos para o entendimento da cosmovisão salesiana: a História em movimento A História é o somatório de sucederes unificados com lógica pela razão humana, não sendo uma entidade ontológica, mas lógica. Antes de se debruçar sobre o UNISAL tem-se que aprofundar o sentido da dinamicidade da história com um conjunto de conceitos que servirão de ferramentas para a leitura dessa instituição no século XXI: são os conceitos de movimento e aceleração290. Na história entende-se por movimento as mudanças culturais e de mentalidade que alteram a sociedade nos seus hábitos e costumes. É a passagem de um modo de se viver e ver o mundo para outro. Nos primitivos tais mudanças eram lentas, prevalecendo a tradição e a figura do ancião-narrador que transmitia o passado aos seus descendentes garantindo aos povos ágrafos a sobrevivência material e cultural. Mudanças culturais aconteceram quando, para garantir sua sobrevivência biológica, deveu-se buscar novas formas de produção. A Vida do homem – e, portanto sua história – é movimento em sentido amplo: é, inicialmente, movimento animal como caçador ou coletor. As primeiras comunidades gentílicas criaram, mantiveram e garantiram sua perpetuação como grupo coeso em torno do pater familiae vivendo de forma comunitária. Elas foram desestabilizadas e entraram em crise quando a partilha de terras com grupos privilegiados representou a exclusão dos segmentos mais frágeis da comunidade. Essas movimentações econômicas e culturais, a passagem de uma comunidade coletivista para uma sociedade de proprietários, tendo por sustentação a busca da sobrevivência foram formas dos mais aptos buscarem sua sobrevivência impondo aos seus pares novas adaptações a novos meios de vida, garantindo com isso sua estabilização social. As mudanças culturais, de mentalidade, de modo de vida e de costumes acontecerão em todos os tempos, sendo um processo lento se o modo de produzir a sobrevivência for estável e, ao contrário, será ágil se ágil for o modo de produzir e, mais ainda, acelerada se tal for a produção de riquezas. Mudanças sociais aceleradas serão expressões da economia que se acelera desestabilizando antigos modelos de produção que até então organizavam a sociedade. 290 - Conceitos elaborados e desenvolvidos pelo autor. 188 Na Idade média o que sobrou da desintegração do império romano ganhou estabilidade pelo cristianismo nos feudos. O ritmo da terra e das estações favorecia um ambiente místico que induzia à contemplação, fazendo emergir nos campos grandes mosteiros que alternavam as lidas agrícolas com os momentos de silêncio contemplativo e de oração nos intervalos e no ritmo da semeadura, do crescimento, das colheitas e dos períodos invernais, moldando a alma e a mentalidade do homem medieval que, cultivando a terra, ansiava habitar um dia a prometida e perene morada, a gloriosa Cidade de Deus. O mosteiro é a síntese entre a “liturgia” das estações e a liturgia das horas. O canto gregoriano e o canto-chão ecoando pelas naves de pedra no lento compasso da liturgia dão tempo à semente de nascer, crescer, florir e frutificar. Era um só tempo, o de Deus, o dos homens e o do campo. O belicoso Império romano do ocidente em sua derrocada militar e política era de novo unificado sob a fé católica. A gloriosa Cidade de Deus que no decurso do tempo, vivendo da fé, faz sua peregrinação no meio dos ímpios, que agora espera a estabilidade da eterna morada com paciência até ao dia em que será julgada com justiça, e que, graças à sua santidade, possuirá então, por uma suprema vitória, a paz perfeita. (...) Também é preciso falar da Cidade da Terra, na sua ânsia de domínio, que, embora os povos se lhe submetam, se torna escrava da sua própria ambição e domínio. (...) É desta Cidade da Terra que surgem o 291 inimigos dos quais tem que ser defendida a Cidade de Deus . Este conceito de Cidade de Deus elaborado por Agostinho deu sentido e unidade ao mundo medieval, apesar de conter em si contradições, como um Francisco de Assis, doce menestrel, de Deus e um cruzado a matar com crueldade “os infiéis” ao fio de espada, ambos, ainda que de formas diferentes, agindo à luz de uma cosmovisão unitária do cosmos, da vida e do fim escatológico do homem. No século IX recomeçam trocas comerciais que se ampliam com as feiras medievais e, já no século XIII, comerciantes e artesãos se consolidam em corporações. A atividade comercial, ao movimentar bens de uma região para outra, contrasta com o trabalho do campo que tem no esforço físico a base da produção, enquanto que as práticas comerciais apoiadas na racionalidade contam com a agilidade mental e desempenho nas negociações que podem multiplicar riquezas muito além das 291 99. - SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 97- 189 produzidas pela laboriosa labuta nos campos. O trabalho da classe burguesa pressupõe uma razão criativa e criadora e a finalidade da produção não é mais atender a necessidades, mas fazer com que o capital gere o capital. O camponês medieval, cultivando o campo, sente surgir materialmente ao seu redor um mundo novo, com igrejas paroquiais e góticas catedrais de avançadas engenharias; monges de seus claustros vêem se erguer palacetes de onde se ouve gestas melódicas de feitos heróicos ou amorosos se contrapondo ao canto litúrgico; as cidades dos homens enfeitam-se de obras de arte que louvam a vida nos burgos. Cidades tornam-se opulentas: Veneza, Milão, Paris, Oxford... Mudam as cidades e as mentes. Na universidade de Paris os racionais discorrem sobre a autonomia da razão para chegar à verdade sem necessidade da iluminatio divina que fora para tantos místicos o único meio “acadêmico” para se chegar à verdade. A Idade média vive seu ocaso sinalizado pelo emblemático Guilherme de Ockham que coloca em cheque as estruturas de poder e riqueza da Igreja e do papado aderindo ao movimento franciscano dos “espirituais292”, buscando retornar ao cristianismo primitivo que, pretendiam, desprovido de todos os bens. A estabilidade, a harmonia e o equilíbrio medieval que haviam sido sustentados nas suas estruturas feudais com a mundividência cristã são minados na medida em que se verifica um maior distanciamento ideológico, organizacional e cultural de um novo modelo econômico em que se acelera com o comércio como novo modo de produção fomentando novas formas de organização social. A reforma protestante nada mais é que uma adequação do cristianismo ao mundo urbano-comercial com uma nova mentalidade humanista, autônoma e racional que não mais aceita a tutela da igreja. O Calvinismo elabora uma moral que corresponde aos anseios da burguesia comercial vendo no lucro um sinal da benção de Deus. E assim as rupturas ideológicas com a igreja vão acontecendo sucessivamente. O Iluminismo exaltará a capacidade racional do homem e mais tarde o positivismo a supremacia 292 - Era uma controvérsia entre os franciscanos conventuais e os “espirituais”. Fraile assim descreve essa crise: “Os franciscanos ao renunciarem a todos os bens e propriedades elevavam-se à perfeita imitação de Cristo e à perfeição evangélica elevando-se acima do clero e do papa. (...) se Cristo havia condenado a riqueza a sua posse era um sinal de fragilidade (...) Chegaram a rebelar-se contra seus superiores e a negar a legitimidade do poder eclesiástico. A Igreja era uma nova Babilônia e o papa o anti-Cristo. Negava-lhe o poder de interpretar a regra franciscana e profetizavam a vinda de uma igreja do Espírito Santo , governada pelos espirituais em regime ‘democrático’”. FRAILE, 1966, p. 1.112. 190 da ciência. São levas de religiosos e pensadores que vão se distanciando das concepções de mundo e de sociedade da velha igreja. O catolicismo, ao longo dos séculos acostumara-se a ser, pensar e viver de forma medieval, mesmo quando os meios de sobrevivência mudaram, quando, por exemplo, a Inglaterra produzia bens em grande escala e acontecia a revolução industrial americana com a produção em série e eram construídas estradas de ferro para integrar mercados. Através de ações políticas o capitalismo procurava garantir mercados. O neo-colonialismo era implantado à revelia dos povos africanos e asiáticos. No campo das idéias no século XIX o positivismo buscava se libertar das amarras das “ciências teóricas” e o liberalismo se apresenta como modelo de governo para uma sociedade de homens livres. No fervilhar dessas mudanças econômicas, religiosas e ideológicas a igreja mantinha-se firmemente ancorada em conceitos e práticas medievais. Na aceleração do mundo e da história, ela freava. O protestantismo histórico, em contrapartida, que nascera urbano e quando, como egresso da igreja católica, inclinava-se para certo dogmatismo, tornando-se tradicionalista, o livre exame e a autonomia das congregações permitia mudanças imediatas, nem sempre felizes, mas respostas aptas a novos tempos e desafios com rupturas no seio de diversas igrejas. A reforma pela sua própria origem era arredia às rédeas e ao controle hierárquico. Instituições seculares como a igreja têm dificuldades de se adaptarem a novos tempos. Pela sua universalidade e atingindo povos e culturas tão diversificados, ela corre o risco de se fragmentar. Entende-se então que o empenho de romanização encetado por Pio IX no século XIX foi uma forma de implantar um modelo de autoridade centralizada que desse identidade e certeza de fidelidade aos fiéis católicos num tempo de grandes mudanças. A Igreja conseguira até manter o controle ideológico e de uma cosmovisão sobre as massas campesinas, apesar dos limitados meios de comunicação do passado. Não se dava conta, porém, que as mudanças nas formas de produção não eram pequenas e nem pacíficas, a ponto de que a historiografia veio titulá-las de “revoluções”, porque desestabilizaram a sociedade, governos, povos e vidas desde que os primeiros comerciantes se aventuraram em direção ao oriente e as caravelas começaram singrar “os mares 191 nunca d’antes navegados”293. A história começou não só a se movimentar, mas a viver um processo de aceleração. Quietude e contemplação. Progresso e aceleração. Duas atitudes do espírito na mesma época. Enquanto de um lado a igreja mantinha sua cultura campesina com suas solenes e demoradas liturgias, quando o papa, bispos e padres envoltos em cerimoniais repletos de rubricismo294 acreditavam num modelo de igreja hierárquica e imperial, de outro aconteciam as pulsões e o crescente burburinho da vida na cidade industrial, injusta, mal organizada e exploradora, onde os homens eram desprovidos do mínimo de dignidade. O operariado se inclinava para as lutas sociais por justiça, salário, moradia e dignidade crescendo em sua consciência de classe. A igreja fora a mentora das obras sociais, de assistência e caridade na idade média e continuava a sê-lo no século XIX e início do XX. O problema é que sua “ancoragem” na mentalidade medieval e natural resistência ao moderno a impedia de oferecer respostas rápidas a um mundo em aceleração quando as mudanças mal eram absorvidas e já existiam outras. A Igreja no século XIX se distanciava também das pessoas letradas e cultas, não aceitando pontos de vista que pudessem pôr em cheque a cristandade, sendo até natural essa resistência, pois alguns pensadores do período tinham explícitos embates ideológicos e doutrinais com a igreja295. Tais filigranas intelectuais, porém, não passavam pelas mentes e corações de rudes agricultores e do povo simples que se apegavam com as tradições que tinham recebido dos antepassados e para os quais, em épocas tão difíceis, duas coisas eram fundamentais: nesta terra a sobrevivência e na eternidade a salvação. É neste contexto que os camponeses do Piemonte mantinham uma religiosidade recebida dos antepassados e que certamente passariam para seus filhos e netos. Os curas rurais, sem grande cultura, sustentavam essa cosmovisão de séculos sem especiais retoques, embasada na longínqua síntese agostiniana que dera significado à vida de 293 - Luiz CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 1. 294 - São anotações em vermelho contidas nos livros de cerimônias católicas onde se determinam os mínimos detalhes e as mínimas posturas que devem ser obedecidas nas cerimônias religiosas. 295 - Karl Marx, Nietzsche, Durkheim, Augusto Compte e outros. 192 milhares de homens e mulheres: a cidade de Deus. Cada momento da vida com suas dificuldades e agruras era uma preparação para o juízo final que deveria ser preparado por uma vida de acordo com os mandamentos de Deus e da Igreja, a recepção dos sacramentos a fuga do pecado e das insídias do demônio. À hora da morte, confortado pela Extrema unção e pela benção do sacerdote, esse fiel partiria para a pátria definitiva confiante na misericórdia do Senhor. Missas seriam rezadas. Preces seriam feitas. E o ciclo da vida do camponês continuaria como o ciclo do campo onde se alternavam semeadura, brotação, crescimento, floração, frutos, colheita e morte, para recomeçar de novo a vida. Era, como já afirmamos, uma liturgia do campo, dos homens e de Deus. Apreender essa mentalidade acima descrita nos permite compreender a complexidade destes séculos para os homens que neles viveram. O camponês João Bosco, em plena revolução industrial italiana, querendo salvar almas confrontase em Turim com o pensamento liberal anticlerical. Tivesse ficado a celebrar missa para o povo simples, a atender ricas senhoras piedosas e alguns senhores do antigo catolicismo tradicional, sua vida não teria tido maiores confrontos com esses grupos radicais. Suas obras, porém, necessitavam de apoio governamental, de grandiosas somas em dinheiro, de trânsito político com os chefes de cidades e províncias para que pudesse dar aos adolescentes carentes mais que o conforto da religião: educação, profissionalização, um lugar na sociedade de respeito e uma vida digna e útil na sociedade industrial. Sacerdote católico, defensor incondicional do papado, é introduzido por pessoas influentes em meio às altas rodas políticas e sociais para negociar ajuda financeira, licença para obras, recursos estatais com as alas progressistas e anti-clericais da Nova Itália. É um ativista que percorre os meandros do poder civil e eclesiástico procurando recursos, buscando impressionar e formar a opinião publica a favor de suas obras e de seus jovens. À argúcia do camponês soma-se uma visão da importância da atuação de uma igreja mais moderna, inserida nas realidades deste século. Na cidade de Turim em 26 de abril de 1884, na Exposição Nacional da Indústria, da Ciência e da Arte na qual estariam presentes a família real, o corpo diplomático, industriais e políticos, João Bosco consegue licença para ser um dos expositores. Expõe volumes científicos, literários, históricos, didáticos e religiosos. O Boletim Salesiano em três idiomas: italiano, francês e espanhol. No ano anterior, ao visitar a exposição de Zurique, João Bosco 193 encomendara uma máquina de tipografia com um novo desenho aperfeiçoado por sua equipe das Escolas Profissionais. Eis como nos narra Céria o impacto gerado nesta exposição em Turim por essa máquina tipográfica que João Bosco fizera funcionar durante toda a exposição: Lia-se na porta de Entrada: ‘Fabbrica Di Carta, Tipografia, Fonderia, Legatoria E Libreria Salesiana’. Falava-se bem que Dom Bosco era conhecido; Naqueles tempos, porém, um padre expositor numa Exposição Nacional e na sessão de trabalho parecia um verdadeiro anacronismo. Muitos que por aí passavam, lendo o letreiro à porta, sorriam, imaginando encontrar objetos de sacristia, que em nada lhes interessava. Se, porém, superado o preconceito, resolvessem entrar, ficavam pasmos com duas novidades: o trabalho e os trabalhadores. Estes, todo jovens de várias idades, mostrando simpatia, aplicação, competência e serenidade, procuravam fazer bem sua parte. O trabalho aí realizado (de impressão de livros) prendia a atenção de todos do princípio ao fim tornando-se uma das maiores atrações para o público na grande mostra. A intenção de dom 296 Bosco era mostrar as várias etapas da produção de um livro . Bosco colocava-se em pé de igualdade com suas oficinas e Escolas Profissionais com a avançada tecnologia da época e procurava mostrar sua obra como geradora de resultados palpáveis para o mundo industrial. É um típico ativista católico com os pés plantados na realidade do seu tempo e falando a linguagem da modernidade do século XIX. 296 - CERIA, Eugenio. Memorie Biografiche di san Giovanni Bosco 1884-1885. Torino: Società Editrice Internazionale,1936,v. XVII, p. 244-245. 194 3.1.1.2 - João Bosco diante do seu tempo As religiões são objeto de estudo de muitas ciências que as abordam sob vários ângulos: sociológico, histórico, político, econômico ou de qualquer outro ponto que se considere oportuno. Todas elas, porém, possuem um espaço íntimo subjetivo que não é nem mensurável e tampouco descritível. Alguns termos procuram desvendar esse espaço interior denominado “fé” que se projeta na vida humana motivando ações nobres, assim como a capacidade de oblação que dá sentido para se viver e morrer. O inefável não pode ser descrito, narrado e explicado porque envolto sob o véu do mistério: possui, porém sua visibilidade através dos frutos que gera na vida das pessoas e da sociedade. Alguns termos procuram explicitar essas experiências que transcendem os sentidos e representam a experiência da divindade297. A Mística, diferente do êxtase, possui uma dimensão mais ativa e tangível quando o ser humano a partir de sua experiência com a divindade procura adequar-se aos projetos divinos. Essas crenças indescritíveis e inefáveis precisam de fórmulas simplificadoras que verbalizem o inenarrável tornando-o compreensível e exeqüível, também para as pessoas simples que por um insight apreendem intuitivamente o projeto de vida da religião. O cristianismo construiu fórmulas simplificadoras como amor, caridade e salvação. Nessas três palavras se podem resumir as mais profundas especulações teológicas para o homem comum. São palavras-síntese. Foi essa síntese que Santo Agostinho conseguiu elaborar ao escrever o livro “De Civitate Dei”, que não só justificava a queda do Império Romano, como também sinalizava o sentido e os ideais da cristandade. É um conceito que, mesmo se não usado, está implícito em toda ação evangelizadora e catequética que pretenda construir homens e sociedades novos à luz do cristianismo. A Gloriosa cidade de Deus é não só a síntese de quatro séculos de tensões no nascente cristianismo, quando a patrística discutia o relacionamento entre a fé e a razão através das correntes Gnóstica, Africana e Alexandrina298. Essa idéia será 297 - No campo filosófico a reminiscência platônica é um êxtase da razão na feliz contemplação do hiperurânio. 298 - Essas três correntes discutiram no período da patrística, que termina em 430 com a morte de santo Agostinho, o relacionamento entre a Fé cristã e a Razão grega. A corrente gnóstica afirmava a 195 posteriormente o farol de toda a idade média. Como as marés vivem o fluxo e refluxo, essa tensão entre a Cidade de Deus e a cidade dos homens será permanente na igreja intramuros. Mesmo neste nosso século ela permanece implícita na mente dos cristãos. O “Reino dos Céus” apregoado pelo evangelista Mateus, construído no outro mundo ou neste, espiritual ou materialmente, traz implícita a consolidação de uma civilização apoiada no essencial. O Filme “Irmão Sol e Irmã Lua”299 de Franco Zeffirelli é um melodrama hollywoodiano. Há, porém uma cena que é antológica que, independente de sua historicidade, demonstra em negativo o ideal de igreja não apenas na Idade Média quando as cenas são locadas, mas em todos os tempos, porque falam de um ideal atemporal. Francisco de Assis300 consegue enfim a audiência com o papa Inocêncio III301 para pedir autorização de sua nova ordem religiosa mendicante. Ao entrar na sala de audiências sua pobreza contrasta com a magnificência e suntuosidade do ambiente: a guarda postada, os levitas enfileirados sustentando turíbulos, os cardeais envolvidos em riquíssimas roupas de seda compõem o ambiente da coorte papal. Uma imensa escadaria leva ao trono do pontífice, ladeado pelos mais altos dignitários da igreja vestido de ricas vestes, destacando-se no papa a capa magna com preciosas pedras. O maltrapilho Francisco, autorizado, começa ler em latim um pergaminho com palavras protocolares para o momento, soletrando-as... não são suas... o pergaminho cai de suas mãos... e num arroubo começa a citar o sermão da montanha do Evangelho de São Mateus: olhai os lírios do campo302,... conforme vai pronunciando as palavras os cardeais vão franzindo o rosto, crispando os lábios até que revoltados começam a gritar que ele seja posto para fora pelos guardas. supremacia da Razão sobre a Fé, a Africana a superioridade da Fé sobre Razão e a Alexandrina a conciliação entre essas duas. Foi a essa que Agostinho de Hipona aderiu. 299 - FRATELLO Sole, Sorella Luna. Direção: Franco Zeffirelli. Atores: Graham Faulkner, Judi Bowker, Leigh Lawson, Kenneth Cranham. Gênero: Drama. INGLATERRA: Estúdio Vic Films / Euro International Film S.A.1972. (121 min). 300 - Interpretado pelo ator Graham Faulkner. 301 - Interpretado pelo ator Alec Guinness. 302 - Evangelho de São Mateus Capitulo 6, versículo 28ss. 196 Havia desrespeitado o papa, quebrado o protocolo, pronunciando palavras ofensivas contra a Igreja, o papado e a hierarquia, sinais visíveis da autoridade de Cristo na terra, e, pressuroso, dois cardeais correm para se desculpar com o chefe da igreja, enquanto os guardas arrastam Francisco e seus companheiros para fora. As palavras atribuídas a Jesus no Evangelho soavam como estranhas, revolucionárias e ofensivas. A câmara vai fechando foco no rosto Inocêncio III com os olhos semi serrados atordoado, quase em transe. Parece ter a reminiscência, em meio à sufocante opulência não evangélica que o circunda e envolve, a pálida recordação de crenças e sonhos da juventude. Determina que trouxessem de volta o jovem, que é posto aos pés da escadaria de joelhos e com o rosto voltado para o chão. A cena continua a ser significativa. O pontífice se desprende da capa magna e desce lentamente as escadas não mais como rei, mas como ser humano despido agora em parte dos adereços do poder. Aos pés da escada dois homens que se encontram, um, no borbulhar dos grandes ideais da juventude, outro, na recordação de uma vida também permeada por sonhos juvenis, mas traída: também na minha juventude... balbucia Lottário303, confidenciando ideais amortecidos em seu coração. O papa percebe num olhar o quanto que sua igreja estava distante dos ideais do Evangelho. Num impulso, ajoelha-se e beija os pés de Francisco. Há um contido frenesi de espanto e revolta entre os cortesãos. Um cardeal, porém, tranqüiliza seu vizinho vendo nesta ação um jogo de cena para recuperar o controle sobre os pobres que se haviam distanciado da igreja. Última cena: o homem-papa afasta-se alguns passos de Francisco. Dois clérigos o recompõem com rica capa fazendo desaparecer o homem, engolido pela pompa, poder e autoridade. A tiara papal é elevada sobre sua cabeça pelos clérigos que traçam com ela por três vezes a benção em forma de cruz. Cresce o canto litúrgico sob forte nuvem de incenso. Francisco parte eufórico pela aprovação da sua ordem e a cena seguinte é da idílica paz no entorno da capela campestre de São Damião com os pobres vivendo o amor cristão. Termina a cena. 303 - Nome de batismo do papa Inocêncio III, cujo nome completo era Lottario dei Conti di Segni 197 Esses clichês com tintas fortes para atingir os sentidos e os sentimentos, e porque não dizer, para bater recordes de bilheteria, não deixam de sublinhar o distanciamento da igreja que se perdera no poder e no ritualismo e não soubera manter o passo da história. A Mensagem do poverello de Assis transcende os séculos porque traz em si e no que representa os ideais de cristianismo: o amor e o desprendimento da cidade dos homens na busca da cidade de Deus. O filme de Zeffirelli é um conto, com base histórica, mas com sabor de parábola. Fala mais do que narra e mostra mais do que fotografa. Seja em nível intelectual ou afetivo diz que tipo de igreja e de religião se quer e qual não se quer. O problema é que tanto Inocêncio III, como os altos dignitários da igreja, mostram-se seduzidos pela pompa e poder, sendo a cristandade com seu poder e pompa mais forte do que o carisma despojado do cristianismo. A estória denuncia que a Igreja fora perdendo os valores evangélicos. Francisco personifica um novo modelo de Igreja que pretende o retorno às fontes. Não será sem motivo que no final do século XIII e inicio do século XIV o próprio franciscanismo rachará entre os conventuais, agora proprietários de grandes conventos, e os espirituais, que queriam fidelidade a Francisco e a tudo que ele representava na igreja enquanto fidelidade aos ensinamentos de Jesus. Há o anseio de retorno às fontes na medida em que cresce e se fortalece a cidade dos homens, adentrando os ambientes da Cidade de Deus. A descrição da experiência de Francisco é uma matriz que “verbaliza” os mais profundos e nobres anseios do cristianismo. É uma chave para entender a dimensão mística de João Bosco que foi um “invasor” da cidade moderna com os ideais da Cidade de Deus. E na cidade dos homens plantou não mosteiros, mas orfanatos, oficinas e escolas que, com seus amplos ambientes, recriavam os ideais do cristianismo medieval. Mas as “muralhas” dessas edificações espirituais e materiais com suas cidadelas sempre alerta e contra os males do mundo passaram a sofrer crescente sítio da cidade dos homens. Francisco de Assis foi um invasor da igreja opulenta denunciando-a com sua pobreza, deixando atordoado o príncipe, rei e papa com seu olhar repleto de sinceridade evangélica. João Bosco, quando assiste a investidas contra a Igreja, contra o papado, tem a mesma sensação que teria Francisco de Assis, caso visse seu doce refúgio de São Damião ser assediado e 198 tomado pela púrpura, pelo ouro e pela seda dos cardeais que, adentrando aos simples cômodos, enchessem o olhos de seus discípulos de outro modo de vida, com luxo, poder e vaidade. No palácio papal alguns cardeais queriam expulsar Francisco, que silenciosamente denunciava seus desmandos, mas acabaram tendo que se submeter pela coerção imperial do papa de ao menos ouvir o poverello. Agora, num efeito semelhante, Bosco e seus discípulos fiéis àquele mesmo evangelismo de Francisco professado tantos séculos antes, querem expulsar essa coorte barulhenta e frívola dos modernos e liberais, que contestam a cristandade como um modelo ultrapassado frente a um mundo economicamente industrial e politicamente liberal. As armas e modos de ação podem ser diferentes, mas o ideal é único. João Bosco foi um cidadão desta cidade do alto e que não abriu mão dos seus princípios de cristão convicto, mas se integrou na cidade dos homens usando sua linguagem, seus valores, vivendo em sua dinâmica e no seu “jogo” fazendo-se respeitar, não só como sacerdote, mas como cidadão produtivo e construtor da cidade terrena formando mão de obra especializada, além de oferecer educação e instrução aos jovens das classes populares. Une-se à modernidade com inventividade, educando os jovens cidadãos dessa nova era, com a esperteza, porém, de um jogador de xadrez que, ao movimentar as peças no tabuleiro, ora indo, ora recuando, tudo faz com uma única meta: a vitória da Igreja. Para Bosco seu fim único e inequívoco é implantar a Cidade de Deus utilizando-se das melhores armas que estavam disponíveis na urbe industrial. Entende que a comunicação pela imprensa é um meio eficiente para divulgar suas idéias. Lança as leituras católicas com publicações mensais, em que alterna leituras infanto-juvenis recreativas, teatros, vidas de jovens exemplares, livros apologéticos em defesa da igreja, de atualidades, escolares304 e de formação. Consegue alternar com maestria o que há de mais moderno e, ao mesmo tempo, conservador, mirando seus públicos alvos e utilizando uma linguagem específica para cada um deles. 304 - Para fazer frente aos constantes ataques sofridos pela Igreja na historiografia da época, para suas escolas, João Bosco escreve “La Storia D’Itália” para uso em suas escolas em que faz uma leitura do passado e do presente da península a partir de uma ótica apologética da igreja. 199 Bosco se integra na dinâmica do mundo industrial, que supõe produção e competição por qualidade. Suas oficinas gráficas305 primam pela qualidade e eficiência e, quando na feira de tecnologia de Turim sua impressora aperfeiçoada é merecedora do primeiro prêmio e recebe o segundo lugar, nega-se a receber o prêmio, pois a qualidade tecnológica da máquina era tal que a colocava naturalmente em primeiro lugar, mas o anticlericalismo reinante de então não permitiria conferir a um padre o primeiro prêmio. Em carta datada de 25 de outubro de 1884 solicita revisão da premiação e descreve em detalhes a imensa produção de livros, sua qualidade, seu serviço prestado à Itália e à juventude pobre. A firmeza de sua carta impressiona pela exatidão das imensas quantias pecuniárias envolvidas na tipografia, dos trabalhos realizados para toda a Itália e da qualidade do serviço prestado e conclui a carta com as seguintes palavras: Neste caso basta-me ter podido com minha obra participar na Grandiosa Mostra da invenção e indústria italiana e demonstrar com fato que no período de 40 anos sempre promovi o bem estar moral e material da juventude pobre e abandonada, isto sim o verdadeiro progresso da ciência e da arte. Para mim já é um prêmio suficiente o reconhecimento do público, que pode verificar com os próprios olhos a índole desta minha obra e dos 306 meus colaboradores (...) E, paradoxalmente, este homem que fazia presença numa feira de Ciências da Itália, competindo inclusive com invenções, era ao mesmo tempo o autor do livro “o Jovem Instruído307”, um manual de formação e piedade para os jovens de seus oratórios, 305 - Num período de confronto entre a igreja e o poder liberal as portas das gráficas eram facilmente fechadas aos padres. Com sua gráfica João tinha autonomia de publicação. Quando foi boicotado pelos fornecedores de papel, abriu uma fábrica dessa matéria, se bem que sua incursão neste ramo de produção não foi bem sucedida, tendo que em pouco tempo fechar essa indústria. 306 307 - CERIA, op. cit., p. 254. - Este livro foi escrito por João Bosco endereçado especialmente para os jovens. Nele trata dos “dois ardis de que principalmente costuma servir-se o demônio para afastar o jovem do caminho da virtude (p.7). Nesta introdução João Bosco pretende mostrar como o jovem pode se livrar do inferno fugindo do vício pela prática da virtude e da piedade: “se começarmos a viver bem agora que somos moços, continuaremos a viver bem pela vida afora, teremos uma boa morte, que será o princípio de uma felicidade eterna” (p. 6) Nessa obra traça o que é necessário para um jovem ser virtuoso, ser perseverante, o que deve fazer e evitar. (p.12-50) A seguir apresenta sete meditações para os dias da semana tendo a seguinte seqüência: domingo: o fim do homem; segunda-feira: o pecado mortal; terça-feira: a morte; quarta-feira: o juízo; Quinta-feira: o inferno; Sexta-feira: a eternidade das penas; sábado: o paraíso. (p 51-75) A seguir segue-se o devocionário para as práticas de piedade (p.551) em que se alternam orações em latim, instruções, catequese e a vida espiritual que deveriam viver os jovens. A sua linha de pensamento possui seu embasamento na visão medieval de mundo e de igreja. 200 em que estabelecia valores morais e procedimentos de vida cristã a partir de uma visão do temor da perdição eterna, do perigo das insídias do demônio308 contra a juventude e recheado de orações tradicionais em latim para jovens pouco afeitos às letras e muito menos ao idioma eclesiástico. Dois são os ardis de que principalmente costuma servir-se o demônio para afastar os jovens do caminho da virtude. O primeiro é fazer-lhe crer que para servir a Deus é preciso levar uma vida melancólica, longe de todo divertimento e prazer. (...) outro engano é a esperança de ter uma longa vida e a de converter-se mais tarde, quando velhos ou na hora da morte. (...) Adolescens iuxta viam suam, etiam cum sunuerit, non recedet ab ea. Isto significa: sem começarmos a viver bem agora que somos moços, continuaremos a viver bem pela vida afora, teremos uma boa morte que será o principio de uma felicidade eterna. Pelo contrário, se desde moços nos deixarmos dominar pelos vícios, geralmente assim continuaremos em todas as fases de nossa vida até a morte, que será inicio funesto de uma infelicíssima eternidade. Para que tal não aconteça a vós, aqui vos proponho uma breve e fácil norma de vida, mas suficiente para vos tornardes a consolação dos vossos pais, a honra da pátria, bons cidadãos 309 na terra e mais tarde venturosos habitantes do céu . Esse opúsculo de quatrocentas páginas é, sob o olhar crítico de hoje, um estranho monumento medieval edificado em plena planície moderna e liberal do século XIX que coloca a eternidade como único sentido da vida e a presença insidiosa do demônio a impedir a todo custo que a juventude chegue ao paraíso. O mesmo sacerdote, que usava em suas oficinas tecnologia de ponta, que redige cartas ao governo com uma linha de raciocínio e de lógica impecável e que era autor de páginas avançadas sobre educação que transcenderam seu tempo pelos seus conceitos educacionais, era também autor de páginas nas quais palpitavam idéias que poderiam ter brotado da pena dum obscuro cura medieval do século XII. É aparentemente contraditório que haja um coração que tenha uma cosmovisão de um mundo povoado de demônios como autores e princípio do mal, junto de uma 308 - O conceito bíblico do demônio está presente na história do cristianismo em maior ou menor intensidade. Santo Antão (séc. III), pai dos monges do deserto, apresenta para seus discípulos as insídias do “tentador”. Ao logo da Idade Média, muitas superstições e crendices se mesclam com as práticas cristãs. No final da Idade Média, em meio às classes populares, é forte a crença na ação demoníaca, ainda que, no reduzido ambiente intelectual até o século XIX, tais crenças tenham sofrido abalos e questionamentos, entre as populações rurais elas continuam fortes. Bosco receberá do ambiente campesino essa mentalidade expressa claramente no livro “O Jovem Instruído”. 309 - BOSCO, João. O Jovem Instruído. São Paulo: Livraria Salesiana, 1952, p. 5-6. 201 mente que pensa, trabalha e age alinhada com o mundo moderno e com a lógica do mercado e do capital e com uma visão política que, se não tivesse profundas amarras com o papado, não teria dificuldades em abraçar o pensamento liberal na sua dimensão democrática porque, afinal, a congregação religiosa que fundara tinha já na sua origem ideais liberais de governo, em que mais do que sublinhar a autoridade de Deus que se encarna nos superiores, destacava o clima de familiaridade que deveria reinar nos ambientes educativos, sendo o superior considerado como um pai que possui um profundo respeito pelos educandos. Não foram poucos os clérigos que se escandalizaram com a “falta de disciplina religiosa” e mesmo com a “desordem” que reinava nas casas de Dom Bosco. Para eles valia a lei expressa pela autoridade como representante da vontade de Deus, enquanto que, para Bosco, deveria prevalecer a paternidade dos diretores que sempre agiriam com afeto e coração. Para os primeiros a autoridade se sustinha em nome de Deus e pela força da lei. Bosco, ao contrário, valoriza a autoridade moral, muito mais que a legal, sabendo que, se os superiores fossem amados, seriam respeitados. Dom Bosco, mais do que uma sociedade, queria uma família fundada quase que unicamente sobre a paternidade suave, amável e vigilante do superior, e sobre o afeto filial e fraterno dos súditos.Aliás, ainda que mantendo o princípio da autoridade e da respectiva submissão, não queria distinções, 310 mas igualdade entre todos em tudo . Esse João Bosco “urbano” viveu conflitos com a igreja institucional porque seu comportamento fugia aos rígidos padrões da época. Era uma situação conflitiva porque seu coração medieval o fazia se inclinar diante da hierarquia representante de Deus, mas sua mente pragmática urbana o fizera entrar em rota de colisão com seus dois bispos, antes seus amigos pessoais e com a cúria Romana, e não teria ido longe se não tivesse o beneplácito de Pio IX que lhe deu respaldo frente à rejeição de segmentos da sociedade tradicional católica turinense, seus dois bispos, algumas autoridades civis e membros da cúria romana. Em nível eclesial era um pragmático. Não criou comunidades monásticas com clérigos e padres circunspectos mergulhados numa espiritualidade desencarnada da vida e do cotidiano dos pobres. Seus noviços, ao invés de uma vida contemplativa 310 - Felipe RINALDI, apud BROCADO, 2008, p. 50. 202 de oração, viviam no pátio brincando com a molecada, dando aula, mantendo uma disciplina duvidosa para os olhares externos e “poucos envolvidos nas coisas de Deus”. Afirmar que queria “padres em mangas de camisa” no século XIX soava como afronta e desrespeito à toda mística que circundava o sacerdócio. Se, publicamente, manteve sempre docilidade e respeito com seus bispos, efetivamente não se dobrou às suas exigências e nem tampouco às dos governantes civis. Seu temperamento resoluto e pouco inclinado a abrir mão de suas convicções, quando parecia recuar, apenas o fazia como estratégia para, com novas investidas, atingir seus objetivos. Foi um daqueles personagens polêmicos dos quais se poderia dizer, com embasamento, o bem e o mal. Sendo rotulado como humilde ou atrevido, obediente ou desobediente, prepotente ou dócil dependo da angulação pelo qual fosse percebido. Reconstituir as palpitações íntimas deste homem pode ser um processo psicológico e historiográfico ainda por ser feito em profundidade311, pois Bosco possui algo de um cavaleiro medieval que incursiona no espaço moderno impondo diálogo entre dois mundos que se rejeitam: a igreja resistente a mudanças e os pensadores liberais saturados do dogmatismo prepotente dos líderes religiosos. Essa luta foi também travada no íntimo deste homem que teve que quebrar resistência, rever posições e avançar para o novo. E, para além das querelas político-religiosas do seu tempo, foi capaz de elaborar princípios e valores educacionais que transcenderam o século XIX. 311 - O citado livro “Profundamente homem e profundamente Santo” de Pietro Brocado realiza esse intento. Falta-lhe, porém, uma metodologia científica. O autor por gozar de amplo conhecimento descuidou-se do recurso às fontes com uma apresentação que é válida ainda que careça de embasamento documental de sustentação de suas afirmações que certamente nasceram de suas pesquisas e estudos, mas que não são visualizadas em notas e nem na citação bibliográfica, o que compromete a cientificidade da obra, que passa a ter como fonte de credibilidade apenas o nome do seu autor. 203 3.1.2 - Década de 1960: abalos nas crenças e estruturas da congregação Após as lutas para ser aceito pela igreja como congregação e pela sociedade civil e política como educador, João Bosco morre reconhecido e consagrado em 1888. Ao seu sucessor Miguel Rua caberia a missão de consolidar essas vitórias, pois muitos esperavam o declínio do movimento salesiano. Ao contrário, porém, foi um momento de grande expansão. Com a morte de Miguel Rua em 1910, a Congregação havia se consolidado na educação das classes populares. Em 1934 João Bosco é declarado Santo pelo papa Pio XI, sendo isso uma vitória memorável, pois, afinal, ele fugira aos padrões daqueles tradicionais santos da igreja, mais anjos que homens. Sua vida desconsertava por seus procedimentos incomuns esperados dos santos do “panteon” católico que tinham esmaecida sua humanidade, em detrimento de um angelicalismo desencarnado das realidades terrestres. Com sua canonização, a congregação ganha cidadania e respeito definitivo em âmbito eclesial. Nos anos seguintes a sociedade ocidental será estremecida por diversos eventos que a desestabilizarão, com reflexos na educação promovida pela igreja em sentido amplo e na salesiana desestabilizadores. de modo particular. Sinalizemos alguns desses pontos 204 3.1.2.1 - Abalos em nível de mundo Os anos 1960 podem ser visualizados como um divisor de águas de mentalidades nas sociedades ocidentais. Essas mudanças foram gestadas por décadas e até séculos e se materializaram com maior visibilidade através de transformações econômicas, sociais e políticas criando uma demarcação mental entre passado e futuro. É um momento político crítico, com a guerra fria e com o aumento das tensões internacionais que se acirram com as guerras no Laos, Camboja e Vietnã, confrontando-se belicamente direita e esquerda. Grandes potências procuram impor sua hegemonia sobre países de terceiro mundo, apoiando guerrilhas, lutas contra o colonialismo e contra regimes ditatoriais. Do lado capitalista, a Aliança para o Progresso, com a distribuição de alimentos, capitaneada pelos Estados Unidos, procura neutralizar os desequilíbrios sociais do terceiro mundo, vulneráveis aos discursos de esquerda. Do lado socialista, a União Soviética consolida sua hegemonia reprimindo “autonomias”, como na “Primavera de Praga”. Uma hecatombe nuclear parece mais que uma hipótese frente às crescentes tensões internacionais. A instabilidade atinge também a sociedade com eventos que se tornaram referências-símbolos desta década. Os hippies quebram paradigmas numa era belicosa em defesa da paz, do amor livre e das drogas. O festival de Woodstock, improvisado numa fazenda sob chuva e falta de infra-estrutura, programado para 200.000 expectadores é invadido por mais de 500.000 mil pessoas que, deixando de ser expectadores, tornaram-se protagonistas de um dos maiores eventos de contracultura da década com a quebra de padrões comportamentais em nível de sexualidade, drogas, defesa da não-violência e respeito pela liberdade individual. O movimento estudantil de Paris de 1968, no lastro da mesma mentalidade, se espalha por vários países demonstrando a insatisfação da juventude contra um sistema educacional que não lhes respeitava direitos. Havia um ar estranho: a revolução inesperada arrastara o adversário, tudo era permitido, a felicidade coletiva era desenfreada” (Antonio Negri). 1968 foi o ano louco e enigmático do nosso século. Ninguém o previu e muito poucos os que dele participaram entenderam afinal o que ocorreu. Deu-se uma espécie de furacão humano, uma generalizada e estridente insatisfação juvenil, que varreu o mundo em todas as direções. Seu único 205 antepassado foi 1848 quando também uma maré revolucionária - a “Primavera dos Povos”-, iniciada em Paris em fevereiro, espalhou-se por quase todas as capitais e grandes cidades da Europa, chegando até o Recife no Brasil. O próprio filósofo Jean-Paul Sartre, presente nos acontecimentos de maio de 1968 em Paris, confessou, dois anos depois, que “ainda estava pensando no que havia acontecido e que não tinha compreendido muito bem: não pude entender o que aqueles jovens queriam... então acompanhei como pude... fui conversar com eles na Sorbonne, mas isso não queria dizer nada” (Situations X). A dificuldade de interpretar os acontecimentos daquele ano deve-se não só à “múltipla potencialidade do movimento” como à ambigüidade do seu resultado final. A mistura de festa saturnal romana com combates de rua entre estudantes, operários e policiais, fez com que alguns, como C. Castoriadis o vissem como “uma revolta comunitária” enquanto que para Gilles Lipovetsky e outros era “a reivindicação de um novo individualismo”. Tornou-se um ano mítico porque “1968” foi o ponto de partida para uma série de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaram as sociedades da época de uma maneira irreversível. Seria o marco para os movimentos ecologistas, feministas, das organizações não-governamentais (ONGs) e dos defensores das minorias e dos direitos humanos. Frustrou muita gente também. A não realização dos seus sonhos, “da imaginação chegando ao poder”, fez com que parte da juventude militante daquela época se refugiasse no consumo das drogas ou escolhesse a estrada da violência, da guerrilha e do terrorismo urbano.“1968” foi também uma reação extremada, juvenil, às pressões de mais de vinte anos de Guerra Fria. Uma rejeição aos processos de manipulação da opinião pública por meio dos mass-midia que atuavam como “aparelhos ideológicos” incutindo os valores do capitalismo, e, simultaneamente, um repúdio “ao socialismo real”, ao marxismo oficial, ortodoxo, vigente no leste Europeu, e entre os PCs europeus ocidentais, vistos como ultrapassados. Assemelhou-se aquele ano aloucado a um caleidoscópio, para qualquer lado que se girasse novas formas e novas expressões vinham à luz. Foi uma espécie de fissão nuclear espontânea que abalou as instituições e regimes. Uma revolução que não se socorreu de tiros e bombas, mas da pichação, das pedradas, das reuniões de massa, do alto-falante e de muita irreverência. Tudo o que 312 parecia sólido desmanchou-se no ar . No Brasil a UNE ganha corpo fomentando as massas estudantis a uma inserção sócio-política nos problemas brasileiros. O confronto com o regime militar, que tem sua radicalização em 1968 e que é precedida com prisão em Ibiúna dos participantes do congresso da UNE313 e, logo se materializa a seguir com AI 5314, quando explicitamente o governo golpista começa a mostrar a face truculenta do regime militar. 312 -HISTÓRIA por Voltaire Schilling. Mundo: 1968. Disponível <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/1968.htm>. Acesso em: 18 jun. 2011. 313 - 13 de outubro de 1968. 314 - 13 de dezembro de 1968. em: 206 3.1.2.2 - Abalos em nível de Igreja No Início do século XX começa emergir “certo” iluminismo cristão de intelectuais católicos na busca de atualização, como o emblemático Movimento litúrgicocatequético e bíblico de Innsbruck315. Eram, porém, vozes abafadas, caladas e enfraquecidas pela força do tradicionalismo e da hierarquia, que se faziam árbitros não só da ortodoxia, mas das mais corriqueiras ações da igreja. Em palácios, rodeados de cortes em vestimentas purpúreas, com preciosos anéis e com pessoas se ajoelhando aos seus pés, homens, considerados sucessores dos apóstolos, se distanciavam do mestre que lavara os pés dos apóstolos apresentando-lhes um modelo de como ser maior naquilo que os Evangelhos definiram como uma contra cultura chamada Reino de Deus no qual, para ser senhor, dever-se-ia ser servidor. Nesta década de 1960 a Igreja se agarra às suas tradições diante de um mundo que se agita em tensões econômicas, políticas, sociais e morais. Esses novos desafios não são assimilados por parte da hierarquia, incapaz dum confronto com essas realidades, havendo miopia de muitos príncipes da igreja, acreditando que sua estabilidade estava assegurada na solidez das catedrais, na liturgia sob o som dos órgãos de tubo solenizando os pontificais, na nobreza do canto gregoriano, nas alfaias usadas em rituais impecáveis, de acordo com as rubricas litúrgicas. O latim utilizado nas catedrais ou nas minúsculas capelas parecia dar estabilidade e unidade à Igreja. Preservar a tradição parecia tornar incólume a religião frente às intempéries do mundo contemporâneo, como se a unidade da Igreja fosse sustentada em rituais e não nas fontes primeiras daquilo que os cristãos acreditavam como manancial de sua fé, as Escrituras ditas Sagradas. A maior parte dos anciãos da igreja desconectava-se dos desafios do mundo real para se anestesiarem numa tradição que pouco contribuía para a projeção espiritual, política e social de uma instituição que socialmente perdia força e prestígio frente aos novos tempos. 315 - Na Áustria o teólogo Josef A. Jungmann (1889-1975) preconiza a necessidade de uma radical reforma da Igreja Católica nas dimensões Bíblica, litúrgica e Catequética rompendo com a mentalidade apologética e intelectualista que até então o catolicismo vinha assumindo como reflexo de sua reação à reforma protestante. A partir do seu pensamento, surge em 1939 a Escola Querigmática de Innsbruck. Em 1950 essa busca de depuração do catolicismo ganha o nome de “Movimento de Innsbruck” que buscava uma renovação bíblica, litúrgica e catequética na igreja. Esse movimento terá influência na proposta de Renovação do Concílio Vaticano II. 207 No seio da Igreja alguns teólogos e pastoralistas se angustiavam ao perceber o descompasso desta com esse mundo em crescente aceleração. O movimento de Innsbruck sinalizava que se viviam novos tempos e a necessidade de que a hierarquia se adequasse a eles. Eram, porém, vozes poucas vezes ouvidas por uma hierarquia conservadora. Com a eleição de João XXIII esperava-se um governo de transição até o amadurecimento da escolha de um líder capaz de fazer frente aos estonteantes desafios da época, pois se delineava um previsível choque ideológico entre uma linha conservadora e reacionária e uma pequena e ativa parcela de cardeais progressistas que, conscientes da rapidez das mudanças do mundo cada vez mais secularizado, acreditavam ser preciso buscar uma corajosa adequação da igreja aos novos tempos. Esse papa, que deveria ser apenas uma presença figurativa na igreja pela sua velhice, desconcerta, porém, e usando o poder absolutista que o cargo lhe conferia convoca o Concilio Vaticano II tendo por mote o aggiornamento. Nem João XXIII e nem os padres conciliares tinham idéia do que estavam iniciando. Comparar o concílio à abertura da caixa de pandora chegou a ser uma imagem utilizada para se referir ao seu impacto sobre a igreja. Quando o Concilio é “fechado”, como na mitologia, a igreja trilhará caminhos e descaminhos perdendo-se em muitos males que a afligirão por muito tempo. O concílio apenas explicitara uma latente crise na igreja. A maioria dos padres conciliares ao iniciarem os trabalhos em 1963, acreditava que essa reunião mundial iria trabalhar apenas algumas questões disciplinares para a Igreja no século XX . Uma composição internacional e eclética. Mas o resultado a que chegaram – totalmente assíncrono, comparado com o andamento indicado por João – constituiu a primeira prova evidente de que uma representatividade assaz universal geograficamente, não era critério suficiente para a renovação a que o Concílio houvera devido tender. Os textos resultantes permitiam ajuizar que o Concílio seria uma reafirmação de todo o dogma e de toda a moral..." (...) "O Concílio, nos moldes que o Papa deixara entrever, era coisa bem diversa daquilo que os trabalhos preparatórios deixavam prever. Todos os que tinham conhecimento deste trabalho ficavam impressionados pelo caráter dogmático, acanhado, escolástico dos textos. Muito ao invés de representarem um progresso, algumas formulações referentes à Revelação, à ordem moral, aos problemas do matrimônio, acabavam sendo um retrocesso, quando comparadas à teologia formulada pelo Magistério, e especialmente pelo Papa Pio XII." “Porém”, continua Zizola "se é verdade que, de fato, por baixo da casca do organismo eclesiástico, uma surda germinação evocava um Concílio renovador, e secretamente lhe preparava o terreno, por outro lado também é verdade que o anúncio do Concílio apanhara o mundo católico despreparado. Poucos eram os espíritos que tinham consciência da vastidão da crise religiosa em curso; correntes 208 reformadoras pulsavam no corpo do catolicismo, mas de forma erradia, clandestina, farejadas por rastreamentos intelectuais mais ou menos declarados: o anúncio do Concílio foi a primeira oportunidade para essas correntes encontrarem um centro de condensação e manifestação, de 316 reabilitação e expressão pública a serviço oficial de toda a Igreja . Nos seus bastidores, porém, os reformistas, agiam com agilidade. Articulavam-se, faziam alianças, procuravam convencer, tendo por objetivo quebrar os paradigmas do passado, sabendo que novas idéias deveriam passar pelo crivo de velhos cardeais apegados às tradições. Dom Helder Câmara foi um dos articuladores na busca de novos Caminhos. Outro feito decisivo de D. Hélder Câmara no Concílio foi conseguir que os melhores teólogos e peritos ali presentes começassem a trabalhar em conjunto e em estreita colaboração com os bispos reunidos no "Ecumênico" e na "Igreja dos Pobres". Esse mesmo grupo de teólogos prestou inestimável serviço aos bispos do Brasil, por meio das conferências da Domus Mariae, que na soma das três últimas sessões alcançaram o respeitável número de 80, às quais devem ser acrescentadas outras dez da primeira sessão. A essa força tarefa, já esboçada entre Dom Hélder, Larrain e o Pe. Houtart de Lovaina na Bélgica que desempenhou o papel de seu secretário, foi dado o nome de "OPUS ANGELI", a Obra do Anjo. Esta trabalhou durante as sessões mas também nas inter-sessões, no sentido de oferecer textos alternativos aos esquemas provindos da etapa preparatória do Concílio, de preparar intervenções para serem lidas na aula conciliar, de assessorar os bispos nas questões mais complexas, de elaborar "modos" substitutivos para determinadas passagens dos esquemas submetidos a votação. Um dos teólogos mais importantes deste século, o Pe. Yves Congar e que colaborou estreitamente com Dom Hélder e com os grupos por ele animados, tornando-se um pouco o coordenador do "Opus Angeli", percebeu logo no primeiro encontro entre ambos, a importância de Dom Hélder e de sua liderança que aportava ao Concílio algo mais que faltava aos outros: uma "visão", no sentido do visionário, daquele que enxerga longe e com largueza de vistas. Congar anota no seu diário a 21 de outubro 317 de 1962 : “Depois chega Hélder Câmara secretário do CELAM. Algo de extraordinário: Hoje ao meio dia eles falaram de mim e conta-se que ele disse que precisava encontrar-me. Após conversarmos por um bom tempo, fomos a uma sala, onde se reúnem conosco uma dúzia jovens bispos. Interrogam-me, mesmo Dom Hélder: um homem não somente muito aberto, mas repleto de idéias, de imaginação e entusiasmo. Isto é o que falta a Roma: a visão”. Dias depois, em circular à sua "família" de colaboradores no Rio de Janeiro, Dom Hélder comentando sobre as pessoas que mais o haviam impressionado como homens de Deus em Roma, chega ao teólogo dominicano: "- O Pe. Yves Congar, cuja visão da Igreja, cujo ecumenismo, cuja caridade e cuja cultura extraordinária, brilham ainda mais pela 316 - ZIZOLA, G.. A Utopia do papa João. Tradução de Maurício Rufier. São Paulo: Loyola, 1983, p. 307-309. 317 - "Puis arrive Hélder Câmara, secretaire du CELAM. C’est extraordinaire: aujourd’hui même, à midi, ils ont parlé de moi et ont dit qu’il faudrait me faire venir. Après avoir bavardé un bon moment, nous allons dans une salle, où se réunissent avec nous une douzaine de jeunes évêques. Ils m’interrogent. Mgr. Helder même: un homme non seulement très ouvert, mais plein d’idées, d’imagination et d’enthousiasme. Il a ce qui manque à Rome: la ‘vision’ 209 humildade que ele encarna". Dom Hélder, finalmente, alcançara um agudo senso de que mais do que as palavras e documentos, o que realmente chegava às pessoas e as tocava, eram determinados gestos e símbolos e que era pelas imagens que se fixava no povo o sentido do Concílio. Estava sempre em busca destes gestos que pudessem causar impacto. Ao Papa João XXIII havia proposto uma celebração final que abandonasse o fasto barroco da Roma pontifícia e primasse pela simplicidade e profundidade dos gestos. Repete a mesma proposta ao Papa Paulo VI e exulta quando alguns destes sinais são por ele incorporados à celebração de encerramento do 318 Concílio . O concílio apresentou ao mundo um conjunto de robustos e corajosos documentos, bastante avançados para os padrões da velha igreja. O verdadeiro concílio, porém, aconteceu nos bastidores e, se pode dizer que foi muito mais que os conservadores queriam e muito menos que os progressistas desejavam. Posteriormente os documentos conciliares sofrerão interpretações dando base tanto para ações conservadoras como para postulações progressistas. Em seu nome foram feitos avanços que não eram seus e freadas que ele não pretendia. Essa ambigüidade pode parecer, enganosamente, ter vindo do concílio, mas nasceu da “calda cultural” na qual estavam imersos os filhos dessas novas gerações e desses novos tempos que muitas vezes se organizaram na igreja desconhecendo os documentos conciliares e papais e, paradoxal e chocantemente, mesmo o Evangelho, organicamente319. O resultado dos inúmeros eventos de 1960 foi o enfraquecimento da autoridade papal, a relativização dos documentos conciliares e de todas as formas de autoridade da igreja. Por mais de vinte anos, após o concílio grupos progressistas ocuparão espaços nos postos de comando e da hierarquia. O longo pontificado de João Paulo II foi marcado pelo permanente esforço de realinhamento do episcopado mundial ao controle da Cúria romana desejosa de uma igreja doutrinalmente mais conservadora frente à crescente fragmentação do ocidente eivado de materialismo, hedonismo e relativismo. Busca-se recriar um “ecossistema religioso” pré conciliar 318 - ROCHA, Zildo. Helder o Dom: uma vida que marcou os rumos da igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 37. 319 - Em pesquisa conduzida por dez anos por formadores da Inspetoria de São Paulo verifica-se que em média não chegam a 5% os jovens que entram nos seminários para os estudos sacerdotais e que leram uma única vez linearmente os Evangelhos e as cartas apostólicas. Deve-se considerar que essa proporção é muito baixa porque são jovens, em geral, oriundos de lideranças da Igreja que pretendem ser pregadores do cristianismo e nem sequer conhecem a sua fonte de inspiração primeira, os Evangelhos. 210 com retorno à valorização da autoridade, da hierarquia, do ritualismo e dos sinais externos da catolicidade. 211 3.1.2.3 - Abalos em nível de congregação Visualizar a faculdade salesiana de Lorena sem esse entorno histórico, político e religioso seria construir uma visão míope sobre sua realidade, já que essa situações assinaladas terão impacto na congregação. No fim dos anos sessenta começa o ocaso – agora o percebemos – de um modelo de Ensino Superior não oficial engendrado pela congregação no final do século XIX para religiosos e oficializado pelo decreto presidencial de Getúlio Vargas de 1952320 que legalizava, mais do que uma faculdade, um seminário. Teoricamente as incertezas e as turbulências ideológicas, sociais, políticas e religiosas da década de 1960 deveriam ser superadas após o concílio. A Igreja-instituição elaborara documentos com referenciais claros e bem definidos dos novos caminhos a serem trilhados nestes novos tempos. Há, porém, para além da instituição, pessoas que organizaram seu universo mental com bases na tradição, acreditando e apostando suas vidas nela. As crises da década impactam sobre os homens da congregação que sentem a insuficiência de antigos modelos para os desafios contemporâneos, gerando com isso uma crise de identidade de milhares de membros da igreja que não se sentem adequados e integrados aos novos modelos de mundo, ou porque presos ao passado, ou ainda por considerarem pouco oxigenadas as soluções elaboradas para o presente. Os salesianos tinham conseguido encetar com eficiência o diálogo com as modernidades dos séculos XIX e XX, apesar de representarem uma igreja do passado em nível doutrinal. Tornam-se cônscios, dolorosamente, que essa igreja que lhes dera segurança doutrinal e dogmática, ela mesma agora parece desnorteada frente à crescente aceleração da sociedade com novas formulações 320 - Decreto no. 30.552, de 14 de fevereiro de 1952 - "Concede autorização para o funcionamento dos cursos de Filosofia, Pedagogia, Geografia e História, Letras Clássicas, letras neolatinas e Letras Anglo-germânicas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras". O presidente da República, usando das atribuições que lhe confere o artigo 87, item I, da Constituição, e nos termos do artigo 23 do decreto-lei no. 421, de 11 de maio de 1938, decreta: Art. 1 - É concedida autorização para o funcionamento dos Cursos de Filosofias, Pedagogia, Geografia, e História, Letras Clássicas, Letras Neolatinas e Letras Anglo-germânicas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mantida pela Inspetoria Salesiana do Sul do Brasil e com sede em Lorena, Estado de São Paulo. (...) Rio de º º Janeiro, 14 de fevereiro de 1952, 131 da Independência e 64 da República. Getúlio Vargas. E. Simões Filho. CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Lorena. 212 religiosas, morais e doutrinárias. Some-se a isso que o espírito do Vaticano II ainda não tinha sido integrado na prática e na vida da Igreja, que fazia com que muitos preferissem se reportar à formação recebida dos concílios de Trento e Vaticano I. A solidez da velha Igreja parecia comprometida ao perder milhares de padres, religiosos e religiosas, que não mais se identificavam com ela nesta nova configuração intermediaria entre o passado e o futuro. Paulo VI gerenciará essa crise na busca de um difícil equilíbrio entre o passado o presente. João Paulo II fará uma dupla opção: no âmbito político e social avançará com o mundo moderno e no doutrinal consolidará um episcopado tradicional que se fortalecerá até o final do seu longo pontificado. Todas essas crises dos anos 60 atingirão a congregação salesiana e de modo especial, no Brasil, a sua casa de formação de Lorena. As turbulências do mundo exterior são perceptíveis nas atas, às vezes truncadas, das reuniões dos formadores que parecem influenciar seu redator que se perde nas idéias registradas: Política Nacional: É deixado. Peço o favor de serem salesianos verdadeiros. A Doutrina e os princípios devem ser defendidos. Se o governo faz algo contra os princípios, paciência. Não tenho culpa. Mas devemos respeitar as pessoas. Na prática: os clérigos são imaturos e vamos nos calar. Contentemo-nos de expor os princípios. Leviandades podem nos levar a conseqüências graves em casa e na faculdade. É contra o espírito salesiano imiscuirmos na política (...) Até padres e teólogos inteligentes com teorias que em pouco tempo fariam grandes estragos ( ...) não podemos formar nosso pessoal como há pouco tempo. Hoje se precisa uma formação mais sólida, profunda, clara e madura. Vocês devem ser mais rigorosos na admissão aos votos (... ). Assiste-se a uma influência sempre maior de uma mentalidade racionalista que prescinde o espírito de fé, humildade, obediência, votos... (... ) observa-se uma grande tendência ao que favorece o mundo: os divertimentos do mundo, jornais, revistas televisão. (...) procurar entusiasmá-los para nossa missão. Falar pouco de movimentos de apostolado de barulho... falar das atividades nossas. Coisas sociais... conferências... Onde vamos? Será o superior a designar o salesiano para essas coisas e não o indivíduo a decidir-se. Muito cuidado em pôr os clérigos num contato com essas coisas. Bastam as idéias gerais. 321 Claríssimas. O seminário, porém mantém uma política de isolar os clérigos das “coisas do mundo”. Há revistas como Fatos e Fotos, Realidade, que não devem estar na Biblioteca, à disposição dos clérigos. Para as outras é necessário formar- 321 - CENTRO UNISAL. Sedoc: Ata da Casa. De 14 de março de 1956 a 07 de setembro de 1966. Arquivo histórico. Lorena, p. 64v. 65v. 89v. 213 lhes o critério e a força de vontade para que não leiam o que não presta. Para os problemas de Rádio, cinema e TV vejam o que diz D. Ricceri no 322 Capítulo XIX. Com a greve dos 100 dias, liderada pelo estudante Ivo Malerba, presidente do DA e ligado ao DA da USP e, conseqüentemente à UNE. Os clérigos antes protegidos num seminário-redoma, serão lançados em meio aos candentes temas sobre a realidade brasileira. Por circunstâncias locais e buscando defender a congregação participam dos debates estudantis que eram vetados aos professores 323 e lêem os livros proibidos nos ambientes do seminário para poder rebater os argumentos dos alunos de esquerda que buscavam seu embasamento sobretudo nas obras de Marx. Influenciados por alguns professores e também por freqüentes leituras das obras de Karl Marx, os alunos tinham o desejo de mostrar à sociedade que a doutrina marxista não era exatamente o que os governantes e a maior parte da Igreja Católica transmitiam. Esse período foi de grandes brigas, mas na área ideológica. O comunismo era tido como um regime de pessoas que eram carrascos, que comiam criancinhas. Era a pior coisa do mundo. Nós líamos muito, conhecíamos e tínhamos com que argumentar. Queríamos provar, que o marxismo era uma coisa boa e a grande maioria queria provar o contrário", explica o ex. diretor sociocultural do DA da 324 faculdade de Lorena, Fausto Padilha. As assembléias estudantis são calorosas. Estando os salesianos-padres proibidos de participar delas pelas lideranças estudantis, serão os clérigos que, como alunos, se farão presentes. Quebra-se a rotina e a rígida disciplina do seminário com participação dos formandos nos debates políticos, uso de roupas civis, leitura de livros até então proibidos e contato com moças, já que inicialmente os líderes do DA haviam, como estratégia, organizado todas a reuniões na Ala Feminina da Faculdade para que os clérigos não participassem, já que conheciam a rigidez das normas do seminário que proibiam o contato com o sexo oposto. Quase que como anedota, o professor Sodero, cita o depoimento do ex-aluno Ivan Maia, que afirma que os alunos do DA usam de todos os meios para causar baixas entre os clérigos salesianos. 322 - Palavras do Inspetor padre.... In: CENTRO UNISAL. Sedoc: Ata das Reuniões do Conselho da Casa do Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia – 15/03/67 – 14/08/73. 323 - Leia-se “os padres”. 324 - BORREGO et. al., 2000, p. 58. 214 Outros aspectos das reuniões, como os artifícios para conseguir os importantes votos dos clérigos, são lembrados pelos ex-alunos: 'as moças tinham orientação de atacar os clérigos, usando mini saia e outros artifícios. Pois havia pressão dos padres para que os clérigos votassem contra o 325 AGIR . Era pressão contra pressão' ( Ivo Malerba 2001) 'as colegas da Feminina compareceram em massa. Só que na época estava em moda a minissaia. Resultado de Integração: diversos clérigos abandonaram a 326 batina' (Ivan Maia). Os clérigos vivem a experiência de liberdade fora dos rígidos horários do seminário, quando também cresce nestes jovens salesianos a autoconfiança pelas vitórias obtidas nos debates das reuniões estudantis. Os seminaristas, até então tutelados ideologicamente, mergulham nos temas políticos e sociais que questionam o regime militar e defendem os movimentos populares. O estudo da realidade brasileira infla em muitos a simpatia pela União Soviética e Cuba e a rejeição do imperialismo americano. Em meio à crise, os ramos masculino e feminino da congregação se polarizam, assumindo as irmãs o lado dos alunos e a missão de conscientização dos estudantes, enquanto que a maioria dos padres, o status quo. As irmãs conseguem cativar os estudantes por sua inserção e engajamento político-social. "Nossos alunos iam para esses bairros menos favorecidos, próximos da faculdade, dar aulas à noite, e, às vezes, durante o dia, para ensinar a comunidade a ler e escrever", conta irmã Iracema. Ela esclarece que o método Paulo Freire parte da necessidade do pobre, do injustiçado e do oprimido, despertando-o para uma visão mais abrangente e politizada da realidade. "As palavras brotam dessa necessidade e têm uma carga de conscientização muito grande. Então, em poucas horas, eles aprendem a ler e a abrir os olhos para tornarem-se mais ativos no meio onde vivem", diz.327 Era objetivo do DA aliar-se ao corpo docente para assumir o controle e a co-gestão da faculdade tirando-a das mãos dos salesianos. Os seminaristas defendem a faculdade graças ao seu preparo acadêmico e sólida formação, amparada, agora em leitura critica de muitos autores polêmicos para os padrões conservadores da maioria dos salesianos e que, nesta situação, não conseguem controlar como 325 - Aliança do Grupo de Integração e Renovação. Chapa vitoriosa do D.A. em 1968 sob a liderança do Ivo Malerba. 326 - TOLEDO, 2003, p.176. 327 - BORREGO et al., 2000, p. 57. 215 chegam as informações aos formandos. Estes tomam consciência da força das idéias e dos princípios que lhes garantem êxito nos embates ideológicos. A situação que vivem com acesso a informações e debates sem o controle dos padres jamais foi imaginada por seus formadores e deixará marcas profundas na mentalidade desses jovens que vivenciaram essas experiências e que, futuramente, assumirão o comando da congregação. E essa marca inicialmente pessoal, terá posteriormente significativos reflexos sobre a própria Instituição na sua posterior elaboração de uma nova forma de leitura da realidade, pois esses jovens serão os responsáveis pela presença salesiana em todo o Brasil e em boa parte dos países sul americanos. Será uma nova forma de ler a realidade, muito diferente da européia. A geração dos salesianos que sairão dessa experiência representará a ruptura com o modelo de congregação construída até então e que tivera na tradição e nos padrões conservadores da igreja o seu referencial. Os grupos ortodoxos de salesianos continuarão tentando impor seus modelos e referenciais do passado. As novas gerações, porém, como filhos de um novo tempo, realizarão uma releitura do carisma salesiano que vai paulatinamente se descolando do modelo de congregação sustentado até então. 216 3.1.3 - A Igreja após a crise dos anos 1960 Já no final do século XIX a produção industrial exigia transformações estruturais em níveis globais para atender sua demanda de mercados, de matéria prima, de combustíveis e de mão de obra. A consolidação do Estado moderno torna-se premente frente às exigências do capital industrial gerando a unificação política de várias regiões da Europa como resposta aos desafios econômicos desses novos tempos. Essa é a realidade da península itálica quando questões candentes e desestabilizadoras são postas pelo liberalismo, socialismo, capitalismo e as diversas vertentes do sindicalismo. A Igreja não tem como se mostrar indiferente a estas novas demandas sociais e ensaia, ainda que tardiamente, sua primeira intervenção na questão social através de Leão XIII na Rerum Novarum328. Em pouco mais de cem anos, porém, as transformações geopolíticas, econômicas e sociais alcançam um nível impensável até então. O Capitalismo e o Socialismo redesenham a história, a política a economia, a mentalidade, os costumes e as ideologias num processo de aceleração cultural que neste século começa a escapar do controle dos detentores do poder político, ideológico e econômico dos povos. No inicio do século os movimentos totalitários de direita e esquerda, as guerras mundiais, a guerra fria e a expropriação iniciada pelo neo-colonialismo de países pobres pelo imperialismo serão apenas aspectos visíveis deste macro processo de mudanças e de aceleração da história e da sociedade. No século XXI, incrementado pela interação de pessoas pelas redes sociais, cresce a perda do controle de informações das sociedades, tanto do poder econômico, como político. Os “criadores” do atual sistema de comunicação sabem que a comunicação e a informação são capitais valiosos no sistema político, econômico e social e os detentores do poder percebem que esse capital escapa-lhes do controle quando, em nível global, notícias, informações, protestos e manifestações circulam sem a tutela dos poderes constituídos. 328 - Leão XIII – 15 de maio de 1891 - Este documento dará inicio à Doutrina Social da Igreja e será o primeiro referencial para os católicos a respeito do confronto entre o capitalismo e o socialismo. É, porém, uma intervenção tardia, quando as principais soluções já haviam sido sinalizadas por socialistas utópicos e científicos. O modo majestático com que Leão XIII se expressa também contrasta com a forma mais moderna do Manifesto Comunista de Marx mais direto para o homem do século XIX.Cf. LEÃO XIII, Rerum Novarum, São Paulo, Loyola, 1991. 217 Esta passagem da organização do mundo é muito rápida e merece uma visão panorâmica. Inicialmente o capitalismo inclinara-se para o fisiocratismo quando Adam Smith acreditava na auto regulação do capital. O Laissez faire, laissez passer, le monde va de lui même329 conhece sua insustentabilidade na quebra da bolsa de Nova York que colocou em cheque esse sistema econômico. O New Deal teve como percepção que o capitalismo teria que ser não só controlado pelo Estado, mas fomentar o Estado de bem estar social, com a redução do lucro das empresas em favor das classes menos favorecidas, garantindo-se com isso a sobrevivência do sistema capitalista. Superada essa crise, o neoliberalismo, como resposta a ela, se voltará para a defesa do Estado minimalista cuja finalidade única será garantir a estabilidade social para a ação voraz do capitalismo. A formação de blocos econômicos é o primeiro sinal da insuficiência do antes todo poderoso Estado Moderno de se auto-sustentar. Mesmo o regime comunista implantado pela revolução bolchevista e pelo maoísmo explicitará sua falência econômica e política em 1989 com a queda do muro de Berlim330 e pelo massacre de jovens universitários na Praça da paz celestial em Pequim331. A queda do muro representava então mais que a queda de um sistema político que resistira com tenacidade aos poderosos embates contra o capitalismo, mas que antes tivera tivera sua ruína intra muros pela sua ineficiência de garantir o bem estar das populações da cortina de ferro. O comunismo chinês manteve-se como sistema político, mas vai sofrendo a erosão de seus princípios, especialmente aqueles defendidos por MaoTse-Tung na Revolução Cultural, enquanto se rende com luxúria a uma economia de mercado. O capital domesticado por banqueiros nos séculos anteriores mostra-se hoje volátil internacionalmente, escapando ao controle das poderosas corporações internacionais. Os meios de comunicação social, que sempre estiveram sob o controle do poder econômico e político, não importando se de direita ou esquerda, escapam a esse controle quando circulam idéias que interagem entre si sem o 329 - Vincent de Gournay (1712 – 1759) autor desta frase teve como discípulo Adam Smith e o influenciou na sua teoria da auto regulação da economia expressa no seu livro “A Riqueza das Nações” que foi um marco para o pensamento liberal capitalista. 330 331 - 9 de novembro de 1989 - 4 de junho de 1989 218 controle de Estados e de Corporações econômicas, seja furtando bens de consumo e entretenimento, seja acessando a informações confidenciais de Estados e divulgando-as ou promovendo levantes contra governos fragilizados pela livre circulação de insatisfações e frustrações. O Web site potencialmente é um espaço livre e democrático. Essas movimentações econômico-políticas atingem em cheio à velha igreja. Iludemse os que acreditam que ela, no século XXI, se estabilizará voltando ao modelo medieval com alguns retoques de modernidade. A sociedade pós-moderna é materialista e individualista, distanciada de religiões institucionais, podendo-se constatar que muitos templos perdem seu caráter de lugar de culto para se tornarem museus. Além disso, o controle de natalidade fragiliza muitas regiões católicas e protestantes da Europa, com a crescente invasão dos “bárbaros do sul332” que, com alta taxa de natalidade, geram desequilíbrio demográfico pondo em xeque a cultura cristã de países como a França, Inglaterra e Alemanha. Prevê-se que para 2030 mais de cinqüenta por cento da população européia, até então centro irradiador do cristianismo, professará a religião islâmica. Também na América a igreja católica vem perdendo espaço e incidência na sociedade com a diminuição de freqüência de jovens aos templos e, mesmo os que o fazem, costumam, na sua maioria, dissociar a prática religiosa institucional da vida privada, não aceitando ingerência nas suas vidas da moral cristã. Consolida-se, assim, uma sociedade pós cristã com o distanciamento das novas gerações das práticas religiosas tradicionais da Igreja. As reações de re-catolização por meio de movimentos modernos e dos meios de comunicação não conseguem repor o déficit de fiéis jovens. O conceito do Orbis Christianus sobrevive apenas no imaginário de poucas comunidades arcaicas, interioranas ou fundamentalistas, desconectadas da realidade. O poder nivelador dos meios de comunicação, ao invadir os meandros da sociedade, violenta culturas, mentalidades e cosmovisões. O modelo formatado pelos meios de comunicação social, quebra, abala e minimiza valores como família e religião que não mais são apresentados como referenciais às novas gerações, salvo 332 - esta expressão é utilizada como contra ponto aos “bárbaros do norte” que invadem cultural e belicamente o império romano. A Europa moderna não consegue reter a invasão de habitantes de regiões empobrecidas da áfrica, Ásia e América. A cultura européia está entrando em colapso pelo crescimento das populações que para aí estão migrando. 219 em alguns poucos focos de resistência cultural, todos, porém, decadentes e fadados por uma conjuntura de elementos desagregadores à extinção, seja com a morte de seus maiores, ou com o desligamento dos jovens de suas raízes ancestrais, ao absorverem novos estilos de vidas alinhados com os modelos unificadores da globalização. O modelo do catolicismo romano-medieval poderá ser recordado nas paredes dos grandes templos, nos moribundos focos de resistência cultural e em alguns segmentos conservadores e tradicionalistas que buscam o retorno à mentalidade e ao modo de vida do passado. Esse movimento tradicional que busca a restauração do passado333, apenas testifica a incapacidade desses grupos de lidarem com os desafios contemporâneos. Esses movimentos estão fadados a serem peças arqueológicas que atrairão curiosidade por sua dimensão excêntrica e exótica, seja pelas vestimentas, seja pelo comportamento, não, porém, como força coercitiva de reformulações sociais e religiosas334. A década de 60 foi o marco divisório entre a antiga congregação salesiana do século XIX e a que viverá no século XXI. No Brasil dois grandes eventos atingiram diretamente a congregação salesiana. O primeiro, em nível mundial e só aparentemente mais tranqüilo, foi o Concílio Vaticano II, com suas reformulações e, acima de tudo, com seus “intérpretes”, que viam nesse evento a oportunidade para fazerem campear soltas e selvagens diversas ideologias. Em médio prazo essas idéias, transvertidas de renovação, invadiram todos os espaços da igreja e deram sustentação por mais de vinte anos a toda e qualquer tese que se auto-rotulasse de 333 - Muitos grupos católicos da atualidade se alinham com modelos e valores do passado. Podemos citar, à guisa de exemplo: Opus Dei, Comunhão e Liberação, Arautos do Evangelho, TFP (Tradição, Família e Propriedade), Toca de Assis, RCC (Renovação Carismática Católica) e outros... 334 - O verdadeiro cristianismo não se mantém puro como o rio que passa pelas planícies da história, onde a água cristalina da fonte mistura-se com os resíduos dos vales, os dejetos das culturas, dos campos e das cidades – do tempo, enfim –, mas que só será cristalino e puro se for captado na fonte de sua origem. Este é um dilema permanente das diversas formas institucionais das igrejas cristãs: em determinados momentos da sua história ter a coragem de abandonar modelos e práticas que se cristalizaram por uma “tradição” cultural e retornar à essência de sua doutrina e mensagem contida nos escritos fundacionais. 220 renovação e espírito do concílio. O segundo evento foi a greve dos 100 dias335 na faculdade de Lorena. O impacto deste movimento ainda não foi objeto de estudos profundos336, mas representou a primeira grande fenda que irá impactar a congregação nas décadas seguintes. A congregação salesiana que emerge desses dias de crise e contestações não será mais a mesma porque, apesar de ter acontecido apenas numa cidade e numa obra, nela se formavam os líderes da congregação que nas futuras décadas irão dirigi-la no Brasil e em parte da América. Neste momento se aninham nas mentes desses futuros líderes os conceitos de participação política, inserção na sociedade e conscientização, numa mescla confusa de elementos da teologia da libertação e marxismo, com explícita ruptura ideológica com os padrões europeus da congregação que até então vivera para si, intramuros, tendo no “cortile’ o espaço civilizatório das populações autóctones. Estes eventos inseriam de modo abrupto os formandos nas pulsões e palpitações da realidade brasileira. Esses poucos dias, distantes da tutela formativa e eroupeizadora dos formadores desses jovens, permitiu-lhes debutar com a realidade do seu país rompendo com o enclausuramento denunciado pelo professor doutor José Paulino da Silva, egresso desses tempos de formação fechada: 335 - Esse evento durou menos que 100 dias, mas consagrou-se assim, provavelmente como forma de torná-lo mais emblemático para definir o evento. 336 - O Professor Francisco Sodero Toledo no seu trabalho Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior aborda um estudo histórico sobre esse eventos e nos quais esteve envolvido. Como um dos principais historiadores do Instituto Histórico Vale-paraibanos, é um intérprete qualificado deste momento histórico. Não se pode ignorar também o citado trabalho de Ana Beatriz Borrego et. al. Uma Lacuna na História: Movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida, que aborda o mesmo tema sob a ótica dos estudantes. Um terceiro trabalho de mestrado pela Universidade São Francisco de Bragança Paulista, não publicado, por Dilson Passos Júnior com o título A Emergência do Protagonismo Juvenil: a crise do Paradigma “Razão” na faculdade salesiana de Lorena nas décadas de 1960 e 1970 que discute a partir das obras de Sodero e Borrego a alteração do conceito “Razão” elaborado por João Bosco quando esse conceito é confrontado com as idéias marxistas e sofre alteração no seu entendimento pelos salesianos do Brasil e de alguns países do Sul da América. Esse primeiro ensaio, que discute as linhas ideológicas desse movimento se estabelecem como uma nova tese de releitura de um dos pilares da pedagogia salesiana e que impacta profundamente toda a congregação em nível mundial ao afirmar que no Brasil um dos pilares fundacionais da obra salesiana possui um entendimento diferenciado do resto do mundo. Essa idéia foi acolhida pelo Prof. Dr. Antônio da Silva Ferreira, membro do Conselho Histórico Salesiano de Roma, que inclusive faz uma citação desse trabalho, e pelo professor Luiz Passin, então presidente do Instituto de Estudos Vale-paraíbanos e que estivera no epicentro desses acontecimentos como aluno e militante das lutas sociais dos anos 60. 221 "Ao sair para enfrentar a vida laica até então desconhecida, eu só possuía os conhecimentos acumulados em minha experiência de quatorze anos de vida enclausurada, onde conseguira dois títulos acadêmicos, além de dois anos completos do curso superior de Teologia. Com esta bagagem comecei a procurar emprego na cidade de São Paulo. E comecei como agente previdenciário. (...) Não consegui durar sequer uma semana nesse emprego. Tudo me era totalmente estranho. Até mesmo as situações mais corriqueiras do cotidiano, como conversar numa mesa de bar, descontar um cheque, abrir uma conta bancária, falar sobre futebol, mulher, custo de vida. Esse assuntos, incógnitos para mim, eram fonte de angústias e de dolorosas aprendizagens. Para quem vivera quatorze anos em companhia de muitas pessoas e, de repente, começava a viver só, mesmo estando no meio da multidão, era uma sensação de deslocamento, como se estivesse num país estrangeiro, ou perdido em outro planeta, ou numa grande solitária.337 337 - SILVA, 2002. p. 63. 222 3.1.4 - Religião no século XXI e tensões com o pensamento contemporâneo No final do século XIX os salesianos medievos na mentalidade, paradoxalmente, conseguiram fazer um significativo passo à frente ao entabular diálogo com a modernidade urbana, valorizando o homem na sua totalidade, não apenas como homo spiritualis, mas também como homo faber e o homo ludens. A dimensão social urbana e política deste novo homem-cidadão preconizado pela revolução francesa havia sido incorporada por João Bosco no seu projeto educativo quando pretendeu, como já afirmamos, formar bons cristãos e honestos cidadãos. Se na idade média o catolicismo deu ritmo à sociedade, aos poucos, porém, esta passou a avançar mais depressa, ficando a igreja para trás, se distanciando do pensamento leigo em nível de mentalidade. Nos primeiros quatro séculos da era cristã, ela teve que assumir os passos do império romano, e o fez com eficiência, apesar de suas crises internas. Na Idade Média ela se tornou senhora da situação, ditando normas, costumes e engendrando a organização da sociedade. A partir do século XV, porém, leigos começam a tomar as rédeas da sociedade enquanto os lideres da igreja se mostravam incapazes de se desprender das estruturas do passado, o que lhes custará um alto preço por sua incapacidade de responder aos desafios de cada tempo. Quando João XXIII propôs o aggionarmento com o Vaticano II, as soluções apresentadas já eram tardias num mundo em crescente aceleração. E este tem sido historicamente seu dilema: sua incapacidade de estabelecer um eficiente diálogo com a modernidade. Um primeiro movimento de formação de uma intelectualidade leiga católica se deu no início da república, capitaneado por Dom Leme, para que essa pudesse fazer frente ao positivismo e ao liberalismo que se opunham à educação até então praticada, eminentemente clerical, livrando-a dos tentáculos da Igreja. É crescente o número de pessoas que afirmam sua crença em Deus, desligada, porém, das formas institucionais de religião. Em muitas sociedades não é motivo de constrangimento declarar-se ateu. Tais posturas naturalmente justificam a perda do controle ideológico, cultural e religioso da igreja católica, com forte impacto sobre a educação praticada por suas agências de educação, sendo, portanto uma situação desafiadora para a congregação salesiana. 223 O velho púlpito de onde o clero conduzia os corações e as mentes é coisa do passado frente aos multiformes modos de acesso às experiências religiosas extraecclesiae. As aspirações e projetos dos jovens deste novo milênio passam ao largo dos ideais e discursos das religiões, pois esses mesmos jovens estabelecem ideais de vida ligados ao consumo, ao prazer e ao individualismo. Materialismo, Hedonismo, Consumismo e Pragmatismo são os ingredientes existenciais de boa gama das novas gerações. Há grupos de resistência cultural que se posicionam contrários às estruturas massificadoras dos meios de comunicação social, existindo um leque multifacetado de resistências conscientes ou inconscientes, militantes ou omissas, assumindo formas marginais de vida e de atitudes dentro da sociedade em que vivem. No âmbito da igreja católica, ganham visibilidade movimentos que poderíamos denominar de regressistas, vendo no passado, especialmente na idade média, um mundo perdido que deve ser reconstituído. Essa visão idealizada e romântica interfere no modo de se viver e vestir 338 rompendo com o mundo atual que acreditam, degrada o ser humano. Além dos regressistas ou medievalistas há ainda os fundamentalistas que ignoram por completo a realidade em que vivem procurando um retorno fiel às origens, cultivando profundo senso de fidelidade e coerência com o momento fundacional do catolicismo. Há os rupturalistas que consideram o cristianismo insuficiente e, rompendo com a tradição cristã, buscam no oriente ou em outras civilizações modelos de vida que harmonizem suas vidas consigo mesmos, com a sociedade e com o universo, por considerarem a civilização ocidental vazia de sentido e valores, não tendo nada a oferecer que lhes dê sentido à vida. E, finalmente os alternativos que, sem abandonar a sociedade em que vivem, buscam, sobretudo nos grandes centros urbanos, formas tribais e marginais de 338 - Recentemente no Brasil ter feito bastante alarde dois grandes movimentos: Arautos do Evangelho e Toca de Assis. Os primeiros mantêm um férreo regime militar, formação moral rígida, disciplina acima de tudo e uma formação muito tradicional. Impressionam pela grandiosidade de suas cerimônias e pela harmonia de seus corais. A Toca de Assis veste-se pobremente com trapos e dedica-se aos irmãos de rua. É um retorno ao franciscanismo mais radical das origens. Outros grupos apresentam uma faceta mais exigente como a Tradição, Família e Propriedade inspirada em Plínio Salgado. A Renovação Carismática possui diferenciada vertente: em geral seus jovens vestem-se como os jovens do atual século, estão infiltrados nos meios sociais, nas universidades, em geral não se distinguindo dos demais jovens. Professam, porém a prática de um catolicismo e de uma moral tradicional, em alguns segmentos com grande ênfase para o pecado e para a ação do demônio. 224 vida339. No catolicismo esta atitude pode tomar as feições de grupos fechados que não dialogam e nem se abrem a outras experiências de vida cristã, alimentando a idéia de serem eles os verdadeiros cristãos fiéis à tradição deixada por Jesus Cristo à Igreja do passado. 339 - Tribos urbanas: Emos, góticos. 225 3.1.4.1 - Dom Bosco – Mito ou lenda O mito fundacional nascido com Dom Bosco vem sustentando gerações de salesianos que têm nessas narrações o sentido para suas vidas e para seus ideais de educadores. A avalanche de informações às quais têm acesso as novas gerações podem colocar a figura de João Bosco como mais uma informação entre as milhares que povoam a mente dos jovens. O vigor dos mitos, ritos e símbolos salesianos pode se tornar apenas uma lenda, até crível, como máxima que nasce de uma parábola, uma estória do passado na qual o fundador pode perder sua força motivadora, tendo sua imagem esmaecida por tantas outras imagens sobrepostas à sua. O movimento religioso-educacional salesiano é filho da igreja e teve por meta primeira defendê-la contra o liberalismo, o materialismo e a reforma protestante, procurando implantá-la da forma mais pura possível nas classes populares ameaçadas pela cultura dissolvente das nascentes cidades industriais. De fato, a cristandade que Pio IX procurou restaurar foi diluída pelos redemoinhos da modernidade. Hoje o cristianismo se vê fragilizado pelas ondas avassaladoras do pensamento contemporâneo que, tal qual tsunami, deixa um rastro de destruição ao demolir os ideais religiosos e morais sobre os quais se ergueu a civilização cristã do ocidente. A gloriosa cidade de Deus concebida por Agostinho iluminou, ideologicamente, não só toda Idade Média, mas continua sendo defendida sob a mesma ótica por conservadores de orientação medieval em pleno século XXI, que ainda cantam em algumas celebrações litúrgicas em latim340: Christus vincit! Christus regnat! Christus imperat! Summo pontifici et universali patri, pax, vita et salus perpetua! Reverendissimo episcopo et universo clero ac populo ei commisso, pax, vita et salus perpetua! 340 - Esse canto é utilizado especialmente na Benção do Santíssimo que é um momento de adoração à hóstia consagrada que os católicos acreditam conter a presença de Jesus Cristo. Esse canto proclama a vitória e a realeza do Cristo “pantocrátos” como rei do universo, fonte de paz pessoal e social. 226 Tempora bona veniant! Pax Christi veniat! Regnum Christi veniat341! Essa proclamação repleta de fé e embalada pelo odor do incenso e pela luz de velas nos templos desde o século XIX, cada dia se torna menos real, pois a cidade dos homens se sobrepõe à cidade de Deus, não só ideológica, mas fisicamente, ao desbaratar os territórios papais integrando-os na Nova Itália. A década de 1960 foi um divisor de águas para a civilização ocidental e, conseqüentemente, para a Igreja e para a congregação salesiana, quando a crescente indiferença ao catolicismo institucional é obstáculo para os educadores salesianos. Nas igrejas ainda se canta o Christus Vincit, que atrai mais pela beleza estética de sua melodia que pelo significado teológico. Nesta década de mudanças eram ainda vivos velhos salesianos que se orgulhavam de ter conhecido Dom Bosco, como também a segunda geração daqueles que foram educados pelos cofundadores, sendo memória e referencial das tradições dos primeiros tempos. Estes salesianos, na crise da faculdade de Lorena e 1968, defenderam com autoridade moral os princípios salesianos frente aos universitários rebeldes tendo como referencial as tradições da congregação. O que não se esperava é que nos episódios de 1968 os jovens clérigos se contaminassem com as novas idéias que os líderes estudantis levantavam como bandeira e que apaixonavam a juventude destes anos. Os jovens clérigos que só deveriam fazer frente às reivindicações revolucionárias do DA, ao lerem os livros proibidos342 e tendo convivido com jovens engajados na política universitária e do país, puderam perceber que as denúncias de autoritarismo, de censura e de arbitrariedades atiradas contra o governo eram situações semelhantes às que eles viviam na própria estrutura do seminário com uma organização hierárquica, européia e medievalmente organizada, onde os superiores encarnavam não os ideais de uma Revolução Francesa, mas o conceito medieval da autoridade advinda de Deus. 341 - Cristo vence, Cristo Reina, Cristo Impera! Ao Sumo pontífice, pai universal que tenha paz, vida e saúde para sempre. Ao nosso reverendíssimo bispo e a todo o clero e ao povo a eles confiados, que tenham paz, vida e saúde perpétua. Venham para nós os bons tempos! Venha a paz de Cristo. Venha o reino de Cristo! 342 - Manifesto Comunista e o Capital de Karl Marx. Os panfletos “revolucionários” que circulavam no meio acadêmico distribuídos pela UNE. Algumas idéias explicitadas pela Teologia da libertação. 227 Ao terminar a Greve dos cem dias, todos estavam extenuados física e emocionalmente: foram feitas discussões sobre a realidade brasileira, realizadas passeatas e o campus fora algumas vezes cercado pelas tropas militares, inclusive com tanques de guerra. Pelo AI 5343 o governo demonstrara que usaria mão de ferro contra toda insubordinação contra a ordem vigente. A prisão dos líderes estudantis no congresso da UNE em Ibiúna344 arrefecera os ânimos em diversas universidades. As energias dos estudantes agora se concentravam em concluir o ano letivo recuperando o tempo gasto em tantas assembléias. Os clérigos que voltaram à vida regular da formação no seminário, porém já não eram os mesmos. Os superiores que se tinham exasperado pela greve e pela aparente balbúrdia, agora acreditavam que a vida regular do seminário voltava aos eixos. A imposição da ordem pelo regime militar tinha eco também nos ambientes da casa de formação. Padres-professores que tinham manifestado inclinações pela esquerda e pelas lutas sociais defendendo o engajamento com as bases populares foram afastados, muitos deles para a Europa. O relacionamento com as irmãs estava inexoravelmente perdido. O diretor345 de 1968 foi frágil diante da crise sendo substituído em 1969 por novo diretor346 que viera implantar a ordem e a disciplina A posse do novo diretor ocorreu em seção solene da Congregação, cercada de formalidades, a 14 de agosto do mesmo ano, com leituras de trechos da Sagrada Escritura em que se viam claras as dimensões da verdadeira autoridade.347 Padre Anderson pegou muito pesado. A UNE quando começou tinha uma orientação de esquerda e marxista. Mas havia uma mentalidade adulta. Depois a UNE virou coisa de adolescente, (perdoem-me o pessoal da Une ). Perdeu aquela base séria de estudo e de análise da realidade. O problema é que a UNE trazia soluções que não se adaptavam a Lorena. O choque com o padre Anderson foi forte porque ele possui um conceito muito forte de autoridade e é no tempo dele que surgem 343 - 13 de dezembro de 1968 344 - 12 para 13 de outubro de 1968. 345 - Padre Júlio Comba, exímio latinista e cuja obra de Gramática Latina ainda é muito utilizada no Brasil. 346 - Padre Anderson Paes. Mostrou-se em grande empreendedor dando impulso à faculdade salesiana pela sua visão de administrador e pedagogo. 347 - TOLEDO, 2003, p.186. 228 presidentes de DA que quebraram a tradição, de gente que com radicalizações, não possuíam a postura de Malerba, Pasin, Almada, Balerini... que tinham capacidade política, que sabiam discutir, argumentar. Surgem presidentes com propostas clientelistas. Faltalhes visão de totalidade.348 Os clérigos questionadores e resistentes à obediência e pouco dóceis à formação foram dispensados da congregação. Restaram, porém, alguns sobreviventes, que guardaram e cultivaram in pectore esses ideais que apaixonaram a juventude da década. Na década de 1990 estes ex-clérigos, agora sacerdotes, começarão a ocupar posições estratégicas dentro da congregação em São Paulo e mesmo na faculdade, trazendo de volta aqueles ideais que rompiam com o estilo europeu de congregação firmando uma mentalidade mais brasileira. Esta passagem não foi tranqüila e nem sempre aceita por salesianos de origem italiana, ou brasileiros que haviam se formado na Itália. A nova geração, tendo vivido com intensidade os conflitos da década de 1960, tinha percebido que a congregação deveria interagir com a sociedade assumindo uma identidade brasileira. No final da década de 60 um grande número de salesianos abandonou a congregação criando-se um hiato entre as gerações dos mais velhos e dos mais novos com a perda de elementos da tradição salesiana, que ainda que escritos, eram de fato melhor absorvidos na vivência cotidiana de práticas educacionais monitoradas por salesianos experientes nos recreios e no convívio com os destinatários. As novas gerações, desguarnecidas de monitores e educadores salesianos em numero suficiente, não “tocaram” empiricamente com profundidade e intensidade essas práticas que são mais bem apreendidas e compreendidas a partir de experiências de campo. Serão esses jovens – agora adultos – que terão a missão de conferir ao Ensino Superior da congregação a identidade salesiana. Ainda que teoricamente conhecedores de todos os princípios e práticas educacionais da pedagogia 348 - Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena.. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. In: PASSOS JÚNIOR, Dilson. A Emergência do Protagonismo Juvenil: a Crise do Paradigma Razão na Faculdade Salesiana de Lorena nas décadas de 1960 e 1970. Bragança Paulista, Universidade São Francisco, UNISAL: SEDOC, Lorena, 2004, p. 159. 229 salesiana, não tiveram “treinadores” experientes que os introduzissem na aplicação prática desses princípios. Outros até viveram com alguns salesianos com muita experiência, só que na educação de adolescentes. Esses salesianos adultos, egressos das crises dos anos 60, serão os responsáveis por adequar para o ensino superior os princípios praticados por João Bosco com adolescentes e que eles pouco vivenciaram. Não se pode falar neste caso nem em restauração, porque, pouco foi construído, e nem tampouco de construção, pois seus promotores não conseguem definir e nem configurar uma identidade salesiana para o século XXI que lhes permita tal ação. A situação torna-se ainda mais complexa quando se considera que, na nova reestruturação regimental do Centro UNISAL, os salesianos são afastados dos cargos de direção das unidades, sendo seu governo entregue nas mãos de leigos que deveriam, em tese, garantir a identidade católica e salesiana da instituição, sendo, porém, que boa parte de seus gestores não vivenciam um compromisso existencial com a fé católica e muito menos conhecem organicamente o pensamento filosófico, religioso e educacional de João Bosco. Os ideais fundacionais, educacionais e religiosos de João Bosco deveriam ter como guardiães os salesianos que, no lastro dos ideais do fundador, deveriam zelar pela identidade e fidelidade das obras a essa prática educacional. Deve-se considerar ainda que as novas gerações de jovens salesianos, como católicos, são egressos da cultura deste tempo, trazendo na sua mentalidade as marcas da atual sociedade e não tendo referências nem do passado da igreja e nem dos valores do tempo de Dom Bosco. Parte desses jovens sequer se conecta com as realidades política, social e econômica que os envolve, não tendo o hábito de ler jornais e revistas de circulação nacional, possuindo assim uma cultura fragmentada, já que são pouco afeitos à leitura de livros e, mesmo quando lidos no curso superior, não o são para efeito de reflexão e aprofundamento sobre a realidade do seu tempo. Serão esses salesianos os futuros guardiães do mito salesiano e intérpretes do ideal de João Bosco junto da academia. Certamente receberão, ao menos em parte, a formação tradicional349, mas mesmo seus formadores já representam um 349 - A formação tradicional inclui aquela prevista pela Igreja com a Filosofia e Teologia numa linha tomista. Mas incluía também o estudo da congregação, da pratica pedagógica de Dom Bosco, o 230 “intermezzo” entre as origens e o futuro. É importante apresentar alguns traços gerais dos que ingressam nas fileiras salesianas para que possam entender as potencialidades desses jovens em assumir o projeto salesiano no ensino superior. Na escolha dos futuros religiosos salesianos, a seleção é rígida, com exigências de valores humanos, religiosos, morais e inserção na vida da igreja. São solicitadas cartas de recomendação e feitas minuciosas pesquisas sobre suas vidas. Dos candidatos que se apresentam somente a média de 10% possuem aprovação para o ingresso no propedêutico para uma posterior seleção para então ingressarem na formação salesiana, que durará 10 anos, no mínimo, e na qual o candidato será avaliado quatro vezes por ano e julgado por dois conselhos, um local de casa de formação e um Inspetorial. Dificilmente 5% concluirão todo processo de formação até se tornarem salesiano com profissão religiosa perpétua350. Neste grupo há dois tipos de jovens bem diferenciados. Um primeiro, bem mais raro, são jovens com uma formação cristã sólida e com opções definidas de vida e de fé. Possuem critérios delineados de como viver os princípios e a moral cristã, possuindo adesão pessoal ao cristianismo e a sua prática. Em geral tendem a uma espiritualidade conservadora. Alguns conseguem assimilar bem o modo de vida salesiano, outros, porém, preferem buscar outro estilo de vida religiosa em outras congregações. O segundo grupo, mais numeroso, possui um simpatia genérica pela estilo de vida salesiana com concepções religiosas fragmentadas e sem delineamentos claros. Utilizam-se de clichês católicos e salesianos que não expressam convicções profundas. Possuem – quando possuem – uma frágil formação catequética, desconhecendo em profundidade a religião351 e não raro a própria congregação. Apresentam concepções morais ecléticas e confusas com conceitos contrários ao aprendizado de conhecimentos que favoreçam a integração com a juventude: teatro, música, liderança, promoção de acampamentos, computação, comunicação, idiomas, trabalhos manuais e braçais, cursos sobre política, problemas sociais, prática de leitura, retórica e comunicação. 350 - Cf. PRADO, Antônio Ramos do. Levantamento da Pastoral Juvenil Salesiana – procedência vocacional dos salesianos novos, salesianos em formação e vocacionados. São Paulo, ISSP, 2011. 351 - Dos que entram nos seminários 95 % nunca leram linearmente uma única vez os Evangelhos. Cf. Passos, Dilson Jr. Pesquisa entre formandos da Congregação Salesiana extensiva a algumas dioceses e congregações do Vale do Paraíba entre os anos de 2000 a 2011 – Relatórios apresentados à CIF (Comissão inspetorial de Formação). São Paulo. ISSP. 2011. 231 magistério da igreja. Concebem a pastoral como uma atuação assistencialista e social e se prendem a uma religiosidade sentimental e sensitiva sem clara adesão a princípios. São plugados aos últimos lançamentos da internet, com resistência às leituras e aprofundamentos, ainda que possuam, não raro, bons resultados acadêmicos. Dificilmente chegarão à consagração religiosa definitiva e, se chegarem, não abraçarão os ideais fundacionais com a paixão que marcou a vida do fundador e dos seus primeiros discípulos. Se esse grupo for numericamente grande, poderá comprometer de forma estrutural a própria congregação na sua essência porque não serão comprometidos com o espírito do fundador. Trabalharão com habilidade o ferramental pedagógico, mas o pluralismo ambíguo, a pastoral genérica, a formação catequética frágil e a flexibilidade ambígua de discurso e de atitudes farão com que o projeto inicial do fundador venha a perder seu vigor propositivo de uma pedagogia alicerçada em princípios da Racionalidade, da Razão, da Amorevolezza e da Presença do educador entre os jovens no jeito e no modo dos moldes praticados e elaborados pelo fundador. A falta de qualidades pessoais do educador salesiano, seja por má preparação ou por inadequação pessoal a esse projeto pedagógico, fará com que a Educação salesiana, como elaborada por João Bosco, seja rebaixada à categoria de um “genérico educacional” sem identidade, o que não a torna, nem melhor e nem pior que outros projetos educativos, mas empalidece sua especificidade própria da “grife” que a define e qualifica como salesiana. O grande desafio é ter jovens bem formados, que terão como missão dar continuidade ao projeto de Dom Bosco, a partir de critérios elaborados por este. Caberá a eles a missão de configurar a instituição salesiana de ensino superior aos critérios explicitados nas narrativas do mito fundacional. Somente se estiverem bem preparados, irão contribuir para conferir ao ensino superior salesiano essa identidade, pois Dom Bosco só será assumido como proposta respeitável de um projeto educativo se for traduzido para o século XXI por intelectuais e educadores qualificados que, sem trair os ideais fundacionais, serão capazes de capturar aquilo que há de perene nas intuições do fundador e reinterpretá-las, integrando-as às realidades do nosso tempo. 232 CAPÍTULO IV - O CENTRO UNISAL NO SÉCULO XXI Se o Centro Universitário Salesiano fosse apenas uma instituição comunitária, já estaria cumprindo suas funções a contento. Ele é, porém, uma instituição confessional católica e salesiana entendido como tal por milhares de homens e mulheres que se consagram a Deus pela Profissão352 Religiosa como educadores da juventude. O termo “consagraram353” tem um sentido maior do que dedicação e empenho. Essas pessoas deixaram suas famílias, profissões354 e fazem votos religiosos vivendo sob obediência, não possuindo bem pessoais e não constituindo família. Para eles o trabalho na vida religiosa é diferente daquele da vida civil, pois envolve todo seu tempo e sua vida. João Bosco quis uma congregação integrada no sistema produtivo urbano-industrial. No seu tempo os frades eram tidos por ociosos a partir de uma visão do mundo industrial do século XIX. Bosco quis que seus seguidores tivessem por identidade o trabalho braçal, cotidiano e contínuo como o faziam os trabalhadores. Prometia aos que chegavam às suas comunidades: “Pão, trabalho e paraíso355”. No pão entendia o atendimento às necessidades básicas da sobrevivência; no paraíso, na ótica medieval, a salvação eterna; e, no trabalho, o meio mais eficaz para conseguir o pão. Essa mentalidade faz parte do estilo de vida dos salesianos que chegam a trabalhar em três turnos: manhã, tarde e noite. Nos sábados e domingos realizam atendimentos religiosos e acompanhamento dos oratórios festivos. Bosco, que prometera aos seus seguidores pão, trabalho e paraíso, concluía: para descansar 352 - O Salesianos fazem sua consagração religiosa através de um momento solene definido como profissão, quando assumem por toda a vida o compromisso de serem fiéis às constituições da congregação e de se dedicarem de tempo integral à juventude, vivendo os votos de pobreza, obediência e castidade. 353 - A expressão “se consagram” tem um sentido eminentemente religiosa de uma entrega total a Deus. 354 355 - Muitos com curso superior e com trabalho em multinacionais. - “In tutte le nostre osse avrete pane, lavoro e paradiso”. (MB XII,600). Cf. FOGLIO, Ernesto. Massime di Don Bosco. Roma, Instituto Histórico salesiano, 1999. p. 102 233 temos a eternidade. Pára-se efetivamente no domingo à noite. A semana não possui intervalo. As férias356 são de sete dias em julho e sete dias em janeiro. Não há aposentadoria para os idosos, mas apenas diminuição de funções por limitação da idade quando se dedicam a ser conselheiros, confessores, tradutores, secretários e revisores de publicações357. Essa mentalidade deve ser destacada porque nos permite perceber como o salesiano vê as suas obras. O Centro Universitário Salesiano é uma instituição jurídica com regimento próprio, mas os salesianos a entendem como algo seu, importando-lhes assim a fidelidade carismática. O fracasso ou o sucesso da instituição lhes diz respeito, pois trabalham para sua manutenção, construção dos prédios e organização. Há forte sentido de pertença daqueles que gastaram suas vidas neste projeto. Entende-se, assim, que para o salesiano religioso não basta apenas o sucesso acadêmico, mas exige-se que a instituição cumpra os objetivos de sua fundação como pensada pelo fundador. Em nível mundial as Instituições de Ensino Superior – IUS - de forma institucional e acadêmica definem a identidade salesiana que, nada mais é do que as palpitações e anseios de homens que apostaram suas vidas nesse ideal religioso de educadores. Não é de bom tom trazer para interlocuções acadêmicas palpitações subjetivas e anseios humanos para instituições que têm na razão acadêmica seu sentido de existir e de ver o mundo. Ela se constitui, porém, no dizer do professor Francisco Sodero, uma instituição de educação singular358 também neste aspecto. O século XXI vive intensa aceleração cultural atingindo a todas as instâncias da sociedade. Neste contexto as IUS reconhecem que o ideário salesiano ainda não 356 - Esse conceito de férias é mais recente. Nos períodos de férias muitos jovens salesianos se dedicavam a algumas atividades recreativas em oratórios e colônias de férias. Também participavam da construção de grandes obras ou em reformas. Há na congregação o seguinte princípio: férias é mudança de rotina e atividades. 357 - Padre Lages Magalhães foi um destacado professor do colégio São Joaquim, reconhecido cultor da língua portuguesa. Falava sete idiomas. Proferiu a primeira aula inaugural das Faculdades salesianas em 1952. Até os 96 anos corrigia os textos publicados pela diretoria da Unidade de Lorena. Não se furtava de encaminhar cartas a diversos autores apontando erros gramaticais, apresentando suas justificativas a partir do confronto de teses de gramáticos. Aos 100 anos, afinal, teve que se render ao peso da idade, produzindo apenas um pequeno opúsculo de trovas “para edificação da juventude” e, aos 102 anos, poucos meses antes de sua morte, produziu seu último livro de trovas, publicado algumas semanas antes do seu falecimento em 2011. Cf. LAGES, Antônio. 50 Torvas de um Trovador Centenário, Aparecida, Editora Santuário, 2010. 358 - TOLEDO, op. cit., p. 60 234 está configurado ao modelo universitário, não só por não ter sido planejado nas estratégias globais da congregação, mas também pelos sucessivos desafios culturais que se formam, se substituem e se contrapõem num contexto em constante mudança. Na qualidade de instituição de educação, o Centro Universitário Salesiano tem respondido com presteza às exigências do MEC e do mercado, seja no atendimento às exigências legais na estruturação dos cursos e na qualificação do pessoal docente, seja no atendimento às oscilações dos humores e demandas do mercado. Algumas de suas faculdades possuem reconhecimento de qualidade regional 359. Suas estruturas se aprimoram e seu pessoal se qualifica. Estão ultrapassados os primeiros momentos românticos e ousados da fundação. Vivem-se as dificuldades financeiras das instituições comunitárias e confessionais, não sendo isso obstáculo para sua expansão e para intercâmbios e parcerias internacionais. Anualmente o centro UNISAL disponibiliza para o mercado um número considerável de profissionais cumprindo sua missão de Instituição de Ensino Superior frente à sociedade civil. O Ensino superior salesiano é filho do ideal do camponês dos Becchi 360, que pretendeu levar a religião a adolescentes e jovens marginalizados pelo sistema industrial e oferecendo-lhes formação e oportunidades como profissionais. Seu sonho se ampliou para a cidade de Turim, para a península itálica, para a Espanha e França, e a seguir transpondo o atlântico chegou até a Argentina, Uruguai e Brasil. Aqui, em menos de uma década, surgiram três fundações: Niterói, São Paulo e Lorena, expandindo-se rapidamente nas duas primeiras décadas da república, para o interior paulista, Minas Gerais, Nordeste, Mato Grosso e Sul. Foi no lastro desse ideal, como já vimos, que as faculdades salesianas surgiram: a de Lorena para qualificar seus sacerdotes como professores de suas escolas; a de Americana para sanar uma questão econômica da obra em vias de falência e a de Campinas como capacidade de rápida adaptação ao mercado que saía do campo e 359 - Por exemplo, o curso de Direito de Lorena está qualificado pela OAB entre os oito melhores do Estado de São Paulo. 360 - Colle dos Becchi, uma localidade junto de Castelnuovo de Asti (agora chama-se Castelnuovo Dom Bosco). Cf. www.donbosco-torino.it/port/page7.html 235 caminhava para a indústria. Houve perplexidade entre os salesianos, pois muitos consideram que se estava traindo o que o fundador havia vivido e sonhado. Foi uma dúvida que pairou por anos nas mentes e corações. Num mundo em aceleração, respondendo às exigências do governo e das demandas de mercado, as faculdades se integraram, tornando-se o centro universitário salesiano e que hoje pleiteia o status de universidade. As estruturas se organizam, tornam-se complexas, burocráticas, modernizadas e “on line”. As estátuas de Dom Bosco continuam solenes no centro dos pórticos e jardins. Suas fotos, com seu olhar e seu sorriso paterno, se espalham por diversos ambientes. Novos e modernos prédios se erguem. Os nomes “Dom Bosco”, “Auxiliadora”, “salesiano” continuam a ser sinônimo da identidade dessas obras de ensino superior. Num mundo em contínua aceleração permeado por um emaranhado de informações, cabem algumas questões. Hoje, século XXI, qual a real e tangível identidade desta instituição que teve sua origem ideológica e pedagógica em João Bosco? O que representa para o UNISAL o Mito Fundacional? É conhecido? É Narrado? O Rito é celebrado? O que dizem os símbolos que rememoram o fundador e seus ideais? É algo a ser conferido a partir das propostas institucionais e da sensibilidade dos alunos. A Identidade salesiana é apenas uma marca no frontispício da instituição ou permeia a prática pedagógica e o ambiente, interferindo, como queria o fundador, existencialmente na vida dos seus destinatários? 236 4. 1 - O UNISAL no século XXI - desafios O movimento religioso e educacional oficializado por João Bosco em 1859, sob o nome de Sociedade São Francisco de Sales, teve uma grande vantagem sobre as ordens religiosas fundadas nos séculos anteriores: ainda que tendo suas raízes ideológicas e espirituais fincadas na Idade Média, teve que medir forças com o mundo industrial. Esse confronto fez com que os salesianos respondessem com rapidez aos desafios da modernidade, adequando-se ao novo modelo de sociedade que emergia desse modo de produção. A obra salesiana não se perdeu numa atitude místico-contemplativa, mas assumiu uma atuação pragmática, respondendo às necessidade da juventude, sem o que entraria em descompasso com o progresso da sociedade industrial. Na fundação das três faculdades de São Paulo alguns equívocos foram cometidos. A inicial rejeição ao ensino superior em nome de uma fidelidade ao fundador foi um deles. Essa atitude fez com que somente tardiamente, por meio das IUS, se tomasse consciência de que ao menos parte das classes populares, objetivo primeiro da congregação, estavam saindo das fábricas e oficinas para ingressarem no ensino superior. Outro equivoco foi o de querer impor para o ensino superior padrões educacionais, ora de um seminário para a formação de religiosos, ora de um oratório festivo ou de um colégio de segundo grau para adolescentes. Esta visão míope impediu que se configurasse e consolidasse um diálogo entre a pedagogia salesiana e a academia. Com o crescimento das três faculdades, agora fundidas, ficou difícil acompanhar os passos da instituição e dos cursos que cresceram em projeção geométrica enquanto que os salesianos se distanciavam do ensino superior, porque em número cada vez mais reduzido e ainda não preparados para uma imersão qualificada no espírito e na mentalidade da academia. A questão ainda se complicava porque muitos dos que se preparam adequadamente para atuar no ensino superior não conseguiram e não conseguem consolidar um trabalho sistemático, por causa das constantes transferências para atender às demandas da congregação e que muitas vezes os retira do ambiente universitário para atividades em colégios e obras sociais. Esta instabilidade do pessoal salesiano em constante processo de transferência, fragiliza e até impede a formação de uma orgânica presença da pedagogia salesiana no UNISAL. E não só se transferem salesianos 237 qualificados de docência e de administração universitária, como também se integram nestes ambientes salesianos desqualificados para essas funções. Os avanços tecnológicos dos meios de comunicação foram rapidamente assimilados pelas obras salesianas do Brasil porque, preparando jovens para o trabalho, deveriam habilitá-los para um mercado em permanente evolução que, exige mão de obra atualizada. Com apenas 150 anos de fundação, a congregação teve que se adequar com rapidez aos vários desafios da civilização industrial. Entenderam de imediato que no ambiente urbano era necessário ter o apoio da opinião pública para ajudá-los financeiramente e dar-lhes sustentação social e política frente às adversidades. De fato, em pouco mais de um século, a comunicação avançou como nunca o fizera antes: telégrafos, telefone, rádio, cinema, televisão, computadores e internet tornaram-se veiculadores de idéias. Essas invenções ocorreram muito próximas361 umas das outras e com sua rápida evolução representaram alteração radical no modo de se pensar e viver. No Brasil o rádio de massa marca presença na década de 1950, a televisão a partir de 1960, a ampliação do uso de computadores a partir da década de 1990 e da internet a partir do ano 2000. Formula-se a idéia de “aldeia global” com dois momentos: o primeiro é de uma globalização passiva, quando as noticias mundiais chegam em tempo real a todas as partes; e a atual globalização ativa, quando, através de sites sociais, é possível interagir com todas as partes do planeta. O controle das idéias e a censura fogem do crivo de governos e do poder econômico, expostos à opinião pública que derruba governos, faz denúncias e promove pessoas. Neste contexto perdem força o púlpito, a cátedra e os meios de comunicação oficiais. O velho modo de educar “ex-cathedra”, em que prevalece a autoridade institucional está encerrado para pessoas esclarecidas. A informação torna-se democrática, a partir das redes sociais; e argumentos fundamentados na autoridade não se sustentam, já que a informação e a veiculação de idéias se democratizaram e a interação entre as partes permite posicionar-se criticamente frente a questões 361 - As datas são apenas referências, pois tais invenções foram fruto do somatório de várias pesquisas que se complementaram. Optou-se por se apresentar não o ano exato, mas a década. Também é apresentado entre parênteses o período que essas invenções se instalaram no Brasil: telégrafos 1830 (1850); telefone 1870 (1870); rádio 1890 (1920); cinema; 1890 (1890) Televisão 1930 (1940); Computadores 1940 (1960). 238 políticas, sociais, religiosas, éticas, filosóficas e sobre qualquer questão lançada em nível de rede mundial. São desafios frente aos quais os educadores do século XXI devem se confrontar, procurando fazer deles não ameaça, mas oportunidade362. A inserção nessa realidade global é muito rápida com os alunos363 se plugando ao mundo virtual em nível planetário em que a voz do educador fica esmaecida frente a tantas vozes de tantos interlocutores a fazerem ruído à sua mensagem. É uma mudança radical de cenário. Assim como nas antigas cidades do Brasil, a igreja com o seu campanário erguia-se como construção principal em torno da qual a vida religiosa, social e política acontecia sinalizando a submissão ideológica à cristandade, assim também os colégios salesianos atraíam por suas majestosas construções ladeadas por seus campos, piscinas, quadras de jogos e largos pórticos fortalecendo a idéia de uma educação especial acima de outros educares, acreditando-se serem espaços de vida e formação por excelência da juventude. Não deixava de ser uma visão de uma cristandade da educação. Hoje muitos dos campanários urbanos perderam a visibilidade, seja porque “diminuídos” por imensos prédios, seja porque não mais construídos, porque a cidade dos homens não mais tem a religião como seu centro, mas mero adereço contingente na organização social. Assim também os colégios salesianos perderam seu espaço social como modelo perfeito de agência de educação e como lugar de encontro e formação, porque outros colégios surgiram e competem, quando não se sobrepõem a eles, e o lazer passou para os clubes, parques públicos e shoppings, dissociando-se da religião e dos padres. Os grandes colégios com seus vestutos e solenes pórticos são apenas um lugar na urbe moderna. Em nível ideológico, também os ideais da cristandade são apenas uma visão entre tantas visões no mundo real e virtual. Na vida dos estudantes a escola perdeu a primazia de ser um lugar de educação, tornando-se apenas uma agência prestadora de serviços que habilita ao jovem o acesso a profissões e oportunidades de crescimento material. 362 - À guisa se exemplo basta citar que na unidade de Lorena o sistema Wi-Fi para computadores portáteis foi previsto para 300 aparelhos considerando-se se estar numa região pobre em relação às outras unidade do UNISAL locadas em regiões mais ricas. Em pouco tempo, porém essa previsão foi superada sendo inscritos 2.600 computadores na rede. 363 - Deste trabalho não fazem parte do estudo as unidades localizadas em São Paulo nos bairros da Lapa, Campos Elíseos e Santa Terezinha. Optou-se por não se integrar o campus de São Paulo neste estudo porque os três Campi existentes nesta última cidade só surgiram quando da oficialização do Centro Universitário 239 Não se pode discutir a educação salesiana sem levar em conta esse mundo globalizado por meios de transporte cada vez mais eficientes e baratos que permitem a locomoção física entre regiões do mundo, mas também, pelo web site que permite a locomoção virtual entre todos os convergentes e divergentes pensares disponíveis pelas modernas tecnologias de comunicação. Essa visão global, porém, não pode ficar desfocada da realidade local. O economista Ladislau Dowbor364 vem defendendo com ênfase que a vida não se realiza no global, mas no local, tendo publicado muitas páginas nas quais procura desmitificar o conceito do global como uma realidade real. Para ele a vida acontece na circunscrição do espaço físico do local que deve ser descoberto como a maior das realidades, pois é aí que os pés do homem pisam. Efetivamente, por mais que se visualize o global, as necessidades biológicas, as paixões e emoções do homem ou mulher estudantes acontecem em âmbito local, numa cidade, numa cultura e numa mentalidade. E por mais que naveguem no mundo virtual, suas vidas estarão ligadas a uma polis, a um espaço físico e espiritual que constituem a sociedade em que vivem e na qual se constroem como pessoas. O Centro Universitário Salesiano de São Paulo possui sua história ligada a cidades e culturas onde estão plantados seus prédios e onde as palpitações da vida universitária acontecem. É a partir desses lugares físicos e sociais que se constrói e materializam os ideais educacionais salesianos no Estado de São Paulo. 364 - Ladislau Dowbor, formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas agencias das Nações Unidas, governos e municípios, bem como do SENAC. Atua como Conselheiro na Fundação Abrinq, Instituto Polis e outras instituições. Fonte: http://dowbor.org/sobreld.asp. Sobre o pensamento político econômico do autor pode-se obter informações no site http://dowbor.org/poder_local.asp. 240 4.2 - O Lugar da Educação Salesiana O Centro Universitário Salesiano de São Paulo está presente em quatro cidades: Americana, Campinas, Lorena e São Paulo. As três cidades, objeto de nosso estudo, apresentam características próprias advindas de seu passado histórico e das condições econômicas em que atualmente vivem e que lhes conferem identidade própria. Deve-se considerar que Campinas e Americana, distantes 37 quilômetros entre si, vivem um processo de conurbação que lhes dá características econômico-sociais semelhantes quando se trata de verificar a população universitária atendidas nos seus cursos. A cidade de Lorena365 nasceu como caminho da Estrada Real entre Paraty no Estado do Rio e Diamantina em Minas Gerais. Os tropeiros ultrapassavam a serra do mar e desciam pelos contrafortes da atual cidade de Cunha, indo posteriormente de barco pelo rio Paraíba até o Porto da Piedade,366 ponto de parada obrigatório para o descanso, a obtenção de víveres e pedidos de proteção à Padroeira367. Daí, passando por Passa Vinte, subiam a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú, ponto mais baixo para se adentrar às terras das Minas Gerais, seguindo posteriormente em direção das atuais cidades de Caxambu, Madre de Deus, Tiradentes, São João Del Rei, Barbacena, Congonhas e Ouro Preto, até Diamantina. A região viveu três ciclos econômicos bem definidos: inicialmente foi lugar de passagem das tropas de mulas para as Minas Gerais para além da Serra da Mantiqueira; posteriormente viveu seu apogeu no ciclo do café, primeira riqueza que alavancou seu progresso. Lorena, no apogeu do café, prometia ser o centro econômico do Vale do Paraíba, vislumbrando na riqueza dos seus prósperos fazendeiros um prenúncio de poder econômico e prestígio político 368, crença esta 365 - A cidade está distante da capital 207 km com uma população de 82.553 habitantes com um crescimento populacional de 5,85% e com uma renda per capita de R$ 12.551- IBGE - Censo 2010. 366 - Atual cidade de Lorena. 367 - Cf. TOLEDO, Francisco Sodero. Estrada Real, caminho novo da piedade. Campinas: Alínea Editora 2009, p. 93-97. 368 - Para aquilatar a riqueza e influência política do Conde Moreira Lima basta citar que a construção e manutenção dos principais prédios da cidade estavam ligados a ele: catedral, santa casa, asilo de idosos, santuário São Benedito e o colégio São Joaquim dos salesianos. Pela sua influência política obteve do Vaticano que a capela da irmandade de São Benedito fosse elevada à categoria de Basílica Menor, subordinada diretamente ao papa, a única deste santo no mundo. Ela indica o poder 241 que pareceu se materializar no Conde Moreira Lima, proprietário de mais de cinqüenta fazendas no vale do Paraíba paulista e fluminense e no sul de Minas Gerais. Com a lei áurea, porém, selou-se o destino da já combalida produção cafeeira das fazendas do Vale que tinham sua base de sustentação na mão de obra escrava e que já vinha sendo comprometida pelas leis libertárias do ventre livre e do sexagenário, que iam indicando o ocaso do modo de produção escravista. O centro econômico da região paulatinamente se deslocará em direção a São José dos Campos, que se tornará um dos principais pólos industriais do Brasil. O terceiro ciclo foi marcado pela criação do gado, sobretudo por fazendeiros mineiros que ocuparam as terras deixadas pelo ciclo da café que, se tivera sua decadência decretada pela abolição da escravidão em 1888, entrará em colapso definitivo em 1929, com a quebra da bolsa de Nova York. O ciclo atual - o quarto - é tímido para Lorena, pois ele tem suas bases nas indústrias concentradas em São José dos Campos e cidades vizinhas 369. Os três ciclos econômicos anteriores criaram comunidades pobres, carentes e dependentes, sem condições de competitividade numa economia moderna e de ponta. Monteiro Lobato assim descrevera o homem e sua sociedade: O habitante, o caboclo vale-paraibano, tornou-se responsável por todos os fracassos dos fazendeiros. “Pardo”, “ignorante”, “doente” eram adjetivos qualitativos dos seres impossíveis de progresso. Os Jecas junto com as Cidades Mortas formavam o binômio inerente ao fracasso. Seriam, também, o avesso do novo em continuidade às urbes do Vale, idilicamente falidas, em que nunca tiveram pujança nenhuma, depois de uma hipotética fase de esplendor seriam mostra de um fim que clama por soluções. Os demais personagens daquele mundo (o padre, a beata, a prostituta, o fazendeiro, o ex-escravo) compunham um complexo ideológico em que se movia a coletividade atemporânea, deslocada do espaço e da modernidade 370 desejada . Parte da população das periferias de Lorena se encontra alijada das oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho. Poucos jovens conseguem emergir dos ciclos seculares de pobreza, não só por falta de recursos para financiar uma educação de político do Conde Moreira Lima que obteve da Santa Sé, através de seus contatos, esse título para essa igreja elevada pelos escravos. 369 370 - Jacareí, Caçapava, Taubaté e Pindamonhangaba. - MEIHG José Carlos Sebe Bom. O Perfil Político de Monteiro Lobato. In: CHALITA, Gabriel. (Org). Vale do Paraíba: política e sociedade. Aparecida: Santuário, 1993, p. 103. 242 qualidade, mas também por certa miopia cultural371 que lhes impede de vislumbrar oportunidades econômicas e de autopromoção social para além da realidade local. É comum encontrar-se jovens sentados nas calçadas a matutar como velhos num misto de desânimo e indolência sonhando com a balada de sábado e um “rolê” pela praça à caça de “minas” para as quais pagarão um lanche com algum dinheiro “descolado” por meios lícitos ou ilícitos. A Feira da Barganha, que acontece todos os sábados e domingos no decadente mercado municipal, é o retrato desse mundo sem horizontes de parte da população, onde, por meio de compras ou trocas, se pode negociar objetos que em outras cidades estariam nos aterros sanitários. Se há grupos que aceitam com resignação a sobrevivência em empregos de baixa remuneração, outros buscam alguma qualificação superior que lhes permita ascender socialmente, e, finalmente um grupo não desprezível, carente de todas as oportunidades, encontra no tráfico de drogas o caminho de obtenção de recursos financeiros. Num mesmo bairro coabitam e convivem jovens ligados ao comércio de drogas e aqueles voltados para a cultura tradicional, subserviente, religiosa e acomodada recebida dos antepassados, uns e outros vocacionados à alienação. Os salesianos de Lorena, em relatório enviado à sede da congregação em Roma, procuram sintetizar sua visão sobre a incidência da congregação na sociedade local 371 - É comum no Centro Universitário funcionários mais humildes pedirem para ser mandados embora com o fim se apossar do fundo de garantia e ter em mãos a indenização para pagamento de dívidas ou adquirirem bens de consumo. O UNISAL paga salários acima do mercado local. Essas pessoas não avaliam que estão abrindo mão da estabilidade e da sua manutenção. Quando inquiridas de como obterão novo emprego, respondem que pensarão nisto depois. O imediatismo é a cultura e o endividamento sem fim um estilo de vida para as populações mais pobres. Na cultura local prevalece também uma necessidade de “ganhar” e de “pedir” resquício da dependência dos senhores de escravos, ricos fazendeiros e da própria igreja (incluindo os salesianos) que sempre cultivaram forte paternalismo com os pobres. Há uma mística de “ajudar os pobres” servindo comida e dando cestas básicas. Duas grandes festas são marcadas por almoços gratuitos fornecidos pela irmandade e pelos cavaleiros de São Benedito. Mais de mil pessoas comendo e “repetindo à vontade” faz remontar ao período patriarcal do senhor escravocrata. Nestes dias parecem emergir do passado pobres pré-urbanos, sobretudo nas folias de São Benedito, com suas batucadas e danças que remontam a praticas religiosas do catolicismo colonial. Na elevação do mastro de São Benedito frente ao Santuário sintetiza-se essa mentalidade. O majestoso santuário iluminado pelos holofotes (anexo aos prédios do UNISAL), ao cair da tarde, tem o sacerdote com seus solenes paramentos à sua porta ladeado pela coorte de São Benedito: é o poder da igreja recordado nesta “cena do passado”. De um lado as folias, todas de branco, batucando e dançando – todos muito pobres -. De outro os mantenas, antigos fazendeiros, empertigados nos seus ternos brancos sobre seus cavalos em postura solene assistem – superiores – à elevação do mastro. É uma sociedade que pode ser estamentalmente visualizada. E durante todo o ano na nave central do santuário ecoarão os pedidos de oferta para as 250 famílias dos pobres do padre Hugo e de Dona Dalva. Pobres vitalícios, quase “profissionais” de uma pobreza sem fim e de uma generosidade desmedida por décadas sempre pronta a “dar” esmolas e jamais em promover os necessitados. É uma mentalidade... uma cosmovisão... (nota do autor) 243 e, num extenso relatório, delineiam a realidade que os circunda. Reconhecem a secular incidência da presença salesiana na região, mas constatam a perda de terreno frente a novos desafios. A região é repleta de contradições. Nela habitam cientistas e miseráveis. A globalização e o consumismo como em toda parte permeiam todo o corpo social. As famílias mais simples – marcadas pelo catolicismo barroco tradicional - vivem no seu interior conflitos com seus filhos que assumem posturas contrárias aos valores morais “dos antigos”. Há uma latente vocação à violência entre os jovens dos bairros periféricos envolvidos com drogas, de um lado, enquanto outros segmentos de jovens vivem em busca do espiritual e do místico. Como salesianos não temos conseguido imprimir uma significativa identidade espiritual salesiana em nossa juventude. Somos reconhecidos e amados pelos jovens e pelo povo. Os referenciais espirituais 372 deles, porém, estão ligados com fortes laços à Renovação Carismática , 373 374 ao movimento vicentino e às Aldeias de Vida – movimento surgido nesta cidade – e que configuram as principais correntes de espiritualidade da região. Não conseguimos imprimir e constituir uma marca salesiana no sentido de formar lideranças vigorosas e que se imponham e encantem a cidade. Um sério e crescente problema é que cada vez mais nos estamos distanciando fisicamente da Escola, da Universidade e mesmo do Oratório. Os motivos podem ser diversos: de um lado, excesso de trabalho e de frentes de atuação e de outro as exigências burocráticas, as atividades inspetorias e administrativas que impedem a presença dos salesianos com a sistematicidade do passado como professores e assistentes, convivendo o dia-a-dia com o educandos e criando com eles laços de amizade e 375 convivência . Nesta cidade com menos de cem mil habitantes os contrastes sociais se tocam e coabitam. Nela residem cientistas do INPE376, pesquisadores da USP, doutores e mestres a serviço das escolas de ensino superior da região377 e diretores de multinacionais. Ao seu lado populações pobres e carentes oriundas do Vale do 372 - Grupos de oração que possuem adesão de boa parte da juventude da região. 373 - Grupo de ajuda as pobres inspirados na caridade de são Vicente de Paulo. Seu fundador foi Frederico Ozanam nascido em Milão em 23 de abril de 1813. Filho de médico e de família abastada freqüenta a Sorbonne sendo aluno brilhante dominando vários idiomas. Em 1833 com apenas 20 anos funda a conferência de São Vicente de Paulo para assistência aos pobres. Torna-se doutor em Direito e Letras e possui intensa atividade política e cultural na França. As Conferências Vicentinas fazem parte da cultura do Vale do Paraíba; além da ajuda do “quilo” para os pobres. Ela responde por santas casas, vilas vicentinas para idosos e orfanatos. Possuem uma presença assistencial muito forte, incluindo entre seus membros pessoas de todas as classes sociais. 374 - Movimento de conversão religiosa, especialmente para jovens. 375 - Relatório sobre a obra salesiana de Lorena, Descrição da realidade da cidade. Conselho da Casa, Arquivo Geral da obra salesiana, Roma, Via della Pisana, 1111. 27 de maio de 2011. 376 - Centro de medições meterológicas a 10 km em Cachoeira Paulista. 377 - A UNESP está distante de Lorena 15 km. 244 Paraíba agrário e de Minas Gerais, domesticadas para as lidas do campo, seres alienígenas que emergem dos fundões do vale, seres estranhos ao vale industrial, sem condições materiais e espirituais de crescimento econômico. O catolicismo fortalece a religiosidade tradicional, popular e subserviente com práticas que dão a impressão de se estar vivendo nos séculos passados, nos quais o homem não só se submetia a Deus, mas ao clero e a todas as formas de autoridade, parecendo não ter sido superada, em alguns casos, a descrição de Euclides da Cunha: As estradas são ermas. De longe um caminhante. Mas também decaído. Não é daqueles caboclos rígidos e mateiros que abriram neste Vale as picadas atrevidas das bandeiras. O caipira desfigurado, sem o desempenho dos titãs bronzeados que lhe formam a linguagem obscura e heróica, saúda-nos com humildade revoltante, esboçando o momo de um sorriso deplorável, deixa-nos mais apreensivos como se víssemos uma ruína maior 378 por cima daquela enorme ruinaria da terra . A falta de horizontes da população mais pobre é consolidada pela falta de recursos financeiros e perspectivas de futuro marcadas pelo conformismo e pela resignação, vendo em tudo a vontade de Deus. Jovens das periferias assumem essa cultura quando afirmam: Tendo um feijãozinho e meu arroz é o que me basta. É só encontrar um 379 emprego que me garanta isto . Não tenho preocupações com os bens materiais. O que me importa é ter meu violão e poder cantar. Tenho um emprego e pago minhas 380 prestaçõeszinhas. O que mais preciso?! Estudar para que? (abrindo mão de uma bolsa de estudo). Não quero sabe de esquentar cabeça. Meu salário (pouco mais que o mínimo) dá para “mim” 381 viver, eu e minha mulher. “Prá” que esquentar a cabeça ? Essas afirmações tacanhas e caricaturais são o retrato de uma parcela de jovens que, interiorizando a acomodação social existente, se percebem incapazes de alçar vôo para ideais maiores. Há outra parcela de jovens que lutam por ascender 378 - CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. Rio de Janeiro: Lello Brasileiro, 1967, p. 164 . 379 - Testemunho oral feito ao autor de jovem de 19 anos feito no bairro Parque das Rodovias no ano de 2010 em data incerta. 380 - Testemunho oral feito ao autor de jovem de 21 anos no bairro Parque das Rodovias no ano de 2011 no dia 22 de maio de 2011. 381 - Testemunho oral feito ao autor de jovem de 25 nos da cidade de Piquete (15 km de Lorena) em outubro de 2010. 245 socialmente, ainda que sem condições financeiras e com pouca base educacional vinda do ensino público. Finalmente há jovens e adultos que encontram no tráfico de drogas, como já foi afirmado anteriormente, o acesso para uma boa remuneração favorecida pelo fato de Lorena localizar-se no entroncamento entre os Estados de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, como ponto estratégico para a distribuição de drogas, o que faz da cidade um lugar violento382. Os alunos da faculdade são oriundos de Lorena e da região 383, do fundo do Vale384, do sul de Minas385, do Estado do Rio386 e Litoral Norte387. Os das cidades maiores vêm atraídos pelo curso de Direito388 que possui alta qualificação nos Exames da OAB. A presença física do centro universitário na região atrai naturalmente uma clientela local, sobretudo para os cursos de humanas. Os salesianos do Centro Universitário possuem uma histórica presença na região desde 1890, com a fundação do colégio São Joaquim,389 marcando a região com nítida e centenária cultura salesiana, que é reforçada por obras em Cruzeiro, Guaratinguetá, Campos do Jordão, Pindamonhangaba e São José dos Campos o que reforça uma mentalidade regional favorável à ação desses educadores. 382 - Na cultura da cidade está integrado o assassinato de jovens por dívidas de drogas ou por controle do tráfico. Mais de uma vez, num único dia, ocorreram até quatro assassinatos, já que as gangs tendem a se vingar de imediato pela morte de seus membros. 383 - Cidades de influência direta: Cruzeiro, Lavrinhas, Cachoeira Paulista, Canas, Guaratinguetá, Aparecida, Roseira, Pindamonhangaba; Cidades de influência indireta: Caçapava, Taubaté e São José dos Campos e Campos do Jordão 384 - Cidades de influência direta: Queluz, Silveiras, Arapeí, Areias, São José do Barreiro; cidade de influência indireta: Bananal. 385 - Cidades de influência direta: Itajubá, Passa-Quatro; Itanhandu, São Lourenço e Caxambu; Cidades de influência indireta: Virginia, Marmelópolis, Bahependi e Cruzília. 386 - Cidade de influência Direta: Resende. Cidades de influência indireta: Barra Mansa e Volta Redonda. 387 - Paraty e Ubatuba 388 - O Curso de Psicologia possui uma boa tradição. Atraem também pela atualidade os cursos de Administração e Informática. 389 - Deve-se destacar que boa parte dos professores e funcionários foram alunos do Colégio São Joaquim ou participaram de alguma obra salesiana em Lorena ou no Vale. Parte do alunado possui algum contato com o ambiente salesiano na região. A presença salesiana se estende pela cidade com nove oratórios festivos, o mais antigo deles o São Luís com 116 anos de fundação. 246 Esta influência regional é facilitadora na escolha do Centro UNISAL, pois a sociedade vota respeito aos salesianos, com um clima favorável à ação pedagógica da congregação e com receptividade aos ideais educacionais propostos. Isso é corroborado pela adesão de funcionários390 que, de alguma forma, eles ou seus familiares, como alunos ou oratorianos, tiveram acesso às práticas educacionais dos salesianos. Apesar de se estar caminhando para uma sociedade pós-cristã, há um contexto no qual o ideário educacional de João Bosco é acolhido, sendo Lorena um ponto de resistência do catolicismo tradicional barroco com reflexo na vida e mentalidade dos universitários que não deixam de possuir uma cultura marcada pela cosmovisão cristã, o que favorece o diálogo da educação salesiana com as novas gerações. As cidades de Campinas391 e Americana392 distantes entre si 37 km, estão numa região marcada por franco progresso industrial e tecnológico. Campinas é uma metrópole regional responsável por perto de 1% do PIB do Brasil e por cerca 15% da produção científica do país. Foi caminho para as Bandeiras que se dirigiam para o interior em busca de pedras preciosas e ouro. Em 1842 torna-se cidade com vocação para a agricultura, graças à fertilidade da terra, plantando-se 390 - A atuação dos salesianos nos mais de cem anos de presença em Lorena tem sido marcante, atingindo a todas as classes sociais da região. O Colégio São Joaquim, a Escola Agrícola, os oratórios festivos e as obras sociais atingiram uma gama expressiva de crianças, jovens e adultos de várias gerações. Há um envolvimento expressivo e diferenciado na região. As participações nas políticas públicas em favor do menor, o envolvimento nos direitos dos adolescentes, o trabalho com jovens infratores e o trabalho com a liberdade assistida são apenas facetas da presença salesiana na região. Deve-se ainda destacar o trabalho com a cultura popular, com as manifestações culturais religiosas e populares, o trabalho junto dos grupos de consciência negra, o trabalho de ecumenismo. Há qualificado contato com empresas maiores numa parceria de formação de obra especializada para indústrias, hotelaria e o comércio em geral. A promoção de cursos de extensão com intercâmbio com outras universidades salesianas do mundo, como por exemplo, o curso de enologia promovido pelo UNISAL com docentes da universidade Mendonça na Argentina, especializada não só na produção como degustação de vinhos e que realiza na região curso para atender a rede hoteleira, especialmente de Campos do Jordão. Na sociedade regional é difícil conhecer pessoas cujos caminhos da existência não tenham em algum momento cruzado com os salesianos (SDB) e as salesianas (FMA). Se este contato for ampliado para a Família salesiana que envolve todos os movimentos inspirados na pedagogia de Dom Bosco (Cooperadores salesianos - CCSS – e Exalunos), não existe parcela da sociedade do Vale que não seja atingida. 391 - Localizada a 100 km. Da capital. População 1.080.999. Crescimento de 11,51 % entre o censo de 2000 e 2011. IBGE - Censo 2010. 392 - Localizada 132 km da capital. População de 210.701 habitantes. Crescimento 15,39% entre o censo de 2000 e 2010. IBEGE – Censo de 2010. 247 inicialmente cana de açúcar e, posteriormente, o café. Também nessa região houve escravidão, tão cruel como no Vale do Paraíba, tendo, porém, por diferencial do Vale, adotar desde cedo, ao menos em parte, trabalhadores assalariados e, em conseqüência disto, não sofrendo colapso agudo em nível econômico quando da abolição da escravidão. Já antes de 1930 começa a se intensificar a chegada de migrantes, sobretudo italianos, mostrando-se a partir desta década crescente vocação para a indústria e a tecnologia. Entre 1970 e 1980, recebe o epíteto de princesa do oeste quando se acentua a migração interna de trabalhadores para atender a demanda das indústrias, sempre mais numerosas na região, sendo favorecida pelo entroncamento de diversas rodovias. A partir de 1998 amplia sua atuação não só no comércio, como na pesquisa e serviços de alta tecnologia, graças à presença de grandes universidades. Americana foi povoada por portugueses e mais tarde por americanos após a guerra da secessão. A partir de 1930 torna-se pólo industrial têxtil até 1990 quando as baixas taxas alfandegárias para produtos importados comprometem essa economia, voltando-se então para as indústrias metalúrgica, química e de alimentos. Esta região teve uma história econômico-social bem diferente do Vale do Paraíba. Os imigrantes, como estrangeiros, dependiam unicamente de suas forças espirituais e físicas para vencer e mostram-se empreendedores para garantir não só a sobrevivência, mas seu enriquecimento. Esta foi a têmpera dos imigrantes que adentraram as terras da paulista, sabendo aproveitar oportunidades e sendo sensíveis às demandas econômicas da região e do país. A passagem das práticas agrícolas para a industrialização foi rápida e ensejou a riqueza de suas cidades. Empreendedorismo e trabalho árduo foi um estilo de vida das comunidades dessas regiões. Essa mentalidade de lançar-se em busca de oportunidades ficou na cultura de parte da juventude que procura estabelecer projetos pessoais muito além da acomodação: cursar o ensino superior e se especializar para o mercado de trabalho investindo na própria carreira fazem parte dos ideais também de jovens das classes populares, que almejam superar a pobreza e ascender socialmente. A região do entorno de Campinas apresenta exigências de uma população que possui um nível cultural esclarecido e que está integrada com uma visão lúcida de 248 modernidade expressa no relatório encaminhado aos superiores maiores da congregação em Roma: Os moradores desta região fazem parte de um grupo social (...) com bom grau de instrução e diferenciado padrão econômico. Acompanham, de perto, a conjuntura econômica do mundo e do país por meio da leitura de jornais e acesso à mídia. (...) São famílias que desejam oferecer aos seus filhos um colégio que, em primeiro plano, possua um corpo docente qualificado, seguido de boa infra-estrutura e segurança. O desafio para as boas escolas da região é o de oferecer uma educação de excelência, cuja meta é formar indivíduos capazes de lidar com as intensas e rápidas mudanças tecnológicas e sociais. Pessoas íntegras, com sólida formação 393 humana (...) preparadas para o mercado de trabalho . A educação é vista como algo que agrega valor, sendo um investimento fundamental das famílias. Esta visão fomenta ações sociais que visam fazer progredir as camadas mais pobres da sociedade na conquista do trabalho especializado, saindo da informalidade, com reflexos na queda da violência urbana e geração de paz social que se reverte para a sociedade como um todo, acreditando-se que numa sociedade com melhor nível de educação, se assumem naturalmente atitudes positivas como o cuidado com o meio ambiente, a valorização das artes e dos esportes. Se de um lado cresce a consciência solidária, de outro também se intensifica o consumismo com maiores oportunidades de aquisição de bens. Há na juventude o afã de se viver intensamente o presente e de aproveitar a vida numa dimensão lúdica e hedonista que pode descambar no uso de drogas, alcoolismo e mesmo violência. E, como há um fluxo de dinheiro significativo, há o perigo da mercantilização da educação que pode estar mais preocupada em dividendos que nos valores éticos, já que seu escopo maior é o bom êxito dos alunos no mercado de trabalho. Neste contexto o ensino superior é visualizado como meio necessário para o sucesso na vida. Há na região uma religiosidade tradicional em grande parte da população mais idosa que é passada para os filhos e netos que, ainda que professem uma fé, o fazem em parte de forma desvinculada da vida, já que o crescente bem-estar e maior nível de 393 - CONSELHO DA CASA. Relatório sobre a obra salesiana de Americana: descrição da realidade da cidade. Roma: Arquivo Geral da Obra Salesiana, Roma, Via della Pisana, 1111. 27 de maio de 2011. 249 escolaridade permite se constituir uma sociedade mais pluralista e aberta à convivência pacífica das diversas expressões de religiosidade onde prevalece, sobretudo nesses jovens, muito mais a busca do sagrado do que a inserção em formas institucionais de religião. A educação salesiana nesta região deve se confrontar com esses desafios educacionais, diferentes dos existentes em Lorena no Vale do Paraíba. Esta é a juventude que está no Centro Universitário Salesiano de São Paulo com suas características regionais e que trazem também em si impressos de forma contundente as marcas da globalização e dos meios de comunicação, especialmente, das redes sociais. Ela é objeto da ação educativa salesiana a partir dos critérios elaborados pelo seu fundador e transmitidos aos seus discípulos. Esses critérios são a chave da educação salesiana, sendo possível contestá-los ou questioná-los, mas sua substituição por outros desconfigurará o projeto do fundador tornando-se um outro projeto educacional, até melhor, mas outro. A tensão que vive a congregação salesiana entre a fidelidade aos critérios do fundador e, ao mesmo tempo, sua atualização é verbalizada no mote, com Dom Bosco e com os tempos. João Bosco, quando realizou seu projeto educacional, procurou intervir e modificar a realidade do século XIX, sendo esse o mesmo desafio da educação e da pedagogia salesiana em cada novo tempo. Essa educação possui balizamentos e um fim claro, especifico e inequívoco que serve de critério fundamental para a avaliação se esse projeto educacional-pedagógico é eficaz e de sucesso dentro dos parâmetros definidos pelo fundador. A congregação salesiana vem, ao longo de sua história, procurando responder aos desafios dos tempos. Os últimos Capítulos Gerais (CG) realizados em Roma procuraram responder aos prementes desafios de cada momento na instabilidade dos últimos tempos. O CG 22 (1984), também chamado de CG especial, procurou definir a identidade da Congregação após o Concílio Vaticano II. Dele nasceu a Constituição Renovada, que perde o seu caráter estritamente normativo para assumir um caráter eminentemente coloquial estabelecendo um rosto atualizado dos salesianos do final da década de 1960. O CG 23 (1990) manifesta a preocupação da 250 congregação em responder aos jovens dos novos tempos sem abrir mão de sua identidade eclesial: A opção decidida pelos jovens em sua situação atual e nos diversos contextos, com atenção especial para os mais necessitados; uma autêntica educação à fé, a explicita ação evangelizadora que não se detenha nos umbrais do Evangelho; uma educação aberta ao empenho social, à formação da consciência, ao crescimento no amor; uma educação à fé que 394 leve a opções vocacionais, à proposta da espiritualidade juvenil . Este Capítulo de forma inequívoca define os objetivos da Congregação transcendendo em muito a uma visão meramente social ou assistencialista. O objetivo da congregação é a Evangelização através de todas as suas presenças. O CG 24 (1996) volta-se para a Vocação dos leigos entendendo que a atividade pedagógica dos salesianos deve ser uma ação não apenas daqueles que se consagraram pela profissão religiosa395, mas, é uma forma de ação daqueles que se encontram inseridos nas obras salesianas e que devem ser não só funcionários, mas agentes dos valores elaborados pelo fundador. O CG 25 (2002) desenvolve uma crise do início do século XXI: o tamanho e abrangência das obras, o trabalho em três turnos e a imensa quantidade de atendidos acaba por desfocar os salesianos da vida comunitária, levando-os a uma vivência religiosa fragilizada. Este capítulo entende que a reconquista da vida comunitária396 e do planejar e agir em equipe é uma das chaves fundamentas da congregação e da qual não se pode abrir mão. Finalmente, o CG 26 (2008) define como prioridade em nível mundial o retorno a Dom Bosco, a urgência de Evangelizar por meio de projetos de vida e o caminho para novas fronteiras, apesar das obras terem se tornado grandes, complexas, ainda que modernas e atualizadas. Os bons resultados educacionais e sociais não representam, na ótica da congregação, um objetivo único a ser alcançado. A identidade cristã emerge como fim que define os caminhos a serem trilhados. 394 - VITALI, Natale. Visão de Conjunto, Inspetoria salesiana Nossa Senhora Auxiliadora. São Paulo, 2011a. Roma: Arquivos da congregação, Via della Pisana 1111, p. 4. 395 - A Profissão religiosa é um ato solene no qual o jovem se torna sócio (equivalente a religioso) na congregação salesiana. Essa profissão, popularmente conhecida como votos, pode ser temporária ou perpétua. 396 - Como religiosos a vida em comum com orações, refeições e trabalhos é fundamental e muito importante 251 A presença salesiana na Inspetoria de São Paulo, em consonância com a congregação em nível mundial, deve estar atenta aos princípios que são fundamentais para se garantir a fidelidade ao fundador e que devem estar presentes nos colégios, obras sociais e Ensino Superior não representando, porém um regresso ao passado e nem uma postura fundamentalista. A sociedade moderna é pluralista, sendo o ensino superior salesiano aberto ao diálogo com essa cultura a partir do lugar cristão e salesiano. Nas últimas décadas a Inspetoria de São Paulo ampliou significativamente suas estruturas e serviços, crescimento este que não foi acompanhado de forma proporcional de salesianos para atendê-los, o que se traduz na diminuição da incidência desses educadores sobre seus destinatários. Tal situação de distanciamento dos salesianos, cada vez em menor número em obras cada vez maiores, tem ensejado o crescente desconhecimento dos princípios e valores da salesianidade. Os salesianos acabam por concentrar suas energias na gestão das obras e manutenção de suas estruturas. O jovem destinatário vem perdendo o contato pessoal, amistoso e fraterno com os educadores salesianos e este problema se tornou maior a partir da fusão das três unidades, quando os salesianos passaram a contratar pessoal especializado para a gestão pedagógica e administrativa do ensino superior, sendo a qualificação profissional o critério primeiro e necessário das contratações e não, necessariamente, a adesão aos valores do fundador. Alguns profissionais até fazem menção em suas falas a uma ou outra expressão do fundador, mais como chavões e menos como crença. Os salesianos passaram a ter dificuldade em transmitir a pedagogia e os princípios salesianos, pois muitos desses profissionais – sobretudo no corpo docente – não dedicam seu tempo integral à instituição, tendo que se desdobrar em várias frentes como professores e em outras profissões, sendo o UNISAL apenas mais uma frente de trabalho. Isso se reflete sobre a instituição quando os ideais educacionais salesianos não são conhecidos e portanto não abraçados. Os salesianos, distanciados dos pátios, ausentes das salas de aula e de professores, gerenciando recursos, estruturas e crises financeiras tornaram-se um 252 nome sem rosto. A pastoral, mencionada como carro chefe da instituição, mostra-se apagada, sem verbas significativas, com pessoal nem sempre especializado. Analisando a Home Page do UNISAL nos ano de 2010 e início de 2011,397 verificase bem essa situação, quando um eficiente portal acadêmico, se contrapõe aos conteúdos da pastoral desatualizados em alguns setores há mais de quatro anos. Pode-se verificar também que os programas de cursos e as suas ementas nem sempre traduzem objetivos ligados aos princípios e valores da salesianidade, e em alguns casos, ignoram mesmo a formação humanística, base de qualquer educação universitária, pressuposto de qualquer educação universitária. Padre Natale Vitali, na visita extraordinária à Inspetoria de São Paulo, realizada em 2011 em nome do Conselho mundial, sinaliza pontos fundamentais398 que devem ser assumidos pela congregação nos próximos sexênios e que são, simplificando, os ideais fundacionais que foram expressos e vivenciados nos primórdios da congregação, sendo necessário equacionalizar as práticas educacionais atuais com o projeto educacional do fundador. São princípios pétreos sem os quais o projeto educativo salesiano se desconfigura, deixando de ser salesiano. São três os referenciais para que uma educação possa ser definida como salesiana, segundo os critérios de João Bosco: O primeiro elemento é a presença. João Bosco acreditou que educação só se realiza pela presença efetiva e afetiva. Na Carta de Roma399 critica veementemente salesianos que estavam nos pórticos, “olhando” os jovens. Observei que bem poucos padres e clérigos se misturavam com os jovens e bem menos ainda eram os que tomavam parte nos seus divertimentos. Os superiores já não eram mais a alma do recreio. A maior parte deles passeava conversando entre si, sem ligar ao que faziam os alunos; outros olhavam o recreio sem se preocuparem absolutamente com os jovens; outros vigiavam, mas tão de longe que não poderiam perceber se os jovens cometiam alguma falta; um ou outro avisava, mas em atitude ameaçadora e bem de raro. Ainda havia um ou outro salesiano que gostaria de intrometer- 397 398 399 - Acesso à Home Page no dia 13 de Junho de 2011 às 11h30min. - VITALI, op. cit., p. 5. - Este escrito conhecido como “Carta de Roma” traça o ideal da presença salesiana configurando o que Bosco entendia por presença que se faz acima de tudo pelo envolvimento do educador com o educando, diferente de simples e distante vigilância. 253 se no meio dos jovens; vi, porém, que estes procuravam propositalmente 400 afastar-se dos superiores e professores . Os salesianos deveriam estar entre e com os jovens. Este conceito não possui interpretações: presença não se delega, sendo a primeira e essencial ferramenta dessa pedagogia. O salesiano, mesmo se gestor, deve ser presença, abrindo mão de tudo para estar nos recreios, nas festas e nas salas de aula. Na arquitetura salesiana, o escritório do diretor deve ser aberto para o pórtico, com fácil acesso para os educandos; e, na tradição salesiana, o diretor não deve estar no escritório nos horários de recreio, devendo receber os alunos à porta do colégio e despedir-se deles na sua saída, conhecendo-os pelo nome e construindo amizade com eles. Deve estar pronto para uma parolina nello orechio401. Familiaridade com os jovens especialmente no recreio. Sem familiaridade não se demonstra afeto e sem essa demonstração não pode haver confiança. Quem quer ser amado deve demonstrar que ama. (...) Quantas conversões não provocaram algumas palavras suas ditas ocasionalmente aos ouvidos de um jovem enquanto brincava! Quem sabe que é amado ama. E quem é amado alcança tudo, especialmente dos jovens. A confiança 402 estabelece uma corrente elétrica entre jovens e superiores . A congregação tem sinalizado para que a gestão administrativa e financeira seja confiada a leigos para que os educadores salesianos403 possam voltar a ser presença nos pátios, pois caso contrário se criaria, paradoxalmente, a situação do diretor não comprometido com a vivência dos princípios salesianos. O segundo elemento é a Educação e Evangelização. Educar é imprimir princípios que dão sustentação a valores, resultado de convicções. A evangelização atual, diferente dos conceitos pré-conciliares, que a entendia como catequese, não pretende necessariamente a conversão. É o testemunho de vida cristã que enseja o diálogo com a cultura quando os ensinamentos dos Evangelhos são “o lugar” a partir do qual se estabelece diálogo com o mundo contemporâneo. Se alunos desejarem 400 - BOSCO, João. Carta de Roma. IN: SOCIEDADE DE SÃO FRANCISCO DE SALES (SALESIANOS DE DOM BOSCO). Constituições e Regulamentos. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1985, p. 242 401 - João Bosco acredita que palavras dirigidas aleatoriamente aos alunos no pátio (uma palavrinha no ouvido) mostra afeto e estima. Poder ser um pequeno elogio.A valorização do aluno granjeia afeto. 402 - Ibidem, p. 243-244. 403 - Entendidos aqui não só os religiosos, mas agentes de pastoral, professores etc... 254 um atendimento mais numa linha da fé e da confessionalidade, o salesiano deve estar pronto a atendê-lo, respondendo aos seus anseios religiosos. O terceiro e ultimo elemento é a Missão. A educação e a pedagogia salesiana são propositivas pretendendo a mudança da sociedade à luz de valores humanistas e evangélicos. Estas três referências representam o retorno ao mito fundacional naquilo que tem de essencial: ser uma proposta de diálogo com a modernidade a partir do lugar cristão, católico e salesiano. Se o ensino superior salesiano trilhasse outros caminhos diferentes destes, isto representaria a desconfiguração dos ideais fundacionais de Bosco que, alterados, se tornariam “outra coisa”. Trata-se não de uma fidelidade ao passado, mas fidelidade aos critérios do fundador que garantam a autenticidade à “grife” salesiana. 255 4.3 - O pensamento de Dom Bosco na prática docente e pastoral do Centro UNISAL As obras salesianas nasceram no século XIX de uma congregação religiosa que tinha por escopo inequívoco a santificação404 de seus membros e de seus destinatários. Era uma das frentes da Igreja Católica para levar a juventude e as classes populares à prática da religião pelo conhecimento do catecismo, pela freqüência aos sacramentos405 e vivência do cristianismo. Oficinas, colégios, internatos e escolas profissionais eram apenas meios para se atingir esse fim: a salvação das almas, explicitado no escudo da congregação: Da Mihi animas, coetera tolle406. O catolicismo, a partir do Vaticano II, seguindo as orientações dos documentos Unitatis Redintegratio407 e o Nostra Aetate408, reconhece que as igrejas da Reforma são co-herdeiras da mensagem do Evangelho e que nas religiões não-cristãs existem lampejos de verdade, existindo nelas expressões de anseios profundos do homem na busca do transcendente. O ecumenismo impacta a congregação salesiana sinalizando práticas educacionais mais tolerantes. Entende-se que as escolas confessionais não têm função de promover a catequese paroquial, mas criar diálogo com outras confissões religiosas. Com isso cresce o destaque da dimensão social em detrimento da missão evangelizadora pretendida pelo fundador. Abre-se espaço para a presença de educadores não-católicos de diversas denominações cristãs, sobretudo porque nas obras sociais mais de 60% dos atendidos são 404 - Este termo é de cunho religioso, significando a aproximação da perfeição na vida religiosa por meio da intimidade com Deus e a prática de ações de acordo com os mandamentos da Lei de Deus expressos na Bíblia. 405 - A Igreja católica estabelece sete sacramentos que são entendidos como sinais sensíveis da doação de Deus aos homens. João Bosco, numa sociedade onde todos eram batizados, dava especial destaque aos sacramentos da Confissão e Eucaristia. O primeiro permitia uma orientação pessoal do jovem no âmbito do seu íntimo e o segundo o fazia participar semanalmente da missa dominical. 406 - Dai-me almas e fique com o resto. 407 - “Restauração da Unidade”, que trata o diálogo da igreja católica com as igrejas cristãs. Cf. Compêndio do Vaticano II, Constituições, Decretos, Declarações. Petrópolis, Vozes, 1968.p. 307332. 408 - “Nosso Tempo” que trata do diálogo inter-religioso cristãs.Cf. Ibidem. p.617 – 625. da igreja católica com as religiões não 256 oriundos das regiões mais pobres das cidades, vários vindos de denominações cristãs não católicas, levando com isso, naturalmente, à diminuição de práticas religiosas católicas que, em muitos casos, se tornaram meras formalidades, tanto da parte dos educadores como dos educandos. Essa situação se projeta nas escolas e no Ensino Superior. A imagem do século XIX de João Bosco como “cavaleiro medieval adentrando a cidade dos homens para implantar a Cidade de Deus409” perde seu brilho. Os salesianos, em menor número e em obras cada vez maiores e mais exigentes, se distanciam dos jovens transferindo para leigos muitos encargos que até então lhes cabiam. Na práxis cotidiana, diferente dos discursos oficiais, diminuem as exigências para que educadores e funcionários sejam católicos e pratiquem o Sistema Preventivo, assim como diminuem sobre os funcionários as exigências de coerência com uma vida moral e cristã que, no passado, seriam critérios de dispensa. Se João Bosco entendera no seu sistema educativo que nas suas casas todos eram educadores, desde os sacerdotes e professores até o porteiro, agora esse critério é bastante minimizado, já que a capacidade profissional é o que mais conta nas contratações, ficando em segundo plano – e até em último - a adesão ao projeto educacional salesiano. Cada vez mais há funcionários e educadores que não conhecem e/ou não comungam dos ideais educacionais da Instituição, vendo nela apenas uma agência de emprego. Deve-se ainda considerar que, a partir da década de 1970, vão se consolidando algumas posturas norteadoras da sociedade civil e dos seus poderes constituídos, incidindo na ação pedagógica das instituições católicas que devem estar abertas ao pluralismo cultural, não podendo mais a docência ser instrumentalizada para a catequese, entendendo-se que o pensamento cristão é apenas uma instância de diálogo com os vários saberes e cosmovisões. Para alguns teóricos, para que esse diálogo seja fecundo, é premente que as instituições confessionais tenham sua identidade bem definida, pois é somente a partir disso é que será possível um diálogo fecundo “tetê-à-tête” de diferentes visões. Assim, quando uma instituição de ensino superior perde sua identidade 409 - cf. p. 201 (do autor) 257 fundacional ou a tem esmaecida, ela perde, ipso facto, as condições de estabelecer um verdadeiro diálogo, passando a ser suas intervenções na academia inócuas por não serem portadoras dos ideais que pretende representar. Neste caso o Mito, o Rito e o Símbolo tornam-se simulacros porque não mais encarnam os ideais do fundador e nem tampouco mantém vivos os critérios que deram origem e sustentação a essa obra. Tem-se como premissa e ponto de partida de que o Centro Universitário Salesiano possui como inspiração o sistema educativo e a pedagogia de Dom Bosco entendendo-se a um tempo guardião e promotor deste patrimônio educacional. É a partir destes pressupostos que se torna necessária uma avaliação da identidade educacional do UNISAL para se averiguar se os critérios elaborados por João Bosco estão presentes nesta instituição, apesar dos obstáculos culturais que naturalmente a sociedade moderna opõe às instituições de matriz religiosa num mundo em crescente dessacralização. Deve-se levar em conta que a educação proposta por Dom Bosco estava marcada por uma visão cristã e humanística, buscando formar o homem em sua totalidade, sendo agentes desta ação pedagógica os salesianos e todos educadores que assumissem esta proposta educacional. Para que isso seja realidade, porém é preciso que no âmbito da academia as proposições educacionais da pedagogia salesiana sejam assumidas de forma sistêmica e orgânica. Mas, para que isso aconteça, é necessário que os educadores as conheçam para fazê-las conhecidas dos educandos. O conhecimento é, pois, o pré-requisito para a adesão e até mesmo para a rejeição desses ideais. É, pois preciso verificar o tratamento que é dado à questão da salesianidade no centro UNISAL, para que se possa aquilatar se esse pensamento educacional é, inicialmente conhecido, a seguir proposto e posteriormente aplicado. Esta verificação supõe um trânsito pela instituição verificando se há elementos de salesianidade no seu ambiente físico e espiritual. Algumas questões se colocam: Os ambientes físicos, a arquitetura e layout sinalizam valores salesianos? Existe a presença física de salesianos acolhendo alunos e estando disponíveis para atendêlos? A proposta institucional e dos cursos, através de seus programas e ementas, corresponde ao projeto do fundador? Existem projetos de formação de professores e funcionários em salesianidade? A pastoral possui uma atuação sistêmica ou 258 funciona apenas para eventos? São realizadas publicações que sejam referenciais dos valores salesianos da Instituição? Os cursos de pedagogia e mestrado dão lugar de destaque à pedagogia salesiana? São questões que procuram aquilatar a intensidade e qualidade da proposta salesiana numa instituição de ensino superior e verificar se ela possui incidência na academia. É preciso salientar que pelo termo “salesianidade” entende-se o conjunto orgânico e sistêmico de princípios e práticas que nasceram e estão de acordo nos seus critérios fundamentais com o sistema preventivo de Dom Bosco, com seus três elementos fundamentais: razão, religião e amorevolezza e que se “encarnam” e materializam na presença física e espiritual dos educadores. 259 4.3.1 - Salesianidade e corpo docente Para conferir o grau e a qualidade da salesianidade ensinada e praticada numa obra nascida de João Bosco, devem-se considerar alguns elementos: o primeiro é se esses princípios são compartilhados com professores e educadores que devem, inicialmente, conhecer a vida do fundador, suas ações e seus conceitos educacionais. Num segundo momento, devem reconhecer valores acreditando nesta maneira de educar para, só então, se sentirem envolvidos como protagonistas nesta ação pedagógica. Em terceiro lugar devem encarnar esses valores com seu estilo de vida transmitindo-os aos seus alunos que, além de conhecê-lo, possam assumi-lo na sua vida privada, social e profissional. O conhecimento do Sistema Preventivo é o primeiro passo para a educação salesiana, insuficiente, porém. Esses princípios educacionais não são ação erudita de conhecimento ou uma teoria educacional plausível, como o foi, por exemplo, a teoria de Jean Jacques Rousseau no seu livro Emílio. Aqui está o “complicador” da educação salesiana como elaborada por João Bosco. Esse método de educação só se materializa na medida em que se “encarna” em sentido literal na pessoa do educador. Mais que “vagos princípios”, é um estilo de vida. Não se pode abrir mão deste diferencial, sem o que, a educação salesiana se desconfigura transformandose em “outra coisa”. Deve-se sublinhar que o educador salesiano não deve ser entendido como o religioso pertencente à congregação salesiana. Educador salesiano, no pensamento do fundador, é todo aquele410 que assume na própria vida o estilo de educação de Dom Bosco, que foi, antes, um estilo de vida vivido primeiro e só teorizado posteriormente. Aliás, deve-se dar especial destaque ao fato de que Bosco não é um teórico, sendo a meta primeira da educação por ele praticada a presença qualificada, significativa e significante do educador tendo por objetivo o se fazer amar411. Seu objetivo é construir o homem em sua totalidade por meio de 410 - Daí tem sentido o termo “família salesiana” (FS) que congrega milhares de religiosos e leigos que possuem como características serem reconhecidos como seguidores dos princípios educacionais de Dom Bosco. 411 - Esta postura causava furor nos teóricos católicos do século XIX. A finalidade para eles era despertar o amor a Deus, à virtude e ao bem. Fazer do educador objeto da ação educativa representava algo inominável e contrário aos valores cristãos assumindo para eles ares de orgulho e vaidade. No conceito de Bosco, porém, na medida em que se estabelecessem laços afetivos entre educador e educando, entendido aquele como pai ou irmão mais velho, isso lhe permitiria indicar os caminhos de Deus, da virtude e do bem e sua proposição ser aceita porque feita por alguém que 260 laços afetivos sem, porém, assumir dimensões sensíveis e possessivas. É um afeto que nasce do respeito pelo adolescente como protagonista de sua história e da história de sua sociedade. É promovê-lo acreditando e apostando que é capaz do bem. O Educador procura amar tudo que o jovem ama para que ele possa amar o que ele ama: Deus, teoriza João Bosco. Daí a frase: a Educação é obra do coração. Entende-se, então, porque na Carta de Roma o fundador critica os salesianos que estavam no pátio, mas não no meio dos jovens. João Bosco professa profunda crença na bondade. Com clareza define os dois métodos educativos que se opõem: o repressivo e o preventivo. São dois os sistemas até hoje usados na educação da juventude: o Preventivo e o Repressivo. O Sistema Repressivo consiste em fazer que os súbditos conheçam a lei, e depois vigiar para saber os seus transgressores e infligir-lhes, quando necessário, o merecido castigo. Nesse sistema, as palavras e o semblante do superior devem constantemente ser severos e até ameaçadores, e ele próprio deve evitar toda a familiaridade com os dependentes. (...) Diferente e, eu diria oposto é o Sistema Preventivo. Consiste em tornar conhecidas as prescrições e as regras de uma instituição, e depois vigiar de modo que os alunos estejam sempre sob os olhares atentos do diretor ou dos assistentes. Estes como pais carinhosos, falem, sirvam de guia em todas as circunstâncias, dêem conselhos e corrijam com bondade. Consiste, pois, em colocar os alunos na impossibilidade de cometerem faltas. (...) O Sistema Repressivo pode impedir uma desordem, mas dificilmente melhorará os culpados. Diz a experiência que os jovens não esquecem os castigos recebidos, e geralmente conservam ressentimento acompanhado do desejo de sacudir o jugo e até de tirar vingança. Podem, às vezes, parecer indiferentes; mas quem lhes segue os passos sabe quão terríveis são as reminiscências da juventude. Esquecem facilmente os castigos que recebem dos pais; muito dificilmente, porém, os dos educadores. Há casos de alguns que na velhice se vingaram com brutalidade de castigos justos que receberam nos anos de sua educação. O Sistema Preventivo, pelo contrário, granjeia a amizade do menino, que vê no assistente um benfeitor que o adverte, quer fazê-lo bom, livrá-lo de dissabores, castigos e desonra. O Sistema Preventivo predispõe e persuade de tal maneira o aluno, que o educador poderá em qualquer lance falar-lhe com a linguagem do coração, quer no tempo da educação, quer ao depois. Conquistado o ânimo do discípulo, poderá o educador exercer sobre ele grande influência, avisá-lo, aconselhá-lo, e também corrigi-lo, mesmo quando já colocado em qualquer trabalho ou empregos públicos, ou no comércio. Por essas e muitas outras razões, parece que o 412 Sistema Preventivo deve preferir-se ao Repressivo . Ainda que esses textos tenham sido escritos para a educação de adolescentes, reproduzem, porém, na essência a educação e a pedagogia salesiana tal como fizera o educando sentir-se amado e que, em contrapartida, amava. Afeto e amorevolezza são ingredientes fundamentais de sua prática pedagógica. 412 - BOSCO, João. O sistema Preventivo na Educação dos Jovens. In: SOCIEDADE DE SÃO FRANCISCO DE SALES (SALESIANOS DE DOM BOSCO). Constituições e Regulamentos. São Paulo: Salesiana, 2003, p. 231-232 261 elaborada por Bosco e assumida por seus discípulos. E, ainda que deva se adequar aos tempos e às novas frentes de ação, como o ensino superior, tais valores, “presença, razão, religião e amorevolezza” são princípios pétreos que configuram a educação salesiana; e, retirá-los, significa desfigurar e desconfigurar essa educação salesiana. Este é o desafio do Centro UNISAL: adequar ao ensino superior esses princípios pétreos da educação salesiana, sem traí-los, porém. Para verificar o quesito salesianidade optou-se por uma análise a partir da Home Page,413 como vitrine da Instituição e por ser um espaço bastante atualizado e utilizado como ferramenta da ação pedagógica e administrativa da instituição. Serão objeto de breve análise a apresentação do reitor, a identidade corporativa, a apresentação da pedagogia salesiana, a pastoral universitária, a ementa de alguns cursos414 nos quais será dado destaque para os objetivos, o perfil do egresso e o conteúdo de algumas matérias. Isso permitirá que se “tome as pulsações” dos valores salesianos em várias dimensões da instituição neste início do século XXI. Deve-se considerar que o trabalho educacional dos salesianos foi realizado desde o século XIX até a década de 60 em contato pessoal com os jovens. Será a partir dos anos 70, como já se assinalou, que começará a crescer o distanciamento em relação aos destinatários. Alguns defenderam que, frente ao crescimento das obras, aos salesianos não seria mais possível conviver diretamente com os jovens, cabendo-lhes então preparar educadores que fossem multiplicadores desta pedagogia. Este conceito de terceirização das práticas pedagógicas não é aceito com unanimidade. Este distanciamento, porém, cresceu, com muitos salesianos assumindo funções de gestores de estruturas físicas e se tornando meros teóricos da educação salesiana. João Bosco já percebera essa tendência e advertira aos salesianos que jamais deveriam se ausentar do meio dos jovens, preocupação esta 413 414 - O material exposto na Home Page está também na sede UNISAL em Americana. - Adiante esses cursos serão nomeados por meio de tabelas e comentados, assim como serão feitas referências a algumas matérias que também serão objeto de análise. 262 que será expressa num sonho415 cognominado Carta de Roma na qual o fundador dialogava com um jovem recordando-se dos tempos de outrora: (...) Então meu amigo continuou: — Nos velhos tempos do Oratório o senhor não estava sempre no meio dos jovens, especialmente na hora do recreio? Lembra aqueles belos anos? Era um santo alvoroço, um tempo que lembramos sempre com saudade, porque o afeto é que nos servia de regra, e nós não tínhamos segredos para o senhor. — Certamente. Tudo então era alegria para mim. Os jovens corriam ao meu encontro, para falar-me; ansiavam por ouvir meus conselhos e pô-los em prática. Vês, porém, que agora as contínuas audiências, os muitos afazeres e minha saúde não o permitem. — Está bem: mas se o senhor não pode, por que seus salesianos não o imitam? Por que não insiste, não exige que tratem os jovens como o senhor os tratava? — Eu falo, canso-me de falar, entretanto muitos não se sentem dispostos a enfrentar os trabalhos como outrora. E então, descuidando o menos, perdem o mais, e esse “mais” são seus trabalhos. Amem o que agrada aos jovens e os jovens amarão o que aos superiores agrada. E assim ser-lhes-á fácil o trabalho. A causa da mudança atual no Oratório é que bom número de jovens não tem confiança nos superiores. Antigamente os corações estavam todos abertos aos superiores, a quem os jovens amavam e obedeciam prontamente. Mas agora os superiores são considerados como superiores e não como pais, irmãos e amigos; são pois temidos e pouco amados. (...) É importante ter familiaridade com os jovens especialmente no recreio. Sem familiaridade não se demonstra afeto e sem essa demonstração não pode haver confiança. Quem quer ser amado deve demonstrar que ama. (...) O professor visto apenas na cátedra é professor e nada mais, mas se está no recreio com os jovens torna-se irmão. Se alguém é visto somente a pregar do púlpito, dir-se-á que está fazendo apenas o próprio dever; mas se diz uma palavra no recreio, é palavra de alguém que ama. (...) Quem sabe que é amado, ama; e quem é amado alcança tudo, especialmente dos jovens. A confiança estabelece uma corrente elétrica entre jovens e superiores. Os corações se abrem e dão a conhecer suas necessidades e manifestam seus defeitos. Esse amor faz os superiores suportarem canseiras, aborrecimentos, ingratidões, desordens, faltas e negligências dos meninos. (...) Por que se afastam os superiores da maneira de educar que Dom Bosco ensinou? Por que ao sistema de prevenir com a vigilância e amorosamente as desordens, se vai substituindo pouco a pouco o sistema, menos pesado e mais cômodo para quem manda, de impor leis que se mantêm com castigos, acende ódios e geram desgostos, e se não se cuida de as fazer observar, geram desprezo aos superiores e causam gravíssimas desordens? É o que acontece necessariamente se faltar a familiaridade. Se se quiser, pois, que o Oratório volte à antiga felicidade, reponha-se em vigor o antigo sistema: O superior seja tudo para todos, sempre disposto a ouvir qualquer dúvida ou queixa dos jovens, todo olhos para vigiar-lhes paternamente a conduta, todo 415 - João Bosco apresentou muito dos seus princípios por meio da narração de sonhos. Independente de terem acontecido ou não, são utilizados como parábolas nas quais se dramatizam situações do cotidiano, quando valores educacionais são explicitados. 263 coração para procurar o bem espiritual e temporal dos que a Providência lhe 416 confiou . O ideal de presença como princípio pétreo foi relativizado por salesianos de São Paulo: caberia aos leigos serem protagonistas da ação educativa do Sistema Preventivo monitorados por salesianos. Um reflexo primeiro desta postura foi que a resposta afetiva esperada por essa educação transferiu-se dos salesianos para os professores e educadores que, não necessariamente, aderiam aos princípios salesianos. Os religiosos passaram a ser visto como os “donos do negócio” pelos educandos e como “patrões” pelos funcionários. Colocados esses princípios, deve-se afirmar sem se titubear que o ensino superior do UNISAL tem sua fonte de inspiração e ação nos critérios educacionais de João Bosco, não podendo abrir mão desses princípios pétreos, sem os quais se perderia sua identidade salesiana. Cabe verificar se esses princípios educacionais e essa prática pedagogia são veiculados, conhecidos e praticados pelo Centro Universitário Salesiano, levando em conta obviamente, as adaptações exigidas pelo público alvo dos tempos atuais. Para auferir se existe veiculação desta pedagogia entre docentes e discentes, passo primeiro para que seja conhecida e praticada, optou-se por pesquisar a documentação dos cursos por meio de suas ementas417 nos seus objetivos e nas expectativas depositadas nos seus egressos. Para se avaliar a incidência da salesianidade no UNISAL serão analisados sete títulos no Home Page418: a - Histórico b – apresentação do reitor; c – identidade corporativa; d – apresentação da pedagogia salesiana; e – pastoral universitária; f – ementa de alguns cursos; g – conteúdo de algumas matérias que poderiam comportar no seu projeto elementos de salesianidade. 416 - BOSCO, J. Carta de Roma, op. cit., p. 280-283. 417 - Essas informações estão disponibilizadas no site do Centro UNISAL e foram consultadas na primeira quinzena do mês de julho de 2011. Os itens pesquisados foram impressos e encontram-se disponíveis no SEDOC do Centro Universitário de Lorena na pasta referente aos documentos de pesquisa deste doutorado no arquivo sob o nome do titular deste trabalho. 418 - A Home Page do UNISAL (www.unisal.br) tem sido eficiente ferramenta de relacionamento entre o corpo docente e discente pelo do portal acadêmico. A eficiência desta ferramenta no âmbito pedagógico e administrativo não é a mesma no âmbito da pastoral. 264 No título “Histórico” faz-se uma retrospectiva da figura de João Bosco, acentuandose os referenciais fundamentais da educação salesiana com destaque para o Sistema Preventivo como o eixo da práxis da pedagogia salesiana: Dom Bosco foi um sacerdote italiano que dedicou sua vida ao trabalho com os jovens. Seu projeto educativo, denominado Sistema Preventivo, é adotado nas escolas e demais obras salesianas. Razão, Religião e amorevolezza são os valores do Sistema Preventivo, e amorevolezza é o elemento-chave dessa pedagogia. Essa palavra italiana não tem tradução literal para o português e é entendida como bondade, carinho, afeto, amor. Esses valores devem nortear todas as ações dos Salesianos nas escolas e 419 obras sociais que a congregação mantém em quase todo o mundo . A apresentação do Reitor420 reafirma o exposto no histórico, apontando o Sistema Preventivo como o referencial-chave desta pedagogia. O UNISAL é apresentado como continuidade da Faculdade Salesiana de Filosofia e Letras de Lorena, fazendo memória de antigos educadores dos primeiros tempos. Refere-se à máxima Scientia ad sapientiam421 que se encontra há quase um século num quadro de marchetaria nos saguões do palacete veneziano em estilo neo-clássico, onde está instalada a direção da unidade de Lorena, numa clara intenção de sinalizar o elo do passado com o presente. Procura mostrar a extensão do pensamento educacional de Dom Bosco para além das fronteiras salesianas: Sobre Dom Bosco, fundador da Família Salesiana, afirmou Carlos Drummond de Andrade: “De cada criança fez um ser humano, pelo amor e trabalho diligente, o santo amigo, o santo irmão da gente, João Bosco, luz acesa no futuro”. E Umberto Eco, intelectual italiano, reconhecido especialista da área da comunicação e semiótica: “À sociedade está faltando o seu ‘projeto Dom Bosco’, isto é, alguém ou algum grupo com a mesma imaginação sociológica, o mesmo senso dos tempos, a mesma inventividade organizativa. Fora deste quadro, nenhuma força ideológica pode elaborar uma política global das comunicações de massa, e deverá limitar-se à ocupação, freqüentemente inútil e muitas vezes danosa, dos vértices dos grandes 422 dinossauros, que contam cada vez menos do que se crê" . 419 - UNISAL. Histórico. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 4 jun.2011. 420 - Prof. Dr. Edson Donizetti de Castilho. 421 - Ao conhecimento pela Sabedoria. 422 -- UNISAL. Apresentação do Reitor. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 4 jun. 2011. 265 Finalmente o reitor define de forma inequívoca a fidelidade institucional a Dom Bosco, apesar das novas realidades do século XXI. (...) embora seja de natureza confessional, o UNISAL, acompanhando as tendências sócio-eclesiais dos últimos anos, amadureceu uma acentuada índole ecumênico-dialógica e, hoje, busca decididamente maior significatividade no âmbito educacional brasileiro, pretende-se suficientemente capaz de colaborar no processo de amadurecimento humano de muitos jovens e procura construir um saudável clima intrainstitucional que favoreça o desenvolvimento humano-profissional de todos os que dele fazem parte. Para tanto, além dos salesianos religiosos, há um robusto grupo de profissionais-educadores envolvidos nos muitos serviços prestados pelo UNISAL. As obras e empresas salesianas gostam de olhar para os profissionais e educadores nelas envolvidos como sendo “um vasto movimento de pessoas a serviço da complexa e exigente missão salesiana”. Dessa forma, olhando com responsabilidade para a missão que nos interpela, podemos refletir, em cada ação, o compromisso com a máxima salesiana que herdamos de Dom Bosco: “Formar bons cristãos e honestos cidadãos”. Ainda na Home Page, o título Identidade Corporativa define a índole salesiana da Instituição. Missão: O UNISAL, fundado em princípios éticos, cristãos e salesianos, tem por missão contribuir para a formação integral de cidadãos, por meio da produção e difusão do conhecimento e da cultura, e pelas experiências de ação social, em um contexto de pluralidade. Valores: A prática educativa do UNISAL apóia-se nos seguintes valores: Amorevolezza, Diálogo, Ética, Profissionalismo e Solidariedade. Visão: Consolidar-se como centro de excelência, reconhecido nacional e internacionalmente na produção, sistematização e difusão do conhecimento 423 e na qualidade de serviços prestados à comunidade . A Pedagogia salesiana 424 é apresentada de forma coloquial, procurando-se estabelecer sinergia com os leitores: “Para você que está entrando pela primeira vez numa casa salesiana. Para você que veio trabalhar com os salesianos. Para você conhecer melhor Dom Bosco e os salesianos é que o P. Antonio Carlos Galhardo organizou 425 este texto ” 423 424 425 - UNISAL. Identidade Corporativa. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 4 jun. 2011. - Carlos Galhardo - UNISAL. Pedagogia salesiana. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 24 jun. 2011. 266 O texto é ainda uma recapitulação histórica da vida de João Bosco, a fundação da congregação em 1857426, a presença de salesianos em mais de 120 países e a descrição do Sistema Preventivo. É um texto, porém reducionista, com linguagem própria para uma paróquia católica, mas pouco adequado para o ambiente pluralista da academia. É um texto fora de lugar pelo teor doutrinal e catequético com um conteúdo apoiado no dogma católico. Essa forma de linguagem “a partir do púlpito” foi abandonada após o Vaticano II. De qualquer forma, explicita o pensamento religioso do fundador no século XIX e suas intenções pastorais para o futuro da congregação. Pode-se perceber, na linguagem institucional, coerência nas afirmações que procuram delimitar sua identidade: a consciência de ser um movimento que nasceu de Dom Bosco; a finalidade das obras voltadas especificamente para juventude e a identidade católica e salesiana da instituição. Há, portanto, uma clara e inequívoca definição nos princípios teóricos dos referenciais religiosos que norteiam a ação educacional e pedagógica dos salesianos. Colocados esses princípios e referenciais teóricos, se deve verificar se os mesmos estão materializados e visíveis no dia a dia da instituição, seja por meio da pastoral que propõe ao alunado serem protagonistas dos ideais salesianos, seja nos programas de cursos e nas suas disciplinas, garantindo aos seus educandos a aquisição de alguns valores preconizados pela Instituição ao descrever o perfil dos egressos A Pastoral, em consonância com a fala institucional, afirma sua identidade e finalidade: O Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL, instituição universitária “NASCIDA DO CORAÇÃO DA IGREJA, como centro incomparável de criatividade e irradiação do saber para o bem da humanidade”, a fim de consagrar-se inteiramente à causa da verdade e garantir uma presença cristã no mundo universitário, tem na Pastoral Universitária Salesiana um feixe de atividades que oferecem ao ambiente educativo a ocasião de integrar a vida com a fé. A Pastoral Universitária Salesiana preocupa-se, especialmente, “em encarnar a fé em suas atividades cotidianas”. Por isso, o ambiente educativo (clima de relações 426 - Alguns autores identificam o ano de 1857 como o da fundação da congregação salesiana. Será quando João Bosco terá o encontro com um grupo de jovens propondo-lhes esse projeto. O ano de 1859 é reconhecido como o da fundação pois será nele que João Bosco obtém a adesão dos primeiros jovens salesianos. 267 que torna possível a ação formativa e pastoral) é seu elemento chave e, deste modo, suas ações implicam, especialmente, em:- revelar um ambiente familiar, caracterizado pela acolhida e disponibilidade; - orientar e estimular uma formação humana que evidencie o respeito e a disponibilidade para o encontro pessoal entre todos os membros da comunidade acadêmica; - exercitar uma preocupação e atenção visível à juventude, aos estudantes; - priorizar o reflexo da prática dos valores que se transmitem - como solidariedade, justiça, liberdade, respeito, igualdade – em todos os setores da universidade. A Pastoral Universitária Salesiana é, portanto, entendida como uma ação unitária – acadêmica e de formação 427 integral – dirigida e endereçada a toda a comunidade universitária . Nos documentos oficiais da congregação e da Inspetoria Salesiana de São Paulo, a Pastoral é nomeada como carro chefe da presença salesiana nas obras. No passado a coordenação desta frente nas escolas e obras sociais era entregue a salesianos jovens que a articulavam com criatividade, empreendedorismo e presença. O fato de o ensino superior ter sofrido rejeição por boa parte dos salesianos, e só ter sido assumido como uma frente carismática da congregação tardiamente, fez com que essa função fosse assumida de forma acanhada e com metodologias inadequadas transpostas de escolas de segundo grau e de obras sociais. Os salesianos que assumiam a pastoral universitária possuíam, concomitantemente, encargos similares no colégio, ficando essa função junto ao ensino superior sem um atendimento prioritário, possuindo poucas verbas e contando com uma equipe de apoio reduzida e nem sempre especializada em salesianidade. Com a redução do pessoal salesiano e com o crescimento do Centro Universitário resolveu-se, num tempo de crise financeira, confiar a coordenação deste setor aos salesianos-ecônomos para que os mesmos provessem financeiramente essa frente com mais “boa vontade”. Esse cargo, porém, entregue a ecônomos, teve sua eficiência comprometida, pois eles trabalhavam em três turnos428 para atender suas responsabilidades no gerenciamento da administração da unidade, no zelo pela conservação do patrimônio, no comando do departamento de pessoal e recursos humanos e ainda respondendo pela gestão da escola de primeiro e segundo grau e obra social anexas à comunidade religiosa, sendo-lhes impossível atender às demandas do dia-a-dia e, sobretudo, à elaboração de projetos 427 428 UNISAL. Pastoral. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 24 jun. 2011. - Os trabalhos dos salesianos nas obras não são remunerados, não havendo necessidade de se cumprir as horas legais exigidos pela CLT. 268 da pastoral de forma orgânica, fazendo com isso que o setor se tornasse muito mais promotor de eventos que organizador e mentor de ações educativas num projeto consistente. Esta realidade acima descrita é facilmente perceptível ao se analisar a home page “www.unisal.br”. Este site possui um bom e prático layout e grande eficiência acadêmica, administrativa e financeira, com atualizações permanentes que envolvem significativos investimentos financeiros. O único setor que se mostra desatualizado429 é a pastoral, reduzida a uma posição secundária frente ao conjunto das outras demandas. Uma “navegação” superficial430 apresenta textos produzidos há mais de quatro anos e que muitas vezes não “abrem”. Considerando que a pastoral deveria alavancar os valores cristãos e salesianos da instituição, percebese que estão, de fato, relegados a um plano periférico, contrariamente a tudo que desejara o fundador. Se as proposições do Histórico, da Apresentação do Reitor, da Identidade Corporativa e da Apresentação da Pedagogia Salesiana apontam ideais almejados, de fato tais projetos ficam fragilizados quando a pastoral, que se pretendia ser um dos braços visíveis da ação salesiana, se mostra estruturalmente acanhada, fragilizada e desprovida de atualidade e interesse, tanto para docentes, como para discentes. A mensagem subliminar que fica é que a pastoral não é significativa no contexto do ensino superior. 429 - Este verificação foi monitorada a cada dez dias do mês de julho de 2010 a julho de 2011. Poucas alterações foram realizadas. No CEDOC do Centro UNISAL – unidade de Lorena na pasta do titular deste trabalho encontram-se arquivadas as páginas impressas que são analisadas nesta pesquisa. 430 - Uma análise sumária nos demonstra isso. No titulo “Pastoral” das três unidades existem cinco subtítulos. 1 – Universidade em Pastoral; 2 – Celebrações; 3 – Links; 4 – Frases e textos; 5 – Assessor de pastoral. Quando se parte para uma “navegação” nos portais das unidades encontra-se a seguinte situação. No item “Celebrações” têm-se horários repetidos de todas as unidades. Em Americana têm-se citações genéricas que apenas indicam intenções: Atividades da PDU: Retiros, Formação, Manhãs de Espiritualidade, Missas Festivas, Esportes, Missas de formatura e celebrações ecumênicas. Este enumerado de “atividades’ indica muito mais uma “carta de intenções” que efetivamente ações pastorais. No título Links há um conjunto de fotos da Pastoral de Lorena que foram lincadas para as demais unidades. Constam links para fotos de 2009 e 2010, textos e “vem por ai”. Nenhum dos links abre. E no mesmo setor na página de Americana nada consta. No setor “Frases e Textos” há 10 textos. O mais velho de 29 de setembro de 2007 e o “mais atual” e único que abre é de 13 de maio de 2008. No título ‘Assessor” não consta nada. 269 Há um segundo espaço no qual se pode conferir a incidência dos ideais salesianos e onde, efetivamente, palpita a vida da academia: são os cursos com suas disciplinas nas quais se materializam e são tangíveis os seus objetivos educacionais. Cabe conferir se nas ementas dos cursos estão presentes explícita ou implicitamente, declarados ou insinuados, os ideais do fundador e do próprio Centro Universitário Salesiano, já explicitado nas apresentações institucionais. Verificar-se-á se as ementas, ao serem elaboradas, levam em consideração seis referenciais que contemplam a formação profissional, humana, cidadã, ética, salesiana e cristã. Por meio desses seis pontos poder-se-á auferir se o UNISAL, por meio de seus cursos, atinge, no se planejamento curricular, suas propostas institucionais. Delimitemos, explicitando, cada item supracitado. 1. O Preparo profissional – trata-se da preparação do aluno numa área do saber que o qualifica para o exercício de uma determinada profissão. Este aspecto é parte essencial na configuração de um curso. 2. O Embasamento humanista – Na pedagogia salesiana a atividade docente transcende às meras informações técnicas. A partir de uma antropologia cristã entende-se que a formação profissional passa pela formação do homem em sua totalidade. 3. Os Valores de cidadania- A educação salesiana, rompendo com os paradigmas da Idade Média e afinada com a unificação política da península itálica, pretendeu a formação de cidadãos também para a Nova Itália. A formação profissional salesiana contempla também uma ação na Polis onde, como já preconizara Aristóteles no seu pensamento político, e que fora conhecido por Bosco, deve-se garantir o Bem Comum, soma todos os bens individuais431. 4. Os Valores Éticos – São os princípios morais que nascem de uma consciência filosoficamente bem formada. Os princípios morais direcionam a educação salesiana que supõem uma base humana que dê sustentação à posterior formação cristã. 5. Os Valores salesianos – É o modo de se auto-educar e de ver a vida. Razão, Religião e Bondade fazem parte integrante da ação educativa dos formadores sobre seus destinatários que são concebidos como protagonistas desta educação. Sem interação afetiva entre educadores e educandos, não é possível formação. 6. Os Valores cristãos – O cristianismo é a base da cosmovisão salesiana. Esses valores não representam hoje, necessariamente, a conversão para a prática do catolicismo, mas a aceitação de valores do humanismo cristão. 431 FRAILE, op. cit., p. 536 - 559 270 A interação do Centro Universitário com o alunado se dá nos cursos e no cotidiano das salas de aula, onde deveria ser perceptível o humanismo cristão e salesiano. Para que se possa avaliar essa incidência, deve-se verificar se os seis elementos supra-enumerados são contemplados nos cursos em suas ementas e disciplinas. Deve-se levar em consideração que neste nosso século está superada para a maioria dos educadores a idéia de que bastaria a formação técnica, sendo entendida a formação humana como tão importante quanto a habilitação profissional, pois o trabalho supõe interação de equipe em nível técnico e humano. Recursos humanos de empresas bem estruturadas buscam selecionar pessoal qualificado para seus quadros atentos à vida social, familiar e pessoal dos candidatos. O ensino superior, sem abrir mão da formação profissional, deve zelar para que essa formação humana integral seja a mais aprimorada possível. É ponto pacífico que o UNISAL nas suas elaborações teóricas, alinhado com o pensamento do fundador, sinaliza uma formação humana, ética, cidadã, salesiana e cristã. Torna-se necessário verificar, porém, se esses princípios teorizados interagem com os projetos dos cursos. Avaliando as ementas de 29 cursos432 do UNISAL procurou-se fazer o levantamento de elementos que apontassem, para além do preparo profissional, a formação humana, cidadã, ética, salesiana e cristã oferecida aos alunos. A partir da análise dos seus objetivos e do esperado do profissional egresso de seus cursos pode-se aquilatar em que medida há interação desses projetos com os propósitos institucionais. O quadro a seguir nos sinaliza os elementos presentes nas ementas dos cursos analisados: 432 - Lorena: Filosofia, Psicologia, Direito, Pedagogia, Ciência da Computação, Engenharia de Produção, Matemática, Geografia, História, Turismo. Americana: Psicologia, Direito, Pedagogia, Engenharia Ambiental, Engenharia de Automação e Controle, Engenharia de Produção, Engenharia Elétrica, Sistema d Informação, Tecnologia em Sistemas Automotivos, Ciências Contábeis, Moda, Publicidade e Propaganda, Serviço Social, Campinas: Direito, Engenharia de Automação e Controle, Engenharia de produção, Engenharia Mecânica, Tecnologia de Automação Industrial e Tecnologia em Sistemas Automotivos. 271 QUADRO REFERENCIAL DOS CONTEÚDOS PRESENTES NAS EMENTAS DOS CURSOS DO UNISAL Curso Filosofia Psicologia Psicologia Direito Direito Direito Pedagogia Pedagogia Ciência Computação Engenharia Ambiental Engenharia Automação Engenharia Automação Engenharia Produção Engenharia de produção Engenharia Elétrica Engenharia Mecânica Matemática Sistema Informação Automação Industrial Tec.Sistema Automotivo Ciências Contábeis Geografia História Moda Serviço Social Turismo 433 Preparo Embasamento Valores Valores Valores Valores U433 Profissional Humanístico cidadania Éticos Salesianos Cristãos L x x x x x x L x x x x A x x x x L x x x x A x x x x C x x x x L x A x x L x A x x x A x x x C x x L x C x x A x x C x x L A x x x C x x C x A x x x x x x x x x x x L L A A x x x x x x x x x x x x x x x L x x x x - u = Unidades; A: Americana; C: Campinas e L: Lorena. x x x 272 A partir da análise desta tabela, constata-se que todos os cursos definem com clareza o preparo profissional como essencial e prioritário. 73% deles se preocupam com um embasamento humanístico. 61% sinalizam compromissos com a cidadania; 57% mostram preocupação com a formação ética. 23 % apontam valores salesianos a serem passados no currículo e apenas 7,6% fazem menção a referenciais cristãos. É de imediato explícito o descompasso entre os referenciais teóricos explicitados pela Home Page através do Histórico, da apresentação do Reitor, da Identidade Corporativa e da discrição feita na Pedagogia Salesiana e os projetos dos cursos. O Curso de Filosofia434 é o que melhor e mais qualitativamente se encontra afinado com os objetivos da congregação e com os referenciais institucionais do UNISAL, talvez por ter sido o primeiro das faculdades salesianas e o que até hoje possui a presença de três salesianos como docentes, preocupados com a fidelidade do projeto da congregação. As descrições435 dos seus objetivos e do perfil do egresso contemplam o preparo profissional, o embasamento humanista, os valores de cidadania, éticos, salesianos e cristãos: Objetivos Gerais: Formar a pessoa humana, cidadã, profissional, docente de Filosofia, que desenvolva uma atitude reflexiva sobre o sentido da própria existência, sua identidade e sua relação com Deus, com a sociedade e com o mundo. Essa atitude deve ser entendida como possibilidade de esclarecimento de pressupostos e de engajamento, na busca e posse de uma plena estatura humana, que envolve o cultivo da vida do espírito, do conhecimento, da cultura, da educação, da ética e do convívio social, na história. Objetivos Específicos • pensar e desenvolver sistematicamente o raciocínio, capacitando-o a formular e propor, de um modo especificamente filosófico, soluções a problemas; • ler, compreender, interpretar, analisar e sintetizar os clássicos da Filosofia segundo os rigorosos procedimentos científicos e da Hermenêutica; • desenvolver uma consciência crítica acerca da realidade humana e das questões sociais, políticas e econômicas; • estabelecer um diálogo constante entre Fé e Razão • capacitar o estudante para ser agente de reflexão da educação integral nas áreas do Ensino 434 Preparo Embasamento profissional Humanista Sim Sim 435 Filosofia – Lorena Valores de Valores cidadania Éticos Sim Sim Valores salesianos Sim Valores Cristãos Sim - Todas as transcrições de ementas dos cursos foram extraídas da HOME PAGE WWW.unisal.br no dia 17 de março de 2011 e possuem seus originais na secretária da Unidade sede de Americana. 273 Fundamental e Médio, favorecendo o desenvolvimento da criatividade educativa, didática, pedagógica e crítica. Perfil Profissional: A partir dos objetivos desenvolvidos ao longo do curso e norteadores desta sociedade contemporânea, espera-se do egresso uma sólida e profunda formação filosófica e pedagógica a qual fundamenta o respeito à pessoa. Pautado em princípios éticos que o tornem capaz de dialogar com as diferenças e de agir como cidadão autônomo-crítico de forma consistente na transformação do ambiente em que vive e atua o egresso, portanto, precisa ser um profissional da educação, atento à pesquisa, à reflexão e à ação didática renovadora. Somente o Curso de Serviço Social436 de Americana terá a mesma abrangência, mas não a mesma profundidade, atendendo a todos os requisitos propostos nesta pesquisa: Objetivos Gerais: Oferecer ao graduando uma formação profissional orientada para enfrentar uma conjuntura de profundas mudanças globais no âmbito das relações sociais, bem como os desafios da crise de paradigmas e da especificidade da profissão. Sobretudo, a revitalização das políticas sociais de caráter público e direitos humanos universais garantem a interdisciplinaridade e as estratégias de intervenção. Perfil Profissional: Visão Humanística com habilidades para compreender, intervir e interagir com pessoas, grupos e comunidades através de postura ética profissional e cristã salesiana. Postura crítico-analítico da realidade internacional, nacional, regional e municipal para o aprofundamento teóricometodológico da ação; Compromisso e prática vinculados à realidade, para criticamente e com domínio de técnicas específicas, desenvolverem a capacidade de analisar as conjunturas e formular estratégias de intervenção. Autonomia e empreendedorismo, desenvolvendo continuamente a capacidade de criação, inovação e tomada de decisões voltadas para o saber ser e o saber fazer profissionais, vinculados a particularidades da intervenção do Assistente Social. O curso de Pedagogia437 de Lorena, que deveria ser um dos carros chefes na propagação do ideário salesiano, ignora todos os itens de formação humana, 436 Serviço Social - Americana Preparo Embasamento Valores de Valores profissional Humanista cidadania Éticos Sim Sim Sim Sim Valores salesianos Sim Valores Cristãos Sim Valores salesianos não Valores Cristãos não 437 Preparo Embasamento profissional Humanista Sim não Pedagogia – Lorena Valores de Valores cidadania Éticos não não 274 formulando apenas objetivos profissionais em vista do desenvolvimento de habilidades. Objetivo: Os principais objetivos do curso são: - Oferecer formação inicial ampla para o exercício da docência na Educação Infantil, Anos Iniciais do Ensino Fundamental, Ensino Médio – modalidade Normal, e em cursos de Educação Profissional na área de serviços, no apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos; • Articular o ensino, a pesquisa e a extensão, buscando a produção do conhecimento e a solução de desafios e de problemas da prática pedagógica; • Reconhecer a aprendizagem como um processo de construção contínua de conhecimento realizado pelo indivíduo, que está inserindo em um contexto social e cultural específico; • Trabalhar em espaços escolares e nãoescolares na promoção da aprendizagem de sujeitos em diferentes fases do desenvolvimento humano, em diversos níveis e modalidades do processo educativo; Perfil Profissional: Ao final do Curso de Pedagogia, o profissional deverá ter desenvolvido as seguintes habilidades e competências: • Selecionar e organizar atividades e conteúdos de Linguagem oral e escrita, Língua Portuguesa, alfabetização e letramento, além das áreas que envolvem Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais, Arte e Motricidade. • Planejar e gerenciar o tempo, o espaço e as rotinas em espaços escolares e não escolares. • Selecionar e usar bons recursos didáticos e estratégias metodológicas para desenvolver atividades pedagógicas. • Trabalhar os temas que são transversais ao currículo dessa etapa de ensino, tanto em sua área específica como no convívio escolar. • Trabalhar com crianças portadoras de necessidades especiais, na perspectiva da pluralidade e inclusão. Da mesma forma o curso de Ciência da Computação438 de Lorena apresenta uma visão tecnicista, ignorando toda e qualquer dimensão humana no seu projeto. Sendo um curso mais recente, demonstra claro distanciamento mesmo de dimensões humanísticas. Objetivo: Formar profissionais na área de Computação e Informática, com sólidos fundamentos em Ciência da Computação com vistas ao mercado profissional, tanto nas áreas teórica e de aplicação de computadores, como no projeto e desenvolvimento de equipamentos e software básico, utilizando tecnologias da Engenharia de Software. O Curso oferece uma boa 438 Ciência da computação – Lorena Preparo Embasamento Valores de Valores Valores profissional Humanista cidadania Éticos salesianos Sim Não Não Não Não Valores Cristãos Não 275 preparação para estudos avançados na pós-graduação (mestrado) visando a carreira acadêmica em Ciência da Computação. Perfil Profissional: Formar profissionais na área de Computação e Informática, com sólidos fundamentos em Ciência da Computação com vistas ao mercado profissional, tanto nas áreas teórica e de aplicação de computadores, como no projeto e desenvolvimento de equipamentos e software básico, utilizando tecnologias da Engenharia de Software. O Curso oferece uma boa preparação para estudos avançados na pós-graduação (mestrado) visando a carreira acadêmica em Ciência da Computação . Entre 2010 e 2011 foram aprovados pelo MEC novos cursos para Lorena. O Curso de Engenharia de Produção439, recém elaborado e aprovado pelo MEC, é um clássico exemplo do distanciamento da faculdade dos ideais do fundador, ao apresentar uma visão tecnicista despida das dimensões cristã e salesiana. A Ementa deste curso, a seguir transcrita integralmente da Home Page, é exemplo do bandeamento da Instituição para uma visão pragmática e como reflexo do novo regimento, no qual os salesianos perderam funções nas primeiras linhas de decisões com o encerramento do cargo de Diretor de Unidade, que lhes permitia zelar pela fidelidade aos ideais educacionais do fundador. A figura do reitor salesiano é distante do cotidiano das unidades, que hoje contam apenas com três salesianos professores que ministram poucas aulas, concentradas no curso de Filosofia. Ainda que haja referência a aspectos humanos, econômicos, sociais e ambientais, com visão ética e humanista em atendimento às demandas da sociedade, essas informações não correspondem posteriormente à grade curricular e aos conteúdos das disciplinas humanísticas que possuem uma linha meramente informativa e ilustrativa como apoio aos interesses do mercado. 440 Objetivo : Contribuir com a formação de engenheiros de produção por meio da transmissão, análise e questionamento acerca do conjunto de conhecimentos e ferramentas que favoreçam o desenvolvimento de competências/capacidades a fim de proporcionar uma sólida formação 439 Engenhara de produção - Lorena Preparo Embasamento Valores Valores Valores profissional Humanista de Éticos salesianos cidadania Sim Sim Não Sim Não 440 Valores Cristãos Não - Esta ementa foge por demais aos seus objetivos com longas descrições inclusive situações sazonais de mercado. 276 científica e profissional geral que o capacite a identificar, formular e solucionar problemas ligados às atividades de projeto, operação e gerenciamento do trabalho e de sistemas de produção de bens e/ou serviços, considerando seus aspectos humanos, econômicos, sociais e ambientais, com visão ética e humanista em atendimento às demandas da sociedade. Esse profissional deve ser criativo e flexível, ter espírito crítico, iniciativa, capacidade de julgamento e tomada de decisão, ser apto a coordenar e atuar em equipes multidisciplinares, ter habilidade em comunicação oral e escrita e saber valorizar a formação continuada. O atendimento ao objetivo proposto para o curso de graduação em Engenharia de Produção do UNISAL UE Lorena implicará com que seu egresso também seja capaz de: · Dimensionar e integrar recursos físicos, humanos e financeiros a fim de produzir, com eficiência e ao menor custo, considerando a possibilidade de melhorias contínuas; · Utilizar ferramental matemático e estatístico para modelar sistemas de produção e auxiliar na tomada de decisões; · Projetar, implementar e aperfeiçoar sistemas, produtos e processos, levando em consideração os limites e as características das comunidades envolvidas, legislação pertinente e outros aspectos socioeconômicos; · Prever e analisar demandas, selecionar conhecimento científico e tecnológico, projetando produtos ou melhorando suas características e funcionalidade; · Incorporar conceitos e técnicas da qualidade em todo o sistema produtivo, tanto nos seus aspectos tecnológicos quanto organizacionais, aprimorando produtos e processos, e produzindo normas e procedimentos de controle e auditoria; · Prever a evolução dos cenários produtivos, percebendo a interação entre as organizações e os seus impactos sobre a competitividade; · Acompanhar os avanços tecnológicos, organizando-os e colocando-os a serviço da demanda das empresas e da sociedade; · Inter-relacionar os sistemas de produção com o meio ambiente natural, tanto no que se refere à utilização de recursos escassos quanto a disposição final de resíduos e rejeitos; · Utilizar indicadores de desempenho, sistemas de custeio, bem como avaliar a viabilidade econômica e financeira de projetos; · Gerenciar e otimizar o fluxo de informação nas empresas utilizando tecnologias adequadas. Perfil Profissional: O engenheiro de produção tem como área específica de conhecimento os métodos gerenciais, a implantação de sistemas informatizados para a gerência de empresas, o uso de métodos para melhoria da eficiência das empresas e a utilização de sistemas de controle dos processos da empresa. Tudo o que se refere às atividades básicas de uma empresa tais como planejar as compras, planejar e programar a produção e planejar e programar a distribuição dos produtos faz parte das atribuições típicas do engenheiro de produção. É por isso que o engenheiro de produção pode trabalhar em praticamente qualquer tipo de indústria. Sobre as diferenças entre os cursos de Administração e Engenharia de Produção, essa última tem um conteúdo tecnológico, isto é o aluno cursa as disciplinas básicas de química, física e matemática complementadas por um conjunto de matérias de engenharia, tais como materiais, desenho técnico, eletrotécnica, automação industrial etc. Naturalmente a profundidade que o aluno estuda essas matérias técnicas é menor que a dos seus colegas da engenharia elétrica, mecânica, etc. Ambas as carreiras têm matérias sobre administração, comércio, contabilidade e técnicas de gerência. Na engenharia de produção essas matérias estão mais voltadas para a realidade industrial. Entre as engenharias no Brasil, o mercado de engenharia de produção é sem sombra de dúvida o que desfruta da melhor situação. Todos os engenheiros de produção vêm conseguindo boas colocações no mercado principalmente em função do seu perfil que coincide com o que se está demandando nos dias de hoje: um profissional com uma sólida formação científica e com visão geral suficiente para encarar os problemas de maneira global. O mercado de trabalho para o engenheiro de produção tem-se mostrado extremamente diversificado. Além do mercado 277 tradicional (empresas e empreendimentos industriais), instável e dependente da estabilidade econômica, uma série de setores e áreas passaram a procurar os profissionais formados em engenharia de produção. Uma análise do quadro dos referenciais teóricos dos cursos demonstra que valores cristãos são nomeados apenas em duas ementas e os salesianos em seis num plantel de vinte e nove. Os conteúdos humanísticos, salesianos e cristãos são, na maioria dos casos, meros adereços incrustados nos projetos. A simples menção “en passant” de valores cristãos, salesianos, éticos, de cidadania e humanísticos não representa necessariamente que eles estejam integrados nos currículos das matérias ministradas. Isto é facilmente verificado numa análise dos programas das disciplinas. Deve-se levar em conta que as disciplinas que trabalham a formação humana, social e ética praticamente ignoram ou desconhecem a cosmovisão salesiana, assim como as teorias educacionais e práticas pedagógicas, exceção feita apenas para o curso de Filosofia, como já foi mencionado. O pensamento salesiano, quando enfocado – e raramente o é –, é feito de forma superficial e através de umas poucas frases de efeito441. No curso de mestrado de Educação a pedagogia salesiana não recebe tratamento qualificado. Não há produção de livros que tratem dela e a Revista Ciências da Educação442, ligada ao Mestrado e que possui como linha editorial a Educação Salesiana, Educação Sócio-comunitária e Educação Não Formal, apresenta poucas produções qualificadas sobre os temas de salesianidade, natural reflexo de um assunto que não é aprofundado e nem é referencial do curso, conforme mostram a tabela e o gráfico a seguir: 441 - “Basta que sejais jovens para que eu vos ame”; “Até meu último suspiro será pela juventude”; “obra salesiana: salesiana: casa que acolhe, paróquia que evangeliza, escola que encaminha para a vida e pátio para se encontrarem como amigos e viverem com alegria”; “Educação é obra do coração” – Todas pronunciadas por Bosco. 442 - Revista indexada sob o registro: ISSN 1518-7039. O primeiro número é de 1999 e foi continuação dos Sumários de Folhas Pedagógicas (1959-1972) E Revista da Faculdade Salesiana (1973-1997). Cf. Revista de Ciências da Educação, Lorena, ano 1, n. 1, 1999, p.171-190. 278 REVISTA CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO UNISAL Número da Revista 16 17 18 19 20 21 22 23 Ano Data IX 1º. Sem 2007 IX 2º. Sem 2007 X 1º. Sem 2008 X 2º. Sem 2008 XI 1º. Sem 2009 XI 2º. Sem 2009 XII 1º. Sem 2010 XII 2º. Sem 2010 TOTAIS Títulos diversos 8 14 15 13 20 26 22 16 134 Títulos de Porcentagem salesianidade de temas salesianos 0 0% 0 0% 0 0% 1 7,1 % 2 9% 3 10,3 % 1 4,3 % 0 0% 7 4,9 % GRÁFICO 1 Constata-se descompasso entre os ideais educacionais salesianos elaborados pelos documentos mundiais da congregação, os discursos oficiais da Inspetoria Salesiana de São Paulo e da direção do UNISAL e a práxis docente. A Pastoral, proclamada como carro chefe da ação salesiana é carente de verbas, de pessoal especializado e de um projeto orgânico. Os cursos em geral cada vez mais carecem de uma explicita configuração salesiana. 279 Em síntese: A resistência inicial dos salesianos ao ensino superior, a falta de pessoal salesiano preparado para o ambiente da academia, o afastamento físico dos salesianos das salas de aula, dos pátios e dos pórticos, tornando-se burocratas, e a extinção do cargo de diretor de unidade, que era conferido a um salesiano, fez com que a pedagogia da presença ficasse comprometida a partir do que elaborara o fundador. Conferir aos leigos a missão de serem os promotores desta educação é um fato positivo enquanto desclericaliza o perfil desta Instituição. Este passo será falho, porém, se se descurar da formação dos agentes desta educação com informações histórico-pedagógicas sobre o fundador, sua vida, obras e seu espírito e, sobretudo se não se conseguir imbuir parte dos educadores, não só com o conhecimento, mas, e sobretudo, com a formação de uma mentalidade salesiana. Torna-se importante verificar o quanto e em qual intensidade o pensamento e a práxis educacional salesiana impacta sobre os jovens destinatários das três unidades. Eles chegam a conhecer e a experienciar essa pedagogia nos ambientes do UNISAL? 280 4.3.2 Salesianidade e corpo discente Educar é agregar princípios e valores que dêem significado à vida do educando. Na Filosofia clássica, Sócrates e Platão acreditavam que o conhecimento estava no interior do homem, cabendo ao educador apenas fazê-lo aflorar. Aristóteles, rompendo com seu mestre Platão, afirmará que o homem é tabula rasa in qua nihil scriptum est443 cabendo ao educador preencher este vazio. Para o estagirita era a partir do mundo que nos rodeia e através dos sentidos que se construía o conhecimento: nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu444. Com isso contrariava tanto a Sócrates que afirmara que ao que erra não é preciso castigar, mas ensinar, entendido como maiêutica, como a Platão para quem a educação era a reminiscência do mundo das idéias por meio do conhecimento racional intuitivo. Aristóteles implanta uma verdadeira “revolução copernicana” com o conceito da “tabula rasa”, ganhando primazia a ação educativa, o ambiente “tocado” pelos sentidos e o Educador como artífice e agente da educação. Se João Bosco teve sua espiritualidade fincada na Idade Média, sob forte influência do platonismo e neo-platonismo, teve de outro lado, também e paradoxalmente, sua racionalidade marcada pelo pensamento aristotélico, enquanto acreditava que o educando é plausível e “possível” do bem. Será o educador que, ainda que lhe respeite a liberdade de autodeterminação, poderá conduzi-lo pelas sendas da verdade. E, mesmo que o jovem tenha vivenciado descaminhos, nele continuará sempre existindo a possibilidade do bem. João Bosco assume a mesma visão de Aristóteles que no lastro de seus mestres Sócrates e Platão, professava incondicional confiança na Razão. Os conceitos de ato e potência aplicados na metafísica de Aristóteles se distendiam logicamente para a dimensão da moral humana. O ser em ato tem a potencialidade de se projetar para outro modo de ser. Daí, sob a influência deste filósofo, Bosco professava crença inquebrantável na Educação a partir da construção da verdade nascida da reta razão e contando com 443 - Tábua rasa na qual nada está escrito. ARISTÓTELES – De Anima 3.4. In: KOCHER, Henerik. Dicionário de expressões e frases latinas. Disponível em: <http://www.hkocher.info/minha_pagina/dicionario/t01.htm>. Acesso em 20 jun. 2011. 444 -- Nada está na inteligência que por primeiro não tenha passado pelos sentidos. ARISTÓTELES. Cf. BUNGE, M. Dicionário de Filosofia. Tradução de Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectivas, 2002. 281 a colaboração e adesão da racionalidade do educando que naturalmente tenderia para a verdade e o bem. No seu Sistema Preventivo faz confluir e se complementar três correntes de pensamento. A Razão comporta não só o pensamento aristotélico, como também a racionalidade do século XIX, fascinada com a capacidade criativa e industriosa do ser humano. Na ótica de Bosco por meio dela não só se produzia o progresso, como também se podia apreender o bem. Na Religião há o conceito platônico-agostiniano que põe no espiritual o sentido da vida e da história, em que a intervenção de Deus perpassa o cotidiano do ser humano. A Bondade corresponde, no seu lado psicológico, aos mais profundos anseios do ser humano de afeto e respeito e, no campo político, afina-se com os ideais da Revolução Francesa e do Liberalismo, ainda que atenuado do seu lastro burguês, enquanto busca o respeito pelo ser humano. De fato João Bosco na sua concepção educacional- antropológica punha o ser humano como centro do processo educativo, valorizando sua racionalidade, respeitando-o politicamente e promovendo-o como homem no mais puro conceito aristotélico, como uma unidade substancial de corpo e alma. Diferente da idade média, não se tratava de “salvar” a alma, mas o homem na sua totalidade como ser espiritual, corporal, psicológico e cidadão. Era uma visão unitária e otimista do homem também nas suas atividades não-essenciais, contrário ao rígido conceito da espiritualidade de tradição agostiniana, quando ganhavam destaque aspectos aparentemente supérfluos da vida, como jogos, a predigitação, os passeios pelo campo, o teatro e a música. Era uma educação que, opondo-se à opressão capitalista do trabalhador445, não se amargurava porém, com retaliações vindas do sistema vigente, mas possuía uma visão otimista e que valorizava a alegria de viver neste mundo enquanto não chegava o vindouro. Esta educação comportava uma síntese entre a Idade média e a modernidade, naquilo que ambas tinham de melhor, o espiritual e a interioridade medieval somada ao trabalho, à produção, à inserção na urbe dos homens numa vida privada repleta de amor, carinho, ternura e alegria de viver. Tudo rodopiando ao redor de um ser especial, capaz do bem, de realizações e de projetos: o homem. 445 - João Bosco era muito exigente que se respeitassem os direitos dos seu ex-aprendizes. A mão de obra preparada nas suas escolas profissionais e pelas quais estava sedento o mercado industrial, carente de mão de obra especializada, era protegida por contratos de trabalhos que estabeleciam direitos e deveres, buscando salvaguardar o respeito pelo trabalhador. 282 O homem. Eis o epicentro da educação salesiana: instruí-lo, profissionalizá-lo, formá-lo fazendo que chegasse à sua plenitude como ser guiado pela reta razão, embalado por nobres afetos e integrado na cidade dos homens a caminho da cidade de Deus. O ideal educacional salesiano, se fiel aos critérios do fundador, continua sendo o mesmo, não importando que tenham ocorrido mudanças na sociedade. A congregação nasceu sob as procelas de um tempo difícil de mudanças econômicas, sociais, políticas, religiosas e culturais. Independente do tempo em que se viva, o importante é que não se perca o foco de sua obra, que é educar e promover os jovens com princípios e valores que lhes dêem sentido à vida. Deve-se verificar se essa congregação com mais de um século está interagindo com os seus destinatários de hoje estabelecendo diálogo e lhes passando seus valores. Algumas questões se impõem: No UNISAL qual é a qualidade de relacionamento entre os educadores salesianos e seus destinatários? O Mito fundacional dá sustentabilidade à ação educadora desta instituição? Que impacto a pedagogia salesiana possui nos seus educandos? Torna-se premente verificar se as estruturas pedagógicas, administrativas e físicas alcançam o fim para o qual foram criadas: oferecer aos jovens valores humanos e cristãos que sejam significativos e significantes para suas vidas. Numa sondagem446 entre alunos das unidades de Americana, Campinas e Lorena objetivou-se verificar a qualidade da incidência da educação salesiana por meio de quatro focos: 446 - Essa sondagem visa “tomar o pulso” da instituição. Um pesquisa em sentido estrito demandaria para esse fim a contribuição de profissionais qualificados e métodos que permitissem uma medição levando em conta variáveis. Foram adotados os seguintes procedimentos para a pesquisa. Primeira Etapa A - Pré-sondagem do autor– O autor realizou 42 entrevistas informais (26 em Lorena, 10 em Campinas e 6 em Americana) com professores e alunos da instituição, procurando auscultar como era a percepção deles das dimensões da salesianidade. B - Pré-sondagem de 09 alunos – (03 em Americana, 03 em Campinas e 03 em Lorena) Informalmente conversaram com seus pares auscultando o conhecimento que tinham sobre temas de salesianidade. Esses alunos possuíam um bom conhecimento da pedagogia salesiana, alguns egressos da formação para a vida religiosa salesiana. 283 1. Sondar os motivos pelos quais os entrevistados ingressaram no ensino superior salesiano; 2. Conferir se os princípios da pedagogia salesiana estão presentes nas ementas, conteúdos e disciplinas dos cursos, o que já foi realizado. 3. Verificar se há a presença de salesianos junto dos alunos; 4. Constatar se os princípios, valores e estilo salesianos possuem incidência na vida do alunado. Para que esta sondagem pudesse avaliar com objetividade o acima proposto, com relação aos seus objetivos fundacionais optou-se, como primeiro passo o uso da ferramenta conhecida como Cubo que realiza o cruzamento interativo de informações. A ferramenta OLAP (On-Line Analytical Processing) possui a principal função de suporte, possibilitando que analistas, gerentes e executivos tenham uma visão mais apurada dos dados, através de acessos rápidos, iterativos e consistentes a uma ampla variedade de possíveis visões sobre as mesmas informações. A ferramenta OLAP permite aos seus usuários terem acesso aos dados que descrevem os negócios da empresa, permitindo-lhes uma melhoria contínua na compreensão, gerenciamento e planejamento destes negócios. Permite ainda, analisar as múltiplas dimensões dos dados usados nas empresas, em qualquer combinação e em qualquer ângulo, além de identificar tendências e descobrir o que está conduzindo seus negócios (BISPO, 1998).A facilidade do usuário em C - Pré- sondagem via email – 14 alunos da unidade de Lorena, com formação salesiana básica, contataram colegas pedindo “ajuda” numa pesquisa acadêmica solicitando que respondessem as seguintes questões: 1 – Você conhece a vida de Dom Bosco? 2 – Você sabe o que é salesianidade; 3 – Nas aulas se fala de Dom Bosco? 4 – Você aprendeu algo sobre a pedagogia de Dom Bosco? Você sente que no ambiente da faculdade há um “clima salesiano? Foram respondidos 67 emails. Esses dados não foram computados porque feitos sem metodologia científica. O autor manteve muitas conversas com essas equipes discutindo os resultados. Segunda Etapa – Sondagem objetiva A partir desta pré-sondagem, foi elaborado o questionário (cf. Anexo no final do trabalho) que não pretendeu ser uma pesquisa em sentido estrito, mas uma sondagem com elementos mensuráveis. Foram encaminhadas 150 cópias para cada unidade (Americana, Campinas e Lorena). Retornaram respondidas 86 de Americana, 32 de Campinas e 56 de Lorena. Essa pesquisa resultou em 120 gráficos ( 30 com a visão geral, e 30 de cada unidade – Americana, Campinas e Lorena) que foram utilizados para análise do autor. Esses resultados encontram-se em anexo na biblioteca de Lorena e nos arquivos Históricos salesianos de Lorena, Barbacena e Roma. Há também uma cópia no IEV (Instituto de Estudos vale-paraibanos). O titulo destes resultados: “Resultado de Pesquisa – CUBO UNISAL 2010 – Subsidio para o trabalho O Ensino Superior no Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL – Discutindo sua identidade” – Dilson Passos Júnior 284 construir suas próprias consultas ad-hoc, no momento em que contempla novas e diferentes correlações nas dimensões do negócio, dão o foco da ferramenta para o ponto de vista analítico da atividade da empresa. Neste intento, as respostas não são automáticas: elas são construídas naquele momento, conforme a visão daquela oportunidade. O OLAP é a tecnologia utilizada para se ter uma visão dimensional dos dados na qual são modelados em uma estrutura conhecida por cubo. As dimensões do cubo representam os componentes dos negócios da empresa. A célula resultante da intersecção das dimensões é chamada de medida e geralmente representa dados numéricos como “unidades vendidas”, “lucros” ou “custos”. No exemplo anterior, a medida é o total 447 de vendas e as dimensões são o produto, o tempo (mês) e a região . Um segundo passo foi definir seis pontos para verificação: 1. A identidade dos entrevistados e seu relacionamento com o pensamento e a prática educacional salesiana antes de seu ingresso no UNISAL; 2. A procedência acadêmica dos alunos; 3. Em que nível se encontra seu contato e conhecimento com o conceito genérico de “salesianidade”. 4. Como o ambiente salesiano é percebido por esses alunos; 5. Qual o impacto deste ambiente salesiano nas suas vidas; 6. Quais disciplinas apresentam valores humanos e cristãos em consonância com a mundividência salesiana. 447 Figura 1: Visões Fonte: Gentia Software, 1998 de um Cubo – Análise de Dimensões. Cf. Ronaldo Luis de Souza PEREIRA. Tecnologia OLAP (On-Line Analytical Processing). Ferramenta OLAP. 2005. pp. 6 -7. TCC - FIAP - Faculdade de Informática e Administração Paulista. São Paulo. 2005. 285 Antes de analisar os resultados desta sondagem, é necessário levar em conta o histórico das cidades de Americana, Campinas e Lorena naquilo que podem interferir ou causar ruído. As cidades de Americana448 e Campinas449 tiveram historicamente um bom relacionamento com os salesianos. Tais cidades ao crescerem, naturalmente diminuiu a incidência social que os salesianos tiveram nos primeiros tempos. Em Campinas, o Liceu Nossa Senhora Auxiliadora com 114 anos de fundação450, é um referencial pela sua tradição e monumentalidade. A Escola Salesiana São José, com 59 anos de fundação451, e possuindo o maior Campus do UNISAL, não possui, porém, tal visibilidade. O Externato São João452, com seu principal prédio no centro da cidade e sua sede no bairro popular Vida Nova, é um referencial no que tange à assistência social. A presença salesiana numa cidade com mais um milhão de habitantes se dilui frente às universidades e empresas aí existentes. Em Americana, a visibilidade é maior por ser uma cidade de tamanho médio que, apesar de seu progresso, ainda guarda traços interioranos, o que, aliás, é uma das marca de boa parte das cidades do interior paulista. A cidade de Lorena guarda traços marcadamente provincianos, com seus 82.553453 habitantes, ladeada por cidades de porte semelhante454. Os salesianos455 são responsáveis por boa parte do seu progresso cultural, social e econômico 456. Essa 448 - 210.701 habitantes. IBGE - Censo de 2010. 449 - 1.080.999 habitantes – IBGE – Censo de 2010. 450 - 25 de julho de 1897. 451 - 25 de maio de 1952. 452 - 1909 sem data precisa. 453 - IGBE – Censo de 2010. 454 - Cachoeira Paulista, Cruzeiro, Piquete e Guaratinguetá. 455 - Deve-se lembrar que a presença salesiana está marcada na cidade por duas Escolas de Ensino Superior Salesianas: O UNISAL e a FATEA ligada às irmãs salesianas. Há presença salesiana com grande significado atendendo ao ensino formal ou a obras sociais nas cidades de Cruzeiro, Guaratinguetá e Pindamonhangaba. 456 - A presença salesiana na cidade aconteceu há 121 anos. O Oratório São Luís, que foi inicialmente escola agrícola, foi fundada há 116 anos. Dele se irradiaram vários serviços salesianos para a cidade. O PROVIM (projeto de Vida Melhor) que chegou a contar com cinco unidades 286 presença significativa pode comprometer a avaliação da incidência salesiana do UNISAL sobre as novas gerações, distorcendo resultados. Alguns critérios foram adotados457 para que essa sondagem não sofresse distorções ou que as sofresse o mínimo possível, optando-se pelos seguintes procedimentos. 1. A idade máxima dos entrevistados não seria além dos 25 anos e preferencialmente deveriam estar cursando pelo menos o segundo ano. 2. Não seriam incluídos alunos do Curso de Filosofia, pois a maioria deles estão ligados à Igreja católica como seminaristas ou como líderes de movimentos de jovens. 3. Não seriam incluídas pessoas ligadas às lideranças da pastoral universitária, porque, se se integram à pastoral em geral é, porque, já anteriormente estavam ligadas ao movimento salesiano em outras obras. 4. Não foram incluídos alunos que são funcionários e estagiários, porque suas escolhas eventualmente poderiam estar ligadas a algum movimento religioso, social ou educacional salesiano. O objetivo é atingir o “jovem comum”, permitindo minimizar a interferência de uma cultura católica praticante que poderia maquiar a real incidência das práticas pedagógicas no jovem universitário, pois se deve considerar que ele, mesmo de uma região conservadora, possui percepções e leituras de mundo para além de seu entorno social. Feitas essas considerações, acrescidas às peculiaridades já descritas das três cidades, pode-se agora partir para a análise dos resultados. Objetiva-se avaliar em que medida na presença do Ensino Superior dessas unidades, se consegue vivenciar e transmitir os princípios e valores salesianos, entendidos aqui como as práticas educativas na transmissão do mito fundacional e a incidência dele na vida dos egressos. localizadas em vários bairros da cidade com infra-estrutura completa e atendendo acerca de 1.200 crianças e jovens carentes; os oratórios festivos com atendimento nas periferias com nove unidades. 457 - Os mesmos critérios foram distendidos para Americana e Campinas. 287 Um primeiro ponto deve ser assinalado. Considerando que a pesquisa envolve jovens até 25 anos, no quesito, estado civil458, a taxa de 20% de casados459 contra 79% de solteiros460 e 1% de divorciados deve ser considerada alta. ESTADO CIVIL UNIVERISTÁRIOS UNISAL Casados Solteiros Separados 1% 20% 79% Deve-se levar em conta que parte destes jovens são oriundos das classes populares e ingressaram no ensino superior depois de empregados, quando buscam melhor qualificação que lhes permita ascender na profissão. Isto é confirmado pelo percentual de casados de Americana (28%), seguido do de Campinas (19%), onde há muitas indústrias. Nesta região há oferta de ensino superior em intituições federais e estaduais que, em geral, absorvem jovens da rede particular de ensino, enquanto que boa parcela dos egressos do ensino público se direcionam para o ensino particular, pois não possuem o mesmo grau de competitividade dos seus pares das escolas privadas. A maioria, não possuindo recursos familiares para financiar a própria educação privada, deve primeiro organizar sua vida financeira e 458 - Metodologicamente sempre se trabalhará em porcentagem com o resultado global das três unidades. Em nota serão dados os pontuais de cada unidade. Quando for necessário, os percentuais de cada unidade será trabalhado no texto principal. Um estudo completo desta sondagem encontrase com seus respctivos gráficos no SEDOC de Lorena na pasta do autor. 459 - Casados: - Americana 28%; Campinas 19%; Lorena 9% 460 - Solteiros - Americana 71%; Campinas 78%; Lorena 91%. 288 pessoal, incluindo não raras vezes o casamento, para posteriormente custear a própria educação461. Um aspecto relevante a se considerar é que 85% dos pesquisados não tiveram contato com o ambiente salesiano462. A Congregação atende a jovens que, antes de ingressarem no ensino superior, estão concentrados em três segmentos: nas escolas particulares, nas escolas profissionais gratuitas e nos oratórios festivos. Os alunos das escolas salesianas pagas, estão habilitados a competir por vagas em instituições universitárias públicas e privadas buscando aquelas que mais correspondam aos seus interesses, mesmo se distantes de suas residências. Os formados nas escolas profissionais gratuitas, devido às suas necessidades econômicas, partem de imediato para o mercado de trabalho em busca de subsistência, e, como os oratorianos, não possuem recursos para bancar o ensino privado. Apenas 15% dos alunos do Centro Universitário tiveram contato com a pedagogia salesiana. Isso representa que o quesito “salesianidade” é desconhecido para a maioria dos ingressantes. Se essa situação enfraquece, de um lado, o início do processo de formação salesiana, de outro 461 - A maioria dos alunos estão no período noturno, pois devem trabalhar. 462 - Americana 90%; Campinas 91%; Lorena 85%. 289 porém, o fato de ser pequena a presença de alunos formados em sua adolescência pela Sistema Preventivo permitirá, neste estudo, perceber qual a real incidência da pedagogia salesiano sobre os alunos do Ensino Superior. A motivação para estudarem no UNISAL está fundamentada no interesse pelo curso por parte de 74% dos entrevistados463. A proximidade de casa é o motivo de 9% das opções e o custo em 6%. O fato de ser uma escola salesiana pesou pouco na opção da escolha. Em Americana isso influenciou em apenas 5% dos entrevistados e em Lorena 4% . Como 85% dos jovens não possuíam contato com o universo salesiano, é óbvio que essa opção não é afetiva e, apesar de serem de uma região com forte incidência salesiana, isso não foi significativo para boa parte desses jovens para sua opção e nem foram influenciados, mesmo quando seus pais e avós têm laços com a congregação. 463 - Americana 77%; Campinas 62%; Lorena 78%. 290 Um resultado que mostrou descompasso foi o de Campinas que atribui à escolha “por ser uma escola salesiana” o percentual de 16%, quando 91% dos alunos declararam que nunca tiveram contato com o universo salesiano. Este descompasso de porcentual pode ser explicado porque, antes da unificação das unidades, a então FASTEC464 gozava de reconhecimento na área de tecnologia pelos seus laços com o Vale do Silício nos Estados Unidos e suas parcerias com as maiores indústrias multinacionais da região. No ambiente industrial, os termos “FASTEC” e “Salesianos” se correspondiam na linguagem comum e, portanto, “estudar nos salesianos” era uma forma de se dizer que se fazia essa faculdade de tecnologia. Isto será demonstrado adiante no cruzamento de novos dados. Quanto à avaliação da existência de salesianidade nesta pesquisa, tomou-se cuidado no cruzamento de informações para que um termo tão amplo não gerasse ambigüidades. Para sondar esse quesito foram feitas questões com os seguintes conteúdos: 1. Se havia conhecimento dos princípios educacionais salesianos; 2. Se Dom Bosco era conhecido; 464 - Faculdade Salesiana de Tecnologia. 291 3. Se sabia algo sobre a vida de dom Bosco; 4. Se havia conhecimento do Sistema Preventivo. Se 85% dos alunos não freqüentaram o ambiente salesiano, é obvio que desconhecessem essas questões. Deve-se, porém, considerar que logo que ingressam na faculdade, a Pastoral promove uma semana de recepção e integração dos calouros, quando são apresentados os cursos e os princípios que regem a instituição com palestras, filmes e documentários, dando-se destaque para a figura do fundador. Isto faz com que alguns termos comecem a fazer parte do vocabulário dos ingressantes, como salesianos, dom Bosco, razão, religião e bondade. Os percentuais ficam acima de cinqüenta por cento: 67% declaram conhecer os princípios salesianos465 e 62% conhecer Dom Bosco466. A última questão no âmbito da salesianidade, porém, dirime a dúvida, quando se pretende auferir para além das percepções imediatas. Quando se questiona se conhecem o Sistema Preventivo de Dom Bosco467 as coisas se invertem, pois este é um conhecimento especializado e supõe iniciação. 59% em Americana, 28% em Campinas e 30% em Lorena afirmam desconhecê-lo. Indo além, quando se procura verificar na pesquisa com os que afirmaram positivamente de onde vieram as informações sobre salesianidade e a vida do fundador 36%, em Americana, 59%, em Campinas e 74% em Lorena, afirmam não ter lido nenhum texto que narrem sua vida. Estes dados são reveladores, porque o que sustenta uma instituição é o Mito Fundacional, quando se narram “as origens” e “como tudo começou”. Portanto, “conhecer Dom Bosco” como responderam os pesquisados de Lorena com a alta porcentagem de 74%, representa apenas a visualização de sua estátua, pronunciar o nome e conhecer duas ou três frases-chavões e alguns fragmentos de sua vida. O filme468 de Dom Bosco469 é a principal fonte de conhecimento por 23% de Americana 465 - Americana 63 %; Campinas 41%; Lorena 83%. 466 - Americana 63%; Campinas 41%; Lorena 74%. 467 - Responderam “não”: Americana 59%; Campinas 66%; Lorena 30%. 468 - Dois filmes recentes tiveram grande repercussão na Itália e no ambiente salesiano mundial: Dom Bosco, Leandro Castelani, Itália, RAI, 1988; e Uma Vida para os jovens, Ludovico GASPARINI, Itália, RAI, Itália, 2007. Cf. DON BOSCO. Direção: Leandro Castellani. Atores: Philippe Leroy, Leopoldo Trieste, Raymond Pellegrin, Edmund Purdom, Rick Battaglia, Ben Gazzara, Laurent 292 e 22% de Lorena contra apenas 6% de Campinas. Outros instrumentos de conhecimento sinalizados são assuntos de aulas, palestras, documentários 470. O acesso a fontes que apresentem a vida e o pensamento de João Bosco não é considerável como mostra a tabela: UTILIZAÇÃO FONTES PARA O CONHECIMENTO DE DOM BOSCO PELOS ALUNOS UNISAL Não teve nenhum contato Foi assunto de aula Participou de Palestra Só viu o filme Já viu mais de um filme Assistiu documentário Já leu um livro Nulo Já leu mais de um livro Americana 36% Campinas 59% Lorena 74% 13% 19% 43% 15% 13% 20% 23% 0% 6% 0% 22% 2% 8% 0% 7% 2% 1% 2% 0% 0% 3% 2% 0% 0% A Unidade que menos informações oferecem – talvez porque voltada para a área tecnológica – é Campinas. Verifica-se assim que, apesar de todo o esforço da instituição de popularizar a vida do fundador, ela de fato é desconhecida pela maioria dos alunos. Terzieff, Patsy Kensit, Karl Zinny, Pierluigi Misasi, Piera Degli Esposti, Luca Lionello. Gênero: Biográfico. ITÁLIA: RAI, 1988. (96 min). UMA VIDA para os jovens. Direção: Ludovico Gasparini. Atores: Flavio Insinna, Lina Sastri, Charles Dance. Gênero: Espiritual. . ITÁLIA: RAI, 2007. (146 min). 469 - Muitos filmes foram lançados na Itália sobre Dom Bosco que é muito popular neste país. Os primeiros filmes são em preto e branco. Os dois ultimos foram lançados pela televisão estatal RAI tendo sido exibidos em rede nacional com alto índice de audiência e posteriormente reproduzidos em todo o mundo. 470 - A cada mês é lançado em nível mundial um documentário sobre a presença salesiana em algum lugar do mundo ou tratando de algum tema específico de salesianidade. As versões são distribuídas com as opções dos seguintes idiomas: Italiano, Inglês, Espanhol, Frances, português, alemão e polaco. Há publicações também em mesmo nível impressas pela agência internacional ANS (Agência de Noticias Salesianas). 293 A Pastoral é um dos principais espaços de divulgação e manutenção do ideário salesiano. O termo Pastoral possui, na sua configuração inicial, sentido religioso. Na Bíblia, no Antigo Testamento, Deus é apresentado como o pastor do povo. No Novo Testamento Jesus associa essa imagem a si como o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas. Este termo assumiu o sentido do cuidado espiritual pelas “almas” e a preocupação com sua salvação. Nas escolas confessionais a pastoral é o braço religioso institucional. Este sentido nem sempre é percebido pelos destinatários e mesmo por seus agentes. No UNISAL a pastoral possui uma significativa atuação nos eventos. Os calouros são recebidos por ela com eventos lúdicos para integrá-los no ambiente universitário. Nem sempre os funcionários da pastoral possuem vida religiosa convicta, conhecimento de salesianidade e vida pessoal coerente com os princípios do cristianismo, havendo naturalmente descompasso entre os objetivos deste departamento e o pessoal que o assume. Para os alunos novos, os membros da pastoral são identificados como promotores de eventos sociais, campeonatos esportivos, manutenção de espaços com jogos e de uma “sala de estar” para convivência. Essas ações sociais e lúdicas são parte da pedagogia salesiana, concebidas, porém, como preâmbulo de uma ação mais profunda que deveria ser, organicamente, planejada, com a finalidade de implantar um clima salesiano no ambiente. Na maioria das vezes este setor fica numa proposta genérica e imprecisa quanto à sua identidade cristã e salesiana. Isto pode ser verificado quando se questiona se os alunos conhecem a finalidade da Pastoral: 59% em Americana, 66% em Campinas e 37% em Lorena afirmam desconhecer “para que serve e o que é”. 294 ALUNOS DO UNISAL E O CONHECIMENTO DA FINALIDADE DA PASTORAL AMERICANA CAMPINAS LORENA Quando se questiona se “freqüentam a pastoral”, entendida neste caso como seu espaço físico, entre “não e raramente” declaram-se como não freqüentadores deste ambiente 90% dos alunos em Americana, 66% em Campinas e 67% em Lorena 471. Merece destaque notar que o departamento de pastoral é minúsculo em relação à população global de estudantes de cada unidade,472 possuindo pessoal e recursos reduzidos. O único sacerdote, teoricamente disponibilizados para ela em cada unidade, é o ecônomo, absorvido integralmente pelas funções administrativas. Na Carta de Roma, João Bosco criticara aqueles salesianos do seu tempo que não interagiam com os educandos. Esse relacionamento, mais do que um encontro superficial, é entendido pelo fundador como contatos diários, 471 significativos e - Nesta última unidade deve-se considerar que as mesas de jogos estão no pórtico, sendo este trecho conhecido como “pastoral” e que é uma das passagens para a cantina, portanto a “maior freqüência” deve ser entendida também como passagem por ele e alguma eventual parada. 472 - Lorena 2 funcionários; Americana 3; Campinas 2. 295 elevados ao grau de pedra angular do seu sistema educativo. Dos alunos entrevistados, 77% de Americana, 72 % de Campinas e 26% de Lorena afirmam que nunca tiveram contato ou conversaram com os salesianos. Contato com os salesianos Geral 296 Visão nas três Unidades CONTATO DOS UNIVERSITÁRIOS COM OS SALESIANOS = POR UNIDADE = AMERICANA CAMPINAS LORENA Este aspecto, por si, só compromete na raiz o projeto do fundador para quem era exatamente o relacionamento pessoal qualificado a chave de seu projeto educativo. Neste caso o termo “nunca” representa um elemento que atinge na essência esse projeto educacional. Mesmo quando se afirma que se mantém “algum contato formal473”, esta informação não alivia o problema da falta de um relacionamento pessoal474. 473 474 - 8 % em Americana, 6% em Campinas e 42 % em Lorena - Apenas afirmam que possuem “algum” contato de Amizade 14% em Americana, 22 % em Campinas e 30 % em Lorena é um dado que mereceria um aprofundamento de se medir a qualidade, o que neste caso não convém aprofundar nesta visão panorâmica, pois demandaria detalhada pesquisa. 297 Estes resultados demonstram o distanciamento dos salesianos de seus destinatários enquanto devem responder cada vez mais às exigências burocráticas e administrativas do UNISAL frente ao crescimento das obras, situação que é ainda mais agravada quando se leva em consideração que nas três cidades as comunidades possuem apenas dois ou três salesianos jovens ou de meia idade475, sendo os restantes idosos e doentes. Essa presença difusa dos salesianos coloca em xeque a pedagogia da presença como elaborada por João Bosco, quando 33% dos alunos afirmam não conhecer nada da congregação salesiana476, ainda que 47% afirmem possuir alguma simpatia477. Este distanciamento dos religiosos dos destinatários não impede que nos ambientes ainda se percebam valores salesianos a partir de professores e funcionários. O ambiente de família é reconhecido por 58% dos alunos478, enquanto que 72% afirmem que há acolhimento479 e em nível profissional 88% reconhecem um 475 - Em Americana são três salesianos jovens que devem responder pelo Centro UNISAL, pelo Colégio, por obra social e pela paróquia. Além disso, devem responder por dimensões administrativas. O mesmo sucede em Campinas onde apenas dois salesianos jovens devem atender ao Centro Universitário, ao colégio, à Escola profissional e a uma capelania. No caso de Americana, o principal contingente, constituído por alunos que saem do trabalho e ingressam na faculdade, muitas vezes vindos as cidades vizinhas. O mesmo acontece com Campinas além dos alunos que chegam do trabalho, há também um campus que por ser bastante grande favorece a dispersão. Em Lorena, os salesianos jovens são três e um idoso. 476 - Americana 31%; Campinas 41%; Lorena 24%. 477 - Americana 39%; Campinas 41%; Lorena 24%. 478 - Ambiente de Família Sim Não Indiferente Nulo Geral 58% 12% 21% 8% Americana 61% 9% 23% 7% Campinas 47% 12% 22% 16% Lorena 59% 17% 18% 6% Americana 61% 9% 23% 7% Campinas 63% 12% 12% 13% Lorena 79% 4% 13% 4% 479 - Ambiente de acolhimento Sim Não Indiferente Nulo Geral 72% 5% 16% 7% 298 ambiente de responsabilidade480 e 86% de seriedade481. Percebe-se com isso que alguns valores da salesianidade subsistem na prática cotidiana da instituição, apesar do distanciamento dos salesianos pelos motivos já aduzidos. Os alunos reconhecem que o ambiente possui influência nas suas vidas profissional, familiar e social482. A partir dos resultados obtidos nesta sondagem, é possível apresentar algumas considerações que, confrontadas com o Mito fundacional em sua trajetória histórica da Itália até o Brasil, permitem tirar algumas conclusões para avaliar a Identidade Salesiana do Centro UNISAL. A congregação salesiana nasceu em meio a desafios quando se fazia na península itálica a transição do modo de produção feudal para o industrial com contestações radicais à Igreja. Neste contexto ela conseguiu não só sobreviver, mas crescer e ter o apoio, mesmo de alguns opositores do papado, que reconheciam nela ações que sanavam sérios problemas sociais gerados pela industrialização e também apresentava resultados, ao diminuir a violência com a educação das classes populares marginalizadas e oferecia às indústrias mão de obra qualificada e trabalhadores com formação ética e cidadã. 480 - Ambiente de responsabilidade Sim Não Nulo Indiferente 481 Americana 87% 0% 6% 7% Campinas 84% 0% 3% 13% Lorena 91% 0% 7% 2% Americana 84% 0% 9% 7% Campinas 78% 0% 9% 13% Lorena 94% 0% 4% 2% - Ambiente de Seriedade Sim Não Nulo Indiferente 482 Geral 88% 0% 6% 6% Geral 86% 0% 8% 6% - Acredita-se, porém que isso é um resultado natural para jovens que ingressam no ensino superior, sendo difícil sem uma pesquisa mais acurada saber até que ponto a salesianidade interfere nestes aspectos. Portanto acredita-se não ser possível avalizar sem uma pesquisa de campo detalhada até que ponto essas mudanças nasceram naturalmente do ambiente universitário ou foram resultado da pedagogia salesiana. 299 Seu transplante para o Brasil foi marcado pela rejeição de liberais do Rio de Janeiro e Niterói, que temiam “esses frades modernos” que, de braços dados com o processo industrial, representavam, porém, o obscurantismo religioso e papista. Apesar dos ataques pela imprensa e hostilidades sofridas em ambientes públicos, a congregação não só se implantou em Niterói, mas logo a seguir migrou para São Paulo, participando da industrialização desta capital, ao preparar mão de obra qualificada a partir da Escola de Artes e Ofícios no então aristocrático bairro de Campos Elíseos. Em pouco mais de duas décadas suas escolas profissionais se espalharam por várias regiões do Brasil. Esta expansão não foi só religiosa, mas atendeu às demandas de modernização do país. Vale recordar, à guisa de exemplo, que a escola salesiana São José de Campinas foi capaz de a cada década se adequar às mudanças econômicas da “Princesa do Oeste” na sua rápida passagem da produção agrícola para a industrial e, posteriormente, tecnológica. Hoje o ensino superior se torna um novo desafio. Como salvaguardar os valores da educação salesiana frente a um mundo em avanço tecnológico estonteante, com mudança de costumes e de valores que abalam não só as bases do cristianismo, como da própria família e da sociedade? Esta sondagem revela hoje o descompasso entre o projeto salesiano construído desde a fundação e transplantado para o Brasil e o ambiente do ensino superior implantado junto dos espaços dos antigos colégios. Os jovens que circulam pelos centenários pórticos de Lorena ou pelas modernas construções de Americana ou Campinas são filhos de um novo tempo que não têm mais no cristianismo e na família tradicional o seu referencial de vida. Se, em tempo recente, a televisão e os meios de comunicação social tiveram influência sobre a mentalidade das novas gerações, através de uma globalização passiva, hoje a força das redes sociais é inquestionável enquanto permite interação entre seus usuários com o confronto de opiniões e pontos de vistas colocados sob o crivo de novas visões e outros pareceres. Até a década de 1970 os salesianos tiveram nos pátios, nos pórticos, nos campos, nas piscinas, no teatro e na música elementos de atração da juventude. Essas “ferramentas” estão suplantadas pelos espaços públicos de recreações, pelos 300 clubes, pelos mega-shows internacionais, pelas atividades sedentárias diante das telas de computador. Eram elementos atrativos que perderam seu encanto. Os pátios envolvidos pelo amplexo dos pórticos possuem o rosto do passado. E, mesmo jovens que buscam a experiência religiosa, sentem nas propostas dos salesianos algo sem intensidade. Se a sensação exacerbada que parte dos jovens busca nos canhões de luzes, no som elevado, nas experiências sensoriais, nos esportes radicais, no álcool e nas drogas, a procura de sensações está nestes mesmos jovens quando buscam o espiritual como experiência sensitiva e emocional, como nos barulhentos encontros de oração de inspiração pentecostais, em que prevalece o sensível, o epidérmico, o labial e o maravilhoso. Tanto no âmbito profano como religioso, paradoxalmente, as sensações exacerbadas é que contam. Projetos de espiritualidade reflexiva, conscientizadora e libertadora são “produtos” descartados por significativos segmentos das novas gerações nas quais o sentir precede o racionalizar, quando não o substitui. Para as gerações atuais, o verbo “experimentar” e o substantivo “experiência” fazem parte, mais do que do seu vocabulário, de sua mentalidade. Viver experiências na educação, na família, com os colegas, na afetividade, na sexualidade, na religião, nas drogas, na busca mística de um sentido da vida é um modo de ser. As experiências se sobrepõem e se substituem. Trabalhar “princípios pétreos” na educação é uma proposta “fora de tempo”. No plantel de opções apresentados pela sociedade, os “salesianos” não ocupam hoje mais aquele lugar de destaque que possuíam no final do século XIX e início do XX, mas são apenas mais um entre os tantos que se colocam como proposta educacional. É passado o tempo em que a Igreja era o centro do povoado, a escola a educadora e a família o referencial de valores. Esses antigos referenciais são apenas facetas do todo religioso, educacional e familiar. Há elementos da educação salesiana difíceis de serem apreendidos pelas novas gerações porque não fazem parte do seu cotidiano e de sua formação. O modo de ver o mundo e situar-se nele a partir da ótica salesiana fica difícil de ser incorporado nos estudantes, como já foi afirmado, quando 85% deles adentram na faculdade sem nunca terem tido contato com essa experiência educacional e 74% estão 301 preocupados com o curso que lhes dará o diploma, pouco se importando com matriz ideológica institucional com seus princípios e valores. O nó górdio da situação fica insolúvel quando há desconhecimento desses princípios salesianos por docentes, com reflexos no corpo discente, desconhecendo-se os princípios do fundador e o sistema preventivo, mesmo quando tenham sido mencionados em palestras, apresentados em filmes e documentários, que estão longe de serem absorvidos como princípios na prática pedagógica. Para os alunos o que se conhece de salesianidade no início dos cursos é mais uma informação numa semana poluída de notificações e quando a mente dos novos universitários está ansiosa por desvendar esse novo mundo e quando poucas informações se fixam com profundidade. Mesmo a formação dos princípios religiosos pode se tornar um simulacro, quando não assume o caráter de uma força propositiva, mas mera informação na medida em que os projetos idealizados pelo fundador não conseguem ter uma força desestabilizadora sobre a vida dos educadores e, por conseqüência, dos educandos. Isto é bem explícito quando a congregação salesiana é vista pela maioria dos educandos como “um negócio bem sucedido dos padres” que lhes garante riqueza e poder. Tem-se aqui um problema. Mito, Rito e Símbolo. Três elementos delimitados e conceituados no início deste trabalho como instrumentos para avaliar as instituições. Vale a pena transcrever a definições iniciais deste trabalho. O Mito é a narração da vida, dos ditos e feitos do fundador e de seus primeiros discípulos. Não é, porém, uma narração feita uma única vez como numa comunicação, mas é sempre narrada, porque aquele evento fundacional do passado se torna sempre presente na comunidade que o assume. Os iniciados ouvem com unção a história de como tudo começou. Esse resgate tem não só a função de memorial, mas de entendimento do “agora” da Instituição. Perder esse referencial histórico é perder a própria identidade, pois, os seguidores devem entender que são 302 continuadores do fundador. O mito é um fato do passado que se atualiza pelo Rito483. O Rito é a atualização do Mito que “indo” ao passado, atualiza a experiência fundante tornando-a presente aqui e agora no hoje, sendo, portanto, não só evocativo, mas também celebrativo. É a atualização do ontem no hoje, quando tomamos consciência que “nós” somos a continuação da mesma história. O cerimonial integra e dá unidade ao passado e ao presente quando temos consciência que não somos meros observadores, mas protagonistas desta história. Nas celebrações religiosas, à guisa de exemplo, a divindade sai de sua transcendência e está “aqui” no rito interagindo com seus crentes ouvindo-os e atendendo-os. Em Instituições não religiosas o cerimonial também diz a mesma coisa: os sonhos dos fundadores não ficaram no passado: somos este sonho tornado realidade, não havendo entre o fundador e seus discípulos o vácuo do tempo. O ontem é o hoje em nós. Daí a necessidade de uso de roupas e insígnias que indiquem que o membro da comunidade transcende a sua própria individualidade484. O Símbolo é o que nos faz remontar e lembrar a experiência do fundador por sinais. O vestir-se e o envolver-se de símbolos representa conectar o hoje com o ontem. O paramentar-se, não só no sentido religioso, significa dar identidade ao Rito indicando a fonte de onde se vem. O Símbolo é um referencial ao Mito inicial. Mesmo as construções são sinais de uma determinada Instituição que procura se impor pela grandeza, esplendor e majestade para assinalar o que representam485. Afirmou-se que uma instituição entra em crise quando o Mito não narra mais, o rito não celebra mais e o símbolo não simboliza mais, sendo seus possíveis fins a morte, a re-fundação ou a sua reconfiguração em nova instituição, em “outra coisa”. João Bosco colocara na Bondade o primeiro e inequívoco passo na conquista afetiva dos educandos, que não aconteceria num encontro casual, mas, na convivência, no 483 - cf. p. 26 484 - cf. p. 27 485 - cf. p.27 303 estar junto, no partilhar a vida num misto de amizade, companheirismo, fraternidade e paternidade. Ele sintetizara essa “química de relacionamento” numa abordagem revolucionária para o seu tempo: “o fazer-se amar”. A palavra “amor” representa relacionamento constante, cotidiano e pessoal demandando tempo para que o jovem decodifique que é objeto dele. Daí essa pedagogia ser definida como Pedagogia da Presença. Quando se constata nesta sondagem que 77% dos jovens de Americana, 72% de Campinas e 26% dos de Lorena afirmam que nunca tiveram contato ou conversaram com salesianos e que, mesmo em Lorena onde se possui um índice favorável, posteriormente, 42% dos jovens afirmam que possuem algum contato formal, isto representa um primeiro problema na materialização dessa pedagogia. O termo “nunca” mostra um distanciamento irreparável porque não oferecerá sequer a possibilidade de um relacionamento social, ainda que superficial. É uma distância infinita e insuperável para se começar uma construção afetiva que se torne educadora. O Mito é a narração afetiva da experiência fundacional, da vida e peripécias do fundador. Quando se questionam os pesquisados se conhecem a vida de Dom Bosco, apesar das palestras e dos filmes assistidos quando calouros, 36% em Americana, 41 % em Campinas e 74% em Lorena afirmam que não tiveram nenhum contato, apesar de terem antes respondido conhecer os princípios salesianos486. Quando, porém são questionados se conhecem o sistema Preventivo, 59% em Americana, 66% em Campinas afirmam desconhecê-lo, enquanto que 25% em Americana e Campinas ficam na ambígua posição de conhecer “alguma coisa”. Sem o mito fundacional falta sustentação de toda elaboração educacional. Não se trata de dizer que “O Mito não narra mais”, mas de dizer, o “Mito não narra”, porque não é narrado, e, se não o é, não existe como referencial de vida e nem de educação. Sem isso a obra já é, repete-se, “outra coisa”. É um desdobramento natural que Cursos de Lorena como Pedagogia e Informática tenham um perfil essencialmente tecnicista e o curso de Engenharia de Produção apresente menções na dimensão humanística e ética, mas nenhuma referência à cidadania, salesianidade e cristianismo. Formar bons cristãos e honestos cidadãos é uma frase 486 - Americana 68%; Campinas 41%; Lorena 83%. 304 que se perde em pios desejos nos discursos institucionais, mas que não possuem significado na construção do homem egresso destes cursos. O Rito é essencialmente celebrativo, é festa, alegria e atualização. Ele traz para o hoje a experiência fundante. Se a pastoral tem uma finalidade de anuncio, ela é por excelência um espaço celebrativo. Quando 90% em Americana, 66% em Campinas e 67 % em Lorena afirmam que não ou raramente freqüentam a pastoral, e aqui entendida apenas como um espaço físico, pode-se dizer que o Rito não celebra mais. Finalmente, a monumentalidade dos antigos e modernos prédios não falam para a maioria das pessoas de algo feito para os jovens, mas simbolizam, no imaginário da maioria das pessoas, poder econômico. O símbolo não simboliza mais. Estes são desdobramentos lógicos dos princípios elaborados e posteriormente constatados na práxis da pedagogia salesiana. A descrição cristalina de João Bosco nos seus escritos sobre o Sistema Preventivo e na Carta de Roma, não permitem interpretações ou exegeses sobre seu pensamento. Qualquer aggionarmento do seu pensamento para o século XXI não pode trair os fundamentos de sua pedagogia apoiada na presença, razão, religião e bondade; pode-se até substituir esses fundamentos se construindo algo, até melhor, mas será “outra coisa”. Deve-se destacar, porém, que a sondagem capta a permanência de valores salesianos nos ambientes, quando 63% dos alunos afirmam que o UNISAL é melhor que as outras faculdades487; 58% afirmam existir um ambiente de família488 ; 72% um ambiente de acolhimento 489 ; 86% afirmam existir seriedade490 e 88% responsabilidade491. 487 488 - Americana 60%; Campinas 53%; Lorena 72%. - Americana 61%; Campinas 47%; Lorena 59%. 489 - Americana 61%; Campinas 63%; Lorena 79%. 490 - Americana 84%; Campinas 78%; Lorena 94%. 491 - Americana 87%; Campinas 84%; Lorena 91%. 305 Esses elementos supracitados mostram que, apesar do crescente distanciamento dos salesianos do cotidiano da obra e na pouca formação de novos leigos como educadores salesianos, muitos valores ainda permanecem. Especial destaque deve ser dado para Lorena, onde parte dos professores, funcionários dos setores administrativos e de manutenção viveram sua infância, adolescência e juventude em obras sociais dos salesianos, o que lhes permitiu que valores salesianos se integrassem em suas vidas. Pessoas idosas, quando se recordam da educação que tiveram, mais do que falar de espaços e eventos, falam uma lista de nomes de velhos salesianos que fizeram parte de suas vidas. Os índices em Campinas são menores porque, como cidade grande, parte de seu pessoal, ainda que tendo sido “treinado” dentro dos padrões salesianos, não vivenciaram isso na educação de sua juventude. Os desafios do UNISAL têm sido objeto de preocupação da congregação. A fundação das IUS foi o primeiro passo para reverter essa situação com princípios que norteiem o ensino superior. Em São Paulo a reforma regimental da universidade, se de um lado enfraqueceu a incidência dos salesianos com a extinção do cargo de diretor de unidade, de outro pretendem que os salesianos estivessem desimpedidos de outros encargos para atuarem na pastoral. Cresce a preocupação da formação de novos salesianos especificamente para o Centro Universitário onde seriam professores de carreira. Em São Paulo foram lançados os primeiros números do Caderno de salesianidade492 com o objetivo de discussão em nível acadêmico do pensamento salesiano, com publicações de autores nacionais e internacionais. No campo leigo a Pastoral está sendo entregue a pós-graduandos que estão se especializando em salesianidade com vários cursos internacionais. Há a proposta do padre Natale Vitali responsável na congregação para a América Latina – Cone sul493 - que se dê ao coordenador de pastoral o status igual ao de coordenador de curso. 492 - Indexado: ISSN 2178-0242. 493 - Brasil Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. 306 É importante que a pastoral seja sempre considerada como uma das prioridades neste trabalho; por isso é preciso contratar uma pessoa leiga 494 que assuma a pastoral, no nível de coordenação . São projetos incipientes, mas que visam re-configurar a presença salesiana frente aos desafios do ensino superior, salvaguardando não as práticas do fundador no século XIX e de seus seguidores do século XX, mas antes, resgatarmos os critérios educacionais que o seguiram ao longo de sua vida. Afinal, ao emergir da idade média, João Bosco teve que se confrontar com desafios. E este é o caminho de toda e qualquer escola educacional: ser capaz de dar respostas adequadas aos sempre novos tempos. 494 - VITALI, Natale. Ata da visita Extra-ordinária. Roma: Arquivo Central da Congregação, Via della Pisana 1111, 30 de março de 2011b. 307 CONCLUSÃO A gloriosa Cidade de Deus que no presente decurso do tempo, vivendo da fé, faz sua peregrinação no meio dos ímpios, que agora espera a estabilidade da eterna morada com paciência até o dia em que será julgada com justiça, e que graças à sua santidade, possuirá então, por uma 495 suprema vitória, a paz perfeita . A Gloriosa Cidade de Deus... Agostinho no De Civitate Dei não somente dá sentido à queda do Império Romano, mas elabora também uma chave explicativa para o devir do cristianismo ao longo de sua história: polarizam-se duas cidades, a dos homens, profana e a de Deus, sagrada. No século XIII os racionais, a partir da universidade de Paris, desbancaram o pensamento do hiponense como chave explicativa da realidade, dando primazia ao racionalismo escolástico. Nos séculos seguintes o tomismo será posto sucessivamente na berlinda pelo iluminismo, positivismo, materialismo, modernidade e pós-modernidade. Tais correntes, porém não se substituem, mas coabitam, ora interagindo, ora se rejeitando. Apesar das muitas opções filosóficas existentes no “inconsciente filosófico” de muitos pensadores cristãos, travestidos de modernos, ainda ecoa, qual sombra ou “neurose filosófica”, que se manifesta em atos falhos ao pensar como os tradicionais, o martelar incomodo e estressante dessa expressão perdida na penumbra dos séculos, mas que ainda assombra como fantasma os seus inconscientes de cristãos desencanados do século XXI: a gloriosa cidade de Deus... sob a fachada de um discurso liberal querem no fundo a implantação do cristianismo. É um modo de pensar e ver o mundo que, mesmo os progressistas, não conseguem se libertar, pois anseiam que a sociedade seja organizada a partir de princípios e valores cristãos. Intelectualmente Bosco transitou entre o pensamento platônico-agostiniano e o aristotélico-tomista, assistindo ao desmoronamento econômico, político, social, religioso e moral do seu tempo. Ao adentrar a cidade dos homens, o fez para implantar a Cidade de Deus. Ao integrar-se na corrente reformuladora da 495 - SANTO AGOSTINHO, 1996, p. 97. 308 modernidade o fez para salvaguardar os valores do cristianismo. Sua vida foi um ato de resistência cultural e religiosa, quando lideranças da sociedade se distanciavam não apenas da cristandade, mas também do cristianismo, que, ao perder espaço e controle ideológico da sociedade, não se rendia. Este também foi o espírito que marcou seus discípulos dos primeiros tempos. Não desanimar frente aos desafios dos novos tempos, mas enfrentá-los, mesmo se utilizando as armas da cidade dos homens, para manter a cristandade: Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat!... Os salesianos integraram na sua cultura organizacional o moderno. Ainda hoje em países do terceiro mundo, marcados pela pobreza, alavancam a economia e a promoção humana por meio de obras sociais e educacionais, determinantes para o progresso de algumas dessas nações. Empresas multinacionais entregam-lhes vultosas quantias para a promoção dessas sociedades, quando se negam a contribuir com quaisquer valores a governos constituídos, por não serem considerados idôneos. Essa presença, respeitada por empresas e por governos por sua ação educacional e social, não pode ser vista, porém, como uma simples organização de benemerência. Tais ações são conduzidas por religiosos atrelados à igreja por votos e consagração religiosa e cujo sentido da própria existência é a pregação do Evangelho e a conquista de novos membros para a grei católica. Esta visão desnudada das instituições religiosas deve ser considerada mesmo quando atuam na sociedade por meio de suas organizações filantrópicas e educacionais que são, em última análise, o braço social e educacional da religião na buscam de prosélitos, mesmo quando afirmem querer apenas o “diálogo” com a cultura. Organizações nascidas de instituições confessionais nascem de uma matriz que não abre mão de sua finalidade primeira que é atrair para seu seio mais novos adeptos. Os salesianos ao se expandirem pelo mundo o fizeram nessa ótica. Provavelmente não terão tido consciência que estivessem engajados num bem arquitetado plano de Pio IX de romanização do orbe católico. Independente disto, porém, foram um importante pelotão de ocupação das terras americanas onde a fé, dita católica, vivenciava um cristianismo patriarcal apoiado no padroado e beneplácito, passava 309 pelo catolicismo iluminista e liberal e terminava no catolicismo popular sincrético e autônomo. Essa identidade explícita de fidelidade incondicional ao papado e, portanto à Igreja Católica Romana, deve ser apreendida sem pudor para que se possa entender o que significaram as faculdades salesianas de Lorena, Campinas e Americana. O Professor Francisco Sodero, membro do Instituto de Estudo Vale-paraibanos (IEV), ao realizar o Estudo da Faculdade Salesiana de Lorena afirma, quando de sua fundação em 1952: Nascia mais uma instituição de nível superior de caráter privado e católica. Ligada, portanto, ao projeto de Igreja, formulado no bojo dos processos de romanização e de restauração, com total unidade com o Vaticano e obediência ao papa e à Cúria Romana. Um projeto que pretendia, por intermédio do ensino superior, formar uma elite capaz de conduzir as massas dentro dos princípios católicos. (...) Os salesianos, em seu movimento educacional, buscavam a disciplina moral, o rigor intelectual e a 496 total afinidade com os superiores da Ordem e com o Vaticano . A Faculdade de Americana, apesar de fundada em 1972 após a publicação da lei 5.540/68, que foi uma intervenção do golpe militar no ensino superior, impondo um modelo tecnicista, manteve a tradição humanista salesiana na sua organização. O mesmo já o fizera Lorena que, apesar de adequar-se às exigências governamentais, não abriu mão de seu lastro humanista-cristão-salesiano. A faculdade de Campinas, aprovada em 1980, mas só aberta em 1987, contando com uma significativa presença de salesianos irmãos, com menor formação filosófica e teológica, esteve mais aberta à adoção do modelo tecnicista que correspondia às suas práticas docentes. Em 1907 Pio X vira no modernismo um grande perigo para a igreja, quando este pensamento ameaçava não só as fronteiras da religião, mas já as tinha ultrapassado, instalando-se no seio da igreja. Linhas conservadoras da Igreja utilizavam a imagem do cavalo de Tróia na cidade de Deus, querendo alertar que essa mentalidade havia se infiltrado inclusive no meio do clero. Com razão o papa exigirá de todos os bispos, sacerdotes, religiosos e seminaristas que professem o 496 - TOLEDO, 2003, p. 63. 310 juramento anti modernista. As novas idéias, porém, avançaram pelas décadas seguintes. O pensamento e as obras de Teilhard de Chardin foram objeto de inúmeras retaliações. Ele entendia que o catolicismo não deveria temer as mudanças do mundo moderno. Como paleontólogo e membro da comunidade científica internacional, realizou o esforço de aproximar Ciência e Teologia. Apesar da atualidade e a aceitação de suas obras por parte de intelectuais católicos da época, viveu sob pressão da igreja que o retaliou tirando-lhe a cátedra de Paris e mandando-o para o oriente. Quando enfim o Vaticano II inicia o processo de abertura para o mundo moderno 497 forças conservadoras reagem. Neste sentido destacou-se a obra de Dietrich von Hildebrand498, denominado por Pio XII como doutor da Igreja do século XX, no seu livro Trojan Horse in the City of God499 em que apresenta o que entende como sendo uma ameaça para a Igreja: Para muitos católicos que se dizem progressistas, as atividades puramente humanitárias e as instituições sociais são mais atraentes do que a santidade. Tornaram-se cegos para a luz de Cristo. O ideal que escolheram está longe do desafio que cada santo encarna. A luta pela justiça social, ainda que boa, não presopõe morrer para nós mesmos, quebrar com o espírito do mundo, renunciar a Satanás e às pompas deste mundo, enquanto que os santos pela sua santidade resplandecente, sacodem nossas consciências e nos chamam a renunciar ao mundo e às suas pompas. Os santos são um desafio desconfortável para aqueles que não têm sede de santidade. Estes católicos progressistas não querem ter sua conssciencia perturbada,não querem sair do gueto da "cidade secular", e por isso querem eliminar os santos. Os santos geram desconforto ao trazer o sobrenatural para nossa realidade e perturbam àqueles que interpretam a 500 vida cristã de forma subjetiva . 497 - COMPÊNDIO DO VATICANO II, Lumem Gentium, op. cit., p. 39-113 498 - Florence 1889 – New Rochelle 1977. - HILDEBRAND, Dietrich von. Trojan Horse in the City of God. Manchester, New Hampshire: Sophia Institute Press, 1993. 499 500 - For many Catholics who call themselves progressives, purely humanitarian activities and social institutions are more attractive than holiness. They have become blind to the light of Christ. Further, the ideal they have chosen is far removed from the challenge that every saint embodies. Striving for social justice - good and honorable as it is - does not presuppose that we die to ourselves, that we break the spirit of the world, that we renounce Satan and the pomp of this world. But every saint, by the resplendent fact of his holiness, shakes our consciences and calls us to renounce the world and its pomp.The saints are an uncomfortable challenge to those who do not thirst for holiness. Because this progressive Catholics do not want their complacency disturbed, because they do 311 Este dois autores são apenas dois pólos visíveis das tensões internas em que vive a igreja. São, respectivamente lidos, amados, odiados, contestados e respeitados. Em 1970, Hildebrand e Teilhard de Chardin são lidos e defendidos por docentes das Faculdades Salesianas de Lorena. É um confronto entre as mentalidades da idade média e da modernidade que se batem no mesmo espaço: criacionismo versus evolucionismo; o mal visto como obra de satanás de um lado e das injustiças sociais, por outro. No seio dessa faculdade interiorana, polarizam-se essas duas mentalidades, algo não muito diferente da idade média de Francisco de Assis na coorte papal. Em pleno século XX, nos Estados Unidos, com todo paradoxo que isso possa representar, Hildebrand e Chardin defendem um, uma visão medieval, enquanto outro uma visão cientificista e evolucionista. Os conflitos dessas visões de mundo e de cristianismo são candentes porque irão determinar que tipo de educação se pretende ministrar no ensino superior. Lorena os vive com intensidade. Deve-se assinalar que esses conflitos acontecem num tempo em que a autoridade na Igreja ainda é acatada, mas não deixam de ser o prenúncio das grandes contestações, que como grandes vagas, se infiltrarão nas próximas décadas na igreja, atingindo mesmo os protegidos claustros dos contemplativos. Os jovens que ingressam na formação religiosa salesiana são filhos desses anos de contestações e conflitos, possuindo cada vez menos referenciais do passado. Os mestres que representam o passado nem sempre conseguem passar os valores da congregação com sua mística medieval e incontestável obediência ao papado. O aggiornamento conciliar escapava ao controle da própria igreja numa cultura cada vez mais laica, materialista e hedonista. O abandono da vida religiosa após o Vaticano II foi manifestação explicita da insuficiência do catolicismo em dar significado à vida de muitos homens e mulheres. Estes elementos contribuem, a partir da década de 1990, para se consolidar numa crescente perda da identidade salesiana tradicional para as novas gerações. Para um olhar menos penetrante, nada havia mudado. O Mito fundacional continuava sendo narrado; o Rito not wish to be drawn out the ghetto of the “secular city”, they want to eliminate the saints. The saints bring the supernatural uncomfortably near. They confront us with the ethos of holiness and disturb those who interpret the Christian life according to their own fashion. Ibidem. pp. 258259 312 continuava a ser celebrado e os Símbolos mostrados. Ainda que as celebrações e as narrações continuassem as mesmas, a leitura que era feita delas possuía um novo significado. E esta manutenção da dimensão exterior poderia esconder que o que se vê não existe mais ou pode ter um significado diferente do que aparentemente parece afirmar501. Numa universidade confessional algo semelhante pode acontecer. Os mantenedores promovem com elevo festividades em torno do mito fundacional. Falam do fundador e de seus ideais. Realizam celebrações. Percebem a instituição a partir do lugar dos mantenedores, nem sempre captando que não há adesão efetiva e afetiva àquilo que acreditam. Um funcionário não porá em risco seu emprego contestando o ideário e as crenças dos seus empregadores. Como na psicologia, o que determina a verdade nem sempre é o narrado, mas os atos falhos que são perceptíveis apenas para um observador mais atento. Assim também, se os mantenedores não tiverem um olhar acurado, poderão se iludir com as aparências que lhes são mostradas, parecendo existir aceitação do ideário da instituição pela aceitação dos seus funcionários. No caso do UNISAL, apesar dos discursos institucionais e das falas dos coordenadores, há elementos que falam por si, sem necessidade de grandes reflexões e demonstrações: 1. quando um contingente não desprezível de alunos não conhece os salesianos; 2. quando nas ementas dos cursos e das disciplinas se desconhece com significativa sistematicidade a formação humanista e cristã da faculdade; 501 - Um exemplo pode ilustrar isso. No Brasil colonial os negros eram obrigados a abraçar a fé católica. Como “cristãos” participavam dos cerimoniais católicos e das festas dos santos com suas procissões. Para os portugueses seus escravos tão devotos e havia se integrado na religião. As festas terminavam à noite com cantos e danças. O que acontecia é que os negros por baixo das aparências das imagens católicas viam seus orixás, como Iansã mãe de todos os orixás ou Iemanjá, a rainha do mar. À noite ao festejarem ao redor das fogueiras apenas mantinham as tradições e os ritos ancestrais que eram guardados na tradição exatamente através desses aparentes folguedos. Fazendeiros e capelães acreditavam numa adesão que não existia, sendo todas essas celebrações simulacro que sob a aparência e o rosto de práticas católicas se mantinham as crenças ancestrais. Cf. PASSOS JÚNIOR, Dilson. A formaçao do sincretismo religioso no Brasil. Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, 82, n. 1, p. 57-78, jan. 1988. 313 3. quando a pastoral sequer é capaz de dinamizar uma página da internet com informações e idéias; 4. quando a vida do fundador é desconhecida; 5. quando o curso de Pedagogia de Lorena sequer faz referências a valores humanos, e muito menos cristãos e salesianos; 6. quando cursos que deveriam ser irradiadores dos valores salesianos, ignoram a salesianidade e mesmo a formação humana e cristã. Essas situações, por si só já são um diagnóstico. A “adesão” ao pensamento cristão e salesiano é feita por conveniência, pelo simples fato de se desconhecer o fundador e seu sistema educativo. E aqui se fala em mero conhecimento que serviria, ao menos, como referencial de erudição, sem supor ainda, necessariamente, uma adesão. Este contexto nos induz a uma situação de simulacro em que o parecer substitui o ser. Uma escola de ensino superior não é uma sucursal de uma paróquia. Uma universidade confessional deve, porém, estabelecer um diálogo adulto com a cultura fazendo com que os educandos tenham acesso ao pensamento antropológico e social dessa instituição. No caso salesiano, isto ainda tem maior consistência porque a congregação possui uma ação educadora que está embasada numa visão de mundo que se reflete na sua prática pedagógica. Não é possível que essa prática seja assumida com consistência sem uma sólida elaboração teórica que dê sustentabilidade à sua ação. Nos Estados Unidos, por exemplo, as universidades católicas fazem os alunos ter acesso aos documentos eclesiais que tratam de questões da Doutrina Social da Igreja. Eles são posteriormente confrontados com outros documentos sobre o mesmo tema, permitindo que se estabeleça um confronto entre fontes primárias que levem a uma tomada de posição embasada em estudo sério. Estabelece-se o diálogo com o pensamento cristão a partir das fontes e não de intermediários e intérpretes. Para o egresso dessas escolas superiores, independente de suas opções pessoais em nível religioso ou moral, existiu a oportunidade de um diálogo tête-à-tête com o pensamento cristão. Elas entendem 314 que somente possuindo uma inequívoca identidade católica terão condições de um verdadeiro e frutuoso diálogo com a cultura502. A cultura cristã não é mais o modelo predominante das elaborações do viver social e moral. Como agência de ensino superior, as universidades católicas pretendem mais do que simplesmente ensinar, mas criar uma mentalidade, uma cultura e um pensamento que tenham incidência na organização social, pois nenhuma instituição de ensino superior, confessional ou não, pode abrir mão desse objetivo de formar egressos com referenciais significativos de princípios e valores, e isto só será possível se essas instituições de ensino superior, independentemente de sua matriz religiosa ou ideológica, repetimos, mantiverem e cultivarem uma identidade clara e inequívoca e essa identidade só será clara e inequívoca se for sinônimo de fidelidade aos seus princípios. Seria errôneo pretender retornar ou recriar o passado como sinal de fidelidade aos ideais do fundador. Deve-se levar em conta que num mundo pluralista e globalizado coabitam matrizes materialistas, agnósticas, hedonistas e tantas outras mais. As religiões rigidamente institucionalizadas perdem a cada ano espaço, enquanto gastam a maior parte de suas energias em preservar tradições obsoletas e que nada dizem para o homem concreto, além de se recordar sua dimensão histórica e estética. Em algumas situações as igrejas cristãs tradicionais em geral, e o catolicismo em particular, se desgastam ao manter um crescente zelo por rituais medievais, para o deleite de meia dúzia de saudosistas, em detrimento da educação do homem comum, sendo incapazes, como instituições, de estabelecer um diálogo que efetivamente corresponda à demanda dos anseios do homem moderno. Sua organização hierárquica apoiada num poder absolutista concebido como advindo de Deus vai na contra mão de uma sociedade democrática, participativa e crítica que tende a não mais transigir com caprichos e manhas de chefes constituídos sem aprovação das bases. Seria exigir demais que um filho espiritual da idade média tivesse esses pensamentos. Bosco foi um fidelíssimo súdito da igreja, não deixando, porém de contestá-la quando sua prática educacional-pedagógica gerou desconforto nos seus 502 - Cf. BOSTON COLLEGE. The Catholic Intellectual Tradition: A Conversation at Boston College. Boston: Fund. Collegium Bostoiense, 2010, p. 5-9. 315 dois ciumentos bispos e quando desprezou o modelo de rígida disciplina aplicada nas escolas, criando um ambiente de familiaridade com seus educandos. Imprimiu aos seus internatos um clima doméstico e pouco institucional que tanto escandalizou aos educadores da época pela aparente desorganização, pois para ele prevalecia o clima de família em que a ordem era conseguida pela autoridade moral do educador que se fizera amar e, portanto respeitar. Na organização de governo de sua congregação, imbuído paradoxalmente da mentalidade liberal de seu tempo, colocou ombro a ombro os salesianos-leigos com os salesianos-sacerdotes e instituiu uma forma de governo onde a autoridade estava mais ligada a um conselho que à figura do diretor que deveria ser visto como pai, amigo e irmão. Colocou seus sacerdotes realizando trabalhos braçais e servis contestando, pela ação, aquele modelo de igreja que procurava colocar os sacerdotes num status superior ao povo. A força moral deste filho do século XIX foi contestar, através de suas ações e empreendimentos, a incapacidade da igreja de se voltar para a nova realidade do mundo industrial que, a partir do critério do lucro, oprimia e desumanizava a pessoa. Assim como Francisco de Assis diante de Lotário se impusera com autoridade moral por sua inquestionável pobreza evangélica, Bosco se impôs ao papa e à sociedade anticlerical do seu tempo pelo trabalho e pela doação irrestrita aos jovens urbanos, marginalizados pelo sistema industrial de um lado, e pela sociedade tradicional de outro. Ele esteve na contramão da história do seu tempo. Os salesianos como uma congregação urbana nascida no contexto industrial viveram com a sociedade do seu tempo os desafios advindos pelo progresso. A sociedade industrial está atrelada a formas de produção em permanente evolução e mudança. A congregação captou que deveria se adequar sistematicamente aos novos meios de geração de riquezas, estando-se consciente que a economia com seu modo de produção, condiciona a sociedade nas suas instituições e organizações. A rápida adequação às mudanças é condição fundamental de sobrevivência em todos os campos, inclusive na educação. Isto traz lições concretas. O grande desafio do UNISAL, como agência de ensino, é atender tanto às demandas do mercado como da sociedade, permanecendo fiel, em meio às mudanças, aos critérios do fundador para que a grife “salesiano” represente de fato 316 uma marca que garanta fidelidade aos seus ideais fundacionais. Os salesianos são herdeiros de um educador que estabeleceu princípios de educação que dão identidade inequívoca às suas obras. São eles: Presença, Razão, Religião e Bondade. A exclusão de quaisquer de um desses itens, desconfigura, ipso facto, de forma irreparável, o projeto desse fundador. Há, porém, um permanente desafio: como trazer esses critérios para o século XXI sem que pareçam peças de museu que atraem mais por sua singularidade ou exoticidade do que pela sua real utilidade? Manter essa pedagogia consiste em captar o que ela possui de perene e atemporal, ou, numa linguagem mais atual, apreender os critérios de João Bosco que, se pretende, sejam perenes. O primeiro passo é definir com clareza a identidade da instituição: ela é uma fundação cristã, católica e salesiana. Enquanto cristã se sustenta por um humanismo embasado no pensamento do Novo Testamento; enquanto instituição católica recebe do magistério os referenciais de sua ação; enquanto salesiana se difere de outras instituições católicas e cristãs ao adotar os princípios educativos e pedagógicos elaborados por João Bosco. Ele estabeleceu como já nos referimos acima, quatro elementos indissociáveis: Presença, Razão, Religião e Bondade. É necessário resignificar esses elementos com o cuidado de não reproduzir ações dos séculos passados e ao mesmo tempo manter a identidade e a prática educacional do fundador respeitando a pluralidade do mundo moderno. A identidade católica e cristã, em relação ao mundo moderno, está, teoricamente sinalizada, pelos documentos503 conciliares: Lumem Gentium504, Unitatis Redintegratio505 e Nostra Aetate506. 503 - No Lumem Gentium primeiro trata-se do relacionamento da igreja com o mundo contemporâneo; no Unitatis Redintegratio o relacionamento com as religiões cristãs e no Nosta Aetate com as religiões não cristãs, sempre numa dimensão ecumênica. 504 - COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1968. op. cit., p. 39-113. 505 - Ibidem. p. 307 – 332. 506 - Ibidem p. 619 - 625 317 É no âmbito da dimensão salesiana, que os quatro elementos definidos como princípios inegociáveis dessa educação, merecem considerações. A Presença física do educador salesiano nas ultimas décadas foi relativizada num processo de terceirização, apoiada em argumentos como tamanho e complexidade das obras. Concretamente, os salesianos se fizeram ausentes não sendo mais a alma do recreio507. O recreio não existe no ensino superior e os alunos, em boa parte trabalhadores, mal possuem tempo para um descanso e um eventual lanche no intervalo. Uma figura de educador perambulando pelos pátios não cria nem conhecimento e nem laços com jovens que transitam ao acaso. Não é esse o lugar físico para encontros de relacionamentos qualitativos, mas apenas ocasionais. João Bosco vira no recreio, com suas corridas, cordas e mágicas um pretexto para o encontro. No UNISAL hoje o “pátio moderno”, onde se podem encontrar os alunos, conversar com eles, partilhar suas angústias e alegrias e passar-lhes valores é a sala de aula que se constitui no novo pátio. Será o salesiano-professor que conviverá, coabitará, ganhará a afeição e poderá dizer com autoridade moral que lhe confere a presença diuturna uma “parolina all’ orecchio”. O aluno universitário só será atingido pela presença salesiana com qualidade na sala de aula sendo a partir dela que outros espaços de convivência se criarão. A Razão era entendida por Bosco como o ato do educador mostrar ao educando a lógica e o sentido do que lhe era pedido, fazendo com que este compreendesse o sentido e o porquê algo deveria ser assumido e realizado. Em 1968, esse critério sofreu modificação na sua leitura no Brasil, assumindo o sentido de protagonismo juvenil,508 no qual se crê que o jovem é capaz, a partir de sua realidade e da proposição dos seus educadores de, ele mesmo elaborar os princípios que devem reger sua vida. Pode-se afirmar uma necessária evolução do conceito da razão na ótica salesiana. Até a década de 1960 ela foi entendida como uma Razão Simples, na qual o educador mostrava ao destinatário a lógica da verdade acreditando que sua clareza seria tal que haveria adesão a ela. A partir da década de 1970, há uma 507 - Cf. - BOSCO, 1985. Op. cit., p. 238 - 249 508 - PASSOS JÚNIOR, 2004, p. 161-176. 318 evolução do conceito, apenas em nível de Brasil, a partir da crise da Faculdade Salesiana no ano de 1968, quando foi deflagrada a “greve dos cem dias”. Neste evento, alunos da UNE propuseram a tomada da direção da faculdade por uma gestão conjunta de docentes e discentes. Neste período discutia-se a realidade brasileira com um alto nível de politização dos alunos que embasavam muito de suas proposições em Karl Marx. Era uma abordagem crítica da realidade. Os ideais dessa geração foram castrados em 1968, inicialmente pela prisão de boa parte das lideranças estudantis no Congresso da UNE em Ibiúna e posteriormente pelo Ato Institucional número 5, que tolheu de forma radical a liberdade de pensamento e expressão, mostrando o braço truculento do golpe militar de 64. Apesar das retaliações, mesmo dentro da congregação e sem a tutela dos formadores, na consciência dos clérigos universitários se configurou o conceito de uma racionalidade participativa e crítica, que será uma das características da formação dos salesianos no Brasil e parte da América. A Racionalidade do mundo acadêmico deve dar um passo além dessas duas “racionalidades” históricas. O Educador salesiano deve incorporar um novo tipo de razão: acadêmica, culta e erudita. O dialogo na Academia deve ser feito a partir do profundo conhecimento da Ciência e do Homem. A Verdade, sinalizada pelos educadores salesianos, deve ser capaz de diálogo científico com as mais avançadas produções culturais. O respeito que o educador salesiano terá dos alunos será pela sua capacidade intelectual de produzir e reproduzir o saber. Fala-se aqui em princípio do bom e eficiente professor e, dando um passo adiante, do pesquisador imerso no cotidiano da Academia e do Campus. Esta é a Racionalidade acadêmica, que não se reduz, no ensino superior, à atitude de um conselheiro a indicar caminhos segundo a reta razão. A Religião é o terceiro elemento da Pedagogia salesiana e, até o início da década de 60, era entendida e praticada como uma catequese, procurando levar os educandos à freqüência da missa e à prática dos sacramentos da confissão e da comunhão, dando-se destaque ao pecado e a perdição eterna. O livro O Jovem 319 Instruído de Bosco é expressão dessa mentalidade. Nos internatos509, além da rotina de estudo e recreação, a vida religiosa tinha uma primazia indiscutível. Os alunos participavam de orações e missa diária,510 quando deviam manter uma postura firme nos bancos de mãos postas sob o olhar atento dos assistentes salesianos prontos a intervir ante qualquer deslize. Com o Concilio Vaticano II e os documentos sobre o ecumenismo, integrados aos outros documentos que sinalizam uma maior abertura para o mundo, a postura com a religião tornou-se dialógica, crescendo o respeito por outras orientações religiosas, a partir de uma visão ecumênica e também como reflexo da crescente secularização da sociedade. Esta década marca também o início do fechamento dos grandes internatos fazendo que diminuíssem a incidência e influência dos educadores sobre os educandos. Velhos salesianos nos oratórios e obras sociais continuavam ainda vivenciando a prática da catequese tradicional, mas iam perdendo aos poucos espaço frente à maior autodeterminação dos jovens e à não adesão do novos salesianos a esse modelo tradicional. De outro lado as leis da educação nacional entendiam que o Ensino Religioso nas escolas, mesmo confessionais, não possuía uma finalidade catequética, mas sim da abordagem de princípios gerais na busca do espiritual. Neste século é pacífico que a catequese, enquanto doutrinação religiosa, fique reservada para o ambiente das igrejas. No espaço educacional serão trabalhados aspectos genéricos de formação humana, ainda que sob a luz de princípios religiosos. No ambiente universitário a Antropologia Religiosa aborda o dado religioso nos seus aspectos histórico, antropológico e social, em suma, como um fenômeno. Ao educador salesiano que professa a fé cristã e católica, cabe-lhe apresentá-la pelo seu testemunho como cristão, como pessoa e profissional. Sua vida, seu comportamento, sua bondade e sua disponibilidade revelarão para os discentes os valores que sustentam sua existência podendo servir como atração para que os 509 - Manoel Isaú produziu um livro significativo onde trabalha “Os Internatos no Brasil”, realizando na segunda parte do seu livro uma descrição da vida desses internatos com os salesianos.Cf. SANTOS, 2000. 510 - No domingo eram duas missas. 320 alunos, livremente, procurem desvendar o que dá sentido à vida de seus educadores. Interpelados pelo testemunho dos seus mestres busquem, então, ainda livremente, aprofundar os mananciais da fé desses educadores e as motivações para seu modo de vida e as motivações do seu modo de ser. Só então se abrirá espaço para se entabular um diálogo pessoal ou em pequenos grupos à luz da fé confessional. João Bosco trabalhando nos difíceis tempos do século XIX acentuou a importância do testemunho pela parábola conhecida como Sonho dos Dez Diamantes no qual descreve como o salesiano deve ser511. Nesta parábola-sonho apresenta a descrição de um jovem salesiano com um rico manto preso por 10 pedras de diamante. Esta parábola foi elaborada quando a congregação vivia um momento de 511 - (...) Parecia-me passear com os Diretores das nossas casas, quando apareceu entre nós um homem tão majestoso que não podíamos pousar o olhar nele. Dando-nos um olhar, sem falar, pôs-se a caminhar à distância de alguns passos de nós. Ele estava assim vestido: Estava todo coberto por um rico manto à moda de capa. A parte mais próxima ao pescoço era como uma faixa que se fechava na frente, e uma fitinha lhe pendia sobre o peito. Na faixa estava escrito com caracteres luminosos: “A Pia Sociedade Salesiana”, e na borda da faixa estavam escritas estas palavras: “Como deve ser”. Dez diamantes de grandeza e esplendor extraordinários impediam-nos de fixar o olhar, a não ser com grande dificuldade, sobre aquele augusto Personagem. Três dos diamantes estavam sobre o peito, e estava escrito “Fé” sobre um, sobre o outro “Esperança”, e “Caridade” naquele que estavam sobre o coração. O quarto diamante estava sobre o ombro direito e trazia escrito “Trabalho”; sobre o quinto, no ombro esquerdo, lia-se “Temperança”. Os outros cinco diamantes ornavam a parte posterior do manto e estavam assim dispostos: o maior e mais fulgurante estava no meio, como o centro de um quadrilátero, e trazia escrito “Obediência”. No primeiro à direita lia-se “Voto de Pobreza”. No segundo, mais abaixo, “Prêmio”. À esquerda, no mais elevado, estava escrito “Voto de Castidade”. O seu esplendor emitia uma luz toda especial, e mirando-o atraía e aferrava o olhar como o ímã atrai o ferro. No segundo à esquerda, mais abaixo, estava escrito “Jejum”. Os quatro curvavam seus raios luminosos para o diamante do centro. 321 expansão512 significativa e os salesianos chamavam atenção da sociedade. A descrição contextualizada por Bosco acontece num retiro espiritual dos líderes da congregação. Descreve também o contra-testemunho513 de como o salesiano não deveria ser. A descrição fala por si. O que chama atenção é a posição dos diamantes sobre o peito e os ombros. Eles são a parte visível dos seguidores de João Bosco. Todos deveriam ver neles homens de Fé, repletos de Esperança, voltados para o próximo pela Caridade, temperantes e trabalhadores. É uma imagem religiosa e humana que cativa. Esta é, no pensamento de Bosco, o “cartão de visita” que deve encantar a todos os que se encontram com os educadores salesianos. No entanto, essa postura que deveria encantar, deveria também ser sustentada por crenças interiores não visíveis e que estariam nas costas do jovem 512 - 10 de dezembro de 1881. 513 - (...) Em meio àquele clarão apareceu novamente o Personagem de antes, mas com aspecto melancólico semelhante a quem começa a chorar. O manto tinha-se tornado descolorido, carunchado e rasgado. No lugar onde tinham estado fixos os diamantes, havia um profundo rasgão ocasionado pelo caruncho e por outros pequenos insetos. “Olhai – Ele nos disse – e compreendei”. Vi que os dez diamantes tornaram-se outros tantos carunchos que corroíam raivosamente o manto. Portanto, ao diamante da Fé sucederam: “Sono e acídia”. À Esperança sucedera: “Risadas e banalidades indecorosas”. À Caridade: “Negligência no entregar-se às coisas de Deus. Amam e buscam os próprios gostos, não os ideais de Jesus Cristo”. À Temperança: “Gula; o seu deus é o ventre”. Ao Trabalho: “Sono, furto e ociosidade”. No lugar da Obediência nada havia além de um grande e profundo rasgão, sem qualquer escrito. À Castidade: “Concupiscência dos olhos e soberba da vida”. À Pobreza sucedera: “Cama, roupa, bebidas e dinheiro”. Ao Prêmio: “Nossa herança serão os bens da terra”. Ao Jejum: um rasgão, sem nada escrito. 322 também sustentando o manto e que são: A obediência entendia como respeito não só às constituições da congregação, mas acima de tudo aos ensinamentos bíblicos: a pobreza, a crença numa recompensa, a castidade e o jejum como disciplinadores da vontade. Em contato com as classes populares, da qual também fazia parte, João percebera o grande mal que faziam à igreja os maus sacerdotes com seus contra-testemunhos. Entende que suas idéias educacionais seriam apenas divagações caso não viessem acompanhadas de um modo de vida que correspondesse ao que ensinavam. Ao Educador salesiano cabe ser uma presença significativa junto dos estudantes a ponto de entusiasmá-los com seu testemunho de vida e fé. Está é a forma moderna de se anunciar a fé religiosa na sociedade atual. Finalmente a Bondade fecha o círculo dos princípios salesianos e é a parte mais visível que costura, dá sentido, significado e força ao projeto educacional salesiano. O jovem universitário deve se sentir amado, acolhido e respeitado pelo educador. A presença será técnica, a razão fria, a religião formal se não estiverem imersas num relacionamento de absoluta valorização do outro que se sente o centro das atenções e o sentido da vida do educador. Para que isso aconteça o educador salesiano deverá ser o primeiro a chegar e o último a sair dos ambientes da universidade, sendo não apenas professor, mas amigo, presença que ajuda na biblioteca, conversa nos pátios, atende nos escritórios, acolhe, valoriza,consola, participa dos esportes, senta-se nos barzinhos e cantinas nos descontraídos papos nos intervalos e ocasiões diversas. É, em suma, uma presença competente no âmbito da racionalidade, digna na sua coerência de homem religioso, que dá o primeiro passo que, em suma, ama e se faz amar. O pensamento educacional salesiano elaborado por João Bosco literalmente se encarna na pessoa do educador. É uma presença física e espiritual que não é captada em livros com princípios e propostas, mas se encarna e se transmite num modo de ser e num estilo de vida. Dois conceitos sinalizam se ela é praticada: amor e clima de família. As instituições nascem, crescem, amadurecem, envelhecem e morrem. Afirmávamos nas primeiras linhas deste trabalho. E continuávamos: E, em se tratando de uma 323 analogia, podem ao invés de envelhecer e definhar, explodir em vida produzindo sementes e lançando rebentos514. O Centro Universitário Salesiano de São Paulo é um dos braços do projeto educacional, vivido e teorizado por João Bosco apesar de não ter sido pensado por ele. A partir da idéia, com Dom Bosco e com os tempos, se busca construir sua identidade afinada com os princípios do fundador através de intérpretes que procuram equacionalizar os princípios fundacionais com os desafios dos tempos atuais e com o perfil do jovem universitário deste século. As IUS definem que é fundamental se ter uma identidade clara e inequívoca como instituição católica e salesiana. O Estudo histórico da vida do fundador e da origem de sua congregação, a análise de seu transplante para o Brasil e o lugar que aqui ocupou na educação da juventude faz compreender que lugar deve ocupar o ensino superior salesiano na nossa sociedade. A sondagem feita junto dos alunos, longe de pretender ser uma peça de pesquisa em sentido estrito, permitiu algumas sinalizações já percebidas empiricamente pelos que labutam na Instituição. Há descompasso entre o que João Bosco pensou para suas obras e o que é vivenciado hoje pelo UNISAL. Alguns elementos podem ser sinalizados: 1. A ausência física, intelectual e espiritual dos salesianos no cotidiano da instituição. 2. O desconhecimento orgânico e sistemático de Dom Bosco por docentes e discentes, dos princípios educacionais salesianos, da congregação e do sistema preventivo. 3. Faltam princípios e conceitos de salesianidade nas ementas dos cursos e das disciplinas, assim como nas práticas pedagógicas. 4. Pouco e confuso significado da pastoral. 5. Uma formação humanística e religiosa sem um referencial teórico claro. 6. Pouca incidência dos valores salesianos na vida dos educandos. 514 - Cf. p. 6. 324 7. Pouca significatividade do “mundo salesiano” para os que escolhem o ensino superior. 8. Existência de um clima onde ainda se respira valores salesianos captados “no ar” pelos destinatários, a saber: ambientes de família, acolhimento, responsabilidade e profissionalismo. Estes elementos, porém, não estavam assosicados aos salesianos. Uma identidade frágil ou pouco definida faz com que se procure firmá-la através de ações superficiais e periféricas que acabam se organizando como simulacro daquilo que de fato não existe. Este ponto tem sido diagnosticado tanto pela IUS, como pela direção do UNISAL de São Paulo. As tentativas de solução, porém, têm sido tópicas e de certo modo irrelevantes porque não são fruto de profunda reflexão e, na verdade, só terão impacto real quando forem fruto de reflexão intramuros do mundo acadêmico. Soluções elaboradas externamente e sem terem sido gestadas pela racionalidade acadêmica (sem vírgula) serão meros apliques que mais fomentarão o simulacro. João Bosco, sua vida, sua obra, seu tempo e sua pedagogia devem ser objeto de estudo denso e sistemático que permitam reconstituir os desafios superados e os critérios atemporais assumidos na educação. Só assim estará se superando a presente fragmentação em que o discurso “institucional dos padres” não corresponde à práxis da docência e se teatraliza numa adesão a princípios de que fato não se conhecem e aos quais muito menos se adere. “Pitadas” de salesianidade esporádicas só fortalecem uma falsa identidade e o simulacro que reforça a dimensão cenográfica de uma pretensa educação salesiana. Na academia formam-se líderes da sociedade que, com facilidade, diagnosticarão a falta de embasamento de proposições inconsistentes. Só a academia pode gerar a academia. Salesianidade não se propõe com fervorinhos afetivos. Constrói-se com produção do saber ao qual se adere por sua base racional. Mito, Rito e Símbolo. Três realidades para se avaliar uma instituição. Somente uma delas é controlável pela gestão universitária: o Mito fundacional. Ele deve ser narrado, estudado, aprofundado, passado pelo crivo do pensamento acadêmico. Ele estará inicialmente na mente e deverá ser acolhido por ela como algo lógico, 325 verdadeiro e bom. Somente quando este conhecimento se tornar crença, em que a mente “baixar armas” para colocá-lo afetivamente “no coração”, só então brotará o Rito repleto de significado porque nascido da vida. Então as marcas salesianas, seus monumentos, seus adereços, simbolizarão algo que se “metaboliza” no homem integrando Razão e Coração. Razão porque lógico. Coração porque assentimento da vontade em algo que se reconhece como bom e verdadeiro. Então a frase do fundador ganhará um sentido afetivo também para um taciturno intelectual: educação é obra do coração. É um longo caminho a ser encetado pelo UNISAL na construção de seu perfil universitário. Não existem fórmulas, mas árduo trabalho acadêmico que, se bem sucedido, trará seus frutos na formação de pessoas que, ocupando espaços na sociedade e influindo na sua construção e nos seus caminhos, poderão ser mais que simples profissionais. Esta é uma opção clara a ser feita para que este centro de estudo possa construir sua identidade. Sua identidade salesiana. 326 REFERÊNCIAS AQUINO, Rubim Santos Leão; FRANCO, Denize de Azevedo; LOPES, Oscar Guilherme Pashl Campos. História das Sociedades. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980. ARISTÓTELES – De Anima 3.4. In: KOCHER, Henerik. Dicionário de expressões e frases latinas. 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Conselho mundial Salesianos eleitos no Capítulo Mundial com a finalidade de assessorar o Reitor Mor no governo da congregação. Coração oratoriano Possuir os valores e as praticas educacionais do sistema preventivo de Dom Bosco. Diretor Superior de uma comunidade ou casa religiosa. Dom Padre, italiano 337 (FS) diz respeito a diversas fundações que se Família Salesiana inspiraram na espiritualidade e pedagogia salesiana e que são reconhecidas pelo Reitor-mor e seu conselho. Não estão subordinados à congregação salesiana. Inspetor Provincial, responsável pelo governo de uma região. Seu nome é escolhido de lista tríplice e nomeado pelo Reitor mor com a aprvação do seu conselho. Inspetoria IUS Região governada por um inspetor. Instituições Universitrárias Salesiana. Organismo intrnacional ligado ao Reitor-mor e seu conselho e que coordena as atividades do ensino superior salesiano em nível mundial. Leigo Pessoas que não possuem votos religiosos. Obra Frente de ação sob a coordenação de uma casa Oratoriano Jovem, adolescente ou criança que frenquenta o oratório. Oratório Forma simplificada de oratório festivo. Oratório Festivo Espaço recreativo e catequético da trabalho dos salesianos. Caracteriza-se pela sua informalidade e onde se valoriza atividades lúdicas e recreativas. 338 Ato de ingressar numa ordem religiosa assumindo Profissão seus compromissos e os votos de pobreza, obediência e castidade. Forma simplificada de se referir à profissão religiosa Profissão perpétua Ato de se consagrar na congregação por toda a vida. Profissão religiosa Consagração da vida numa congregação religiosa assumindo seu estilo de vida e seus compromissos pastorais, emitindo os votos de pobreza, obediência e castidade. Reitor-Mor Superior mundial da Congregação salesiana Salesiana (FMA) Ramo feminino da congregação salesiana. Salesianidade O conhecimento e/ou a prática dos princípios salesianos de educação. Salesiano (SDB) sentido estrito: pessoa comprometida na congregação salesiana por Profissão. Sentido amplo: todos os que seguem os princípios educacionais e pedagógicos de Dom Bosco Salesiano coadjutor Vide salesiano irmão. Salesiano cooperador (CCSS) Leigo que assume os compromissos da 339 educação e pedagogia salesiana, mas sem votos religiosos equivalente às ordens terceiras. Salesiano -irmão Religioso leigo comprometido pela profissão religiosa. Salesiano padre Religioso sacerdote comprometido pela profissão religiosa. Salesiano Perpétuo Religioso que realizou a profissão definitiva em sua vida. Sistema Preventivo É a síntese do sistema educativo de Dom Bosco apoiado na presença do educador e no tripé: Razão, Religião e Bondade (Amorevoleza) Sistema repressivo Oposto ao sistema preventivo baseia-se no castigo, no medo e na afirmação da autoridade dos superiores. Sociedade São Congregação salesiana Francisco de Sales Sócios Referente aos salesianos consagrados. Equivalente ao termo confrade nas ordens religiosas. Vigário do reitor Vice reitor mor. mor Votos Compromisso de pobreza, obediência e castidade. É uma das partes da Profissão Religiosa. 340 LINHA DO TEMPO Data História salesiana História Geral 1789 Revolução Francesa 1804 Napoleão coroado Imperador da França Congresso de Viena Rússia- Revolução comunista 1815 1817 1841 Nascimento de Dom Bosco Bosco ordenado sacerdote. Surge o primeiro oratório 1847 Primeiro internato e casa do oratório em Turim 1848 Publicação do Manifesto Comunista. 1848 Revolução Européia. Revoluções burguesas. – Primavera dos povos. 1849 Pio IX foge de Roma sob a ameaça do movimento de unificação da Península. 1850 Com apoio militar da Áustria, França e Espanha Pio IX retorna a Roma. Itália - Lei Sccardi abole as imunidades eclesiásticas. 1853 Itália – Primeira escola Profissional salesiana. 1855 Itália: Lei dos conventos: são apropriados pelo Estado. 1859 Fundação da Sociedade São Francisco de Sales515 – salesianos 515 - Entre 1859 a 1900 foram fundadas 247 casas na Itália, França, Espanha, Suíça, Áustria, Bélgica,Portugal, Argentina, Uruguai, México, Colômbia, Chile, Equador, Paraguai, Venezuela, Antilhas, Argélia, Tunísia.Cf. Narciso FERREIRA, (Apêndice) In, Morand WIRTH, De Dom Bosco aos 341 1860 Itália: Parte dos Estrados Pontifícios é anexada ao Estado Sardo. 1861 Itália: Proclamado o Reino da Itália e dissolução dos Estados Pontifícios. 1866 Itália: Suspensas as corporações religiosas. 1867 Confisco dos bens eclesiásticos. 1869 Vaticano aprova os salesianos 1875 Chegada dos salesianos na Argentina e França 1870 Tomada de Roma. Pio IX se autodeclara prisioneiro do Vaticano. 1888 Morte de Dom Bosco 1877 Cegada dos salesianos ao Uruguai 1883 Chega dos salesianos a Niterói 1886 Chegada a São Paulo – Fundação do Liceu de Artes e Ofícios Brasil – Lei áurea. 1988 Proclamação da Republica 1890 Chegada a Lorena Leão XIII – Rerum Novarum 1891 1892 Chegada a Guaratinguetá 1894 Chegada a Cuiabá e Pernambuco 1895 Fundações em: Ouro Preto e Ponte Nova Lorena – Fundação do Instituto de Pedagogia e Filosofia. 1896 Fundação em Cachoeira do Campo e Ipiranga Nossos Dias entre a História e os Novos Desafios, Roma, LAS – Livraria do Ateneo Salesiano,2000. pp.363-368 (No prelo – trad. Narciso Ferreira). 342 1897 Chegada a Campinas e Coxipó da Ponte Fundação da obra salesiana de Campinas. 1899 Fundação Corumbá e Salvador 1900 Fundação em Jaboatão 1913 Transferência do Instituto de Filosofia para Lavrinhas – SP 1914 Primeira Guerra Mundial 1929 Quebra da Bolsa de Nova York Assinatura do tratado de Latrão. 1930 Golpe de estado. Getúlio Vargas. Criação do Ministério da Educação e Saúde. 1931 Criação primeiro curso superior salesiano de Administração e Finanças no Liceu Coração de Jesus em São Paulo 1932 Manifesto dos pioneiros Educação. Revolução constitucionalista. 1939 1943 Segunda Guerra Mundial Retorno do Instituto de Filosofia para Lorena. 1945 Extinção do Administração curso e de Finanças, substituído pelo curso de Ciências Econômicas. 1948 Curso de Ciências Econômicas reconhecido definitivamente e transferido para a PUC-SP 1952 Fundação das Salesianas de Lorena. Faculdades da 343 Campinas: Fundação da Escola Agrícola São José, que dará origem posteriormente à ETEC e FASTEC 1961 Primeira nave espacial tripulada 1962 Abertura do Concílio Vaticano II 1964 Golpe Militar Acordo MEC-USAID 1967 1968 Documento de Buga. Lorena – Greve dos 100 dias. Documento de Medellín Movimento Estudantil de Paris. Encontro da UNE em Ibiúna. Festival Woodstock Primavera de Praga Ato Institucional no. 5 1969 Lorena: assume nova direção com o fim de por ordem na casa de formação. 1970 Lorena: termina a divisão de classes por sexo. 1071 Aprovação da faculdade salesiana de Americana. 1972 Fundação da FASTEC 1980 Campinas – Aprovação da faculdade salesiana de tecnologia – FASTEC 1979 1991 Documento de Puebla Publicado: História do Colégio São Joaquim (salesianos em Lorena). 1983 Fusão das faculdades salesianas de Americana, Campinas e Lorena 344 fundando-se o Centro UNISAL. 1984 Redemocratização do Brasil 1989 Alemanha – Queda do Muro de Berlim. China – Massacre dos Estudantes na Praça da Paz Celestial. 1993 Brasília – Fundação das IUS 1997 Reitor-mor Superior assume o Ensino salesiano como expressão moderna do carisma salesiano. Credenciamento definitivo do UNISAL pelo MEC 1998 Roma – Segundo encontro das IUS. 2001 Publicado: Salesianos em Americana – 50 anos tecendo educaçã0 2003 Roma - Aprovação dos estatutos das IUS Publicado: Igreja, Estado, Sociedade e Ensino Superior a faculdade salesiana de Lorena. Publicado o livro: Com Dom Bosco e com os tempos História da unidade de Campinas. 2009 UNISAL – Reforma dos Estatutos extinguindo a figura do Diretor salesiano, sendo a direção das unidades confiadas a leigos. 345 ANEXO Pesquisa Sondagem Sobre Instituições de Ensino Superior Doutorado UNIMEP UNISAL CURSO: __________________________ Unidade: 1. ( ( ( ( ( ) Americana; ) Campinas; ( ) Lorena. Idade ) 17 – 21 anos ) 22 – 26 anos ) 27 – 30 anos ) acima 30 anos 2. Sexo ( ) Feminino ( 3. ( ( ( ( ) Masculino Estado civil: ) Solteiro ) Casado ) Desquitado 4. Área de Estudo: ( ) Saúde ( ) Biológica ( ) Exatas ( ) Humanas 5. Você Freqüentou ou freqüenta alguma outra obra salesiana além do Centro UNISAL? ( )Não ( )Sim Qual? ( ) Escola de primeiro ou segundo grau ( ) Oratório Festivo ( ) Escola Profissional ( ) Obra social ( ) Outros 346 6. Por qual motivo você escolheu estudar no Centro UNISAL: (pode marcar mais de um item): ( ) Interesse pelo Curso. ( ) Custo ( ) Proximidade de casa ( ) Ser uma escola Salesiana ( ) Não teve outra opção. ( ) Outros 7. Você Sabe quais os princípios que caracterizam uma Faculdade Salesiana? ( ) Sim ( )Não 8. ( ( 9. ( ( ( ( ( ( ( ( Você sabe quem é Dom Bosco? ) Sim ( ) Não ) Alguma coisa Sobre a vida de Dom Bosco você: ) Já viu filme ) Já viu mais de um filme ) Já Assistiu documentário ) Já leu 1 livro ) Já leu mais de um livro ) Participou de palestra ) Foi assunto de aula ) Não teve nenhum contato 10. Você conhece o Método Educativo de Dom Bosco chamado de Sistema Preventivo apoiado na Razão, Religião e Bondade? ( ) Sim ( ) Não 11. Você Sabe qual faculdade? ( ) Sim ( ) Não a finalidade do setor Pastoral na 12. Você freqüenta o ambiente ou tem contato pessoal com a equipe de pastoral? ( ) Sim ( ) Não ( ) Raramente 13. Com relação a padres ou irmãos salesianos, você. ( ) mantém algum contato pessoal formal. ( ) mantém algum contato de amizade. ( ) nunca teve contato ou conversou. 347 14. Em sua opinião a formação humana dada pelo UNISAL é: ( ) igual às outras faculdades. ( ) inferior às outras faculdades. ( ) pior que as outras faculdades. ( ) melhor que as outras faculdades ( ) Não existe diferença de faculdades neste aspecto. 15. Em sua opinião o UNISAL oferece alguma formação religiosa? ( ) Sim ( ) Não ( ) Sim, mas fraco 16. No seu curso existe alguma matéria que trabalhe valores humanos? ( ) Não ( ) Sim Qual? ________________________ 17. Em seu Curso existe alguma matéria que trate de algum tema ligado aos princípios morais, religiosos ou educacionais de Dom Bosco? ( ) Não ( ) Sim Qual? ________________________ 18. A Congregação religiosa Salesiana, fundada por dom Bosco, é responsável pela manutenção do UNISAL. Com Relação à essa congregação, você: ( ) possui simpatia ( ) possui antipatia ( ) é indiferente ( ) não conhece nada 19. Para você os ambientes físicos, os professores serviços em geral da faculdade te passam a sensação de: a. Família: ( ) Sim ( ) Não ( ) Indiferente. b. Acolhimento: ( ) Sim ( ) Não ( ) Indiferente. c. Religioso: ( ) Sim ( ) Não ( ) Indiferente. d. Respeito: ( ) Sim ( ) Não ( ) Indiferente. e. Responsabilidade: ( ) Sim ( ) Não e os 348 ( ) Indiferente. f. Seriedade: ( ) Sim ( ) Não ( ) Indiferente. g. Respeito: ( ) Sim ( ) Não ( ) Indiferente 20. Você acredita que o fato de estudar no Centro Universitário salesiano, além de tua preparação profissional, fará um diferencial positivo no: Teu Comportamento moral: ( ) Sim ( ) Não Teu relacionamento familiar: ( ) Sim ( ) Não Na tua convivência social: ( ) Sim ( ) Não Na tua vida Religiosa: ( ) Sim ( ) Não Na tua forma de educar teus filhos: ( ) Sim ( ) Não Esta pesquisa está sendo conduzida por um aluno doutorando em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba – SP que está trabalhando na tese Os ideais e as idéias da Educação nas faculdades confessionais. Muito obrigado por responder a esse questionário. Júnior 21. Você aceitaria responder a partir do ano de 2011 pelo seu email um questionário mais detalhado sobre o assunto, disponibilizando teu email para isso? ( ) Não ( ) Sim – anote seu email abaixo Meu email: _______________________________ Muito obrigado -Júnior Meu email para contato [email protected]