Universidade Clássica de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento Filosofia
Mestrado
PROBLEMA MENTE-CORPO
Ano lectivo 2003-2004
Argumento de Kripke contra o materialismo identitativo
e Ilusão de Contingência
Vitor Manuel Dinis Pereira
Introdução
O argumento de Kripke contra o materialismo tipo-tipo é um argumento contra
a tese segundo a qual tipos mentais são idênticos a tipos físicos (por exemplo, dor é
oscilação no tálamo cortical. O que exemplifica a propriedade de ser uma dor
exemplifica necessariamente a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical).
Um defensor do materialismo identitativo tipo-tipo, alega que identidades
entre tipos mentais (como dores) e tipos físicos (como estimulação das fibras-C ou
oscilação no tálamo cortical ou disparar de tais e tais neurónios) são como as
identidades teóricas água = H2O, calor = movimento médio das moléculas, ouro = =
elemento de peso atómico 79.
A relação de identidade é a relação que qualquer coisa tem consigo própria e
com mais nenhuma outra.
Se
x é numericamente idêntico a y, então é necessário que x
seja
numericamente idêntico a y.
Por exemplo, se água = H2O, calor = movimento médio das moléculas,
ouro = elemento de peso atómico 79 são identidades numéricas, então é necessário
que a água seja H2O, que o calor seja movimento médio de moléculas e que o ouro
seja o elemento de peso atómico 79.
A diferença entre as expressões é para ser entendida como uma diferença de
valor cognitivo para um utente competente da linguagem, não como um diferença
entre supostos objectos. Pois, se houver dois objectos, não são numericamente
idênticos. Isto é, se houver dois objectos, há dois objectos e não há de todo qualquer
identidade numérica entre eles.
Um defensor da identidade entre tipos mentais e tipos físicos defende que o
tipo-dor é necessariamente o tipo-oscilação no tálamo cortical.
Se
os tipos físicos são expressos por ‘estimulação das fibras-C’ ou por
‘oscilação no tálamo cortical’ ou por ‘disparar de tais e tais neurónios’, isso só releva
para uma diferença de valor cognitivo para um utente competente da linguagem, não
como diferença entre tipos, já que só há um e um único tipo.
A tese do materialismo identitativo tipo-tipo é para ser distinguida da forma de
materalismo que estabelece uma identidade particular-particular entre uma experiência
particular de dor e uma configuração específica do cérebro
co-ocorrente.
Tal como de uma pessoa poder ter simultaneamente propriedades distintas,
como por exemplo a propriedade de ser estudante de filosofia, a propriedade de ser
vigilante, a propriedade de ser copeiro, não se segue que seja uma pessoa diferente
que as exemplifica, também de um acontecimento específico no cérebro poder ter
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simultâneamente propriedades distintas como por exemplo a propriedade de ser uma
dor, a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical, não se segue que seja um
acontecimento específico no cérebro diferente que as exemplifica.
Tal como de particulares x e y terem propriedades distintas, não se segue que
x e y sejam distintos, também de acontecimentos específicos no cérebro terem
propriedades distintas, não se segue que sejam acontecimentos específicos no
cérebro distintos.
A defesa do materialismo identitativo particular-particular é consistente com a
recusa do materialismo identitativo tipo-tipo. Isto é, a defesa da identidade entre uma
experiência particular de dor e uma configuração específica do cérebro
ocorrente é consistente com a recusa da identidade entre o tipo-dor e o
cotipo-
oscilação no tálamo cortical.
Um argumento contra o materialismo identitativo tipo-tipo é um argumento
contra o materialismo identitativo particular-particular. Mas, um argumento a favor do
materialismo identitativo particular-particular, não é um argumento a favor do
materialismo identitativo tipo-tipo.
Problema
Ora, identidades teóricas como água = H2O, calor = movimento médio das
moléculas, ouro = elemento de peso atómico 79, são de facto necessárias, mas
parecem ser contingentes.
Logo, se o materalista identitativo tipo-tipo tem razão, tem que explicar a
aparência de contingência de identidades como por exemplo dor = oscilação no
tálamo cortical.
Kripke argumenta que não está disponível nenhuma explicação segundo a qual
identidades psicofísicas de tipos parecem ser contingentes.
Logo, identidades psicofísicas de tipos não são identidades teóricas como
água = H2O, calor = movimento médio das moléculas, ouro = elemento de peso
atómico 79.
Será possível, no entanto, defender que a distinção entre conceitos e
propriedades pode ser utilizada para explicar porque é que as identidades psicofísicas
de tipos apenas parecem ser contingentes?
Explicação alternativa da ilusão de contingência
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Uma explicação segundo a qual identidades teóricas da física e da química
como água = H2O, calor = movimento médio das moléculas, ouro = elemento de peso
atómico 79 apenas parecem ser contingentes consiste em dizer que se confundem
erroneamente com
identidades de facto contingentes como, respectivamente,
líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho = =H2O, o que causa
esta sensação de calor = o movimento médio das moléculas, o mais valioso metal = o
elemento de peso atómico 79, em que à esquerda de ‘=‘ ocorrem propriedades
superficais do que ocorre à direita de ‘=‘, em que à esquerda de ‘=‘ ocorrem
propriedades fenomenológicas e não essenciais do que ocorre à direita de ‘=‘.
Ora, uma explicação deste género não está, como argumenta Kripke,
disponível no caso de identidades psicofísicas tipo-tipo como dor = oscilação no
tálamo cortical. E não está disponível uma explicação segundo a qual identidades
psicofísicas tipo-tipo apenas parecem ser contingentes porque à esquerda de ‘=‘
ocorrem propriedades fenomenológicas e essenciais independentemente do que
ocorre à direita de ‘=‘.
É possível por exemplo que o líquido incolor, transparente, bebível, no qual se
toma banho não seja H2O, porque o conceito de água não contém desde logo a
essência da água. Apesar do líquido nos aparecer sob as mesmas propriedades
superficiais, podia dar-se o caso de ser XYZ e não H2O. A identidade líquido incolor,
transparente, bebível, no qual se toma banho = H2O é uma verdade contingente de
facto, porque depende de como a água nos aparece.
É possível por exemplo que o que causa esta sensação de calor não seja o
movimento médio das moléculas , porque o conceito de calor não contém desde logo
a essência do calor. Apesar de sentirmos calor, podia dar-se o caso de não haver
qualquer movimento médio de moléculas. A identidade o que causa esta sensação de
calor = o movimento médio das moléculas é uma verdade contingente de facto, porque
depende do que sentimos como calor.
É possível por exemplo que o mais valioso metal não seja o elemento de peso
atómico 79, porque o conceito de ouro não contém desde logo a essência do ouro.
Apesar do ouro nos aparecer sob as mesmas propriedades superficiais, podia dar-se o
caso de não ser o elemento de peso atómico 79. A identidade o mais valioso metal = o
elemento de peso atómico 79 é uma verdade contingente de facto, porque depende de
propriedades superficiais.
Mas, é impossível uma dor não ser sentida como dor, é impossível algo que é
de facto uma dor não ser uma dor, porque o conceito de dor contém desde logo a
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essência da dor. A identidade dor = oscilação no tálamo cortical é uma verdade
contingente de facto, porque é possível que o que exemplifica a propriedade de ser
uma dor não exemplifique a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical. É
possível o que exemplifica a propriedade de ser uma oscilação do tálamo cortical não
ter a fenomenologia da dor e, logo, poder existir sem ser uma dor. Por conseguinte, o
que exemplifica a propriedade de ser uma dor exemplifica contingentemente a
propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical.
Identidades teóricas da física e da química como água = H2O, calor =
= movimento médio das moléculas, ouro = elemento de peso atómico 79 apenas
parecem ser contingentes, porque se confundem erroneamente com identidades de
facto contingentes como, respectivamente,
líquido incolor, transparente, bebível, no
qual se toma banho = H2O, o que causa esta sensação de calor = o movimento
médio das moléculas,
o mais valioso metal = o elemento de peso atómico 79.
Contrariamente, identidades psicofísicas tipo-tipo como dor = oscilação no tálamo
cortical não se confundem erroneamente com identidades de facto contingentes como
dor = oscilação no tálamo cortical.
O materialista identitativo tipo-tipo não tem disponível nenhuma explicação
para a aparência de contingência de identidades psicofísicas tipo-tipo, porque
identidades psicofísicas tipo-tipo são de facto contingentes. Logo, o materialista
identitativo tipo-tipo não pode disputar o argumento de Kripke contra o materialismo
identitativo tipo-tipo. O
argumento
do materialista identitativo tipo-tipo contra o
argumento de Kripke, só ao explicar a suposta aparência de contingência de
identidades psicofísicas tipo-tipo, poderia dar conta do contraste entre conceitos que
não contêm desde logo a sua essência - por exemplo, o conceito de água, o conceito
de calor, o conceito de ouro - e conceitos que contêm desde logo a sua essência - por
exemplo, o conceito de dor.
Se o materialista identitativo tipo-tipo não tem disponível nenhuma explicação
para a aparência de contingência de identidades psicofísicas tipo-tipo; então, o
materialista identitativo não tem disponível nenhum argumento através do qual dê
conta do contraste entre conceitos que não contêm desde logo a sua essência e
conceitos que contêm desde logo a sua essência.
Como pode a distinção entre conceitos e propriedades constituir uma
explicação alternativa segundo a qual identidades psicofísicas de tipos apenas
parecem ser contingentes sem que com tal explicação o argumento de Kripke seja
disputável?
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Se a distinção entre conceitos e propriedades puder ser utilizada para explicar
como é que identidades psicofísicas de tipos apenas parecem contingentes, então
ainda assim identidades psicofísicas de tipos não são como identidades teóricas da
física e da química, porque há ilusões de contigência explicáveis de modo diferente.
Suponha-se, para efeitos de argumentação, que o materialista identitativo tem
razão ao alegar que identidades entre tipos mentais (como dores) e tipos físicos (como
estimulação das fibras-C ou oscilação no tálamo cortical ou disparar de tais e tais
neurónios) são como as identidades teóricas água = H2O, calor = =movimento médio
das moléculas, ouro = elemento de peso atómico 79.
Então, tal como o conceito de água pode ser descrito fenomenologicamente
como líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho e pode ser descrito
cientificamente
como
H2O,
assim
o
conceito
de
dor
pode
ser
descrito
fenomenologicamente como dor e pode ser descrito cientificamente como oscilação no
tálamo cortical.
Identidades teóricas como água = H2O apenas parecem ser contingentes
porque são erroneamente confundidas com identidades de facto contingentes como
líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho = H2O, inferindo-se
falaciosamente da contingência destas a contingência daquelas.
Identidades psicofísicas tipo-tipo como dor = oscilação no tálamo cortical
apenas parecem contingentes porque ‘dor’ e ‘oscilação no tálamo cortical’ denotam a
mesma propriedade mas expressam conceitos diferentes, inferindo-se falaciosamente
de uma diferença entre conceitos uma diferença entre propriedades.
Isto é, identidades psicofísicas tipo-tipo como dor = oscilação no tálamo cortical
apenas parecem contingentes porque a diferença entre o conceito fenomenológico de
dor e o conceito científico de oscilação no tálamo cortical é erroneamente confundida
com uma diferença entre propriedades.
Tal como um utente competente da linguagem pode compreender ‘a porção de
água neste copo’ e ‘a porção de H2O neste copo’ e não saber que água = H2O, e não
saber que são conceitos da mesma coisa, assim um utente competente da linguagem
pode compreender ‘dor’ e ‘oscilação no tálamo cortical’ e não saber que dor
=
oscilação no tálamo cortical , e não saber que são conceitos da mesma propriedade.
Tal como é falaciosa a confusão entre uso e menção, é falaciosa a confusão
entre propriedades e conceitos.
Tal como é falaciosa a confusão entre água e ‘água’ e entre H2O e ‘H2O’, é
falaciosa a confusão entre a propriedade de ser água e o conceito comum de água e
entre a propriedade de ser H2O e o conceito científico de H2O. Em particular, água
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não tem 4 letras como ‘água’ e H2O não é uma fórmula da química como ‘H2O’: a
molécula de 2 átomos de hidrogénio e de 1 átomo de oxigénio não é uma fórmula da
química.
Tal como é falaciosa a confusão entre dor e ‘dor’ e entre oscilação no tálamo
cortical e ‘oscilação no tálamo cortical’, é falaciosa a confusão entre a propriedade de
ser dor e o conceito comum de dor e entre a propriedade de ser oscilação no tálamo
cortical e o conceito científico de oscilação no tálamo cortical.
Ora, de uma diferença de conceitos não se segue uma diferença de
propriedades. Não há propriamente um critério de identidade para conceitos - por
exemplo, o conceito de água é diferente do conceito de H2O e o conceito de dor é
diferente do conceito de oscilação no tálamo cortical -, mas há o critério de identidade
para propriedades segundo o qual o que exemplifica a propriedade de ser água
exemplifica necessariamente a propriedade de ser H2O e, supondo que o materialista
identitativo tipo-tipo tem razão, o que exemplifica a propriedade de ser uma dor
exemplifica necessariamente a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical.
A propriedade de a água ser H2O pode ser descrita com conceitos diferentes,
conceitos diferentes da mesma propriedade.
A propriedade de a dor ser oscilação no tálamo cortical pode ser descrita com
conceitos diferentes, conceitos diferentes da mesma propriedade, supondo que o
materialista identitativo tipo-tipo tem razão.
De uma diferença conceptual entre conceitos fenomenológicos e conceitos
científicos não se segue uma diferença entre a propriedade de a água ser H2O e a
propriedade de a dor ser oscilação no tálamo cortical. Independentemente de qualquer
utente competente da linguagem, o que exemplifica a propriedade de ser água
exemplifica necessariamente a propriedade de ser H2O e, supondo que o materialista
identitativo tipo-tipo tem razão, o que exemplifica a propriedade de ser uma dor
exemplifica necessariamente a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical.
A diferença que obtém não é entre propriedades, mas em compreensão da
mesma propriedade por um utente competente da linguagem.
Conclusão
A ilusão de contingência que a distinção entre conceitos e propriedades é
suposta explicar não é a ilusão de contigência cuja explicação é requerida a quem
pretenda disputar o argumento de Kripke contra o materialismo identitativo
tipo.
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tipo-
Logo, tal como Kripke argumenta, não está disponível uma explicação para a
aparência de contigência de identidades psicofísicas tipo-tipo como está disponível
uma explicação para a aparência de contigência de identidades teóricas da física e da
química.
Bibliografia
ALMOG, Joseph, What Am I ? Descartes and the Mind - Body Problem, Oxford University
Press, 2002.
BLOCK, Ned, “The harder problem os consciousness”, Disputatio - International Journal of
Philosophy, No. 15, November 2003, pp. 5-49.
FREGE, Gottlob, “On Sinn and Bedeutung”,
GEACH, P. T. and BLACK, M. (eds. and tranlated by), Translations from
the Philosophical Wrintings of Gottlob Frege, Oxford, Blackwell.
7
KRIPKE, Saul A., Naming and necessity, Cambridge, Massachusetts, Harvard University
Press, 1980.
McGINN, Colin, The Character of mind, Oxford, Oxford University Press, 1996.
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