A FORÇA DO POVO: BRIZOLA E O RIO DE JANEIRO Copyright © Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - ALERJ Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.6 10 de 19.2 .1998 . É proibida a reprodução total C parcial, por qu a isq uer meios, sem a ex pressa anu ênc ia da editora. SUBOIRETORA GERAL DA ALER): Mayumi Sone COORDENAÇÃO DE PROJETOS ESPECIAIS: Arl indenor Pedro de Souza COORDENAÇÃO DO NÚCLEO DE MEMÓRIA POLíTICA CARIOCA E FLUM INENSE: Marieta de Moraes Ferreira COORDENAÇÃO DO VOLUME: Marieta de Moraes Ferreira PESQUISA E TEXTOS: Amér ica Freire, Carlos Eduardo Sarmento, Helena Bomeny, João Trajano Sento-Sé, Mari'eta de Moraes Ferrei ra, Marly Silva da Motta e Mônica Rodrigues ED iÇÃO DE TEXTO: Dora Rocha ESTAGIÁRIOS E AUXILIARES DE PESQUISA: Daniela Bacta, Lidiane Monteiro Ribeiro, Julia Oliveira Pedro de Souza, Jul iana Ribeiro de Oliveira, Roclrigo Tannus Moreira, Rosa Maria de Souza e Daniel Gigot de Sousa CA PA, PROJETO GRÁFICO E COMPOSiÇÃO: Leo Boechat C JP-Brasi l. Catalogação-oa-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. B862 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro / Organizadora Marieta de Moraes Ferreira; Marieta de Moraes Ferreira ... [et a!. ]. - Rio de Janeiro: Alcrj , C PDOC/FGV, 2008. 228 p. il. Inclui bibliogralla ISBN 978-85-6021 3- 02 -3 1. Brizola, Leonel, 1922-2004.2. Rio de Janeiro (Eslado). 3. História polftica. 4. Brizol ismo. 5. Pop ulismo. I. ferreira, Mari eta de Moraes. C DD ,320 .98 153 CDU: 98 1. 53 A FORÇA DO POVO: BRIZOlA E O RIO DE JANEIRO Marieta de Moraes Ferreira organizadora FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÃNEA DO BRASIL - CPDOC ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE MEMÓRIA POLÍTICA CARIOCA E FLUMINENSE ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Mesa Diretora JORGE PICCIANI Presidente CORONEL JAIRO 10 Vice- Presidente GILBERTO PALMARES PEDRO FERNANDES GERSON BERGHER 2° Vice-Presidente 3° Vice-Presidente 4° Vice-Presidente GRAÇA MATOS 10 Secretário JOSÉ CAMILO ZITO JORGE MOREIRA DICA FABIO SILVA 2 o Secretário 3° Secretário 4 0 Secretário RENATA DO POSTO P Suplente AMANDO JOSÉ 2° Suplente PEDRO AUGUSTO 3° Suplente EDINO FONSECA 4° Suplente Sumário Apresentação pág. 7 O Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense pág. 9 Introdução pág. 13 1. Do Rio Grande do Sul à Guanabara Marieta de Moraes Ferreira pág.15 2. Entre o carisma e a rotina: as eleições de 1982 e o primeiro governo Carlos Eduardo Sarmento pág.43 3. Imprensa: uma relação de amor e ódio Mônica Rodrigues pág.68 4. Salvar pela escola: Programa Especial de Educação Helena Bomeny pág.95 5. Novo sindicalismo e movimentos sociais Américo Freire pág.128 6. O projeto político: a presidência da República Marly Motta pág.151 7. A era do líder popular João Trajano Sento-Sé pág.182 Memórias do brizolismo Depoimentos colhidos por Mônica Rodrigues Fontes e bibliografia pág.215 pág.202 Apresentação BRIZOLA ERA, como ele bem se definia, uma planta do deserto. Dizia que bastava uma gota de orvalho para mantê-lo vivo. Quem, como eu, teve a honra de conviver com esse líder extraordinário) aprendeu que a paixão pelo Brasil era a seiva que o alimentava. Brizola falava do futuro como se menino fosse. Pouco antes de morrer) estava em plena ativa, fazia planos sem cogitar que a morte estivesse, como ele dizia para tudo o que estava próximo, ('coste- ando o alambrado". Sua partida foi tão surpreendente como lhe foi a vida, e o Brasil e a política ficam menores sem ele. A Assembléia Legislativa do Rio é, como dizemos, o lugar da memória do parlamento brasileiro, graças a iniciativas que recuperam a história política do nosso povo. Na Alerj, fizemos exposições, sessões de homenagens a Brizola e agora este livro. E foi aqui, quando esta casa não sonhava nascer, quando o Rio era a capital da República e aqui funcionava a Câmara dos Deputados, que Brizola teve um de seus momentos políticos mais brilhantes, como deputado federal mais votado do país. Fui militante do PDT, liderei sua bancada nesta Assembléia Legislativa e fui seu representante numa época em que o brizolismo estava em plena as- censão. Reconheço que, naquela época, o nível do debate político era outro, havia uma efervescência muito grande que empolgava tanto a nós quanto ao povo, que participava mais. Brizola, pela sua força indiscutível, pela bravura reconhecida por aliados e adversários, coerência e fervor na defesa das grandes causas nacionalistas e trabalhistas, nos liderava. Quem lhe fazia oposição tinha que ao mesmo tempo respeitar a sua biografia limpa. 7 8 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro Poucos políticos, nas seis últimas décadas, exerceram papel tão destacado na vida pública brasileira quanto ele. Conseguiu ser uma referência para muitos que passaram por ele. Sem nenhum exagero, eu me animo a afirmar que Brizola, desde o retorno do exílio, além de promover o resgate de importantes ícones do trabalhismo, cassados e com os direitos políticos suspensos, como ele, soube criar, pela via democrática seguida pelo PDT, uma escola de formação de importantes lideranças que estão aí até hoje. Relembrar a história de vida de Leonel Brizola na Alerj é fazer com que as pessoas comuns, o povo, os estudantes, com quem Brizola gostava de se relacionar, não se esqueçam da sua memória. Essa é a nossa missão) como membros do parlamento e como amantes da boa política. DEPUTADO JORGE PICCIANI Presidente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro o Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense EM MAIO DE 1997, foi firmado um convênio entre o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas e a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), com o objetivo de construir um centro permanente de produção intelectual e de referência documental sobre a história política contemporânea da cidade e do estado do Rio de Janeiro - o Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense. Durante a fase de implantação do Núcleo, de 1997 a 1999, foram desenvolvidas duas linhas de ação interligadas. A primeira delas consistiu na divulgação para o grande público da história do Palácio Tiradentes, centro da vida política do país entre as décadas de 1920 e 1950 e atual sede da Alerj. Para atingir esse objetivo, dois produtos foram preparados: uma exposição multimídia permanente instalada no próprio prédio da Assembléia, intitulada Palácio Tiradentes: lugar de memória do Parlamento brasileiro, e o CD-Rom Palácio Tiradentes, a casa do Poder Legislativo. A segunda linha de ação consistiu na publicação de um conjunto de livros de depoimentos e de análise sobre aspectos significativos da história política contemporânea carioca e fluminense. Duas coleções foram inicia- das: Conversando sobre Política, destinada a divulgar depoimentos, e Perfil Político, destinada a registrar biografias de políticos filiados a diferentes correntes político-ideológicas e partidárias, que tiveram participação destacada no cenário carioca e fluminense nos últimos 50 anos. Foi lançado ainda um volume avulso, dedicado ao jornalismo político, que sempre desempenhou importante papel na dinâmica política do Rio de Janeiro. 9 10 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro Os cinco primeiros volumes da coleção Conversando sobre Política reúnem os depoimentos de José Gomes Talarico, Paulo Duque, Erasmo Martins Pedro, Célio Borja c, num único livro, os de Hamilton Xavier e Saramago Pinheiro. Na série Perfil Político foi publicado um livro sobre a trajetória política de Chagas Freitas, principal líder de uma corrente política de grande peso no Rio de Janeiro entre as décadas de 1960 e 1980. Finalmente, o volume Crônica política do Rio de Janeiro reuniu entrevistas com jornalistas que atuaram, e ainda atuam, em diferentes órgãos da imprensa da cidade, desde seus tempos de capital federal até os de capital do estado do Rio de Janeiro. Em junho de 1999, foi assinada a renovação do convênio entre o CPDOC e a Alerj para dar prosseguimento às atividades do Núcleo. Nesta segunda fase, decidiu-se preparar um conjunto de publicações com vistas a consolidar o trabalho até então realizado. Para dar continuidade à coleção Conversando sobre Política, foi escolhido o depoimento do desembargador Jorge Loretti, homem público que conhece como poucos os meandros da política fluminense. Para divulgar a exposição Palácio Tiradentes: lugar de memória do Parlamento brasileiro, foi elaborado um catálogo que oferecerá a um público mais amplo um roteiro com textos e imagens referentes à história do palácio e da vida política do Rio de Janeiro. Nesta nova fase, decidiu-se também publicar livros relativos a um momento crítico da vida política do país e do Rio de Janeiro: as décadas de 1970 e 1980, marcadas pelo desgaste do regime militar e pela luta democrática. No Rio de Janeiro, esses foram anos de profundas mudanças, causadas, entre outros fatores, pela fusão em 1975 do estado da Guanabara com o antigo estado do Rio. Três livros trataram desses temas. O primeiro, intitulado Vozes da oposição, reúne depoimentos de homens e mulheres que lutaram nos partidos políticos e nos parlamentos, mas também na sociedade civil, contra o regime militar. O segundo livro, A construção de um estado: a fusão em debate, contém entrevistas com uma série de homens públicos que estiveram en1 posição de governo antes e depois da fusão. O terceiro, Um estado em questão: os 25 anos do Rio de Janeiro, é uma coletânea de artigos assinados por especialistas, sobre aspectos de natureza política, social, econômica e cultural do estado do Rio de Janeiro no período 1975-2000. No ano de 2001, foi lançada uma nova coleção, com o objetivo de divulgar trabalhos acadêmicos de interesse para o Núcleo: Estudos do Rio de Janeiro. Nela foram publicados três volumes sobre diferentes momentos da o Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense 11 vida política carioca, a saber: Guerra de posições na metrópole: a Prefeitura e as empresas de ônibus no Rio de Janeiro (1906-1948), de Américo Freire; O Rio de Janeiro na era Pedro Ernesto, de Carlos Eduardo Sarmento; Rio de Janeiro: de cidade-capital a estado da Guanabara, de Marly Silva da Motta. Em 2003, mais um volume foi acrescentado à série: Paulo de Frontin, discursos parlamentares, organizado por Américo Freire. Em 2004, o depoimento de Pedro Fernandes veio somar-se à coleção Conversando sobre Política. Este volume, o segundo da série Perfil Político, é dedicado a Leonel Brizola. Composto de sete artigos, não pretende esgotar a biografia do líder trabalhista, e sim focalizar sua atuação no Estado da Guanabara, posteriormente estado Rio de Janeiro. O Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense tem uma página na internet, no endereço www.http://memoriapolitica.rj.gov.br. Nela, o usuário poderá obter informações sobre todas as realizações do Núcleo, além de um conjunto de dados importantes sobre a política carioca e fluminense. A constituição do Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense foi possível graças à iniciativa da Mesa Diretora da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, presidida na época pelo então deputado Sérgio Cabral Filho, e à acolhida da Fundação Getulio Vargas, então presidida por Jorge Oscar de Mello Flôres. Os atuais presidentes da Assembléia, Jorge Picciani, e da FGV, Carlos Ivan Simonsen Leal, assim como seus antecessores, têm dado todo o apoio às atividades do Núcleo. No CPDOC, as ex-diretoras Lucia Lippi Oliveira e Marieta de Moraes Ferreira acompanharam desde o início os esforços da equipe. O atual diretor, Celso Castro, assegurou os recursos humanos e materiais para o desenvolvimento das atividades. O gerente administrativo Felipe Rente enfrentou os meandros da execução do convênio com a Alerj com inigualável capacidade de trabalho. Desde março de 2003, a Coordenadoria de Projetos Especiais da Alerj, tendo à frente Arlindenor Pedro de Souza, é a responsável pelos projetos desenvolvidos em parceria com o CPDOC e tem demonstrado o mesmo empenho que marcou a gestão da comissão anterior, composta, além de Arlindenor Pedro de Souza, por Sérgio Ruy Barbosa Guerra Martins, Lígia Marina de Sá Pires de Moraes, Marcos da Silva Neves e Aloysio Neves. Para a realização 12 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro deste livro, foi fundamental a atuação de Mayumi Sone, subdiretora geral da Alerj. Os pesquisadores Américo Freire, Carlos Eduardo Sarmento, Marieta de Moraes Ferreira e Marly Motta, além de se revezarem na coordenação do Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense, foram responsáveis pela execução dos projetos no CPDOC. A pesquisadora Adelina Cruz é a encarregada do acompanhamento da homepage do Núcleo, e a editora Dora Rocha responde pela supervisão geral das publicações. MARIETA DE MORAES FERREIRA Coordenadora Introdução Poucos PERSONAGENS da história política brasileira tiveram uma trajetória tão rica como Leonel Brizola. Deputado estadual e federal, prefeito, governador de dois estados diferentes, foi criador de movimentos, entidades e partidos políticos, líder de massas, enfim, um protagonista que marcou seu lugar nos principais eventos contemporâneos brasileiros e que tem gerado muitas polêmicas em torno das posições que assumiu. Com tudo isso, Brizola ainda é tema pouco explorado pela historiografia brasileira. Um levantamento ainda que preliminar sobre figura tão instigante indica um número pouco significativo de títulos. Esses trabalhos em geral estão voltados ou para a análise de eventos ou conjunturas mais amplas, como o trabalhismo, o golpe militar, o processo de abertura política, ou para aspectos particulares de sua ação política, mas não dão conta de desvendar os elementos centrais de sua biografia. Este livro, elaborado no âmbito do convênio entre a Alerj e o CPDOCFGV, integra-se ao esforço para ampliar os estudos sobre a história política brasileira contemporânea e contribuir para o melhor entendimento da trajetória do líder trabalhista Leonel Brizola. Nossa proposta não é, nem poderia ser, a de esgotar o assunto. Assim, não iremos explorar sua longa biografia, que se estende de 1922 a 2004, mas sim focalizar sua atuação no Rio de Janeiro, no período que vai de 1962, quando de sua eleição para deputado federal pelo estado da Guanabara, até sua última candidatura, ao Senado, em 2002, pelo estado do Rio de Janeiro. Também não pretendemos dissecar todos os aspectos da carreira do líder pedetista no período mencionado, em especial seus dois mandatos à frente do Executivo fluminense (1983-1987 e 1991-1994), mas sim explorar alguns eixos de análise: seu ingresso na vida política do Rio, 13 14 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro visto como palco para a consolidação de sua liderança na esfera nacional; as eleições de 1982 e a afirmação do PDT no quadro partidário fluminense; as relações com a mídia e com os movimentos sociais; as políticas para a educação; o projeto de conquistar a presidência da República, e as características do líder popular. Reunindo um grupo de pesquisadores que têm fortes interesses nos estudos sobre a história política fluminense, este livro pretende também, em seus sete artigos, lançar luz sobre aspectos da cultura política do estado do Rio de Janeiro e sobre as ambigüidades da relação entre a nacionalização de suas lideranças e as demandas regionais e locais. MARIETA DE MORAES FERREIRA Organizadora 1. Do Rio Grande do Sul à Guanabara Marieta de Moraes Ferreira' Ao SE APROXIMAR o fim de seu mandato de governador do Rio Grande Sul (1959-1963), Leonel Brizola deslocou sua atuação de seu estado natal para a Guanabara. Essa escolha, fundamental para sua carreira política, pode ser classificada como "um evento biográfico!!, 1 um momento crucial na trajetória de um indivíduo, em que ocorrem transformações que têm conseqüências relevantes para seu futuro. Para começar a entender esse evento, é preciso lembrar o que significava a Guanabara no início da década de 1960. Tratava-se de um estado criado no ano de 1960, quando a cidade do Rio de Janeiro deixou de ser Distrito Federal, por força da transferência da capital do país para Brasília. Sede da Colônia desde 1763, da Corte desde 1808, do Império desde 1822, e capital da República desde 1889, durante muito tempo o Rio foi o palco e a cmxa de ressonância dos empreendimentos culturais, científicos e políticos do país. Por isso, era visto como ('um espaço fundamentalmente nacionat, que permitia que políticos das mais variadas procedências, "independentemente de onde anteriormente vivessem e/ou atuassem politicamente", se destacassem como porta-vozes de questões de interesse geral da nação 2 Ainda não foi nos primeiros anos de Brasília que o Rio teve sua posição ameaçada. Portanto, a vinda de Brizola para o estado da Guanabara significou Doutora em história, pesquisadora do CPDOC-FGV e professora do Departamento de História da UFRJ. 1 Ver Levillan (2003: 141-184). Este conceíto foi desenvolvido por BonE & Zinn (2003). 'Ver Silva (2005, 96). 't 15 ~ ... A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro 16 exatamente a possibilidade de amplificar suas ações políticas, fazendo com que seu discurso conquista'>Se repercussão nacional e internacional. Na verdade, esse processo começou antes da transferência física de Brizola. Em 1961, quando, ainda no Sul, defendeu a posse de João Goulart na presidência da República através da "cadeia da legalidade", Brizola deu um passo importante na escalada em direção à política nacional. Em 1962, quando lançou sua candidatura a deputado federal pela Guanabara, na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), esse deslocamento começou a se concretizar. A construção de uma base política no Rio de Janeiro, que então se iniciou, teria efeitos duradouros, que sobreviveriam ao golpe militar de 1964 e a 15 de anos de exílio, e permitiriam seu retorno em grande estilo à vida política nos anos 1980. Àquela altura, a Guanabara já não existia: era parte do estado do Rio de Janeiro resultante de sua fusão com o antigo Estado do Rio em 1975. Brizola iria governar esse estado por duas vezes. Se não conseguiu chegar à presidência da República, isso não significa que não se tenha transformado num líder nacional. É da formação da base política que o conduziu a essa posição que este texto irá tratar. Antes, porém, será feito um breve resumo do cenário político do país e da trajetória de Brizola até deixar o governo gaúcho.' Credenciais: petebista e nacionalista Quando o desgaste da ditadura do Estado Novo se tornou evidente, em 1945, o presidente Getúlio Vargas procurou conduzir ele próprio o país em direção à democratização. Foram assim marcadas eleições e criados partidos políticos. Concentrando a oposição ao governo) surgiu a União Democrática Nacional (UDN); reunindo os aliados de Vargas, formaram-se o Partido Social Democrático (PSD) e o PTB. Brizola, então com 23 anos, aluno da Escola de Engenharia da Universidade do Rio Grande do Sul, decidiu ingressar na política filiando-se ao PTB. Concebido pessoalmente por Vargas, o PTB tinha como objetivo ser um espaço de participação política para setores populares, afastando-os da 3 As principais fontes deste resumo são os verbetes 'Brizola, Leonel' e 'Goulart, João' em DHBB. __ ._-------------------------------~ Do Rio Grande do Sul à Guanabara 17 influência do Partido Comunista (PCB). O veículo primordial para sua organização foi o Ministério do Trabalho, que, pela influência que exercia nos sindicatos, atraiu os trabalhadores para o novo partido. Também as camadas populares urbanas eram visadas, e para atraí-las o PTB procurou capitalizar o prestígio adquirido por Vargas com a legislação social e trabalhista implementada durante o Estado Novo. Com esse ponto de partida, o PTB definiu seu programa e seus compromissos: defesa dos direitos dos trabalhadores, inclusive os rurais; ampliação e eficácia da Justiça do Trabalho; planificação e presença do Estado na gestão econômica, para garantir o desenvolvimento do país; melhor redistribuição da riqueza e extinção do latifúndio improdutivo; acesso à terra a todos que quisessem trabalhá-la. Ao ingressar no partido e nele ocupar diferentes posições, Brizola comprometeu-se com esse ideário e lutou de diferentes formas pra garantir o êxito dessas propostas. Foi na legenda do PTB que Brizola se elegeu deputado estadual em 1947. Em março de 1950, casou-se com Neuza Coulart, irmã de João Coulart, então emergente líder petebista, e em outubro do mesmo ano foi reeleito. No início da nova legislatura, em 1951, assumiu a liderança da bancada trabalhista na Assembléia Legislativa gaúcha. Exerceu seu novo mandato por cerca de um ano, até ser nomeado, em 1952, secretário estadual de Obras do governo de Ernesto Dornelles. A despeito do desempenho limitado do PTB gaúcho nas eleições para as prefeituras municipais e para o Legislativo em 1954, foi eleito deputado federaL Ao assumir sua cadeira na Câmara dos Deputados no início de 1955, teve seus primeiros embates com Carlos Lacerda, da UDN. Em outubro seguinte, foi eleito prefeito de Porto Alegre, estabelecendo como prioridade o atendimento das reivindicações das classes trabalhadoras - saneamento básico, criação de escolas e melhoria dos transportes coletivos. Seu bom desempenho à frente da prefeitura da capital gaúcha o credenciou para disputar com êxito o governo estadual, sempre na legenda do PTB, em outubro de 1958. Conquistou seus eleitores graças ao direcionamento de sua campanha para os setores populares, sendo eleito com 55% dos votos e derrotando assim as forças udenistas e pessedistas 4 À frente do governo gaúcho, Brizola deu prioridade ao desenvolvimento industrial, baseado em investimentos do capital privado nacional e do governo 4 Ver Bandeira (1979). 18 li,1 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro estadual. Nessa opção estava implícita a luta contra o capital estrangeiro. Fiel a essa orientação, em maio de 1959 encampou a Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense, filial da Arnerican and Foreign Power Company (Arnforp), tornando-se a partir de então uma expressiva liderança da esquerda nacionalista brasileira. Em contrapartida, a medida gerou uma grave crise nas relações entre o Brasil e os Estados Unidos, que explodiria mais tarde, com toda a intensidade, no governo de João Goulart. Como governador, Brizola ampliou sua capacidade de ação, seja desenvolvendo programas de dinamização para a economia gaúcha, seja criando projetos de políticas públicas voltadas para as camadas populares, ou ainda engajando-se em lutas de dimensões nacionais. Já na sucessão presidencial de 1960, discordando do PSD e de setores do PTB que estavam lançando a candidatura do general Henrique Lott, começou a planejar, em conjunto com lideranças sindicais, a organização de uma série de greves a serem deflagradas para pressionar o lançamento de um candidato popular e nacionalista. O projeto não foi adiante, e João Goulart acabou por apoiar o nome de Lott e por aceitar disputar a seu lado a vice-presidência. O resultado da eleição é conhecido: como não havia vinculação obrigatória, o petebista Goulart tornou-se o vice-presidente de Jânio Quadros, eleito com o apoio da UDN. Com suas iniciativas, Brizola passou a ocupar paulatinamente espaços de destaque no PTB e na cena política nacional, posicionando-se como um interlocutor reconhecido nas articulações e qualificando-se como uma liderança emergente. Esse papel ficaria ainda mais claro a partir de 1961. Na "cadeia da legalidade" No dia 25 de agosto desse ano, quando Jânio Quadros renunciou à presidência, teve início no país uma crise de grandes proporções. A Constituição de 1946, então em vigor, previa a investidura do vice-presidente, que se encontrava em viagem oficial à China. Entretanto, os ministros militares, com o apoio de importante parcela das Forças Armadas e de um grupo de civis visceralmente antigetulistas, vetaram a posse de João Goulart, alegando que ela significaria uma ameaça à ordem e às instituições. Nos dias seguintes, a conjuntura política nacional foi polarizada pela luta entre os partidários do veto e os defensores da legalidade, chegando a haver reais possibilidades de um confronto armado. Do Rio Grande do Sul à Guanabara 19 Foi nesse contexto que o governador Brizola articulou o principal foco de resistência ao veto a Coulart, liderando no Rio Crande do Sul uma campanha de alcance nacional. A ocupação das rádios Cuaíba e Farroupilha permitiu ao governo gaúcho formar a "cadeia da legalidade", que integrou 104 emissoras dos estados do Rio Crande do Sul, Santa Catarina e Paraná, e passou a transmitir os sucessivos discursos de Brizola exortando a população a se mobilizar em defesa da Constituição. Em discurso de 28 de agosto de 1961, por exemplo, declarava ele em tom inflamado: "Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores. O certo, porém, é que não será silenciada sem balas. Tanto aqui como nos transmissores estamos guardados por fortes contingentes da Brigada Militar."5 Informado da extensão da crise, Coulart apressou a volta, chegando a Paris no dia 28 de agosto com a intenção de regressar imediatamente ao Brasil. Recebeu, porém, um telefonema da comissão executiva nacional do PTB, que lhe fez um apelo para adiar por dois dias o regresso, a fim de que lhe fossem enviadas notícias mais completas sobre a situação do país, uma vez que os ministros militares ameaçavam prendê-lo tão logo desembarcasse. No dia 29, o Congresso Nacional rejeitou o pedido de impedimento do vice-presidente e começou a discutir uma solução conciliatória, que consistia na implantação do sistema parlamentarista de governo. Insatisfeitos, no dia seguinte os ministros militares lançaram um manífesto no qual expunham as razões de sua oposição a Goulart. O documento acusava o vice-presidente de incentivar {'agitações nos meios sindicais" e de entregar postos-chave nos sindicatos a "agentes do comunismo ínternacional", o que o tornava uma ameaça à segurança nacional e à manutenção da hierarquia nas Forças Armadas. Além disso, o manifesto ressaltava a admiração expressa por Coulart pelas comunas populares durante sua visita à China Popular. 5 Sitc do PDT: http://vvw,v.pdt.org.brlpersonalidades/brizola_historia_l.asp (discurso de Brizola), acesso em 5/2/2007. A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro 20 Ao mesmo tempo em que os ministros militares reiteravam sua posição, as forças favoráveis à posse do vice-presidente ampliavam sua articulação e ganhavam novas adesões. Ainda no dia 30, os governadores do Paraná, Ney Braga, e de Goiás, Mauro Borges, aderiram ao movimento pela legalidade, declarando-se dispostos a usar armas contra as forças que se opunham à posse de Goular!. O mesmo fez o general Machado Lopes, comandante do IH Exército, com sede no Rio Grande do Sul, ao anunciar oficialmente, através da "cadeia da legalidade", que aderira ao movimento. Os demais comandantes regionais inclinaram-se a acompanhar essa posição. O apoio à posse de Goulart também crescia entre estudantes, intelectuais e sindicatos de trabalhadores, que deflagraram várias greves. A situação política se radicalizava. No mesmo dia 30, o ministro da Guerra nomeou o general Osvaldo Cordeiro de Farias para o comando do III Exército, destituindo Machado Lopes. Enquanto Brizola conclamava a população gaúcha a defender o Rio Grande do Sul, Machado Lopes advertia que, se Cordeiro de Farias desembarcasse em Porto Alegre, seria preso. A dissensão no Rio Grande do Sul colocou o país sob ameaça de guerra civil. Enquanto isso, Goulart aproximava-se do território brasileiro, fazendo uma primeira escala em Nova York no dia 30 de agosto. Nessa cidade, concedeu entrevista à imprensa em que declarou que seguiria para a Argentina e chegaria ao Brasil pelo Rio Grande do Sul. Impedido de desembarcar em Buenos Aires, viu-se obrigado a rumar para Montevidéu. Na capital uruguaia, reuniu-se com Tancredo Neves e Hugo de Faria, que haviam recebido a missão de convencê-lo a aceitar o regime parlamentarista de governo, con- dição para a retirada do veto dos ministros militares. Mesmo contando com o apoio de setores que rejeitavam essa fórmula conciliatória e defendiam sua posse dentro do regime presidencialista, Goulart aceitou a proposta a fim de encerrar, sem derramamento de sangue, a crise que inquietava o país. Em 10 de setembro, desembarcou em Porto Alegre, onde foi recebido com enorme manifestação popular. No dia seguinte, o Congresso aprovou, por 253 votos contra 55, a Emenda Constitucional n° 4, que instituiu o parlamentarismo, limitando os poderes presidenciais. A seguir foi divulgado um comunicado que afirmava que as Forças Armadas acatavam a forma parlamentarista de governo e davam total garantia ao desembarque de Goulart em Brasília, bem como à sua investidura na presidência. Do Rio Grande do Sul à Guanabara 21 Uma vez em Brasília, Goulart não quis ser empossado logo no dia seguinte, pois, segundo suas próprias palavras, desejava se inteirar melhor dos acontecimentos e se recuperar das duras críticas feitas por alguns de seus familiares por ter aceito tomar posse nas condições impostas. Referia-se a ninguém menos que Brizola, que havia feito declarações contundentes contra sua postura conciliadora. O desenrolar desses acontecimentos, do dia 25 de agosto até 7 de setembro, quando João Goulart foi empossado na presidência da República, colocou Brizola no centro das atenções, projetando seu nome para além da esfera estadual e transformando-o de fato numa liderança nacional. No governo parlamentarista Ao assumir a presidência, João Goulart procurou desarmar seus opositores ampliando a base política do governo. Sem abrir mão de sua relação com setores de esquerda, buscou o apoio do centro, praticando uma política de conciliação baseada no diálogo com os diversos partidos representados no Congresso. Coerente com essa orientação, o primeiro gabinete parlamentarista, chamado de ((união nacional", foi composto por uma representação equilibrada da maioria dos partidos, sob a chefia do pessedista Tancredo Neves. Mais uma vez, desde os primeiros momentos, essa política de conciliação teve em Brizola um crítico radical. Na sua avaliação, Goulart já se havia equivocado ao aceitar a emenda parlamentarista e assumir o governo com suas atribuições reduzidas. Por isso mesmo, durante toda a vigência do parlamentarismo, Brizola iria lutar pela realização do plebiscito previsto na Emenda Constitucional n° 4 e pelo retorno ao presidencialismo. Além de buscar a conciliação, Goulart tinha um programa de governo que colocava como pontos centrais reajustes salariais periódicos compatíveis com os índices inflacionários, uma política externa independente, a nacionalização de algumas subsidiárias estrangeiras, e as chamadas reformas de base (agrária, bancária, administrativa, fiscal, eleitoral e urbana). As reformas que o PTB já levantara como bandeira desde 1958 pareciam finalmente próximas de uma implementação. E Brizola se colocava como um líder disposto a acelerar o processo de mudanças na sociedade brasileira. Os objetivos de Goulart, inicialmente formulados de modo genérico, foram sendo delineados mais claramente através de sua atuação no governo. 22 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro o presidente reafirmava a necessidade de mudanças no país, na esperança de que o Congresso solucionasse problemas como os da reforma agrária, do abuso do poder econômico e da disciplina do capital estrangeiro. No que diz respeito especificamente à reforma agrária, em novembro de 1961 Goulart destacou a necessidade de alterar o princípio constitucional que exigia indenização prévia em dinheiro pelas terras desapropriadas. A seu ver, o pagamento das terras poderia ser feito em títulos da dívida pública. Esse ponto de vista não era porém compartilhado pelos nomes mais significativos de seu ministério, o que demonstrava a precariedade da política de alianças sobre a qual se baseava o governo, e as dificuldades enfrentadas na busca de um consenso. A realização de uma reforma agrária colocava problemas de difícil solução, como o de definir que tipo de reforma deveria ser feita: a quem beneficiaria e em que nível, em detrimento de que forças sociais e políticas. Era preciso saber também quais os instrumentos jurídicos disponíveis para executá-la, e que alianças fazer para tornar seus custos sociais viáveis. Com o objetivo de melhor responder a essas questões, o governo encarregou o ministro da Agricultura de organizar um grupo de trabalho para elaborar um anteprojeto. O grupo atendeu à orientação conciliadora do gabinete, discutindo soluções alternativas àquela proposta pelo presidente, que era apoiada pelas forças de esquerda. Essas discussões, no cômputo final, mostraram-se pouco frutíferas. Nesse contexto de dificuldades para o avanço das propostas reformistas, Brizola articularia, em 1962, a Frente de Mobilização Popular (FMP), com a finalidade de congregar as forças políticas antiimperialistas e pró-reformas. 6 O governador gaúcho reuniu representantes de organizações como o recém-criado Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), órgão não-oficial de coordenação do movimento sindical, o Pacto de Unidade e Ação (PUA), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), além de parlamentares da Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e líderes de entidades camponesas e feministas. Ao mencionar os objetivos do movimento, afirmou que o povo desejava <llibertar-se dos seus espoliadores, da miséria e do atraso, do latifúndio e da exploração"? 6 7 Ver verbete 'Frente de l\iIobilização Popular' em DHBB. Última Hora, 22 de março de 1962, p. 4. Do Rio Grande do Sul à Guanabara 2J Com iniciativas dessa natureza, Brizola conquistava cada vez mais espaços na política nacional e assumia a liderança das forças radicais de esquerda. Outro tema que colocou Brizola no centro dos acontecimentos foi o do controle do capital estrangeiro no país. Em outubro de 1961, o Ministério das Minas e Energia apresentou a proposta de cancelar todas as concessões de jazidas de ferro feitas ilegalmente ao grupo norte-americano Hanna Company. Esse contexto de acirramento das lutas nacionalistas estimularia ainda mais o governador do Rio Grande do Sul a avançar com sua política dc nacionalização, efetivando a desapropriação, em fevereiro de 1962, dos bens da Companhia Telefônica do estado, subsidiária da firma norte-americana International Telephone & Telegraph (ITT). Esse fato repercutiu na imprensa nacional e internacional, intensificando o debate em torno da nacionalização das concessionárias de serviço público. Com essas iniciativas, Brizola se capacitava a competir com Goulart na liderança das forças de esquerda e das lideranças sindicais, e mesmo dentro do PTB. Nessa primeira fase do governo Goulart, destacou-se também a nova orientação dada à política externa brasileira. Assim, em novembro de 1961, o Brasil restabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética, interrompidas desde 1947, no governo Dutra. A justificativa para a medida eram as amplas possibilidades representadas pelo mercado soviético para as exportações brasileiras. Ainda de acordo com essa orientação, o governo Goulart rechaçou as sanções contra Cuba propostas pelos Estados Unidos, assim como os preparativos para a intervenção armada naquele país sob a cobertura da Organização dos Estados Americanos (OEA). Na Conferência de Punta dei Este, realizada entre 22 e 31 de janeiro de 1962, o chanceler brasileiro San Tiago Dantas defendeu a neutralidade em relação a Cuba, enfrentando a oposição dos Estados Unidos, que procuravam impor suas pretensões aos países da América Latina. A posição do governo brasileiro, ainda que apoiada por significativos setores sociais, criou uma situação de desentendimento com \iVashington, dificultando as relações entre os dois países. Em março de 1962, novamente coerente com a Iinlia adotada na política externa, a delegação brasileira enviada a Genebra para participar da Conferência de Desarmamento definiu a posição do Brasil como dc potência não-alinliada, desvinculada de qualquer bloco político-militar. Brizola se manifestou favoravelmente à política externa 24 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro independente, mas novamente discordou da política oficial brasileira de conciliar com os Estados Unidos na condução da questão cubana, por ocasião da visita do presidente João Goulart àquele país em abril de 1962. Ao findar o primeiro semestre de 1962, o gabinete Tancredo Neves, que se caracterizava por uma prática política de compromisso e de tentativa de união nacional, perdeu a razão de ser. Diante dos obstáculos enfrentados para pôr em prática seu programa de governo e para superar as graves dificuldades econômicas que enfrentava, Goulart começou uma campanha pelo retorno ao presidencialismo, alegando a necessidade de ter um Executivo forte. A pretexto de atender à exigência legal de desincompatibilização para concorrer às eleições de outubro de 1962, no dia 26 de junho todos os membros do gabinete pediram demissão. Na campanha do plebiscito A renúncia de Tancredo Neves e a indicação feita por Goulart do nome de San Tiago Dantas para o cargo de primeiro-ministro fizeram eclodir nova crise. O ex-chanceler era apoiado pelos setores nacionalistas e de esquerda do Congresso e pelo movimento sindical, mas as bancadas do PSD e da UDN se uniram para vetar sua indicação) em virtude exatamente de seu desempenho à frente do Ministério das Relações Exteriores. Pressionado pelas forças conservadoras, Goulart indicou então o pessedista Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, que teve seu nome aprovado no dia 3 de julho de 1962. Apenas o PTB votou contra essa indicação. Enquanto o nome de Aura de Moura Andrade era homologado pelo Congresso, os líderes sindicais Dante Pelacani, Domingos Álvares e Luís Tenório de Lima se reuniam em São Paulo com dirigentes dos sindicatos filiados à Federação dos Metalúrgicos e ao Fórum Sindical de Debates para preparar uma greve geral em todo o país, em desagravo a San Tiago Dantas e em apoio ao presidente Goulart. Seu objetivo era também obter um gabinete e um primeiro-ministro favoráveis ao programa de reformas. Diante de tantas pressões, e da recusa do presidente em aceitar o gabinete que propunha, Aura de Moura Andrade acabou por renunciar. Em 10 de julho, finalmente, Goulart indicou o pessedista gaúcho Brochado da Rocha, ex-secretário de Justiça do governo Brizola. Aprovado pelo Do Rio Grande do Sul à Guanabara 25 Congresso, o novo primeiro-ministro prometeu antecipar para dezembro de 1962 a realização do plebiscito que decidiria sobre a continuidade do regime parlamentarista, previsto anteriormente para o início de 1965. Um dos líderes do movimento em favor da volta ao presidencialismo, Brizola apoiou essa decisão. No gabinete Brochado da Rocha, o PTB adquiriu maior participação no poder. Ainda que pertencente aos quadros do PSD, o novo primeiro-ministro tinha ligações com os petebistas. Tinha também desempenhado importante papel na encampação da subsidiária da ITT no Rio Grande do Sul, o que lhe dava prestígio nos meios nacionalistas. Mais próximo do PTB e dos grupos de esquerda, o novo gabinete pretendia obter poderes especiais para legislar sobre as reformas, além de conseguir a restauração do presidencialismo. 8 Em agosto, Brochado da Rocha cumpriu sua promessa, apresentando projeto que fixava a data do plebiscito em dezembro de 1962. Os udenistas, liderados por Carlos Lacerda, então governador da Guanabara (1961-1965), atacaram a proposta, acusando Goulart de estar comprometido com os comunistas. Brizola liderava os setores esquerdistas, ameaçando o Congresso com intervenção armada caso este não apoiasse a realização do plebiscito em dezembro. Outra iniciativa de Brochado da Rocha, ainda no mês de agosto, foi solicitar oficialmente que o Congresso delegasse poderes ao governo para legislar sobre temas como o monopólio da importação de petróleo e derivados, o comércio de minérios e materiais nucleares, o controle da moeda e do crédito, o Estatuto do Trabalhador Rural, os arrendamentos rurais, a desapropriação por interesse social e a criação de um órgão executor da política de reforma agrária. Essa delegação de poderes tinha a intenção explícita de acelerar a execução de medidas em lento processo de discussão nas duas casas do Congresso e, de outro lado, induzir o Poder Legislativo a encaminhar ele próprio as medidas prioritárias, se quisesse evitar que o Executivo o fizesse em regime de urgência. Enquanto os empresários paulistas e grande parte dos parlamentares se manifestaram contra a delegação de poderes requerida pelo primeiro-ministro, o CGT comprometeu-se a B Ver verbete 'Partido Trabalhista Brasileiro' em DHBB. A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro 26 defender o programa do novo gabinete e a trabalhar pela volta ao regime presidencialista, sob a condição de que fossem atendidas suas reivindicações fundamentais, como a revogação da Lei de Segurança Nacional, a concessão de 100% de aumento no salário mínimo e a implementação das reformas de base. O CGT reivindicava ainda a realização do plebiscito no dia 7 de outubro de 1962, data fixada para as eleições legislativas, sob pena de deflagrar uma greve geral no mês seguinte. A despeito dos esforços de Brizola e do PTB para sustentar as iniciativas de Brochado da Rocha, em 14 de setembro, não tendo conseguido que o Congresso aprovasse seu projeto, o primeiro-lninistro renunciou. No dia seguinte o CGT decretou uma greve geral, recebendo o apoio de setores militares nacionalistas, Diante desse quadro, o Congresso cedeu às pressões e em 15 de setembro aprovou a Lei Complementar nO 2, que estabeleceu a realização do plebiscito em 6 de janeiro de 1963. Goulart obteve permissão para constituir I",' '" " imediatamente um conselho de ministros provisório, sem autorização prévia do Congresso, e encarregou Hermes Lima de organizar, como primeiro-mi- nistro, o gabinete que vigoraria até 6 de janeiro. Vencida a campanha pela antecipação do plebiscito e organizado o ministério, Goulart iria lançar-se à campanha pelo retorno ao presidencialismo, para a qual contou, mais uma vez, com a ajuda de Brizola. Paralelamente a esses movimentos, desenrolavam-se os preparativos para as eleições de outubro de 1962, quando seriam renovados parte do Senado, a Câmara dos Deputados, as Assembléias Legislativas estaduais, as Câmaras Municipais e parte dos governos estaduais e municipais. As eleições de 1962 tinham um significado especial, pois representavam a possibilidade de o governo ampliar sua base de sustentação no Congresso e assim reunir os recursos políticos necessários para dar encaminhamento às reformas de base pela via constitucional. Nesse contexto, a luta pelo voto tornou-se acirrada. Tentando sustar o avanço dos candidatos de esquerda e vinculados ao esquema de sustentação do governo Goulart, as forças oposicionistas articularam, através do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que havia sido fundado em 1959 com o objetivo de combater a propagação do comunismo no Brasil, toda uma rede de financiamento para seus candidatos. Em contrapartida, o governo e as forças de esquerda envidaram esforços para neutralizar a ação dos grupos conservadores.