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IIª Parte
Manifestações do Novo Direito Administrativo (NDA)
(…)
d) Autonomização de novas formas de actuação administrativa
5. O NDA caracteriza-se, também, por recuperar alguns instrumentos
administrativos que entretanto haviam perdido actualidade, como acontece com o
plano administrativo, por incrementar novos instrumentos, como as actuações
informais, e por “miscelanizar” os instrumentos tradicionais, criando novos tipos.
5.1. O plano administrativo emerge neste contexto como um instrumento
adequado à actividade desenvolvida pelo “Estado incentivador e garantidor”, pois não
só fornece a possibilidade de traçar um “quadro de implementação estratégica de
medidas”, como ainda cria condições para o alicerçamento de expectativas fundadas
por parte dos destinatários das medidas que ajudam no controlo da respectiva
execução. O plano renasce, nesta perspectiva, como um instrumento conglomerador
dos interesses convergentes e divergentes, contrapondo-se à perspectiva tradicional
de exteriorização de orientações públicas pré-definidas.
Um dos motores da “reabilitação do plano” foi o desenvolvimento do direito
europeu e a importância que as instituições europeias reconheceram ao plano no
contexto do desenvolvimento e implementação das políticas preconizadas no Tratado
(ex. Agenda territorial da UE, programas de redes transeuropeias). Entre as
características positivas do plano ganharam destaque: o seu carácter flexível e a sua
Suzana Tavares da Silva
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maior plasticidade face aos instrumentos legislativos, a forma sustentada e participada
em que repousa a sua elaboração (instrumento privilegiado para articular interesses),
a sua maior aptidão para orientar comportamentos de forma mais efectiva, sobretudo
influenciando terceiros, e a maior facilidade no controlo de resultados.
O plano apresenta-se, contudo, como um instrumento heterogéneo que
assume diferentes modalidades, para além dos planos urbanísticos – hoje ainda
associados a um modelo de desenvolvimento do ordenamento urbano up to bottom, o
qual se espera que venha igualmente a evoluir para um sistema de programação,
numa aproximação a um modelo pós-vinculístico do ordenamento do território –
ganham relevância os planos programáticos – que são instrumentos de natureza
política, em regra compostos por duas dimensões, uma parte indicativa onde se traça
a estratégia (ex. Estratégia Nacional para a Energia) e uma parte operativa, onde são
desenvolvidas diversas linhas de acção destinadas à concretização do plano, que se
integram já num momento de implementação das políticas, podendo assumir diversas
formas, desde programas concretos (ex. Programa Nacional de Barragens com Elevado
Potencial Hidroeléctrico), aprovação de regimes jurídicos (ex. Decreto-Lei n.º
182/2008, de 4 de Setembro, diploma legal que veio, após a aprovação do PNBEPH,
estabelecer algumas orientações sobre a sua implementação e o procedimento de
selecção das entidades privadas que quisessem colaborar nessa implementação) ou
mesmo celebração de contratos (ex. adjudicação de capacidade eólica) – e os planos
sectoriais – que constituem uma categoria que alia uma componente territorial a uma
componente estratégico-programática (exemplo deste tipo de planos sãos os planos
de instituições de saúde na Alemanha, que aliam a componente pública de escolha da
localização das unidades de saúde e a componente financeira, que permite às
empresas seguradoras e outras unidade de financiamento e de participação activa no
sistema de saúde, assim como aos utentes, calcular com maior rigor os custos e tomar
opções de investimento quer em propostas de seguros quer na construção de
unidades hospitalares privadas, de forma a permitir alcançar soluções mais eficientes),
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entre nós, este tipo de planos começa a desenvolver-se em sectores económicos
privatizados onde o Estado pretende apenas reservar para si uma função incentivadora
e o papel de garante do sector económico (ex. plano rodoviário nacional, o papel do
Estado através da empresa Estradas de Portugal, S.A. e no novo modelo de
financiamento do sector).
Ainda no que respeita aos planos é importante sublinhar um dos pontos mais
controvertidos do respectivo regime jurídico: a discricionariedade e os limites à fixação
do conteúdo dos planos. A discricionariedade no planeamento não pode ser entendida
em termos tão amplos como a liberdade de conformação do legislador, na medida em
que não podemos fazer repercutir aqui, com a mesma intensidade, a legitimidade
democrática em que se funda o legislador, nem pode ser tão restrita como a
discricionariedade administrativa da Administração regulamentadora, porque num
plano não se trata de dar execução a um regime legislativo previamente estabelecido,
mas sim de instituir ex novo uma estratégia, definindo medidas que põe em causa
direito e interesses legítimos.
Assim, a discricionariedade do planeamento (incluindo também a urbanística)
reconduz-se a um tipo de actuação administrativa finalística ou de resultados, o que
demonstra, desde logo, a especial apetência do plano como instrumento do direito de
implementação de políticas no contexto do enfraquecimento do princípio da
legalidade. Por essa razão, o plano, enquanto instrumento dotado de suficiente
densidade para estabelecer linhas de acção, i. e., servir de base à aplicação de medidas
concretas, encerra em si um juízo de ponderação, cujo controlo se não reconduz a um
exercício de subsunção a um instrumento legislativo prévio (que na maior parte dos
casos nem sequer existe), nem pode, também, ser deixado a um espaço de livre
conformação planificadora da Administração (uma reserva de administração). Na
verdade, a compreensão do âmbito da discricionariedade de planeamento surge hoje
intimamente associada à “governamentalização” do vértice da Administração,
decorrente dos fenómenos da colocação da Administração em rede com as instâncias
Suzana Tavares da Silva
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europeias e internacionais, no desenvolvimento em conjunto de várias políticas (ex.
ambiente, energia) que não passam pela mediação legislativa parlamentar, como
acontece com as políticas definidas em regulamentos europeus, ou que radicam em
normação aberta. Neste enquadramento, a discricionariedade de planeamento é
controlada pelo princípio da ponderação sob duas perspectivas complementares: a
ponderação procedimental, o controlo do plano assenta, em primeiro lugar, na
verificação do estrito cumprimentos do esquema metódico da ponderação, que
consiste na identificação dos interesses em presença, seguido da atribuição a cada um
de um valor relativo e, por último, da fundamentação dos critérios adoptados para
fazer prevalecer uns interesses sobre outros; a ponderação dos resultados que apenas
pode incidir sobre aspectos do conteúdo que ponham em crise direitos ou princípios
fundamentais, constituindo a restante parte um limite funcional ao controlo.
Já o controlo do conteúdo do plano da parte discricionária deve fazer-se
segundo os novos instrumentos de controlo de resultados, sobretudo a monitorização
das medidas de implementação e a revisão periódica. Trata-se de uma via alternativa
de garantir a accountability das medidas adoptadas pelas entidades públicas cujo
poder não advém de uma legitimidade democrática directa.
5.2. As actuações informais constituem outro domínio da actividade
administrativa que goza de franca expansão no âmbito do NDA. Assim, apesar de na
sua origem as actuações administrativas informais terem sido definidas como uma
alternativa de facto às actuações formais e, nessa medida, reconduzidas a um conjunto
de compromissos não vinculativos (Bohne), acabaram por adquirir um reconhecimento
generalizado de juridicidade, mesmo na ausência de acolhimento pelo princípio da
legalidade, afirmando a respectiva subordinação ao quadro jurídico formado pelos
princípios jurídicos, maxime, pelos princípios materiais reguladores das relações
jurídico-administrativas.
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As actuações informais, apesar de constituírem uma categoria heterogénea,
podem reconduzir-se a dois grandes grupos: as actuações informais unilaterais e os
acordos informais. Dentro do primeiro grupo, incluem-se, desde logo, as advertências
e os avisos das entidades públicas (ex. informação da CCDR do Algarve que adverte os
banhistas do perigo de derrocada de uma arriba ou a recomendação do ministério da
saúde para que as empresas encerrem os serviços caso se registe um surto de gripe),
cujo recorte jurídico-dogmático não é fácil, mas que, em nosso entender, até pela
reiteração prática, exigem hoje um apertado controlo judicial quando ponham em
causa direitos ou interesses legítimos e não apenas direitos fundamentais. Assim,
apesar de as actuações administrativas informais não serem vinculativas, podemos
afirmar que a sua juridicidade é suficiente para gerar o dever de reparar eventuais
prejuízos resultantes de um investimento de confiança do destinatário, que pode,
legitimamente, demandar a Administração. Uma actuação informal unilateral é desde
logo suficiente para conferir legitimidade ao requerente de uma acção de simples
apreciação (ex. a divulgação de uma informação num site de uma entidade pública é
suficiente para que o titular de um direito ou interesse legalmente protegido, afectado
por aquela informação, possa exigir judicialmente à Administração a clarificação de
uma situação).
Já os acordos informais, que não podem ser tipificados, pois, como o próprio
nome indica, englobam um universo vasto de possibilidades que não é susceptível de
categorização, podem ser caracterizados como contactos, mais ou menos velados,
tendentes a encontrar e estabelecer compromissos ou, pelo menos, bases de
concertação para a implementação de novos projectos ou reformas. Inscrevem-se no
contexto de entendimentos consensuais entre a Administração e os cidadãos,
preparatórios ou até substitutivos de actos administrativos, contratos administrativos
ou mesmo de normas regulamentares, onde a característica fundamental é a falta de
vinculatividade. Expressam-se sob a forma oral ou por uma troca de cartas, ou ainda
por actos notórios, assumindo, essencialmente, um carácter confidencial, de forma a
não colocar em risco a sua principal utilidade – ultrapassar, na prática, a resistência às
decisões. Estes contactos prévios, apesar de não vinculativos, são potencialmente
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geradores de vínculos efectivos entre as partes, o que significa que podem alicerçar
legítimas expectativas patrimonialmente relevantes.
Alguns autores propõem o enquadramento da mediação no contexto das
actuações informais. A mediação constituiu, nesta acepção, um instrumento informal
procedimental ou pré-procedimental para resolução de conflitos. Todavia, atendendo
ao facto de uma parte dos procedimentos administrativos que envolvem ou prevêem o
uso de mediadores terem hoje tendência para se ancorar em regras formais, parecenos mais ajustado integrar a mediação como fase facultativa do procedimento (à
semelhança aliás do que acontece com os agentes facilitadores nos procedimentos
complexos) e enfatizar o respectivo resultado como via para a contratualização no
contexto da resolução de litígios.
c) Actuações atípicas resultantes da recombinação de formas típicas (mix)
Para além da revelação de novas formas de actuação administrativa ou da
reabilitação e reformulação das formas tradicionais, outra das marcas características
do NDA é a recombinação das formas típicas (mix).
Para alguns autores, a utilização de instrumentos administrativos com
finalidades financeiras (ex. autorizações de emissão de GEE) constituem exemplos de
mix, numa posição que não é isenta de críticas. Pela nossa parte, entendemos que têm
razão neste caso os autores que, na senda da jurisprudência do Tribunal Constitucional
alemão, propõe o reconhecimento de um princípio da subsidiariedade dos
instrumentos financeiros face aos administrativos em matéria de combate a actuações
ambientalmente censuráveis.
Embora uma parte significativa dos casos que a doutrina reconduz a forma de
mix consubstanciem afinal realidades que antes tratámos como exemplos das novas
aplicações dadas às formas tradicionais da actividade administrativa, parece-nos
importante destacar duas figuras que, a nosso ver, constituem, pela singularidade do
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respectivo regime jurídico, formas recombinadas às quais se deve reconhecer
verdadeira autonomia: os actos de certificação.
Os actos de certificação constituem uma categoria que interliga características
típicas do acto administrativo e do direito administrativo sancionatório no contexto do
reconhecimento de poderes públicos a entidades privadas. A certificação teve a sua
origem em sistemas voluntários, que visavam incutir nos privados uma cultura de
qualidade (ex. rotulagem ecológica da UE), considerando a doutrina, por essa razão,
que estávamos perante formas de auto-regulação privada, nas quais, apesar de
actuarem entidade oficialmente habilitadas no exercício de actividades (privadas) de
interesse público, não se podia reconhecer a existência de exercício de poderes ou
funções públicas.
Todavia, o enquadramento actual de uma parte da actividade de certificação já
não se compagina, em nosso entender, com aquele enquadramento. Tomemos como
exemplo a certificação energética dos edifícios, que é obrigatória, está sujeita a
supervisão pública e se destina a dar cumprimentos a uma das linhas de
implementação da política energética nacional (estratégia para a energia). Neste caso,
não estamos ainda perante uma auto-regulação privada, mas sim perante o exercício
privado de uma função administrativa materializada numa actividade (certificação) de
exercício privado, mas de natureza pública, que constitui, pelo modo de operar, uma
via intermédia entre o acto administrativo autorizativo e a actividade administrativa
fiscalizadora e sancionatória, garantido, simultaneamente, a privatização de uma parte
dos custos desta actividade.
5. A redução da discricionariedade administrativa face ao incremento das
áreas de discricionariedade técnica
5. A última nota em matéria de transformações operadas pelo NDA reporta-se
à redução do âmbito da discricionariedade administrativa. Com efeito, ao permitir-se
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ao juiz, neste novo contexto, um acesso generalizado, através das passerelles jurídicas,
a outros ordenamentos, amplia-se o seu poder de controlo e reduz-se o espaço de livre
decisão da Administração.
A Administração surge hoje como uma entidade manietada pela rede, apesar
da aparente liberdade que o enfraquecimento do princípio da legalidade lhe confere. É
por esta razão que não somos sensíveis às críticas mais acesas que se fazem ao NDA,
acusando-o de abrir a “caixa de Pandora” e deixar à solta, sem forma de controlo, um
poder público poderoso, fortalecido por ter assimilado uma parte da função política,
auto-sustentado, que se arreiga em novas formas de legitimação à margem dos
parlamentos, e auto-referenciado. Nada mais errado.
Esta “Administração dirigente”, que perturba o jogo do equilíbrio de poderes
no plano interno, é uma Administração pluri-vinculada, pluri-responsável e altamente
controlada. Nunca, como hoje, a Administração foi obrigada a divulgar informação
(princípio da transparência) antes, durante e após a respectiva decisão, a revelar a
todos os que com ela se relacionam, cada passo e cada critério que adopta, o que nos
permite concluir que um poder que trabalha num “edifício transparente” é um poder
que se legitima, mas não se fortalece. Nunca, como hoje, a Administração foi obrigada
a dialogar com todos os interessados (cujo leque se vai também alargando) e a sentarse com eles à mesa das negociações (princípio da participação e da colaboração) que
antecedem a decisão, o que diminui o risco de surpresa face a decisões lesivas, e
aumenta a capacidade de adaptação do interesse público ao interesse geral. Para além
disso, a Administração foi obrigada a apetrechar-se de vários instrumentos para se
aproximar dos cidadãos (princípio da informatização), agilizando procedimentos e
diminuído a distância, o que também nos permite concluir que uma Administração
próxima e acessível conhece melhor os administrados.
Para além disso, a definição do interesse público é hoje inflamada de critérios
técnicos, ditados por entidades internacionais, especializadas e multi-participadas, o
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que, em boa medida, neutraliza o tradicional risco de ilegitimidade associado à
normação técnica.
Por último, a Administração do NDA responde perante os tribunais nacionais e
internacionais, perante as entidades políticas supranacionais, perante os organismos
internacionais e, até, com o emergir dos esquemas de democracia participativa,
perante os administrados. Não existe, pois, o risco de que esta Administração e o NDA
constituam um domínio do arbítrio. Há apenas que informar os restantes operadores
jurídicos da mudança, para que, em tempo oportuno, todos se apetrechem para ela.
Suzana Tavares da Silva
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