ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA –
LITERATURA NO CINEMA e
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema
A prosa cinematográfica de Memórias Sentimentais de João Miramar
BRAGA, Fabio William Lopes (PG- UNESP- Assis)
RESUMO: O século passado trouxe consigo a consciência de um mundo caótico e
fragmentário. Se a multiplicidade de crenças já não permitia ao homem explicar o mundo,
matematizando-o e classificando-o, era necessário o surgimento de uma nova arte que
representasse, no universo da ficção, esse novo momento histórico. Memórias Sentimentais de
João Miramar, de Oswald de Andrade, procura retratar a realidade de um Brasil caótico que
se insere na era do telégrafo sem fios, do cinema, do aeroplano e dos automóveis que lotam as
estradas. Se no romance tradicional a história possuía início, meio e fim, em Memórias
Sentimentais esse tipo de enredo é abandonado em favor de um não-enredo em que os fatos
são dados - tal como no fluxo da consciência e da memória - a partir de flashes, cujo sentido
deve ser apreendido pelos leitores. Decorre daí a designação dada pelos críticos de prosa
cinematográfica ao romance não convencional de Oswald. Muito embora não exista uma
transposição desta obra para o cinema, é interessante e válido o estudo dos aspectos
estruturais e imagísticos deste texto, que corporifica em si mesmo a técnica própria do
cinema. É intuito deste artigo, portanto, analisar a forma com que Oswald de Andrade
apropriou-se da linguagem fílmica, utilizando-a na produção deste romance original e
fragmentário.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Cinema; Técnica Cinematográfica; Memórias
Sentimentais de João Miramar.
ABSTRACT: In the last century arose the conscience of a chaotic and fragmentary world. If
the great number of beliefs didn’t let men explain the world anymore, classifying it, it was
necessary the emergence of a new form of art that could represent, in the fiction’s universe,
this new and historical moment. Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de
Andrade, represents the reality of a chaotic Brazil of the age of the telegraph, cinema, airplane
and of the cars which run in the highways. If the traditional romance’s history had beginning,
middle and end, in Memórias Sentimentais this kind of plot don’t exist anymore, because the
facts happen - just as in the stream of consciousness and of the memory – from flashes,
whose meaning needs to be learned by readers. Because of this, critics named prose film the
Oswald de Andrade’s text. Although there is no an adaptation of this literary work for cinema,
it is interesting and valid the study of the structural and imagistic aspects of this romance,
which presents the technical film. Therefore, it is aim of this work an analysis of the language
of cinema that the Oswald’s text shows us.
KEY-WORDS: Literature; Cinema; cinematographic technique; Memórias Sentimentais de
João Miramar.
O século passado traz consigo um mundo caótico e fragmentário. A multiplicidade de
crenças é tamanha que o homem já não pode tentar explicar o mundo, matematizá-lo,
classificá-lo. A propósito das mudanças ocasionadas pelo advento de novas tecnologias, que

(Programa de Pós-Graduação em Literatura e Vida Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” - UNESP de Assis).
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propiciaram, inclusive, o surgimento de conflitos mundiais, diz Mário da Silva Brito, em sua
História do Modernismo Brasileiro:
O século XX daria coordenadas absolutamente inéditas ao mundo.
Provocaria transformações radicais e profundas. Sob seu signo, registra-se o
apogeu da época industrial e técnica, a formação da alta burguesia e do
proletariado, o estabelecimento organizado do capitalismo [...] Dá-se o
aperfeiçoamento das máquinas de combustão e o aproveitamento da
eletricidade nas indústrias, com o seu conseqüente e imediato progresso [...]
Após desenvolver-se toda uma política armamentista febril, estoura, enfim,
dentro de uma atmosfera tensa, de enervante expectativa, a primeira guerra
mundial. (BRITO, p. 20, 1958).
Muito embora seja no século XX que os produtos tecnológicos atinjam plena
maturidade, Flora Süssekind, em sua obra intitulada Cinematógrafo de letras: literatura,
técnica e modernização no Brasil (1987), aponta muito lucidamente para o fato de que, já na
segunda metade do século XIX, o brasileiro entra em contato com as últimas inovações
técnicas mundiais, a saber, a fotografia, o cinematógrafo, o fonógrafo e a telefonia, dentre
outras, as quais se refletem na produção literária da época em questão. Nas palavras da
própria estudiosa do assunto,
Esse horizonte técnico que serviria tantas vezes de interlocutor para a
produção literária do período [...] teria na difusão da fotografia, da telefonia,
do cinematógrafo e do fonógrafo, na introdução de novas técnicas de registro
sonoro e de impressão e reprodução de textos, desenhos e fotos, na expansão
da prática do reclame, fatores decisivos para a sua configuração.
(SÜSSEKIND, p. 29, 1987).
É válido lembrar que, a partir dos anos 90 do século XIX, o brasileiro começa a ter
contato com o kinetoscópio, primitivo aparelho cinematográfico que precede o cinematógrafo,
cujas imagens podem ser visualizadas não por uma só pessoa, como no caso do primeiro, mas
por uma platéia composta por vários espectadores. A sessão inaugural de cinematógrafo para
convidados e jornalistas ocorre em uma sala da Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, no dia 8
de julho de 1896, data que pode ser considerada o marco da entrada do cinema no país. Nos
dias 7 e 8 de agosto de 1896, se realizariam “[...] as primeiras sessões também em São Paulo;
em 31 de julho de 1897 seria inaugurado o Salão de Novidades Paris, no Rio, e já em 1898 se
fariam as primeiras filmagens locais, dando início a uma produção cinematográfica
brasileira”. (SÜSSEKIND, 1987, p. 41).
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A princípio, o contato dos escritores com a técnica modernizadora se dá de forma
epidérmica, ou seja, a literatura procura, grosso modo, promover a divulgação de tais
aparelhos, incorporando-os à obra como objetos de descrição ou discussão. A incorporação da
técnica cinematográfica, por exemplo, à estrutura do romance brasileiro, só ocorre alguns
anos mais tarde, após a primeira guerra mundial, quando os membros integrantes do chamado
Movimento Modernista iriam redimensionar e resignificar a prosa de nosso país, fazendo-a
refletir em si mesma os progressos da humanidade.
[...] a maior parte dos autores da virada do século e dos anos 10-20 pareceu
hesitar diante do horizonte técnico em configuração, Sem chegar, no
período, a estabelecer em geral ligações mais perigosas, e com melhores
resultados estéticos, com tais artefatos modernos.
Montagens e recortes passariam a invadir, de fato, a técnica literária com a
prosa modernista. A ficção brasileira só “perdeu a sintaxe do coração e as
calças” (como se lê, a certa altura, no Serafim Ponte Grande) em textos
como Memórias Sentimentais de João Miramar (1924); o próprio Serafim,
de Oswald de Andrade; Macunaíma(1928), de Mário de Andrade; e Pathé
Baby., de Alcântara Machado. Aí sim se encontra uma literatura-de-corte,
em sintonia com uma concepção também diversa do cinema [...] Uma
literatura na qual, já incorporados os sustos, dialoga-se maliciosamente com
as novas técnicas e formas de percepção. E que não cita a todo momento o
cinema. Mas se apropria e redefine, via escrita, o que dele lhe interessa.
(SÜSSEKIND, 1987, p. 48).
Em contraposição ao romance cujo início se deu no século XVIII está o romance
moderno do século XX, que se encontra inserido nessa realidade caótica e tecnológica; em um
contexto absolutamente diferente daquele que inspirou Defoe, Richardson e Fielding. Dessa
realidade, na qual máquinas, aviões e indústrias de proporções gigantescas passam a dominar
o homem é que as vanguardas européias procuram dar conta. Uma das mais importantes do
início do século é o Futurismo, criado por Filippo Tommaso Marinetti, que publicou seu
primeiro manifesto futurista no dia 20 de fevereiro de 1909. A partir dessa data, dedicou sua
vida à teoria e prática dessa corrente vanguardista.
Não é difícil perceber que tal movimento se constituiu menos de obras do que de
manifestos; influenciou, no entanto, artistas do mundo todo, revolucionando, junto com as
outras correntes, as formas artísticas existentes até então. De modo geral, os manifestos
exaltam a vida moderna; o culto da máquina e da velocidade, e a “destruição do passado e dos
meios tradicionais da expressão literária, no caso, a sintaxe: usando as palavras em liberdade,
rompia a cadeia sintática e as relações passavam a se fazer através de analogia.” (TELES;
2002; p. 86).
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No plano da linguagem, as modificações mais latentes são: a abolição dos adjetivos e
advérbios, que, segundo a concepção de Marinetti, fazem com que os substantivos percam o
seu sentido mais profundo; o abandono da pontuação tradicional, que impõe certa organização
ao texto e passa a ser considerada algo desnecessário; abolição da sintaxe padrão.
Embevecido com essas idéias, com as quais entrou em contato na Europa, Oswald de
Andrade importa-as para o Brasil, cuja realidade, ainda que comportasse certas diferenças,
encontrava-se já alinhada com a dos países mais desenvolvidos da época. O fato é que,
digerindo vorazmente os ideários futuristas criados por Marinetti – estando a linguagem
cinematográfica inserida neles - Oswald cria um romance que iria redirecionar os rumos da
prosa aqui no Brasil. Antes de mergulharmos, entretanto, nessa obra tão interessante, é
necessário relembrarmos um pouco dos pressupostos sobre os quais se assenta o romance da
modernidade.
Assim como o advento de novos valores é responsável pelo surgimento da forma
romanesca no século XVIII, também o é pela reformulação artística do início do século
passado. Em seu ensaio Reflexões sobre o romance moderno (1976), Rosenfeld lança a
hipótese de que em cada fase histórica existe um ‘Zeitgeist’, um espírito unificador que
estabelece uma aproximação entre todas as manifestações culturais que conhecemos. Isso
explica as modificações ocorridas tanto na pintura, quanto na poesia e no romance, foco da
nossa atenção neste artigo.
Segundo ele, o objetivo das vanguardas européias foi promover uma ‘desrealização’
das artes em geral, fator conseguido através do abandono da perspectiva adquirida e utilizada
a partir da renascença. No período medieval, os homens pensavam que a Terra era imóvel e
dependia da organização imposta pela divindade. Por isso, não havia a necessidade de
explicar o mundo. Decorre daí a não- utilização das leis da perspectiva, que começam a ser
incorporadas quando o homem passa a adotar uma visão antropocêntrica do universo, segundo
a qual a consciência humana impõe suas leis ao mundo, e não o contrário, como ocorria na
Idade Média. A perspectiva seria, portanto, “característica típica de épocas em que se acentua
a emancipação do indivíduo[...]” (ROSENFELD, 1976, p. 77).
O desejo de conquista artística do mundo terreno, da realidade sensível, passa a ser
questionado pelos artistas modernos “que renegam ou pelo menos põem em dúvida a visão de
mundo que se desenvolveu a partir do renascimento” (Rosenfeld, 1976, p. 79): uma vez que o
mundo se torna tão caótico, o artista percebe que o homem já não pode ordená-lo a partir de si
mesmo e que a realidade sensível que se tentou representar tanto na pintura, quanto no
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romance, já não condiz com a verdadeira realidade. Dessa forma, era preciso eliminar também
no romance a perspectiva da pintura, o que foi conseguido com a desordem da ordem
cronológica, que também caracteriza o cinema, enquanto arte que prima pela sucessão rápida
e superposição de imagens, que, muitas vezes, aparecem de forma bastante desorganizada,
convergindo para o mesmo plano presente, passado e futuro.
O interessante é que a arte moderna não reconhece tais mudanças apenas em sua
temática, mas também em sua estrutura. A visão de uma realidade mais profunda e real é
introduzida na própria forma da obra, que procura evidenciar o contraste entre o tempo do
relógio e o tempo de nossa mente, na qual cada momento presente contém os anteriores e
engloba “o futuro, como um horizonte de possibilidades e expectativas.”
(ROSENFELD,
1976, p. 82). Ao abolir o tempo cronológico, o escritor pretende representar a experiência
psíquica do ser humano, não a partir da lógica do narrador tradicional, mas daquele que
submerge na corrente psíquica do personagem.
Não podemos deixar de mencionar o fato de que a relação de causalidade própria do
romance realista passa a ser abandonada juntamente com a perspectiva de tempo e espaço.
Além disso, o retrato do ser humano é decomposto e fragmentado: já não se percebe mais a
construção de um indivíduo íntegro, mas apenas estilhaços de uma personagem que aparece
deformada, tal como ocorre nas pinturas cubistas, expressionistas etc. Em suma, é “esta [...]
desindividualização de que partimos, evidente tentativa de superar a dimensão da realidade
sensível para chegar, segundo [...] Franz Marc, “à essência absoluta que vive por trás da
aparência que vemos”.”( ROSENFELD, 1976, p. 91).
Todas as características explicitadas por Rosenfeld, das quais a maior parte aparece
especialmente nos manifestos futuristas e na arte do cinema, são aplicadas por Oswald em
Memórias Sentimentais de João Miramar, cuja realidade é a de um Brasil caótico que se
insere na era do telégrafo sem fios, do cinema, do aeroplano e dos automóveis que lotam as
estradas.
Após a Semana de Arte Moderna de 1922, dois romances pretendem efetuar a ruptura
tão desejada com a arte mimética tradicional: além de Memórias Sentimentais (1924), Amar,
Verbo Intransitivo (1927), de Mário de Andrade, sendo aquele muito mais radical do que este,
visto que leva ao extremo os princípios futuristas de Marinetti e as características da técnica
cinematográfica. Em razão disso, ele foi o escolhido para este trabalho.
A grosso modo, o romance de Oswald retrata a infância, a adolescência e a época
adulta de João Miramar, membro da elite cafeeira que, logo em sua juventude, viaja à Europa,
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onde permanece por certo período de tempo. Voltando ao Brasil, casa-se com Célia, moça
extremamente rica, com quem ele tem uma filha, Celiazinha. Ao longo de 163 fragmentos, a
vida medíocre e interesseira desse personagem vai sendo revelada de maneira bastante
desorganizada e fragmentada. No entanto, apesar disso, juntando os fragmentos, o leitor
consegue perceber o crescimento, o declínio econômico de Miramar e o seu progressivo
desentendimento com sua esposa e amante, ainda que não seja possível identificar as relações
de causalidade em todas as situações do romance. Inúmeros personagens constituem a obra,
por volta de 70 indivíduos, dos quais não conseguimos visualizar um retrato íntegro, mas
apenas traços bastante genéricos. Muitos dos nomes escolhidos revelam humor e sátira, como
por exemplo, Dr. Limão Bravo (crítico azedo); Dr. Pepe Esborracha (desastrado) e Pôncio
Pilatos da Glória (guia moral), dentre outros.
Vários tipos de discursos compõem os minúsculos capítulos, tais como cartas,
diálogos, relatos e poemas, que não aparecem, por vezes, associados ao discurso precedente,
nem ao posterior; ou seja, não há um nexo lógico que os liga, estabelecendo um sentido total
ao texto. Portanto, o que nos permite vislumbrar a trajetória da personagem é a proximidade
de certos fragmentos, o que nos causa a impressão de que há uma seqüência, não direta, mas
subterrânea no texto.
Os capítulos convencionais dos romances realistas são substituídos por “verdadeiros
flashes que se superpõem sem obediência à cronologia e, analisados isoladamente, eliminam
em absoluto o descritivo [...]” (CHAVES, 1970, p. 17). Noutras palavras, a organização dos
capítulos segue a lógica da técnica de montagem do cinema, a respeito da qual fala muito
lucidamente Guido Aristarco, na obra (em edição espanhola) intitulada Historia de las teorias
cinematográficas (1968) - aliás, de suma importância para aqueles que querem se aprofundar
nas questões de base do cinema:
La idea del cine es uma idea cinematográfica, cuyo médio específico – el
que hace posible dirigir ele ojo del espectador – es aquel elemento que
permite em uma película la sucesión rítmica de encuadres islados e
inmóviles o de cortos fragmentos em movimiento: el montaje. El montage en
el cine es lo mismo que la composición de colores em la pintura o la
sucessión armónica de sonidos em la música. Lo que realmente importa no
es tanto el contenido de los vários trozos de película, sino más bien la forma
en que están unidos entre si [...]. (ARISTARCO, 1968, p. 160).
Como exemplo da técnica cinematográfica utilizada por Oswald, apontamos o capítulo
29 do romance, que transcrevemos na íntegra:
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O furo do ambiente calmo na cabina cosmorava pedaços
de distância no litoral.
O pão de açúcar era um teorema geométrico.
Passeios tombadilhavam o êxtase oficial da cidade encravada de crateras,
O Marta ia cortar a Ilha fiscal porque era um cromo branco
mas piratas atracaram-no para carga e descarga.
(ANDRADE, 2001, p. 53).
Não é difícil perceber que no fragmento acima não há relação de causalidade entre as
diferentes imagens que surgem independentes umas das outras. A abolição do espaço e do
tempo do romance moderno, explorada por Rosenfeld, é demonstrada aqui de forma bastante
clara: o título do capítulo, “Manhã no Rio”, não nos diz muita coisa quanto ao tempo em que
esse episódio acontece; não conhecemos a ordem em que essas imagens deveriam aparecer,
pois elas estão embaralhadas, tal como no fluxo de pensamento, no qual presente, passado e
futuro se fundem. A noção de tempo insere-se num plano puramente sensitivo; o leitor é quem
deve estabelecer um nexo para as imagens, criando uma seqüência para elas.
Se no romance tradicional a história possuía início, meio e fim, em Memórias
Sentimentais esse tipo de enredo é abandonado em favor de um não-enredo: no desenrolar das
lembranças, não nos são dadas explicações sobre a origem da família de Miramar, o modo
como ele foi educado, as características de sua mãe e do lugar em que viveu na infância;
tampouco nos é dito como foi o seu namoro com Célia; tudo é dado a partir de flashes, cujos
sentidos deverão ser formulados por nós.
De acordo com Bosi, a prosa de Miramar segue a poesia de Paulicéia Desvairada, de
Mário de Andrade, no que diz respeito à ordem do subconsciente, aos inúmeros neologismos,
ao telegrafismo das rupturas sintáticas e ao simultaneísmo. Telegrafismo, porque Oswald
procurou reproduzir em seu texto a fala inconclusa e entrecortada, característica de um
diálogo telefônico; simultaneísmo, pois os capítulos-fragmentos são trabalhados a partir da
superposição de imagens, que se sucedem de forma aleatória, lembrando a função do operador
da câmera cinematográfica, cujo olhar determina as cenas que serão filmadas e o modo por
que elas se apresentarão.
Pode-se mesmo aplicar à prosa de Oswald as palavras do
pesquisador Aristarco com relação ao cinema: “[...] el arte del cine empieza cuando el
realizador da um cierto orden a los diversos trozos de película impressionada. El unir estos
trozos de una manera diferente a outra, siguiendo un orden em lugar de outro, da resultados
diversos”. (ARISTARCO, 1968, p. 183).
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Considerando-o um romance de colagem desorganizada e rápida de signos – técnica
que se aproxima de forma coerente das idéias incorporadas e propagadas por Oswald no
Manifesto Pau-Brasil – ele se assemelha bastante aos poemas dadaístas, cuja produção se
baseia no pressuposto de que a originalidade da poesia reside justamente na liberdade das
palavras, que devem ser dispostas segundo uma lógica ilógica: na concepção dadá, a ordem
em que as palavras forem sendo tiradas de um saco, depois de chacoalhadas, é aquela segundo
a qual elas devem aparecer dispostas no papel. Miramar não parece estar distante desse
processo de produção.
No que diz respeito à sintaxe e pontuação características do português culto da época,
Oswald procura desorganizá-las o máximo possível, a fim de aproximar seu texto do fluxo de
pensamento humano. Se as nossas idéias surgem desorganizadas em nossa mente e não
obedecem a quaisquer regras gramaticais, por que o texto literário deveria reproduzir uma
realidade que, na realidade, não existe e não corresponde àquela presente no interior de todos
os homens? Esse é o questionamento proposto por Marinetti e aceito pelo autor de Memórias
Sentimentais, que o escreve, tendo em vista esse pensamento.
Em relação aos personagens, mais especificamente, ao protagonista, João Miramar, é
válido notar que ele é o típico indivíduo fragmentado e decomposto do romance moderno.
Durante a leitura, é praticamente impossível uma apreensão dos traços físicos dele. Em
momento algum são delineadas as características físicas ou psicológicas de Célia, de João
Miramar ou de quaisquer outros personagens. A impressão é a de que, na obra, as pessoas são
seres mecânicos que não possuem sentimentos, calor humano. Até mesmo o casamento do
protagonista é descrito de forma fria:
O forde levou-nos para a igreja e notário entre matos derrubados e a vasta
promessa das primeiras culturas. Jogaram-nos flores como bênçãos e sinos
tilintaram. A lua substituiu o sol na guarida do mundo mas o dia continuou
tendo havido entre nós apenas uma separação precavida de bens.”
(ANDRADE, 2001, p. 64).
Em linhas gerais, ele é apresentado como um ser anônimo: tal como Miramar, existem
muitos outros indivíduos que fazem parte da elite burguesa e percorrem a Europa, quer seja
para estudar, quer seja sob o pretexto de diversão ou trabalho. Portanto, esse personagem
jamais poderia ser equiparado aos dos romances do século XVIII e XIX. É bem verdade que
ele possui nome e sobrenome de uma pessoa comum, mas já não é um ser individual que
merece a importância exigida por uma visão antropocêntrica do mundo, visto que, no contexto
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histórico em que se insere a obra, o homem não mais domina, mas é dominado e, por
conseguinte, não deve mais aparecer integralmente na obra.
Se o romance moderno não pode demitir o personagem por inteiro, apresenta-o agora,
em contraposição à forma romanesca anterior, como um indivíduo desindividualizado. Ou
seja, tal como nas pinturas de vanguarda em que o ser humano surge deformado ou eliminado,
Memórias Sentimentais não apresenta ao leitor um personagem, mas sim lembranças que
passam a constituí-lo num processo metonímico.
Pode-se, em princípio, admitir, a partir da visão de alguns críticos, que Memórias
Sentimentais é um romance que procura evidenciar as características da época em que foi
escrito, uma vez que rompe com um passado acadêmico, impulsionado por uma força pautada
em um progresso mundial, que afetou especialmente a cidade de São Paulo. A fragmentação
da obra tem por objetivo quebrar a organização linear da sociedade, que não é mais a mesma,
e do texto literário, cujo papel é a representação desse novo momento, que desvela um
indivíduo fragmentado numa sociedade estilhaçada. A partir de seu discurso desarticulado,
Oswald lança o seu protesto, uma leitura crítica de seu tempo.
Sendo o romance uma obra ficcional elaborada a partir das experiências pessoais do
autor, segundo a visão de Mário da Silva Brito (1964), ou uma transposição literária, como
sugere Antonio Candido (1995), das experiências pessoais do escritor – de suas viagens à
Europa e de sua situação econômica proporcionada pela sua condição de burguês pertencente
à elite cafeeira, cujos lucros extrai da venda do café, até que as sucessivas crises a levam à
ruína – e, portanto, um texto cuja fronteira entre realidade e ficção não pode ser delineada,
não se pode negar seu valor enquanto literatura que abarca a realidade de sua época.
Não é ousado afirmar que a prosa cinematográfica de Oswald causou no leitor da
época exatamente o que pretendia: a impressão de uma realidade caótica, na qual tudo ocorre
tão rapidamente que é praticamente impossível tentar explicar o que já não é íntegro, mas
fragmentado. Na concepção de Lúcia Helena, Miramar e Serafim apresentam um
procedimento artístico diferenciado do das outras obras do autor: enquanto os textos de Os
Condenados e Marco Zero reproduzem na linguagem a realidade extraliterária, ou seja,
aquela apreendida pelos outrora realistas, a dupla deve ser vista como ‘mimese de produção’ o
que significa dizer que ambas as obras produzem, por intermédio da linguagem, uma
realidade literária, já que negam a aparência de realidade. Se procurarmos compreender o
raciocínio de Lúcia do ponto de vista abordado por Rosenfeld, será fácil notar que o que ela
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chama de ‘mimese de produção’ nada mais é do que a tentativa de abarcar a realidade do
século XX, cujas características principais tentamos explanar rapidamente neste artigo.
REFERÊNCIAS:
AMENGUAL, Barthèlemy. Chaves do Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.
Tradução de Joel Silveira.
ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. Obras Completas, São
Paulo, Globo, 2001.
ARISTARCO, Guido. Historias de la teoria cinematografica. Barcelona: Editorial Lúmen,
1968. Tradução de Andrés Boglár.
BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira: 1964.
CANDIDO, Antonio. Vários Escritos; 3° ed. rev e ampl – São Paulo, Duas Cidades: 1995.
CHAVES, Flávio Loureiro. Contribuições de Oswald e Mário de Andrade ao Romance
Brasileiro. In: Aspectos do Modernismo Brasileiro; Comissão Central de Publicações/
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, Porto Alegre: 1970.
HELENA, Lúcia. Totens e Tabus da modernidade brasileira: símbolo e alegoria na obra de
Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
POLETTO, J. Memórias Sentimentais de João Miramar: os caminhos da recepção crítica.
Revista de Letras, Curitiba Pr., v. 5, 2002.
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto. 3. ed. São Paulo. Editora Perspectiva: 1976.
SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação dos
principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
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