ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA CENTRO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS Cadernos de ratégicos (Editados desde 2006) 2012/Nº 11 1 Cadernos de Estudos Estratégicos Cadernos de Estudos Estratégicos n. 11 / 2012 Irregular ISSN 1808-947x 1. Cultura. 2 Relações Internacionais. 3 Modernidade. 4. Axiologia. 5. Praxiologia. 6. Polemologia. 7. Cratologia. Segurança. Os Cadernos de Estudos Estratégicos são publicados de forma irregular pela ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, do Rio de Janeiro. Com tiragem de 1.000 exemplares, circula em âmbito nacional e internacional. Co m a n d a n t e e D i r e t or d e E s tudos Almirante de Esquadra Eduardo Bacellar Leal Ferreira Subcomandante e Subdiretor de Estudos Major-Brigadeiro do Ar Stefan Egon Gracza Diretor do Centro de Estudos Estratégicos General de Brigada R/1 José Eustáquio Nogueira Guimarães Conselho Editorial Professor Doutor Jorge Calvario dos Santos Professora Doutora Maria Célia Barbosa Reis da Silva Doutorando José Cimar Rodrigues Pinto Professor Doutor Fernando da Silva Rodrigues Editor Responsável Professora Doutoranda Jaqueline Santos Barradas Professora Doutora Maria Celia Barbosa Reis da Silva Revisão Editorial Professora Doutora Maria Célia Barbosa Reis da Silva Jornalista Maria da Glória Chaves de Melo Diagramação e Arte Final Anério Ferreira Matos Projeto, Produção Gráfica e Impressão Gráfica da Escola Superior de Guerra Os artigos publicados pela revista são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não expressam, portanto, o pensamento da Escola Superior de Guerra. 2 SUMÁRIO EDITORIAL 5 RESPONSABILIDADE AO PROTEGER: UMA ALTERNATIVA BRASILEIRA ÀS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS POLÍTICAS? 7 Carlos Chagas Vianna Braga UNIDADE DE POLÍCIA PACIFICADORA - UPP: RESISTÊNCIA DOS JOVENS, UMA QUESTÃO PSICOSSOCIAL RELEVANTE 31 Kátia Magalhães Lage de Aguiar Mariz INTERVENÇÃO JUDICIAL NA PUNIÇÃO DISCIPLINAR: IMPLICAÇÕES 60 Marcelo de Nardi OS REFLEXOS DOS PARADIGMAS DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA PARA EXPORTAÇÃO DE PRODUTOS DE DEFESA NACIONAIS DE 1974 A 2011 80 Gelson De Souza INFRAESTRUTURA NACIONAL DE DADOS ESPACIAIS: A PRODUÇÃO DE INFORMAÇÕES GEOESPACIAIS VOLTADA AO DESENVOLVIMENTO, SEGURANÇA E DEFESA 115 La-Fayette Côrtes Neto A UNIVERSIDADE DA AVIAÇÃO CIVIL: ENTIDADE PÚBLICA DE ENSINO DE EXCELÊNCIA 133 Francisco José Leitão dos Santos Normas para SUBMISSão de Artigos PARA As Revistas da ESG Cadernos de Estudos Estratégicos Rio de Janeiro 3 n. 11 p. 1-152 149 jan./dez. 2012 4 EDITORIAL Os seis artigos que compõem este número dos Cadernos de Estudos Estratégicos são parte de pesquisa individual, em curto prazo, realizada pelos estagiários do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE) no ano letivo de 2012. O artigo inicial – intitulado Responsabilidade ao proteger: uma alternativa brasileira às intervenções humanitárias políticas?, de Carlos Chagas Vianna Braga – aborda o impasse entre as normas legitimadoras das intervenções humanitárias como o conceito de Responsabilidade de Proteger, aprovado pela Organização das Nações Unidas, em 2005, e a interferência dos interesses particulares das potências nas intervenções humanitárias. O artigo subsequente – Unidade de Polícia Pacificadora - UPP: resistência dos jovens, uma questão psicossocial relevante, de Kátia Magalhães Lage de Aguiar Mariz – explana acerca de assunto em destaque na mídia do Brasil e, principalmente, na da cidade do Rio de Janeiro: Unidade de Polícia Pacificadora. A autora enfatiza o comportamento dos jovens diante da segurança pública, dos valores de cidadania e de defesa nacional e, também, enfoca a participação efetiva dos jovens, com propostas e recomendações, direcionadas às políticas educacional e de segurança. O terceiro texto – Intervenção judicial na punição disciplinar: implicações, de Marcelo de Nardi – ratifica o quanto a hierarquia e a disciplina, presentes no ambiente militar, são essenciais para o cumprimento da finalidade das Forças Armadas, traduzida, primordialmente, na atividade de defesa da pátria. Sobre a questão hierárquica e disciplinar, há um embate entre atos administrativos e a possível intervenção judicial. O texto – Os reflexos dos paradigmas da política externa brasileira para exportação de produtos de defesa nacionais de 1974 a 2011, de Gelson de Souza – expõe o resultado parcial de um estudo comparativoqualitativo dos reflexos na indústria de defesa, calcados em três diferentes paradigmas da política externa brasileira, enfatizando o ambiente geral para as exportações de produtos de defesa. A pesquisa tem como objetivo comparar os reflexos da política externa brasileira, de tradição pacifista, sobre as exportações de produtos de defesa. 5 O quinto texto – Infraestrutura nacional de dados espaciais: a produção de informações geoespaciais voltada ao desenvolvimento, segurança e defesa, assinado por La-Fayette Côrtes Neto – discorre acerca da produção e do uso de informações geoespaciais no Brasil voltadas ao desenvolvimento, à segurança e à defesa, com vistas a demonstrar a potencial utilização da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais – INDE no desenvolvimento, na segurança e na defesa nacionais. O estudo final – A universidade da aviação civil: entidade pública de ensino de excelência, de autoria de Francisco José Leitão dos Santos – trata da necessidade de capacitação profissional para a Aviação Civil e visa identificar o motivo pelo qual há entraves que impedem a formação de excelência do profissional de aviação no Brasil, que precisa entrar em sintonia com os modernos recursos tecnológicos que equipam as aeronaves fabricadas atualmente pela indústria brasileira e mundial. Temas diversos, mas convergentes no que concerne ao escopo temático de interesse da Escola Superior de Guerra. Assuntos polêmicos que hão de suscitar questões em nossos leitores para além das páginas escritas e encerradas em um artigo. Os assuntos aqui debatidos devem se prolongar para lá do lido e, quem sabe, instigar novas escritas. Boa leitura. 6 RESPONSABILIDADE AO PROTEGER: UMA ALTERNATIVA BRASILEIRA ÀS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS POLÍTICAS? Carlos Chagas Vianna Braga* RESUMO Nos últimos anos, principalmente após tragédias, como as ocorridas em Ruanda e Somália, as intervenções humanitárias ganharam papel de destaque no campo das relações internacionais. Tal situação levou à busca de construção de normas universais que legitimassem essas intervenções, como o conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P), aprovado pela ONU durante o World Summit de 2005. Entretanto, verifica-se que tais intervenções, muitas vezes, acabam sendo orientadas por interesses particulares das grandes potências. A recente intervenção na Líbia, por exemplo, extrapolou, em muito, as justificativas humanitárias iniciais. Em setembro de 2011, o Brasil, preocupado com as implicações de tais intervenções, apresentou na Organização das Nações Unidas (ONU) o inovador conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP). Assim, o presente artigo procura avaliar como o conceito de Responsabilidade ao Proteger pode ser considerado uma alternativa viável para conter e limitar o avanço do caráter político das intervenções legitimadas pela R2P. Palavras-Chave: Intervenções Humanitárias. Guerra. Operações de Paz. Soberania. Responsabilidade de Proteger (R2P). Responsabilidade ao Proteger (RwP). ABSTRACT During the last years, mainly after great humanitarian tragedies, such as those occurred in Rwanda and Somalia, humanitarian interventions have acquired a preeminent role in the field of international relations. This __________________ * Capitão de Mar e Guerra do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil - doutorando em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e mestre em Military Studies pela Marine Corps University, EUA. Concluiu o Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE) da Escola Superior de Guerra em 2012. 7 situation resulted in an attempt to construct universal norms to legitimize those interventions, such as the concept of Responsibility to Protect (R2P), approved by the UN during the 2005 World Summit. Nevertheless, one can argue that humanitarian interventions are often determined by the specific interests of the great powers. The recent intervention in Libya, for example, has seriously extrapolated its initial humanitarian justifications. In September 2011, Brazil presented in the United Nations the innovative concept of Responsibility while Protecting (RwP). Therefore, this paper intends to evaluate how the concept of Responsibility while Protecting (RwP) may be considered a viable alternative in order to contain and establish limits to the political character of some humanitarian interventions which are legitimized by R2P. Keywords: Humanitarian Intervention. Guerra. Peacekeeping. Sovereignty. Responsibility to Protect (R2P). Responsibility while Protecting (RwP). 1 INTRODUÇÃO Nos últimos anos, principalmente após o fim da Guerra Fria e após tragédias humanitárias como as ocorridas em Ruanda e Somália, as intervenções humanitárias ganharam papel de destaque no campo das relações internacionais, levando inclusive a certa “relativização” do conceito vestfaliano de soberania1. Com base em princípios, pretensamente universais, de proteção de civis, tais intervenções vêm ocorrendo com frequência, como nos casos do Kosovo, do Iraque e da Líbia. Autores construtivistas, como Martha Finnemore (2003), defendem que uma nova norma de intervenções humanitárias teria surgido, legitimando tais intervenções. A aprovação do conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P), durante o United Nations World Summit de 20052, que vem sendo utilizado como justificativa para algumas das mais recentes intervenções e que será discutido no presente trabalho, certamente contribui para reforçar tal entendimento. 1 Em 1648, o Tratado de Vestfalia marcou o fim da Guerra dos Trinta Anos e o surgimento de uma ordem mundial que passou a ser conhecida como ordem vestfaliana. A partir dessa ordem, soberania passou a representar, para um estado, autoridade legal, política, exclusiva e suprema, no interior de suas fronteiras. 2 Reunião de Cúpula da Organização das Nações Unidas, realizada em 2005, na qual o conceito de Responsabilidade de Proteger foi aprovado por todos os países membros. 8 Por outro lado, a análise das intervenções (ou não intervenções) humanitárias ocorridas nos últimos anos parece apontar para uma perigosa preponderância de interesses específicos de grandes potências em relação aos interesses universais de proteção da pessoa humana. Em 2011, a intervenção na Líbia, por exemplo, extrapolou, em muito, as justificativas humanitárias iniciais, evidenciando o caráter político de algumas dessas intervenções e levantando uma série de outras dúvidas, até mesmo no que se refere à própria eficácia na proteção da população civil. Ou seja, as intervenções humanitárias acabam sendo norteadas, em última análise, por interesses específicos e políticos, negando, portanto, uma pretensa universalidade de princípios. Por que intervir na Líbia e não intervir em Darfur? Em setembro de 2011, o Brasil, preocupado com as implicações políticas e humanitárias de tais intervenções, apresentou na Organização das Nações Unidas (ONU) o conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP). Tal conceito pode ser interpretado como um aperfeiçoamento do conceito de Responsabilidade de Proteger, que vem sendo utilizado como justificativa para as intervenções mais recentes, uma vez que busca assegurar maior transparência e controle na condução das intervenções, ao mesmo tempo em que se preocupa, primordialmente, com os resultados específicos no que se refere à possibilidade real de sucesso na proteção dos civis sob ameaça, quando comparada à possibilidade de agravamento da situação. Assim, este artigo se propõe a discutir como o conceito de Responsabilidade ao Proteger, proposto pelo Brasil, pode ser considerado uma alternativa viável para conter e limitar o avanço do caráter político das intervenções humanitárias legitimadas pela R2P. Este artigo, valendo-se de extensa pesquisa documental e bibliográfica, está estruturado em quatro partes principais. Primeiramente, apresenta uma discussão sobre as intervenções humanitárias e o surgimento do conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P). Em seguida, uma abordagem clausewitziam (2007) permite realizar uma análise comparativa entre as operações de guerra e as operações de paz, com foco especial no caráter político e no uso da força. Tal discussão possibilita compreender como as intervenções humanitárias e a “evolução” das operações de paz, com a inclusão de maior uso da força, contribuíram para tornar mais turvas as fronteiras 9 entre tais operações e as operações de guerra. A terceira parte apresenta o conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP), suas implicações e debates. Finalmente, procura discutir o conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP), como uma alternativa viável, que poderá permitir a aplicação e o aperfeiçoamento da Responsabilidade de Proteger (R2P), evitando que esta se torne simplesmente uma norma legitimadora das intervenções humanitárias políticas. 2 INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER (R2P) Pode-se dizer que, desde a Paz de Vestfalia e da criação do estado moderno, as considerações humanitárias haviam sido sacrificadas em benefício da cidadania, de modo a permitir a sobrevivência e a soberania do estado e, principalmente, a estabilidade do sistema internacional (LINKLATER, 2007 p.81). O estado moderno seria, segundo Max Weber (2004, p.33), “a forma de comunidade que reivindica (com sucesso) o monopólio do uso legítimo da força física em um território particular [...] O estado é visto como a única fonte do ‘direito’ ao uso da violência.” Jens Bartelson (2010, p.82), considerando a questão da legitimidade, identifica uma “dupla ligação” entre a autoridade política e o uso da força. Assim, princípios como a não intervenção e a autodeterminação tornaram-se regra geral, sendo, em 1945, reiterados pela Carta das Nações Unidas. As preocupações com os direitos humanos permaneceriam, portanto, em segundo plano durante todo o período da Guerra Fria, apesar da própria Carta das Nações Unidas também deixar clara sua primazia ou mesmo da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Entretanto, na década de 1990, as preocupações humanitárias ganharam definitivamente papel de destaque na agenda internacional. A introdução das populações e dos indivíduos como objetos de referência para a segurança internacional juntamente com a mudança na natureza dos conflitos de interestatais para intraestatais trouxeram profundas alterações no equilíbrio cidadania x humanitário (WHEELER, 2006, p.3233), abalando fortemente as noções de soberania. A maior parte desses conflitos intraestatais, nos quais atores da comunidade internacional, ao decidirem intervir, acabam tratando 10 a população ou o indivíduo como objeto de referência, recebe a denominação de intervenções humanitárias. Existem diferenças basilares entre os conceitos de assistência humanitária e de intervenção humanitária, não pelos propósitos, mas pelos meios empregados. As intervenções humanitárias podem ser definidas como ingerências armadas de um Estado, grupo de estados ou Organismo Internacional em território de outro Estado, para reprimir violações de direitos humanos ou humanitários (SANDOZ, 1992, p. 225-237). Ainda que as intervenções estrangeiras, de maneira geral e por diferentes motivações, sempre tenham estado presentes nas relações internacionais, foi na década de 1990, que os aspectos humanitários e de direitos humanos cresceram de importância como justificativas para tais intervenções (FINNEMORE, 2003, p. 21). Ao colocar indivíduo e populações como objetos de referência da segurança, as intervenções humanitárias ocorrem em situações nas quais supostamente “o próprio estado, longe de ser um provedor de segurança como na visão convencional, tem sido muitas vezes uma fonte primária de insegurança” (WALKER, 1993, p. 11), podendo vir a representar uma ameaça para os mesmos indivíduos que deveria proteger. Assim, ficam claras as tensões entre os princípios de não intervenção e soberania (que regem a segurança dos estados) e as noções de direitos humanos universais (que têm como aspecto central a segurança humana e que passaram a servir como justificativa para o aumento do número de intervenções humanitárias). Em 1999 e em 2000, durante as reuniões da Assembleia Geral da ONU, o Secretário-Geral Kofi Annan enfatizou a demanda por um consenso internacional sobre as principais questões envolvidas nas intervenções humanitárias. Em resposta a tal demanda, o primeiro ministro do Canadá, Jean Chrétien, anunciou, durante o UN Millennium Assembly, em setembro de 2000, a criação de uma comissão independente para discutir o tema. Assim a International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS) foi estabelecida para discutir as questões morais, legais, operacionais e políticas envolvidas no desenvolvimento de um amplo apoio internacional para uma norma que legitimasse as intervenções humanitárias. Basicamente, a ICISS buscaria solucionar as tensões existentes entre o conceito de soberania e os direitos humanos, ou seja, entre o cidadão e o ser humano, estabelecendo um novo 11 consenso em torno de princípios que deveriam reger a proteção de populações ameaçadas (BELLAMY; WHEELER, 2011, p.521). Em dezembro de 2001, a ICISS publicou seu relatório final, denominado The Responsibility to Protect (2001), dando origem ao conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P). A comissão defendeu que os estados possuem a responsabilidade primária de proteger seus cidadãos e que, caso não possam ou não queiram fazê-lo, “o princípio da não intervenção é ultrapassado pela responsabilidade internacional de proteger” (ICISS, 2001, p. xi). O relatório ampliou ainda a responsabilidade para atingir não apenas a responsabilidade de reagir a crises humanitárias, mas também a responsabilidade de prevenir tais crises e reconstruir estados falidos ou tirânicos. Esta tentativa de retirar do foco dos debates a discussão sobre se os estados possuem ou não o direito de intervir, cedendo lugar a discussão sobre onde está a responsabilidade pela proteção dos povos ameaçados tornou-se o ponto central da tentativa de produzir um novo consenso político internacional apoiando o que o relatório chamou de “intervenção com propósitos humanitários” (ICISS, 2001, p. xiiii). A ICISS procurou definir a Responsabilidade de Proteger com base no estabelecimento de um conjunto de critérios que permitiriam a governos e outros observadores avaliarem se determinada intervenção militar poderia ser considerada legítima em termos humanitários. Tais critérios compreendiam: “limites de justa causa” (necessidade de haver perda de vidas em larga escala ou limpeza étnica, real ou potencial), “princípios de precaução” (intenção correta, último recurso, meios proporcionais e perspectivas razoáveis de sucesso), “autoridade correta” (intervenções idealmente autorizadas pelo CSNU; caso não seja possível, pela Assembleia Geral ou, caso também não seja possível, por organizações regionais) e “princípios operacionais” (incluindo objetivos claros, abordagem comum, força limitada, regras de engajamento adequadas e coordenação com as agências humanitárias) (ICISS, 2001, p. xii-xiii). Apesar de aparentemente objetivos, tais critérios, na realidade, mostraram-se sujeitos a diferentes interpretações e a possíveis manipulações pelos atores mais poderosos, o que se tornou fonte de preocupação e resistência inicial para os países menos poderosos, incluindo o Brasil (KENKEL, 2008). 12 Mesmo assim, a ONU conseguiu, durante o 2005 World Summit, aprovar uma declaração na qual todos os seus 191 estados membros se comprometeram com o princípio da Responsabilidade de Proteger. Tal declaração, entretanto, apresentava algumas alterações em relação à proposta inicial do ICISS, entre elas a inclusão da necessidade de autorização expressa do Conselho de Segurança da ONU. Tal declaração representou, acima de tudo, uma importante mudança normativa, visto que, pela primeira vez, a sociedade de estados formalmente admitia que a soberania pudesse, em determinadas situações, ser violada em função de preocupações humanitárias. A adoção do conceito de R2P, durante o 2005 World Summit, contribuiu para a tentativa de reforçar ainda mais a preponderância do ser humano sobre o cidadão: Aceitação clara e inequívoca por todos os governos quanto à responsabilidade internacional em proteger as populações de genocídios, crimes de guerra, limpeza e crimes contra a humanidade. Vontade e disposição para agir coletivamente, de forma tempestiva e decisiva, para este propósito, por meio do Conselho de Segurança, quando as medidas pacíficas mostrarem-se inadequadas e as autoridades nacionais estejam manifestamente falhando em fazê-lo. (ONU, 2005, sem paginação). Tal aprovação proporcionou, ainda, maior aceitação do conceito em países como o Brasil, bem como ocasionou sua adoção por algumas organizações regionais, como a União Africana. Em 2009, o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, divulgou um relatório estabelecendo que o conceito de R2P deveria estar baseado em três pilares, não sequenciais e com igual importância: Pilar 1: a responsabilidade do estado de proteger sua população de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Este pilar foi descrito pelo Secretário-Geral como sendo a pedra fundamental da R2P e deriva da própria natureza da soberania e das obrigações legais do estado. Pilar 2: a responsabilidade da comunidade internacional em apoiar o estado a cumprir sua responsabilidade de proteger, particularmente ajudando a combater as causas de genocídio e atrocidades em massa, a construir 13 capacidade de prevenir tais crimes e a abordar esses problemas antes que escalem tornando-se crimes. Pilar 3: em situações nas quais o estado manifestamente tenha falhado em proteger sua população de tais crimes, a responsabilidade da comunidade internacional de tomar medidas tempestivas e ações decisivas por intermédio de meios diplomáticos e humanitários pacíficos e, caso estes falhem, outros meios mais coercitivos, consistentes com os capítulos VI (medidas pacíficas), VII (medidas impositivas) e VIII (arranjos regionais) da Carta da ONU. (BELLAMY; WHEELER, 2011, p.521). Em suma, podemos verificar que, de certa forma, o conceito de Responsabilidade de Proteger trata-se de uma tentativa de superar o debate sobre a prevalência entre soberania e direitos humanos, conceituando a intervenção como parte de um regime internacional mais amplo de proteção de populações ameaçadas. Para muitos, R2P deve ser entendida como a codificação de uma norma para as intervenções humanitárias que emergira na década de 1990. Para Gareth Evans (2012), mentor intelectual da R2P, o termo “intervenção humanitária”, devido às suas conotações negativas, não deveria mais ser usado, permanecendo em seu lugar apenas a Responsabilidade de Proteger. 3 A “EVOLUÇÃO” DO USO DA FORÇA EM NOME DA COMUNIDADE INTERNACIONAL: TORNANDO TURVAS AS FRONTEIRAS ENTRE AS OPERAÇÕES DE PAZ E DE GUERRA 3.1 OPERAÇÕES DE PAZ NÃO SÃO OPERAÇÕES DE GUERRA A afirmação acima pode parecer óbvia para a maior parte das pessoas. Entretanto, na realidade, a separação entre estes dois tipos de operação não tem ficado tão evidente assim, especialmente após os desdobramentos ocorridos ao longo das últimas décadas no que tange ao constante aumento do uso da força nas operações de paz. Onde estão os limites entre uma operação de guerra e uma operação de paz robusta com alta intensidade de utilização da força? Pode-se dizer que, eventualmente, os limites entre as duas operações estariam tão turvos que identificá-los poderia tornar-se virtualmente impossível. 14 Dependendo da abordagem ou do nível discutido (político, estratégico, tático, etc.) e dependendo da perspectiva adotada (interventor(es) X país alvo), diferentes analistas certamente encontrariam respostas conflitantes. O comentário do General Sir Michael Rose, Comandante da United Nations Protection Force (UNPROFOR), ao responder às demandas do governo dos EUA para que sua força estivesse mais envolvida em ações de imposição da paz e nos combates com os sérvios (BRAGA, 2012, p.54): Se alguém deseja lutar uma guerra em bases morais ou políticas, tudo bem, excelente, mas não conte com a Organização das Nações Unidas. Destruir um tanque é operação de paz. Destruir infraestrutura, comando e controle, logística, isto é Guerra, e eu não vou lutar uma guerra utilizando tanques pintados de branco. (BARNETT, 1995, p. 37). 3.2 USO DA FORÇA EM NOME DA COMUNIDADE INTERNACIONAL: UM MODELO TEÓRICO Clausewitz (2007), o mais proeminente teórico da guerra e um pensador central das relações internacionais modernas, definiu a guerra, no começo do século XIX, como “um ato de força para compelir o inimigo a fazer a nossa vontade.” (p.13) Para ele a “guerra é simplesmente a continuação da interação política, com a adição de novos meios.” (p.252). Quase duzentos anos depois, em 1919, Weber parecia concordar, afirmando que “para a política o meio decisivo é a força.” (2004, p.44) Assim sendo, pode-se caracterizar a guerra como um fenômeno político no qual o uso da força tem papel decisivo. Em seu brilhante trabalho, que permitiu estudar e compreender cientificamente o fenômeno guerra, Clausewitz desenvolveu o conceito de “guerra absoluta”, um modelo ideal e puro no qual a guerra consistiria em um único movimento de força infinita. Entretanto, Clausewitz reconhece que a guerra jamais é absoluta devido, especialmente, a uma série de fatores que contribuem para moderar os níveis de violência. Dentre os mais importantes fatores, identificou a guerra como sendo regida por uma: [...] trindade paradoxal – composta de violência primordial, ódio e inimizade, que devem ser vistas como uma força 15 natural cega; do jogo das possibilidades e probabilidades no qual o espírito criativo viaja livremente; e dos seus elementos de subordinação, como instrumento da política, que a sujeita apenas a razão. (CLAUSEWITZ, 2007, p. 30). Como continuação da política por outros meios, uma vez atingidos os objetivos políticos, não haveria motivo para a violência de a guerra continuar. Além disso, incerteza, acaso e a onipresente fricção funcionariam como moderadores dos níveis de violência. Em suma, Clausewitz compreendia que, como um fenômeno intrinsecamente ligado à natureza humana, a guerra poderá ser limitada ou ilimitada, jamais absoluta. O conceito de peacekeeping (manutenção da paz), por outro lado, foi inventado e teve sua concepção inicial somente após o fim da II Guerra Mundial. Foi concebido justamente como uma ferramenta para prevenir, gerenciar ou resolver conflitos violentos. Como tal, as operações de paz, quando comparadas com operações de guerra, especialmente no que se refere ao uso da força, deveriam estar situadas do outro lado do espectro. Tais operações foram baseadas em três princípios fundamentais: imparcialidade, consentimento e não uso da força. Na década de 2000, na medida em que os desafios ao trabalho das forças de paz foram aumentando, as tropas também passaram a contar com a capacidade de usar a força em níveis cada vez maiores, sendo dotadas de armamentos cada vez mais poderosos. O Departamento de Operações de Paz da ONU editou, em 2008, a publicação United Nations Peacekeeping Operations: Principles and Guidelines, também conhecida como Capstone Doctrine. Em uma breve leitura, pode-se constatar que a Capstone Doctrine traz algumas interessantes novidades, sendo a mais inovadora a que simplesmente redefine o princípio do não uso da força (BRAGA, 2012, p.55). No que se refere ao uso da força nas operações de paz, a definição corrente, até então, era a de que não deveria haver uso da força, exceto em autodefesa, sendo posteriormente admitida uma alteração do conceito de autodefesa para incluir também a defesa de civis sob ameaça. A Capstone Doctrine, entretanto, ampliou acentuadamente o conceito ao definir o princípio como “não uso da força exceto em autodefesa ou na 16 defesa do mandato” (ONU, 2008), oficializando, portanto, uma situação que já vinha existindo de fato. Ou seja, a partir dessa nova definição, conclui-se que a força poderia ser usada para assegurar a execução de qualquer tarefa que esteja prevista no mandato. Tal situação, obviamente, aproxima e torna ainda mais turvas as fronteiras entre as operações de manutenção da paz e de imposição da paz, ou mesmo das operações de guerra (BRAGA, 2010). Ao mesmo tempo, permite atenuar a resistência de alguns países, como o Brasil, em participar de operações mais robustas amparadas no capítulo VII da Carta das Nações Unidas, uma vez que todas estas operações poderão assim receber a classificação de manutenção da paz, evitando-se os desgastes políticos das operações de imposição da paz (KJEKSRUD, 2009, p. 9). Para Norberto Bobbio (1987), a característica que distingue o poder político das demais formas de poder é justamente a possibilidade de recorrer ao uso da força. Weber, por sua vez, afirma que “só se pode, portanto, definir o caráter político de um grupo social pelo meio […] que não lhe é certamente exclusivo, mas é, em todo o caso, específico e indispensável à sua essência: o uso da força” (1999, p. 56). Assim, a partir dos pensamentos de Weber (1999) e Bobbio (1987), podemos considerar que as operações de paz, caso observassem rigorosamente os três princípios enunciados no parágrafo anterior, especialmente aquele que se refere ao não uso da força, poderiam ser consideradas apolíticas. Ressalta-se que uso da força, no entendimento corrente, consiste basicamente em meios violentos aplicados por um sistema militar politicamente controlado (KJEKSRUD, 2009). Usando a mesma lógica de Clausewitz, ao abordar o fenômeno guerra, pode-se dizer que os três princípios das operações de paz na realidade representam uma forma abstrata, ideal e perfeita, que jamais seria real. A simples presença de tropas estrangeiras uniformizadas em um país anfitrião, por si só, já representaria um ato de força. Também seria impossível atingir um nível de completo consentimento entre todos os atores envolvidos e, devido a sua natureza humana, a força de paz jamais seria inteiramente imparcial ou apolítica. Assim, para balizar o debate entre operações de guerra e de operações de paz, propomos o conceito de “absolute peacekeeping”, como modelo perfeito e ideal de uma operação de paz na qual os três princípios fundamentais seriam observados em sua plenitude, mantendo 17 os níveis de utilização da força em um zero absoluto. Naturalmente, conforme sugerido, tal modelo seria virtual e inalcançável, exatamente nos moldes do conceito da guerra absoluta de Clausewitz. Na realidade, “absolute war” e “absolute peacekeeping” estariam posicionados em lados opostos do espectro do uso da força. As operações reais de guerra ou de paz estariam todas situadas no interior desse espectro (ver figura 1). Figura 1 - Espectro do uso da força nas operações militares Fonte: elaboração do autor Dependendo dos níveis de violência envolvidos, um conflito poderá estar mais próximo de operações de paz ou de guerra. Ao usar níveis crescentes de força, as operações de paz tendem a adquirir características que as tornam mais semelhantes às de guerra. Vários exemplos de intenso uso da força já estão presentes no mundo das operações de paz, com destaque para as operações no Congo e no Sudão. O emprego efetivo de helicópteros de ataque e carros de combate (“tanques”) pintados de branco e com a marcação 18 “UN” disparando contra forças oponentes já se tornou uma imagem comum em diversos cenários. Recentemente, em abril de 2011, os ataques realizados por helicópteros e carros de combate franceses da Operação Licorne, em apoio à ONUCI (Opération des Nations Unies en Côte d’Ivoire), contra as forças do presidente derrotado nas eleições Laurent Gbagbo, foram fundamentais para acelerar o fim da crise e permitir a efetiva posse do presidente eleito (AFP, 2011), caracterizando comportamento claramente político da missão da ONU. (BRAGA, 2012, p.57). Identificar os limites entre as operações de paz e as operações de guerra torna-se, assim, um grande desafio. Entretanto, pode-se dizer que, sob condições de intenso uso da força, rotular determinado conflito como uma operação de paz ou de guerra será, na maior parte das vezes, também, uma decisão política. Assim sendo, podemos concluir que quanto maiores forem os níveis de utilização da força em uma operação de paz, mais próxima das operações de guerra esta operação estará. As intervenções humanitárias, por sua vez, ao incluírem aspectos políticos e intenso uso da força, tendem a estar situadas cada vez mais próximas das operações de guerra. 4 A PROPOSTA BRASILEIRA E O DEBATE ATUAL A consolidação do conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P), apesar dos esforços não foi capaz de proporcionar uma solução adequada e apolítica, capaz de corrigir o caráter político das intervenções humanitárias mais recentes. Na prática, acabou por materializar, uma vez mais, o interesse e o discurso das potências dominantes. O comportamento da comunidade internacional em dois recentes episódios humanitários, ocorridos na Líbia e em Darfur, permite assegurar que a tentativa de estabelecer princípios universais para as intervenções humanitárias ainda não passa de um sonho distante, uma utopia. A rapidez com que o Conselho de Segurança autorizou, com propósitos humanitários, o bombardeio da Líbia e a sua incapacidade (ou falta de vontade) para interromper o massacre dos civis em Darfur bem ilustram o atual estado de coisas. Enquanto na Líbia as ações extrapolaram significativamente o mandato inicial de proteção de civis, perseguindo na realidade a derrubada do regime naquele país, em Darfur os civis 19 permanecem sem socorro. É neste contexto, que surge o conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP), proposto pelo governo brasileiro. 4.1 RESPONSABILIDADE AO PROTEGER (RWP): UMA PROPOSTA BRASILEIRA O conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP) foi mencionado pela primeira vez em setembro de 2011, no discurso da Presidente Dilma Rousseff, durante a abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Em 9 de novembro daquele mesmo ano, durante um debate aberto do Conselho de Segurança sobre o tema da proteção de civis, Maria Luiza Viotti (2012), Embaixadora do Brasil junto à ONU, apresentou uma declaração do Ministro das Relações Exteriores Antonio Patriota, na qual expressava a visão brasileira de que a comunidade internacional, ao exercer sua responsabilidade de proteger, deve demonstrar também um alto nível de responsabilidade ao proteger. Na visão brasileira, o conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P), que acabara de completar dez anos, foi desenvolvido e consolidouse, conforme já discutido no capítulo 2, com propósitos claros e legítimos de evitar que as populações fossem vítimas de quatro tipos de crimes: genocídio, limpeza étnica, crimes de guerra e crimes contra a humanidade (VIOTTI, 2012). Contudo, a intervenção armada na Líbia, tendo como justificativa a proteção de civis, evidenciou as preocupações apresentadas no capítulo anterior, conforme a visão de mundo das teorias críticas das relações internacionais, demonstrando assim a necessidade de aperfeiçoar o conceito. Por ocasião da intervenção na Líbia, Causaram preocupação a extensão da força empregada, a incapacidade de se combinar e calibrar a ação militar com a democracia, a interpretação questionável do mandato conferido pelo Conselho de Segurança e a falta de acompanhamento pelo próprio Conselho das ações empreendidas em nome de todos os membros da ONU. Invocou-se a “responsabilidade de proteger”, mas faltou “responsabilidade ao proteger” (VIOTTI, 2012, p. 35). Assim, os principais elementos da proposta apresentada pelo governo brasileiro são: a valorização da prevenção e dos meios pacíficos 20 de solução de controvérsias; a excepcionalidade do emprego da força; a obrigação de que a ação militar não cause danos maiores do que aqueles que busca evitar; a observância rigorosa dos mandatos; a importância da proporcionalidade e de limites para o emprego da força; e a necessidade de monitoramento e avaliação da implementação das resoluções (VIOTTI, 2012). Tais elementos estão presentes na nota conceitual (concept note), elaborada pelo governo brasileiro, intitulada “Responsibility while protecting: elements for the development and promotion of a concept”, e que, por solicitação do Brasil, foi distribuída e divulgada como documento da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança (ONU, 2011). A nota conceitual brasileira aborda inicialmente o próprio surgimento do conceito de R2P e sua consolidação nos três pilares apresentados e descritos anteriormente: responsabilidade primária do Estado em proteger sua população, responsabilidade da comunidade internacional em apoiar o estado no cumprimento de sua responsabilidade de proteger sua população e, finalmente, responsabilidade da comunidade internacional de intervir para proteger a população, nas circunstâncias excepcionais nas quais o estado tenha claramente falhado na proteção de sua população. De acordo com a posição brasileira, os três pilares devem seguir uma linha de estrita subordinação política e sequência cronológica. Ou seja, a intervenção coercitiva da comunidade internacional só poderá ocorrer depois de esgotadas todas as medidas possíveis no âmbito dos dois primeiros pilares. Conforme veremos na próxima seção, esta demanda pela sequência cronológica é um dos pontos ainda bastante controvertidos do debate sobre o tema. A proposta brasileira relembra, ainda, que as intervenções militares, mesmo quando revestidas de requisitos de justiça, legalidade e legitimidade, sempre resultam em altos custos materiais e humanos, sendo, portanto, imperativo que sejam exauridas todas as soluções diplomáticas. Assim, apenas como medida de último recurso, a comunidade internacional deverá exercer sua responsabilidade de proteger utilizando a força. Neste caso, tal decisão deverá ser precedida por uma análise ampla e judiciosa, caso a caso, das possíveis consequências da ação militar. Neste contexto, a violência contra as populações civis deve ser sempre repudiada, onde quer que ocorra. A tragédia de Ruanda é mencionada como uma lembrança amarga da falha da comunidade internacional em agir de forma tempestiva. Ao mesmo 21 tempo, a nota conceitual ressalta a crescente percepção, confirmando o sentimento amplamente discutido nos capítulos anteriores, de que a R2P pode ser empregada de forma incorreta para propósitos outros que não a proteção de civis, tais como mudanças de regime. Tal percepção poderá tornar ainda mais difícil atingir os objetivos de proteção buscados pela comunidade internacional. Além disso, ressalta o fato de que: [...] o mundo atual sofre as dolorosas consequências de intervenções que agravaram conflitos existentes, permitiram que o terrorismo penetrasse em locais onde previamente não existia, causaram o surgimento de novos ciclos de violência e aumentaram a vulnerabilidade de populações civis. (ONU, 2011, sem paginação). 5 O DEBATE ATUAL A iniciativa brasileira propondo o conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP) gerou grande repercussão internacional. As manifestações variaram desde severas críticas, daqueles que consideram que a proposta brasileira poderia inviabilizar a aplicação da Responsabilidade de Proteger (R2P), até os que a consideram como uma iniciativa importante, que busca aprimorar a R2P, evitando que seja utilizada indiscriminadamente. Dentre as potências emergentes, o Brasil é visto por alguns autores como a mais revisionista e contestadora das normas, sendo mesmo chamado de “The rising spoiler”, ou o estragador emergente, em uma tradução literal (SCHWELLER, 2011, p.293). Assim, as primeiras reações entre os principais defensores da R2P e, especialmente, entre os integrantes do chamado P3 (EUA, França e Inglaterra) do Conselho de Segurança foram bastante negativas, pois consideravam que a proposta brasileira criaria severas limitações à Responsabilidade de Proteger (R2P), podendo mesmo inviabilizar sua aplicação (EVANS, 2012a). A iniciativa brasileira foi interpretada como uma tentativa de enfraquecer e deteriorar a norma recém-criada (THAKUR, 2011, p.182). A divergência entre a posição das grandes potências do norte e posição dos países emergentes do sul global é nítida (THAKUR, 2011). Tais países consideram fundamental evitar que a R2P seja novamente empregada de foram abusiva, com ocorreu na Líbia. Assim, os demais integrantes dos BRICS (Rússia, Índia, China e África do Sul), além dos outros países do sul global, endossaram e apoiaram imediatamente a 22 proposta brasileira (MASHABANE, 2012). Para tais países, a RwP podia ser interpretada como um importante instrumento destinado a limitar a ação das grandes potências (WELSH, 2012). Com o passar do tempo e principalmente após o impasse ocorrido em relação à situação na Síria, para a qual o Conselho de Segurança foi incapaz de obter consenso, os países do P3 passaram a encarar a iniciativa brasileira de forma mais positiva (EVANS, 2012a). Dentro do enfoque de que todos perdem com a continuação da polarização no âmbito do CSNU, a RwP passou a ser vista como um possível instrumento na busca de um novo consenso (WELSH, 2012). Em 2012, o tradicional Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), um dos mais renomados centros de estudos de paz e conflitos, publicou em seu livro anual (SIPRI Year Book 2012) texto reconhecendo a importância da iniciativa brasileira. Na realidade, seu primeiro capítulo, escrito por Gareth Evans e intitulado “Responding to atrocities: the new geopolitics of intervention”, defende que a “iniciativa brasileira de ‘responsabilidade ao proteger’, com foco em critérios mais claros para o monitoramento efetivo do uso da força oferece um caminho construtivo à frente” (EVANS, 2012b). Para Gareth Evans, que foi ministro de relações exteriores da Austrália e é considerado, conforme já mencionado, o pai intelectual do R2P, sendo atualmente codiretor do Global Centre for the Responsability to Protect, [...] a iniciativa brasileira trata-se uma importante e bastante construtiva contribuição para o debate, em um momento no qual o diálogo se faz urgentemente necessário em função das críticas sobre a maneira como o mandato da ONU de proteção de civis foi implementado na Líbia no ano passado. (EVANS, 2012c, p. 67). Entretanto, parece que o debate ainda se encontra longe do consenso. O ponto mais polêmico parece ser a ênfase da iniciativa brasileira em que a abordagem dos três pilares do R2P seja realizada em termos rigorosamente sequenciais.3 Ou seja, de acordo com o 3 No momento da finalização deste artigo (dezembro de 2012), existiam sinais de que o Brasil poderia abrir mão de sua posição quanto à abordagem estritamente sequencial dos pilares, entretanto, ainda não há qualquer documento ou declaração formal de autoridade brasileira ratificando tais sinais. 23 entendimento proposto pelo Brasil o segundo pilar só deveria ser utilizado caso o primeiro fracassasse e, principalmente, o terceiro, que se refere à intervenção coercitiva da comunidade internacional, só seria utilizado caso fracassassem os dois primeiros. Dois dos mais conceituados estudiosos do assunto, Alex Bellamy (2010) e Ramesh Thakur (2011) possuem posições bastante divergentes em relação ao tema. Para Bellamy (2010), os três pilares possuem igual importância, de tal modo que todo o edifício da R2P entraria em colapso na ausência de um deles. Além disso, Bellamy entende que os pilares não são sequenciais, de modo que qualquer um deles pode ser aplicado antes dos demais. Tal posição mostra-se, como pode ser notado, bastante distinta do entendimento brasileiro de que os três pilares “devem seguir uma linha estrita de subordinação política e sequência cronológica” (ONU, 2011). Para Thakur, as preocupações dos países do sul global em relação às intervenções humanitárias (e seu uso político) não têm sido adequadamente apreciadas pelos países do Norte. A ONU deve, portanto, desempenhar um papel vital na redução das diferenças entre as posições. O entendimento de Thakur (2011) aproxima-se um pouco mais da posição brasileira ao defender que”[...] o elemento mais importante – o pilar mais pesado – é a própria responsabilidade do estado e que o mais crítico é a resposta da comunidade internacional às recentes erupções de atrocidades maciças criminosas” (THAKUR, 2011, p.150). Assim, pode-se compreender a importância da iniciativa brasileira de Responsabilidade ao Proteger (RwP). Ao cobrar maior responsabilidade na condução das ações que visam a assegurar a proteção de civis e ao propor condições mais claras para o uso da força em tais circunstâncias, o conceito contribui para a tentativa de redução do componente político e imperialista de tais intervenções. Tal iniciativa, entretanto, ainda se encontra distante do consenso. As intervenções humanitárias, na maior parte das vezes, possuem objetivos que vão bastante além da proteção de civis, sendo muitas vezes consideradas pelas teorias críticas das Relações Internacionais como a criação de uma norma ou uma forma discursiva de tentativa de legitimação de uma posição de poder, na qual ideias e valores das principais potências são universalizados. 24 Assim, podemos seguramente verificar que o conceito de RwP representa seguramente um importante contraponto à tentativa de universalização de uma norma que acabou por permitir e legitimar as intervenções humanitárias políticas. Neste contexto, a iniciativa brasileira pode representar um formidável passo na busca para evitar a proliferação descuidada, indiscriminada e, principalmente, política das intervenções humanitárias. Entretanto, a possibilidade de sucesso de tal iniciativa dependerá da capacidade do País em defender suas posições, juntamente com outros países emergentes, que vêm contestando as chamadas normas globais. À medida que tais países têm se tornado mais proeminentes no cenário internacional, suas posições não podem mais ser ignoradas pelas grandes potências. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso da força na proteção de civis caracterizando uma intervenção humanitária não é uma questão trivial, uma vez que materializa claramente as grandes tensões existentes entre a segurança dos estados e a segurança dos indivíduos. Uma das consequências mais imediatas é a fragilização da noção de soberania, atributo essencial do estado vestfaliano. Outra consequência importante refere-se à distinção entre as operações de paz e as operações de guerra. Conforme apresentado neste artigo, uma abordagem a partir de Clausewitz (2007) permite constatar como o uso da força em níveis crescentes, que tende a ser uma característica das intervenções humanitárias, contribui para tornar cada vez mais turvas as fronteiras entre as operações de paz e as operações de guerra. Como as intervenções humanitárias foram adquirindo importância crescente no sistema internacional pós Guerra Fria, seus defensores passaram também a buscar normas legitimadoras que permitissem algum consenso, especialmente em função da problemática da soberania. Dentre tais normas, o conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P), aprovado pela ONU no 2005 World Summit, mostrou-se seguramente a mais relevante. A R2P enfatizava primordialmente o caráter preventivo na proteção das populações e a responsabilidade do estado, ao mesmo tempo em que buscava um consenso que permitisse agir em situações de crise humanitária. 25 Entretanto, o comportamento ambíguo da comunidade internacional em alguns dos mais recentes episódios humanitários, como os ocorridos na Líbia e em Ruanda, permite assegurar que a tentativa de estabelecer princípios universais para as intervenções humanitárias ainda não passa de um sonho distante, uma utopia. As intervenções humanitárias continuam a ser realizadas, ou não, de acordo com os interesses das principais potências envolvidas, que constroem seus respectivos discursos de poder de acordo com a ocasião. É neste contexto que a proposta brasileira de Responsabilidade ao Proteger (RwP), apresentada em 2011, surge como uma importante novidade na tentativa de evitar a proliferação descuidada, indiscriminada e, principalmente, política das intervenções humanitárias. A RwP defende, prioritariamente, a valorização da prevenção e dos meios pacíficos de solução de controvérsias, de modo que o emprego da força ocorreria apenas em casos excepcionais, obrigatoriamente autorizados pelo Conselho de Segurança da ONU. Em tais situações, a força seria empregada dentro dos limites claramente estabelecidos e a ação militar não deveria, em hipótese alguma, causar danos maiores do que aqueles que buscava evitar. Assim, pode-se dizer que R2P e RwP são complementares, devendo caminhar juntas. A iniciativa brasileira gerou reações imediatas, uma vez que foi interpretada como um instrumento capaz de limitar a liberdade de ação das grandes potências. Assim, encontrou apoio dos países do sul global e forte resistência dos países do P3. Com o passar do tempo e, principalmente, com o impasse e a paralisação do Conselho de Segurança da ONU em relação ao caso da Síria, a iniciativa brasileira passou a ser encarada com maior seriedade, mesmo pelo P3, uma vez que poderia representar a possibilidade de restabelecer, a partir de novas bases, o mínimo consenso perdido. Em suma, conforme apontado no presente artigo, a adoção do conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP), proposto pelo Brasil, representa uma alternativa importante e viável, que contribui para aprimorar e limitar a utilização da Responsabilidade de Proteger (R2P) nos casos de intervenção, evitando que seja empregada de forma indiscriminada pelas grandes potências, simplesmente para legitimar tais intervenções. Finalmente, a apresentação da proposta de RwP pelo Brasil certamente reflete o crescente protagonismo do País e o desejo de 26 exercer papel de maior destaque no cenário internacional. As resistências iniciais das grandes potências devem ser encaradas com naturalidade. O sucesso da iniciativa brasileira dependerá de sua persistência, capacidade de convencimento e, principalmente, do papel que o País vier a exercer no sistema internacional em termos de prestígio e poder nos próximos anos. REFERÊNCIAS ADAMS, Simon. Debate sobre o futuro das intervenções humanitárias. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2012. afp. Gbagbo: Licorne et Onuci “en soutien”. Le Figaro. Paris: 11 abril 2011. BARNETT, Michael N. The United Nations and Global Security: The Norm is Mightier than the Sword. Ethics and International Affairs. New York, v. 9, n. 1, 1995. BARTELSON, Jens. Double Binds: sovereignty and the just war tradition. In KALMO, Kent; SKINNER, Quentin (Eds.). sovereignty in fragments: the past, present and future of a contested concept. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. Bellamy, Alex; Wheeler, Nicholas. Humanitarian Intervention in World Politics. 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A linha de estudo selecionada reside no fato de ainda persistir, desde a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) inaugurada em 2008, no Morro Santa Marta no Bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, a resistência juvenil ao referido programa e/ou ao policial a ele vinculado e nas reiteradas manifestações da Secretaria de Segurança Pública conclamando a sociedade para o incremento de programas sociais, envolvendo a iniciativa pública e privada em apoio à manutenção ao Programa de UPP, nas favelas e morros do estado fluminense. A metodologia usada comportou uma pesquisa bibliográfica e documental, com a coleta de dados de literatura especializada e de documentos do Ministério da Educação e Cultura e da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, além da experiência da autora como advogada e pedagoga, associada às entidades de Associação Internacional de Lions Clubs, Ordem dos Advogados do Brasil e Associação Comercial do Rio de Janeiro. Palavras chave: Unidade de Polícia Pacificadora. Segurança Pública. Cidadania e Defesa Nacional. Resistência dos jovens. Recomendações e Propostas. __________________ * Advogada e pedagoga, especialista em Direito Processual Civil e Psicologia da Propaganda e Marketing, sócia-diretora do Esc. Ricardo Mariz Advogados, associada à Associação Internacional de Lions Clubes, Conselheira no Conselho Empresarial de Segurança Pública, Ética e Cidadania - ACRJ e Vice-Presidente da Comissão de Turismo da Seccional Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB-RJ . Contato: [email protected]. 31 ABSTRACT The present study discusses the behavior of young people on public security, citizenship and national defense with diagnosis of the current public security situation of the State of Rio de Janeiro as a base, and how it provides recommendations and proposals for social inclusion of young people as participants of the educational policies and security focused on the Governmental goals in favor of the common good fundamentally stated in the objectives of the Federative Republic of Brazil listed in article 3 of the Federal Constitution, the focus of the study lies in the fact that there still persists, since the first Pacifying Police Unit (UPP) opened in 2008 in Morro Santa Marta in Botafogo, youth resistance to the program and/or the police officers linked to the program and reiterating the current appeal from the Department of Public Safety to the society for the development of social programs, urging public and private initiative in maintaining support to the UPP in the slums and hills of Rio de Janeiro State. The methodology used included a documentary and bibliographic research, with the collection of data from specialized literature and documents from the Ministry of Education and Culture, and of the Secretariat of Public Security of Rio de Janeiro, to include the author’s experience as a consultant, pedagogy and associated of The International Association of Lions Clubs, of The Order of Attorneys of Brazil, and the Commercial Association of Rio de Janeiro. Keywords: Pacifying Police Unit. Public Security. National Defense and Citizenship. Youth Resistance. Recommendations and Proposals. 1 INTRODUÇÃO A partir de 2007, diferentes setores da área de Segurança Pública do Rio de Janeiro, sob coordenação da Secretaria de Segurança Pública, empreendem esforços para fins de implantação e manutenção das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), constituindo-se na materialização de um planejamento estratégico, tendo por prioridade absoluta o combate à criminalidade e o restabelecimento dos direitos fundamentais dos cidadãos de ir e vir e o resgate da credibilidade da sociedade fluminense em suas instituições. 32 No entanto, apesar do apoio da população ao Programa, esse longo processo de retomada de territórios e vitórias na guerra contra o tráfico, contra a milícia e em combate à violência, revelou a resistência dos jovens aos policiais e/ou ao Programa (CeSec,2010)1, com reflexos diretos na expressão psicossocial de necessidade de implementos de projetos educacionais, culturais, de inserção social e profissional, factíveis ao englobar convênios e parcerias firmados entre os governos municipal, estadual e federal e distintos atores da sociedade civil organizada, tais como, segmentos do poder público, da iniciativa privada e do terceiro setor. Nesse processo evolutivo, surgem inúmeros projetos culturais e educativos isolados e, por vezes, repetitivos ou descontinuados, e distanciados das necessidades juvenis, que acabam por favorecer e alimentar a resistência dos jovens por não se sentirem pertencentes a sua comunidade, agora pacificada, sob o pálio de programas para os quais sequer foram consultados.2 Tais ansiedades da comunidade jovem suscitaram inúmeras reportagens sobre as relações interpessoais entre jovens da comunidade e os jovens recrutas para a UPP e sobre os projetos socioculturais e educativos, produzidos ao longo desses quatro anos de implantação da UPP. 2 SEGURANÇA PÚBLICA UMA REALIDADE HISTÓRICA DO SÉCULO XXI A Revolução Industrial consistiu em um conjunto de mudanças tecnológicas com profundo impacto no processo produtivo em nível econômico e social. Iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII, expandiu-se pelo mundo a partir do século XIX. No Brasil, com o fim da oligarquia cafeeira no início da década de 30, tem início o êxodo rural. A indústria começa a se estruturar e o país a se urbanizar, gerando, entre as décadas de 50 e 90, problemas sociais e ambientais decorrentes do fenômeno de inchaço das cidades em total desorganização no uso do solo, tudo decorrente dos novos contingentes populacionais que velozmente proliferaram nos grandes centros urbanos do sul e sudeste brasileiro em busca das relações formais de assalariamento e de proteção social, produzindo redutos da informalidade e da criminalidade, criando divisão do espaços: de um lado, o mercado 1 UPP- O que pensam os policiais. CeSec, 2010. 2 MARIZ, Kátia Magalhães Lage de Aguiar. Pesquisas de Campo: ’O que pensam os Jovens sobre as Unidades de Polícia Pacificadora’ e ‘Unidades de Polícia Pacificadora:O que pensam os policiais’.Monografia, ESG.Rio de Janeiro, 2012. 33 das drogas ilícitas e do armamento, que tem nos ambientes segregados importantes bases operacionais, sobretudo nas favelas e nos loteamentos irregulares; e, de outro, a “indústria do medo” e da “segurança” instaladas, que encontram o nicho de venda de bens e serviços nas camadas sociais mais elevadas que investem em condomínios exclusivos, em segurança privada, em sistemas de vigilância, em equipamentos eletrônicos de segurança, em gradeamento de prédios, em carros blindados, em rastreadores, na proliferação de celulares, na colocação de insufilmes nos vidros dos carros etc. Enquanto, ao poder público, perante essas relações mutuamente vantajosas3, coube a corrida armamentista para empreender uma “guerra contra o tráfico” e , com política de confronto, aprofundando a atmosfera generalizada de medo e aquecendo, a um só tempo, o mercado de armas e a indústria da “segurança”. No atual panorama da história da segurança pública, um dos grandes desafios é, seguramente, desenvolver formas de controle capazes de conter as tensões sociais, permitindo, assim, ao Estado, ao tempo em que busca se fortalecer frente o avanço da criminalidade avassaladora, garantir os direitos fundamentais aos seus cidadãos. Nesse contexto de desafios estratégicos na fomentação de um mecanismo de controle social “eficaz”, encontra-se a cidade do Rio de Janeiro que encerra os efeitos contrastantes do desenvolvimento desigual. A visibilidade nacional e internacional da cidade deve-se ao fato de ser a capital de um estado impulsionado pelos recursos provenientes da extração petrolífera e dos investimentos infraestruturais, públicos e privados, atrelados a essa atividade, assim como ao seu grande potencial turístico, ao que se acrescenta ser palco de grandes eventos de repercussão internacional (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016). A Segurança Pública na Constituição Federal Brasileira de 1988 está disciplinada no art. 144 como dever do Estado, direito e responsabilidade 3 BRAGA, Laércio Miranda; CARDOSO, Luciano Dias.” Se os aparatos de polícia e justiça não conseguem controlar a criminalidade e sobram pressões de outras condições sociais desfavoráveis, o combate à violência se torna prioridade nas preocupações da sociedade e o mercado da segurança se torna especialmente atrativo para exploração comercial. Aqui como em qualquer lugar do mundo.[...] As firmas de segurança privada multiplicaram-se pelo país e, apenas no ano de 2003, já havia 3.028 autorizadas pela Polícia Federal para operar no mercado. No mesmo período, a chamada “indústria do medo” promoveu a circulação de RS100 bilhões por ano – 10% do PIB brasileiro-, conforme relatório da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP). Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) demonstram que entre os anos de 1985 a 1995 o número de “soldados privados” triplicou (IBGE/PNAD, 1995).” 34 de todos os cidadãos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Essa política está compreendida pela atuação policial de diversos níveis - polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares e, ainda, pelas guardas municipais que poderão ser instituídas pelos municípios. Como a segurança pública é direito e responsabilidade de todos os cidadãos, o seu problema deve passar pela ampliação do contato das instituições públicas com a sociedade civil e com a produção acadêmica mais relevante à área, estimulando a parceria entre órgãos do poder público e a sociedade civil na luta por segurança enquanto objetivo permanente e melhor qualidade de vida dos cidadãos brasileiros. 3 A QUESTÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO A história do crime organizado, mais especificamente do narcotráfico, no Rio de Janeiro, teve início nos anos 70, quando bandidos comuns se aliaram e fundaram o grupo Falange Vermelha. Na década de 80, a Falange se transformou na facção criminosa “Comando Vermelho” (CV), parceiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que se tornaram o principal fornecedor de drogas dos traficantes brasileiros. O Brasil entrou na rota internacional da droga como ponto de distribuição e mercado consumidor. No rastro da cocaína, veio o armamento pesado, como pistolas, metralhadoras, fuzis, granadas e até armas antiaéreas. O CV controlava o tráfico de drogas e de armas e estava por trás de assaltos a bancos e roubos de carros, disseminando a violência4. O Poder Público fez-se ausente, pois suas ingerências na área da segurança pública não se mostravam capazes de combater o crime que se organizava e, quando em fins de ano 1990, o governo reprimiu com maior vigor os pontos de venda de drogas, apostando que isso enfraqueceria o tráfico, os bandidos não recuaram e a cidade passou a ser aterrorizada pela onda de sequestros, roubos e assaltos armados, com incremento da violência em grande escala.5 4 Obra comemorativa do 4º ano do Projeto de Unidade de Polícia Pacificadora- UPP. Rio de Janeiro, 2010.p.14. 5 IDEM. 35 Com o fortalecimento do tráfico de drogas, vieram os subornos e a chamada “banda podre” da polícia, esta cooptada pelo tráfico, fazendo surgir novas e distintas facções e as próprias milícias. 6 O caos se instalou no estado com roubo de armas, de munição e de uniformes militares; comunidades tornaram-se reféns dos traficantes e de seus desmandos; balas perdidas, bondes de tráfico, assaltos e tiroteios à luz do dia, ônibus incendiados, grandes vias da cidade rotineiramente fechadas; brigas entre facções criminosas para ampliarem seus domínios, estabelecendo territórios para o tráfico e criando fronteiras invisíveis separando famílias e amigos; aumento da corrupção; serviços ilicitamente prestados aos moradores de comunidades, tais como, os conhecidos “gatonets”; submissão dos prestadores de serviços públicos necessitando de autorização da bandidagem para adentrarem nas comunidades e tantos outros crimes e ilícitos praticados; assim, a população dos morros e do asfalto estava refém do medo e do poder paralelo. A população fluminense, entretanto, almejava a paz, saía às ruas em passeatas, clamava por uma política de segurança pública austera. Essa população, a partir de 2007, passa a presenciar a implementação de uma nova Política de Segurança Pública, com investimentos em tecnologia, formação de novos policiais, combate à corrupção em todos os níveis nas Polícias Civil e Militar e um novo conceito no combate à criminalidade, utilizando- se com maestria a capacitação técnica dos Serviços de Inteligência, concebendo uma grande preparação logística e agregando as forças especiais para desestimular a reação dos criminosos. Todo esse planejamento articulado por diferentes setores da àrea de Segurança Pública precedeu a instalação da primeira UPP, em 2008, no Morro Santa Marta, bairro Botafogo, RJ, com aprimoramento para as demais que seriam posteriormente instaladas. Apesar disso, constata-se que os jovens estão resistindo aos policiais e ao próprio Programa, porque, desde a infância, sob o manto dos narcotraficantes, tiveram no crime a única opção real de subsistência e/ou outras tantas facilidades e poder de dominação perante os demais moradores da comunidade a que pertenciam. Observa-se que o Programa afeta diretamente a identidade juvenil, pois, como define Woodward (2000), ela está associada também a uma relação dicotômica que dá sentido ao sujeito, definindo o que o indivíduo 6 IDEM. 36 ‘é’ e aquilo que ele ‘não é’, no que a autora complementa, a identidade também significa pertencimento e exclusão, à medida que é a partir da sua identidade que se faz parte ou não de determinado coletivo. Destacam-se outros relevantes aspectos da identidade, tais como, ser relacional e ser remodelada pelas novas relações sociais estabelecidas e, nessa linha de raciocínio, Ciampa desenvolve o conceito de identidade como parte de um processo contínuo de construção com base nas relações sociais (CIAMPA, 2005, p.243). Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida. Uma vida – que-nem-sempre-é-vivida, no emaranhado das relações sociais. Uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que são constituídas, cada uma, por ela. Luke Dowdney7, baseado em entrevistas com menores infratores, afirma que a falta de oportunidades é o principal fator do envolvimento de crianças e adolescentes com a criminalidade, como opção real, e que a questão do policiamento é importante, mas é preciso investir em projetos sociais e que a sociedade precisa criar oportunidades para que esses menores não escolham o tráfico. 4 ABORDAGEM TEÓRICA AO PROGRAMA DE POLÍCIAS COMUNITÁRIAS DAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO Conforme informe disponível no site do governo do Estado do Rio de Janeiro8, o projeto UPP é uma política pública na área de segurança que promove a aproximação entre o poder público e a população, seguindo os princípios da polícia comunitária, que é um conceito e uma estratégia fundamentada na parceria entre a população e as instituições da área de segurança pública, visando a ações proativas de controle da criminalidade e melhoria da qualidade de vida da população; sendo um processo 7 Pesquisador britânico e autor do livro “Crianças do Tráfico”, lançado em 2003. 8 Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/informacaopublica/exibeconteudo. Unidades de Polícia Pacificadora - UPP>. Acesso em: 13 ago. 2012. 37 específico de retomada de territórios controlados por criminosos.9 O presente estudo não se propõe a observar nem analisar e nem avaliar a política pública na área de segurança do Rio de Janeiro alicerçada através de UPP, de acordo com o já definido, mas, sim, contribuir para a manutenção da pacificação das áreas por longo tempo marginalizadas, e, dessa forma, atender às necessidades socioculturais e educativas da população jovem brasileira, produzindo gerações de cidadãos de bem, comprometidos com a segurança, a cidadania e a defesa nacional. Portanto, para que essa estrutura seja realizada é necessário, por um lado, que o policial tenha uma mudança de atitude junto à comunidade, sendo indispensável que participe de cursos de capacitação em polícia comunitária que lhe dê uma nova visão de sua atuação e em seu modo de atuar preventivo; por outro, a comunidade também precisa ser capacitada para poder cobrar os seus direitos e também participar de modo mais organizado e qualitativo na vida em sociedade; objeto de recomendações e propostas do presente. Trinta e duas UPP foram implantadas até janeiro de 2013 e, até 2014, a previsão é de que sejam mais de 40 (quarenta) ao todo, coexistindo, ainda, o projeto das cinco Companhias Destacadas-CD instaladas, de formato idêntico às UPP . Assim, segundo informe da Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro, até 2014, serão beneficiadas 165 comunidades, abrangendo moradores da Zona Oeste, da Baixada, dos subúrbios, de São Gonçalo e de outras cidades fluminenses com grande concentração urbana. Nas observações do antropólogo Robson Rodrigues, (2010)10: A UPP é muito diferente dos DPOs (Destacamentos de Policiamento Ostensivo, modalidade que já foi usada em favelas). Na época desses destacamentos, os traficantes tinham arsenal de guerra, e o policial era só mais um refém dos criminosos. As UPP não são vistas como algo da polícia, mas como um projeto da sociedade. (2010, sem paginação).11 9 Documento Planejamento e Estratégia de implementação das UPP’s, apresentado no 1º. Seminário sobre Unidades de Polícia Pacificadora, em abril de 2010.SSPIO/SESEG. 10Comandante de todas as UPP quando da elaboração deste artigo. 11 RODRIGUES, Robson. Comandante das UPP: “projeto é da sociedade”. In: VEJA Acompanha – Veja.com. 38 A Força Nacional de Segurança na cidade do Rio de Janeiro – sempre com data-limite para sair do espaço de sua atuação – é representada pelo trabalho de transição das Forças Armadas que se desenvolve nos morros e favelas até a entrada em operação das Unidades de Polícia Pacificadora que garantirão a segurança pública na área. O então Ministro de Defesa Celso Amorim (2012,não paginado), comentou que “[...] O trabalho de pacificação das favelas e morros, não está entre as tarefas primordiais das Forças Armadas, mas é algo que precisa ser realizado em apoio à segurança de estado”. Ele reafirmou a contribuição fundamental da Força Terrestre à segurança nacional, dentro do princípio da manutenção da lei e da ordem, e o caráter temporário da medida, em respeito às normas constitucionais. A Força de Pacificação é formada por homens e mulheres, constituída por militares do Exército Brasileiro, da Polícia Militar e da Polícia Civil do Rio de Janeiro, com destaque para o papel social desempenhado na atuação do Exército promovendo ainda ações cívicoculturais e esportivas. Merece ainda registro a atuação da Marinha e da Aeronáutica em consequência do apoio logístico à tropa, levando policiais para dentro da favela e garantindo-lhes maior segurança e movimentação para que o cerco seja exitoso; tem-se ainda a ocupação reforçada por tropas especiais das Forças Armadas, os paraquedistas, considerados os homens mais bem treinados do país, e pelas Forças de Paz que atuaram no Haiti. 5 UPP SOCIAL: AÇÕES SOCIAIS PARA CONSOLIDAÇÃO DA PACIFICAÇÃO Aconcepçãodequeaçõessociaisdevemoudeveriamserdesenvolvidas paralelamente às ações policiais em territórios marginalizados por altos indicadores de violência é um consenso entre os diversos segmentos da sociedade. Pode-se, até mesmo, destacar alguns programas que surgiram, nos diversos contextos brasileiros, como o Programa de Redução de Homicídios de Diadema, Programa Fica Vivo da região metropolitana de Belo Horizonte e o Pacto Pela Vida de Pernambuco. No Rio de Janeiro, o processo específico de retomada através das UPP de territórios controlados por criminosos configura no primeiro momento um período de incertezas e dúvidas e para 39 aproximar todos os atores conta com Unidades de Polícia Pacificadora Social – as UPP Sociais – sob coordenação da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos e concebidas como programa de integração e coordenação de ações sociais, para fins de alcançar essa consolidação do controle territorial e a pacificação nas áreas das UPP que, por suas próprias ações sociais, se impõem como corolário aos fundamentos constitucionais disciplinados no art.1º da nossa Constituição Federal. A UPP Social, com a inauguração de uma UPP, atua de forma integrada com os objetivos da ação policial para dar sustentabilidade à pacificação, promover a cidadania e o desenvolvimento sócio-econômico nas áreas de morros/favelas e, finalmente, contribuir para efetivar a integração dessas áreas ao conjunto da cidade. Assim, sempre que a pacificação estiver consolidada e a situação de exceção superada, o programa UPP Social restará encerrado na área pacificada. 6 CONCEITUAÇÃO TEÓRICA DA RESISTÊNCIA ÀS MUDANÇAS Como fundamento ao presente estudo das resistências juvenis e respectivas recomendações e propostas de resgate social abrangidos, foi selecionado, dentre as teorias de Relações Humanas, o conceito lewiniano de sistemas aparentemente estáticos, ou de ‘equilíbrio quase-estacionário’, e a teoria da motivação de Maslow, pois, a partir dos conceitos propostos por Lewin, Maslow desenvolveu sua teoria da motivação (LEWIN,1935; MASLOW, 1943). O conceito lewiniano dirige a atenção para a importância da redução da resistência, quando se desejam mudanças com um mínimo de tensão. As estratégias mais usuais de aumento de pressão, através de persuasão ou dissuasão, aumentam as tensões dentro do sistema. Se a estratégia oposta - a de neutralizar ou transformar a resistência - for adotada, as forças inovadoras, já presentes no sistema e na situação, serão suficientemente capazes para produzir a mudança ou adesão às transformações. Muitas vezes, como a análise do campo de forças de Lewin indica12, uma vitória mais fácil e estável pode ser obtida pelo enfraquecimento da potência da força de oposição. 12Análise do Campo de Forças (force analysis) é um dos conceitos mais ricos, desenvolvido por Kurt Lewin no estudo dos fatores intervenientes nos fenômenos psicossociais. 40 Figura 1: Modelo de Análise de Campo de Força de Lewin Fonte: Mariz, 2012. A premissa é a de que em qualquer situação há forças de propulsão e forças de restrição (contenção), influenciando diretamente os resultados obtidos e os resultados potenciais. Esta representação gráfica, com a finalidade de diagnosticar situações e propor a otimização de resultados, pode ser utilizada como um poderoso instrumento para analisar qualquer coisa na vida do dia a dia, tanto pessoal como profissional. Assim, quatro perguntas fundamentais que se desdobram deste modelo de análise surgem: ‘Qual a situação atual?’, ‘Qual a situação desejada?’, ‘O que impede que a situação atual se desenvolva?’ e ‘O que poderia otimizar os resultados atuais?’ E, simploriamente, aplicando-se às questões suscitadas, temos: a situação atual é a rejeição dos jovens ao programa e/ou policial de UPP; a situação desejada é que nenhuma rejeição ocorresse; a proibição de baile ‘funk’ pode ser exemplo de um dos impeditivos para aceitação da UPP e uma boa negociação com alguma concessão, poderia otimizar os resultados desejados. O ser humano é um ser de necessidades e, por isso, o seu comportamento é pautado pela satisfação dessas necessidades durante as fases de seu desenvolvimento e, assim, Maslow, ao estruturar conceitualmente o estudo da motivação humana organizou as necessidades humanas em cinco categorias hierárquicas, conforme sua predominância e probabilidade, estabelecendo uma 41 distinção nítida entre motivação de deficiência e motivação de crescimento. A motivação de deficiência está relacionada às necessidades básicas do organismo, em que o preenchimento ocorre por meio de objetos ou seres humanos de fora e, assim, quando o indivíduo satisfaz uma necessidade, outra surge e, assim, sucessivamente. Já a motivação de crescimento ocorre quando os indivíduos satisfazem suficientemente as suas necessidades básicas e, motivados, selecionam, qualitativamente, novas necessidades. E, por isso, de acordo com essa teoria, dificilmente o indivíduo irá atingir o topo da pirâmide, pois sempre haverá novos objetivos e sonhos. Melhor explicitando a teoria, há, na Pirâmide de Maslow, na base, as Necessidades Fisiológicas, fundamentais para a sobrevivência do indivíduo e para a propagação da espécie, de alimentação, sono, abrigo, desejo sexual; seguida das Necessidades de Segurança, para se sentir protegido e livre dos perigos; das Necessidades Sociais, de amor, de relacionamentos familiares e de amizades; Necessidades de Estima (auto e heteroestima), status, respeito próprio e dos outros e de Autorealização e de Necessidades de Realização Pessoal, moralidade, criatividade, espontaneidade, solução de problemas, ausência de preconceitos. Ainda que a teoria seja criticada porque a realidade mostra exemplos de pessoas que não seguem tão rigidamente a hierarquia das necessidades, no entanto, a teoria aponta que, em geral, um indivíduo deverá satisfazer uma necessidade mais urgente para passar para a próxima necessidade. Assim, um jovem que não tem onde dormir com certo conforto e privacidade (Necessidade 1), não terá interesse em ser considerado o excelente aluno do mês de sua escola (Necessidade 4) e também não estará preocupado se foi descoberta a cura para uma doença rara ou se o programa de UPP, se bem- sucedido, poderá ser a libertação da sociedade do cartel do narcotráfico (Necessidade 5). Assim que ele conseguir um lugar com certo conforto e privacidade para dormir, ele conseguirá ver a próxima necessidade de forma relevante, pois já não terá mais aquela preocupação anterior, liberando assim espaços para novas necessidades. A seleção das respectivas teorias de Lewin (1975) e de Maslow (2000) refere-se à constatação de que o grande desafio dos governantes é atender muitas das necessidades básicas e proporcionar aos jovens a busca e a descoberta do que eles têm de melhor a oferecer, em prol 42 do sucesso de qualquer projeto ou atividade cotidiana propostos em seu benefício que, neste enfoque de segurança pública da cidade do RJ, estabelecendo permanente diálogo, chegará ao resgate e consolidação da confiança recíproca, corroborando a consolidação do programa de UPP. 7 ESTUDO DA RESISTÊNCIA DOS JOVENS À UPP Cumpre informar que o sistema social exige conformidade às normas, que correspondem aos hábitos nos indivíduos, exigidos de si mesmos e dos outros e, como são distribuídas pelos muitos participantes, elas não mudam facilmente e, quando uma pessoa se desvia notavelmente da norma do grupo, uma sequência de eventos pode ser esperada e ela pode ser ignorada ou mesmo excluída do grupo. Tratando-se de jovens dominados anos a fio por grupos de criminosos com ascensão e domínio sobre a impotente comunidade, cujo “benfeitor” era tido por modelo de poder com normas traçadas pelo grupo criminoso dominante, os jovens, com o advento da UPP, sentem-se inseguros de se verem excluídos do grupo ao qual por longo tempo estiveram vinculados e obedientes e, não conseguindo perceber que as normas maiores são as ditadas pela sociedade civil, receosos do isolamento, acabam por resistir ao modelo personificado pelo policial da UPP que, por sua vez, ou não está preparado para enfrentar a resistência desses jovens ou não dispõe de suporte necessário para minar as resistências. O princípio gestáltico13 explica que é difícil mudar uma parte sem afetar as demais, e os jovens das áreas pacificadas tornam-se resistentes em abandonar líderes e/ou práticas condenadas pela 13A ciência da psicologia trazida como fundamento ao estudo da segurança pública tenta quebrar a tradição de que seja a mesma um problema vinculado aos juristas e profissionais da área penal, por apenas adesão ao princípio da lei e ordem. No seminário realizado a 20 de junho de 2012 no IESF - Instituto de Estudos Superiores Financeiros e Fiscais, sobre o tema “Pós-Capitalismo – Sociedade do Conhecimento”, o Dr. Amândio Silva transmite a ideia de que as empresas são mais do que uma simples adição dos seus diferentes sectores. Importa ao gestor ser capaz de olhar, avaliar e gerir de acordo com os padrões e configurações que detecta. A visão do todo, da forma que sobressai, é o elemento chave para a condução de uma gestão empresarial de sucesso, pois só assim é possível identificar a completa dimensão física, cultural e emocional da organização. Algo que a análise individualizada a cada sector se mostra incapaz de percepcionar (SILVA, Amandio. 2012). Considerando-se que as comunidades pacificadas pelo programa de UPP possam, didaticamente, serem vistas como empresas e, sendo a análise Gestalt passível de incorporação na gestão das empresas, esta fica justificada. (N.A.) 43 sociedade justamente porque, coerentemente, não encontraram nos policiais da UPP e nem nas políticas ofertadas pelo Programa o sentido de pertença à sua comunidade, gerando ressentimentos e queixas consideráveis. Ainda há, no enquadramento do estudo das resistências nos sistemas sociais, a questão dos interesses investidos, o sacrossanto e a rejeição dos estranhos. 14 Assim, a mais óbvia fonte de resistência é qualquer ameaça aos interesses individuais, econômicos ou de prestígio e, evidentemente, os jovens resistentes são aqueles que durante longo tempo, “protegidos” sob abrigo dos narcotraficantes e milicianos, gozavam de poder de dominação sobre os submissos moradores e auferiam “ganhos fáceis” provenientes dos ilícitos praticados. Os antropólogos observaram que, dentro de qualquer cultura, algumas atividades são facilmente mudadas; outras são altamente resistentes à inovação, sendo que, a maior resistência está relacionada aos assuntos ligados ao que é tido por ‘sagrado’. Assim, os jovens das comunidades pacificadas pelas UPP, quase que por teimosia às alterações que possam afetar questões e práticas que estavam consagradas, ainda que apoiadas na ostensiva demonstração de poderio bélico, nas associações criminosas, estas, em suas concepções, devem ser por eles defendidas como se fosse algo ‘ideal’ ou ‘sagrado’. Por fim, caracterizando a rejeição de estranhos, a maioria das mudanças propostas pelo programa vem de fora da própria comunidade. Se os jovens das comunidades pacificadas do Rio estão se mostrando resistentes às mudanças, isto pode ser devido ao fato de que as forças naturais de inovação estão sendo sustadas ou bloqueadas por 14Há diferentes conceituações de resistência ao longo da história. A resistência no local de trabalho foi abordada por escritores administrativos como Taylor (1947), e psicólogos de organização como Lewin (1947). A resistência é vista como uma reação natural e normal à mudança (COGHLAN, 1993; STEINBURG, 1992; ZALTMAN; DUNCAN, 1977; CONNER 1995, MOTA 1998) porque esta envolve frequentemente ir do conhecido ao desconhecido (MYERS; ROBBINS,1991; STEINBURG, 1992; COGHLAN, 1993). A resistência à mudança se origina de várias causas; uma delas é a natureza humana (TAYLOR, 1988). Na realidade, há tantas fontes possíveis de resistência à mudança e tantos interesses investidos no status quo, que mudanças importantes pouco provavelmente serão instaladas e persistirão, a menos que indivíduos ou grupos poderosos estejam engajados em auxiliar (NADLER; HACKMAN, 1983). 44 outras forças contrárias que precisam ser neutralizadas pelo bem de todos, até dos resistentes jovens. 8 RECOMENDAÇÕES E PROPOSTAS DE RESGATE SOCIAL Com efeito, alcançar o engajamento dos jovens nas mudanças implementadas com a inauguração da UPP, dependerá de ações estrategicamente desenvolvidas para essa faixa etária, nas modalidades de choque e de contínua. A primeira ação (choque), de aplicação imediata, aqui nomeada de Passaporte Cultural 15, tendo por fundamento o apoio da UPP Social com a mobilização de pessoas da própria comunidade compromissadas com o resgate dos resistentes jovens e, a segunda (contínua), condicionada ao interesse do Ministério da Educação e Cultura (MEC) para adoção geral e/ou ao interesse da iniciativa privada, que se prolongue pelo tempo, amparada na base curricular de ensino, aqui nomeada, na condição de conteúdo transverso, de disciplina Voluntariar, que se propõe a contribuir na geração de jovens comprometidos com questões sociais do país. Desde a inauguração da 1ª UPP, em 2008, até as últimas ocorridas em início de 2013, ainda se lê e se ouve, nos diversos canais de comunicações, um forte apelo para se produzirem ações sociais que envolvam a população jovem a um novo olhar para o mundo. 9 INSTITUIÇÃO DO PASSAPORTE CULTURAL A proposta está em total consonância com as experiências do Prof. Bunker Roy16 em Aprendendo com um movimento pés descalços, no Rajastão, na Índia, na seguinte assertiva: “... não precisamos procurar soluções lá fora. Procure soluções no interior. Ouça as pessoas que têm 15O nome Passaporte Cultural foi sugerido para facilitar a percepção do documento de anotações de participação de crianças e jovens em atividades educativas, culturais e esportivas, similar às anotações de um passaporte de viagem.; melhor descrito no subtítulo ‘Instituição do Passaporte Cultural’. ( N.A.) 16‘Bunker’ Sanjit Roy é um ativista social e educador indiano que fundou a Barefoot College. [ 1 ] Ele foi selecionado como uma das 100 personalidades mais influentes em 2010 por seu trabalho na educação de analfabetos e semialfabetizados índios rural. Disponível em: <http:// en.wikipedia.org/wiki/Bunker_Roy> Acesso em: 28 mar., 2913. 45 as soluções na sua frente. Elas estão no mundo inteiro. Não se preocupe. Não ouça o Banco Mundial, ouçam as pessoas ao seu redor. Elas têm todas as soluções” (ROY, 2011, s/p). A proposta do Passaporte Cultural está pautada no resultado estatístico dos questionários aplicados aos jovens, na faixa etária compreendida entre 12 e 27 anos, residentes nos morros/favelas e asfalto nos bairros do Leme e Urca na zona sul e Jacarepaguá, na zona oeste, da cidade do Rio de Janeiro e, também, aos jovens policiais militares da UPP lotados em nove comunidades pacificadas e consubstanciada nas opiniões e declarações de pessoas públicas de nossa sociedade, em destaque: [...] Acompanhei de perto a guerra e a vitória contra o tráfico nessas comunidades do Rio de Janeiro. Foi uma vitória do cidadão junto com o Estado brasileiro, e a cultura tem uma função a cumprir nesse processo, de dar as ferramentas para que as comunidades possam ser autoras na transformação de sua realidade e na promoção de uma cultura de paz17. (HOLLANDA, 2011, não paginado). Sabe-se que educação, cultura e esporte previnem a delinquência porque mantêm as crianças ocupadas e longe das ruas, isso é fato! O Passaporte Cultural deve ser uma das ferramentas para que as comunidades possam ser autoras na transformação de sua realidade e na promoção de uma cultura de paz , de modo que não pareça ser uma importação de “estranhos”, isto é, de proposta de fora para dentro, do Programa de UPP para a favela/morro, do policial integrante da UPP para o jovem da favela/morro. Uma coisa é ganhar cultura com apresentação de espetáculos/ orquestras sinfônicas/Papai Noel – como se fosse recompensa pela possibilidade da paz instalada e a presença do Poder Público vigilante e, outra coisa é o indivíduo em comunidade, conquistar cultura com esforço próprio porque quer a paz e se recompensa com a presença e atenção do Poder Público instalado na Comunidade. É dignidade. É se ver igual. É lutar e não ganhar, como se fossem impotentes para conquistarem. 17Ex-Ministra da Cultura Ana de Hollanda (Portal Brasil, 2011). Substituída pela Ministra Marta Supplicy, atual ministra quando da elaboração deste artigo. 46 Os grandes espetáculos são direitos e não benesses; as conquistas são deveres e premiações pelos esforços despendidos. Assim, cada criança da comunidade, após completar seis anos de idade e, até completar os 12 anos de idade, será cadastrada na Coordenadoria Regional de Educação – CRE, de sua localidade residencial e/ou escolar, e receberá o Passaporte Cultural, livreto semelhante ao passaporte de viagem e que deverá ser renovado anualmente no início de cada ano letivo escolar, conforme a melhor gestão. A cada ingresso nas dependências das diversas atividades culturais e esportivas disponibilizadas na Comunidade ou fora dela, a criança receberá um carimbo em seu passaporte: o carimbo dos diversos núcleos culturais e esportivos da comunidade e demais instituições da sociedade, serão precedidos de rubrica de funcionário local responsável. Os carimbos serão de três naturezas: visitante (para apreciar atividades diárias desenvolvidas no espaço), integrante (para quem está frequentando regularmente a atividade educativa - cultural ) e justificado (para quem esteja temporariamente impossibilitado de visitar ou se integrar em alguma das atividades). Ao fim de um ano letivo, as crianças que apresentarem em seus passaportes, pelo menos 12 (doze) carimbos, estarão, automaticamente, participando de um grande sorteio na comunidade, o Grande Prêmio Anual Comunitário, com prêmio(s) escolhido(s) e custeado(s) pelo governo e identificados com a logomarca do projeto. Acredita-se, assim, que cada um dos moradores passará a ser um agente de mudança, uma força propulsora, todos entusiasmados com a visão do resultado e o desafio do processo passará a ser um fator motivacional em toda a comunidade. 10 VOLUNTARIAR, DISCIPLINA TRANSVERSA NOS CURRÍCULOS ESCOLARES A proposta de obrigatoriedade da disciplina “Voluntariar” no currículo educacional de base nacional comum para o ensino fundamental e médio como política de segurança nacional produzirá reflexos diretos no setor social das comunidades abrangidas pelas UPP pois, enquanto o Passaporte Cultural sinaliza para um processo construtivo de evolução do conhecimento através das vivências, o Voluntariar remete para o desenvolvimento comportamental face às questões sociais que se 47 apresentem emergentes e, assim, o engajamento e a aprendizagem por parte dos nossos jovens brasileiros se constituirão numa oportunidade de mudanças constantes e definitivas. Numa definição ampla de desenvolvimento, esse significa tornar a evolução da sociedade como um processo continuadamente progressivo de bem estar e de nível de vida, com crescentes níveis de equidade social assegurando os equilíbrios com a natureza e a exploração sustentada de diferentes recursos socioculturais em benefício dos cidadãos e dos objetivos do país, reproduzível por meio de mecanismos sociais que assegurem estabilidade social e política, o aprofundamento da democracia e da participação livre dos cidadãos nos seus destinos e no país. É o pleno exercício da cidadania com resultados concretos em cooperação à segurança pública e ao fortalecimento da defesa nacional. A cidadania, compreendida como parte de nossa vida em sociedade; é algo que não se aprende nos livros, mas com a convivência, na vida social e pública. É no convívio do dia a dia que exercitamos nossa cidadania e modificamos a sociedade, por meio das relações que estabelecemos com os outros, com a coisa pública e o próprio meio ambiente. 18 (MARIZ; ARRUDA, 2007, p.19). Nessa linha de defesa, a proposta está em consonância com os artigos e respectivos incisos do DECRETO Nº 7.690, DE 2 DE MARÇO DE 2012, em especial, os Art. 10,V, VIII c/c Art. 12,I c/c Art. 32,I, e com a nossa Constituição Federal, especificamente, no Art. 205, donde: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Historicamente, o Brasil é um país estruturado na pluralidade e diversidade de identidades. Assim, desde a tradição cristã da caridade e perpassando pelo civismo – fonte que é da consciência de ser chamado ao exercício de virtudes morais, sociais e patrióticas – chegando à cidadania, como exercício de participar da vida histórica, social e política 18O conceito de cidadania desenvolvido por Kátia Lage Mariz e Érica Maia Arruda, é simples e de fácil compreensão, mas pontual e objetivo, para uma palavra muito utilizada hoje em nosso país. (N.A.) 48 da comunidade em que se vive, há várias condutas que traduzem a certeza de o povo ter incorporado o ato de ajudar ao próximo à sua cultura e, assim, podem ser destacadas as inovadoras ações voluntárias sociais nas mobilizações nos anos 90, sob a orquestração do sociólogo Herbert de Souza (1935-97), o Betinho, com movimento da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. No âmbito internacional, os EUA são citados como modelo de voluntariado no mundo. O serviço voluntário é estimulado desde a adolescência e faz parte do currículo escolar. Em, 1997, a 52ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) acolheu, por consenso, a proposta do governo japonês e de 122 países de proclamar 2001 como o Ano Internacional do Voluntário. Pedro Mota Soares, Ministro da Solidariedade e da Segurança Social de Portugal, em integração com o Ministério da Educação, propôe que os jovens prestadores de trabalhos voluntários tenham esse trabalho reconhecido no currículo escolar, com anotação, também, nos certificados escolares. O propósito seria o de progressão acadêmica e de inclusão no mercado de trabalho, como acontece noutros países, conforme sua manifestação no Parlamento, em 14 de setembro de 2011, e divulgada na mídia. No panorama brasileiro, a despeito de valorosas iniciativas, o reconhecimento do serviço voluntariado, apesar de disciplinado em Lei do Voluntariado nº 9.608, de 18 de fevereiro de 1998 e Nova lei do Terceiro Setor, nº 9.790, de 23 de março de 1999, não tomou corpo de disciplina escolar de obrigatoriedade nacional com reconhecimento no certificado de conclusão escolar. Os projetos dinamizados se esgotam neles mesmos e as ações, isoladas, seguem o mesmo destino. E, assim, atravessa-se o tempo com uma escola que continua a se preocupar somente com o saber formal, isoladamente, sem considerar a realidade social e cultural de cada aluno e sua potencial contribuição para as comunidades, do País. A escola deve ter a intenção clara de formar o aluno para o serviço voluntariado. Através da participação em atividades voluntárias, as pessoas encontram espaço para seu crescimento pessoal, para a ‘autoatualização’ segundo termo cunhado por Maslow (1943)19. O processo de se 19Refere-se ao desejo de autorealização, ou seja, a tendência para ele se tornar atualizado no que ele é potencialmente. Essa tendência pode ser expressa como o desejo de tornar-se mais e mais o que se é , para se tornar tudo o que uma pessoa é capaz de se tornar ( MASLOW, 1943). 49 informarem, de aprimorarem seu espírito crítico, leva-os à conscientização dos problemas. A presente proposta, como política educacional de governo, sustentará uma blindagem educacional à sedução criminosa e para tanto a disciplina Voluntariar deverá ser incorporada na grade curricular como matéria transdisciplinar a ser cursada pelos alunos matriculados nas duas últimas séries do ensino fundamental, até a primeira série do ensino médio, com duração de um semestre, ocasião em que serão direcionados para os órgãos ou entidades públicas ou privadas e não governamentais conveniadas por parcerias com as respectivas Secretarias de Educação Estadual-SEE ou Municipal de Ensino-SME para acolher os alunos, na condição de ouvintes e/ou observadores, nas ações específicas de cunhos sociais. A presença nas diversas atividades sociais disponibilizadas graciosamente pelos órgãos ou entidades parceiras será registrada em formulário próprio expedido pela SEE ou SME e a carga horária de observação não deverá exceder, para efeitos de hora/aula, 4 (quatro) horas semanais. As escolas devem, por meio de suas propostas pedagógicas e de seus regimentos, em clima de cooperação, tendo por base o horário e o calendário escolar, possibilitar a vinculação, motivar a frequência, a participação dos alunos nas ações sociais dinamizadas nas entidades vinculadas e a troca de experiências, visando ao aperfeiçoamento da disciplina e a avaliação das entidades parceiras. Preferencialmente, o aluno deverá ser direcionado para órgãos ou entidades próximas ou que atuem na sua área residencial, com objetivo de melhor se sentirem pertencente na comunidade. Caso o aluno não esteja se identificando com o tipo de atendimento social desenvolvido na entidade à qual foi direcionado, sem obstáculo de qualquer natureza, ele será redirecionado à outra entidade parceira. O fato da comunidade local não dispor de entidades que desenvolvam ações sociais, não será impeditivo para o aluno estar vinculado em outra entidade de outra localidade conveniada e, até mesmo, por interesse próprio. Ao final do semestre e tendo o aluno cumprido as formalidades e obrigações escolares com a disciplina Voluntariar, caso deseje, poderá se filiar como voluntário na instituição a qual frequentou ou em qualquer outra instituição social, sem qualquer vinculação ou responsabilidade ou 50 cobrança de frequência pelas SEE ou SME. Toda a dinâmica e demais regulamentações desta disciplina estarão a cargo do MEC e, por suas representações, nas SEE e SME. A consequência desse aprendizado é que o aluno deixará de ser uma presa fácil do crime e saberá colaborar para melhores índices de desenvolvimento humano para as Secretarias de Segurança Pública e Assistência Social, pois “só a participação cidadã é capaz de mudar esse país”20 e que “a comida alimenta, mas só a educação e a cultura transformam e libertam”.21 Figura 2: “O que pensam os Jovens sobre as Unidades de Polícia Pacificadora”. Fonte: MARIZ, 2012. Com base em estudos de Paulo Afonso Ronca, doutor em psicologia da educação, com enfoque no estudo da transdisciplinaridade, destaca-se: [...] Em relação ao termo disciplina, resumimos que é metodologia para disciplinar regulamentos na busca do conhecimento; em relação à interdisciplinaridade, 20Herbert José de Souza, o sociólogo Betinho (1935-1997). Coordenador do comitê da Ação Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida. 21Maurício Andrade, sucessor de Betinho na coordenação do comitê. 51 é um conceito que aponta a transferência de métodos de uma disciplina para a outra e a transdisciplinaridade é uma abordagem e busca o que é comum em todos os pensares, o lugar onde todas as ciências convergem para que possamos entender a relação do homem com o mundo. Um currículo transdisciplinar sugere a abertura de nossa mente para que possamos abordar, crítica e simultaneamente, dimensões como ecologia, artes, televisão, política, guerras, relações de amor e de trabalho. (RONCA, 2001, não paginado). As escolas, visando à interação entre a educação fundamental e média e a educação cidadã, estarão propiciando aos jovens alunos construir suas identidades como cidadãos em processo, capazes de serem protagonistas de ações responsáveis, solidárias e autônomas em relação a si próprios, às suas famílias e às comunidades, conforme previsto na Reforma de Ensino Fundamental do Município do Rio de Janeiro. A inovação é trazer, de forma regulamentada, entidades públicas e privadas, governamentais ou não, para o processo educacional, sem qualquer custo para estados e municípios e sem qualquer prejuízo ao cumprimento de metas, objetivos e carga horária destinada ao currículo escolar, mas agregando valores perenes para a sociedade. Uma ilustração de parceria é a experiência descrita no artigo “A Cidadania e o Trabalho da OAB/RJ”, pela autora. Mariz afirma [...] que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem como um de seus objetivos defender a aplicação da Constituição e, por meio da Comissão de Advogados Voluntários – “A OAB/RJ vai às escolas” – leva aos jovens alunos esclarecimentos ao exercício pleno da cidadania. [...] e, “nós advogados, temos por formação e dever a responsabilidade de traduzir para o cidadão comum as intricadas relações jurídicas que norteiam o cotidiano, e, [...] mediante [...] palestras [...] proporcionando ao aluno entender a relação do homem com o mundo, contribuindo, dessa forma, para um novo conceito de humanismo” (MARIZ, 2006, não paginado). Assim como a OAB/RJ, a Fundação Viva Rio, e a Fundação Roberto Marinho oferecem programas sociais, tais como, Amigos da Escola e Criança Esperança e muitos outros de entidades públicas e privadas nacionais e outros órgãos governamentais ou não. Há, também, outros programas de organizações internacionais com os mesmos objetivos, como a Cruz Vermelha, Lions Clubs Internacional, Rotary Club 52 Internacional, União dos Escoteiros do Brasil, Médicos Sem Fronteiras, o Serviço Voluntário Internacional do Brasil, que tem ramificações em vários países bem como as Forças Armadas do Brasil por meio de seus inúmeros projetos e programas, além de outras entidades com igual valoração. 11 RESSIGNIFICAR PARCERIAS PÚBLICAS E PRIVADAS A ressignificação proposta está na valoração das variadas oportunidades, facilidades, programas e projetos que a sociedade dispõe por meio de instituições e organismos governamentais e não governamentais, integrando-as pelo Ministério da Educação e Cultura – MEC, mediante suas Secretarias e Coordenadorias Educacionais, de forma que o MEC, adotando o Passaporte Cultural e a disciplina Voluntariar, passe a proporcionar a vinculação formal entre a população e as políticas de governo, criando mecanismo de mensuração objetiva de tais colaborações em benefício do conjunto dos programas sociais disponibilizados para a área de segurança pública. Segundo o Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, os programas sociais ainda estão surgindo lentamente. E precisa-se de velocidade para mostrar a esses jovens que é melhor estar do lado formal, do Estado, do que do lado do crime, do poder paralelo. (BELTRAME, 2012) A professora de Alagoas, Maria José da Silva, a Zezé, mãe do Tiago Tierra – de 16 anos, morto covardemente ao descer de um ônibus por estar acompanhando um amigo viciado, na ocasião também morto, quando sempre acreditou que poderia resgatar o amigo do vício das drogas – escreve à Presidente do Brasil: “Nossas crianças e nossos jovens necessitam que se invista muito mais em lazer e em cultura. Porque, quando se investe em educação, cultura e lazer, se está fazendo o maior investimento na segurança pública... pois em cadeias não se educa ninguém, nem tampouco em CRMs (Centro de Recuperação de Menores). [...]”, diz em trecho da carta. Mesmo com a presença das UPP, a ameaça do crime é constante, a desconfiança entre autoridades policiais e os jovens moradores precisam ser superadas, a população já sabe o que deseja e é preciso, restando ao Estado formalizar anseios. 53 CONCLUSÃO A metodologia usada no estudo da resistência juvenil aos policiais e/ou Programa de UPP mostrou-se efetiva, especialmente, na expressão psicossocial, por abordar, como dito, o comportamento dos jovens diante da segurança pública, valores da cidadania e de defesa nacional, tendo por parâmetro a política de segurança pública adotada no Rio de Janeiro. No conjunto das informações e análises do estudo, verificase que as propostas do Programa Passaporte Cultural e a inserção da disciplina Voluntariar no currículo escolar de base nacional, são um efetivo instrumento de baixo custo ao governo – que pode vir a se constituir no futuro – de democratização da cultura e da educação cidadã, propiciando aos jovens alunos um sistema de ensino nos moldes dos ensinos americano e europeu; preparando o país do futuro com a educação focada na formação complementar e continuada de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, com uma visão global do país, capazes de conduzir as mudanças necessárias para o desenvolvimento econômico, ambiental, sociocultural e político nacional. O governo, tanto na esfera federal, estadual e municipal, deve se comprometer a tornar a disciplina Voluntariar obrigatória no currículo escolar e estimular a adoção do Passaporte Cultural, ressignificando parcerias públicas e privadas, como o investimento necessário para uma equação eficaz que resolva a apontada estratificação social existente, reconhecendo que não basta guardar, transmitir ou refletir a cultura existente, não basta um novo saber experimental e tecnológico, não basta... É necessário participar e fazer o Brasil acontecer. Referências ABRAMO, Helena W. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 5 e 6. p. 26, maio/dez.1997. AMORIM, Celso. Forças de pacificação continuam no Complexo do Alemão até junho 12. Disponível em: <www.brasil.gov.br/.../forcas-depacificacao-continuam-no-complexo>. Acesso em: 07 jul. 2012 54 ATLAS do Desenvolvimento da Unidade de Polícia Pacificado. 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Tudo gira em torno do disposto no § 2º do art. 142 da Constituição (BRASIL, 1988): Não caberá “habeas-corpus” em relação a punições disciplinares militares. Este estudo resenha a situação atual da discussão, examina as possibilidades justificadoras da intervenção judicial, e identifica os limites da atuação judicial em tais casos. Culminase com uma proposta de emenda constitucional para alteração do referido § 2º do art. 142. Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Administrativo. Controle jurisdicional dos atos administrativos. Hermenêutica constitucional. Punição disciplinar militar. Liberdade. Hierarquia e disciplina. ABSTRACT Hierarchy and discipline in military matters are essential to the fulfillment of the Armed Forces tasks, that could be simply stated as the nation’s defense. Among the powers vested upon Brazilian military authorities is the power to impose disciplinary penalties by means of restriction of freedom of its personnel. The possibility of judicial review of such administrative acts has been in discussion. Whether judicial review is admitted, the need to define the boundaries of that intervention shall be __________________ * Doutor em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – FRGS; estagiário do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia 2012, ESG. Contato: [email protected] 60 established. That power is restricted by the statement of paragraph 2nd of article 142 of the Brazilian Constitution: “Habeas-corpus” shall not apply to military disciplinary punishments. This paper reviews the current situation of the discussion, examines the possibilities of judicial review, and identifies the boundaries of judicial intervention in such cases. At the end, an amendment to paragraph 2nd of article 142 of the Brazilian Constitution is proposed. Keywords: Constitutional law. Administrative law. Judicial review of administrative acts. Constitutional interpretation. Military disciplinary penalty. Freedom. Hierarchy and discipline. 1 INTRODUÇÃO O regime constitucional de 1988 reafirmou no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de revisão jurisdicional de todos os atos administrativos da Constituição, art. 5º, inc. XXXV (BRASIL, 1988), consagrando uma forma de organização dos poderes da República de longo desenvolvimento histórico (MENDES; BRANCO, 2012, p. 59). O uso de ação judicial para controle de atos disciplinares provenientes da administração militar revela zona de choque com os preceitos constitucionais que regem a organização dessas forças conforme a Constituição de 1988, art. 142, § 2º, com efeito deletério sobre a hierarquia e a disciplina, sustentáculos das Forças Armadas. O principal conjunto de casos judiciais que registra a incidência desse conflito, entre outras hipóteses, é o dos habeas-corpus intentados em favor de militares submetidos a punições disciplinares. O presente estudo examina o tema diante dos registros doutrinários, dos comentários dos juristas. O problema é como coordenar vigência e proteção aos princípios da hierarquia e da disciplina nas Forças Armadas com as exigências de regularidade e legitimidade para a realização dos atos administrativos disciplinares. Vale destacar que este trabalho não pretende discutir a constitucionalidade ou adequação ao ordenamento jurídico brasileiro da pena disciplinar de restrição ao direito de ir, vir e permanecer. Terse-á como axioma, portanto, sua compatibilidade com a ordem jurídica brasileira, especialmente tendo por base o que prevê o inc. LXI do art. 5º da Constituição (BRASIL, 1988): “ninguém será preso senão em 61 flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Culminar-se-á com a exposição de um modelo de atuação judicial que permita compor o conflito de princípios constitucionais em forma consentânea com a necessária evolução da sociedade brasileira. Para tanto se propõe analisar as possibilidades, limites e implicações da intervenção judicial em tais situações, em busca dos adequados limites para a atividade administrativa disciplinar e para a intervenção judicial, inclusive sob o aspecto constitucional. 2 CONCEITOS GERAIS O presente capítulo apresentará dois grupos de conceitos essenciais à compreensão do tema proposto: 1) as especificações de norma em princípios e regras, e a sua aplicação sob a orientação da hermenêutica constitucional; e 2) a renovação dos conhecimentos sobre a possibilidade de intervenção judicial sobre atos do Poder Executivo, do administrador, com base na organização dos poderes estatais brasileira. Esses conceitos serão aplicados no capítulo subsequente para especificação do conteúdo mais imediato do trabalho. 2.1 Normas, princípios, regras O modo de interpretação de textos legais e constitucionais conheceu uma evolução importante ao longo do século XX. Apartandose da pretensão positivista de solução dedutiva com base em preceitos abstratos (WIEACKER, 1993, p. 492), alcançou um método de forte vinculação com o caso concreto e suas circunstâncias objetivas. O que se entende na atualidade por interpretação constitucional, ou hermenêutica constitucional, traduz a necessidade de aprofundamento da compreensão dos fatos catalogados no caso concreto, alçando-os a elementos centrais na investigação da solução judicial a ser aplicada, iluminada pela percepção que a sociedade tem daquelas situações específicas (VHOSS, 2008, p. 483). O método puramente dedutivo, do tipo norma→fato, não mais responde às necessidades interpretativas, notadamente após a 62 conformação das constituições surgidas no mundo na segunda metade do século XX. Tomando como marco a Lei Fundamental alemã de 1949, a interpretação judicial passou a complexificar a percepção dos catálogos de direitos constitucionalmente previstos, os direitos fundamentais, verificando e solucionando as colisões entre as normas com o novo instrumento da hermenêutica constitucional. Jairo G. Schäffer (2001, p. 33-34) esclarece o que sejam os direitos fundamentais: Os direitos fundamentais em sentido formal podem ser identificados como aquelas posições jurídicas da pessoa humana - em suas diversas dimensões (individual, coletiva ou social) - que, por decisão expressa do legislador constituinte, foram consagradas no catálogo dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais em sentido material são aqueles que, apesar de se encontrarem fora do catálogo, por seu conteúdo e por sua importância, podem ser equiparados aos direitos formalmente (e materialmente) fundamentais. A Constituição Federal do Brasil, em seu art. 5º, § 2º, exterioriza o entendimento segundo o qual, além do conceito formal de direitos fundamentais, há um conceito material, no sentido de que existem direitos que, por seu conteúdo, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando expressamente do catálogo. O resultado desse exercício impôs nova percepção sobre a natureza das normas jurídicas, tornando necessário separá-las em duas categorias: as regras, conforme fossem passíveis de aplicação por subsunção direta, ou seja, de forma exclusivista, em raciocínio que identifica uma só norma aplicável, com rejeição das demais, diante do conjunto de fatos em exame; ou os princípios, aplicáveis por ponderação, de modo a compatibilizar cada um deles com os demais, fazendo-os incidirem todos em conjunto na maior intensidade possível e sem supressão de qualquer deles (SCHÄFFER, 2001, p. 42). Os modelos podem coexistir no ambiente jurídico, o que implica aumento da complexidade da tarefa de interpretar a lei e a Constituição para solucionar os casos concretos. O modelo de norma princípio permite compreender e aplicar os direitos fundamentais garantidos nas constituições mais recentes, sem que o efeito de aplicação exclusiva peculiar às normas do tipo regra 63 implique supressão de direitos fundamentais por preeminência de algum deles. A compreensão do modelo de norma princípio fica facilitada quando se observa o modo de solução do conflito entre normas. Quando as regras se apresentam em conflito, cada uma delas beneficiando uma posição jurídica específica (vale dizer, um sujeito específico), há disposições legais adequadas para identificar qual delas deve ser priorizada, de modo que a incidência de uma delas exclua as demais. O preceito jurídico, assim obtido, solucionará a disputa. Já quando se examina um conflito de princípios, a exclusão não é admissível, à vista da importância dos mandamentos contidos em tais normas. Em exercício argumentativo de redução ao absurdo, poder-seia imaginar a hipótese de conflito entre os princípios de liberdade de expressão, consoante a Constituição, art. 5º, inc. IV (BRASIL, 1988), e o de proteção à intimidade, também de acordo com Constituição de 1988, art. 5º, inc. IV: ambos são essenciais à dignidade da pessoa humana (BRASIL,1988, art. 1º, inc. III). Adotar a forma interpretativa do modelo de norma regra (a hermenêutica tradicional) implicaria supressão de um dos direitos fundamentais, fazendo prevalecer o outro e com isso prejudicando a dignidade da pessoa humana. A proposta da hermenêutica constitucional é ponderar a aplicação simultânea de ambos os princípios, de acordo com as condições objetivas do caso concreto, conduzindo a resultado que permita a incidência conjunta, maximizadas suas postulações. Toda solução encontrada por esse método será sempre relacionada ao caso concreto específico, não implicando uma generalização para casos semelhantes sem renovação do procedimento. O instrumento de aplicação da hermenêutica constitucional é a argumentação jurídica, meio de legitimação e controle das decisões, e essencial para testar as hipóteses e limites de convivência dos princípios, em busca da solução para o caso concreto. Exercitando a operação interpretativa da hermenêutica tradicional, verifica-se a impossibilidade de aplicar o instrumento processual habeascorpus para atacar ordem de autoridade militar que imponha a prisão como pena disciplinar. Há subsunção direta da norma do § 2º do art. 142 da Constituição, instituindo exceção expressa à norma do inc. LXVIII do art. 5º da Constituição, e retirando do elenco de remédios jurídicos viáveis para tais casos o dito habeas-corpus. 64 Neste ponto, o legislador constitucional fez expressa exceção ao uso de um instrumento processual de longa evolução no ordenamento jurídico brasileiro. Qualquer uso que se fizer desse instrumento para tal fim será contrário à exceção constitucional, e merecerá reparos por meio dos recursos pertinentes. A realidade judiciária reconhece essa conclusão, porém distingue o uso do instrumento como meio para atacar a decisão material de imposição da pena disciplinar, do uso para atacar falhas no procedimento administrativo de imposição da pena disciplinar, como se pode verificar em precedentes do Supremo Tribunal Federal (p. ex. STF, 2ª Turma, unânime, RE 338.840, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 19 ago.2003). Conclui-se, pois, que a norma de exceção do uso do habeas-corpus incide e é eficiente, mas se submete a uma interpretação restritiva, para abarcar somente os casos em que o instrumento é utilizado para impugnar o conteúdo material da decisão da autoridade militar. Nos demais casos, notadamente aqueles de falha procedimental ou de desvio da finalidade do ato administrativo-disciplinar, faz incidir a norma de proteção ao direito de ir, vir e permanecer por habeas-corpus previsto no inc. LXVIII do art. 5º da Constituição (ALVES; MELLO FILHO, 2011, p. 483). Exercitouse a hermenêutica constitucional, impondo a conclusão de que apesar de existir regra vedando o uso do instrumento jurisdicional habeas-corpus, pode ele ser empregado na proteção de princípio que é preeminente sobre a vedação, e deve ser vigente em convivência com o princípio de preservação da hierarquia e da disciplina. 2.2 Intervenção Judicial A possibilidade de intervenção judicial sobre os atos da Administração Pública registra evolução que coincide com a história do constitucionalismo contemporâneo. Trata-se de limitação de poderes, de constrição do poder de governar através de obstáculos externos ao detentor desse poder. A organização do Estado que, assim se conforma, se reporta à famosa teoria de Montesquieu de equilíbrio entre poderes (MEIRELLES, 1989, p. 52), idealizados como reciprocamente limitantes e potencializadores. O melhor modelo, todavia, não é o descritivo de uma plena independência e autonomia dos Poderes da União (BRASIL, 65 1988, art. 2º), mas sim o que os considera como harmônicos, partes indissolúveis do mesmo e único poder de Estado, cada um com funções específicas (CRETELLA JÚNIOR, 1992, p. 17-18). A resultante de tal perspectiva é considerar a “separação” como um recurso didático, tanto do ponto de vista do exercício da democracia e do Estado de Direito, como no sentido acadêmico (CRETELLA JÚNIOR, 1992, p. 20). O conceito a conservar, portanto, é de que a teoria da separação (do equilíbrio) de poderes do Estado, constituída em momento histórico de quebra do poder absoluto do monarca e de consolidação do Estado nacional, requer uma mitigação na atualidade, salientando-se o conceito de harmonia entre as funções do poder estatal (MEIRELLES, 1989, p. 52). Em todo e qualquer sistema há a exigência lógica de normas básicas que sirvam como controladoras de sua integridade, razões da conformação de sua identidade como sistema. Qualquer organização estatal passível de descrição como Estado de Direito pressuporá a supremacia da Constituição, entendida como o conjunto das normas básicas, fundamentais, legitimadoras de toda ação conforme a essa organização (BARROSO, 2010, p. 5). Será a Constituição, nesse contexto, a norma definidora do sistema: o que estiver de acordo com essa norma é adequado e deve ser sustentado e incentivado, o que com ela não estiver de acordo deve ser combatido e reprimido. Verifica-se desse raciocínio que todos os fatos são passíveis de compreensão jurídica, sejam eles favoráveis ou contrários aos valores deduzidos na Constituição. A percepção sistêmica a dar aos fatos não é de exclusão (ôntica), mas sim de valores (deôntica), no sentido de que o fato será reconhecido pelo sistema, mas por ele será classificado como “interessante” ou “desinteressante”, para fins de ser incentivado ou reprimido. Ser o fato contrário aos valores contidos na Constituição (e no ordenamento jurídico como um todo) não o torna fora do Direito, apenas define o sentido da ação daquela organização estatal: reprimi-lo. Por esse raciocínio, combinado com o anterior sobre unidade dos poderes estatais, pode-se admitir uma dinâmica de funcionamento dos diversos poderes, muitas vezes harmônicos, algumas vezes independentes, eventualmente em conflito, sem que desses movimentos resulte quebra de juridicidade. Há, sim, que combater o que seja contrário aos valores, mas jamais o desconhecer. 66 Quando se trata de resolver sobre a adequação ou contrariedade aos seus valores, a Constituição do Estado brasileiro indicou como órgão máximo o Supremo Tribunal Federal, a quem atribuiu sua guarda, segundo a Constituição de 1988, art. 102. Cuidando-se de verificação em concreto da compatibilidade de atos em geral com a Constituição (especificamente os administrativos para o que interessa neste estudo) a última palavra, a decisão final, compete ao Supremo Tribunal Federal, órgão do Poder Judiciário. Não bastasse isso, a todos os juízes é dado resolver sobre a constitucionalidade das leis e dos atos administrativos, conforme o sistema de controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil (BARROSO, 2010, p. 5). Afirmar uma “supremacia do Poder Judiciário” comporta ressalva, portanto, pois olvida a unidade entre os Poderes do Estado, e desconsidera a obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais conforme a Constituição de 1988, art. 93, inc. IX, método político e jurídico de controle dos atos dos juízes. Também se evidencia no Poder Judiciário elemento de harmonização dos Poderes do Estado, caracterizado pelo método de seleção dos membros de seus órgãos mais centrais, com forte intervenção dos Poderes Executivo e Legislativo, vide Constituição (BRASIL, 1988, art. 101, parágrafo único). Sobre o controle do ato administrativo, é relevante notar que tal atividade não é exclusiva do Judiciário, senão compete a todos os Poderes de Estado, embora se reconheça maior eficiência ao controle judicial. Nos dizeres de José Cretella Júnior (2001, p. 329, destaques no original): Obedecendo ao princípio da legalidade, é necessário, pois, que todo o aparelhamento do Estado, localizado nos órgãos dos três Poderes, lhe controle os atos, efetivamente, na prática, mediante uma série de mecanismos, de “freios e contrapesos”, que se reduzem, na realidade, a três tipos de controles: o controle administrativo (ou autocontrole), o controle legislativo e o controle jurisdicional. Dos três, o mais eficiente é o controle jurisdicional dos atos da Administração, mediante uma série de ações utilizadas pelo interessado, na “via judicial”. Desse modo a Administração é submetida à ordem judicial. 67 Verifica-se que a lógica de organização estatal, que tem entre seus valores o modelo do Estado de Direito, de acordo com a Constituição de 1988, art. 1º, demanda um esquema de controle da constitucionalidade dos atos legislativos e da administração. Tal controle há de ser limitador do exercício dessas funções ao âmbito dos valores definidos pela própria Constituição. No Brasil, esse controle é exercido, em modo definitivo, pelo Poder Judiciário, sem prejuízo do controle “intrafunções”. 3 O CONTROLE JUDICIAL Descritos os conceitos principais no item anterior, o presente se serve deles para discutir a possibilidade de controle judicial sobre o ato administrativo disciplinar, revisando longo debate brasileiro sobre a matéria para concluir pela possibilidade, com restrições. Após, alcançase a etapa de propor modelo de intervenção judicial, respeitando os limites encontrados nas etapas anteriores. 3.1 Controle judicial do ato administrativo disciplinar A possibilidade de controle do ato administrativo propaga-se sobre os atos administrativos disciplinares das Forças Armadas. Esse controle, todavia, não é isento de limitações. O ponto é descobrir exatamente onde estão tais limites. Frequentemente os argumentos são esgrimidos através de métodos de interpretação próprios das regras, desconsiderando o método de hermenêutica constitucional aqui já descrito (v. acima, tópico 2.1 NORMAS, PRINCÍPIOS, REGRAS). Assim, boa parte dos trabalhos calcados em tal modo de exame deve ser desconsiderada, tendo em vista a insuficiência do instrumento interpretativo utilizado. Observe-se que muitos têm profundo e perfeito raciocínio lógico, com operações de subsunção e discussão de preeminência de regras perfeitamente aceitáveis e validáveis do ponto de vista formal. Falham, todavia, ao adotar os enunciados constitucionais sob a forma de regras e não de princípios, por pretender um raciocínio excludente e não de maximização de efeitos (MORAES, 2004, p. 111). O controle judicial sobre os atos administrativos disciplinares conhece limitações relacionadas ao conteúdo específico da decisão de impor a pena e sua motivação. Esse conteúdo, que não se confunde com 68 os requisitos formais do ato, é conhecido como mérito administrativo, em uma linguagem mais remota (MENDES; BRANCO, 2012, p. 478). É relevante mencionar que os requisitos formais do ato administrativo (forma prescrita, competência do administrador, em resumo) desde muito são compreendidos como sujeitos à plena revisão judicial, ou seja, ao controle de sua legalidade (MORAES, 2004, p. 81). Por muito tempo, dominou o raciocínio jurídico brasileiro a tese de que o mérito administrativo não estava sujeito ao controle pelo Poder Judiciário (COELHO, 2002, p. 42). A evolução do Estado de Direito, especialmente após a vigência da Constituição de 1988, tornou insustentável essa tese, pois que o abuso ou desvio de poder podem manifestar-se no âmbito do descrito como mérito administrativo (MORAES, 2004, p. 104 e 110). Três são as correntes doutrinárias concentradas em compreender as limitações ao exame judicial dos atos administrativos discricionários: a da “discricionariedade ampla, a da discricionariedade restrita, e a da discricionariedade tendente a zero” (DIAS, OLIVEIRA e NAIMEG, 2008, p. 8 e segs.). Pela corrente de discricionariedade ampla, mais remota, somente o controle da legalidade estaria autorizado ao Poder Judiciário. Segundo a doutrina da discricionariedade restrita, ou por outra via, da “discricionariedade restrita e controle ampliado” (DIAS; OLIVEIRA; NAIMEG, 2008, p. 9-10), o uso da hermenêutica constitucional, da valoração e ponderação dos princípios constitucionais, na interpretação da atividade administrativa estende a possibilidade de controle judicial, reservado sempre um conteúdo ainda identificado como “mérito do ato administrativo, que constitui o núcleo da discricionariedade e está relacionado ao juízo de conveniência e oportunidade a ser delineado pelas regras não positivadas da ‘boa administração’” (DIAS; OLIVEIRA; NAIMEG, 2008, p. 10). Já conforme a doutrina da discricionariedade tendente a zero, caracterizada pela maximização da técnica de hermenêutica constitucional de valoração dos princípios constitucionais, não remanesceria no agir administrativo qualquer parcela protegida do controle judicial (DIAS; OLIVEIRA; NAIMEG, 2008, p. 12). A posição atualmente adotada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é identificável como a intermediária, de “discricionariedade restrita”, conforme se pode claramente verificar 69 do precedente já citado, e é atestado em registros acadêmicos (DIAS; OLIVEIRA; NAIMEG, 2008, p. 14). Pode-se afirmar, portanto, que “a revisão judicial ou jurisdicional recai, sem exceção, sobre qualquer tipo de ato administrativo defeituoso” (CRETELLA JÚNIOR, 2001, p. 330). Os atos administrativos de qualquer natureza estão, sempre, sujeitos a exame pelo Poder Judiciário, ressalvado que permanece um campo de decisão impossível de controlar judicialmente, mas que está contido nos limites da constitucionalidade e dos preceitos de boa administração (BANDEIRA DE MELLO, 1996, p. 88). Ou seja, nas palavras de José Cretella Júnior (1992, p. 24, destaques no original): Em última análise, o controle jurisdicional da Administração Pública está afeto ao Poder Judiciário, sempre que qualquer ação ou medida de autoridade administrativa, eivada de ilegalidade ou abuso de poder, traga ou ameace trazer prejuízos ao administrado. Sob tais considerações, portanto, verifica-se que o ato administrativo disciplinar, espécie do gênero “ato administrativo”, está sujeito ao controle jurisdicional, e dele não pode ser excluído por sua simples natureza. 3.2 Limites ao Controle Judicial da Punição Disciplinar Estabelecida a possibilidade de controle judicial do ato administrativo disciplinar, impõe-se explorar seus limites, como forma de oferecer contribuição efetiva ao dia a dia judicial e castrense. O primeiro ponto a enfrentar, e o mais óbvio, é como compatibilizar o preceito de vedação do uso do instrumento do habeas-corpus em matéria de punição administrativa disciplinar militar resultante em constrição do direito de ir, vir e permanecer, vigente na Constituição, 1988, art. 142, § 2º, com a argumentação até aqui apresentada. A resposta mais direta, que adota a hermenêutica tradicional, indica impedimento do uso desse instrumento processual para sujeitar a exame judicial uma lesão ou ameaça a direito praticada pela administração. Observe-se que tal conclusão é decorrente de subsunção direta. 70 A premissa obtida não gera resultado eficiente; de fato, acaba se revelando inútil. Outros instrumentos processuais (exemplificativamente: o mandado de segurança, ou a ação ordinária) são tão ou mais eficientes que o habeas-corpus, e têm possibilidade de materializar mandamentos judiciais extremamente expeditos, inclusive sem a oitiva preliminar da autoridade responsável pela imposição da pena disciplinar. Utilizar tal sistema interpretativo, pois, resulta em nenhuma eficácia do mandamento constitucional. O caminho da hermenêutica constitucional, todavia, permite considerar os princípios da garantia de liberdade individual (para o que interessa aqui em sua faceta da liberdade de ir, vir e permanecer) e da organização das Forças Armadas sobre os pilares da hierarquia e da disciplina. Uma primeira aproximação desse exercício, e já tomando em consideração a conclusão anterior sobre a ineficácia da previsão do § 2º do art. 142 da Constituição segundo a hermenêutica tradicional, permite inferir que a restrição ao exercício do habeas-corpus contra punições disciplinares é regra que busca dar concretude ao princípio da hierarquia e da disciplina. Tal linha de argumentação permite integrar o preceito ao exame de maximização de princípios, e considerar que sua aplicação não se faz por forma absoluta, mas sim enquanto não esteja prejudicando de modo excessivo a garantia de liberdade. A ação do juiz, confrontado com a proposta de exame judicial de um ato administrativo de imposição de pena disciplinar militar de restrição da liberdade, estabelecer-se-á, conforme modelo ideal aqui figurado, em três patamares de complexidade. No primeiro deles, verificará (1) a correção formal do ato; no segundo, avaliará se a autoridade não se houve em (2) desvio ou abuso de poder; e, finalmente, no terceiro, sindicará (3) a razoabilidade da medida adotada. As etapas de exame devem ser executadas na sequência aqui apresentada; sucumbindo o ato a alguma delas, deve o juiz intervir, antes mesmo de prosseguir para as etapas seguintes. Em um caso ordinário de exame judicial de imposição de pena administrativo-disciplinar por autoridade militar, deverá o juiz verificar, preliminarmente, se há correção formal no ato administrativo. Considerará a forma procedimental, o cumprimento desse procedimento, essencialmente caracterizado pela outorga da oportunidade de “contraditório e ampla defesa” (BRASIL, 1988, art. 5º, inc. LV). Os 71 procedimentos de imposição da pena disciplinar militar estão previstos nos regulamentos disciplinares específicos das Forças, e contemplam as oportunidades mencionadas. A “ampla defesa” implica a assistência de advogado, mesmo na fase de apuração e julgamento pela autoridade disciplinar militar (PENICHE, 2012, p. 54), apesar de a Súmula Vinculante nº 5, do Supremo Tribunal Federal (“A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”), indicar solução diferente (ASSIS, 2008, p. 4). A presença do advogado favorece a presunção de cumprimento dos requisitos procedimentais e respeito às garantias constitucionais. É certo que o Supremo Tribunal Federal, ao editar verbete sumular vinculante, reconheceu no administrador um estrito cumpridor dessas condições, mas a efetiva prova no caso concreto fica muito facilitada quando presente a defesa técnicojurídica. Qualquer falha procedimental autorizará intervenção judicial. Observe-se que o cuidado da autoridade de apuração e de imposição de pena deve ser extremo, e que não há definição objetivamente verificável por antecipação (em abstrato) do que seja o cumprimento dos preceitos de ampla defesa e de contraditório. A condução desse procedimento deve ter em consideração, permanentemente, o fim de cumprir tais direitos do investigado. Grave que é a falha procedimental, comparada à restrição da liberdade do sujeito da apuração disciplinar, é cabível imediata intervenção judicial, inclusive com tutela de urgência (liminar, medida cautelar, antecipação da tutela jurisdicional), manifesta que estará a ilegalidade da imposição de pena. Cumprida a verificação de procedimento, passará o Juiz ao exame dos conteúdos intrínsecos do ato administrativo disciplinar, consistentes na verificação de quatro itens, como ilustra Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2012, p. 348-349, destaques no original), citando Pontes de Miranda: Como assinala Pontes de Miranda (Comentários, cit., art. 141, §23), a transgressão disciplinar tem quatro pressupostos: 1º) “hierarquia”: o transgressor deve estar subordinado a quem o pune; 2º) “poder disciplinar”: a lei deve atribuir poder de punir a esse superior; 3º) 72 “ato ligado à função”: o fundamento da punição tem de ligar-se à função do punido; 4º) “pena”, ou seja, sanção prevista na lei. Se faltar qualquer desses pressupostos, não houve, na verdade, transgressão disciplinar. Daí decorre que o cerceamento da liberdade de locomoção é ilegal, donde deve ser concedida a ordem judicial. Havendo falha quanto aos pressupostos do ato administrativo, deve o juiz intervir, determinando ao administrador a correção do ato, se possível. Ultrapassado o exame de forma, e sobrevivente o ato, deve o juiz sindicar a existência de desvio ou abuso de poder (MORAES, 2004, p. 160), em exame além da questão formal e objetiva, alcançando as razões psicológicas que impeliram a autoridade a adotar a imposição da pena. Verificando-se nesse exame que o impulso motor da autoridade desborda da finalidade administrativa, deve o juiz intervir, invalidando imediatamente o ato, diante da ação distorcida do administrador no exercício do poder que lhe é conferido. Acessoriamente, deve representar à autoridade superior indicando a ocorrência do desvio ou abuso de poder, para fins de apuração de responsabilidade disciplinar, e eventualmente formulando representação criminal. A imposição de penalidade mediante o cumprimento regular das formalidades a ela inerentes, mas fundada em elemento psicológico emergente de disputa pessoal entre o apenado e a autoridade impositora é exemplo candente do desvio de poder. Por fim, superados os exames anteriores com preservação do ato, deve o juiz perscrutar a razoabilidade da pena imposta, levando a cotejo as condições objetivas que ensejaram a imposição da pena disciplinar com as condições subjetivas da pessoa do punido, de modo a concluir pela adequação da restrição da sua liberdade. Importante é lembrar que ambos os princípios - “liberdade”, e “hierarquia e disciplina” - devem coexistir no máximo possível de seu valor. Remanesce ao juiz, pois, o poder de revisar a adequação da pena à situação fática que a ensejou, avaliando se houve excesso pela autoridade, extremado rigor, que já nesta quadra se revelará fora da hipótese extrema do desvio ou abuso de poder. Assim, penetrará o juiz no exame da compatibilidade da sanção imposta com a situação que a ensejou, encontrando finalmente os limites 73 de sua possibilidade de controlar o ato administrativo. Aqui delibera o juiz em fronteira de difícil definição prévia e abstrata, pois somente o caso concreto lhe dará suficientes elementos para firmar a convicção mais acertada. Daí, a imensa importância da motivação completa que a autoridade impositora da pena disciplinar venha a produzir, informando o ato e o convencimento do juiz com o máximo de dados possível, inclusive quanto a circunstâncias influenciadoras do moral da tropa a que pertence o militar punido. Em tentativa de iluminar um pouco essa larga interface, importa dizer que o juiz não pode substituir ao comandante militar para avaliar ampla e completamente a conveniência e oportunidade da sanção disciplinar. O exame da ponderação dos princípios é de visada distante: não pode o princípio de liberdade ser valorizado em completa supressão da hierarquia e da disciplina. O olhar do juiz, portanto, é o de perceber o exercício da autoridade dentro do espectro de convivência dos princípios em questão, fazendo com que haja necessária razão de proteção da hierarquia e da disciplina a justificar a constrição da liberdade, em medida razoável e consentânea com os valores em jogo. A argumentação jurídica, instrumento da hermenêutica constitucional, constitui o suporte de apresentação e cotejamento dos valores em jogo. Deve ela ser exercitada pela autoridade, compondo fundamentação de seu ato que expresse sua compreensão de que há valores constitucionais em potencial conflito, e qual caminho adotou para escolher a medida de incidência de cada um deles. Não intervirá o juiz na modulação estrita, fina, da pena, tampouco na oportunidade de sua imposição ou momento de cumprimento. Observará tais condições de um olhar distante, velando pela restrição da discricionariedade administrativa ao campo de convivência dos princípios, sempre em busca de maximizar seus valores individuais ao mesmo tempo. Não é tarefa fácil, há elevado grau de subjetividade, mas sempre haverá de ser fundamentada a decisão. A intervenção do juiz em tal tema produz a maior e mais perigosa interferência na autoridade do comandante militar (NASCIMENTO, 2011, p. 7-8). Examinar a decisão de mérito é potencialmente contrariar sua decisão específica. O juiz deve, portanto, restringir sua ação a examinar o caso em busca de discrepâncias graves, de aberrações que caracterizem uma grave distorção. A intervenção somente se justificará 74 se o balanço entre os princípios constitucionais em jogo estiver afetado, caracterizando-se uma oportunidade de intervenção somente para coibir uma absurda atuação da autoridade. Assim, exercer controle judicial sobre o conteúdo do ato de punição disciplinar deve ser ação de caráter excepcional, diante de situação aberrante (ALVES; MELLO FILHO, 2011, p. 489). Nunca será demais observar que as decisões administrativas de imposição de pena disciplinar estão sujeitas a recursos administrativos (SILVA, 2001, p. 26), que reservam oportunidade de revisão seguindo o curso da estrutura hierárquica, e por isso mesmo preservando o princípio da hierarquia e da disciplina constitucionalmente previstos. Deve o juiz, sempre, valorizar esse caminho de revisão, que gera a oportunidade de supressão de eventual irregularidade ou desmando no próprio seio da administração. É o que indica a recente L 12.016/2009, Lei do Mandado de Segurança, ao dispor que tal instrumento processual é incabível quando se tratar de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo (inc. I do art. 5º). Quanto à forma procedimental de agir, deve o juiz reservar-se para apreciar qualquer medida de urgência (plenamente compatível com a hipótese, pois estará em jogo a liberdade do administrado) somente após informações a serem prestadas pela autoridade impositora da pena. Esta simples ação permite reunir a restrição descrita no § 2º do art. 142 da Constituição com o restante do exercício de hermenêutica constitucional aqui proposto, outorgando-lhe valor e vigência compatível com o restante dos princípios constitucionais que têm relevância na questão. Ao convocar o comandante militar que impôs a sanção a prestar informações, o juiz nele desperta um sentimento de autocrítica e revisão, além de permitir sumária instrução processual que minimamente observa o contraditório, princípio de elevado valor no processo judicial. São muitos os casos em que as informações da autoridade revelam fatos omitidos ou deturpados pelo sujeito à punição disciplinar, levando o juiz a ter uma visão distorcida da situação. Na imensa maioria dos casos a breve demora para informações é razoável para compatibilizar o princípio da liberdade com o da hierarquia e da disciplina nas Forças Armadas, bem como com a restrição do § 2º do art. 142 da Constituição. Informado, decide melhor o juiz. 75 4 CONCLUSÃO Este estudo pretendeu esclarecer a plena possibilidade de intervenção judicial sobre atos administrativos de imposição de pena disciplinar militar, reservado um campo de discricionariedade à autoridade penalizadora, muito mais restrito do que a tradicional doutrina da vedação do exame do mérito administrativo propunha. A partir da proposição do método de hermenêutica constitucional, reconhecida a necessária efetividade dos princípios constitucionais, verifica-se que o Estado de Direito exige controle de todos os atos administrativos, função principalmente a cargo do Poder Judiciário no Brasil. Exercitou-se raciocínio sobre a possibilidade de eficácia do § 2º do art. 142 da Constituição de 1988, concluindo-se pela sua aplicação como complemento e indicativo de maximização do princípio da organização das Forças Armadas com base na hierarquia e na disciplina. Atingidas tais premissas, propôs-se um método de controle jurisdicional, do ato administrativo disciplinar militar, estabelecendo-se três patamares de exame: (1) a correção formal do ato; (2) o controle do desvio ou do abuso de poder; e, (3) a razoabilidade da medida adotada. A sequência de exame deve ser observada. Em qualquer, a intervenção deve ser cautelosa, sopesando os princípios de proteção à liberdade, e à hierarquia e à disciplina. A atuação do comandante militar é fortemente marcada pelo exemplo e pela imagem que cultiva perante seus comandados. Ver sua autoridade contestada por outra autoridade externa ao seu ambiente de comando tem evidente efeito deletério sobre a hierarquia e a disciplina (ALVES; MELLO FILHO, 2011, p. 490). As medidas cautelares ou antecipativas - apropriadas para os casos em exame, em que está em jogo a liberdade individual - somente devem ser adotadas após a oitiva da autoridade impositora da sanção. A breve demora para obter tais informações é plenamente justificável pela necessidade de maximizar os valores da liberdade individual e da hierarquia e da disciplina norteadoras da vida nas Forças Armadas, e especialmente da regra prevista no § 2º do art. 142 da Constituição. Remanescem como linhas de estudo possíveis sobre o tema o exercício da ponderação de princípios constitucionais em casos concretos, a pesquisa jurisprudencial quantitativa e qualitativa, além de pesquisa de campo junto aos comandantes militares e seus assessores 76 jurídicos, e junto aos Juízes Federais e demais profissionais relacionados à atividade jurisdicional. Por fim, é possível imaginar uma proposta de emenda constitucional modificando o § 2º do art. 142 para vedar medidas de antecipação ou cautelares sem oitiva da autoridade militar penalizadora, que se verteria nos seguintes termos: Art. 142.[...] “§ 2º Não se concederá ordem judicial de liberdade ao sujeito a punição disciplinar militar sem prévia oitiva da autoridade responsável pela sanção [NR] (BRASIL, 1988). É importante ressaltar que há na Câmara dos Deputados uma proposta de emenda à Constituição (PEC 180/2007) que visa à revogação pura e simples do § 2º do art. 142 constitucional. A proposta foi rejeitada por duas vezes na Comissão de Constituição e Justiça daquela casa legislativa. Nada há no Senado Federal sobre o tema. Acolhida a proposta, com alteração constitucional, eliminar-seia a incerteza emergente do atual texto, ineficiente em seu conteúdo gramatical, para assegurar um adequado compromisso entre os princípios da liberdade individual e de preservação da hierarquia e disciplina como fundamentos organizativos das Forças Armadas. As conclusões alcançadas neste estudo, reconhecendo a possibilidade de intervenção judicial na hipótese de punição disciplinar militar, com limitações, estariam plenamente preservadas nos termos do que até o momento se compreende jurisprudencialmente. Também a autoridade do comandante militar que pune estaria preservada da intervenção judicial, pelo menos até o momento em que prestasse informações. Ao juiz se permitiria uma decisão instruída com duas visões da questão. O exame de urgência poderia se exercitar no modo de três etapas aqui sugerido, com as limitações das provas possíveis de produzir nessas condições, mas garantido minimamente o contraditório no processo judicial. O preceito outorgaria tranquilidade à atuação de controle disciplinar praticada pelos comandantes militares, afastando o risco de uma intervenção judicial inesperada. Dos juízes se removeria o peso do exame de urgência dos requerimentos judiciais, sempre caracterizados pela instrução insuficiente e parcial. A proposta, por fim, esvaziaria a discussão atualmente incidente sobre o conteúdo do § 2º do art. 142 da Constituição, consolidando a interpretação já corrente sobre o tema. 77 REFERÊNCIAS ALVES, Alberto Bento; MELLO Filho, Paschoal Mauro Braga. O habeas corpus nas punições disciplinares militares: uma questão controvertida. In: RAMOS, Dircêo Torrecillas; ROTH, Ronaldo João; COSTA, Ilton Garcia da (Coord.). Direito militar: doutrina e aplicações. 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A importância do estudo se encontra na sistematização de uma análise comparativo-qualitativa em que, de um lado, se estrutura uma configuração-controle, tendo, por fundamento, a combinação de condicionantes necessária e suficiente existente nos cinco países maiores exportadores de produtos de defesa (Estados Unidos, Rússia, Alemanha, França e Reino Unido); e, de outro, a combinação de condicionantes que atuou no ambiente das exportações de produtos de defesa brasileiros durante os paradigmas desenvolvimentista (1974-1989), liberal (1990-2002) e logístico (2003-2011). O objetivo geral da pesquisa é comparar os reflexos da política externa brasileira, de tradição pacifista, sobre as exportações de produtos de defesa, verificando, no caso brasileiro, se houve, nos períodos estudados, ambiente favorável semelhante ao dos países que mais exportam armas. A pesquisa assinala os fundamentos que orientaram a política externa brasileira nos três períodos; sistematiza, por meio da decomposição em fatores, as condições político-legais, econômicas, científico-tecnológicas e estratégico-militares que caracterizaram o ambiente geral das exportações de produtos de defesa; e compara as informações obtidas junto às instituições do Estado, ao meio acadêmico e às empresas. Na conclusão, sintetizam-se as principais constatações acerca das condições existentes no Brasil, potência média de escassos __________________ * Pós-Graduado em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Exército Brasileiro. Contato: gelson739@ gmail.com. 80 recursos de poder, cujos objetivos da política externa são racionalmente limitados. Palavras-chave: Política Externa Brasileira. Política de Segurança. Exportações. Produtos de Defesa. ABSTRACT This paper presents a comparative study among the indirect effects on the defense industry in consequence of the three different paradigms of the Brazilian foreign affairs, highlighting the national environment for defense products exportations. The importance of this study is the systematization of a comparative qualitative analysis in which, on the one hand, one builds a control configuration, based on the combination of necessary and sufficient conditions existing on the five largest defense products exporter countries (United States, Russia, Germany, France and United Kingdom); and, on the other hand, the combination of conditions that affected the Brazilian exportations of defense products, during three different periods of time: the developmentist paradigm (1974-1989); the liberal paradigm (1990-2002); and the logistic paradigm (2003-2011). The general aim of this work is to compare the reflects of Brazilian foreign affairs, which is traditionally pacifist, on the Brazilian defense products exportations, verifying, in the Brazilian case, if there was a favorable environment similar to the countries larger exporters, during studied phases. The research points out the cornerstone that guided Brazilian external policy during the three periods; systematizes in factors the conditions (politiclegal, economics, scientific-technologic and strategic-military) that delineate the general environment of defense products exportations; and compares information obtained from State institutions, academic centers and industrial plants. In conclusion, it summarizes the main aspects about the conditions existing in Brazil, a middle power with restrict availability of power resources whose external politics goals must be rationally limited. Keywords: Brazilian External Policy. Defense Policy. Exportations. Defense Products. 81 1 INTRODUÇÃO O Brasil, tradicionalmente, apresenta como linhas mestras que orientam sua política externa a busca pela solução pacífica das controvérsias; a adesão à paz internacional; o jurisdicionismo1; a promoção da cooperação regional; a não intervenção nos assuntos internos; e a soberania dos Estados. (CERVO, 2008). De outro lado, em aparente paradoxo, a Política Nacional de Defesa (2005) e a Estratégia Nacional de Defesa (2008), em face de uma conjuntura de crescente inserção internacional do Brasil e dos riscos e oportunidades advindos desta situação, mencionam a indústria de defesa nacional e a exportação de produtos de defesa como dois dos temas mais relevantes para o país. A exportação de produtos de defesa2, de acordo com a Estratégia Nacional de Defesa (END/2008), formulada pelo Ministério da Defesa e pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, é fundamental para aumentar a escala de produção da indústria de defesa nacional, garantindo, assim, o aumento da quantidade produzida com a consequente redução dos custos e maior rentabilidade. Para isso, o Estado deve ajudar a conquistar a clientela estrangeira. Este artigo tem como foco os reflexos da política externa para o ambiente geral das exportações de produtos de defesa. Na presente abordagem, os reflexos dizem respeito àquelas condições que, embora surgidas indiretamente das iniciativas da política externa brasileira, impactam o ambiente das exportações de produtos de defesa nacionais. 1 O jurisdicionismo diz respeito à crença de que, por meio da formulação e aplicação de leis, seja possível moldar e orientar o comportamento dos Estados e dos indivíduos. 2 A Medida Provisória nº 544 (MP 544), de 29 de setembro de 2011, conceitua produto de defesa (PRODE) como todo bem, serviço, obra ou informação, inclusive armamentos, munições, meios de transporte e de comunicações, fardamentos e materiais de uso individual e coletivo utilizados nas atividades finalísticas de defesa, com exceção daqueles de uso administrativo. Define, além disso, Produto Estratégico de Defesa (PED) como todo PRODE que, pelo conteúdo tecnológico, pela dificuldade de obtenção ou pela imprescindibilidade, seja de interesse estratégico para a defesa nacional, tais como recursos bélicos navais, terrestres e aeroespaciais; serviços técnicos especializados na área de projetos, pesquisas e desenvolvimento científico e tecnológico; e equipamentos e serviços técnicos especializados para a área de inteligência. Por vezes, neste artigo, as expressões “material bélico” ou “material militar” poderão ser utilizadas. Elas se referem à terminologia utilizada até o final da década de 1990 e possuem abrangência mais restrita que produtos de defesa. 82 Para Hitt, Ireland e Hoskisson (2002), o ambiente geral que envolve as empresas diz respeito ao conjunto de fatores, tendências e condições gerais que as afetam. Neste estudo, foram consideradas as condições político-legal (POL), econômica (ECO), científico-tecnológica (C&T) e estratégico-militar (MIL). A condição POL foi caracterizada pelos fatores política externa realista, estratégia de defesa nacional e reserva a acordos assimétricos. A condição ECO, pelos fatores apoio estatal à indústria nacional, participação da iniciativa privada e política de exportação para o setor. A condição C&T, pelos fatores incentivo à inovação, parcerias estratégicas e integração das pesquisas. E, finalmente, a condição MIL, pelos fatores definição de requisitos operacionais conjuntos (interoperabilidade), aquisição permanente e planejada pelas Forças Armadas nacionais e cultura de defesa da sociedade. O corte temporal, estabelecido para o trabalho, faz uso da sistematização do professor Amado Luiz Cervo (2008) que divide a história recente da política exterior brasileira em três paradigmas: o desenvolvimentista (1930-1989), o liberal (1990-2002) e o logístico (2003-2011). O primeiro paradigma (desenvolvimentista) foi adaptado, para este estudo, considerando-se como marco inicial de interesse o ano de 1974, quando o Estado brasileiro resolveu gerenciar as exportações de produtos de defesa por meio das Diretrizes Gerais para a Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar (DG/PNEMEM). A situação-problema identificada foi: a política externa brasileira gerou reflexos que condicionaram o ambiente geral para as exportações de produtos de defesa a partir de 1974? Assim, o objetivo geral deste estudo é comparar as condições para o ambiente geral de exportações de produtos de defesa oriundas da política externa brasileira do período de 1974 a 1989, quando o Brasil esteve entre os maiores exportadores com as condições que são o reflexo da política externa do período de 1990 a 2002, quando a indústria de defesa brasileira enfrentou uma crise sem precedentes, e, por fim, as condições que são o reflexo da política externa adotada entre 2003 e 2011, momento em que o Estado procurou revitalizar o setor. Para realizar esta comparação, foi desenvolvida uma configuraçãocontrole que sistematiza as condições para as exportações existentes nos cinco países que mais exportam produtos de defesa (Estados Unidos, Rússia, Alemanha, França e Reino Unido, nesta ordem). Esta configuração 83 permitiu elaborar uma hipótese que foi testada no caso brasileiro: as condições científico-tecnológicas (C&T) e estratégico-militares (MIL) se constituem em reflexos da política externa que, ao se fazerem presentes, são suficientes para o êxito das exportações de produtos de defesa nacionais. 2 MATERIAL E MÉTODO As informações utilizadas, neste artigo, foram obtidas por meio de pesquisa bibliográfica, documental e de campo. O material bibliográfico foi coletado em bibliotecas públicas, em particular das escolas militares e do Ministério das Relações Exteriores; em livros, artigos e revistas disponibilizados pelos centros de estudos de relações internacionais existentes no Brasil, Estados Unidos, Rússia, Alemanha, França e Inglaterra; e em páginas oficiais dos governos dos países referenciados. A pesquisa documental foi fundamentada em relatórios disponibilizados por associações, institutos de pesquisa e instituições nacionais, internacionais e multilaterais, dentre os quais, vale destacar, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Instituto Estocolmo de Pesquisa da Paz Internacional (SIPRI) e a Comissão de Desarmamento da Organização das Nações Unidas (UNDOA). A pesquisa de campo constou de questionários (formulários eletrônicos) e entrevistas semiestruturadas que tiveram como alvo as aditâncias militares brasileiras nos países empregados para estabelecer a configuração-controle; as instituições representativas do Estado ligadas aos Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa e à Secretaria de Assuntos Estratégicos, da Presidência da República; o meio acadêmico, particularmente o setor de relações internacionais de universidades e institutos; e, por fim, as empresas e associações, particularmente aquelas que participam e acompanham as exportações de produtos de defesa desde a década de 1970. Os questionamentos da pesquisa de campo contiveram perguntas do tipo “múltipla escolha”, induzindo os respondentes a selecionar fatores relacionados às condições que, neste estudo, caracterizam o ambiente geral das exportações de produtos de defesa (Quadro 1). 84 Quadro 1 – Caracterização do ambiente geral das exportações de produtos de defesa Condições Fatores associados 1. PolíticoLegal (POL) 1.1. Adoção de uma política externa realista, em que um dos objetivos do Estado é o de se estabelecer como polo de poder em um mundo multipolar. 1.2. Estratégia de defesa de cunho nacional, buscando a autonomia no desenvolvimento e produção de produtos de defesa. 1.3. Apresentação de reservas ou objeções a acordos internacionais assimétricos que constrangem a produção e transferência de produtos de defesa entre países. 2. Econômica (ECO) 2.1. Política de apoio à indústria de defesa nacional e às indústrias correlatas, estabelecendo, por exemplo, incentivos fiscais e subsídios ao setor. 2.2. Participação predominante da iniciativa privada nas atividades de pesquisa, desenvolvimento e produção de material de defesa. 2.3. Política de exportação específica para os produtos de defesa nacionais, incluindo a promoção comercial internacional por parte do governo federal. 3. Científico - Tecnológico (C&T) 3.1. Incentivo estatal à inovação, à melhoria e à competitividade das tecnologias nacionais de componentes e produtos para o setor. 3.2. Estabelecimento, por intermédio do Estado, de parcerias estratégicas com outros países para compartilhar tecnologias aplicáveis no setor de defesa. 3.3. Realização de atividades de pesquisa de novas tecnologias para o setor de forma integrada e coordenada entre órgãos governamentais, empresas e universidades. 85 Condições Fatores associados 4. EstratégicoMilitar (MIL) 4.1. Participação predominante do Ministério da Defesa ou assemelhado na definição dos novos produtos a serem desenvolvidos pela indústria de defesa nacional, os quais devem privilegiar a interoperabilidade entre as forças singulares. 4.2. Aquisição de produtos de defesa nacionais pelo governo local de forma permanente e planejada. 4.3. Constatação de que amplos setores da sociedade compartilham a percepção de possíveis ameaças externas (cultura de defesa). Fonte: Pesquisa realizada pelo autor (2010-2011) O método científico empregado foi o comparativo, particularmente a análise qualitativo-comparativa (QCA – Qualitative Comparative Analisys), sistematizada por Charles Ragin (1987), durante seus estudos de sociologia comparada. Nessa análise, Ragin (1987) estabelece de 2 a 20 casos para serem estudados e define variáveis operacionais qualitativas por meio das quais efetivamente compara os casos em estudo. A análise qualitativo-comparativa de Ragin (1987) preconiza a simplificação das variáveis de estudo, à luz da álgebra booleana, utilizando-se da dicotomia “presença – ausência” pela atribuição de valores binários (0 ou 1), em que o 0 (zero) significa ausência e o 1 (um), presença. Desta forma, é possível processar as informações de forma simplificada e obter conclusões abrangentes. Para a apresentação das expressões dessa dicotomia, neste artigo, padronizou-se que, quando uma condição se fizer presente, ela é representada textualmente com a sua abreviatura em letras maiúsculas; caso a condição esteja ausente, por minúsculas. Assim, se a condição econômica estiver presente, ela será representada por “ECO” e, se estiver ausente, por “eco”. Também, como partes da apresentação do estudo comparativo, foram utilizadas representações da álgebra booleana que se referem a 86 estruturas algébricas que captam a essência das operações lógicas. Um determinado resultado, de acordo com a álgebra booleana, pode surgir em função da combinação da existência simultânea de duas proposições, neste caso, a representação se faz pela letra “E” ou pelo símbolo (*). Por outro lado, quando o resultado surge, em virtude da existência de uma ou de outra proposição, a representação se faz pela expressão “OU” ou pelo símbolo (+). •A álgebra booleana depende de um conjunto de axiomas que são assumidos como verdadeiros. Nela, cada variável pode assumir um dentre dois valores. Com base nestes valores é possível estabelecer combinações entre as variáveis e organizar funções que revelam resultados complexos. Assim, por exemplo, num determinado país observou-se, no ambiente geral das exportações, a presença das condições científico-tecnológica e estratégico-militar; e a ausência das condições político-legais e econômicas. A combinação das condições, com base na álgebra booleana seria representada por C&T*MIL*pol.*eco. No presente artigo, a abordagem de Ragin (1987) foi empregada em dois momentos. No primeiro momento, para se estabelecer a configuração de condições (configuração-controle) existente nos cinco países que mais exportam produtos de defesa (Tabela 1). Tabela 1 - Participação no mercado mundial Período Estados Unidos (%) Rússia/ URSS (%) Alemanha (%) França (%) Reino Unido (%) TOTAL (%) 1974-1989 32 38 4,2 7 5,8 87 1990-2002 46,4 17,4 6,8 6,4 6,3 83,3 2003-2010 30,6 24,3 9,7 7,6 4,4 76,6 Fonte: SIPRI, 2011 E, no segundo momento, os casos se referem aos diferentes paradigmas da política externa brasileira (PEB/1974-1989; PEB/19902002 e PEB/2003-2011) (Tabela 2). 87 Tabela 2 - Exportações brasileiras de armas convencionais (1974-2010) Paradigma de Política Externa Brasileira Volume de Exportações (em milhões US$) Média Anual (em milhões US$) Participação no mercado mundial Desenvolvimentista (1974-1989) 2.143,00 142,87 0,334% Liberal (1990-2002) 512,00 39,38 0,162% Logístico (2003-2010) 444,00 55,5 0,241% Fonte: SIPRI, 20113 As condições político-legais (POL), econômicas (ECO), científicotecnológicas (C&T) e estratégico-militares (MIL), utilizadas em ambos os momentos, referem-se aos reflexos da política externa que interferem no ambiente geral das exportações de produtos de defesa nacional. De posse das informações que permitiram caracterizar as condições específicas e os respectivos fatores, foi possível realizar a comparação entre a configuração existente em cada um dos paradigmas brasileiros, tendo como controle a configuração vigente nos países que mais exportam, observando-se, assim, condições aplicáveis a todos os casos em estudo. 3 RESULTADOS 3.1 CONFIGURAÇÃO/CONTROLE Da pesquisa documental e bibliográfica realizada para analisar as condições existentes nos cinco países que mais exportam produtos 3 Os números referem-se ao indicativo de tendência de valor adotado pelo SIPRI (2011) (US$ de 1990). 88 de defesa, algumas informações tiveram influência significativa no trabalho, como, por exemplo, a assertiva de Seibertz et al. (2010, p. 10) de que quanto maiores o poder econômico e o poder político de um país, normalmente, maiores são os gastos com a defesa e com os investimentos em indústria de defesa. Além disso, conforme Smith, Humm e Fontanel (1989), os motivos políticos que levam um país a desenvolver sua indústria de defesa se relacionam à busca por maior influência política nas relações internacionais. Ao fornecer armas, uma nação pode dar assistência a seus aliados, reforçando a posição militar deles e, ao mesmo tempo, ter a possibilidade de influenciar o comportamento deles. Por isso, inúmeras transferências de armas fazem parte de acordos e tratados políticos mais abrangentes que incluem outras obrigações ou restrições quanto ao uso do sistema de armas transferido. Ademais, em caso de conflito, a recusa em fornecer peças de reposição pode influenciar decisivamente no resultado de um conflito. Também, de acordo com Brzoska (2007), a estratégia da integração civil-militar para a pesquisa e desenvolvimento de produtos de defesa é, hoje, a mais utilizada. A pesquisa civil lidera a atividade, contudo a pesquisa militar produz importantes tecnologias, em especial aquelas de alto risco. Os Estados Unidos são os detentores da tecnologia militar mais avançada e restringem o acesso a essa tecnologia como forma de evitar que seja de domínio de possíveis inimigos. Saraiva (2001) assevera que os parceiros detentores dessas tecnologias sensíveis são instigados pelos Estados Unidos a adotar mecanismos excludentes de vigilância e controle, naquilo que chama de “apartheid tecnológico”. Ao impedir que sua tecnologia seja conhecida e compartilhada por países não confiáveis, os norte-americanos realizam seu objetivo de manter a superioridade tecnológica. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos possui uma agência, vinculada à Secretaria de Aquisições, Tecnologia e Logística, a DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançados para a Defesa – Defense Advanced Research Projects Agency), que desenvolve projetos nos campos da biologia, medicina, ciência da computação, química, física, engenharia, matemática, ciência dos materiais, neurociência, entre outras, coordenando e integrando os centros de pesquisa de defesa do governo, das universidades e das 89 indústrias, tendo em vista evitar a duplicação desnecessária de esforços. (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2012). Já o Estado russo, segundo maior exportador, investe no seu complexo industrial de defesa para que funcione como um setor de desenvolvimento de altas tecnologias em múltiplas áreas, capaz de atender às necessidades das Forças Armadas russas, bem como assegurar a presença russa no mercado mundial de produtos e serviços de alta tecnologia. (RÚSSIA, 2010). A agência estatal Rosoboroneksport (ROE) tornou-se, durante a administração do Presidente Vladmir Putin (1999-2008), uma espécie de articuladora da base industrial para o Ministério da Defesa russo. A ROE centraliza todo o processo de coordenação de pesquisa e desenvolvimento, produção e exportação. Para isso, tem a liberdade de buscar por recursos em instituições financeiras nacionais e internacionais (BLANK, 2007, p. 63). A Alemanha representa um caso peculiar. De acordo com Seibertz et al. (2010, p. 24), a produção de produtos de defesa na Alemanha se encontra confinada ao setor privado. Não há estatais envolvidas na produção de material de defesa. Com efeito, 85% dos recursos da defesa que são direcionados para pesquisa e desenvolvimento, compras e manutenção são gerenciados pelo Ministério da Defesa e terminam em mãos privadas. A Divisão de Armamento do Ministério da Defesa é responsável por planejar, controlar e supervisionar a indústria de defesa alemã. Ainda de acordo com Seibertz et al. (2010), vinculada à Divisão de Armamentos alemã há uma Agência Federal de Tecnologia Militar e Aquisição, a qual gerencia centros de pesquisa e testes ligados à iniciativa privada. Os projetos internacionais, voltados para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a União Europeia (EU), representam 70% dos investimentos correntes. Os produtos alemães têm a qualidade de oferecer sistemas de armas completos, proporcionando alta tecnologia e interface entre os diversos sistemas e atendendo aos requisitos das operações militares atuais. O Estado francês, quarto maior exportador, adota uma estratégia de defesa autônoma, baseada em um poder militar próprio, como pode ser observado na abertura do Livro Branco francês, quando são delineados os dois grandes objetivos estratégicos de defesa: 90 [...] deux objectifs: celui que notre pays reste une puissance militaire et diplomatique majeure, prête à relever les défis que nous confèrent nos obligations internationales, et celui que l’État assure l’indépendance de la France et la protection de tous les Français4 (MALLET, 2008, p. 9). A França, por intermédio do Ministério da Defesa, mais especificamente por meio da Diretoria Geral do Armamento (DGA), exerce controle sobre toda a estrutura produtiva da sua indústria de defesa. Aproximadamente quatro quintos da indústria de defesa francesa são controlados e gerenciados pelo Estado (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1992, p. 1). O Reino Unido, quinto maior exportador de produtos de defesa, possui uma estratégia institucionalizada para a sua indústria de defesa (REINO UNIDO, 2005, p. 5). O Estado fornece o apoio necessário para que as empresas nacionais desenvolvam suas potencialidades e sejam competitivas internacionalmente. O governo britânico presta, segundo a estratégia britânica, ativo apoio às exportações de defesa, incluindo as ações do Departamento para Garantia de Créditos para as Exportações (“Export Credits Guarantee Department”) e da Organização e Serviços para as Exportações de Defesa (“Defence Export Services Organisation”). Além disso, encoraja a inovação por meio de incentivos fiscais, reduzindo os impostos das firmas pesquisadoras. (REINO UNIDO, 2005, p. 35). Dentre os benefícios produzidos pelas exportações britânicas de produtos de defesa, os estudos incluem a sustentabilidade de uma indústria de defesa nacional, necessária por razões estratégicas, bem como o fortalecimento da possibilidade da defesa coletiva contra as ameaças, de acordo com o direito à legítima defesa, preconizado pela Carta das Nações Unidas. Com as informações da pesquisa bibliográfica e documental, complementadas por outras obtidas com a pesquisa de campo, foi preenchida uma Tabela de Comparação (Tabela 3), a qual mostra as condições científico-tecnológicas (C&T) e estratégico-militares (MIL) 4 “[...] dois objetivos: o primeiro se refere a manter nosso país como uma potência militar e diplomática maior, pronta a superar os desafios conferidos por nossas obrigações internacionais; e, o segundo, que trata de o Estado assegurar a independência da França e a proteção de todos os franceses” (FRANÇA, 2008, p. 9) 91 presentes (1) nos ambientes gerais para as exportações de produtos de defesa dos cinco maiores exportadores. A Tabela 3 revela, à luz de Ragin (1987), que a combinação das condições (C&T e MIL), por estar presente nos cinco países que mais exportam, é necessária. Além disso, o ambiente geral favorável às exportações na Alemanha, onde as condições POL e ECO não estão presentes, revela que a combinação das condições C&T e MIL caracteriza uma configuração suficiente para o resultado esperado (elevado índice de exportações). Tabela 3 - Resultado final das condições que interferem no ambiente das exportações. Condições Políticolegais (POL) Econômicas (ECO) CientíficoTecnológicas (C&T) EstratégicoMilitares (MIL) 1º Estados Unidos 1 1 1 1 2º Rússia 1 1 1 1 3º Alemanha 0 0 1 1 4º França 1 1 1 1 5º Reino Unido 0 1 1 1 Ranking/Caso Fonte: Pesquisa realizada pelo autor (2010-2011) Os resultados obtidos por meio da pesquisa de campo junto às aditâncias brasileiras dos Estados Unidos (EUA), Rússia (RUS), Alemanha (ALE), França (FRA) e Reino Unido (RU), sistematizadas no Quadro 2, corroboram com as informações da pesquisa documental e bibliográfica. A simplificação das condições, neste artigo, apontou a necessidade de que pelo menos dois dos fatores associados (Quadro 1) fossem observados para se considerar a condição presente. Com isso, constata-se 92 que nos Estados Unidos, na Rússia, na França e no Reino Unido (Quadro 2), as condições político-legal (POL), econômica (ECO), científico-tecnológica (C&T) e estratégico-militar (MIL) encontram-se presentes (1) e combinamse para configurar o ambiente geral das exportações nestes países. Quadro 2 - Sistematização das observações das aditâncias AMBIENTE GERAL DAS EXPORTAÇÕES DE PRODE Condições Fatores associados 1.1. Política exterior realista 1.2. Defesa Nacional (autônoma) 1. POL 1.3. Reservas a acordos assimétricos Presença/ ausência da condição político-legal (POL) 2.1. Apoio estatal 2.2. Participação da iniciativa 2. ECO privada 2.3. Política de exportação específica para o setor Presença/ ausência da condição econômica (ECO) 3.1. Incentivo à inovação no setor 3.2. Parcerias com outros países 3. C&T 3.3. Integração na P&D entre as diversas instituições Presença/ ausência da condição científicotecnológica (C&T) 4.1. Diretriz para a interoperabilidade oriunda do MD 4.2. Aquisição nacional planejada 4. MIL e previsível 4.3. Percepção de ameaças pela sociedade (cultura) Presença/ ausência da condição estratégicomilitar (MIL) PAÍSES EUA 1 1 1 RUS 1 1 0 ALE 0 1 0 FRA 1 1 0 RU 1 0 1 1 1 0 1 1 1 1 1 0 0 1 1 0 1 1 0 1 0 1 1 1 1 0 1 1 1 0 1 0 1 1 0 1 1 0 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0 1 1 1 1 1 1 1 Fonte: Pesquisa realizada pelo autor (2011-2012) 93 Na Alemanha, verifica-se, por um lado, a ausência (0) da condição político-legal (pol) e a ausência (0) da condição econômica (eco); por outro lado, observa-se a presença da condição científico-tecnológica (C&T) e a presença da condição estratégico-militar (MIL). Desta forma, com base na álgebra booleana, o ambiente favorável às exportações (Amb), existente nos cinco países que mais exportam, conforme as aditâncias, é Amb=POL*ECO*C&T*MIL + C&T*MIL (onde “*” significa “e” e “+” significa “ou”)5. O Quadro 2 mostra que a definição, por um órgão central, de requisitos a pesquisar; a busca pela interoperabilidade entre os produtos; e a aquisição planejada e previsível de produtos de defesa pelo governo local são fatores comuns que permeiam a política para a indústria de defesa dos países que mais exportam no setor. Além disso, os fatores como percepção de ameaças pela sociedade e estratégia de defesa nacional (autônoma) se encontram presentes em quatro dos cinco países maiores exportadores. Dessa forma, para a sequência da análise comparativa qualitativa, a combinação a ser utilizada como controle terá duas representações, uma ideal - Amb=POL*ECO*C&T*MIL - e uma necessária e suficiente - Amb= C&T*MIL. Esta última representação evidencia que o ambiente geral favorável às exportações de produtos de defesa depende, em essência, da existência simultânea de duas condições, consideradas necessárias e suficientes: a científico-tecnológica (C&T) e a estratégico-militar (MIL). Ela representa, em suma, a hipótese da pesquisa a ser verificada no caso brasileiro. 3.2 AMBIENTE PARA AS EXPORTAÇÕES DE PRODE NO BRASIL (1974-2011) O paradigma desenvolvimentista da política externa brasileira, no presente estudo, se estende do período de 1974 a 1989. De acordo com Bueno (2008), esse paradigma reforçou o aspecto nacional e autônomo da política exterior. Ele é representado pelo Estado empresário que arrasta a sociedade rumo ao desenvolvimento, por meio da superação de dependências econômicas estruturais e, também, pela autonomia da segurança. 5 A representação da existência de determinada condição se faz pelo uso da letra maiúscula. A representação da ausência é pelo uso da letra minúscula (RAGIN, 1987). 94 Cervo e Bueno (2002) destacam que o paradigma desenvolvimentista, na década de 1970, estabeleceu ações com vistas a alcançar a autonomia estratégica do país, dentre estas, o estabelecimento da Política Nacional para Exportação de Material Militar (PNMEM), em 1974; o acordo nuclear com a Alemanha, em 1975; a denúncia do acordo militar com os Estados Unidos, em 1977; e o desenvolvimento do programa nuclear paralelo, em 1979. As premissas que orientaram a política externa brasileira, em termos de indústria de defesa, no período de 1974 a 1989, podem ser resumidas no discurso do Presidente da República, General Ernesto Geisel, em 1975, quando da sanção da Lei 6.227/75, que criou a Indústria de Material Bélico (IMBEL): O Brasil é uma Nação tradicionalmente pacífica. Nos foros internacionais, embora inutilmente, sempre pugnou pelo desarmamento geral. No século em que o mundo vive, têm sido repetidos, infelizmente, os conflitos bélicos, sem que as organizações internacionais – notadamente a ONU – conseguissem preveni-los ou eliminá-los. Do mesmo modo, em todos os quadrantes, cresce o poderio bélico, a tal ponto que a indústria de armamentos, hoje em dia, é uma das mais rentáveis, com amplo mercado internacional, capaz de gerar vultosas divisas para muitos dos países industrializados. Nessa conjuntura e apesar dos sentimentos de paz que nos animam, não pode o Governo descurar da segurança nacional. A posição geográfica que ocupamos, a vastidão de nosso território, grande parte do qual tem uma ocupação rarefeita, as extensas fronteiras terrestres e marítimas, as regiões altamente desenvolvidas, o imenso potencial de riqueza ainda por explorar, e, principalmente, a população superior a 100 milhões de habitantes, em busca de um desenvolvimento integrado, necessitam que, não somente lhes seja garantida adequada defesa contra ações agressivas que possam vir do exterior, mas também a preservação contra ações subversivas que visam, na sua generalidade, à convulsão social (GONÇALVES, 1989, p. 42). No período do paradigma desenvolvimentista, conforme a Tabela 4, o Brasil apresentava amplo e diversificado mercado externo para seus produtos de defesa. 95 Tabela 4 - Destino das exportações Brasileiras de Armas Convencionais 1974-1989 Destino Qtd Países América do Sul 11 Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela Oriente Médio 9 Arábia Saudita, Catar, Egito, Emirados Árabes Unidos, Irã, Iraque, Jordânia, Líbia e Tunísia. Ásia 1 Coréia do Sul África 4 Angola, Gabão, Togo e Zimbábue Europa 3 Chipre, França e Reino Unido América Central 1 Honduras Países Fonte: SIPRI, 2011 A pauta brasileira de exportações, no que se refere aos sistemas de armas, no período do paradigma desenvolvimentista, era diversificada, sendo do total dessas exportações, veículos blindados (58%), aeronaves (36%), peças de artilharia (3%), radares e sensores (3%) e navios (1%). (SIPRI, 2011). Ressalta-se, neste período, a Guerra Irã-Iraque (1980-1988) que contribuiu para as exportações de produtos de defesa brasileiros para o Oriente Médio, tendo como contrapartida o petróleo. Com o final da guerra, aquele mercado reduziu suas importações, afetando a indústria de defesa brasileira, em especial a de veículos. O ambiente geral para as exportações de produtos de defesa durante o período em que vigorou o paradigma desenvolvimentista, conforme resultado da pesquisa de campo apresentada no Quadro 3, apresentava-se favorável com a presença de condições político-legais (POL), econômicas (ECO) e científico-tecnológicas (C&T), estando ausente a condição estratégico-militar. 96 Quadro 3 - Sistematização das observações da pesquisa de campo (paradigma desenvolvimentista) AMBIENTE GERAL DAS EXPORTAÇÕES DE PRODE - PARADIGMA DESENVOLVIMENTISTA (1974-1989) Condições Fatores associados 1.1. Política exterior realista 1.2. Defesa Nacional 1. POL (autônoma) 1.3. Reservas a acordos assimétricos Presença/ ausência da condição políticolegal (POL) 2.1. Apoio estatal 2.2. Participação da iniciativa 2. ECO privada 2.3. Política de exportação específica para o setor Presença/ ausência da condição econômica (ECO) 3.1. Incentivo à inovação no setor 3.2. Parcerias com outros 3. C&T países 3.3. Integração na P&D entre as diversas instituições Presença/ ausência da condição científicotecnológica (C&T) AMBIENTE GERAL DAS EXPORTAÇÕES DE PRODE - PARADIGMA DESENVOLVIMENTISTA (1974-1989) 4.1. Diretriz para a interoperabilidade oriunda do MD 4. MIL 4.2. Aquisição nacional planejada e previsível 4.3. Percepção de ameaças pela sociedade (cultura) Presença/ ausência da condição estratégico-militar (MIL) Fonte: Pesquisa realizada pelo autor 97 RESULTADO DA PESQUISA DE CAMPO Instituições do Estado 0 1 Meio Acadêmico 0 1 1 1 Empresas 1 1 0 1(um) 1 1 1 1 1 0 0 1 0 1 (um) 1 0 1 1 1 0 1 0 0 1(um) RESULTADO DA PESQUISA DE CAMPO 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0(zero) O paradigma do Estado Liberal, conforme Cervo (2008), revela uma invenção latino-americana dos anos 1990. A experiência desse paradigma envolve três parâmetros de conduta: Estado subserviente, que se submete às coerções do centro hegemônico do capitalismo (Consenso de Washington); Estado destrutivo, que dissolve e aliena o núcleo central robusto da economia nacional e transfere renda para o exterior (desnacionalização da produção e corte de subsídios estatais à indústria estratégica); e Estado regressivo que reserva para a nação as funções da “infância social”, expressão utilizada por Cervo (2008) para se referir ao subdesenvolvimento e à situação de exportador de produtos primários. Durante os governos Collor de Mello (1990-1992), Itamar Franco (1992-994) e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), o Brasil procurou adotar uma política de aderir aos regimes de desarmamento (pacifismo instrumental) e, simultaneamente, mostrar-se como um país responsável, autocontendo suas exportações de armamentos. No decorrer do paradigma liberal, conforme a Tabela 5, o Brasil reduziu significativamente sua participação no mercado externo de produtos de defesa, comparando-se com os dados da Tabela 4. Tabela 5 - Destino das exportações Brasileiras de Armas Convencionais (1990-2002) Destino América do Sul Oriente Médio Ásia África Europa Qtd Países 3 4 1 3 2 Países Bolívia, Colômbia e Peru Arábia Saudita, Catar, Egito e Irã Malásia Angola, Cabo Verde e Nigéria França e Reino Unido Fonte: SIPRI, 2011 A pauta brasileira de exportações, em termos de sistemas de armas, no período do paradigma liberal, tornou-se menos diversificada, e as vendas externas de aeronaves e peças de artilharia superaram as de veículos blindados. As exportações, no período, foram de aeronaves (67%), peças de artilharia (19%), veículos blindados (11%) e radares e sensores (3%). (SIPRI, 2011). O ambiente geral para as exportações de produtos de defesa durante o paradigma liberal, de acordo com o resultado da pesquisa de campo 98 apresentada no Quadro 4, mostrava-se desfavorável com a ausência das quatro condições estudadas: político-legais, econômicas, científicotecnológicas e estratégico-militares. Quadro 4 - Sistematização das observações da pesquisa de campo (paradigma liberal) AMBIENTE GERAL DAS EXPORTAÇÕES DE PRODE - PARADIGMA LIBERAL (1990-2002) Condições Fatores associados 1.1. Política exterior realista 1.2. Defesa Nacional (autônoma) 1. POL 1.3. Reservas a acordos assimétricos Presença/ ausência da condição políticolegal (POL) 2.1. Apoio estatal 2.2. Participação da iniciativa 2. ECO privada 2.3. Política de exportação específica para o setor Presença/ ausência da condição econômica (ECO) 3.1. Incentivo à inovação no setor 3.2. Parcerias com outros países 3. C&T 3.3. Integração na P&D entre as diversas instituições Presença/ ausência da condição científicotecnológica (C&T) AMBIENTE GERAL DAS EXPORTAÇÕES DE PRODE - PARADIGMA LIBERAL (1990-2002) 4.1. Diretriz para a interoperabilidade oriunda do MD 4.2. Aquisição nacional 4. MIL planejada e previsível 4.3. Percepção de ameaças pela sociedade (cultura) Presença/ ausência da condição estratégicomilitar (MIL) Fonte: Pesquisa realizada pelo autor 99 RESULTADO DA PESQUISA DE CAMPO Institui- Meio Empreções do Acadêsas Estado mico 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 (zero) 0 1 0 1 0 1 0 0 0 0 (zero) 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 (zero) RESULTADO DA PESQUISA DE CAMPO 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 (zero) Por fim, o paradigma do Estado logístico (2003-2011), segundo Cervo (2008), fortalece o núcleo nacional. Para isso, transfere à sociedade responsabilidades empreendedoras e, ao mesmo tempo, apoia os investidores para que possam operar no exterior. Nesse paradigma, são recuperadas algumas estratégias de desenvolvimento: a) reforço à capacidade empresarial do país; b) a aplicação da ciência e da tecnologia assimiladas; c) a abertura dos mercados dos países desenvolvidos em contrapartida ao nacional; d) mecanismos de proteção diante de capitais especulativos; e e) uma política de defesa nacional. De acordo com a Tabela 6, verifica-se que o Brasil ainda não recuperou o mercado externo para seus produtos de defesa quando comparado ao período do paradigma desenvolvimentista. Tabela 6 - Destino das exportações Brasileiras de Armas Convencionais (2003-2010) Destino Qtd Países América do Sul 7 Ásia 4 África Europa América Central América do Norte 1 1 1 1 Países Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Uruguai Índia, Indonésia, Malásia e Paquistão Namíbia Grécia República Dominicana México Fonte: SIPRI, 2011 A pauta brasileira de exportações de sistemas de armas, no decorrer do paradigma desenvolvimentista, revela uma diversificação muito pequena quando comparada ao mesmo período. As exportações, na época, foram de aeronaves (86%), navios (4%), mísseis (4%), peças de artilharia (4%) e radares e sensores (1%) (SIPRI, 2011). O ambiente geral para as exportações de produtos de defesa durante o paradigma logístico, conforme resultado da pesquisa de campo apresentada no Quadro 5, manifestava-se com a presença das condições político-legais e científico-tecnológicas e com a ausência das condições econômicas e estratégico-militares. 100 Quadro 5 - Sistematização das observações da pesquisa de campo (paradigma logístico) AMBIENTE GERAL DAS EXPORTAÇÕES DE PRODE - O PARADIGMA LOGÍSTICO (2003-2011) Condições Fatores associados 1.1. Política exterior realista 1.2. Defesa Nacional 1. POL (autônoma) 1.3 Reservas a acordos assimétricos Presença/ ausência da condição políticolegal (POL) 2.1. Apoio estatal 2.2. Participação da iniciativa 2. ECO privada 2.3. Política de exportação específica para o setor Presença/ ausência da condição econômica (ECO) 3.1. Incentivo à inovação no setor 3. C&T 3.2. Parcerias com outros países 3.3. Integração na P&D entre as diversas instituições Presença/ ausência da condição científicotecnológica (C&T) 4.1. Diretriz para a interoperabilidade oriunda do MD 4.2. Aquisição nacional 4. MIL planejada e previsível 4.3. Percepção de ameaças pela sociedade (cultura) Presença/ ausência da condição estratégico-militar (MIL) Fonte: Pesquisa realizada pelo autor 101 RESULTADO DA PESQUISA DE CAMPO Instituições do Estado 0 1 Meio Acadêmico 0 1 1 1 Empresas 0 1 0 1 (um) 0 1 0 0 1 0 0 1 1 0 (zero) 1 0 1 1 1 1 0 0 1 1 (um) 1 0 0 0 0 0 0 0 1 0 (zero) O estudo dos três paradigmas, por meio das informações da pesquisa de campo, aliada às pesquisas documental e bibliográfica, mostrou que a condição político-legal (POL), esteve “presente” no período de 1974 a 1989 (paradigma desenvolvimentista) e 2003 a 2011 (paradigma logístico). E, por outro lado, esteve “ausente” no período de 1990 a 2002 (paradigma liberal), conforme pode ser constatado no Quadro 6. Quadro 6 - Quadro resumo da presença-ausência dos fatores Paradigmas PEB/ 19741989 PEB/ 19902002 PEB/ 20022011 1.1. Política exterior realista 0 0 0 1.2. Defesa nacional autônoma 1 0 1 1.3. Reserva a acordos assimétricos 1 0 1 2.1. Apoio estatal ao setor 1 0 0 2.2. Participação da iniciativa privada 1 1 0 2.3. Política de exportação específica 0 0 1 3.1. Incentivo à inovação no setor 1 0 1 3.2. Parcerias com outros países 1 0 1 3.3. Integração das instituições de P&D 0 0 0 4.1. Diretriz pró -interoperabilidade 0 0 0 4.2. Aquisição planejada e previsível 0 0 0 4.3. Percepção nacional de ameaças 0 0 0 Condições e fatores 1. POL 2. ECO 3. C&T 4. MIL Fonte: Pesquisa realizada pelo autor 102 As informações sistematizadas no Quadro 6 possibilitam ainda identificar que a política externa brasileira, no período estudado (1974 a 2011), manteve um viés essencialmente racionalista6, não evidenciando, em nenhum dos paradigmas, inspiração realista7 (Fator 1). Além disso, o período de 1990 a 2002 apresentou, à luz desta pesquisa, condição político-legal amplamente desfavorável ao ambiente geral das exportações de produtos de defesa nacionais. Nenhum dos três fatores utilizados para caracterizar a condição foi observado. Com relação à condição econômica do ambiente geral das exportações de produtos de defesa, verifica-se que esteve “presente” no período do paradigma desenvolvimentista. Ainda que não existisse uma política de exportação deliberada (Fator 3), o Brasil, em face da necessidade de reduzir as remessas de divisas para o exterior com a importação de petróleo, estimulou as exportações de produtos de defesa para o Oriente Médio, região que era a principal fornecedora de petróleo. A condição econômica, por outro lado, esteve “ausente” nos períodos dos paradigmas liberal e logístico. Com efeito, o fator “política de exportação específica para o setor” somente aparece efetivado recentemente, em virtude da Estratégia Nacional de Defesa e seus desdobramentos como a MP nº 544, editada pela Presidência da República em 29 de setembro de 2011, criando 6 Wight (1991) identificou três modelos clássicos de comportamento dos estados: o realismo, o racionalismo e o revolucionismo. Estes termos denotam as ideias contrastantes do autointeresse nacional e da diplomacia prudente (Maquiavel), direito internacional e civilização (Grócio) e comunidade política global (Kant). São modelos de pensamento categoricamente diferentes, com sua própria lógica e linguagem. Por vezes, são nomeados como tradições maquiavélica, grociana e kantiana. O racionalismo, conforme Wight (1991) é a concepção das relações internacionais como uma sociedade definida pelo diálogo entre Estados e pela regra da lei. A sociedade internacional é assim uma sociedade civil de membros estatais que tem interesses legítimos que podem possibilitar conflitos, mas que estão sujeitos a um corpo comum de direito internacional que procura regular esses conflitos. A teoria internacional é ainda uma teoria da sobrevivência, mas os meios de sobrevivência são tanto sociais quanto individuais. 7 O realismo, segundo Wight (1991), concebe as relações internacionais como definidas predominantemente, se não exclusivamente, pela razão de Estado (raison d’état). O direito político é o bem do Estado e a soberania é a palavra final nessas questões. O sistema internacional é a arena na qual os homens de Estado perseguem seus interesses e periodicamente chegam a conflitos que podem ameaçar a sobrevivência de alguns. O problema fundamental das relações internacionais é prevenir tais conflitos, por meio da diplomacia, da defesa nacional, de alianças militares, do equilíbrio de poder etc. A imagem realista é a de Estados soberanos livres, competitivos e, algumas vezes, egoístas e combativos: o individualismo internacional. 103 o Regime Especial Tributário para a Indústria de Defesa (RETID) que beneficia as Empresas Estratégicas de Defesa (EED)8. A MP nº 544/2011 foi convertida na Lei nº 12.598/2012, em 22 de março de 2012. As consequências desta lei para as exportações de produtos de defesa, pois, não se fizeram presentes no período abrangido por esta pesquisa (1974-2011). Os resultados obtidos na pesquisa de campo para caracterizar a condição científico-tecnológica do ambiente geral das exportações mostram que os fatores, incentivo estatal à inovação no setor de defesa e parcerias internacionais, fizeram-se “presentes” nos paradigmas desenvolvimentista e logístico, o que, à luz de Ragin (1987), significa considerar que a condição científico-tecnológica também esteve “presente” nestes períodos. Os resultados obtidos (Quadros 3, 4, 5 e 6) também revelam que, na história recente do Brasil, não houve integração entre as instituições de pesquisa e de desenvolvimento ligadas ao setor de defesa. Quanto à condição estratégico-militar do ambiente geral das exportações, a pesquisa demonstrou que, em nenhum dos períodos recentes da história nacional, ela se fez “presente”. Ademais, o Brasil, até o momento, não completou a estruturação de uma instituição federal ligada ao Ministério da Defesa que tenha participação decisiva na definição dos novos produtos a serem desenvolvidos pela indústria de defesa nacional. Esta instituição seria responsável, como ocorre nos países que mais exportam, por privilegiar a interoperabilidade entre as forças singulares. 8 Empresa Estratégica de Defesa – EED, de acordo com a Lei nº 12.598, de 22 de março de 2012, é toda pessoa jurídica credenciada pelo Ministério da Defesa mediante o atendimento cumulativo das seguintes condições: a) ter como finalidade, em seu objeto social, a realização ou condução de atividades de pesquisa, projeto, desenvolvimento, industrialização, prestação dos serviços referidos no art. 10, produção, reparo, conservação, revisão, conversão, modernização ou manutenção de PED no País, incluídas a venda e a revenda somente quando integradas às atividades industriais supracitadas; b) ter no País a sede, a sua administração e o estabelecimento industrial, equiparado a industrial ou prestador de serviço; c) dispor, no País, de comprovado conhecimento científico ou tecnológico próprio ou complementado por acordos de parceria com Instituição Científica e Tecnológica para realização de atividades conjuntas de pesquisa científica e tecnológica e desenvolvimento de tecnologia, produto ou processo, relacionado à atividade desenvolvida, observado o disposto no inciso X do caput; d) assegurar, em seus atos constitutivos ou nos atos de seu controlador direto ou indireto, que o conjunto de sócios ou acionistas e grupos de sócios ou acionistas estrangeiros não possam exercer em cada assembleia geral número de votos superior a 2/3 (dois terços) do total de votos que puderem ser exercidos pelos acionistas brasileiros presentes; e e) assegurar a continuidade produtiva no País. 104 Outro fator, que não é observado no Brasil, é a política de aquisição planejada e permanente de produtos de defesa pelas Forças Armadas, o que garante, em países como a Alemanha, a previsibilidade necessária à indústria nacional. E, por fim, quanto ao fator percepção de possíveis ameaças, verificou-se que, mesmo durante o período da Guerra Fria, quando a possibilidade de um conflito era maior, a sociedade brasileira não demonstrou compartilhar essa percepção. A defesa nacional não se constituiu, em nenhum dos períodos, parte das preocupações da sociedade brasileira. A caracterização do ambiente geral para as exportações de produtos de defesa no Brasil, durante cada um dos paradigmas estudados, em síntese, pode se valer da “tabela verdade” (Tabela 7) preconizada por Ragin (1987). Tabela 7 - Estudo comparativo das condições para a exportação de PRODE nos três paradigmas da política externa brasileira (PEB) Condições Políticolegais (POL) Econômicas (ECO) Científicotecnológicas (C&T) EstratégicoMilitares (MIL) Ambiente para as exportações (Amb) PEB/ 1974-1989 1 1 1 0 1 PEB/ 1990-2002 0 0 0 0 0 PEB/ 2003-2011 1 0 1 0 0 Casos Fonte: o autor, adaptado de Liñan (2008) À luz do volume de exportações e da participação brasileira no mercado internacional de armas (Tabela 2), determinou-se que o ambiente geral brasileiro para as exportações de produtos de defesa somente foi favorável durante o paradigma desenvolvimentista. Com isso, pode-se estabelecer combinações entre as condições e se organizar uma função para cada um dos paradigmas. 105 Para o paradigma desenvolvimentista, a equação Amb74/89=POL*ECO*C&T*mil, a ausência da condição estratégico-militar (mil) permite simplificá-la, resultando Amb74/89=POL*ECO*C&T. Para o paradigma liberal, a equação Amb90/02=pol.*eco*c&t*mil revela a ausência de todas as condições, o que se mostrou desfavorável às exportações. E, para o paradigma logístico, a equação Amb03/11=POL*eco*C&T*mil, em que a ausência das condições econômica (eco) e estratégico-militar (mil) foi decisiva para caracterizar um ambiente desfavorável, permitindo simplificar a equação para Amb03/11=POL*C&T. Da lógica booleana, se a combinação das condições políticas e econômicas (Amb03/11=POL*C&T) não foi suficiente para tornar o ambiente favorável, então, na equação Amb74/89=POL*ECO*C&T, o diferencial foi a condição econômica (ECO). No período de 1974 a 1989, a condição necessária e suficiente para se estabelecer, no Brasil, um ambiente geral favorável às exportações de produtos de defesa, foi a econômica. Esse resultado permite simplificar a equação para Amb74/89=ECO. 4 DISCUSSÃO A configuração-controle que retrata o ambiente geral para as exportações de produtos de defesa nos cinco países que mais exportam, conforme o item 3.2, foi caracterizada por duas equações, uma ideal (Amb=POL*ECO*C&T*MIL), observada nos Estados Unidos, Rússia, França e Reino Unido. A outra equação mostra a combinação necessária e suficiente de condições (Amb=C&T*MIL), observada no caso da Alemanha, onde o Estado coordena as iniciativas de uma base industrial consolidada, com base em firmas privadas, que desenvolvem produtos de defesa altamente competitivos. A equação ideal corrobora com a assertiva de Guimarães (2006, p. 331) de que os programas militares nos países altamente desenvolvidos são subsidiados pelos Estados, financiando megaempresas e desenvolvendo novas tecnologias com aplicação civil. O Brasil, de participação restrita neste mercado (Tabela 2), tem procurado revitalizar sua indústria de defesa. O termo revitalizar remete ao período de 1974 a 1989, quando a indústria de defesa nacional apresentava diversificação de mercados (Tabela 4) e os produtos ofertados abrangiam desde armas e munições de pequeno porte até sistemas de 106 armas, como veículos blindados, aeronaves, radares e sensores, navios e peças de artilharia. A hipótese proposta de que “as condições científico-tecnológicas (C&T) e estratégico-militares (MIL) constituem-se em reflexos da política externa que, ao se fazerem presentes, são suficientes para o êxito das exportações de produtos de defesa nacionais” não se confirmou no caso brasileiro, em nenhum dos períodos comparados. Mesmo durante o paradigma desenvolvimentista, quando o volume de exportações de produtos de defesa brasileiros teve significativo aumento, a hipótese não foi confirmada. Conforme observado no item 3.2, durante o paradigma desenvolvimentista, a combinação de condições necessárias e suficientes para gerar um ambiente favorável às exportações de produtos de defesa brasileiros se resumiu à condição econômica (Amb74/89=ECO), diferentemente do que é visto nos países que mais exportam (Amb=POL*ECO*C&T*MIL + C&T*MIL). Como justificar que esta configuração (Amb74/89=ECO) tenha proporcionado ao Brasil condições de ingressar no grupo de exportadores de sistemas de armas? Com efeito, não havia na política exterior brasileira, apesar de pragmática, a vontade de influenciar o cenário internacional, seu objetivo era o equilíbrio da balança comercial comprometido pelas importações de petróleo. O Brasil, assim como a Alemanha, não utilizou, no período estudado, a exportação de armas como um instrumento de política externa. A indústria de defesa brasileira, durante o paradigma desenvolvimentista, subordinava-se à estratégia da busca pelo desenvolvimento e pela redução da dependência tecnológica externa. A configuração (Amb74/89=ECO) não se sustentou, pois assim que a intervenção estatal, característica do desenvolvimentismo, foi contestada pelo movimento liberal, particularmente no final da década de 1980, a condição econômica (apoio estatal, participação da iniciativa privada e política de exportação) passou a estar ausente do ambiente geral, tornando insustentável o setor que era altamente dependente de suas exportações para um mercado mundial bastante disputado. O comércio internacional de produtos de defesa prossegue como um dos segmentos mais lucrativos do comércio mundial, por esse motivo, aos principais países exportadores de armas não interessa e incomoda a 107 concorrência da indústria de armamentos de produtores como o Brasil. (GUIMARÃES, 2006). Em tempos recentes, mesmo com a tentativa de recuperação, o Brasil exporta para pouco mais da metade do número de países para os quais exportava na década 1980 e a sua pauta de exportações é predominantemente de aeronaves (86% das exportações de sistemas de armas), setor em que o país conseguiu manter a competitividade, graças, em grande medida, a tecnologias estrangeiras. A propósito, a pesquisa indica que o Brasil apresenta fragilidade na condição científico-tecnológica (C&T), principalmente porque não alcançou a integração dos diversos centros nacionais de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias e produtos. O país depende de parceiras e acordos com outros Estados para poder usufruir de tecnologias de ponta estrangeiras. O país é, pois, dependente de novas tecnologias. Além disso, a completa ausência da condição estratégico-militar (mil) tem sido decisiva para as dificuldades enfrentadas pelo setor. O Brasil ainda não prioriza a produção de meios que possam ser empregados de forma conjunta pelas três forças singulares (interoperabilidade), o que torna seus produtos menos competitivos. Também, não definiu uma política de aquisições permanentes e planejadas na indústria de defesa local, conforme fazem os países que mais exportam, o que deixa as empresas brasileiras sem a necessária previsibilidade. E, ainda, a sociedade nacional não compartilha a percepção de possíveis ameaças externas e internas, o que restringe sobremaneira o projeto estatal de revitalização da indústria de defesa. Para manter a capacidade doméstica de produção de armas, os países devem, de acordo com Smith, Humm e Fontanel (1989), introduzir várias barreiras formais e informais para proteger a indústria de armas nacional e pagar acima do preço mundial médio pelas armas e equipamentos nacionais que eles compram. No Brasil, a ausência de cultura de defesa deslegitima as ações do Estado para fomentar as indústrias do setor. É compreensível que o argumento principal para justificar os investimentos públicos na indústria de defesa brasileira continua a ser a possibilidade do desenvolvimento de tecnologias de uso dual que, com efeito, deve ser uma consequência e não um fim em si mesmo, sob pena de o Brasil desenvolver produtos que não atendam suas reais necessidades de defesa. 108 O debate acerca do redimensionamento da base industrial de defesa implica, para Deutch (2001, p. 146), a definição das ameaças, bem como da natureza e da organização das forças necessárias para se contrapor a elas, garantindo a defesa nacional. Critérios financeiros e de mercado, segundo o autor, não podem ser utilizados para definir a base industrial de defesa mais apropriada. É a vontade política, pois, que determina a importância da indústria de defesa nacional. O viés racionalista adotado pela política externa brasileira é, ao mesmo tempo, uma consequência da falta de recursos de poder do Estado para demandar por seus interesses no cenário internacional e, também, um inibidor das iniciativas para a produção nacional de meios militares. Afinal, para os racionalistas, se os conflitos podem ser resolvidos por meio do diálogo e da negociação, por que instrumentalizar o poder militar dos Estados, correndo-se o risco de que as crises escalem para conflitos armados? Este dilema é resolvido, em princípio, com a posse de meios militares com o objetivo de alcançar a dissuasão. Esta é a justificativa para os investimentos recentes do governo brasileiro na indústria de defesa. Contudo, a produção de meios de defesa traz elevados custos. A amortização destes custos só é possível por meio das exportações, as quais exigem competitividade e promoção comercial por parte do governo. Afinal, são os Estados os principais clientes neste mercado. Para Dagnino (2010, p. 65), o Brasil, exportador de produtos de defesa com tecnologias intermediárias, dificilmente tem condições de ampliar o mercado para suas exportações. O melhor a fazer, segundo ele, é aceitar a hierarquização do poder mundial. Os países periféricos que se rebelam contra o estado de coisas são penalizados. Com relação aos países produtores de armas, não há muitas opções senão acatar as preferências e exigências dos Estados Unidos, país que detém as tecnologias mais avançadas do setor, além de influência política e econômica, direta e indireta, no comércio e produção de armas. Entre o conformismo sugerido por Dagnino (2010) e a assertividade exposta na Política de Defesa Nacional (2005), o Estado brasileiro elegeu a segunda, admitindo que o Brasil tenha um papel maior a desempenhar no mundo, muito embora esse papel ainda esteja indefinido e seja pouco debatido, em face dos grandes problemas sociais e econômicos que ainda afetam o país. 109 5 CONCLUSÃO O artigo mostrou que as condições existentes no ambiente geral de exportações de produtos de defesa nos países que mais exportam nesse setor são diferentes daquelas vigentes no Brasil, potência média de limitados recursos de poder. A política externa dos países que mais exportam retrata a busca pela capacidade de influenciar os destinos da comunidade internacional. As condições científico-tecnológicas e estratégico-militares, vetores essenciais de desenvolvimento e influência desses países, são reflexos de uma política externa decidida, com objetivos nacionais de médio e longo prazo perfeitamente delineados. Ademais, na maioria desses países predomina uma visão realista das relações entre os Estados, fundamentada na percepção conjunta de ameaças pela sociedade, o que justifica e legitima o esforço governamental em manter seu parque industrial de defesa. A análise qualitativo-comparativa permitiu concluir que, em nenhum dos períodos estudados, quer seja no desenvolvimentista (19741989), no liberal (1990-2002) ou no logístico (2003-2011), a condição estratégico-militar esteve presente no ambiente geral das exportações de produtos de defesa no Brasil. Ressalta-se que esta condição necessária é comum aos países que mais exportam no setor. No período do paradigma desenvolvimentista, o ambiente brasileiro era favorável a essas exportações. Os sistemas de armas nacionais, de tecnologia intermediária, encontraram mercado nos países árabes, em especial no Iraque. O Brasil precisava equilibrar a balança comercial que tinha na importação de petróleo uma das grandes responsáveis pelo deficit. A troca entre produtos de defesa brasileiros e o petróleo do Oriente Médio contribuiu sobremaneira para isso. A crise da dívida externa na década de 1980 e o fim do conflito Irã-Iraque, entretanto, contribuíram para que a condição econômica que favorecia o ambiente deixasse de existir. O setor enfrentou, com isso, uma crise sem precedentes durante o período seguinte, em que esteve vigente o paradigma liberal. A Estratégia Nacional de Defesa (2008), aprovada já no paradigma do Estado logístico, indica a necessidade de revitalização da indústria de defesa brasileira. Algumas iniciativas para incentivar o setor estão sendo 110 tomadas, a exemplo do regime especial tributário para a indústria de defesa. No entanto, alguns fatores e condições fundamentais observados nos países que mais exportam se encontram ausentes no Brasil. Ainda não se verifica o desenvolvimento de produtos de defesa nacionais com ênfase na interoperabilidade entre as três forças singulares e em conformidade com as reais necessidades da defesa nacional. Também, não há política de aquisições governamentais de médio e longo prazo que ofereça previsibilidade às indústrias brasileiras. E, o mais importante, a sociedade brasileira demonstra pouco interesse no debate sobre a grande estratégia do país e os desafios de longo prazo, estabelecendo pouca prioridade para o tema da defesa nacional. Com efeito, se por um lado, o discurso brasileiro afirma que o país quer e está em condições de assumir maiores responsabilidades no concerto das nações; por outro, as condições vigentes no ambiente geral das exportações de produtos de defesa refletem uma política externa de potência média, de tradição pacifista, com perfil baixo e aversão a assumir riscos. A Alemanha, considerada hoje uma “potência civil”, não abre mão de proporcionar as condições necessárias e suficientes para que a sua indústria de defesa seja viável, pois o setor é considerado estratégico. Não é razoável e nem racional, pois, que o Brasil, ator com interesses globais, ignore a possibilidade de que outros recursos de poder, além da negociação, possam vir a ser utilizados para proteger seus mais legítimos objetivos. Nesse caso hipotético, mas não improvável, convém dispor de capacitação tecnológica e industrial que permitam ao país desenvolver os produtos de defesa que necessita, sem depender da importação de componentes e tecnologias consideradas sensíveis. É necessário que as diferentes instituições envolvidas com o desenvolvimento do setor compreendam a dimensão política do tema. A Secretaria de Produtos de Defesa, recém-criada no âmbito do Ministério da Defesa, a exemplo do que ocorre nos países que mais exportam (PRODE), tem papel relevante na orientação dos esforços para que condições favoráveis ao ambiente geral das exportações do setor sejam criadas e o Brasil possa ter uma indústria competitiva e que atenda às reais necessidades de defesa do país. 111 6 REFERÊNCIAS BLANK, Stephen J. Rosoboroneksport: arms sales and the structure of Russian defense industry, Carlisle: Strategic Studies Institute, U.S. Army War College, Carlisle, 2007. Disponível em: <http://www. strategicstudiesinstitute.army.mil/pdffiles/ pub749. pdf>. Acesso em: 10 jun. 2013. BRZOSKA, Michael. Trends in Global Military and Civilian Research and development (R&D) and their Changing Interface. cidade: editora, 2007. Disponível em: <www.ifsh.de/pdf/aktuelles/india_brzoska.pdf>. Acesso em: 10 maio 2013. CERVO, Amado Luiz. Inserção internacional: a formação dos conceitos brasileiros. 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O objetivo deste trabalho é demonstrar a potencial utilização da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais – INDE no desenvolvimento, na segurança e na defesa nacionais. Inicialmente o trabalho conceitua as informações geoespaciais, menciona as iniciativas de Infraestruturas de Dados Espaciais no mundo e, em seguida, descreve a INDE, seus participantes e o seu plano de ação no período 2010-2022. A partir daí, o trabalho provê a visão atual da INDE, bem como enumera iniciativas voltadas ao desenvolvimento, à segurança e à defesa nacionais, candidatas em potencial à INDE. No aspecto do desenvolvimento nacional, a implantação gradativa da INDE terá um peso cada vez maior no atendimento às demandas da gestão do conhecimento, da gestão territorial, da gestão ambiental, da gestão de programas sociais e da gestão dos investimentos, da mitigação de riscos e impactos de fenômenos naturais e a outros tipos de demandas. No âmbito da segurança e defesa nacionais, os atuais projetos empreendidos pela Marinha, pelo Exército e pela Força Aérea como o Projeto Cartografia da Amazônia e o Sistema de Proteção da Amazônia – SIPAM, bem como os futuros projetos do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – SISFRON e do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul – SISGAAz são candidatos potenciais à INDE, seja por envolverem informações geoespaciais na forma de imagens de satélite, seja por envolverem uma diversidade de órgãos do Governo brasileiro. Palavras-chave: Informações geoespaciais. Infraestruturas de Dados Espaciais. Segurança. Desenvolvimento. Defesa. __________________ * Tecnologista em Informações Geográficas e Estatísticas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. 115 Abstract The present study deals with the production and use of geospatial information in Brazil oriented to development, security and defense. The aim of this study is to demonstrate the potential use of the National Spatial Data Infrastructure – INDE in national development, security and defense. This study initially conceptualizes geospatial information, mentions the Spatial Data Infrastructures initiatives in the world and then describes the INDE, its participants and its action plan in the 2010-2022 timeframe. Lastly, this study provides the vision of the INDE today, as well as initiatives oriented to national development, security and defense, potential candidates for the INDE. In terms of national development, the gradual implementation of the INDE will have an impact in addressing the knowledge management, territorial management, environmental management, social policy management and investment management, as well as in addressing the mitigation of risks of natural disasters and other demands. In terms of national security and defense, current projects in the Brazilian Navy, Army and Air Force like the Cartography of the Amazon and the Amazon Protection System – SIPAM, as well as future projects like the Frontier Monitoring Integrated System – SISFRON and the Blue Amazon Management System – SISGAAz are potential candidates for the INDE, by involving geospatial information in the form of satellite images or by involving several institutions of the Brazilian Government. Keywords: Geospatial Information. Spatial Data Infrastructures. Development. Security. Defense. 1 INTRODUÇÃO A maior parte das informações de que necessitamos está ou pode estar de algum modo associada a uma localização no espaço e ao seu contexto geográfico. Estima-se que mais de 70% de todas as informações globais produzidas ou mantidas por órgãos públicos relacionem-se, direta ou indiretamente, com o contexto geográfico. Grandes volumes de dados e informações geoespaciais são produzidos e mantidos com recursos públicos por diversos atores 116 do cenário nacional. Contudo, é inegável que muito pouco desse investimento tem se revertido em maior facilidade de acesso aos dados para os seus usuários, notadamente no setor público. Essa situação não se sustenta mais nos tempos atuais. A era da informação impõe um novo modelo para o compartilhamento e a disponibilização da produção de informações geoespaciais. A produção e a manutenção de dados e informações geoespaciais são atividades de prazos prolongados e investimentos elevados. Por isso, é interesse do Estado que os investimentos públicos nessa área sejam racionalizados, de modo a maximizar o seu retorno para a sociedade. Usuários de diferentes perfis devem ter seu acesso facilitado aos dados e às informações de que necessitem. Mais que um bem público, a informação geoespacial é cada vez mais tratada como um serviço a que todos devem ter facilidade de acesso, dos gestores do setor governamental ao cidadão comum. O objetivo deste trabalho é demonstrar a potencial utilização da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais – INDE no desenvolvimento, na segurança e na defesa nacionais. Inicialmente, o trabalho conceitua as informações geoespaciais, menciona as iniciativas de Infraestruturas de Dados Espaciais no mundo e, em seguida, descreve a INDE, seus participantes e o seu plano de ação no período 2010-2022. A partir daí, o trabalho provê a visão atual da INDE, bem como enumera iniciativas voltadas ao desenvolvimento, à segurança e à defesa nacionais, candidatas potenciais à INDE. 2 CONTEXTO DE PRODUÇÃO E USO DE INFORMAÇÕES GEOESPACIAIS NO BRASIL Informações geoespaciais são informações cartográficas e topográficas que representam o território; dados sobre recursos naturais; imagens da superfície terrestre obtidas por satélites de sensoriamento remoto; dados ambientais; malhas viárias representativas da infraestrutura de transportes; informação sobre localização; descrição de áreas protegidas; dados sobre descrição e representação de imóveis urbanos e rurais; e dados sobre distintos usos dos solos. Da mesma forma, as séries estatísticas sobre aspectos demográficos de uma determinada 117 população, bem como a distribuição dessa população e suas variáveis socioeconômicas são também consideradas, no seu conjunto, como informações geoespaciais ou “geoinformações”. A produção de informações geoespaciais no Brasil é amparada por instrumentos legais que regem a produção de informações cartográficas – gerais, temáticas e especiais: náuticas e aeronáuticas –, no âmbito do chamado Sistema Cartográfico Nacional – SCN. O principal marco legal do SCN é o Decreto-Lei no 243, de 28 de fevereiro de 1967. Cabe também destacar que a Constituição de 1988, em seus artigos 21 e 221, estabelece obrigações da União com as atividades cartográficas. O SCN está sob a gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão que, nesta função, é assessorado pela Comissão Nacional de Cartografia – CONCAR2. Na qualidade de órgão colegiado do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a CONCAR conta com a participação de diversos ministérios, instituições federais, estaduais e associações de empresas, todos envolvidos na produção, na manutenção e no uso de informações geoespaciais. Atualmente no Brasil, a informação geoespacial é, em grande parte, produzida, mantida e adquirida por organizações públicas em todas as esferas do governo. Não obstante esse imenso volume de informações geoespaciais, é difícil para os usuários saber o que está disponível, onde pode ser encontrado, quem são os mantenedores e como pode ser acessado. Além disso, todos esses dados e informações encontram-se em diferentes formatos e padrões, mantidos em sistemas que não conversam entre si e servindo apenas aos propósitos para os quais foram adquiridos ou produzidos. Por isso, em muitas ocasiões faz-se necessário acessar uma ou mais fontes de dados e submetê-los a complexos e demorados processos de integração, para que uma informação de interesse seja obtida de forma confiável. A Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais – INDE procura resolver esses problemas, tornando possível o conhecimento e o acesso às fontes e às informações geoespaciais propriamente ditas, de forma unificada. 1 O artigo 21 da Constituição Federal estabelece em seu inciso XV que “compete à União organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional”; o artigo 22 estabelece em seu inciso XVIII que “compete privativamente à União legislar sobre sistema estatístico, sistema cartográfico e de geologia nacionais”. 2 Mais informações sobre a CONCAR podem ser obtidas em:< www.concar.ibge.gov.br>. 118 A INDE, instituída pelo governo federal através do Decreto no 6.666, de 27 de novembro de 2008, tem como objetivo maior facilitar o acesso aos dados e informações geoespaciais produzidos no âmbito do Estado brasileiro. Do sucesso de sua implantação, prevista para os próximos dez anos, podem ser esperados os seguintes benefícios gerais: • inclusão da sociedade na Era da Informação, com a melhoria do acesso público à geoinformação e às suas aplicações; • busca por maior abertura, transparência e orçamento vinculado a uma política de informações geoespaciais; • ampliação da capacidade de resposta do Governo através da inserção de análises geoespaciais no processo de tomada de decisão; • subsídio à crescente demanda da sociedade por políticas públicas que tenham o território como um dos fatores de análise, feita de forma sistemática e participativa; • foco crescente no desenvolvimento sustentável, ampliando a participação social; • melhoria nas ações resultantes do planejamento de respostas a situações de emergência e de segurança nacional; • reforço à integração Estado versus Federação; e • promoção do uso da geoinformação e das geotecnologias para a tomada de decisão nos processos sociais, ambientais e econômicos. Nos últimos anos, a CONCAR vem realizando esforços significativos, em várias frentes de trabalho, coordenadas por suas várias subcomissões e comitês especializados, para viabilizar a implantação da INDE. É importante destacar que o próprio Decreto no 6.666/2008 foi concebido, em suas linhas mestras, pela CONCAR. 3 AS INFRAESTRUTURAS DE DADOS ESPACIAIS NO MUNDO Tendo em vista as dificuldades no manuseio das informações geoespaciais e a necessidade imperiosa de tratá-las para que possam efetivamente ser incorporadas aos seus processos de negócios, governos do mundo inteiro deram início, em meados dos anos 1990, à construção das chamadas Infraestruturas de Dados Espaciais ou IDEs. Essas iniciativas 119 vêm sendo consideradas uma ação essencial de boa governança em diversos países, tanto pelo Estado quanto pela sociedade. A correta formulação e compreensão dos conceitos associados a termos tais como dados, dados geográficos, informações não geográficas, informações geográficas ou geoespaciais têm um peso cada vez maior no atendimento às demandas da gestão do conhecimento, da gestão territorial e ambiental, da gestão de programas sociais e de investimentos, da mitigação de riscos e impactos de fenômenos naturais e a outros tipos de demandas. Com efeito, a valorização crescente da informação geoespacial é decorrente da ampliação, em nível global, de uma mentalidade mais responsável com o meio ambiente e, também, das demandas sociais e econômicas por uma melhor compreensão da realidade territorial, na medida em que subsidia a execução de políticas de gestão e desenvolvimento sustentável. Como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada em 1992 no Rio de Janeiro – conhecida como Rio-92 –, a Agenda 21 tornou-se um programa de ações com o objetivo de enfrentar os desafios impostos pelo meio ambiente, mediante um desenvolvimento econômico sustentável. Esse programa foi um divisor de águas, na medida em que conscientizou a humanidade sobre a importância do “desenvolvimento sustentável”. Vinte anos depois, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – conhecida como Rio+20 –, comprova que o conceito de “desenvolvimento sustentável” está presente nas políticas de todos os países para o desenvolvimento no século 21. Segundo Maruyama & Akiyama (2003, não paginado, tradução nossa): A Agenda 21 inclui descrições sobre dados e informações aqui e ali que devem guiar os Institutos Nacionais de Cartografia – NMOs. O capítulo 40, intitulado ‘Informações para a Tomada de Decisões’, enfatiza a necessidade de fortalecimento das atividades de coleta de dados e de aperfeiçoar a avaliação e análise dos dados mediante novas tecnologias, tais como sistemas de informações geográficas. Uma das conclusões da Rio-92 foi o reconhecimento de que em muitas áreas – territoriais e de conhecimento – a qualidade dos dados 120 usados não é adequada e que, mesmo onde existem dados, e ainda que apresentem qualidade satisfatória, a sua utilidade é reduzida por restrições de acesso ou por falta de padronização. A superação dessas dificuldades constitui um desafio a ser enfrentado na implantação de uma IDE. O aumento da conscientização sobre o papel central dos acordos de compartilhamento de bases de dados geoespaciais, com vistas à integração, compatibilização (harmonização) e disponibilização daquelas consideradas de uso comum, foi um fator que impulsionou a evolução das IDEs no mundo. Esses acordos, estabelecidos inicialmente entre órgãos públicos, atualmente abrangem todos os atores da sociedade em diversos países. 4 OBJETIVOS E CONCEITOS DA INDE O Decreto no 6.666/2008 apresenta, logo em sua introdução, os objetivos para a construção da INDE. Esses objetivos estão baseados, em essência, por três recomendações gerais norteadoras de políticas de acesso e uso de dados: • maximizar a disponibilidade das informações do setor público para uso e reutilização, enfatizando a transparência e a boa governança; • fomentar o acesso e as condições de reutilização das informações do setor público, ampliando a disseminação, a utilização, a integração e o seu compartilhamento; e • melhorar o acesso às informações e divulgar o seu conteúdo em formato eletrônico e pela Internet. Desse modo, a INDE nasce com o propósito de catalogar, integrar e harmonizar dados e informações geoespaciais existentes nas instituições do Governo brasileiro, produtoras e mantenedoras de informações geoespaciais, de maneira que possam ser facilmente localizados, explorados em suas características e acessados para os mais diversos usos, por qualquer cliente que tenha acesso à Internet, seja ele um usuário a serviço do governo, um profissional da iniciativa privada, um pesquisador ou mesmo o cidadão comum. Para tanto, os dados geoespaciais serão catalogados através dos seus respectivos metadados, cujo registro estará a cargo dos seus correspondentes produtores e 121 mantenedores. Esse registro segue um padrão já definido e homologado pela CONCAR, chamado Perfil de Metadados Geoespaciais do Brasil – Perfil MGB, disponível em seu sítio web. A disponibilização, o compartilhamento e o acesso aos dados e informações geoespaciais, bem como aos serviços relacionados, serão viabilizados, na INDE, através de uma rede de servidores integrados à Internet, que reunirá produtores, gestores e usuários de informações geoespaciais no ciberespaço. Essa rede de servidores se denomina Diretório Brasileiro de Dados Geoespaciais – DBDG. O Portal Brasileiro de Dados Geoespaciais, denominado SIG Brasil, é a porta de acesso dos usuários aos recursos distribuídos do DBDG. O Decreto no 6.666/2008 estabelece que os dados geoespaciais disponibilizados no DBDG por órgãos e entidades governamentais, de qualquer nível de governo, deverão ser acessados através do SIG Brasil, de forma livre e sem ônus por qualquer usuário devidamente identificado. 5 A PARTICIPAÇÃO NA INDE Por definição, poderá participar da INDE toda instituição ou organização pública, privada, acadêmica, não governamental – ONG ou entidade sem fins lucrativos, que esteja de acordo com seus objetivos e princípios e disposta a integrar-se ativamente em seus propósitos. A participação na INDE não é exclusiva nem impede aos participantes de realizar acordos com outras entidades ou participantes nos temas de seu interesse. Os princípios gerais sugeridos para o desenvolvimento da INDE estão abaixo mencionados. • A realização de ações conjuntas de disseminação, celebração de acordos e capacitação, inicialmente entre as entidades públicas e depois agregando, gradativamente, outros atores. • A participação na INDE não afeta a propriedade da informação. Cada um dos participantes respeitará os direitos de propriedade intelectual dos demais. • Os participantes compartilham equitativamente os custos e benefícios, conforme os acordos específicos que vierem a celebrar para o desenvolvimento dos diferentes projetos. • As atividades serão orientadas a satisfazer as demandas dos usuários. 122 • Os participantes trabalharão para adequar seus planos e projetos institucionais às orientações e acordos que se estabelecerem para a INDE, de maneira tal que se assegure a sustentabilidade dessa iniciativa; e • O trabalho da INDE se embasa no reconhecimento das diferentes competências de cada instituição e na observância das obrigações e limitações que a lei lhes impõe. Contudo, é importante observar que algumas prioridades foram estabelecidas no tocante ao tempo de ingresso de diferentes atores na INDE. Este assunto será abordado no Plano de Ação da INDE a seguir. 6 O PLANO DE AÇÃO DA INDE Em dezembro de 2008, a CONCAR constituiu o Comitê para o Planejamento da INDE – CINDE, com a incumbência de elaborar o Plano de Ação para Implantação da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais. Esse documento, desenvolvido em oito capítulos, e submetido, com êxito, à aprovação da CONCAR em maio de 2009, encontra-se disponível ao público no seu sítio web. O capítulo 8, denominado Plano de Ação da INDE, apresenta a consolidação dos capítulos anteriores no tocante a prazos, tarefas, custos e responsabilidades. Nele também se apresenta a estratégia de implantação da INDE. A estratégia de implantação da INDE proposta no Plano de Ação baseia-se num escalonamento de metas de acordo com prioridades e objetivos bem definidos, a serem alcançados ao longo de ciclos de implantação. Estão previstos três ciclos, cujos prazos de duração foram reajustados, resultando no seguinte: Ciclo I – concluído em dezembro de 2011; Ciclo II – de 2012 a 2016; e Ciclo III – de 2017 a 2022. Os dois primeiros ciclos de implantação da INDE têm ênfase na inclusão de atores do setor governamental, especialmente os produtores de informações geoespaciais do setor federal. A prioridade concedida aos órgãos do governo federal nos primeiros ciclos da INDE justifica-se pelo fato de o Decreto no 6.666/2008 determinar a obrigatoriedade do compartilhamento e divulgação dos dados geoespaciais daqueles órgãos. No entanto, as organizações ligadas a outros níveis de governo poderão aderir ao processo de implantação da INDE em qualquer estágio, desde que estejam preparadas para tanto em sua capacidade de publicação e 123 manutenção de conteúdo e serviços com recursos próprios. O modelo organizacional e de gestão da INDE, tal como proposto no Plano de Ação, apresenta a seguinte composição: • Conselho Superior – à luz do Decreto no 6.666/2008, a CONCAR deverá exercer a função de Conselho Superior da INDE, cumprindo um papel normativo e diretivo, cabendo-lhe estabelecer as normas, os padrões e as diretrizes que viabilizem a implantação e a evolução da INDE; • Conselho Consultivo – como órgão colegiado de assessoramento do ministro de Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão, a CONCAR também exercerá a função de Conselho Consultivo da INDE. Para viabilizar o cumprimento desse papel que, no modelo aqui apresentado, compreende as funções de planejamento, gestão de implantação e manutenção da INDE, a CONCAR contará com o apoio efetivo e articulado das suas subcomissões técnicas: Subcomissão de Assuntos de Defesa Nacional – SDN; Subcomissão de Dados Espaciais – SDE; Subcomissão de Divulgação – SDI; Subcomissão de Legislação e Normas – SLN; e Subcomissão de Planejamento e Acompanhamento – SPA. • Comitê Técnico – subsidia o Conselho Consultivo, atuando sob a orientação e o acompanhamento direto das subcomissões técnicas da CONCAR. Terá por função coordenar a operacionalização do Plano de Ação da INDE. Além de um coordenador designado pela CONCAR, o Comitê Técnico terá líderes para cada uma das seguintes categorias ou pastas, definidas no Plano de Ação da INDE: Gestão; Normas e Padrões; Dados e Metadados; Tecnologia; Capacitação e Treinamento; Difusão e Divulgação; e • Grupos de Trabalho – Os Grupos de Trabalho – GTs poderão ser criados de acordo com as demandas efetivas de apoio ao trabalho do Comitê Técnico. Terão composição variável e contarão em geral com representantes de diferentes atores da INDE. Os GTs representam uma extensão do Comitê Técnico da INDE segundo duas dimensões: temática e organizacional. O Plano de Ação da INDE identifica ações, prazos, responsáveis e resultados esperados para que a iniciativa de implantação da INDE se concretize num prazo razoável, com a devida conscientização e 124 mobilização dos tomadores de decisão e formadores de opinião, bem como com a alocação dos recursos orçamentários para os investimentos e custeios indispensáveis. A seguir, apresenta-se um resumo dos objetivos e das diretrizes dos três ciclos de implantação. Ciclo I – concluído em dezembro de 2011 Ao final do Ciclo I foi implantada a infraestrutura física e informacional de dados, metadados e serviços, necessária para a publicação, busca e acesso a informações geoespaciais produzidas por determinadas instituições do Poder Executivo federal. Esse ciclo teve por objetivo implantar o embrião do DBDG. A participação no Ciclo I foi mandatória para os produtores oficiais de informações geoespaciais do setor federal e recomendada para os demais atores federais, mediante um processo de adesão ao DBGD. Para os atores de outros níveis de governo, a participação – ou seja, a adesão ao DBDG – foi voluntária. O portal de acesso aos recursos do DBDG – SIG Brasil – oferece funcionalidades para informações e notícias sobre a INDE, canais de comunicação (FAQ, Fale Conosco etc.), administração do DBDG, busca e acesso a dados e informações a partir dos respectivos metadados, visualização de mapas (Web Map Service – WMS3) e outras funcionalidades previstas no capítulo 5 do Plano de Ação da INDE. Ciclo II – de 2012 a 2016 Esse será o ciclo de consolidação do DBDG no Governo Federal e da sua extensão para os demais níveis de governo. O Ciclo II marcará também o fortalecimento dos componentes institucional e de pessoas da INDE, além da sedimentação de normas e padrões. O foco estará tanto nos dados quanto nos serviços, que deverão ser ampliados de acordo com as demandas dos usuários. A integração com outras IDEs – continentais, temáticas, regionais, institucionais/corporativas – será uma das metas importantes do Ciclo 3 Web Map Service – O serviço WMS permite visualizar dados e informações geoespaciais em geral e consultar as entidades mostradas num mapa vetorial. 125 II, bem como a ampla divulgação da iniciativa para todos os segmentos produtivos da sociedade. Quanto ao Ciclo II, pode-se dizer que seu maior objetivo será o de transformar a INDE na principal ferramenta de busca, exploração e acesso de dados e metadados geoespaciais do Brasil, em suporte à formulação de políticas públicas em geral. Ciclo III – de 2017 a 2022 Ao final do Ciclo III, espera-se que a INDE tenha permeado todos os setores produtivos da sociedade, além do Governo, e se consolidado como uma referência para busca, exploração e acesso de dados e metadados geoespaciais no Brasil. Nesse ciclo, será também consolidada a integração com outras IDEs. O maior objetivo antecipado para o Ciclo III será o de transformar a INDE na principal ferramenta de busca, exploração e acesso aos dados e informações geoespaciais do Brasil, em suporte à formulação de políticas públicas pelo setor governamental e à própria sociedade nas tomadas de decisão afetas ao seu cotidiano, fomentando até a participação voluntária. Ao final do Ciclo III almeja-se que a INDE seja reconhecida internacionalmente pela sua capacidade de contribuir para projetos transnacionais. 7 VISÃO ATUAL DA INDE E O PORTAL SIG BRASIL No dia 8 de abril de 2010 foi lançado o portal da INDE4, denominado SIG Brasil, seguindo o especificado no Plano de Ação da INDE. No lançamento da INDE, estiveram presentes diversos atores federais já envolvidos nessa iniciativa. O evento representou um momento de engajamento e sensibilização dos órgãos participantes, no qual se destacou a importância da INDE, sua operacionalização e aplicabilidade. Nessa ocasião, foi assinada ata, sinalizando a adesão à iniciativa INDE. A estratégia de implantação da INDE tem por base um processo evolutivo gradual, em que a inclusão de novos atores e a consequente agregação de novos conteúdos e serviços tornará a INDE mais efetiva, em benefício de uma gama maior de usuários de todos os setores da 4 Disponível em: <www.inde.gov.br>. 126 sociedade. Esse processo passa necessariamente pelo engajamento dos Governos estaduais. Ainda que os primeiros ciclos tenham foco operativo na adesão de atores federais ao DBDG, é desejável que os estados participem desde cedo, através da celebração de acordos de cooperação para a disponibilização de seus dados e serviços. A justificativa econômica de desenvolvimento da INDE é reforçada, em grande medida, pela inclusão de conteúdo dos estados e municípios brasileiros, o que permitirá: • conhecer a disponibilidade de informações geoespaciais no nível federal e estadual, facilitando o seu acesso e intercâmbio; e • facilitar o uso de informações geoespaciais padronizadas e de cobertura nacional, que compreendem o acervo oficial de dados geoespaciais do país. A INDE proporcionará os mecanismos de cooperação e intercâmbio entre os seus atores, para facilitar o acesso e o uso de informações geoespaciais em nível local, regional e nacional, mediante a formulação de políticas, a padronização de dados e a transferência e aplicação de tecnologias. O desenvolvimento da INDE é uma iniciativa nacional urgente. Como uma base de produção eficiente, terá o potencial de ser a fonte primária de dados fundamentais de interesse nacional para as diferentes atividades relacionadas com informações geoespaciais. Eventualmente, poderá facilitar o surgimento de setores de negócios em informação, que impulsionarão atividades de economia e comércio, tornando-se um motor de desenvolvimento. Os estados poderão vincular-se de maneira ativa na produção, manutenção, custódia, distribuição e geração de produtos e serviços de geoinformação. O acesso e o conhecimento dos dados geoespaciais, em diversos níveis, tem o potencial de fomentar a transparência e a isenção do Governo em suas políticas e intervenções no território. 8 INICIATIVAS POTENCIAIS PARA A INDE No Brasil, há uma série de iniciativas da Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha, da Diretoria de Serviço Geográfico do Exército 127 e do Instituto de Cartografia Aeronáutica da Força Aérea voltadas à questão geoespacial. Pode-se citar o exemplo do Projeto Cartografia da Amazônia, projeto estratégico que possibilitará um conhecimento mais profundo da Amazônia brasileira, por meio do mais completo conjunto de dados geoespaciais da região. Outro exemplo na região amazônica é o Sistema de Proteção da Amazônia – SIPAM. O projeto tem como missão proteger a região através da integração de políticas públicas ao planejamento territorial e ao desenvolvimento sustentável regional. Espera-se com isso que o SIPAM se torne uma referência nacional e internacional na geração e na aplicação de geotecnologias às políticas públicas na Amazônia. Com isso, o SIPAM pode impulsionar ações em prol da região, tais como: • a regularização de terras públicas para o desenvolvimento regional. • o pagamento de serviços ambientais a comunidades que preservarem a floresta (23 mil potenciais beneficiários do Programa Bolsa Verde); • o cadastramento de beneficiários do Programa Bolsa Família; • a inclusão digital de 137 localidades com os maiores índices de desmatamento; e • ações produtivas para a redução da pobreza extrema (Programa Arco Verde). O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE é o responsável pela implantação da plataforma de monitoramento, análise e alerta TerraMA2, aplicada à prevenção de desastres naturais na Amazônia. O Ministério dos Transportes desenvolveu o Sistema de Planejamento Regional de Transportes – SIG-T com o objetivo de apoiar o Ministério em estudos e na elaboração de planos estratégicos para o transporte nacional. Trata-se de uma Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais para o planejamento e gestão de transportes, visando integrar usuários e provedores de dados. Além disso, o Ministério possui um projeto para utilizar um sistema de informação geográfica – SIG no planejamento de transportes na região amazônica. A reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) é um exemplo que permitirá: • uma alternativa para o escoamento da produção industrial de Manaus para o centro-sul do país; • o escoamento da produção agroextrativista local, tanto dos 128 municípios produtores do interior em direção às capitais quanto entre os municípios produtores; • a associação de preservação ambiental com desenvolvimento e integração local e regional; e • as melhores condições de vida para as comunidades que residem em pequenos povoados localizados nas margens de rios e igarapés, que sobrevivem à custa da pesca artesanal e do extrativismo agrícola. A OrbiSat, empresa do grupo Embraer, desenvolveu o radar OrbiSAR para operar nas bandas X e P, com o objetivo de gerar um mapeamento sistemático e uma grade definitiva de modelos, biomassa e cartografia na escala 1:50.000 para fins de: • topografia para o projeto básico de represas, minas, estradas e outras infraestruturas; • biomassa para os estudos ambientais entre outros; e • cartografia para o planejamento urbano e outros fins. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE possui atualmente o Banco de Dados de Informações Ambientais – BDIA para a aquisição, organização, preservação e registro de eventos geoespaciais visando disponibilizar insumos para estudos ambientais. Seu acervo contempla dados e informações sobre o meio físico (geologia, geomorfologia, pedologia, recursos hídricos e clima), meio biótico (biomas, vegetação, coleções científicas e áreas especiais) e meio antrópico (cobertura e uso da terra). A Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano – EMPLASA é responsável pelo Projeto de Atualização Cartográfica do Estado de São Paulo (Projeto Mapeia São Paulo). A primeira etapa do projeto abrange todo o estado e já teve todo o levantamento aerofotogramétrico, apoio de campo e aerotriangulação concluídos; a segunda etapa, abrangendo a macro metrópole, prevê a restituição estereofotogramétrica de 13 categorias de informação (hidrografia, relevo, vegetação, sistema de transportes, energia e comunicações, abastecimento de água e saneamento básico, educação e cultura, estrutura econômica, localidades, pontos de referência, limites, administração pública e saúde e serviço social). O objetivo final é obter uma base vetorial única, oficial, precisa e completa em nível estadual. 129 A Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo – ITESP planeja e executa as políticas agrária e fundiária no estado de São Paulo, sendo responsável pelo reconhecimento de comunidades quilombolas. Por meio do Programa Minha Terra, a Fundação ITESP realiza a regularização fundiária georreferenciada de áreas rurais e urbanas de dezenas de municípios do estado. A Embrapa Monitoramento por Satélite, órgão da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, tem por missão realizar pesquisas e inovações geoespaciais para a agricultura. Suas principais áreas de pesquisa são a dinâmica do uso e cobertura de terras, planejamento e zoneamento de terras, modelagem geoespacial, monitoramento geoespacial da agricultura, indicadores de sustentabilidade, georrastreamento e disseminação de geotecnologias para apoiar a produção agrícola com sustentabilidade econômica, qualidade ambiental e justiça social. O Instituto de Geociências Aplicadas do Estado de Minas Gerais tem como missão, entre outras, gerir a Infraestrutura Estadual de Dados Espaciais – IEDE. Criada pelo Decreto Estadual no 45.394/2010, a IEDE obedece aos padrões estabelecidos em nível nacional pela INDE com o objetivo de manter as informações sobre a evolução da divisão políticoadministrativa do estado de Minas Gerais. A Vale desenvolveu o Sistema de Gestão de Terras com o principal desafio de possibilitar a gestão eficiente dos processos fundiários da empresa, bem como de atender à legislação ambiental no que se refere à reserva legal de suas propriedades rurais. O sistema foi desenvolvido através de uma plataforma SIG na web com o intuito de permitir a integração de bases espaciais e documentais das propriedades. O Instituto Pereira Passos do Município do Rio de Janeiro adotou a tecnologia geoespacial para o mapeamento de logradouros e gestão territorial em favelas do município. Os obstáculos para o mapeamento de informações em favelas são de natureza tecnológica, física e operacional, como o alto custo da restituição cartográfica, necessidade de imagens com alta resolução, dificuldade para mapeamento com GPS, rede de logradouros e lotes irregulares, condições topográficas adversas, alta densidade de ocupação, dificuldade de circulação interna, entre outros. A pequena quantidade de informações mapeadas levava a vazios cartográficos em favelas, cabendo ao mapeamento superar as 130 deficiências existentes no cadastro urbano de áreas informais com o objetivo de integrar a cidade informal à formal. A Petrobras possui desde 1998 pesquisas e trabalhos de elaboração de cartas de sensibilidade ambiental para derramamento de petróleo no mar. Essas cartas constituem um componente essencial e fonte de informação primária para o planejamento de contingência e avaliação de danos em casos de derramamento de óleo. Os planos cartográficos específicos são formados por cartas estratégicas de abrangência regional ou de bacia marítima, cartas táticas de escala intermediária para todo o litoral da bacia e cartas operacionais para os locais de alto risco e sensibilidade. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS No aspecto do desenvolvimento nacional, a implantação gradativa da INDE terá um peso cada vez maior no atendimento às demandas da gestão do conhecimento, da gestão territorial, da gestão ambiental, da gestão de programas sociais e da gestão dos investimentos, na mitigação de riscos e impactos de fenômenos naturais e em outros tipos de demandas. Com efeito, a valorização crescente da informação geoespacial e, em última análise, da INDE é decorrente da ampliação, em nível global, de uma mentalidade mais responsável com o meio ambiente e, também, das demandas sociais e econômicas por uma melhor compreensão da realidade territorial, na medida em que subsidia a execução de políticas de gestão e desenvolvimento sustentável. No âmbito da segurança e defesa nacionais, os atuais projetos empreendidos pela Marinha, pelo Exército e pela Força Aérea como os citados Projeto Cartografia da Amazônia e SIPAM, bem como os futuros projetos do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – SISFRON e do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul – SISGAAz são candidatos potenciais à INDE, seja por envolverem informações geoespaciais na forma de imagens de satélite, seja por envolverem uma diversidade de órgãos do governo brasileiro. Demonstrou-se ainda que a integração de todos os atores envolvidos, produtores e usuários, num único repositório de informações geoespaciais é um benefício adicional da INDE, por permitir que todos trabalhem de forma coordenada e evitem a duplicidade de ações e o desperdício de recursos. 131 Referências _______. Decreto no 6.666, de 27 de novembro de 2008. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 28 nov. 2008. Seção 1, p. 57. BRASIL. Comissão Nacional de Cartografia. Plano de ação para implantação da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais. Rio de Janeiro: Comitê de Planejamento da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais, 2010. _______. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Metas e ações do IBGE para 2012, 2012. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/ disseminacao/eventos/missao/Metas_Institucionais.shtm>. Acesso em: 03 set. 2012. _______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais – INDE, 2012. Disponível em: http://www. inde.gov.br. Acesso em: 03 set. 2012. COLEMAN D.J.; MCLAUGHLIN, J.D. Defining global geospatial data infrastructure (GGDI): components, stakeholders and interfaces. Canada: Department of Geodesy and Geomatics Engineering. University of New Brunswick, 1997. Disponível em: <http://www.gsdidocs.org/ docs1997/97_ggdiwp1.html>. Acesso em: 15 ago. 2012. MARUYAMA H; AKIYAMA M. Responsibility of NMO´s for sustainable development. In: CAMBRIDGE CONFERENCE, 2003, Southampton. Papers… Southampton, 2003. Disponível em: http://www.cambridgeconference. com/previous_conferences/2003/camconf/papers/2-3.pdf. Acesso em 15 ago. 2012. 132 A UNIVERSIDADE DA AVIAÇÃO CIVIL: ENTIDADE PÚBLICA DE ENSINO DE EXCELÊNCIA Francisco José Leitão dos Santos* RESUMO Este artigo trata da infraestrutura para o desenvolvimento do Brasil, enfatizando a capacitação profissional para a Aviação Civil. O objetivo deste estudo é identificar os óbices que impedem a formação de excelência do profissional de aviação no Brasil, que precisa tornarse coerente com os modernos recursos tecnológicos que equipam as aeronaves fabricadas atualmente pela indústria brasileira e mundial. Partindo do diagnóstico da situação atual do Sistema de Aviação Civil e de suas entidades de ensino, buscaram-se ações positivas que possam assegurar a elevação da qualidade da formação profissional do pessoal da aviação civil. Adotou-se metodologia apoiada em pesquisa bibliográfica e documental, buscando referências teóricas e identificando na legislação os requisitos para a concessão de habilitações para pilotos e a capacidade das entidades de ensino do Sistema de Aviação Civil de suprir a demanda por profissionais pelo mercado, no que se referir à qualidade e, também, à quantidade daqueles profissionais. A conclusão indicou a possibilidade real de que se consiga garantir, simultaneamente, através de recursos financeiros gerados pela aviação civil, a melhoria da segurança do transporte aéreo, a formação de reserva mobilizável qualificada para a Força Aérea Brasileira e formação de excelência para o pessoal da aviação civil, e consequentemente, a formação de importante base de infraestrutura para o desenvolvimento. Palavras chave: Infraestrutura para o desenvolvimento. Capacitação profissional. Aviação civil. __________________ * Oficial-Aviador da Força Aérea Brasileira, Comandante de Linha Aérea Internacional, Instrutor em Simuladores, Instrutor em voo e Examinador de Proficiência de Pilotos. 133 ABSTRACT This paper deals with the infrastructure for the development of Brazil, emphasizing the professional training for civil aviation. This study intends to identify the obstacles that prevent the formation of excellence in aviation professional in Brazil, which needs to become consistent with modern technological resources that equip aircraft currently manufactured by the Brazilian and global industry. Based on the diagnosis of the current situation of the Civil Aviation System and its educational institutions, were sought positive actions that can ensure the improvement of the quality of training for civil aviation personnel. The adopted methodology, underpinned by literature and documents, seeking theoretical references in legislation and identifying the requirements for the award of qualifications for pilots and capacity of educational institutions of the Civil Aviation System meet the demand for professionals in the market, as refer to the quality and also the amount of those professionals. The conclusion indicated the real possibility that it can guarantee both through financial resources generated by civil aviation, improving air transport safety, training of qualified mobilized reserve for the Brazilian Air Force and training for staff excellence civil aviation, and consequently, the formation of important basic infrastructure for development. Keywords: Infrastructure for development. Professional training. Civil aviation. 1 INTRODUÇÃO O crescimento econômico dos últimos anos trouxe ao mercado novos consumidores que anteriormente não dispunham de potencial econômico-financeiro para a utilização do avião como meio de transporte. Simultaneamente, a exploração das recém-descobertas reservas de petróleo da camada do pré-sal acena com uma explosão da demanda pelo transporte aéreo público entre o litoral e as plataformas de exploração distantes, em média 250 km, às quais somente helicópteros de última geração têm autonomia para alcançar. 134 Enquanto o Sistema Brasileiro de Aviação Civil e suas unidades de ensino aplicam, em sua absoluta maioria, metodologias obsoletas de transmissão de conhecimento, a evolução tecnológica da aviação exige profissionais ultracapacitados. Um exemplo dessa realidade vem com o lançamento pela Empresa Brasileira de Aeronáutica – EMBRAER, de um novo conceito de aeronave para o transporte executivo, que, pelo aparato tecnológico embarcado, permite que um único piloto possa ser responsável por sua condução, quando, anteriormente, para toda e qualquer aeronave de transporte aéreo com dois motores à reação, era exigido o mínimo de dois pilotos para a sua operação. O adestramento de pessoal da aviação permanece fundamentado em escolas de aviação e aeroclubes que dispõem de pouca capacidade financeira de investir em aeronaves modernas, em simuladores e até mesmo em manter seus quadros de instrutores. O país precisa responder aos grandes desafios que o desenvolvimento impõe. Como capacitar profissionais para as diversas funções envolvidas na operação de aeronaves tão complexas? Como melhorar os índices de segurança da aviação brasileira e cumprir os compromissos assumidos perante a comunidade internacional na Convenção de Chicago1? Como disponibilizar ferramentas para que o Sistema de Aviação Civil e suas instituições de ensino ganhem estrutura para responder quantitativamente e qualitativamente à demanda por profissionais especializados? O Brasil não pode prescindir da aviação civil e, em vista do exposto, propõem-se soluções para melhorar a formação de pessoal e, simultaneamente, melhorar a segurança operacional (segurança de voo). 2 BREVE HISTÓRICO DA AVIAÇÃO NO BRASIL OS PRIMEIROS PASSOS DA AVIAÇÃO BRASILEIRA A obra “A história geral da Aeronáutica Brasileira”, resultado de extensa pesquisa promovida pelo Instituto Histórico Cultural da Aeronáutica (INCAER, 1990), lançado no ano de 1990, cita que a primeira organização de aviação, no Brasil, foi fundada no dia 14 de outubro de 1 Maiores informações no site da ANAC. A segurança de voo no sistema de aviação civil. Disponível: <http://www2.anac.gov.br/segVoo/historico.asp>. Acesso em: 15 de maio de 2012. 135 1911: o Aeroclube do Brasil, órgão que foi decisivo para a difusão do entusiasmo pela aviação no Brasil. A área escolhida para ser a sede do clube foi a Fazenda dos Afonsos, situada na zona suburbana da cidade do Rio de Janeiro e próxima à Vila Militar de Deodoro, que foi cedida pelo Presidente da República Hermes Rodrigues da Fonseca. Alberto Santos Dumont foi escolhido como presidente honorário, em assembleia realizada na sede do jornal A Noite, cedida pelo seu diretor Irineu Marinho, entusiasta da aviação e incentivador do Aeroclube (INCAER, 1990). O Aeroclube do Brasil permanece em atividade até hoje, sobrevivendo através da resistência de seus associados que ainda procuram defender o uso das instalações do Aeroporto de Jacarepaguá contra a ação judicial de despejo movida pela administração daquele aeroporto. Após 102 anos de sua fundação, o pioneiro marco da Aviação Civil ainda não possui uma sede. Com a eclosão da Primeira Grande Guerra, em 1914, e devido às dificuldades impostas à importação de componentes aeronáuticos, de aeronaves e de mão de obra especializada, o Aeroclube do Brasil teve suas atividades suspensas. Essa estagnação representou enorme óbice ao desenvolvimento da Aviação Civil no país. O ataque a navios mercantes brasileiros, em 1917, por submarinos alemães levou o Presidente Wenceslau Brás a reconhecer o estado de guerra, com consequências indiretas para a Aviação Civil Brasileira que seria salva da estagnação. Em consequência do ataque sofrido, o Exército Brasileiro criou o Serviço Geral da Aviação. O Congresso Nacional instituiu o Serviço de Defesa das Costas e Fronteira do Brasil por meio de Engenhos Aéreos, a cargo da Marinha do Brasil, com o objetivo de realizar o patrulhamento aéreo do litoral e evitar novos ataques. A sociedade civil mobilizou-se, liderada pela diretoria do Aeroclube do Brasil, através de uma campanha pelo renascimento da Aviação Nacional, a qual conseguiu arrecadar recursos para aquisição de aeronaves para instrução de novos pilotos, assim como para aquisição de aeronaves militares. O Presidente Epitácio Pessoa estabeleceu, em 1921, duas linhas de navegação aérea entre as cidades do Rio de Janeiro e Porto Alegre, com o objetivo de defesa da costa, a cargo do Ministério da Marinha, que definiu o patrulhamento aéreo do litoral como 136 sendo a missão principal da aviação naval. Em consequência, foram construídos os Centros de Aviação Naval da Ponta do Galeão, na Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro; o de Santos, no litoral do Estado de São Paulo; e o de Florianópolis, no litoral de Santa Catarina. A criação desses centros provocou o aumento substancial do quadro de pilotos e, assim, em 1922, a Escola de Aviação Naval passou a formar aviadores civis para o corpo temporário. Os oficiais do Corpo Temporário da Marinha permaneceriam no posto de segundo tenente do quadro de aviadores, pelo prazo mínimo de cinco anos, em serviço militar ativo, propiciando, desta forma, um efetivo jovem que atenderia às necessidades da Aviação Naval e representaria o início de formação de contingente mobilizável para a reserva da Aviação Naval e, simultaneamente, formaria profissionais para eventual aproveitamento na Aviação Civil, enquanto os oficiais de carreira, formados no curso regular da Escola de Aviação Naval, passariam a integrar o quadro permanente. Em dezembro de 1926, como forma de minimizar a carência de pilotos no Brasil, os civis brevetados pelo Aeroclube do Brasil, os oficiais reformados ou demissionários passaram a integrar o Corpo de Oficiais da Reserva Aérea. A Aviação passou à condição de quinta arma do Exército, em 1927, ao lado da Infantaria, da Cavalaria, da Artilharia e da Engenharia. A criação da quinta arma do Exército, em 1927, a criação do Corpo de Aviação da Marinha, em 1931, além da exigência estabelecida pelo Ministério da Viação e Obras Públicas de que, a partir de 1933, todas as aeronaves com matrícula brasileira, efetuando transporte aéreo, fossem tripuladas por brasileiros, serviram para fomentar a aviação civil, com um imediato aumento do número de candidatos à carreira, incentivados pelas perspectivas de ascensão profissional possibilitadas pelos novos quadros de oficiais aviadores no Exército e na Marinha inclusive, e pela migração de pilotos com formação militar para a prestação de serviços na aviação civil (INCAER, 1990). Na década de 1930, durante o governo do Presidente Getúlio Vargas (1930/1945), houve grande impulso ao processo de industrialização do Brasil, por meio de privilégios às indústrias nacionais e diminuição da dependência externa, além de medidas protecionistas, investimento em infraestrutura e regulamentação do mercado de trabalho, com benefícios 137 diretos, às recém-criadas, Viação Aérea Rio Grandense (VARIG), Condor, ambas criadas em 1927, e Panair, fundada em 1929. A concepção integrada do emprego dos meios aéreos da Aviação Militar e dos meios aéreos da Aviação Naval, simultaneamente com a administração da Aviação Civil, ocorreu em 1941, com a criação do Ministério da Aeronáutica e configurava a unificação de recursos materiais e doutrinários naquilo que poder-se-ia chamar de “mentalidade aeronáutica única” (SANTOS, 1989). Após a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, com o firme propósito de evitar conflitos e preservar a paz, reuniram-se em Chicago, em 1944, representantes de 52 Estados para a Conferência sobre Aviação Civil Internacional que resultou na aprovação do Tratado sobre Aviação Civil Internacional, internalizado no Brasil pelo Decreto 21.713, de 27 de agosto de 1946. A mais importante consequência da chamada Convenção de Chicago talvez tenha sido o aspecto preventivo de como foram incumbidas as Autoridades de Aviação dos países signatários que, baseados em critérios técnicos e objetivos, passaram a fiscalizar o adequado cumprimento das normas aplicáveis em aviação, com a finalidade de evitar acidentes aeronáuticos. Sendo o fator humano o maior fator contribuinte dos acidentes aeronáuticos (ICAO, 2003), é no estudo das capacidades e das limitações humanas e suas interações com pessoas e equipamentos que devemse concentrar os maiores esforços para a melhora da segurança das atividades aéreas. 3 A FORMAÇÃO O Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei nº 7565, de 19 de dezembro de 1986, assim como o Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica nº 141 permite que sejam os aeroclubes, sociedades com o objetivo de fomentar o lazer e o desporto, as responsáveis pelo ensino primário de pilotos, não distinguindo os candidatos que praticarão a aviação como puro diletantismo daqueles que abraçarão a atividade como opção profissional. De acordo com a teoria sobre ensino e aprendizagem desenvolvida por Robert M. Gagné (1977), a aprendizagem ocorre quando há uma modificação na capacidade de um indivíduo, após ser submetido a uma 138 condição de ensino. Para que a aprendizagem realmente aconteça, essa mudança deve ter um caráter duradouro, isto é, não deve se extinguir quando o indivíduo for retirado da condição de ensino. A aprendizagem profissional do aviador começa no primeiríssimo segundo da primeira lição. Não se pode confundir profissão com lazer. Em todo e qualquer ramo de atividade, a formação de pessoal tem crucial importância na qualidade profissional do trabalhador e consequentemente na qualidade dos serviços ofertados à sociedade. Na aviação, a importância da formação profissional é ainda maior, na medida em que eventuais erros podem significar risco a vidas humanas. 4 OS DESAFIOS As projeções de fabricantes de aeronaves, a extensão geográfica, as novas tecnologias e a exploração de petróleo em águas profundas desafiam a capacidade de formação profissional do Sistema de Aviação Civil. O Sistema tem, na sua base, escolas de aviação e aeroclubes responsáveis pela formação primária de profissionais. Temos mais de duas centenas dessas entidades espalhadas pelo país. Nenhuma delas, por exemplo, tem capacidade de formar profissionais capacitados para operar helicópteros seguindo as regras de voo por instrumento que é requisito mínimo exigido pela OGP – Organização Internacional de Produtores de Petróleo, que, por sua vez, determina os padrões de todos os profissionais que trabalham em plataformas marítimas de exploração de petróleo em todo o mundo. 4.1 PROJEÇÕES DA BOEING A maior fabricante de aviões do mundo, a empresa norte-americana Boeing prevê que à medida que a frota de aviões comerciais aumenta para mais de 39.500 unidades, ao longo dos próximos 20 anos, a América Latina precisará capacitar mais de 41.200 pilotos e mais de 52.500 técnicos de manutenção. Na Aviação Civil, a demanda de passageiros aumenta em razão direta das distâncias a serem vencidas e do potencial econômicofinanceiro da população. O Brasil ocupa 40% da área total da América Latina e colabora com 43% do PIB da região. Uma projeção de 40% de incremento no número de aeronaves comerciais no Brasil é, portanto, bastante realista. 139 Isto significa que se pode prever a necessidade de mais 16.800 pilotos durante os próximos 20 anos, levando-se, aqui, em consideração apenas a demanda por transporte aéreo regular, que é o mercado estudado pela Boeing. Se houver um crescimento linear, deverá haver a capacitação de 824 pilotos anualmente, durante duas décadas. Tomando-se como parâmetro a Academia da Força Aérea Brasileira que tem três pistas com 2.000 metros de extensão, corpo docente estável, excelente contingente de técnicos de manutenção e recursos materiais suficientes e que forma, em média, 120 aviadores anualmente, tem-se a dimensão do desafio que o Sistema de ensino da Aviação civil deve enfrentar nos próximos 20 anos. A FAB forma pilotos militares! A exigência é muito superior. 4.2 A INTEGRAÇÃO NACIONAL Um dos maiores desafios para o Brasil com dimensões territoriais continentais é o de consolidar a ocupação sustentável do seu território e promover a integração de suas regiões. Na ausência de outros meios de transporte – a única forma de ligação entre a cidade de Manaus e a Capital Federal, por exemplo, é o transporte aéreo –, a aviação tem sido por décadas e deve continuar sendo, o meio de integração nacional por excelência. A Integração Nacional é um dos Objetivos Fundamentais da Nação. Segundo a Escola Superior de Guerra, a Integração Nacional é “a incorporação de todo território nacional ao contexto político e socioeconômico da Nação. A consolidação da comunidade nacional, com solidariedade entre seus membros, sem preconceitos ou disparidades de qualquer natureza (...)” (ESG, 2009). Conclui-se que a integração do Brasil está diretamente ligada ao desenvolvimento da Aviação Civil e que são necessários incentivos ao desenvolvimento da aviação regional o que possibilitaria melhores condições de mobilidade aos usuários de transporte aéreo da Região Norte. A demanda por profissionais de aviação vai aumentar a medida que a Nação despertar para a importância da Integração e do Desenvolvimento dos diversos potenciais regionais. 4.3 O PRÉ-SAL Estima-se que a demanda por helicópteros que transportam trabalhadores até as plataformas de exploração de petróleo em alto-mar 140 (offshore) dobre em cinco anos. A quantidade de pilotos qualificados para comandar essas aeronaves vai crescer na mesma proporção. Aqui está, provavelmente, a melhor demonstração de que o Sistema de Ensino da Aviação Civil não consegue atender à demanda do mercado, seja quanto a quantidade de profissionais que o mercado requer, seja pela qualidade desses profissionais. Não há simuladores e nem há aeronaves certificadas para instrução de voo por instrumentos nas escolas e aeroclubes do sistema de ensino da Aviação Civil Brasileira. Não obstante o aumento da demanda, não formaremos pessoal capacitado porque os aeroclubes não têm potencial de arcar com investimentos necessários como equipamento, corpo docente qualificado e simuladores. Há, aqui, um importante óbice ao desenvolvimento por absoluta carência de investimento em qualificação de pessoal. Empresas que exploram o transporte aéreo chamado de offshore buscaram a flexibilização dos requisitos mínimos de experiência para pilotos, que são 500 horas de voo em helicópteros adicionadas à habilitação para voos por instrumentos e não obtiveram sucesso por serem esses requisitos impostos pela Organização Internacional dos Produtores de Petróleo (OGP) e não pelas autoridades brasileiras. Outra tentativa de mudança foi feita com a proposta de flexibilizar, a estrangeiros, a função de tripulante a bordo de aeronaves de transporte aéreo. Desta vez, o empecilho foi a legislação que faculta a brasileiros natos ou naturalizados o exercício de todas as funções a bordo de aeronaves de matrícula brasileira quando efetuando transporte aéreo público (Lei 7565, de 19 de dezembro de 1986; artigo156). 4.4 A TECNOLOGIA Na última década, os fabricantes de aeronaves executivas observaram a possibilidade de utilizar a tecnologia desenvolvida para a aviação na produção de um novo modelo de jato, de menor porte e com recursos tecnológicos avançados, mas com custos de aquisição e operação reduzidos. Tais aeronaves denominadas VLJ (Very Light Jets) representam um novo nicho dentro do mercado da aviação executiva, pois, em virtude do avançado grau tecnológico e dos custos reduzidos em relação aos jatos executivos concorrentes, tornaram-se disponíveis a um número maior de potenciais clientes. 141 Atualmente, no mundo existem 14 fabricantes de Very Light Jets, inclusive a Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER) que os produz em duas versões: o série 100 e o série 300. A legislação permite que um piloto somando experiência inferior a uma centena de horas totalizadas durante a carreira, possa, sem o auxílio de um segundo piloto, comandar uma aeronave a jato que voa a grandes altitudes e a velocidades próximas à velocidade do som, isso pode indicar, segundo BURIAN (2007) “... sob o ponto de vista regulatório, que um piloto está qualificado para a aeronave, mas pode não significar que o piloto possua o nível de experiência que as empresas fabricantes esperam de um piloto de jato”. Portanto, a expectativa de que o VLJ venha modificar o cenário da aviação executiva é considerável. Sendo assim, operadores desse tipo de aeronave têm que se adequar aos requisitos tecnológicos, operacionais e de manutenção. Percebe-se que a formação e avaliação de pilotos de VLJ ainda são assuntos novos no meio aeronáutico e que precisam maiores estudos. Busca-se, aqui, evidenciar que a formação básica de profissionais para a aviação precisa evoluir em sintonia com a evolução da tecnologia disponível a bordo das aeronaves e que, pelo exposto, o sistema de ensino da Aviação Civil Brasileira necessita ser repensado. 5 A UNIVERSIDADE DA AVIAÇÃO CIVIL Investir em capacitação profissional é investir em infraestrutura para o desenvolvimento. O Professor Doutor Eduardo Siqueira Brick, em palestra proferida na ESG, por ocasião do Simpósio sobre a Base Logística de Defesa, em 26 de junho de 2012, destacou que o maior óbice para a formação de infraestrutura para o desenvolvimento da Base Industrial de Defesa no Brasil é a carência de profissionais capacitados. Explicou Eduardo Brick (2012): “É preciso reconhecer que a limitação de recursos humanos, mesmo que ocorra aumento nos gastos com defesa, será uma realidade que afetará a Base Logística de Defesa”. O tema capacitação, privilegiando as entidades de formação, já foi debatido exaustivamente, porém, jamais se obteve a execução de projetos voltados para a redução das deficiências na formação de pessoal para a aviação civil, objetivamente. O Jurista José da Silva Pacheco na obra Comentários ao Código 142 Brasileiro de Aeronáutica esclarece que a Portaria 110 do Departamento de Aviação Civil, de 27 de fevereiro de 1987, considerava que o Sistema de Formação e Adestramento de Pessoal era relevante e prioritária no desenvolvimento da Aviação Civil Brasileira, aprovando normas e procedimentos para a implantação da Escola Nacional de Aviação Civil que daria formação acadêmica a pilotos profissionais, além de formação de instrutores em diversas áreas de especialização. Essa universidade seria conduzida de forma a minimizar despesas para os alunos, com o intuito de proporcionar oportunidades iguais a todos os jovens que revelassem vocações para atividades relacionadas com a aviação civil e evitar a elitização dos quadros (PACHECO, 2006). No texto comentado pelo Jurista José da Silva Pacheco (2006), percebe-se a preocupação do Diretor Geral de Aviação Civil que já no ano de 1987 previa a necessidade de melhorar a qualidade e a quantidade de profissionais de modo que determinou que fossem iniciados estudos para a organização de uma academia de ensino público de excelência para suprir a Aviação Civil de profissionais de alta qualificação. 6 MODELOS DE SUCESSO 6.1 O MODELO MARINHA MERCANTE A Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante – EFOMM é uma entidade pública de ensino pertencente à Marinha do Brasil e é, também, uma universidade do mar. A EFOMM forma profissionais altamente qualificados do Brasil e de diversas nações amigas, como Peru, Panamá, Equador e República Dominicana. Ao final do curso os alunos são declarados Bacharéis em Ciências Náuticas e passam a integrar o Quadro de Oficiais da Reserva não remunerada da Marinha do Brasil no posto de segundo tenente. Nesse modelo, perfeitamente aplicável para a Aviação Civil, os alunos permanecem em regime de internato e dispõem de todo o tempo e infraestrutura necessária para concentrarem-se na vida acadêmica. Ao final do curso, o profissional será aproveitado pelo mercado, tendo aprendido valores como o respeito à pátria e suas instituições, além de aprender as táticas utilizadas pela Marinha do Brasil, em caso de conflito bélico. 143 Simultaneamente, ganha a Marinha do Brasil importante recurso mobilizável e a sociedade brasileira recebe profissionais qualificados que conduzem 95% dos produtos transacionados entre o Brasil e o exterior (SILVA, 2010). 6.2 O MODELO FORÇA AÉREA A Força Aérea Brasileira inaugurou em seis de maio de 1970, na cidade de Natal – RN, o Curso de Formação de Pilotos Militares que ficou ativo até o primeiro dia de janeiro de 1974 e destinava-se a formar Oficiais da Reserva da Força Aérea (INCAER, 1990). Ao término do curso o aluno tinha a opção de prosseguir na ativa e seguir para a Academia da Força Aérea ou permanecer na Força como oficial-aviador temporário, pelo período de cinco anos. Esse modelo, se aplicado, daria à Aviação Civil, profissionais com experiência e formação de excelência, além de proporcionar reserva mobilizável à Força Aérea Brasileira. Para a formação de pilotos de helicópteros, que, futuramente, operariam no transporte aéreo público para as plataformas de exploração de petróleo, poderia ser o modelo ideal. 6.3 O MODELO NORTE-AMERICANO A Universidade Embry-Riddle, cuja sede principal está localizada na cidade de Daytona Beach, no Estado da Flórida, EUA, foi fundada em 1926, como escola de aviação para a preparação de pilotos.2 Em 1965, a Escola de Formação de Pilotos passou, simultaneamente, a formar técnicos em manutenção de motores, aproveitando o mesmo hangar da escola de pilotos e ganhou a certificação para atuar como escola técnica. Três anos depois, em 1968, alcançou a certificação para formar tecnólogos e logo no ano seguinte, conseguiu a certificação para atuar como instituição de ensino superior. Hoje, além do campus de Daytona Beach - Flórida, a Universidade conta com outro campus, situado no Estado do Arizona, na cidade de Prescott que foi inaugurado em 1978 para atender à demanda da Costa Oeste dos Estados Unidos. Essa Instituição disponibiliza quarenta 2 Disponível em:< http://www.erau.edu/about/story,html>. Acesso em: 14 jun. 2013. 144 diferentes cursos entre graduação e pós-graduação, inclusive instrução prática para pilotos, com pistas de pouso exclusivas em ambos os Campus e aplica, anualmente, somente em pesquisa, 13 milhões de dólares. A Graduação em Ciências Aeronáuticas é o principal programa da universidade, e tem o currículo de treinamento de voo mais avançado do mundo, combina a prática de voo aos estudos acadêmicos. O programa de Ciências Aeronáuticas prepara o estudante para carreiras na aviação comercial, militar, corporativa e, também, é o ponto de partida na carreira de vários astronautas da NASA. Outros cursos oferecidos são: Aeronáutica, Engenharia Aeroespacial, Gestão de Tráfego Aéreo, Meteorologia Aplicada, Administração de Negócios da Aviação e Manutenção de Aeronaves (Células e Motores), Segurança da Aviação Contra Atos Ilícitos, Engenharia Mecânica, Engenharia Eletrônica Aplicada à Computação, Física Espacial, Sistemas de Veículos Aéreos Não Tripulados (VANT), Engenharia de Transportes e Segurança Operacional (Segurança de Voo). A Universidade Embry-Riddle International disponibiliza cursos acelerados em que o aluno pode receber um Diploma de Bacharel e outro de Mestre em cinco anos de estudos. Esse, talvez, seja o melhor modelo para a Aviação Civil Brasileira. Não demandaria sacrifícios adicionais às Forças Armadas e garantiria ensino de excelência aos futuros profissionais e importante infraestrutura para o desenvolvimento. 7 CONCLUSÃO A última vez que se discutiu, seriamente, o futuro da aviação civil no Brasil, foi no calor das chamas resultantes do acidente aéreo do voo TAM 3054, ocorrido em 17 de julho de 2007. A aeronave, após aproximarse para pouso na cabeceira 35 do Aeroporto de Congonhas em São Paulo, chocou-se com um edifício após ultrapassar a cabeceira oposta. Em dois de agosto do mesmo ano, reuniram-se diversas autoridades para um Fórum Extraordinário e com o objetivo de discutir medidas que deveriam ser tomadas imediatamente para evitar novos acidentes. Entre as autoridades presentes, estava o Sr. Nelson Jobim, Ministro da Defesa à época, que tinha a Autoridade de Aviação Civil sob sua subordinação e 145 Mauro Gandra, ex-ministro da Aeronáutica e ex-Diretor do Departamento de Aviação Civil que declarou: Há a necessidade de ser dada grande ênfase, pela Autoridade de Aviação Civil (ANAC), à formação dos recursos humanos para a aviação civil, que devem estar em constante interação com as escolas de aviação e de pilotagem, com os aeroclubes, [...] (Jobim... [et al.],2007, p.41) Gandra apresentou 13 sugestões para a melhoria do Sistema de Aviação Civil, entre as quais, sugeriu: Conscientização das autoridades econômicas do país de que não é lógico e porque não dizer, nem ético, o contingenciamento de recursos, seja para que finalidade for; considerando que tais recursos são provenientes de taxas e tarifas para serviços exclusivos aos usuários que as pagaram, para obtenção também exclusiva daqueles serviços. (Jobim... [et al.], 2007, p.32) A aviação gera recursos suficientes através dos fundos aeronáuticos e aeroviários. Falta de recursos financeiros, definitivamente, não vai ser fator impeditivo para investimento em capacitação. O Brasil não precisa de uma nova tragédia para que se discuta e se tome decisões cruciais. A Aviação Civil Brasileira enfrenta diversos desafios em consequência do crescimento econômico, da evolução tecnológica e, principalmente, em consequência da falta de planejamento estratégico no que se refere à infraestrutura para suportar o desenvolvimento. Nesse trabalho, procura-se demonstrar a necessidade de investimento na formação de pessoal qualificado para a aviação civil do Brasil como forma de superar óbices recorrentes, uma vez que o atual Sistema, baseado em escolas e aeroclubes, vem demonstrando não ser capaz de promover a melhora do padrão do profissional e torná-lo compatível com o estágio evolutivo e tecnológico da aviação. Uma entidade pública de ensino de excelência, dotada de estrutura adequada (pistas de pouso, oficinas de manutenção para aeronaves, inclusive), com acesso por concurso público, ou pelo Exame Nacional 146 do Ensino Médio (ENEM), a Universidade da Aviação Civil será a melhor solução para que a nossa aviação possa continuar a contribuir para a integração e o desenvolvimento nacional. A nova universidade permitirá a uniformidade da formação profissional, garantindo, prioritariamente, a qualidade e, também, a quantidade suficiente de profissionais habilitados. Permitirá, também, a evolução dos índices de segurança operacional (segurança de voo), fato que trará benefícios diretos para toda a sociedade. Independentemente do modelo a ser adotado, pode-se obter a oportunidade de treinar os oficiais da reserva da nossa Força Aérea, segundo a doutrina operacional e as táticas aplicadas pela FAB, com a participação de instrutores da própria força. Adicionalmente, pode-se oferecer oportunidades a profissionais de nações amigas, destacadamente, àqueles de nosso maior interesse geopolítico: nações da África e da América do Sul. Assim sendo, justificados por todos os motivos expostos, pode-se concluir que, a construção da Universidade da Aviação Civil significa a implementação de importante base de sustentação para o desenvolvimento, além de suporte indispensável para Defesa Nacional. Referências BOEING, Long-term pilots and technician outlook. Burgeoning demand for highly trained personnel. Disponível em: http://www.boeing.com/ commercial/cmo/pilot_technician_outlook.html>. Acesso em 05 abr. 2012. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual básico: elementos fundamentais. Rio de Janeiro: ESG, 2009. ______. Decreto-lei nº 2961 de 20 de janeiro de 1941. Criação do Ministério da Aeronáutica. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03//constituicao/ constituicao.htm>. Acesso em: 12 jun. 2013. ______. Lei nº 7565 de 19 de dezembro de 1986. Disponível em <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7565.htm>. Acesso em: 10 jun. 2013. 147 BURIAN, B. K. Very light jets in the national airspace system. In: Proceedings of the 14th International Symposium on Aviation Psychology. Dayton, OH: Wright State University, 2007. EMBRY-RIDDLE UNIVERSITY. Disponível em <http://www.erau.edu/ about/story,html>. Acesso em: 14 jun. 2013 GAGNÉ,R.M. Como se realiza a aprendizagem. Tradução de Therezinha Maria Ramos Tovar. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977. INSTITUTO HISTÓRICO CULTURAL DA AERONÁUTICA (INCAER). História geral da aeronáutica brasileira. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1990. INTERNATIONAL CIVIL AVIATION ORGANIZATION (ICAO). Human factors guidelines for aircraft maintenance manual (Doc 9824). Montreal, Canadá: ICAO, 2003. Disponível em: <http://www.icao.int/ANB/humanfactors/ Documents.html> Acesso em: agosto/12. JOBIM,….[et al.]. Transformando a crise em oportunidades: diagnósticos e bases para um plano de desenvolvimento da aviação comercial brasileira (com segurança). Rio de Janeiro: José Olimpio, 2007. PACHECO, José da Silva. Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica. Rio de Janeiro: Forense, 2006. SANTOS, Murilo. Evolução do poder aeroespacial. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1989. SILVA, Gilberto Maciel. Revista ESG, v. 25, n. 51, p.95-113, jan./jul. 2010. 148 Normas para SUBMISSão de Artigos PARA As Revistas da ESG O Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra promove a edição de duas publicações: a Revista da Escola Superior de Guerra e os Cadernos de Estudos Estratégicos. A Revista da Escola Superior de Guerra tem por finalidade publicar artigos originais sobre Ciência Militar e Política. Os Cadernos de Estudos Estratégicos têm por finalidade publicar artigos originais, relacionados à Cultura, Relações Internacionais, Modernidade, Axiologia, Praxiologia, Polemologia, Cratologia e Segurança. Todos os textos serão apreciados por pares e pelo Conselho Editorial para, posteriormente, serem indicados à publicação. Em 2013, os artigos serão revistos por pares duplamente cegos. Como parte do processo de submissão, os autores devem verificar o cumprimento de todos os itens listados a seguir. Os textos que não estiverem de acordo com as normas serão devolvidas aos autores. Os artigos devem ser originais, inéditos e não devem estar, concomitantemente, sendo avaliados por outra publicação; caso esteja, os autores deverão justificar a dupla submissão. Recomenda-se que se observem as normas da ABNT: • referências bibliográficas (NBR 6023/2000); • apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022); • apresentação de citações em documentos (NBR 10520); • apresentação de originais (NBR 12256); • norma para datar (NBR 5892); • numeração progressiva das seções de um documento (6024); e • resumos (NBR 6028) • norma de apresentação tabular do IBGE, no caso de gráficos, figuras, tabelas, fotos e outras ilustrações. Os arquivos para submissão devem obedecer aos seguintes critérios: • formato Microsoft Word.DOC ou RTF; • ter entre 10 e 20 páginas; 149 • espaçamento: entre linhas: simples; entre parágrafos: 6 pontos depois; do título para o começo do texto: 12 pontos depois; espaço antes e depois da citação: 8 pontos; • fonte 12 , Times New Roman; • margem superior e esquerda – 3 cm; margem inferior e direita – 2 cm; • empregar itálico ao invés de sublinhar (exceto em endereços URL); • figuras e tabelas devem ser inseridas no texto, e não em seu final (e não devem passar de duas). O texto deve ser precedido do título, nome e titulação principal do(s) autor(es), atividade que exerce e filiação institucional e do e-mail, seguido do resumo, das palavras-chave (até 5), do abstract e das keywords. Os artigos deverão vir acompanhados de uma <autorização para publicação> contendo o nome, titulo do artigo, endereço, telefone, endereço eletrônico e um currículo resumido do(s) autor(es). Nos artigos devem constar, no final, as referências que deverão ser proporcionais ao número de páginas; portanto entre 10 e, no máximo, 20 autores. O canal de diálogo entre os autores e a editoração é <revistadaesg@ esg.br e [email protected]>. O ISSN da Revista da ESG é 0102-1788 e o do Caderno de Estudos Estratégicos 1808-947X. A ESG reserva-se o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores. As provas finais não serão enviadas aos autores. A ESG cumpre todos os direitos dos autores reservados e protegidos pela Lei n.º 9610, de 19 de fevereiro de 1998. Condiciona-se a sua reprodução parcial ou integral à autorização expressa e as citações eventuais à obrigatoriedade de referência da autoria e da revista. As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade. Cada autor receberá dez exemplares da revista. A revista é distribuída gratuitamente. As regras de uniformização dos artigos encontram-se disponível em: <www.esg.br/uploads/2012/12/regras_uniform_artigos.pdf> 150 Este documento foi impresso na gráfica da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA Fortaleza de São João Av. João Luís Alves, s/n - Urca - Rio de Janeiro - RJ CEP 22291-090 - www.esg.br 151 ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA CENTRO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS O Centro de Estudos Estratégicos (CEE) atua como entidade permanente de estudos que permite pesquisar, formular e criar idéias pertinentes ao pensamento político estratégico brasileiro. Com isso, o CEE oferece oportunidade para debates e discussões com a sociedade e a produção de trabalhos a serem publicados pela Escola. As atividades do CEE voltam-se para o contínuo aperfeiçoamento da cultura e do pensamento político e estratégico brasileiro. Os estudos, pesquisas e eventos promovidos pelo Centro de Estudos visam, principalmente, a discussão de questões político-estratégicas de interesse nacional. Se propõem também a estimular a criação de novos conhecimentos, que venham possibilitar o desenvolvimento de novos trabalhos teóricos. Para o exercício de suas atividades, o Centro conta com a participação do corpo de professores da Escola, de convidados do meio intelectual, acadêmico, empresarial e integrantes da administração pública do país. A participação se desenvolve por meio de conferências, análise de temas em pauta, comentários sobre comunicações apresentadas, debates e com estudos sobre assuntos de interesse do Centro. As atividades do CEE, mantendo-se fiel a tradição de mais de meio século de existência da Escola Superior de Guerra, têm como característica o completo afastamento de questões ideológicas e político-partidárias. Apenas questões de caráter nacional e internacional, de todas as áreas de pensamento, são objeto de discussão no Centro de Estudos. O Centro de Estudos está aberto a relacionamentos com instituições acadêmicas, centros de estudos, com a sociedade em geral, e com todos aqueles que tenham a proposta de participar de atividades conjuntas. I SSN 1 8 0 8 - 9 4 7X 9 771808 947002 www.esg.br/cee [email protected]