MODELAGEM DE PARCELA DE NUVENS DURANTE O LBA-SMOCC-EMFIN! PARTE I: INFLUÊNCIA DOS CCN E GCCN Alexandre A. Costa 1 RESUMO. Estudos observacionais têm mostrado que aerossóis produzidos pela queima de biomassa podem modificar a microestrutura de nuvens convectivas em regiões tropicais como a Indonésia e a Amazônia, inibindo a chuva quente. Neste trabalho, é utilizado um modelo de parcela para explicar os dados coletados na Amazônia, em 2002 (campanha do LBA-SMOCC-EMfiN!). Os resultados sugerem que nuvens poluídas tendem a ser sensíveis aos CCN gigantes (GCCN), que se tornam importantes ao gerar gotas que podem crescer até a dimensão precipitante, enquanto em ambientes limpos, a “chuva quente” ocorre independente de sua presença. ABSTRACT. Observational studies have shown that biomass burning aerosol can modify the microstructure of convective clouds in tropical regions such as Indonesia and the Amazon, inhibiting warm rain. In this work, we used a simple parcel model to explain data collected over the Amazon in 2002 (LBA-SMOCC-EMfiN! campaign). Results suggest that polluted clouds tend to be sensitive to the giant CCN (GCCN) which become important by generating droplets that may grow to precipitation size, though in cleaner environments warm rain occurs regardless of GCCN. Palavras-Chave: CCN, Microfísica de Nuvens, Modelo de Parcela INTRODUÇÃO Em estudos meteorológicos é conveniente, por vezes, ao invés de se usar modelos de alta complexidade, lançar mão de modelos mais simplificados, que envolvem um menor custo computacional e permitem um maior controle sobre determinadas variáveis atmosféricas. É o caso dos chamados “modelos de parcela” em que os processos físicos são simulados em uma parcela de ar lagrangeana, com baixíssimo custo computacional. Neste artigo, apresentaremos um exemplo de como um modelo simples de parcela, com microfísica detalhada (ou “bin-microphysics”) pode ser utilizado para esclarecer importantes questões advindas da análise de dados experimentais, no caso o papel dos CCN gigantes no desenvolvimento de precipitação em nuvens poluídas por queimadas. DESCRIÇÃO DO MODELO O modelo numérico utilizado é uma versão de parcela do modelo bidimensional proposto por Costa et al. (2000), com processos de nucleação, condensação, evaporação, colisão-coalescência, 1 Departamento de Meteorologia, Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos. Av. Rui Barbosa, 1246, Fortaleza-CE, CEP 60115-221. Fone: 55(85) 3101-1127. FAX: 55(85) 3101-1093. E-mail: [email protected] ruptura colisional e ruptura espontânea. O modelo utiliza até 167 categorias de CCN, incluindo CCN gigantes e ultra-gigantes, com raio seco (assumindo-se NaCl) entre 0,006 e 7,59 μm, correspondendo a supersaturações críticas num intervalo de 3,0 % (núcleos menores) a praticamente zero (núcleos maiores). As gotas/gotículas são divididas em 100 “bins”, com raio variando entre 1 μm to 5 mm exponencialmente, com o esquema de Kogan (1991) usado para redistribuir a massa entre os “bins”. As probabilidades de colisão-coalescência e colisão-ruptura e as funçõesdistribuição de fragmentos são calculadas de acordo com Low e List (1982a, b). A ruptura espontânea de gotas é calculada utilizando dados experimentais de Kamra et al. (1991). O modelo é inicializado com uma parcela não-saturada a pressão, temperatura e umidade especificadas (observações do LBA-SMOCC-EMfiN!), e velocidade vertical constante. Ainda como condição inicial para o modelo, uma distribuição de CCN é especificada. Nas simulações de controle, uma distribuição idealizada contendo tanto CCN “comuns” quanto CCN gigantes (GCCN) e ultragigantes (UCCN) foi utilizada. Essa distribuição foi modificada em algumas simulações, reduzindo-se as concentrações de GCCN e UCCN ou removendo-os inteiramente (ver Figura 1). Para simular as diferentes concentrações de CCN encontradas nos diferentes ambientes, tais distribuições foram multiplicadas por um fator, o que permitiu representar concentrações variando de 60 cm-3 a 60.000 cm-3 (a uma supersaturation de 3,0 %). Tais valores extremos visam representar desde ambientes muito limpos, como massas de ar oceânicas afastadas (concentrações mais baixas) até nuvens do tipo pyrocumulus formadas sobre queimadas (concentrações mais altas). 10000 Função-distribuição (m-3μm-1) 1000 100 10 1 0.1 0.01 0.001 0.0001 0.00001 0.001 0.01 0.1 1 10 Raio do Aerossol Seco (μm) Figura 1 – Distribuições de CCN usadas para inicializar o modelo de parcela. A distribuição controle contém CCN comuns, CCN gigantes e CCN ultragigantes. As distribuições modificadas são tais que: 1. A concentração de GCCN e UCCN é reduzida (“GCCN reduzidos”) ou a população de UCCN ou GCCN foi completamente removida (“sem UCCN” e “sem GCCN” respectivamente). Nas simulações, essa função-distribuição aparece multiplicada por um fator, para representar diferentes ambientes. SIMULAÇÕES DE CONTROLE Foi realizado um conjunto de simulações de controle, usando como condições iniciais aquelas correspondentes ao ambiente mais seco encontrados no final de Setembro de 2002 sobre o Sul da Amazônia e a distribuição de aerossóis de controle (isto é, contendo GCCN e UCCN). Foi prescrita uma velocidade vertical constante de 3 m/s para esse conjunto de simulações. A Figura 2 mostra a altitude de chuva quente simulada (considerada a mínima altitude na qual o diâmetro modal de água líquida atinge o valor de DR = 24μm) e os valores observados correspondentes, para um amplo intervalo de concentrações de gotículas. Tanto o modelo quanto as observações mostram uma tendência geral para um aumento da altitude de chuva quente (ζ) com o aumento da concentração de gotículas. Figura 2 –.Altitude de chuva quente, como função da concentração de gotículas: a partir das observações do LBA-SMOCC-EMfiN! (quadrados de diferentes cores representando diferentes regimes microfísicos), a partir das simulações com o modelo de parcela com parâmetros ambientais fixos (linha negra) e estimativa adiabátiomonomodal (linha cinza). Ver texto para detalhes. A altitude de chuva quente prevista pelo modelo exibe uma mudança de comportamento quando a concentração de gotículas excede ~ 700 cm-3. Abaixo desse valor, ela é bem explicada usando argumentos simples de como o vapor d’água disponível se condensa sobre um dado número de partículas de aerossol, calculando o conteúdo de água líquida adiabático e dividindo-o pelo número de gotículas, assumindo uma distribuição monomodal 2 . Para concentrações maiores que ~ 800 cm-3, o valor simulado de ζ cresce a uma taxa bem menor do que para concentrações menores. Esta mudança de comportamento mantém o modelo relativamente próximo das observações, enquanto a estimativa adiabático-monomodal se aparta da realidade. Essa mudança advém da física do processo de coalescência, cuja eficência depende das dimensões de ambas as partículas envolvidas. As colisões de gotículas de dimensões similares são improváveis e a coalescência entre elas dificilmente acontece até que seu diâmetro se aproxime de 24 μm, diâmetro limiar assumido para estimar a altitude de chuva quente. Por outro lado, colisões por diferentes partículas de diferentes tamanhos são mais prováveis e podem ocorrer mesmo quando a gotícula maior é muito pequena para sofrer coalescência ao interagir com outra de mesmo tamanho. Daí, a instabilidade coloidal em uma nuvem pode ser atingida ou através do alargamento do espectro ou do crescimento geral das gotículas. Em um ambiente limpo, as gotículas crescem via 2 As observações no regime limpo diferem dos resultados do modelo de parcela e da estimativa adiabático-monomodal principalmente devido às diferenças ambientais (menor temperatura e maior umidade sobre o oceano) e não a erros intrínsecos do modelo. De fato, há uma diferença média de ~ 1000 m entre as bases das nuvens amostradas no Nordeste Brasileiro e aquelas amostradas no Sul da Amazônia, cujas condições foram usadas para alimentar o modelo de parcela. condensação rápido o suficiente para que as atinjam o limiar de 24 μm antes que um alargamento significativo aconteça e um rápido início da formação da precipitação pode ser previsto por nossas estimativas adiabático-monomodais. Acima de uma concentração de CCN crítica, um alargamento significativo ocorre antes de se atingir esse limiar, permitindo a ocorrência de um processo “antecipado” de coalescência. Esse alargamento é bastante facilitado pelas minúsculas quantidades de GCCN e UCCN. A altitude a partir da qual isto ocorre pouco cresce com um aumento posterior da concentração de CCN mas é bastante sensível à presença de GCCN e UCCN. Esta explicação é ilustrada na Figura 3, que mostra as funções-distribuição para dois casos extremos. No caso limpo (3a), no estágio de crescimento por condensação, a massa adquirida pelas partículas menores é bastante significativa (já que há poucas delas para competir pelo vapor d’água) e o diâmetro modal da função-distribuição em massa cresce rapidamente. Em contraste, no caso poluído (3b), as partículas com dimensões maiores nos níveis superiores da nuvem simulada são capazes de ganhar massa através da coleta de algumas das partículas menores. O crescimento das partículas maiores via coleta é mais rápido que o crescimento condensacional, devido ao grande número de partículas competindo pelo vapor d’água que limita o segundo e, portanto, é provável que as partículas maiores (nucleadas sobre GCCN e UCCN) tendam a ser importantes como embriões de precipitação. 100 Clean Environment Maximum Droplet Concentration: 201 #/cc -1 Função-Distribuição em massa, g.m (ln D) b 10 -3 a 1 1080m 1350m 1620m 1890m 2160m 2430m 2700m 0.1 0.01 0.001 0.0001 1 10 100 1000 -3 Função-Distribuição em massa, g.m (ln D) -1 Diâmetro, μm 100 Polluted Environment Maximum Droplet Concentration: 2742 #/cc 10 1080m 1350m 1620m 1890m 2160m 2430m 2700m 2970m 3240m 1 0.1 0.01 0.001 0.0001 1 10 100 1000 Diâmetro, μm Figura 3 – Funções-distribuição para dois casos extremos: (a) caso limpo versus (b) poluído, no conjunto de simulações de controle. Curvas diferentes indicam a evolução do espectro de gotículas (diferentes alturas). O PAPEL DOS GCCN E UCCN Sob certas condições, GCCN e UCCN podem ser responsáveis pela formação de embriões de gotas de chuva, conforme discutido em diversos trabalhos (e.g. Yin et al. 2000), que mostram evidências de que GCCN e UCCN são importantes para o desenvolvimento de chuva quente em massas de ar com altas concentrações de aerossóis, enquanto que, em massas de ar limpo, sua influência é pequena. Para investigar a sensibilidade do modelo de parcela à presença de GCCN e UCCN, o modelo foi inicializado com as mesmas condições ambientais anteriores e, como nas simulações de controle, uma velocidade vertical de 3 m/s foi usada. No entanto, nos experimentos de sensibilidade, as diferentes distribuições de CCN mostradas na Figura 1 foram testadas (controle, sem GCCN, sem UCCN e GCCN reduzidos). Os resultados desses experimentos numéricos são mostrados na Figura 4. Eles sugerem que GCCN e UCCN são irrelevantes para o desenvolvimento da precipitação quando a concentração de gotículas é inferior a 700-800 cm-3. Acima dessa faixa, o papel dos GCCN e UCCN em reduzir a altitude de chuva quente se torna significativa. Para ambientes muito poluídos com concentrações da ordem de 2000 cm-3, a diferença na altitude de chuva quente entre a simulação de controle e a simulação sem GCCN é de cerca de 2 km para as condições iniciais e a velocidade vertical utilizadas. Os resultados do modelo sugerem que a minúscula população de UCCN também é importante e que sua ausência pode levar a um aumento de aproximadamente 1 km na altitude de chuva quente. Os resultados do experimento de sensibilidade com concentrações reduzidas de GCCN e UCCN sugerem que sua presença, mesmo em concentrações muito pequenas, reduz a altitude de chuva quente em comparação com a simulação sem GCCN e UCCN. Figura 4 – Altitude de chuva quente simulada, como função da concentração de gotículas, para diferentes distribuições de CCN: controle, com concentrações reduzidas de GCCN e UCCN, sem UCCN e sem GCCN. A idéia de que gotículas maiores nucleadas sobre GCCN podem servir como embriões de precipitação não é nova (e.g., Johnson 1982), mas ainda é objeto de debate se a presença de partículas gigantes de fumaça ou cinza na atmosfera poluída da Amazônia durante o período das queimadas poderia ao menos mitigar a supressão da chuva quente associada com as altas concentrações totais de CCN. Os presentes resultados sugerem que os espectros de gotículas de fato evoluem de maneira diferente em um ambiente poluído quando os GCCN estão ou não presentes. A Figura 5 mostra funções-distribuição, similares àquelas da Figura 3, para dois casos extremos, mas desta vez para a simulação sem GCCN. Os espectros na simulação sem GCCN para o caso limpo (5a) são muito semelhantes aos equivalentes na simulação de controle (3a). Entretanto, para o caso poluído, a simulação sem GCCN (5b) não mostra sinais de embriões de precipitação, o que evidentemente difere da simulação de controle (3b). CONSIDERAÇÕES FINAIS Foram efetuadas diferentes simulações usando um modelo de parcela para verificar a importância dos CCN e GCCN sobre o desenvolvimento da chuva quente em nuvens tropicais. Os resultados reforçam a tese em vigor de que o processo de colisão-coalescência pode ser fortemente inibido em condições ambientais poluídas, tendo como exemplo extremo as nuvens formadas sobre queimadas em regiões como a Amazônia (Andreae et al. 2004). Entretanto, o modelo também indicou que a presença de GCCN e UCCN podem modificar a evolução da microestrutura das nuvens ao provocar o alargamento do espectro de gotículas. Em geral, as simulações sugerem que os ambientes mais poluídos são mais sensíveis à presença de GCCN e UCCN e que estes podem, ao servir de embriões de partículas precipitantes, mitigar a inibição da formação de chuva quente. Outros fatores também são importantes para a evolução de nuvens convectivas, como a intensidade das correntes ascendentes e as condições ambientais de umidade. A influência destes fatores será investigada na Parte II deste trabalho. -1 Clean Environment Maximum Droplet Concentration: 201 #/cc -3 a 10 1 1080m 1350m 1620m 1890m 2160m 2430m 2700m 0.1 0.01 0.001 0.0001 1 Função-Distribuição em massa, g.m (ln D) -3 Função-Distribuição em massa, g.m (ln D) -1 100 10 Diâmetro, μm 100 1000 100 Polluted Environment Maximum Droplet Concentration: 2742 #/cc b 10 1080m 1350m 1620m 1890m 2160m 2430m 2700m 2970m 3240m 1 0.1 0.01 0.001 0.0001 1 10 100 1000 Diâmetro, μm Figura 5 – Como na Figura 3, mas para a simulação sem GCCN. REFERÊNCIAS ANDREAE, M., D. ROSENFELD, P. 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