Introdução
Para o historiador, todos os acontecimentos, mesmo os remotos, têm atualidade e vida. Mas isso é ainda mais verdadeiro no
caso da Revolução Francesa de 1789, que transformou o modo de
vida até daqueles que pouco souberam ou sabem dela até hoje em
dia. Não será exagero dizer que ela ajudou a dar forma ao mundo
ocidental contemporâneo, moldando as instituições e os ideais que
nos animam e que consideramos universais.
A partir dela, superou-se definitivamente a tradicional concepção de que os homens seriam distintos por natureza, alguns nascendo melhores do que os outros, numa visão hierárquica que
acompanhou a humanidade por milênios, para ser substituída só
tão recentemente pela de que todos somos iguais. Pôde ser, então,
finalmente formulada a exigência de cidadania, da participação geral
dos homens na tomada política das decisões sobre seu destino
coletivo. Pôde também, por outro lado, radicalizar-se tal exigência
na reivindicação por justiça social, em que mesmo as diferenças
de classe devem ser abrandadas ou até suprimidas.
Deste acontecimento crucial, assim, brotaram tanto os ideais
modernos dos direitos humanos e da igualdade de todos perante a
lei, quanto os da própria “revolução” enquanto mudança necessária e radical das estruturas sociais, mudança presente de modo
crítico na própria modernidade.
Mas neste ponto a Revolução Francesa teria somente consagrado na prática as idéias de liberdade e igualdade que vinham sendo
desenvolvidas pelo movimento filosófico conhecido como
Iluminismo. De fato, desde o próprio século XVIII acredita-se que
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A Igualdade (L’Égalite) exibe a
Declaração dos Direitos do Homem,
documento lançado em 1789 sob
influência dos ideais iluministas e um
dos principais símbolos da Revolução
Francesa: a superação da concepção
tradicional de que os indivíduos
nascem distintos por natureza.
o Iluminismo teve papel preponderante em preparar os espíritos
para a derrocada da ordem social vigente durante a Revolução Francesa de 1789. E embora trabalhos de historiadores recentes tenham
lançado algumas dúvidas a respeito da naturalidade dessa ligação
entre a filosofia e a revolução, não se deve abandonar completamente a antiga convicção. Trata-se de não separar de modo absoluto ambos terrenos, como se o Iluminismo se limitasse a uma
elaboração teórica e a Revolução, por seu turno, fosse apenas um
movimento prático.
É nesse sentido que caminhará a abordagem do presente livro.
O Iluminismo é aqui considerado já como uma reflexão sobre um
processo revolucionário, o ocorrido na Inglaterra do século XVII,
que consagrou alguns princípios básicos para a filosofia política,
moral e até da natureza. E o desenvolvimento desses princípios no
século seguinte não podia deixar de ter um caráter ativo, de intervenção crítica e modificação da sociedade da época. Por outro lado,
a Revolução Francesa representou não só a realização dos ideais
iluministas, como também sua elaboração teórica, evidenciando
os impasses e a necessidade de ultrapassar aquele marco filosófico.
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Não poderemos então nos furtar à narrativa de alguns acontecimentos de toda esta história, para embasar sua análise. Sem dúvida, é impossível pretender esgotar a riqueza e a imensidão de
todo o ocorrido. Nem, muito menos, subscrevemos a tese ingênua do historicismo que afirma poder contar uma história tal qual
ela teria acontecido. O fio condutor e o critério de seleção do exposto devem vir, assim, da própria relação entre o Iluminismo e a
Revolução, isto é, do sentido de que ambos têm um para o outro,
da sua reciprocidade. Longe de eliminar a pluralidade de interpretações possíveis, essa proposta visa explicitar um elo efetivo pelo
qual tais interpretações ganham novo enfoque.
Com isso, pensamos ser possível também derrubar alguns malentendidos arraigados, especialmente sobre o Iluminismo, como
o de que ele aspirava a tudo conhecer: melhor seria entendê-lo
como afirmação do direito de tudo duvidar. Um certo ceticismo se
conforma muito mais ao projeto dos grandes filósofos do século
XVIII do que o dogmatismo que lhes é geralmente e erradamente
atribuído. Da mesma forma, seu conceito de razão era muito diferente do racionalismo cartesiano, abrindo espaço para a valorização da experiência, dos sentidos e dos sentimentos, propiciando
até que surgisse, do seio do Iluminismo, o movimento considerado como seu antípoda: o Romantismo.
São tais conceitos rígidos a respeito de um assunto tão rico e
complexo que pretendemos atacar e modificar neste livro. E com
isso, de certa forma, estaremos fazendo jus ao próprio objeto aqui
tratado, que se define pelo poder da crítica, pela insatisfação diante
de todo o consagrado, pela desconfiança em face de toda a unanimidade. Em um tempo em que a clássica pergunta “o que fazer”
retorna necessária e urgente, acreditamos que esses temas e
questionamentos adquirem uma importância e uma oportunidade
evidentes.
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Introdução - Editora Contexto