HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A LITERATURA COMO FONTE ALTERNATIVA ROSA, Silvina(481) Universidade Estadual de Maringá Resumo Como docente do Mestrado em Educação da UEM, exporemos uma experiência de pesquisa que consiste em analisar historicamente a educação dos indivíduos, sua adequação à sociedade, tal como a própria vida a realiza, ou seja, analisá-la em meio ao processo ininterrupto que transforma os seres singulares em homens de uma sociedade. Partimos do pressuposto de que a alteração das formas do Estado, da propriedade e do trabalho interfere diretamente seja nas instituições educativas seja no comportamento dos indivíduos, levando-os a adotar os códigos morais e as formas de vida atinentes a cada forma de organização social. O objetivo do projeto de pesquisa intitulado A literatura como fonte alternativa para a história da educação é explorar nos romances, contos, novelas e obras dramáticas a forma como os indivíduos se comportam diante da transformação histórica. Este tipo de fonte é importante no projeto porque representa, com riqueza de detalhes, a luta e o cotidiano dos indivíduos, como seres que se movem organicamente no amplo quadro social, permitindo, assim, que se apreenda o ser humano de uma forma, simultaneamente, geral e particular. Os dados da pesquisa são utilizados nas atividades de ensino, tornando a discussão profícua e, ao mesmo tempo, agradável. Pretendemos, com este texto, expor os encaminhamentos dados à pesquisa e ao ensino, enquanto docente do MFE, e provocar uma discussão acerca de uma forma alternativa de se pensar e trabalhar a história da educação. Diante da forma esquemática e a-histórica com que os manuais, em sua maioria, tratam a questão educacional, a proposta do Curso de Mestrado, no qual atuamos como docente e pesquisadora, é aprofundar reflexões sobre a relação entre educação e sociedade, a partir do eixo teórico-metodológico norteador, Formas históricas do trabalho e educação. Segundo esse prisma, a relação entre educação e sociedade está pautada na forma como o homem produz a vida, ou seja, na concepção de que a relação entre educação e sociedade obedece aos parâmetros da forma, social, como os homens organizam o trabalho para produzir a vida. Assim sendo, por entender que as questões educativas não podem ser compreendidas em toda sua profundidade se não são inseridas no contexto mais amplo das necessidades de uma época histórica, os pesquisadores do curso priorizam as relações sociais, ou melhor, o processo de transformação social, pois é este que esclarece a que necessidades correspondem determinados projetos e práticas educativas. Não se trata, portanto, de um desvio, no qual se evita abordar a educação, mas da premissa de que não é possível compreendê-la como uma atividade autônoma, que pode, independentemente de qualquer força social, fixar sua função, seus caminhos, suas metas. Seguindo esta orientação teórica, desenvolvemos, no interior da linha de pesquisa do Curso, História, historiografia e educação, o projeto intitulado A literatura como fonte alternativa para a história da educação, ao qual se vinculam sub-projetos de alunos da pós-graduação (lato e stricto sensu) e da graduação. Um deles resultou uma dissertação de mestrado que, sob o título Indivíduo e educação: elos de uma corrente, foi defendida recentemente por Beatriz Müller. Selecionando textos literários significativos de várias épocas, exploramos, para além dos muros escolares, as diversas maneiras pelas quais as transformações históricas se manifestam no comportamento e/ou na educação dos indivíduos. Colocando a educação no palco da vida e abordando os costumes de uma perspectiva histórica, procuramos tornar mais claros os limites da educação planejada numa sociedade em constante movimento, cujos hábitos costumes e idéias também estão em constante transformação. Nesse projeto, evidentemente, trabalha-se não apenas com a literatura, mas também com textos teóricos, pois, não sendo uma produção humana independente das demais, a interpretação dos dados que ela oferece deve ser feita à luz de outras fontes. O texto de natureza teórica não apresenta a realidade imediatamente, em atos; pelo contrário, descarta o particular e o individual, pois a preocupação é conectar os fatos, elucidar o caminho percorrido pela humanidade, com a meta de chegar a um resultado final ou a uma síntese. Seu objeto específico não é o mesmo da arte poética, mas as questões abstratas do pensamento racional. Desta forma, ao estabelecer categorias, leis e princípios gerais, a linguagem científica, apesar de inanimada quando comparada à da literatura, prenhe do fervilhar da vida, monta o difícil quebracabeça que nos permite compreender os homens como seres históricos. Na medida em que o objeto do projeto é a educação frente às mudanças de comportamento e dos costumes, a literatura preenche a lacuna da ciência porque representa a relação dinâmica existente entre o indivíduo e os encaminhamentos gerais, históricos de uma determinada época, revelando que o modo de pensar, agir, amar, falar ou vestir, a adoção ou abandono de valores, etc. extrapolam os limites da pura individualidade. São resultado da relação conflituosa e dinâmica entre o indivíduo e as tendências sociais. As características humanas, mais do que manifestações da personalidade individual ou imposições institucionais, expressam o movimento geral da sociedade. A ciência social focaliza a história humana, estabelecendo os princípios gerais de determinados períodos, a arte mostra-nos como os seres históricos, enquanto indivíduos, comportam-se frente às diversas necessidades. Na literatura, a multiplicidade de aspectos individuais dão cor e forma à realidade. As contradições da sociedade aparecem, independentemente de qualquer interferência explícita, do ponto de vista científico ou moral, por parte do artista. Assim, o mundo representado no texto literário é conflituoso, contraditório e, ás vezes, até incoerente. A mesma personagem pode ter várias faces. Em determinadas situações é herói, em outras é covarde ou mesquinho. O que define seu caráter é a situação em que se encontra face a outras personagens e situações. Diferentemente do que acontece com o texto de natureza científica, o conteúdo da literatura são as particularidades da existência, não de forma independente e isolada, mas viva. O particular, a heterogeneidade dos comportamentos, as contradições que, na maioria das vezes são atribuídas somente à criatividade do autor, têm origem no movimento geral da sociedade. Desfrutando desta peculiaridade estética, utilizamos a literatura para compreender a realidade histórica presente nas particularidades da vida, segundo a qual os indivíduos não se comportam como querem, mas lutam para ser ou não ser o que a sociedade quer que eles sejam. O objetivo deste aparente distanciamento das questões educativas e da prioridade que se dá ao processo histórico, é tornar mais claros os limites e as possibilidades de avanço da prática educativa sistematizada. Para nós, esta também está sujeita ao processo social, porque a cada forma de organização social correspondem necessidades diferentes às quais os indivíduos têm que atender. Ou seja, é no processo social que os homens educam-se uns aos outros, tornando-se seres de uma época. Numa afirmativa que deve ser entendida cum grano salis pode-se dizer que os limites comportamentais não são estabelecidos pelos indivíduos em sua singularidade absoluta, nem pelas instituições, mas têm caráter eminentemente social. É no processo de transformação social que os indivíduos são produzidos ou mesmo destruídos. Quem, em primeira instância, e informalmente, direciona, transforma, educa os indivíduos e projeta luzes sobre a educação formal é a sociedade, mas como, em geral, esta questão não é assim considerada, as discussões sobre as instituições escolares não avançam de forma significativa. Responsabiliza-se ora a atuação do professor, ora o governo que não dispende verbas para o setor e não valoriza os professores, ora os alunos que nem sequer querem frequentar a escola, ora a própria comunidade. Sem uma atenção maior ao processo social de criação e satisfação de necessidades que subjaz às questões educativas, diversos segmentos são, então, convocados a participar do processo de construção de uma nova educação que dê conta de resolver não só os seus problemas internos, mas também os problemas sociais que são atribuídos, pelo senso comum, à incompetência dos educadores e à falta de interesse dos governantes. Discordamos da idéia de que os homens são produto da educação institucional e que a ela cabe transformar ou redirecionar a sociedade, interferindo, inclusive, no processo produtivo. Para nós, são os homens que, em conjunto, e num processo meio cego, transformam as circunstâncias em que vivem e, ao alterá-las, impõem determinadas práticas e determinados conteúdos ao próprio educador, modelando também as instituições As transformações históricas é que acabam impondo a necessidade de novos comportamentos sociais, que, por sua vez, são assumidos como conteúdo da educação formal. A transformação social é conseqüência do ato humano de viver. Ao modificar sua forma de produção, os homens modificam também seus hábitos, costumes e idéias. Ao mesmo tempo em que velhos comportamentos, que já não condizem com as necessidades da produção da vida, são socialmente destruídos, outros novos têm que ser aprendidos e esta aprendizagem também se constrói em meio ao processo social. Os costumes não têm existência própria, independente do processo social. Os costumes são destruídos ou construídos pelos próprios homens em ação. Por isso, discordamos de educadores como José Luiz Beltran, que se arvoram em salvadores dos bons costumes, num momento de subversão social? Como esse mundo tem se modificado, não é mesmo? Você já refletiu como é diferente o mundo em que nossos filhos vivem hoje se comparado com o mundo de nossa infância? E você já meditou um pouco como será o mundo que seus filhos enfrentarão daqui a 5-10 anos, com as transformações que estão ocorrendo? A concorrência, a disputa por mercado de trabalho cada vez mais escasso; o perigo de serem alcançados pelo uso de drogas, enfim, como seu filho reagiria em um mundo que se revela cada vez mais hostil? É claro que serão necessários inúmeros atributos para se viver num mundo dominado por crises, por hostilidades, mas parece-me que existem seis atributos essenciais que poderíamos desenvolver nas crianças para ajudá-las a enfrentar o que lhes vier pela frente. (Enumera: autoconfiança, entusiasmo, compaixão, respeito, tolerância, esperança)(482) Aliás, quantos educadores não fazem coro com os governantes brasileiros quanto à necessidade de se introduzir nos currículos de 5ª a 8ª séries, disciplinas referentes ao consumismo, ao uso de drogas, a divisão das tarefas domésticas entre os homens e as mulheres? Como optar entre o otimismo exacerbado e o sentimento de impotência quanto às possibilidades de o indivíduo, a escola e a família atuarem de uma maneira transformadora? Estas reflexões teóricas têm subsidiado o encaminhamento das disciplinas e atividades de ensino referentes à História da educação no Brasil, para as quais a literatura tem se apresentado como uma fonte inesgotável, revelando, nos quase cinco séculos de nossa história, diferentes nuances comportamentais e políticas. Restringindo esta exposição à questão do nacionalismo subjacente à criação dos sistemas de ensino e às discussões sobre a formação do cidadão nacional, nosso ponto de partida é de que os ideais nacionais não são dados a priori, mas são expressão dos conflitos e interesses com que, inseridos no contexto mundial, os homens organizam a vida no Brasil desde os princípios da colonização. Começando por explorar os chamados textos de informação da primeira época colonial, procuramos neles encontrar as marcas das preocupações humanas do século XVI. As entrelinhas dos textos, os adjetivos, a caracterização dos primeiros habitantes brasileiros expressam a necessidade de se organizar uma sociedade, cujos princípios e hábitos de civilização adequem-se ao mercado mundial em formação. Por exemplo, a leitura das Cartas Jesuíticas, de Anchieta, Nóbrega e Azpilcueta Navarro revela que, mesmo quando estes conseguiam impedir a escravização dos índios, não deixavam de educá-los para a nova sociedade. O incentivo ao trabalho sistematizado, com base em técnicas de produção mais avançadas, a criação de modernos hábitos culturais, a doutrinação religiosa, o treinamento para o hábito de trocar os produtos que excediam às necessidades da comunidade e para o respeito à propriedade individual, o combate à poligamia constituem fatores de civilização que se revertem em benefícios para a propriedade e produção burguesas em sua fase inicial. Mais do que isso, se a preocupação dos jesuítas era tornar civilizados os índios, a mesma estendia-se também aos europeus que aqui moravam. Muitos dos portugueses, holandeses, espanhóis, italianos que aqui aportavam desligavam-se dos seus antigos hábitos de civilização e tornavam-se tão ou mais "bárbaros" do que os próprios naturais da terra. Tratava-se, portanto, de formar um homem sistematicamente produtivo e que fosse portador de uma racionalidade moral e social que permitisse a reprodução da sociedade nos termos de desenvolvimento a que os homens tinham chegado na Europa, seja de uma perspectiva cultural, seja da perspectiva do desenvolvimento da produção e do comércio. Já neste momento, a concorrência entre os produtores individuais e entre as nações européias era um dos móveis da produção e do desenvolvimento das forças produtivas. Pode-se mesmo dizer que as próprias viagens marítimas e a colonização do século XVI são resultado da concorrência entre essas nações na fase mercantil do capital. Portanto, nesse momento em que se tratava de formar um homem produtivo, capaz de fazer do Brasil um espaço criador da riqueza burguesa, um espaço produtor de mercadoria, não cabe uma discussão de cunho nacionalizante. Nestes textos não se caracteriza como estrangeiros os portugueses que se deslocam da Europa para o Brasil, pelo contrário, várias são as cartas que se referem à necessidade de comerciantes, artesãos, artigos europeus manufaturados. Mais do que isso, os próprios jesuítas, desesperados com a renitência de algumas tribos a adotarem os hábitos regulares da Europa, aliavam-se aos portugueses na guerra contra os índios que saqueavam os engenhos. Ou seja, nesse primeiro momento de organização da produção e da sociedade brasileiras, a presença de portugueses e mesmo de outros povos europeus não era apresentada pela literatura como uma invasão indevida ou injusta. Mesmo no século XVII, quando a produção e comércio já tinham passado por um período de relativa consolidação no Brasil, esses primeiros colonizadores europeus são exaltados.. Gregório de Matos, em um de seus romances(483), por exemplo, começa por destacar positivamente o processo de civilização da Bahia, que a tornou povoada por homens diferentes dos primitivos habitantes: Haverá duzentos anos, nem tantos podem contar-se, que éreis uma aldeia pobre, e hoje sois rica cidade. Então vos pisavam índios, e vos habitavam cafres, hoje chispas fidalguias, arrojando personagens. Para este poeta do final do século XVII,os brasileiros não são os índios, mas os descendentes dos europeus que fixaram raízes no Brasil e, substituindo os "cafres" e "índios", tornaram a Bahia uma rica cidade. Mas esse autor já aponta a existência de um conflito interno. Todo o poema consiste em denunciar o fato de que, na concorrência entre os "naturais" da terra, ou seja, os antigos colonizadores, e os novos imigrantes, estes passam a usurpar o lugar dos primeiros tanto em termos públicos como em termos da riqueza particular. Ou seja, com Gregório de Matos e outros autores do período, já se manifesta uma espécie de reivindicação protecionista da produção local. Senhora Dona Bahia, nobre e opulenta cidade, madrasta dos naturais, e dos estrangeiros madre: Dizei-me por vida vossa em que fundais o ditame de exaltar os que aqui vêm, e abater os que aqui nascem? (...) Vêem isto os filhos da terra, e entre tanta iniquidade são tais, que nem inda tomam licença para queixar-se. Sempre vêem, e sempre calam, até que Deus lhe depare quem lhes faça de justiça esta sátira à cidade. Quem são esses que aqui nascem? Quem são os filhos da terra? Evidentemente não são os "índios" e "cafres", mas os filhos dos antigos colonizadores europeus que aqui tinham suas propriedades e sua fonte de riqueza. Percebe-se, portanto que, nesta nova fase da concorrência mundial, em que os engenhos já atravessavam enormes dificuldades, o poeta posiciona-se em defesa de interesses locais, nacionais. Pode-se dizer, portanto, que a defesa de interesses nacionais, que se manifesta timidamente no século XVII e que, atravessando o século XVIII, explode no século XIX, tem origem na criação e na transformação dos interesses particulares em interesses nacionais. O nacionalismo não é, portanto, um ideal a ser defendido em quaisquer circunstâncias, mas é produzido num contexto de luta social, de concorrência. No século XX, em pleno auge das campanhas nacionalistas, Lima Barreto combate o nacionalismo exacerbado do Major Quaresma , da mesma forma que, um pouco mais tarde, Monteiro Lobato, clamando pelo petróleo e pelo desenvolvimento, combate o homem nacional por ser ocioso e contentar-se com muito pouco.. Concordamos com Alfredo Bosi, quando diz que estes autores, movidos pela consciência de que o capital não tem pátria, combatem o caminho meufanista por considerá-lo veleitário e impotente. Assim, também nesta época, a crítica ao nacionalismo tem origem no processo histórico e é expressão do conflito de interesses que subjaz à economia capitalista. Questões como essas, que aqui não puderam ser senão superficialmente exploradas, norteiam as reflexões sobre o fato de apenas no século XX se concretizar o ideal da escola pública levantado pelas bandeiras nacionalistas do século XIX. BIBLIOGRAFIA CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira.São Paulo, Martins Fontes, 1972. MARX, K., ENGELS, F. A ideologia alemã. S.Paulo, Ciências Humanas, 1979. Sobre literatura e arte. Lisboa, Estampa, 1974. MATOS, Gregório. Poemas escolhidos. São Paulo, Cultrix, 1981 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma São Paulo, Brasiliense, 1975 NÓBREGA, M.da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo;Itatiaia/Edusp,1988. NAVARRO, Aspilcueta e outros. Cartas avulsas. BH/SP; Itatiaia/Edusp.1988 ANTONIL, André J. Cultura e Opulência do Brasil. BH/SP.Itatiaia/ Edusp,1982. ANCHIETA, J. de. 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